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ABRALIN

Associação Brasileira de Lingüística

Boletim da Associação Brasileira de Lingüística


Número Especial

II Congresso Internacional da ABRALIN


Fortaleza, Março de 2001
Anais - Vol. I

Maria Elias Soares


(Organizadora)

ISSN 0102-7158

Boletim da Associação Brasileira de Lingüística Fortaleza v. 26 - Nº Especial - I p. 1-736 2001


Componentes da Diretoria e do Conselho
Gestão 1999/2001
Presidente
Maria Elias Soares (UFC)
Secretária
Maria do Socorro Silva de Aragão (UFC)
Tesoureira
Bernardete Biasi Rodrigues (UFC)
Suplente
Vládia Maria Cabral Borges (UFC)

Conselheiros
José Luiz Fiorin (USP)
Leonor Scliar-Cabral (UFSC)
Lúcia Maria Pinheiro Lobato (UnB)
Maria Cecília Mollica (UFRJ)
Maria Denilda Moura (UFAL)
Rosemeire Selma Monteiro (UFC)

Catalogação na fonte por Daurecy Camilo (Beto) CRB – 14/416

ABRALIN: Boletim da Associação Brasileira de Lingüística/Associação


Brasileira de Lingüística. - v.1, 1979____. Fortaleza: Imprensa
Universitária/UFC, 2001 (publicado em 2003).
v.; 29,7 cm

Anual
ISSN 0102-7158
1. Lingüística - Periódicos I. Associação Brasileira de Lingüística

Revisão das Provas: Maria Elias Soares e Maria Vilani Mano

Endereço para correspondência / Mailing address

Associação Brasileira de Lingüística - ABRALIN


Centro de Humanidades - Universidade Federal do Ceará
Av. da Univesidade, 2683, CEP 60.020-180 - Fortaleza - CE
Fone: (085) 288-7602 / 288-7603 Fax: (085) 288-7604
http://sw.npd.ufc.br/abralin
Sumário

Apresentação ................................................................................................................................................. 23
Maria Elias Soares

Conferências
A lingüística e o conhecimento científico da linguagem
Maria Helena Mira Mateus ............................................................................................................................ 27

As comunidades de fala: fronteiras internas e externas


Gregory R. Guy .............................................................................................................................................. 32

A gramática: o uso e a norma


Maria Helena de Moura Neves ...................................................................................................................... 38

Mesas Redondas

PERSPECTIVAS EM PESQUISA LINGÜÍSTICA NA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA


(Coordenadora: Célia Marques Telles)

Mudanças lingüísticas na România


Célia Marques Telles ...................................................................................................................................... 43

O “Programa para a história da Língua Portuguesa – PROHPOR”


Rosa Virgínia Mattos e Silva ........................................................................................................................... 47

LIVRO DIDÁTICO DE LÍNGUA PORTUGUESA: MÚLTIPLOS OLHARES


(Coordenadora: Cristina Teixeira Vieira de Melo)

A concepção de intertextualidade nos livros didáticos de Língua Portuguesa


Cristina Teixeira Vieira de Melo ..................................................................................................................... 49

O guia de livros didáticos e a leitura do professor


Elizabeth Marcuschi ........................................................................................................................................ 52

Produção de texto no livro didático: gradação ou repetição?


Márcia R. de S. Mendonça ............................................................................................................................ 55

A oralidade no livro didático de Língua Portuguesa: erros e acertos


Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante ........................................................................................................ 58
TEXTO E SINGULARIDADE
(Coordenador: Eduardo Calil)

As interferências no texto do aluno: uma relação singular e imprevisível


Eduardo Calil e Regina Nagamine .................................................................................................................. 61

LINGÜÍSTICA HISTÓRICA: O USO DE INFORMAÇÕES DO PRESENTE PARA


CONHECER O PASSADO
(Coordenador: Brian Franklin Head)

Variantes lexicais e seu estatuto em face do sistema e da norma


José Alves Fernandes ..................................................................................................................................... 64

REFERENCIAÇÃO, INTERAÇÃO E DISCURSO


(Coordenadora: Edwiges Maria Morato)

Pour une approche conversationnelle des objets de discours


Lorenza Mondada ......................................................................................................................................... 66

Atos de referenciação na interação face a face


Luiz Antônio Marcuschi .................................................................................................................................. 71

Referenciação e heterogeneidade enunciativa: análise de formas meta-enunciativas no discurso


de sujeitos afásicos
Edwiges Maria Morato ................................................................................................................................... 78

A referenciação como atividade cognitiva e interacional


Ingedore G. Villaça Koch ............................................................................................................................... 81

PARA A INTEGRAÇÃO DE PARÂMETROS CONTÍNUOS E DISCRETOS EM


FONÉTICA E FONOLOGIA
(Coordenadora: Eleonora Cavalcante Albano)

O gramatical e o abstrato num modelo fonético/fonológico dinâmico


Eleonora Cavalcante Albano .......................................................................................................................... 86

O universal e o específico: a língua em um modelo dinâmico de produção do ritmo (fonético e


fonológico) da fala
Plínio Almeida Barbosa .................................................................................................................................. 89

A duração da vogal na fala adulta do português brasileiro


Aglael Juliana A. Gama-Rossi ........................................................................................................................ 92

Um enfoque dinâmico no estudo de erros de fala


Ana Luiza G. P. Navas ................................................................................................................................... 95

O GENÉRICO E O ESPECÍFICO NA LINGUAGEM: INTERAÇÃO, DISCURSO E


GRAMÁTICA
(Coordenadora: Helena Gryner)

Caracterizações genéricas e específicas do processo argumentativo: da língua ao discurso


Maria Aparecida Lino Pauliukonis .................................................................................................................. 98
REFLEXÕES SOBRE A AVALIAÇÃO DOS CURSOS DE LETRAS
(Coordenadora: Ilza Maria de Oliveira Ribeiro)

A avaliação dos conhecimentos de língua no provão: coerências e incoerências


Ilza Maria de Oliveira Ribeiro ......................................................................................................................... 101

A proposta de avaliação do MEC para os Cursos de Letras


Conceição de Maria de Araújo Ramos .......................................................................................................... 105

As provas de literatura de expressão portuguesa no provão: os avanços e os recuos na


elaboração das questões
Márcia Manir Miguel Feitosa ......................................................................................................................... 107

Perfil do profissional de Letras delineado nas diretrizes curriculares propostas pelo MEC
José de Ribamar Mendes Bezerra .................................................................................................................. 109

ASPECTOS DA INTERAÇÃO VERBAL


(Coordenadora: Iracema Luiza de Souza)

Processos de intensificação prefixal na norma urbana culta de Salvador


Carlos Alberto Gonçalves Lopes .................................................................................................................... 111

O ATLAS LINGÜÍSTICO DO BRASIL: UM ATLAS PLURIDIMENSIONAL?


(Coordenadora: Jacyra Andrade Mota)

A variação diafásica no Português do Brasil


Jacyra Andrade Mota ..................................................................................................................................... 114

A variação diastrática do Português do Nordeste


Maria do Socorro Silva Aragão ...................................................................................................................... 117

A variação diagenérica no Português do Brasil: uma visão a partir de inquéritos experimentais


do Projeto ALIB
Suzana Alice Marcelino Cardoso ................................................................................................................... 120

SOBRE A AQUISIÇÃO DA ESCRITA: ALGUMAS QUESTÕES E PROPOSIÇÕES


(Coordenadora: Lélia Erbolato Melo)

O papel do adulto letrado na aquisição da escrita


Lélia Erbolato Melo ........................................................................................................................................ 123

Produção de textos: maneiras de ver, maneiras de dizer


Alba Maria Perfeito ........................................................................................................................................ 126

Produção de textos escritos: “a concepção dos professores de 1º grau”


Regina Maria Gregório ................................................................................................................................... 128
As marcas de (as)sujeitamento do aluno pela escola
Flávio Luis Freire Rodrigues ........................................................................................................................... 130

LÍNGUA FALADA, TEXTO E INTERAÇÃO


(Coordenadora: Leonor Lopes Fávero)

A correção na língua falada: texto e interação


Maria Eulália Sobral Toscano ......................................................................................................................... 133

A CONSTRUÇÃO DO SIGNIFICADO
(Coordenadora: Lúcia Maria Pinheiro Lobato)

Sobre o papel dos núcleos funcionais na construção da interpretação semântica referencial


Lúcia Maria Pinheiro Lobato .......................................................................................................................... 136

Aspectos sintático-semânticos de construções bitransitivas


Heloísa Maria Moreira de Lima Salles ........................................................................................................... 140

LÍNGUA PORTUGUESA E ENSINO


(Coordenadora: Maria Adélia Ferreira Mauro)

Ensino de língua portuguesa e os discursos da construção da cidadania


Edna Maria Fernandes dos Santos Nascimento ............................................................................................. 143

ESTABILIDADE, VARIAÇÃO E MUDANÇA LINGÜÍSTICA


(Coordenadora: Maria Angélica Furtado da Cunha)

Variação e mudança das estratégias de negação


Maria Angélica Furtado da Cunha .................................................................................................................. 146

Estabilidade e variação da sintaxe adjetiva


Mariangela Rios de Oliveira ........................................................................................................................... 150

O NÍVEL CONCEPTUAL DO PERCURSO GERATIVO DA ENUNCIAÇÃO DE


CODIFICAÇÃO E DE DECODIFICAÇÃO: ANÁLISES
(Coordenadora: Maria Aparecida Barbosa)

Da formação do conceptus à estrutura semântica lexical


Maria Aparecida Barbosa .............................................................................................................................. 153

Do processo de conceptualização, da produtividade lexical e discursiva, da intertextualidade, da


interdiscursividade
Cidmar Teodoro Paes ..................................................................................................................................... 156

TEORIAS LINGÜÍSTICAS, FORMAÇÃO DE PROFESSORES E O EXAME NACIONAL DO


CURSO DE LETRAS (PROVÃO): COMO RESOLVER A EQUAÇÃO?
(Coordenadora: Maria Auxiliadora Bezerra)

Descompasso entre formação teórica do professor e atuação no ensino: o provão


interfere nesse quadro?
Maria Auxiliadora Bezerra ............................................................................................................................. 160
Teoria e prática na formação do professor
Maria Augusta Gonçalves de Macedo Reinaldo ............................................................................................ 163

A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO NA SALA DE AULA DE LÍNGUAS: A


CONTRIBUIÇÃO DE VIGOTSKY E BAKHTIN
(Coordenadora: Maria Bernadete Fernandes de Oliveira)

Relações dialógicas, vozes, instauração do outro e o ensino da produção textual


Maria Bernadete Fernandes de Oliveira ......................................................................................................... 166

Conceitos bakhtinianos na pesquisa em sala de aula


Rita Maria Diniz Zozzoli ................................................................................................................................. 169

Leitura: relação entre aprendizagem e desenvolvimento


Abuêndia Padilha Pinto ................................................................................................................................... 172

Mediação semiótica – linguagem – e processos de construção do conhecimento


Rosângela Francischini ................................................................................................................................... 175

DIVULGAÇÃO DE INFORMAÇÃO E CONTROLE DE QUALIDADE LINGÜÍSTICA


(Coordenadora: Maria Cecília Molica)

Por que (não) controlar a qualidade do ensino massificado?


José Lemos Monteiro ..................................................................................................................................... 179

LÉXICO E TEXTO EM TERMINOLOGIA


(Coordenadora: Maria da Graça Krieger)

O verbo: fator determinante da especificidade do termo no texto especializado


Anna Maria Becker Maciel ............................................................................................................................ 181

Sobre o enfoque lingüístico-terminológico de manuais acadêmicos de Química Geral


Maria José Bocorny Finatto ............................................................................................................................ 184

GÊNEROS DE DISCURSO E IDENTIDADES


(Coordenadora: Maria Izabel Magalhães)

Sobre a instabilidade de gêneros


Kanavillil Rajagopalan ..................................................................................................................................... 187

O discurso científico e a questão da identidade: entre a modernidade e a pós-modernidade


Maria José R. Faria Coracini .......................................................................................................................... 190

DISCURSO E SUJEITO
(Coordenadora: Maria Virgínia Borges Amaral)

A (des)ordem do sentido: da língua ao discurso


Maria Virgínia Borges Amaral ........................................................................................................................ 193
Revisitando o sujeito em análise do discurso
Belmira Magalhães ......................................................................................................................................... 196

Lugares de enunciação e discurso


Mônica G. Zoppi Fontana ............................................................................................................................... 199

ESTUDOS GRAMATICAIS: HISTÓRIA E ENSINO


(Coordenadora: Neusa Maria Oliveira B. Bastos)

Perspectivas no ensino da língua materna: o laboratório de produção textual


Dieli Vesaro Palma ......................................................................................................................................... 202

Gramática e texto: abordagem pedagógica


Elisa Guimarães Pinto ..................................................................................................................................... 204

APLICAÇÕES DE TÉCNICAS TEXTUAIS


(Coordenadora: Regina Célia Cabral Angelim)

Pejorativos e meliorativos na construção do enunciador


Paulo Cesar Costa da Rosa ............................................................................................................................ 206

A heterogeneidade enunciativa no editorial jornalístico


Monica Alvarez Gomes das Neves ................................................................................................................ 209

O processo da concessão
Lúcia Helena Martins Gouvêa ........................................................................................................................ 212

O FUNCIONAMENTO DAS LÍQUIDAS NA AQUISIÇÃO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO


E DO PORTUGUÊS EUROPEU
(Coordenadora: Regina Ritter Lamprecht)

As líquidas não-laterais na aquisição do português brasileiro – estudo comparativo entre o


desenvolvimento fonológico normal e os desvios fonológicos evolutivos
Regina Ritter Lamprecht ................................................................................................................................ 215

O ponto de articulação das laterais em ataque simples na aquisição do português europeu


Maria João Freitas ..........................................................................................................................................219

Restrições segmentais e prosódicas na aquisição das líquidas do português brasileiro e do


português europeu
Carmen Lúcia Matzenauer-Hernandorena ......................................................................................................223

/Kar.ro/ ou /Ka.Ro/: evidências da aquisição da linguagem


Ana Ruth Moresco Miranda ............................................................................................................................226

ANÁLISE DE GÊNERO OU ANÁLISES DE GÊNEROS: REFLEXÕES SOBRE


METODOLOGIAS E TEXTOS
(Coordenadora: Tânia M. G. Shepherd)

Análise de gênero: reflexões sobre metodologias e práticas


David Shepherd e Tânia M. G. Shepherd ........................................................................................................229

Um gênero discursivo legalmente constituído?


Lúcia M. A. Ferreira / Maurício B. de Carvalho e Evelyn G. D. Orrico ........................................................232
A categoria de gênero em contextos disciplinares: o caso da prosa sobre a literatura
Anna Elizabeth Balocco ...................................................................................................................................235

DISCURSOS SOBRE O DISCURSO


(Coordenadora: Valéria Coelho Chiavegatto)

Mesclando vozes: construindo a argumentação em diferentes trabalhos de ‘face’


Valéria Coelho Chiavegatto .............................................................................................................................238

Gramática e discurso em texto escolar do ensino fundamental


Marísia Teixeira Carneiro ................................................................................................................................242

Os discursos sobre o discurso e o campo da Lingüística


Zinda Maria de Vasconcellos ...........................................................................................................................245

Simpósios

O ESPAÇO DO DISCURSO POLÍTICO NO ÂMBITO DA INSTITUIÇÃO


(Coordenadora: Ana Zandwais)

Teia discursiva do movimento anarquista


Carme Regina Schons .....................................................................................................................................251

Interlocução discursiva - a afirmação funcionando como negação


Ercília Ana Cazarin ..........................................................................................................................................254

ANÁLISE DO DISCURSO: REFLEXÕES TEÓRICO-ANALÍTICAS


(Coordenadora: Freda Indursky)

Trair a teoria e inventar a prática


Pedro de Souza ............................................................................................................................................... 257

Educação e instrução para o proletariado: atas do II Congresso Operário Brasileiro


Ana Zandwais ................................................................................................................................................. 260

PROCESSO DE REFERENCIAÇÃO TEXTUAL


(Coordenadora: Ingedore G. Villaça Koch)

O determinante demonstrativo em sintagmas nominais


Graziela Zamponi ......................................................................................................................................... 264

O PARADIGMA CONEXIONISTA NA LINGÜÍSTICA


(Coord: José Marcelino Poersch)

A configuração neuronial na compreensão leitora


José Marcelino Poersch .................................................................................................................................. 267

Vygotsky e o conexionismo: aproximações e diferenças


Heloísa Stefan ................................................................................................................................................. 270
Simulando a aquisição de passivas
Rosângela Gabriel ......................................................................................................................................... 273

ASPECTOS FUNCIONAIS DA SINTAXE DO PORTUGUÊS


(Coordenadora: Lúcia M. A. Ferreira)

Aspectos da modalidade em três sincronias do português


Lúcia M. A. Ferreira ...................................................................................................................................... 276

SEMIÓTICA E ARGUMENTAÇÃO
(Coordenadora: Lúcia Teixeira)

Fundamentos teóricos para um estudo da argumentação em semiótica


Lúcia Teixeira ................................................................................................................................................. 279

Argumentação na crítica de Oswald de Andrade


Daniele Santana Sally ..................................................................................................................................... 282

Discurso e argumentação na crítica aos salões de arte


Karla Cristina de Araújo Faria ........................................................................................................................ 285

DIMENSÕES DO PROCESSAMENTO
(Coordenador: Marcus Maia)

Gramática & Parser


Marcus Maia ...................................................................................................................................................288

Palavras derivadas no léxico mental: abordagens gerativas e psicolingüísticas


Antonio Sergio Cavalcante da Cunha ............................................................................................................. 292

RELAÇÕES ENTRE PRÁTICAS DISCURSIVAS INSTITUCIONAIS E MUNDO DO


TRABALHO: ANALISANDO PROCESSOS ENUNCIATIVOS
(Coordenadora: Maria Del Carmen F. González Daher)

Memória de uma prática discursiva: pronunciamentos presidenciais aos trabalhadores


Maria del Carmen F. González Daher ............................................................................................................ 295

Construção do Mercosul como espaço discursivo: um estudo de práticas discursivas da


imprensa escrita
Vera Lucia de Albuquerque Sant’Anna .......................................................................................................... 298

SOBRE A FALA/ESCRITA DA CRIANÇA: DESAFIOS E QUESTÕES PARA HIPÓTESES


COGNITIVAS SOBRE A REPRESENTAÇÃO EM AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM
(Coordenadora: Maria Fausta Pereira de Castro)

Argumentação na aquisição de linguagem: interrogando hipóteses cognitivistas


Maria Fausta Pereira de Castro ..................................................................................................................... 301

O que sustenta a narrativa infantil?


Pascoalina Bailon de Oliveira Saleh ............................................................................................................... 304
Sobre a infância da letra
Zelma Regina Bosco ....................................................................................................................................... 307

VOZES, IDENTIDADES E ESCRITA


(Coordenadora: Izabel Maria S. Magalhães)

As práticas de produção de textos coletivos como tecnologização do discurso: (re)constituição


das identidades dos alfabetizandos mediante a representação das diferentes vozes na passagem
da oralidade para escrita
Alexandre Costa ............................................................................................................................................. 310

Identidade, interdiscursividade e educação: desafios e perspectivas para uma nova prática


de ensino
Elenita G. Rodrigues ....................................................................................................................................... 313

TEORIAS LINGÜÍSTICAS E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA


(Coordenadora: Maria Luiza M. S. Coroa)

Contribuições de uma teoria lingüística para o ensino de língua portuguesa


Maria Luiza M. S. Coroa ................................................................................................................................ 317

Análise de discurso e o ensino de leitura infantil


Juliana de Freitas Dias .................................................................................................................................... 320

O sujeito professor(a) e sua prática social de ensino


Adriane Sidralle Rolim Silva ........................................................................................................................... 323

GÊNEROS DISCURSIVOS: A CONSTRUÇÃO DA CONVERGÊNCIA COMO


ESTRATÉGIA
(Coordenadora: Maria Sueli de Oliveira Pires)

Usos discursivos do “onde” em textos acadêmicos


Janice Helena Chaves Marinho ...................................................................................................................... 326

A TEORIA DA OTIMALIDADE E A NATUREZA DOS COMPONENTES DA


GRAMÁTICA
(Coordenadora: Marília Lopes da Costa Facó Soares)

Questões centrais para uma abordagem da teoria da otimalidade em relação à Sintaxe


Ricardo Joseh Lima ........................................................................................................................................ 330

A PESQUISA SOBRE PRODUÇÃO ESCRITA ESCOLAR: TENDÊNCIAS E


POSSIBILIDADES
(Coordenadora: Raquel Salek Fiad)

A apropriação do gênero notícia por duas estudantes do ensino médio: desvendando


o processo da escrita
Márcia Helena de Melo .................................................................................................................................. 333

Lingua(gem) como prática social: construção de um universo discursivo/constituição de


sujeitos históricos
Paulo Roberto Almeida ................................................................................................................................... 336
A produção escolar da escrita sob a ótica do conceito de gênero discursivo
Sandoval Nonato Gomes Santos ..................................................................................................................... 339

ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: INTERVENÇÕES NA PRÁTICA DA SALA


DE AULA
(Coordenadora: Rita Maria Diniz Zozzoli)

Leitura e cidadania: uma prática em construção


Maria do Socorro Aguiar de Oliveira Cavalcante .......................................................................................... 342

GÊNERO DISCURSIVO E LEITURA


(Coordenadora: Vanice Maria de Oliveira Sargentini)

Gênero discursivo e leitura: a constituição dos gêneros


Vanice Maria Oliveira Sargentini .................................................................................................................... 345

Gênero e materialidade discursiva: como a propaganda turística ressignifica o espaço nordestino


Maria Regina Baracuhy Leite ........................................................................................................................ 348

RELAÇÕES ENTRE LINGUAGEM E SITUAÇÃO DE TRABALHO: ANALISANDO


PROCESSOS DE REFORMULAÇÃO DISCURSIVA
(Coordenadora: Vera Lúcia de A. Santa’Anna)

O funcionamento discursivo e a construção do sentido em audiências de trabalho


Maria da Glória Corrêa di Fanti ...................................................................................................................... 351

Criações estilísticas como senha de acesso ao mundo dos pacientes para exame radiológico
Maristela Botelho França ............................................................................................................................... 355

GÊNEROS TEXTUAIS E REFERENCIAÇÃO


(Coordenadora: Maria Elias Soares)

Demonstrativos – uma condição de saliência


Mônica Magalhães Cavalcante ...................................................................................................................... 358

Colóquio

PORTUGUÊS EUROPEU – PORTUGUÊS BRASILEIRO: UNIDADE E DIVERSIDADE


NA PASSAGEM DO MILÊNIO

A semântica das construções com “portanto” no PE e no PB


Ana Cristina Macário Lopes, Erotilde Goreti Pezatti e Norma Barbosa Novaes .......................................... 365

Semelhanças e diferenças entre o PB e o PE no que diz respeito à forma progressiva do


infinitivo
Ana Paula Scher e Evani Viotti ...................................................................................................................... 370
Localizadores temporais anafóricos em Português Europeu e Português Brasileiro
Ana Teresa Alves ......................................................................................................................................... 375

Verbos de operação aspectual em PE e em PB: semântica e sintaxe


Fátima Oliveira, Luís Filipe Cunha, Sérgio Matos e Anabela Gonçalves ....................................................... 380

Elipse de VP no Português Europeu e no Português Brasileiro


Gabriela Matos e Sonia Cyrino ....................................................................................................................... 386

Ordem VS e sujeito nulo em PE e PB


Izete Lehmkuhl Coelho / João Costa / Maria Cristina Figueiredo Silva / Sérgio de Moura Menuzzi e
Giorgia Brazzarola ......................................................................................................................................... 391

Algumas propriedades das construções negativas do Português Europeu e do Português


Brasileiro
João Andrade Peres e Esmeralda Vailati Negrão .......................................................................................... 395

Padrões de interrogativas-Q no Português Europeu e no Português Brasileiro: uma análise


inter e intra-lingüística
Manuela Ambar, Mary Aizawa Kato, Carlos Mioto e Rita Veloso ................................................................ 400

Sujeitos indeterminados em PE e PB
Maria Eugenia Lamoglia Duarte, Mary A. Kato e Pilar Barbosa .................................................................. 405

Nomes simples: questões sintáticas e semânticas


Pilar Barbosa, Ana Müller e Fátima Oliveira ................................................................................................. 410

Sobre a expressão da duração em Português Europeu e Português Brasileiro: o uso de


sintagmas com a preposição por
Telmo Móia ..................................................................................................................................................... 415

Construções de voz média


Roberto Gomes Camacho ............................................................................................................................... 420

Comunicações Coordenadas

GÊNERO TEXTUAL: CARACTERIZANDO PRÁTICAS CONVENCIONAIS


E INOVADORAS
(Coordenadora: Antonia Dilamar Araújo)

Estratégias discursivas em gêneros acadêmicos escritos


Antonia Dilamar Araújo .................................................................................................................................. 427

Análise do gênero petição inicial


Antônio Luciano Pontes .................................................................................................................................. 431

O hipertexto e o texto eletrônico: características e desafios


Iúta Lerche Vieira ......................................................................................................................................... 434
Mensagens em secretárias eletrônicas: um caso típico de oralidade secundária
Stella Maria Miranda Vieira ............................................................................................................................ 438

REGIONALISMOS SUL-MATO-GROSSENSES: INTERFACES ENTRE LINGUAGEM


REGIONAL E REALIDADE SOCIOCULTURAL
(Coordenadora: Aparecida Negri Isquerdo)

A toponímia como representação da realidade regional


Marlene Schneider ......................................................................................................................................... 441

Arcaísmos e regionalismos na obra de Hélio Serejo


Neide Araújo Castilho Teno ............................................................................................................................ 444

Vocabulário de Manoel de Barros: um estudo no campo dos regionalismos


Simone Cristina Spironelli ............................................................................................................................... 447

ESTRATÉGIAS DE REFERENCIAÇÃO EM DIFERENTES GÊNEROS TEXTUAIS


(Coordenadora: Bernardete Biasi Rodrigues) .................................................................................................

Funções discursivas dos rótulos em resumos acadêmicos


Bernardete Biasi Rodrigues ............................................................................................................................ 450

A rotulação como estratégia de referenciação no gênero resenha


Benedito Gomes Bezerra ................................................................................................................................ 453

Dêiticos discursivos na fala e na escrita


Alena Ciulla .................................................................................................................................................... 457

Os dêiticos na correspondência eletrônica


Maria Helenice Araújo Costa ......................................................................................................................... 460

LINGÜÍSTICA E CRÍTICA TEXTUAL


(Coordenadora:Célia Marques Teles)

A lição conservadora e a análise lingüística do texto


Albertina Ribeiro da Gama e Célia Marques Teles ........................................................................................ 463

Os caminhos de Simão Mutuca: os documentos inacabados


Maria Dolores Teles ....................................................................................................................................... 466

Características lingüísticas na obra de Gumes


Maria da Conceição Souza Rei ...................................................................................................................... 469

O léxico dos poemas de Arthur de Salles


Alícia Duhá Lose ............................................................................................................................................ 472

TÓPICOS EM LINGÜÍSTICA APLICADA


(Coordenadora: Denise Scheyerl)

Estratégias para o aperfeiçoamento da pronúncia em aula de língua estrangeira


Denise Scheyerl, Robério Rubem de Matos e Décio Torres Cruz ................................................................. 475
Pode a publicidade contribuir para a aquisição de uma segunda língua?
Sílvia Maria Guerra Anastácio e Célia Nunes Silva ....................................................................................... 478

A interface versos e música


Maria da Conceição Santos Soares ................................................................................................................ 482

Ensino-aprendizagem de inglês instrumental para informática


Décio Torres Cruz, Alba Valéria Silva e Marta Rosas ................................................................................... 485

A AQUISIÇÃO DO SISTEMA DE SONS NO PORTUGUÊS


(Coordenadora Elizabeth Reis Teixeira)

Da natureza dos padrões recorrentes nos erros de ordenação serial


Elizabeth Reis Teixeira .................................................................................................................................... 488

Desenvolvimento das habilidades fonológicas: da sensibilidade fonológica à consciência


fonológica
Wilson Júnior de Araújo Carvalho .................................................................................................................. 490

A redução dos ditongos durante a aquisição das semivogais no português brasileiro


Andréa Sena dos Santos ................................................................................................................................. 492

IMAGINÁRIO CULTURAL, GÊNEROS DISCURSIVOS E O RECONTAR DA HISTÓRIA


(Coordenador: Erasmo d’Almeida Magalhães)

Sertão: tempo e espaço


Erasmo d’Almeida Magalhães ........................................................................................................................ 495

Imaginário cultural: construindo uma outra história


Naiá Sadi Câmara Maretto ............................................................................................................................. 497

A VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA NO BRASIL: UMA ABORDAGEM SOCIOLINGÜÍSTICA


(Coordenadora: Fabiana de Souza Silva)

O preconceito lingüístico e o ensino de língua portuguesa


Maria Lúcia de Oliveira .................................................................................................................................. 500

RELATIVISMO LINGÜÍSTICO OU RELATIVIDADE LINGÜÍSTICA? UMA


REVISITAÇÃO AOS PRINCÍPIOS CONCEITUAIS DE BENJAMIN LEE WHORF
(Coordenador: Fábio Alves da Silva Júnior)

Relativismo lingüístico ou relatividade lingüística? Uma revisitação aos princípios conceituais


postulados por Benjamin Whorf à luz de abordagens conexionistas e pragmático-interacionistas
Fábio Alves da Silva Júnior ............................................................................................................................. 502

LINGÜÍSTICA, DISCURSO E FILOSOFIA DA LINGUAGEM


(Coordenador: Gilton Sampaio de Souza)

O papel do auditório no discurso retórico-argumentativo: uma análise do texto jornalístico


Gilton Sampaio de Souza ................................................................................................................................. 505
Considerações sobre o caráter coercitivo da linguagem
Maria Medianeira de Souza ............................................................................................................................ 508

A contribuição do professor de português na formação de habilidades de pensamento


Maria Lúcia Pessoa Sampaio ......................................................................................................................... 511

Lingüística e filosofia da linguagem: uma relação de (des)encontros


José Roberto Alves Barbosa .......................................................................................................................... 514

MÍDIA E DISCURSO
(Coordenador: Helenio Fonseca de Oliveira)

Editoriais: polêmica versus ponderação


Helenio Fonseca de Oliveira ........................................................................................................................... 517

“É agora ou já” – a disjunção no texto publicitário


Rosane Santos Mauro Monnerat .................................................................................................................... 520

TÓPICOS EM ANÁLISE DO DISCURSO


(Coordenadora: Iracema Luíza de Souza)

Análise do discurso publicitário no gênero feminino


Sumaia Sahade Araújo .................................................................................................................................... 523

As perguntas retóricas no discurso pedagógico: uma estratégia de poder?


Edna Ribeiro Marques .....................................................................................................................................525

O discurso escolar tradicional sobre o ensino de português, em enunciados de alunos do


ensino médio
Odilon Pinto de Mesquita Filho ........................................................................................................................528

A língua portuguesa no nível médio: o que ensinar?


Maria Lúcia Souza Castro ...............................................................................................................................531

EM BUSCA DO FUNCIONAMENTO DO DISCURSO


(Coordenadora: Ivone Tavares de Lucena)

Entre a luz e a sombra do silêncio discursivo da charge/humor


Ivone Tavares de Lucena ................................................................................................................................534

Na teia discursiva da fábula: procedimentos semânticos de tematização e/ou figurativização


Maria Angélica de Oliveira ..............................................................................................................................537

Discurso religioso: vox dei ou vox homini?


Cláudia Rejanne Pinheiro Grangeiro ................................................................................................................540

ABORDAGENS FUNCIONALISTAS PARA A EXPRESSÃO DE FINALIDADE EM


PORTUGUÊS
(Coordenador: João Luiz Ferreira de Azevedo)

Orações de finalidade: um caso de gramaticalização


João Luiz Ferreira de Azevedo ........................................................................................................................543
Cláusulas de finalidade: hipotáticas discursivas e parentéticas
Nilza Barrozo Dias ..........................................................................................................................................546

As construções para + infinitivo em contextos de encaixamento


Vanda Cardozo de Menezes ............................................................................................................................549

A LEITURA DO NÃO–VERBAL
(Coordenador: José de Souza Breves Filho)

A ilustração: uma dupla leitura de imagens?


Roselene de Fatima Coito ................................................................................................................................552

As malhas discursivas da crônica verbo–visual da mídia jornalística


Ismara Eliane Vidal de Souza Tasso ................................................................................................................555

Lendo a configuração fílmica


Nádea Regina Gaspar ......................................................................................................................................558

ASPECTOS SEMÂNTICO–COGNITIVOS DA CATEGORIZAÇÃO


(Coordenadora: Leonor Scliar Cabral)

Categorização em pré–escolares: o que revelam suas justificativas a respeito de suas


categorias?
Ana Cristina Pelosi Silva de Macedo ............................................................................................................. 561

ORALIDADE E ESCRITA EM SALA DE AULA DE LÍNGUAS


(Coordenadora: Liomar Costa de Queiroz)

Oralidade e escrita – o que pensam e dizem os professores


Liomar Costa de Queiroz ................................................................................................................................ 564

Traços do francês falado: exercícios de Jeux de Rôles


Marília Cabral de Azevêdo ............................................................................................................................. 567

Oralidade e estrutura argumentativa em sala de aula


Guilherme Afonso ......................................................................................................................................... 570

A SALA DE AULA: ESPAÇO DE PRODUÇÃO DISCURSIVA


(Coordenadora: Lúcia de Fátima Melo do Nascimento)

Formas de manifestação de poder no discurso da sala de aula


Luiz Freire Ribeiro ......................................................................................................................................... 573

ABORDAGENS FUNCIONALISTAS NA DESCRIÇÃO DO PORTUGUÊS DO BRASIL


(Coordenadora: Márcia Teixeira Nogueira)

O emprego de construções apositivas como estratégia de formulação textual


Márcia Teixeira Nogueira ............................................................................................................................... 576

A predicação da língua portuguesa: um reflexo do modo de ação dos predicados


Célia Brito ....................................................................................................................................................... 579
Aspectos de um estudo funcionalista da modalidade evidencial
Vânia Cristina Casseb Galvão ........................................................................................................................ 582

ASPECTOS MORFOSSINTÁTICOS DO PORTUGUÊS: UMA ANÁLISE FUNCIONALISTA


(Coordenadora: Maria Angélica Furtado Arruda)

Topicalização: as dimensões referenciais do planejamento discursivo


Marcos Antonio Costa .................................................................................................................................... 584

Análise funcionalista dos mecanismos de impessoalização no texto argumentativo


Nubiciara Fernandes de Oliveira .................................................................................................................... 587

Estratégias discursivas de superlativização


José Romerito Silva ........................................................................................................................................ 590

VARIAÇÃO E ENSINO
(Coordenadora: Maria Denilda Moura)

Variação fonética decorrente de interferência em língua de contato: /p/ em travamento silábico


Januacele Francisca da Costa ........................................................................................................................ 593

PÊCHEUX, FOUCAULT E BAKHTIN: A LEITURA EM SEUS LABIRINTOS


(Coordenadora: Maria do Rosário V. Gregolin)

Slogan político: um gênero discursivo da modernidade


Roberto Leiser Baronas .................................................................................................................................. 595

Palavras entre palavras: a interpretação como diálogo


Maria de Fátima Cruvinel ............................................................................................................................... 598

O theatrum philosoficum de Michel Foucault


Marisa Martins Gama Khalil ........................................................................................................................... 601

NORTEADORES DO ENSINO E A FORMAÇÃO DE PROFESSORES


(Coordenadora: Maria do Socorro Oliveira)

O eixo da produção textual na escola: reflexos da formação de professores


Maria do Socorro Oliveira .............................................................................................................................. 603

A intertextualidade em narrativas escritas por crianças surdas


Célia Maria Medeiros ..................................................................................................................................... 608

O discurso explicativo na construção dos conceitos matemáticos


Francisca Maria de Souza Ramos .................................................................................................................. 610

ENUNCIADO, TEXTO E DISCURSO: CONTRIBUIÇÕES DE BAKHTIN E SEU


CÍRCULO
(Coordenadora: Maria Inês Batista Campos)

A relação entre gênero, enunciado e texto: uma leitura bakhtiniana


Rosângela Hammes Rodrigues ....................................................................................................................... 613
QUESTÕES DE IDENTIFICAÇÃO E DE CLASSIFICAÇÃO NA ANÁLISE DE GÊNEROS
TEXTUAIS
(Coordenadora: Maria Irandé Costa M. Antunes)

Página, seção, notícia, nota: critérios de identificação do gênero no jornal


Adair Bonini.......... ......................................................................................................................................... 616

Notícia e reportagem: uma proposta de distinção


Mirna Gurgel Carlos da Silva .......................................................................................................................... 619

O PROCESSO COGNITIVO DA MESCLAGEM NA ANÁLISE LINGÜÍSTICA DO


DISCURSO
(Coordenadora: Maria Margarida Salomão)

Condicionais contrafactuais e mesclagem conceptual


Lilian Vieira Ferrari ......................................................................................................................................... 622

GRAMÁTICAS, TEXTOS E USOS LINGÜÍSTICOS: REFLEXÕES E PROPOSTAS PARA O ENSINO


(Coordenadora: Maria Teresa Gonçalves Pereira)

O texto e a gramática: das relações do saber e do prazer


Maria Teresa Gonçalves Pereira .................................................................................................................... 624

Gramática de usos: para que serve?


Claudio Cezar Henriques ................................................................................................................................ 626

O ENSINO DA LÍNGUA MATERNA: CONSTRUINDO CONHECIMENTOS


(Coordenadora: Marineide Furtado Campos)

O lúdico e o ensino da língua: um exemplo da telesala


Marineide Furtado Campos ............................................................................................................................ 629

Ensino de gramática através da reescrita: um estudo colaborativo


Andréa Jane da Silva ...................................................................................................................................... 632

Produzindo resumos no espaço escolar: um exemplo no ensino de 3º grau


Lucimar Bezerra Dantas ................................................................................................................................ 635

ESCUTANDO OS SENTIDOS EM TEXTOS DIVERSOS


(Coordenadora: Mirian de Albuquerque Aquino)

O saber-poder na construção do sentido


Mirian de Albuquerque Aquino ....................................................................................................................... 638

O movimento carismático: uma leitura semiótica do discurso do Padre Marcelo Rossi


Ana Lúcia de Sena Cavalcante ...................................................................................................................... 641

Personagens femininas nos contos de fadas: ideologia e comportamento


Maria Rosário Costa Carneiro da Cunha ....................................................................................................... 644
Os vários discursos no texto jornalístico
Edjane Gomes de Assis .................................................................................................................................. 646

O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: DA COLONIZAÇÃO AO NOVO MILÊNIO


(Coordenadora: Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos)

A gramática de Reis Lobato e sua influência no ensino de língua portuguesa, no Brasil, do


século XVIII
Marilena Zanon ............................................................................................................................................... 649

A METÁFORA NO ENSINO E NA TRADUÇÃO


(Coordenadora: Paula Lenz Costa Lima)

Ensinando metáfora através de provérbios


Carla Gonçalves Meira Arruda ...................................................................................................................... 651

O PORTUGUÊS ARCAICO: ESTUDOS LINGÜÍSTICOS


(Coordenadora: Rosa Virgínia Matos e Silva)

Adverbiais espaciais e temporais em Fernão Lopes


Sônia Bastos Borba Costa .............................................................................................................................. 654

O PORTUGUÊS QUINHENTISTA (SÉC. XVI): ESTUDOS LINGÜÍSTICOS


(Coordenadora: Rosa Virgínia Matos e Silva)

Observações sobre as conjunções no século XVI


Therezinha Maria Mello Barreto .................................................................................................................... 657

Comparação entre algumas preposições portuguesas documentadas no século XVI e no século XIV
Rosauta Maria Galvão Fagundes Poggio ........................................................................................................ 660

Demonstrativos, dêiticos e anafóricos no século XVI


Sílvia Santos da Silva Gonçalves ..................................................................................................................... 663

OS GESTOS E OS ALVOS: QUESTÕES RELACIONADAS AO QUE É FALADO,


CANTADO E OUVIDO
(Coordenadora: Sandra Madureira)

A questão da relação entre fala e canto e a coordenação dos gestos


Beatriz Raposo de Medeiros ........................................................................................................................... 666

DOS CABOCLISMOS DE LOBATO AO MST


(Coordenadora: Silvia Helena Barbi Cardoso)

Realidade e sentidos: dos jecas aos sem-terra


Sílvia Helena Barbi Cardoso ........................................................................................................................... 669

Jeca: da literatura ao cinema


Luzimar Goulart Gouvêa ................................................................................................................................. 672

MST: discurso e ideologia


Marlon Leal Rodrigues ................................................................................................................................... 675
ORALIDADE, ESCRITA E VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA
(Coordenadora: Thaís Cristórafo Silva)

Interferência da oralidade na escrita: o caso do registro ortográfico do “E, I, O, U” átonos


Fernando Antônio Pereira Lemos ................................................................................................................... 678

A CONSTRUÇÃO DO SENTIDO TEXTUAL A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA


SOCIOINTERACIONISTA
(Coordenadora: Vera Lúcia de Lucena Moura)

Compreensão de textos: construção de sentido por meio do desempenho estratégico


Gilberlande Pereira dos Santos ....................................................................................................................... 681

O sociointeracionismo: influência no ensino-aprendizagem de leitura


Verônica Cavalcanti de Araújo Campos ......................................................................................................... 684

A mediação da aprendizagem numa aula de compreensão e produção de textos em língua inglesa


Vera Lúcia de Lucena Moura ......................................................................................................................... 687

NOS CAMINHOS DOS SENTIDOS DO TEXTO


(Coordenadora: Vivianne Braga de Araújo)

O uso dos tempos verbais na construção da coerência textual: um estudo nas redações de
vestibular
Vivianne Braga de Araújo .............................................................................................................................. 690

Uma abordagem semiótica no texto A moça tecelã de Marina Colassanti


Claudineide Dantas Oliveira ........................................................................................................................... 693

Polifonia: marcas na propaganda publicitária


Francineide Fernandes de Melo ...................................................................................................................... 695

APRENDIZAGEM DE LÍNGUAS MEDIADA PELO COMPUTADOR: PERSPECTIVAS


DE IMPLEMENTAÇÃO A PARTIR DO PROJETO AVAL
(Coordenadora: Vládia Maria Cabral Borges)

O emprego da “abordagem com base em tarefas” como elemento conciliador entre as atuais
metodologias de aprendizagem de línguas e as limitações do ensino mediado pelo computador:
uma proposta a partir do Projeto AVAL
Vládia Maria Cabral Borges ........................................................................................................................... 698

Implementação de situações comunicativas em ambientes virtuais em um software para ensino de


inglês como língua estrangeira
Silvia Malena Modesto Monteiro .................................................................................................................... 701

O tratamento do erro em software destinado ao ensino de língua inglesa


João Tobias Lima Sales .................................................................................................................................. 704
Teses Recentes

A grafia em placas e letreiros: uma descrição do português popular escrito contemporâneo


Alfredina Rosa Oliveira do Vale ..................................................................................................................... 709

Discurso persuasivo e função adverbial em publicidades brasileiras de televisão


Ana Márcia de Lima ....................................................................................................................................... 712

Uma análise de cartas/bilhetes de alunos nas séries iniciais, ou “tia, eu te amo do fundo do
meu coração”
Jonê Carla Baião.... ........................................................................................................................................ 714

Aspectos do uso da anáfora no português oral


Lícia Maria Bahia Heine ................................................................................................................................. 717

O fenômeno prosódico da pausa e a organização temporal do discurso


Lilian Coutinho Yacovenco ............................................................................................................................. 720

Cognição e produção oral em L2


Mailce Borges Mota Fortkamp ....................................................................................................................... 724

A ausência de artigo definido diante de nomes próprios no português mineiro da comunidade


de Barra Longa (MG): um caso de retenção?
Soélis T. Prado Mendes .................................................................................................................................. 728

Ser ou não ser natural, eis a questão dos clichês de emoção na tradução audiovisual
Vera Lúcia Santiago Araújo ............................................................................................................................ 731

A representação da informação em arquivos acumulados por literatos


Zeny Duarte .................................................................................................................................................... 734
A P R E S E N TA Ç Ã O

O presente número do Boletim da Associação Brasileira de Lingüística publica os


trabalhos apresentados durante o II Congresso Internacional da ABRALIN, realizado no
período de 13 a 16 de março de 2001, na Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza.
Trata-se de um número especial, com os Anais do Congresso, em dois volumes. O primeiro
volume traz os textos apresentados em Conferências, Mesas-Redondas, Simpósios, Sessões
de Comunicações Coordenadas, Sessão de Teses Recentes e no Colóquio “Português
Europeu/Português do Brasil: Unidade e Diversidade na Passagem do Milênio”. O segundo
volume apresentará os trabalhos expostos nas Sessões de Comunicações Individuais e
nos Posters.
A realização do II Congresso Internacional deu continuidade a uma iniciativa da
Associação, que organizou, em Salvador-BA, no ano de 1994, o I Congresso Internacional
da ABRALIN, e em Maceió, no ano de 1997, o I Congresso Nacional da ABRALIN. A
partir daí, alternam-se, a cada dois anos, os congressos nacionais e internacionais, eventos
que vieram criar mais uma oportunidade para reunir os sócios da ABRALIN e para debater
problemas de interesse dos pesquisadores vinculados a diferentes áreas da Lingüística.
Além do Congresso, a ABRALIN realizou, no período de 5 a 13 de março, o XV
Instituto Brasileiro de Lingüística e apoiou uma programação paralela, dirigida ao mesmo
público do Congresso. Esta programação constou das seguintes atividades: reunião de
três GTs da ANPOLL – GT de Descrição do Português, GT de Línguas Indígenas e GT
de Sociolingüística e realização do I Seminário “Para melhorar não basta avaliar”,
promovido pelo Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais – INEP, que reuniu cerca
de 400 Coordenadores dos Cursos de Graduação em Letras das Universidades Brasileiras,
para a discussão de problemas relativos ao Exame Nacional de Cursos (Provão) e à
avaliação das condições de ensino dos cursos de Letras.
Durante o período em que se desenvolvia o II Congresso Internacional, realizou-se
também o Colóquio organizado pelo Projeto “Português Europeu/Português do Brasil:
Unidade e Diversidade na Passagem do Milênio”, coordenado pelos Professores João
Andrade Peres, da Universidade de Lisboa e Mary Kato, da UNICAMP. Para integrar o
Colóquio PE/PB 2000, em Fortaleza, foram encaminhados 26 trabalhos, de pesquisadores
brasileiros e portugueses.
O XV Instituto Brasileiro de Lingüística, que ocorreu no período de 05 a 13 de
março de 2001, antecedeu o II Congresso Internacional da ABRALIN, com a oferta
inicial de 31 cursos, sendo 20 de nível introdutório e 11 de nível avançado, com duração
de 15 e 30 h/a, ministrados por 23 professores brasileiros e 8 estrangeiros, vinculados a
programas de Pós-Graduação, para tratar, prioritariamente, de temas relacionados a áreas
emergentes ou em consolidação, fomentar a discussão de teorias e processos
metodológicos, e possibilitar a formação de novos pesquisadores. Dos 31 cursos propostos,
12 foram efetivamente realizados, atendendo a 215 alunos.
Na organização geral do Congresso, foram previstos sete tipos de atividades, com
critérios definidos para a seleção de trabalhos submetidos pelos sócios à Comissão
Organizadora. Apenas as conferências foram propostas exclusivamente pela Diretoria da
ABRALIN. Pensava-se, dessa forma, democraticamente, dar oportunidade de participação
a todos os sócios. No total, aceitaram-se 953 trabalhos, cujos resumos foram publicados
no livro Programa e Resumos, entregue aos participantes na abertura do evento. Tivemos,
assim, 11 Conferências; 152 trabalhos apresentados em 41 Mesas-Redondas; 82 em
Simpósios; 182 em Sessões de Comunicações Coordenadas; 360 em Sessões de
Comunicações Individuais; 105 trabalhos em Sessões de Posters, e 35 trabalhos em
sessões de Teses Recentes, além dos 26 expostos no Colóquio.
Nem todos os participantes enviaram seus textos para publicação, de modo que
compõem os dois volumes deste Boletim Especial 462 trabalhos, sendo 221 artigos no
primeiro volume e 241 no segundo. Na seleção dos trabalhos para a organização dos dois
volumes, verificamos, basicamente, se estes atendiam às normas para publicação, de
modo que não foi feita qualquer revisão, seja de forma ou de conteúdo, mas apenas a
necessária revisão das sucessivas provas editoriais.
Concluindo mais uma tarefa, gostaríamos de destacar o sucesso do XV Instituto
Brasileiro de Lingüística e do II Congresso Internacional da ABRALIN, pela grande
participação de pesquisadores, professores e estudantes, e pela qualidade dos trabalhos
apresentados.
Nesta oportunidade, tornamos público nosso agradecimento a todos os que colaboraram
para o sucesso dos dois eventos, principalmente, à CAPES e ao CNPq, pelo apoio dessas
agências à realização do Congresso e do Instituto.
Agradecemos especialmente à Universidade Federal do Ceará, por acolher a ABRALIN
e pelo suporte institucional e acadêmico indispensável ao funcionamento desta Associação
e à realização dos eventos por esta organizados. Do mesmo modo, agradecemos à
Universidade Estadual do Ceará e às empresas e órgãos do governo do Estado do Ceará,
parceiros sempre presentes.
Nosso reconhecimento dirige-se também aos colegas professores, funcionários,
estudantes e bolsistas, pela participação efetiva e pela ajuda na organização do XV Instituto
Brasileiro de Lingüística e do II Congresso Internacional da ABRALIN. Um agradecimento
muito especial dirige-se a duas funcionárias da UFC: Antonia Edna Braga Maia, pela
inestimável ajuda nos serviços de Secretaria da ABRALIN e Maria Vilani Mano, pela
incansável colaboração dada à organização deste Boletim Especial, sobretudo na revisão
das provas.
Recordemos, finalmente, que se todos os projetos se realizaram, isso se deve, desde
o primeiro momento, ao incentivo, à confiança e ao apoio incondicional de toda a Diretoria,
do Conselho e dos Sócios da Associação Brasileira de Lingüística.

Maria Elias Soares


Organizadora
Conferências
26 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001
A Lingüística e o conhecimento
científico da linguagem
Maria Helena Mira Mateus
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Associação Portuguesa de Linguística

Quando preparei esta conferência recordei quantas vezes ti- adaptados a novas situações. Mas estas eram preocupações dos filó-
nha falado do carácter científico da linguística, e quantas vezes tam- sofos. O estudo das línguas seguiu outro rumo, com a notável excepção
bém a linguística me parecera multímoda e plurifacetada. Como em que foi a obra de Willelm Humboldt.
todas as ciências habitualmente denominadas sociais ou humanas, A mencionada preocupação de estabelecer a origem das lín-
pode afirmar-se que no âmbito do estudo da linguagem convivem guas e a relação entre elas foi responsável pela enorme aceitação que
diversas formas de conhecimento que vão das abordagens filosófi- teve a comunicação sobre o sânscrito feita, em 1786, por William
cas e históricas às construções teóricas e formalizadas, passando Jones à Sociedade asiática de Bengala. Ao afirmar que o sânscrito
pelas descrições pré-teoréticas e pelas aplicações em domínios de tem “uma estrutura maravilhosa”, mais perfeita que o grego e mais
grande diversidade. abundante que o latim, mas que, simultaneamente, ele tem um estrei-
Tal multiplicidade de tratamentos decorre da própria natureza to parentesco com essas duas línguas, o que mostra que “são deriva-
da linguagem verbal, forma preferencial de comunicação entre os das de uma fonte comum” que talvez já não exista, e ao acrescentar
homens. Essa linguagem é simultaneamente veículo de integração tentativamente a estas o céltico, o gótico e o antigo persa,3 William
do homem na comunidade e factor constituinte da sua construção Jones chama a atenção para a possibilidade de, através da compara-
como indivíduo. A inter-relação da actividade linguística com os factos ção do sânscrito com línguas europeias, se poder ir mais longe no
históricos e sociais, com o universo psicológico e com a criação ar- conhecimento da sua origem e das suas características gramaticais.
tística coloca o estudo da linguagem e das línguas no centro de uma Os estudiosos que se lhe seguiram, como Jacob Grimm, Franz Bopp
constelação formada por múltiplas comunicações com outras formas e Rasmus Rask, tomaram nas suas mãos o trabalho de estabelecer
de comportamento humano. Mais: a especificidade do uso da lingua- sistematicamente essa comparação, evidenciando as correspondên-
gem verbal, de que decorre uma coincidência entre o objecto de aná- cias fonéticas e morfológicas que eram detectáveis na análise das
lise e o meio com que se explicita e produz essa análise - é com várias línguas presumivelmente aparentadas.
palavras que se estudam as palavras -, permite, estimula e valoriza Estava-se então na primeira metade do século XIX, e florescia
interpretações e análises subjectivas e acientíficas. o método comparatista em áreas das ciências naturais mais avança-
Por todas estas razões tem sido longo e árduo o caminho dos das como a biologia, a anatomia e a paleontologia - áreas que
que acreditam que é possível tomar a linguagem e as línguas como directamente beneficiaram dos trabalhos taxonómicos e
objecto de análise científica. Como muitos outros linguistas, no con- classificatórios que, ainda no século XVIII, caracterizaram a
creto do meu trabalho sobre a língua não sei entender a análise dessa actividade científica do sueco Lineu. Os linguistas sabiam que as
magnífica faculdade humana senão como uma prática científica. Na ciências naturais tinham desenvolvido métodos aplicáveis ao estudo
verdade, estudar as palavras com palavras é levar ao extremo limite o das línguas, sem esquecerem, no entanto, a especificidade do seu
conceito de auto-referência1 que, embora produza uma circularidade próprio campo de análise pois que, como dizia Bopp a propósito de
em relação ao próprio objecto de análise, tem todavia a consequência um dos seus trabalhos, “as línguas de que trata esta obra são estuda-
positiva de trazer à consciência esse objecto, neste caso, a linguagem das por elas mesmas, quer dizer, como objecto e não como meio de
e as línguas. Mas trazê-lo à consciência não significa explicá-lo. Como conhecimento”.4
conciliar, então, estas duas questões, e por que insistir nesta perspec- A pouco e pouco a análise comparada das línguas foi abrindo
tiva científica? Façamos um pouco de história que é saudável, instru- caminho para o estabelecimento da relação genealógica entre elas.
tivo e esclarecedor. Também essa perspectiva se sintonizou com os métodos científicos
Lembremos a afirmação geralmente aceite de que a linguística contemporâneos: o entendimento da língua como um organismo vivo
surgiu como ciência na primeira década do séc. XIX, com o estudo que nasce, cresce e morre aproximou o seu estudo das hipóteses for-
comparado das línguas indo-europeias e com a tentativa de, através muladas por Darwin sobre a origem das espécies e a sua evolução
desse estudo, solucionar a questão da relação genealógica entre as por meio de uma selecção natural. A utilização deste método como
línguas. Antes desta época os estudos sobre as línguas eram marca- instrumento de conhecimento levou mesmo August Schleicher, pas-
dos por perspectivas culturais, filosóficas e ideológicas nas quais se sado que era o meio do século, a publicar em 1863 a obra intitulada A
destaca, a par de um objectivo normativo, a preocupação em estabe- teoria darwinista e a linguística (“Die darwinische Theorie und die
lecer a origem das línguas e da escrita, e em evidenciar a relação Sprachwissenschaft”). Surgem então as árvores genealógicas das lín-
entre categorias gramaticais e categorias lógicas.
Não podemos, no entanto, passar sem referência as obras de
matriz cartesiana em que a faculdade da linguagem é apresentada
como a diferença essencial entre o homem e o animal. 2 Esta linha de 1
Sobre o conceito de auto-referência e as suas consequências para o conheci-
pensamento sobre a linguagem ultrapassa muito a simples mento científico, ver Hofstadter (1999), sobretudo o prefácio à segunda edi-
categorização lógica das categorias gramaticais. A faculdade da lin- ção.
2
guagem é, já no século XVII, considerada inata e responsável pela A respeito da importância da ‘linguística cartesiana’ para o conhecimento
da faculdade da linguagem, ver Chomsy (1966) e obras posteriores.
criatividade da linguagem, ou seja, pela capacidade que o homem 3
Asiatic Researches, t. I, p.422.
tem de formar novos enunciados que exprimem pensamentos novos, 4
Vergleichende Grammatik, ed. franc., p. 8, citado por George Mounin (1967),
p.175.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 27


guas: as línguas mães, irmãs, primas, filhas e netas. No entanto, não estruturadas e estruturantes, imediatamente nos faz ocorrer ao espíri-
foi este enfoque histórico mas sim a descrição sistemática e compa- to a palavra-chave que esteve na base da mais importante corrente
rada dos conjuntos de unidades fonéticas e morfológicas das línguas linguística da primeira metade do século XX: o estruturalismo. E se
em análise, descrição essa submetida a critérios rigorosos e objectivos, na Europa essa vertente das teorias psicológicas influenciou larga-
que nos permitiu fixar essa época como a do surgimento da linguística mente os trabalhos de linguistas como Saussure e os seus discípulos,
como ciência. na América o condicionamento do comportamento pela relação entre
Cabe abrir aqui um parêntesis sobre a utilização do termo estímulo e resposta foi o instrumento científico que os linguistas nor-
linguística já que alguma relação existe entre o seu uso e a considera- te-americanos tomaram nas mãos para explicar o funcionamento da
ção do estudo da linguagem como uma ciência. Sprachwissenschaft, linguagem. Estamos aqui diante da psicologia behaviourista ou
linguistics, linguistique e linguística não começaram a ser usadas comportamentista e do seu reflexo nos estudos da linguagem e das
simultaneamente. A România foi mais renitente em substituir a tradi- línguas, programaticamente desenvolvidos na obra de Bloomfield. A
cional denominação de filologia pela de linguística quando se tratava recusa do estruturalismo norte-americano em se referir a algo que
da análise das línguas. Note-se, por exemplo, que nos anos 50 do não fosse directamente observável, e, ao mesmo tempo, a sua preo-
século passado, as disciplinas que tratavam da língua na Faculdade cupação primeira com a descrição das línguas na sua diversidade (“o
de Letras de Lisboa – e em que já se falava de Saussure – chamavam- discurso humano difere dos actos-sinais dos animais (...) pela sua
se Filologia Portuguesa e Gramática Comparativa. Foi entre os grande diferenciação”) mostra claramente o carácter empírico desta
linguistas alemães que o termo começou a ser usado a partir da se- corrente linguística.7
gunda metade do século XIX. E vale como curiosidade referir que O surgimento de Saussure na Europa e de Bloomfield na Amé-
até há bem pouco tempo a palavra inglesa ‘linguist’ significava, so- rica, dois indiscutíveis epígones do progresso no estudo da lingua-
bretudo, “aquele que sabe línguas”. gem e das línguas, está portanto intimamente relacionado com ins-
Voltemos a essa plêiade de grandes linguistas alemães e nórdi- trumentos teóricos que ao tempo a psicologia científica punha à dis-
cos que se exprimia maioritariamente em alemão e que fixou – diria posição dos linguistas. As dicotomias saussureanas, nomeadamente
para sempre – a relação entre as línguas indo-europeias e a sua ma- a distinção entre língua e fala, e o conceito de signo linguístico como
triz, estendendo mesmo a sua análise a outras famílias de línguas. As entidade psíquica com duas faces (o conceito e a imagem acústica)
afirmações quase dogmáticas que progressivamente foram sendo fei- relevam do novo quadro teórico em voga na Europa. O conceito de
tas pelos sucessores dos linguistas da primeira metade do século XIX estrutura é uma presença constante nos trabalhos dos linguistas da
foram, naturalmente, contestadas pela geração seguinte, a geração época, motivando a criação de métodos e técnicas próprios para o
dos Junggrammatiker (neo-gramáticos na tradução equívoca das lín- estabelecimento dos sistemas das línguas em bases empíricas que
guas românicas, visto tratar-se de ‘jovens’ e não de ‘novos’). Acei- implicavam a recolha de corpora. 8 Tais métodos e técnicas, dirigidos
tando o carácter eminentemente histórico da linguística, estes estudi- na linguística europeia, sobretudo, para a análise das áreas de unida-
osos introduziram a hipótese de existência de leis fonéticas de carácter des controláveis como a fonologia e a morfologia, foram aplicados
absoluto, que explicariam as mudanças linguísticas de uma forma na análise dos constituintes sintácticos pela linguística estrutural norte-
idêntica para todas as línguas, tanto as já desaparecidas como as suas americana. O momento era chegado de exportar, para outras ciências
descendentes ainda vivas. sociais, os métodos recém-criados de análise dos dados, métodos ra-
Além desta visão fatalista da evolução linguística, interessa pidamente integrados pela sociologia, pela antropologia e pela ar-
sublinhar duas importantes orientações que se manifestaram no estu- queologia.
do das línguas durante a segunda metade do século XIX: o desenvol- Foi também na primeira metade do século XX que a lógica
vimento da fonética e o crescente interesse pela descrição das lín- conheceu um notável impulso ao passar de uma noção filosófica
guas vivas. O desenvolvimento da fonética, baseada em métodos abstracta de ‘forma’ por oposição à ‘matéria’ para a noção de forma
experimentais, beneficiou do progresso da física e das ciências natu- no sentido geométrico ou topológico, desenvolvendo assim um raci-
rais que permitiram a construção de instrumentos adequados à análi- ocínio formalizado.9 A interacção entre lógica e matemática estimu-
se do som da fala e dos movimentos articulatórios ligados à sua pro- lou o progresso em ambas as ciências e levou à criação de instrumen-
dução. Simultaneamente, o estudo das línguas vivas fornecia o mate-
rial necessário para o progresso dos estudos fonéticos e, mais tarde,
para a formulação de hipóteses sobre o funcionamento dos sistemas
5
fonológicos. Utilizo o termo ‘paradigma’ no sentido em que o emprega Kuhn (1970).
6
Foi ainda pelos finais do século XIX e início do século XX A forma das línguas, nomeadamente a forma gramatical (mas bem distinta
do conteúdo das palavras) tinha sido já apontada reiteradamente no século
que os linguistas (concretamente, os Junggrammatiker) aproxima-
XIX por Willelm Humboldt: “A verdadeira forma gramatical, inclusive quan-
ram o estudo das línguas – e aqui melhor ficaria dizer “o estudo da do não dirigimos voluntariamente a atenção sobre ela, produz e deixa a
linguagem” – dos conhecimentos científicos emergentes em psicolo- impressão de uma forma, e deste modo favorece o desenvolvimento do
gia, recusando por essa via as explicações que a lógica aristotélica pensamento abstracto”. In Wilhelm von Humboldt. De l’origine des formes
fornecia sobre as relações entre a linguagem e o pensamento. Do grammaticales, 1822-23. A edição utilizada foi a tradução espanhola de C.
cruzamento entre as teorias nascentes em psicologia com a atenção Artal, Sobre el origen de las formas gramaticales, Barcelona: editorial Anagram,
dada às línguas faladas (e não apenas às descrições de dialectos, como 1972. A tradução em português é minha.
7
já se vinha fazendo desde os primórdios do romantismo) proveio Bloomfield (1933), p. 31. Em Duarte (1988) encontramos a seguinte carac-
terização do estruturalismo norte-americano: “Exclusão de todos os ter-
uma ruptura no paradigma5 até aí dominante dos estudos da lingua-
mos teóricos não directamente relacionados com fenómenos observáveis,
gem e das línguas. recusa de enunciados de natureza explicativa, insistência na variação sem
A importância que a ‘forma’ assumiu na recém-criada psico- limites entre as línguas” (p. 548).
logia, e a distinção entre forma e fundo, ou entre forma e conteúdo, 8
Lembramos aqui o método das ‘oposições distintivas’ e dos ‘pares míni-
passaram a manifestar-se no modo de encarar as línguas, ainda que mos’ utilizados pelo Círculo de Praga e por toda a linguística funcionalista
não fosse conceito desconhecido nos estudos linguísticos anterio- e, ainda, a consideração de ‘classes’ e de ‘constituintes imediatos’ a par do
res.6. Por outro lado, a emergência da teoria gestaltista propondo conceito de ‘distribuição’, aplicados pela linguística norte-americana à aná-
que o pensamento, a percepção e a linguagem eram actividades lise de frases.
9
Lembrem-se, por exemplo, as obras de Hilbert, Bertrand Russel e Gödel.

28 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


tos teóricos que influenciaram profundamente os estudos linguísticos Para além desta questão de modelo, o problema que se coloca é
a partir dos anos 50. A teoria dos conjuntos, os sistemas formais e a o de definir o objecto do conhecimento em todas as dimensões que
lógica proposicional e de predicados constituíram, nas primeiras dé- forem pertinentes para a sua explicação, e de criar uma teoria que
cadas a seguir ao meio do século e para várias áreas das línguas, sustente a análise e que integre as dimensões do objecto da ciência na
importantes instrumentos formais para o estabelecimento de relações explicação que se procura. Lembre-se, por exemplo, que a grande
entre estruturas linguísticas, tendo alguns desses instrumentos per- revolução que Einstein provocou na física foi o facto de ter proposto,
manecido em quadros teóricos actuais. Num primeiro momento, o na teoria da relatividade, a síntese da mecânica clássica, da óptica e
recurso a representações formais por parte de linguistas norte-ameri- da electromagnética, estendendo posteriormente o princípio da rela-
canos trouxe à linguística uma maior aparência de rigor e tividade a todos os movimentos da física.15 Ao integrar, nessa sínte-
cientificidade, e permitiu o tratamento de estruturas frásicas com a se, várias dimensões da física que se encontravam em campos distin-
análise em constituintes imediatos. tos, o cientista apontou a possibilidade de se chegar, no futuro, a uma
A utilização dos instrumentos formais veio, progressivamente, explicação harmoniosa do universo.16 É por esta razão que Einstein é
possibilitar a construção de modelos sobre o material empírico e a considerado um génio.
formulação de hipóteses relativas ao funcionamento da língua. 10 A Estão portanto respondidas as duas perguntas atrás formula-
sintaxe passou então a constituir o centro de atenção na análise das: a ciência impõe a criação de uma teoria formalizável que per-
linguística ao serem criados sistemas de regras que atribuíam uma mita englobar todas as dimensões pertinentes do objecto em análise
descrição estrutural às frases de modo explícito e bem definido. Os e explicar adequadamente a convergência dessas dimensões. A par-
modelos assim construídos possuíam três características essenciais tir do momento da sua criação e aceitação pela comunidade cientí-
do conhecimento científico: maior poder explicativo do objecto anali- fica, a teoria enquadrante provoca uma ruptura epistemológica no
sado, estipulação de generalizações e a possibilidade de verificação conhecimento científico e, para seguir Kuhn, a ciência entra num
das hipóteses formuladas perante a adequação, ou inadequação, dos novo paradigma.
resultados obtidos.11 Olhemos agora novamente para a linguística que é a finalidade
Importa referir desde já o nome de Noam Chomsky e salientar desta reflexão. Retomando as questões enunciadas, devemos inquirir
a sua obra fundamental para a criação da teoria da gramática generativa quais são as dimensões pertinentes do objecto de análise, e como
e para a sua aplicação em vários níveis das línguas. E importa referi-lo podemos proceder à sua integração para uma explicação satisfatória.
não só pelo seu papel fulcral no âmbito da linguística formal, mas O objecto de análise comporta, sem dúvida, o estudo das lín-
também por ter retomado e desenvolvido, desde os anos 6012, a pro- guas na sua aparente diversidade. Mas as línguas são formas do com-
posta de existência de uma capacidade humana, inata e específica, portamento humano, ligadas indissociavelmente, como todas as for-
diferente das demais capacidades cognitivas, que está na base da utili- mas do comportamento, aos processos cognitivos. Assim, o estabe-
zação da linguagem. Esta atitude mentalista colocou Chomsky num lecimento da relação entre línguas e cognição é indispensável, sob
plano oposto ao da linguística estrutural norte-ameicana. Posterior- pena de estarmos a dissociar duas dimensões do mesmo objecto e de
mente, essas duas vertentes, da formalização e da capacidade inata da não podermos atingir, e muito menos explicar, nenhum aspecto rele-
linguagem foram largamente revisitadas, para o que contribuiu, por vante do seu funcionamento.
um lado, o progresso das ciências da cognição e as hipóteses sobre a
aquisição da linguagem e, por outro, a superação de uma formalização
demasiado abstracta e demasiado dependente das idiossincrasias das
línguas, orientada agora para a procura de características universais da 10
Para Alain Badiou, a construção do conceito científico de modelo impli-
gramática das línguas.
ca, inquestionavelmente, a utilização da lógica matemática: “Parler de
Assinalei até agora os diferentes momentos da linguística em modèle c’est présuposer la “vérité” (l’existence) de ces pratiques
que a investigação se serviu de instrumentos desenvolvidos por ou- mathématiques. On s’établit dès le début dans la science.”(Badiou, 1970,
tras ciências, na tentativa de conseguir uma explicação cada vez mais p. 42).
satisfatória do funcionamento das línguas e da linguagem. Ao chegar a 11
A construção de uma teoria verificável permite a sua confirmação ou refu-
este ponto, é pertinente pôr a seguinte questão: “É suficiente, para a tação, o que é sempre positivo no desenvolvimento do conhecimento ci-
atribuição do carácter de ciência a um conhecimento, que ele utilize entífico: “...if a theory is testable, then it implies that events of a certain
instrumentos de natureza científica na investigação do seu objecto kind cannot happen; and so it asserts something about reality” (Karl Popper,
específico, ou são necessárias outras condições?”. Uma segunda per- 1972, p. 117).
12
gunta podia ainda formular-se: “O conhecimento científico procede Nos primeiros trabalhos que repuseram, nos anos 60, a discussão da rela-
ção entre linguagem e pensamento largamente discutida nos séculos XVII e
num contínuo, como o conhecimento comum, ou admite rupturas que
XVIII, muitas representações formais de estruturas linguísticas foram pro-
desencadeiam a criação de matérias novas e de uma nova forma de postas como isomorfas de representações das mesmas estruturas presen-
encarar a realidade?”13 Duas perguntas cuja resposta exige um breve tes no espírito do falante.
excurso pela epistemologia das ciências. 13
Sobre esta questão ver, entre outros, Bachelard (1953) e Khun, (1962).
Em primeiro lugar, é preciso definir o que é ‘ciência’. Sucinta- 14
Não discuto aqui um dos mais interessantes problemas da epistemologia
mente, ciência é uma forma de conhecimento com que se pretende das ciências que é o de considerar a diferença de carácter científico entre
explicar o que vulgarmente denominamos ‘o real’, elaborada essa as ‘ciências da natureza’ e as ‘ciências humanas’ (como lhes chama Piaget).
explicação de tal modo que seja possível a sua validação. 14 É Sobre a natureza científica de ambas as formas de conhecimento, indepen-
indubitável que o conceito actual de ciência exige a construção de dentemente do tipo de progresso que cada uma revela, ver, por exemplo,
Kuhn (1970).
uma teoria que permita (a) representar formalmente as estruturas, as 15
Ainda nesta linha de raciocínio, releve-se a importância da hipótese de que
relações e as funções dos elementos que constituem o objecto a o espaço e o tempo não são absolutos (isto é, independentes) mas relati-
analisar, (b) formular hipóteses explicativas do funcionamento des- vos, formando a conexão espaço-tempo. A representação formal de um
ses elementos e (c) proceder à verificação da validade das hipóteses dos aspectos mais importantes da síntese conseguida por Einstein é a fa-
formuladas (e aqui situo-me na perspectiva das Conjecturas e Refu- mosa equação E=m.c2.- equivalência entre a massa e a energia.
tações de Karl Popper). A todas estas condições as teorias formais 16
Einstein procurou, durante toda a vida, chegar ao ele denominava a Teoria
respondem mais satisfatoriamente do que os modelos anteriores, do Campo Unificado. Embora sem ter conseguido elaborar essa teoria, a
dadas as suas capacidades de generalização e de verificação dos re- procura e as conclusões a que chegou são da maior importância para o
sultados das hipóteses formuladas. progresso da ciência física, e extrapoláveis para outros campos científicos.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 29


Ora os progressos realizados no conhecimento dos processos ções exigidas por qualquer formalização. Se procura o caminho para
cognitivos em que se destacam a neuro-biologia e a genética permitem uma Gramática Universal, a linguística tem que estabelecer hipóteses
afirmar que esses processos decorrem de uma mesma base genética sobre os princípios que regem essa gramática universal e definir os
que é universal. Se, por outro lado, todos os homens falam, então parâmetros que são escolhidos pelas diferentes línguas e que subjazem
haverá certamente uma capacidade genética e universal que lhes per- à sua diversidade de superfície. .Estabelece-se assim uma dialética
mite falar. Essa capacidade é a faculdade da linguagem que permite entre o geral e o particular que implica, necessariamente, a descrição
construir, com poucas dezenas de sons, uma infinidade de expres- dos factos linguísticos e, ao mesmo tempo, uma comparação entre
sões .que revelam aos outro o que pensamos, o que imaginamos e o línguas. O cruzamento das duas vertentes, horizontal e vertical, para
que sentimos.17 que concorre o labor minucioso dos que trabalham neste paradigma,
Mas a sua existência universal não é apenas uma hipótese as- permite algumas descobertas respeitantes a quais são os mecanismos
sente nas duas premissas atrás enunciadas, ou seja, a universalidade da gramática das línguas e como são usados na produção normal de
dos processos cognitivos e a constatação de que todos os homens cada falante.
falam. Um outro facto, de todos nós conhecido, vem evidenciar a Podemos agora perguntar-nos se esta teoria, que verdadeira-
existência da faculdade universal da linguagem. Refiro-me à aquisi- mente imprime carácter científico à linguística e é construída de acor-
ção da linguagem feita por todas as crianças em tempo incrivelmente do com as dimensões do objecto de análise, é a melhor para atingir os
breve e perante dados lacunares em relação à competência rapida- objectivos que se propõe. E voltando ao início desta reflexão, pode-
mente adquirida. Essa aprendizagem não pode provir senão de um mos também perguntar-nos se esses objectivos são os que permitem
mecanismo cognitivo preparado especialmente para esse fim, meca- ao estudo da linguagem sair de uma circular auto-referência e
nismo universal e genético. Se tal mecanismo é universal, então a compatibilizar a universal faculdade da linguagem com a diversidade
relação entre a gramática das línguas e a faculdade da linguagem superficial das línguas, de modo harmonioso e satisfatório. 20 Mas
também é universal. para a ciência não existe o ‘inteiramente satisfatório’, como não existe
Mas como se entende assim a diversidade das línguas? Bem, o a demonstração ‘verdadeira’, visto que, como dizia Gödel a propósito
conhecimento que temos da deriva das línguas pode levar-nos a con- da teoria dos números, “qualquer teoria que seja suficientemente forte
cluir que, se cada uma delas foi evoluindo no tempo, a separação para demonstrar a consistência da teoria dos números é pelo menos
entre elas aprofundou as diferenças. Mas atenção: a finalidade da tão forte quanto a própria teoria dos números”.21 Mas se é tão forte
linguística não é a de procurar a língua primeira, a origem das lín- quanto a teoria cuja consistência está a demonstrar, como pode ela
guas. Essa tarefa foi abandonada desde o século XIX. O que disse demonstrar essa consistência?. Teria portanto que ser uma teoria mais
atrás sobre a relação entre capacidades universais do cérebro e aqui- forte. Mas a consistência dessa teoria mais forte também terá de ser
sição da linguagem aponta para outro objectivo que inter-relaciona o demonstrada, para que ela sirva de padrão. E como se demonstrará a
estudo das línguas com o da aquisição da linguagem. E esse objectivo consistência deste padrão? A partir de uma teoria ainda mais forte,
é procurar, na diversidade linguística de superfície, os traços que evidentemente. Só que este raciocínio, que é o núcleo do teorema de
pertencem a todas as línguas, ou seja, os traços de um estado inicial Gödel, leva-nos ao infinito, ao indecidível.
interior que poderemos chamar, como Chomsky, o “mecanismo de Devemos portanto adoptar a atitude céptica de que nenhuma
aquisição da linguagem”. Este mecanismo que, ainda segundo teoria pode ser mais adequada do que outra para a explicação do ‘real’
Chomsky, “toma a experiência como ‘input’ e fornece a língua como e, no caso que nos ocupa, da linguagem e das línguas? Não, porque se
um ‘output’”18 existe no conhecimento que cada falante tem da lín- não podemos atingir a ‘verdade’ podemos, pelo menos, iluminar al-
gua que usa, na sua gramática, e mantém presente a interacção da guns passos do caminho. E a teoria linguística a que ultimamente me
produção da linguagem e dos processos cognitivos que concorrem referi aí está para o provar: criação de uma rede de novas inter-rela-
para essa produção. Chamemos-lhe gramática universal. ções, aspectos desconhecidos que tomam forma e revelam importân-
Ao proceder assim, a linguística conforma-se com a primeira cia, um programa de trabalho que aparece promissor, descobertas,
característica do conhecimento científico atrás postulada, procuran- novas hipóteses. Enfim, a estrada sem fim da ciência que,
do uma explicação do “real” (neste caso, a linguagem e as línguas) e iniludivelmente, nos projecta no futuro.
não apenas uma descrição. Tendo definido o objecto da ciência da
linguagem nas suas dimensões pertinentes, podemos perguntar então
que modelo teórico se adequa à sua explicação.
Revendo os vários passos do raciocínio que desenvolvi até aqui,
eles apontam para uma teoria linguística cujo objectivo seja o estudo
das línguas entendidas como constituídas por expressões que são
geradas pela gramática interior dos falantes e são continuamente adap-
tadas a cada situação para produzir, tomando as palavras de Humboldt,
“um uso infinito com meios finitos”. Essa é a finalidade da descrição
das línguas, e os instrumentos utilizados nessa descrição terão de ser
os mais adequados, também, à sua explicação. Citando ainda 17
Este aspecto da “maravilhosa invenção” que é a linguagem tem sido
Chomsky: “para satisfazer a condição de adequação explicativa, uma repetidamente posto em destaque por Chomsky que cita, a esse propó-
teoria da linguagem necessita de mostrar como cada língua particular sito, Galileu e Descartes. Ver Chomsky (2000), p. 4.
18
pode ser derivada de um estado inicial uniforme, pela experiência Ver Chomsky (2000), p. 4.
19
Ver Chomsky (2000), p. 7.
(de cada falante), sob um conjunto de condições limitadas (boundary 20
Ainda segundo Chomsky (2000), “This is, of course, a program, and it is
conditions)”.19 far from a finished product. The conclusions tentatively reached are unlikely
Vimos já os aspectos positivos que traz ao conhecimento cien- to stand in their present form; and, needless to say, one can have no certainty
tífico a utilização de um modelo formal. A teoria linguística pode that the whole approach is in the right track” (p. 8).
servir-se dele como um instrumento rigoroso e validável. Mas não 21
A afirmação sobre a teoria dos números (melhor, sobre a Teoria Numérica
deve importá-lo, indiscutido, de outras ciências e sim construí-lo de Tipográfica) que transcrevo encontra-se na página 243 da edição portu-
acordo com as suas necessidades, obedecendo, no entanto às condi- guesa de Hofstadter (1999). O teorema de Gödel está presente sob várias
formas nesta obra.

30 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Referências bibliográficas HOFSTADTER, Douglas R. (1999) Gödel, Escher, Bach: An Eternal
Golden Braid. New York: Basic Books (a edição consultada foi a
BACHELARD, Gaston (1953). Le matérialisme rationel. Paris: PUF. tradução portuguesa de J. Viegas Filho e A. Franco de Oliveira,
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BLOOMFIELD, Leonard (1933). Language. New York: Holt, Chicago: The University of Chicago Press (a edição consultada
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DUARTE, Inês (1998). Chomsky e Descartes: o Uso Estratégico de scientific knowledge. London: Routledge & Kegan Paul Limited
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Modernidade. Lisboa: Edições Colibri, 547-561. Genève-Paris (a edição consultada é de 1964, Paris: Payot).

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 31


As comunidades de fala: fronteiras internas e externas
Gregory R. Guy
York University & New York University

Há um elemento da competência lingüística humana que parece des, participam na formação de uma maneira distintiva local de falar,
ser universal, mas que vem sendo negligenciado em nossa disciplina. e os habitantes de uma região em geral usam estes traços locais, os
Trata-se da capacidade que têm os falantes de identificarem muitas quais, por conseqüência, ficam sendo marcadores da identidade lo-
características de outros falantes somente na base de ouvir a pessoa cal.
falar. Sempre que ouvimos alguém falando uma língua humana, for- A mesma coisa acontece com outras dimensões sociais: classe
mamos impressões da identidade social do falante, em termos de ca- social, por exemplo. Reconhece-se a identidade de um falante brasi-
racterísticas como sexo, idade, por exemplo. E conforme nossa experi- leiro em uma escala social através de características lingüísticas como
ência com a língua que a pessoa está falando, podemos reconhecer a concordância, presença ou ausência de processos fonológicos como
também características como o dialeto do falante (pelo menos se a pes- desnasalização de vogais nasais e apagamento do –r final, etc. Quem
soa fala como nós ou não), se é falante nativo ou não, e até classe diz mais ‘os home’ ou ‘as mulhé’ é provavelmente de origem social
social, escolaridade, profissão, atitude, relação com o ouvinte, etc. Fa- mais baixa, em comparação com o falante que diz ‘os homens, as
zemos essas estimativas automática e facilmente, sem fazer muito es- mulheres’. Estes marcadores lingüísticos compartilham uma dupla
forço analítico. característica: reúnem os falantes de uma camada social e os distin-
Pois bem, se essa capacidade faz parte da competência lingüís- guem coletivamente dos falantes de outras camadas. Então, com base
tica, quais são as implicações para a disciplina de lingüística? Em nessas observações, podemos chegar a uma segunda conclusão: as
primeiro lugar, isso implica alguns aspetos fundamentais da natureza diferenças entre pessoas são sistemáticas e não aleatórias, isto é, elas
do nosso objeto de estudo – a linguagem. Um aspeto óbvio é que a correspondem à organização social e refletem subgrupos de falantes
língua deve ser finamente diferenciada, e não um objeto uniforme e que usam as mesmas características.
monolítico. Para podermos perceber essas distinções entre falantes, Finalmente, é importante notar um terceiro ponto: a diferenci-
devem existir diferenças lingüísticas a ser percebidas. Quando reco- ação que estamos discutindo não é limitada a diferenças entre falan-
nhecemos, por exemplo, que um falante desconhecido é homem ou tes, ela acontece também dentro do falar de cada pessoa. Isto é, os
mulher, estamos percebendo alguma diferença entre as vozes de ho- falantes não falam sempre do mesmo jeito, mas variam o uso por
mens e as de mulheres. Quando reconhecemos a voz de um conheci- vários motivos. Efetivamente, manipulam essas mesmas diferenças
do específico, isso implica que cada indivíduo tem características sociolingüísticas para fins comunicativos e sociais. Quando percebe-
distintivas. mos, pela maneira de alguém falar, que está mostrando formalidade ou
Esses dois exemplos podem ser explicados, talvez, na base de informalidade, polidez ou intimidade, etc., estamos percebendo carac-
qualidades acústicas ou fonéticas das vozes – por exemplo, as diferen- terísticas lingüísticas que distinguem o uso deste estilo ou registro de
ças entre homens e mulheres na freqüência fundamental da voz. Mas outros estilos ou registros.
a diferenciação entre falantes tem que ir além disso, abrangendo outras Para resumir, então, a competência que temos, de distinguir e
estruturas da língua. Quando reconhecemos que uma pessoa é ou não identificar outros com base somente na produção lingüística, sugere
é falante nativo de português, ou que é carioca, gaúcha, ou cearense, três conclusões sobre a natureza da linguagem: uma língua humana é
ou que é de classe média ou classe trabalhadora, não é um traço mera- extensivamente diferenciada, essas diferenças são sistemáticas e ocor-
mente acústico ou articulatório que estamos notando, porque não exis- rem tanto dentro de quanto entre os falares de indivíduos. Então,
te nenhum elemento fisiológico na estrutura do trato vocálico que dis- quais são as implicações dessa competência para a teoria lingüística?
tinga brasileiro de estrangeiro, ou carioca de gaúcho. Para fazer tais Me parece que nós, lingüistas, precisamos de duas ferramentas teóri-
avaliações das origens sociolingüísticas de um falante, devemos estar cas para trabalhar com esses fatos. Primeiro, precisamos de uma
percebendo diferenças em outros níveis estruturais: na fonologia, na maneira adequada de descrever semelhança e diferença entre varieda-
sintaxe, no léxico, etc. Portanto, concluímos que as diferenças entre des de língua. Não será adequado falar de diferenças amplas e categó-
falantes de uma língua devem ser EXTENSIVAS, isto é, devem atingir muitas ricas, assim como fazemos quando dizemos que uma estrutura ou uma
áreas da gramática mental. palavra É português ou NÃO É português, absolutamente. A diferencia-
Ao mesmo tempo, essa capacidade de reconhecer característi- ção fina que os falantes reconhecem e manipulam é em um nível mais
cas nas vozes dos outros implica não só diferença, mas também se- sutil: os falantes de diferentes dialetos ou classes sociais têm muitas
melhança! Os traços lingüísticos distintivos que nos permitem atri- coisas em comum, ao mesmo tempo em que têm algumas diferenças.
buir uma identidade social às vozes que ouvimos devem ser sistemá- Muitas vezes as diferenças são quantitativas e não qualitativas, como
ticos e gerais dentro dos grupos assim identificados. Se sabemos, os casos que citei do apagamento de –r final em português, ou a fre-
por exemplo, que um falante ‘é daqui’ ou ‘não é daqui’, isso implica qüência de concordância nominal. Precisamos então uma teoria que
que as pessoas ‘daqui’ (isto é, do nosso estado, ou município, ou fale dos vários aspectos de semelhança e diferença entre falantes, e até
dialeto) compartilham características lingüísticas entre si que pode- entre momentos de falar. No que segue, vou tratar disso usando algu-
mos reconhecer e que distinguem os falantes desta região de outros mas propostas provenientes do estudo da variação lingüística.
que não compartilham tais características. No português do Brasil, Segundo, precisamos de uma outra ferramenta teórica que nos
podemos citar vários traços regionais assim: por exemplo, os cario- permita justificar a organização social das diferenças lingüísticas e
cas, sistematicamente, palatalizam muito o –s final de sílaba, falam explicar por que certas pessoas são lingüisticamente semelhantes
muito chiado, enquanto as pessoas de outras regiões do Brasil não enquanto outras são diferentes. Qual a base teórica LINGÜÍSTICA de
fazem isso, ou não na mesma medida. Os gaúchos e catarinenses reunir falantes de uma região ou classe ou sexo, e procurar seme-
usam muito o pronome ‘tu’, que é pouco usado no resto do Brasil. lhanças entre eles? O elemento lingüístico – e não sociológico – será
Estas e muitas outras características lingüísticas, pequenas e gran- essencialmente as redes de comunicação: quem fala com quem. Aqui,

32 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


a base teórica de onde pretendo partir é a idéia da comunidade de Windsor têm contato maciço e diário com Detroit, mas Windsor se
fala, que será o meu enfoque central nesta palestra. mantém, lingüisticamente, completamente diferente de Detroit. A
A seguir, começarei explorando definições deste construto teó- pesquisa de Boberg revela que a fala de Windsor é claramente cana-
rico – a comunidade de fala. Esse empreendimento levanta questões dense, quase idêntica à de cidades canadenses mais distantes como
sobre os limites dessas comunidades, sobre a estrutura interna delas, Toronto, apesar de o contato ser intenso com Detroit e mínimo com
e sobre as fronteiras entre uma comunidade e outra. Essas perguntas Toronto. Por quê? Evidentemente, porque os Windsorianos valori-
serão tratadas em seções subseqüentes. E dentro disso, vou tocar no zam sua identidade nacional como canadenses e não querem ser ab-
problema da descrição adequada de diferença, inclusive a questão da sorvidos pelos EUA. Marcam, então, a identidade através da lingua-
quantificação. gem, seguindo normas lingüísticas do Canadá e evitando os traços
Detroitianos. Portanto, temos o terceiro elemento da definição, a
I. A comunidade de fala: definições e significância norma. Os falantes de uma comunidade compartilham atitudes lin-
Considerando o conjunto total de falantes de uma língua, com a güísticas sobre o que é bom e o que não é bom, o que é formal e o que
rede complexa de semelhanças e diferenças entre eles, como é que o é informal, etc.
lingüista pode organizar suas investigações em uma base adequada? Bem, até agora, falei só em termos de comunidades de fala
Queremos identificar agrupamentos de falantes que têm algo lingüístico definidas pela geografia. Mas considerando a definição, é evidente que
em comum; a abordagem mais produtiva a essa tarefa é procurar agru- podemos aplicar os mesmos critérios a grupos sociais, desde que
pamentos que refletem a realidade comunicativa dos usuários da lin- estes satisfaçam os elementos da própria definição. Considere grupos
guagem; isto é, reunir os falantes que se comunicam mais entre si, e étnicos: durante as primeiras gerações da imigração alemã ao sul do
distingui-los de outros grupos com quem os primeiros falam menos, Brasil, os alemães se concentraram em comunidades nas quais manti-
ou nunca. Com essa abordagem, chegamos a definir a comunidade de veram durante um bom tempo o uso de alemão. As pessoas dessas
fala. Vários teóricos já ofereceram suas definições dessa entidade. Eu comunidades compartilhavam atitudes e valores lingüísticos e se co-
apresento a minha tentativa de síntese no item (1). municavam mais entre si do que com outros não-alemães. Portanto,
formaram uma comunidade de fala distinta. Em uma situação assim, é
(1) Definições: a comunidade de fala é um grupo de falantes inválido falar de uma comunidade integrada definida pela geografia.
que:
Não pode dizer, por exemplo, que todos os habitantes do Rio Grande
-compartilham traços lingüísticos que distinguem este grupo
do Sul formaram uma comunidade de fala integrada durante a primeira
de outros;
metade do século XX, porque existiam dentro do estado comunidades
-se comunicam relativamente mais entre eles do que com outros;
definidas mais pela identidade étnica do que pela geografia.
-compartilham normas e atitudes frente o uso da linguagem.
Finalmente, quero salientar que as definições permitem a pos-
Primeiro, a comunidade é definida pelo fato de existir uma
língua em comum nela usada; mas, ao mesmo tempo, a variedade da sibilidade de comunidades encaixadas, e de um falante participar ao
língua usada na comunidade é distinta, pelo menos em alguns traços, mesmo tempo em mais de uma comunidade. Devemos, então, reco-
das variedades usadas em outras comunidades. Esta parte da defini- nhecer uma escala de proximidade. Por exemplo, falantes de portugu-
ção nos ajuda a distinguir as fronteiras externas da comunidade. Por ês em Fortaleza formarão uma comunidade bem aproximada. Ao
exemplo, os limites externos da comunidade de fala carioca serão mesmo tempo, os falantes de português em todo o Brasil são uma
definidos, em parte, pela extensão do uso de traços como a pronúncia comunidade de fala – uma comunidade um tanto menos integrada, com
chiante do –s final e outros traços do falar carioca. certeza, mas ainda assim é óbvio que os brasileiros têm traços
Segundo, a comunidade é caracterizada por uma densidade de lingüísticos e atitudes compartilhadas, e mais comunicação dentro do
comunicação interna relativamente mais alta do que a densidade ex- país do que com estrangeiros. E finalmente, no nível mais geral, todos
terna. Ou seja, falantes em uma comunidade tendem a falar mais os falantes de português no mundo formariam, em um sentido, uma
com outros falantes da mesma comunidade do que com pessoas de comunidade de fala.
fora. Por exemplo, quem mora em Fortaleza normalmente vai ter Agora, o que fazemos com a observação de onde comecei, sobre
mais chance diária de se comunicar com outros moradores de Forta- a capacidade que têm os falantes de reconhecer diferenças e semelhan-
leza do que de falar com habitantes de Florianópolis ou Manaus ou ças sutis? Evidentemente, as comunidades têm divisões sociais inter-
Lisboa. Além disso, normalmente vão se comunicar mais com pes- nas, correlacionadas com características lingüísticas. Pode-se falar
soas do mesmo bairro do que com pessoas de outros bairros. talvez de subcomunidades. Certos elementos dessa diferenciação in-
De fato, este aspeto da comunidade é o que explica o primeiro. terna são considerados como evidência da unidade da comunidade geral.
A comunicação intensiva é o que mantém a coerência lingüística en- Por exemplo, Labov (1966) mostra que a diferenciação das classes soci-
tre os usuários; ao mesmo tempo, a falta de contato lingüístico entre ais em Nova Iorque depende em parte do uso do –r pós-vocálico, em
uma comunidade e outra é o que permite o desenvolvimento de dife- que as classes mais altas pronunciam mais o –r. Mas seja quanto for a
renças lingüísticas. Para simplificar, tendemos a falar como aquelas freqüência de realização do –r por uma classe ou um falante, todos na
pessoas com quem falamos mais. Mas não devemos pensar que este cidade compartilham uma avaliação uniforme, de que pronunciar o –r é
processo seja automático, porque ainda existe um terceiro elemento
a opção mais valorizada, associada com prestígio e formalidade, en-
da definição. O simples contato lingüístico com outros não é sufici-
quanto sua ausência é associada com informalidade e pessoas de origem
ente para nos fazer adotar as características lingüísticas deles; há,
social mais baixa.
também, uma questão de atitude e vontade. Não adotamos as carac-
Entretanto, ainda temos algumas perguntas em aberto. Até que
terísticas lingüísticas de outros que não gostamos, ou dos quais que-
remos nos distanciar. Isso é comprovado por muitos estudos; darei ponto podemos falar de uma comunidade com subdivisões internas e
um exemplo só, da pesquisa recente de Boberg (2000) sobre o inglês não de comunidade distintas? Seria possível existir uma cidade, por
da cidade de Windsor, Canadá. Esta cidade está na fronteira com os exemplo, em que as classes sociais constituíssem realmente comuni-
EUA, separada por um rio da cidade americana de Detroit. Detroit é dades lingüísticas distintas, como Windsor e Detroit? Onde ficam os
umas 10 ou 15 vezes maior do que Windsor, e Windsor está comple- limites internos de uma comunidade? Para melhor responder a essas
tamente integrada na economia de Detroit. As pessoas das duas ci- perguntas, devemos primeiro passar a considerar a questão de como
dades atravessam a fronteira com alta freqüência. Os falantes de quantificar diferenças e semelhanças lingüísticas.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 33


II. Quantificar diferenças modelo permite ter falantes que têm os mesmos pesos e inputs dife-
Como são diferenciadas lingüisticamente as comunidades? Em rentes, ou inputs idênticos e pesos relativos diferentes, ou qualquer
um nível é óbvio: quando há diferença de natureza categórica – uma combinação dos dois.
comunidade tem a estrutura ou a pronúncia ou a regra tal, e a outra Temos, então, uma pergunta. Existem de fato esses casos que o
não. Diferenças desta natureza não faltam. Em inglês, podemos modelo permite? Já vimos no exemplo do –r final do português um
citar, por exemplo, o uso de um núcleo centralizado do ditongo /aw/ caso em que todos têm os mesmos pesos. A questão é se é possível
no Canadá (em palavras como mouse, house, south) que é quase ter diferenças nos efeitos contextuais, ou se estes são fixos, dados
desconhecido nos EUA, ou a necessidade, na Inglaterra, de usar o por algum princípio geral da língua, ou até por um princípio univer-
verbo auxiliar ‘do’ em uma oração com elisão do verbo principal sal? No caso específico do –r no Brasil, não tenho evidências para
depois de auxiliar modal, em frases como I might do ou He could do, citar, mas há muitos outros casos indicando que sim, que é possivel
enquanto na América do Norte não se faz isso, dizendo apenas I ter efeitos contextuais e pesos relativos bem diferentes. Citarei aqui
might, He could. Em Português, podemos citar a redução vocálica um exemplo só. A expressão do sujeito em espanhol é variável, como
distintiva em Portugal das vogais não-tônicas (por exemplo, pro- em português. Pode-se dizer em um momento El habló e em outro
nunciar a primeira vogal de falar ou a última vogal de cidade como simplesmente Habló, como em português ele falou vs. falou. Pois
um xuá), que não acontece no Brasil, e, no lado sintático, o uso da bem, a freqüência da expressão do sujeito varia de um dialeto de
estrutura A + INFINITIVO em Portugal onde, no Brasil, se usa o espanhol para outro, e a variação está sujeita a restrições contextuais.
gerúndio: Enquanto vocês estão a escolher vs. Enquanto vocês A pesquisa de Cameron (1993) mostra que uma dessas restrições é,
estão escolhendo… no caso do sujeito tu, se o pronome está se referindo a uma pessoa
Estes exemplos correspondem a diferenças de estrutura de na- específica ou não. Esse fator é significativo em dois dialetos do es-
tureza categórica: uma comunidade tem e a outra não tem. Mas a panhol que Cameron estudou: o de Madri, na Espanha, e o de San
capacidade do falante de reconhecer diferenças entre dialetos e entre Juan, em Porto Rico. Mas a direção do efeito é contrária, como se vê
grupos sociais não é limitada à diferença categórica, é mais sutil. em Tabela 1. Em Porto Rico, a referência não-específica favorece
Somos bem capazes de reconhecer diferenças quantitativas, diferen- mais a expressão do pronome, mas na Espanha, as referências não-
ças no uso de elementos variáveis na língua. Isso vem sendo eviden- específicas favorecem a omissão do pronome. Os pesos relativos
te desde as primeiras pesquisas sociolingüísticas. O estudo de Labov para essas duas categorias são o inverso nos dois países.
do –r em NY, que acabei de citar, mostra, por exemplo, que os falan-
tes de lá reconhecem pequenas diferenças quantitativas na freqüên- Tabela 1. Expressão do sujeito em espanhol: diferenças dialetais no
cia de pronúncia do –r, e usam essas diferenças para estimar o status efeito do traço específico da referência do pronome de 2a sg. tú
social de outros falantes. Por ‘pequenas diferenças’, refiro-me a di- (Cameron, 1993, p 325)
ferenças de freqüência por volta de 15-20%. Então, temos uma per-
gunta importante a responder: qual é o tratamento de diferenças quan- San Juan, PR Madri, Espanha
titativas no estabelecimento e manutenção de comunidades de fala? % peso N % peso N
Para tratar esse assunto em uma base adequada, precisamos [+específico] 48% 0,51 145 40% 0,72 58
elaborar um modelo quantitativo de variação que nos permita formu- [-específico] 69% 0,72 188 19% 0,50 150
lar perguntas e testar hipóteses. Em estudos de variação, um modelo
geral desse tipo existe sob o nome não muito claro de ‘modelo da Este resultado mostra que nem todo efeito contextual é idênti-
regra variável’. Nesse modelo, faz-se uma distinção fundamental na co para todo dialeto ou todo falante. É possível existir diferenças
área quantitativa. Assim, uma primeira dimensão quantitativa da va- nestes efeitos. Há, então uma segunda dimensão quantitativa entre
riação é o uso geral de um fenômeno. No português do Brasil, há variedades de uma língua. Além de poder variar em nível geral, po-
pessoas que apagam muito o –r final, digamos por volta de 50%, e dem variar nos efeitos dos contextos sobre a variação. Na teoria de
outras que apagam pouco, digamos, 5-10%. Essa diferença seria variação, a hipótese dominante é que esse segundo tipo de diferença
bem marcada, notável a qualquer brasileiro, e a implicação social e conta como diferença estrutural, enquanto diferenças simplesmente
dialetal também seria evidente. No modelo da regra variável, tais quantitativas no uso geral – isto é, no input de um fenômeno – não
diferenças seriam representadas por um parâmetro quantitativo cha- contam como diferenças de estrutura ou de gramática. Então, pode-
mado de input, representado também por p0. mos formular uma hipótese: falantes que compartilham as mesmas
Mas existe também uma outra dimensão de diferenças quanti- condições de contexto em um processo variável, mas são diferencia-
tativas em um processo variável: os efeitos dos contextos. Em nosso dos pelo uso geral do processo, podem ser considerados como usan-
exemplo de português, nem todo –r final no Brasil tem a mesma pro- do a mesma gramática. Mas falantes que mostram efeitos de contexto
babilidade de ser apagado. As pesquisas revelam que a taxa de au- significativamente diferentes estão usando gramáticas diferentes.
sência do –r final dos infinitivos de verbos é muito alta, enquanto Há, então, uma distinção na área quantitativa equivalente à
apaga-se bem menos nos outros tipos de palavra: ou seja, é muito distinção na área qualitativa: diferença de gramática quer dizer pre-
mais comum dizer chegá, comê, do que dizer senhô ou mulhé. Além sença de diferenças estruturais – que podem ser categóricas, ou, quan-
disso, este efeito parece ser igual para quase todos os brasileiros, do variáveis, incluem diferenças de efeitos do contexto. Identidade
apesar de eles serem diferenciados quanto ao nível geral de apaga- de gramática, portanto, corresponde à ausência de diferenças categó-
mento de –r final. O tratamento distinto dos verbos é tão sistemático ricas e à ausência de diferenças em efeitos do contexto, no caso das
que é reconhecido mais ou menos intuitivamente pelos falantes. En- variáveis. Entretanto, diferença de input de uma variável não
tão, nesse exemplo, o efeito do contexto (neste caso o contexto corresponde em si a uma diferença de gramática.
morfológico ou lexical) é essencialmente idêntico, mesmo para fa- De posse dessa análise, podemos explorar a natureza da dife-
lantes que têm taxas de apagamento bem diferentes. rença e da identidade nas comunidades de fala. Começamos desta-
No modelo da regra variável, essa dimensão de efeitos quanti- cando um elemento significativo do exemplo que mencionamos do
tativos dos contextos sobre a realização de um fenômeno é represen- espanhol: as variedades distinguidas por efeito contextual no estudo
tada através de outros parâmetros, os chamados pesos relativos. Os de Cameron são de diferentes comunidades de fala, de fato, de países
pesos são independentes do input, no modelo. Matematicamente, o bem distantes. Aparece, então, uma hipótese possível: em assuntos
input e os pesos dos contextos podem variar independentemente: o de variação, diferenças entre comunidades de fala correspondem a

34 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


diferenças gramaticais, ou seja, diferenças em efeitos contextuais. gal, seguido por pausa, na Filadélfia, e consoante e pausa são mais
Ao mesmo tempo, diferenças entre indivíduos dentro da mesma co- ou menos equivalentes como favorecedores de apagamento em Nova
munidade de fala devem ser de natureza não-gramatical, ou seja, Iorque, seguidas por vogal, que desfavorece.
diferenças no nível geral de usar ou não um fenômeno variável. De fato, outros estudos subseqüentes mostram que cada diale-
Essa hipótese é mais ou menos assumida em vaárias pesquisas no to de inglês parece ter uma definição característica do efeito de pau-
campo da sociolingüística. Eu quero torná-la mais explícita e in- sa. Dentro de uma comunidade, cada pessoa adota o mesmo efeito,
vestigar até que ponto é confirmada nos estudos empíricos. No que até o mesmo peso. Mas entre comunidades, esses pesos são diferen-
se segue, então, vou discutir primeiro evidências para as diferenças ciados.
de efeitos de contexto entre comunidades, e depois as diferenças de Um terceiro exemplo vem do Português do Brasil. Usando os
nível geral de uso dentro de comunidades, combinado com estabi- dados do projeto Variação Lingüística Urbana no Sul do Brasil –
lidade de efeitos contextuais. Depois vou sugerir algumas compli- Varsul–, cujo apoio quero reconhecer e agradecer aqui, eu venho ela-
cações adicionais. borando um estudo comparativo dos efeitos de contexto na concor-
dância nominal em várias cidades incluídas no corpus do Varsul. A
III. Fronteiras externas das comunidades de fala seguir veremos dados das quatro cidades investigadas no Rio Grande
Começaremos, então, com a questão da natureza quantitativa do Sul (Porto Alegre, São Borja, Flores da Cunha e Panambi). Na
das diferenças entre comunidades. Queremos avaliar se essas dife- Figura 1, mostro os pesos relativos em cada comunidade para o efei-
renças são estruturais no sentido que acabamos de definir, quer dizer, to da posição relativa ao núcleo do sintagma nominal, seguindo uma
se são diferenças de efeitos contextuais, diferenças nos pesos relati- abordagem analítica sugerida por Marta Scherre (1988).
vos. Já vimos um caso disso no trabalho de Cameron, tratando co-
munidades bem separadas, em países distantes. Veremos agora um
outro caso, de comunidades bem próximas, cidades vizinhas nos Es-
tados Unidos. Nos meus estudos do apagamento de –t,d em final de
palavra em inglês, cheguei a comparar os efeitos de contexto seguin-
te no inglês falado em duas cidades, Nova Iorque e Filadélfia. Elas
estão situadas no litoral leste dos EUA; a distância entre as duas é de
apenas 140 km, mas são reconhecidas nos estudos dialetológicos como
tendo dialetos bem distintos. Vamos ver que essas distinções inclu-
em diferenças quantitativas.
Um dos contextos mais importantes para o processo de apaga-
mento das oclusivas coronais em inglês é o contexto seguinte. Se-
guida por consoante, apaga-se muito mais a oclusiva coronal final do
que quando esta é seguida por vogal. O efeito é essencialmente uni-
versal: todos os falantes de inglês já estudados mostram esse efeito
(desde que haja um número adequado de dados). Mas os dialetos de
Nova Iorque e Filadélfia se diferenciam pelo efeito de uma pausa Aqui, vemos que todas as cidades desfavorecem marcas de plu-
seguinte, como se vê na Tabela 2. ral em posição pós-nuclear e favorecem em posição pré-nuclear. Mas
Porto Alegre se distingue das outras comunidades, por ter uma regra
Tabela 2. Apagamento de oclusiva coronal final em inglês: diferenças de marcar tanto no núcleo quanto na posição pré-nuclear. Panambi e
dialetais no ordenamento dos efeitos dos contextos seguintes (Guy, São Borja, porém, desfavorecem marcas de plural no núcleo; de fato,
1980) este contexto não é significativamente diferente do contexto pós-nu-
Contexto seguinte: V=vogal, C=consoante, 0=pausa clear. Flores da Cunha, embora aparente ter uma terceira tendência,
Percentagem dos falantes exibindo a ordem: Ordem preferida de marcar cada vez menos, de fato não é significativamente diferente
C>V C>0 V>0 de Porto Alegre, nestes dados: a posição pré-nuclear não é diferente
Filadélfia (N=19) 89 100 95 C>V>0 (em termos de significância) do núcleo, mas estes dois favorecem
Nova Iorque (N=4) 100 50 0 C=0>V significativamente mais marcas do que a posição pós-nuclear.
Embora não tenha tempo de apresentar os dados, é evidente
A tabela indica quais dos fatores principais neste contexto, que há outros efeitos de contexto que são iguais nas 4 cidades; e há
comparado em pares, favorecem mais o apagamento. Se vê que qua- diferenças no nível geral de uso da regra de concordância. Mas o
se todo mundo tem um peso para C(consoante seguinte) maior do elemento desses resultados relevante à nossa questão imediata é que
que o valor de V(vogal), com a exceção de dois informantes da Fila- assim se confirma que comunidades diferentes podem ter efeito de
délfia com números pequenos de dados.) Mas comparando pausa e contexto diferente, ou seja, regras diferentes e estruturas gramaticais
vogal, 95% dos filadelfianos têm mais apagamento antes de vogal, diferentes, de natureza quantitativa, mas não categórica.
versus 0% dos novaiorquinos. Em Nova Iorque, todo mundo tem Estes três exemplos mostram que o primeiro elemento da nos-
mais apagamento antes de pausa do que antes de vogal. Para a meta- sa hipótese é verificado: comunidades diferentes tem distinções es-
de dos novaiorquinos (isto é, dois dos quatro analisados neste estu- truturais que, no caso de variação, significam diferenças nos efeitos
do), pausa é até mais favorável para apagamento do que consoante. contextuais, representados pelos pesos relativos. Agora vamos ao
Embora este estudo tratasse de um número limitado de informantes segundo elemento: as pessoas dentro de uma comunidade se distin-
de Nova Iorque, os resultados aqui indicados já foram repetidos em guem pelo uso geral de um fenômeno, mas são consistentes nos pe-
subseqüentes investigações. A conclusão é que o efeito do contexto sos? Vamos, então, investigar as fronteiras internas da comunidade
distingue as duas comunidades de fala: em Nova Iorque, a pausa é de fala.
tratada como contexto favorável a apagamento, enquanto na Filadél-
fia, a pausa é um contexto conservador. Os ordenamentos caracterís- IV. Fronteiras internas da comunidade de fala
ticos das duas comunidades parecem ser aqueles indicados na última A diferenciação interna de uma comunidade de fala tende a
coluna da Tabela 2: consoante favorece mais apagamento de que vo- seguir as grandes divisões sociais como sexo, idade, classe social.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 35


Existem muitos estudos mostrando níveis diferentes de uso de variá- os homens e todas as mulheres juntos, ou, no caso da Tabela 3, para
veis lingüísticas entre os sexos, as classes, etc. Veremos alguns exem- todos os falantes de uma classe social juntos. Podemos perguntar se os
plos. O mais bem conhecido é, talvez, classe social. Muitas variá- resultados para um grupo refletem validamente o comportamento dos
veis sociolingüísticas mostram o fenômeno chamado estratificação indivíduos, ou são meramente médias de uma coleção de indivíduos bem
social: uma alternativa é considerada pela sociedade como mais pres- diversos.
tigiosa ou ‘correta’, e a freqüência de uso desta forma é correlacionada Podemos responder a esta pergunta através de resultados como
com a posição de um falante na escala social: quanto mais alta é a os que aparecem na Tabela 5, mostrando os pesos relativos para cada
posição, tanto maior é o uso da forma prestigiosa e tanto menor é o falante no meu estudo da desnasalização. Lá vemos que 12 dos 13
uso das alternativas estigmatizadas. Isso foi demostrado a primeira falantes masculinos têm pesos acima do 0,50 (o ponto neutro), indi-
vez por Labov no estudo da pronúncia variável do /r/ em Nova Iorque, cando que favorecem a desnasalização, enquanto 8 das 10 mulheres
e podemos verificar o fenômeno pela experiência diária: no Brasil, têm pesos abaixo deste valor, desfavorecendo a regra. O efeito de
por exemplo, o uso de variáveis sociolingüísticas como a concordân- sexo, portanto, é geral.
cia nominal, a ocorrência de /r/ e /s/ final, etc. mostra estratificação: Aqui é necessário esclarecer um ponto quantitativo. Os valo-
as classes altas usam mais concordância, mais /r/ e mais /s/, enquanto res na Tabela 5 vêm de uma análise em que se usava um grupo de
as mais baixas usam menos de cada um desses exemplos. fatores com um código distinto para cada informante. Assim, o que
Na Tabela 3 mostro dados quantitativos de um estudo de se calcula é apresentado como um peso relativo. Este método é con-
Wolfram sobre a negação múltipla em inglês. O padrão em inglês é veniente para facilitar comparações entre indivíduos, mas devemos
evitar construções como ‘You don’t know nothing’, favorecendo lembrar que tais ‘pesos’ não podem ser interpretados como os pesos
uma única negação em cada oração, como ‘You don’t know verdadeiros que calculamos para os contextos lingüísticos. Cada fa-
anything.’. A tabela mostra a percentagem de uso da forma estig- lante pode, em princípio, usar na fala todos os contextos lingüísticos
matizada. Vê-se que cada classe usa mais a negação múltipla do possíveis, mas nenhum falante muda de sexo ou idade ou se torna
que as classes situadas mais acima na escala, e menos do que as outra pessoa durante a entrevista. O José, na Tabela 5, não é homem
classes mais abaixo na escala. em um momento da entrevista e mulher em outro, e não é possível
para ele de repente virar Lídio ou Waldécio ou qualquer outro infor-
Tabela 3. Negação no inglês de Detroit: percentagem de orações com mante. Portanto, estes valores na tabela não são efeitos de contexto,
negação múltipla, por classe social e sexo do falante (Wolfram, 1969). embora tenham a forma de pesos relativos. Matematicamente, eles
constatam uma transformação logística do input que seria calculado
———————— Classe Social ———————— para cada pessoa se fosse analisada separadamente.
Sexo média-alta média-baixa trabalhadora-alta trabalhadora-baixa
Masculino 6,3 32,4 40,0 90,1 Tabela 5. Desnasalização no português do Brasil: pesos relativos para
Feminino 0,0 1,4 35,6 58,9 23 indivíduos (Guy 1981, p. 275)
Falantes masculinos Falantes femininos
Neste estudo, como no estudo supra citado de Labov e em peso relativo
muitos outros, a diferença entre as classes é quantitativa, no sentido Inf. 3 0,75
que definimos acima. Isto é, cada classe tem um valor característico 0,74 Izeni
da freqüência de uso de uma variável, mas as classes não são dife- George 0,70
renciadas pelos efeitos de contextos. No caso do /r/ em Nova Iorque, Inf. 1 0,65
por exemplo, Labov descobriu que sílabas acentuadas para se dar Paulo 0,64
ênfase mantêm mais o /r/, e este efeito apareceu em todas as classes. Jorge F. 0,62
Uma segunda dimensão social de grande importância Henrique, Jorge M. 0,60
sociolingüística também aparece em Tabela 3: o sexo do falante. Um Sidnei 0,58
resultado típico nesse caso é que as mulheres tendem a usar mais das Lídio 0,56 Madalena
formas mais prestigiosas. Na tabela, se vê que, em cada classe soci- José 0,54
al, as mulheres usam menos negação múltipla (a forma estigmatiza- Cantídio 0,52
da) do que os homens da mesma classe. Podemos demonstrar esse Bira 0,51
efeito com dados do português, que aparecem na Tabela 4. Esses 0,48 Marlene
dados se referem ao fenômeno de desnasalização das vogais e diton- 0,45 Hilda
gos finais em português, como por exemplo a variação de pronúncias 0,40 Elvira
como onti, garage, chegaru para ontem, garagem, chegaram. Os Waldécio 0,39
dados vêm da amostra do projeto Competências Básicas do Portugu- 0,37 Lúcia
ês, pesquisa feita no Rio de Janeiro em 1976-77 sob a direção de 0,31 Beth
Miriam Lemle e Anthony Naro. Sendo a forma que mantém a nasal 0,27 Vanilda
o padrão, os resultados mostram que as mulheres usam menos a for- 0,24 Inf. 2
ma não-padrão do que os homens. 0,12 Sônia

Tabela 4. Desnasalização no português do Brasil, por sexo do falante Todos esses exemplos indicam a validade da hipótese de que a
(Guy 1981, p. 233) diferenciação interna de uma comunidade reside fundamentalmente
Sexo % desnasalizada N peso no nível de uso geral, isto é, diferenças no parâmetro input entre
Masculino 74% 1300 0,61 falantes ou subgrupos da comunidade. Mas ainda temos uma coisa a
Feminino 59% 1425 0,39 considerar. Qual a evidência CONTRA a existência de diferenças de
efeitos de contexto dentro de uma comunidade? Pela hipótese que
Contudo, resultados como os que aparecem nas Tabelas 3 e 4 sugeri, as pessoas que formam uma comunidade de fala devem com-
ainda nos deixam com uma pergunta. Essas tabelas não mostram resul- partilhar os mesmos efeitos de contexto nos processos variáveis, en-
tados individuais para cada falante, só apresentam números para todos tre os traços lingüísticos que definem a comunidade. Paradoxalmente,

36 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


estudos quantitativos de variação lingüística muitas vezes não cos- vamente alta, podemos definir e distinguir grupos de falantes que são
tumam comentar este assunto, porque o resultado normalmente é socialmente realísticos e lingüisticamente coerentes: são as comunida-
negativo, e bem geral. Quando se compara os indivíduos num estu- des de fala. Os dados indicam que tais comunidades mantêm uma
do, o resultado mais comum é de que as diferenças entre eles nos homogeneidade lingüística interna que é relativamente alta, se definir-
pesos relativos não sejam estatisticamente significativas. Mas ain- mos isso em termos de efeitos de contexto compartilhados. Existem,
da assim devemos citar alguns estudos que testavam explicitamente sim, diferenças significativas dentro das comunidades na freqüência de
esta questão. uso de variáveis lingüísticas: isso vem sendo evidente desde as primei-
Para isso, voltarei às minhas pesquisas sobre o apagamento de ras pesquisas sociolingüísticas. Mas esta diferenciação, que caracteri-
oclusivas coronais finais em inglês. Já vimos na Tabela 2 um dos zamos como diferenças de input, não deve obscurecer uma coerência
efeitos principais nesse processo, o contexto seguinte, que é diferen- mais fundamental, que caracterizamos em termos de uma gramática
te na Filadélfia e em Nova Iorque. Mas além de mostrar a diferença compartilhada. Nos processos variáveis, descrevemos esta coerência
entre essas duas cidades, a tabela indica também a consistência den- em termos de efeitos de contexto com os correspondentes pesos rela-
tro de cada cidade. Como mencionamos, esse estudo e outros mos- tivos. Essa coerência está ligada à verdadeira identidade da comunida-
tram que pausa seguinte é contexto favorável a apagamento em Nova de de fala: compartilhar os traços lingüísticos do grupo é uma das
Iorque, mas marcadamente desfavorável na Filadélfia, e este efeito é práticas que definem e criam o grupo, e que mostram quem pertence
sistemático na população: a proporção de falantes em cada lugar que ao grupo e quem não pertence. Ser membro de um grupo é, em parte,
mostra o efeito típico do lugar se aproxima aos 100%. Na Tabela 2, acidental, determinado pelas circunstâncias de nascimento e residên-
vimos que pausa era o contexto mais conservador para 95% dos cia, e pelo acesso comunicativo a outros. Mas é também parcialmente
filadelfianos, e NÃO era para 100% dos novaiorquinos. intencional, determinado pelas nossas atitudes sociais e lingüísticas,
Um segundo efeito de contexto importante nesse processo é pelas nossas decisões sobre com quem queremos nos associar, e quem
morfológico: os –t,d finais que representam o marcador do passado queremos emular. Adotar a gramática da comunidade é, em parte um
dos verbos são apagados muito pouco, em comparação com os seg- ato de identidade.
mentos em outras palavras. Uma palavra como west ou band, então,
apaga bem mais do que uma palavra como messed (passado do verbo
mess, ‘mexer’) ou banned (passado do verbo ban, ‘proibir’). Uma Referências bibliográficas
terceira categoria, de verbos irregulares no passado, apaga com uma
taxa intermediária: palavras como lost, sold, left, etc. (em que há BOBERG, Charles. 2000. Geolinguistic diffusion and the U.S.-Canada
mudança de vogal no passado junto com o sufixo de –t ou –d) são border. Language Variation and Change 12, 1-24.
alvo de apagamento mais do que outros verbos, mas menos do que CAMERON, Richard. 1993. Ambiguous agreement, functional
não-verbos. compensation, and nonspecific tú in the Spanish of San Juan,
Em um estudo meu deste fenômeno, formulei um modelo quan- Puerto Rico and Madrid, Spain. Language Variation and Change
titativo deste efeito e testei as previsões do modelo para os efeitos 5, 305-334.
observados destes contextos em 51 informantes da Filadélfia. O LABOV, William. 1966. The Social Stratification of English in New
modelo foi estatisticamente consistente para 49 deles, e rechaçado só York City. Washington, DC: Center for Applied Linguistics.
para dois. Como eu usava um critério estatístico de 5% neste estudo, GUY, Gregory R. 1980. “Variation in the group and the individual:
isso quer dizer que os dois casos que tinham pesos diferentes estão the case of final stop deletion”. William Labov (org.), Locating
bem dentro das chances de erro amostral. Isso significa que, se todo Variation in Time and Space, p. 1-36. New York: Academic
falante usasse exatamente os mesmos pesos, ainda acharíamos amos- Press.
tras do tamanho que tive em que os efeitos pareciam ser diferentes GUY, Gregory R. 1981. Linguistic Variation in Brazilian Portuguese:
em aproximadamente 5 casos de cada 100 testes. De fato, foi o que Aspects of the phonology, syntax, and language history. Sydney:
observamos em dois casos dos 51. Estes dois, portanto, não contam University of Sydney, Department of Linguistics.
como contra-exemplos; ao contrário, contam como comprovação de SCHERRE, Maria Marta Pereira. 1988. Reanálise da Concordância
que os dados são normais e não falsificados. Concluiríamos que este Nominal em Português. Tese de doutorado, UFRJ.
efeito de contexto também é uniforme dentro da comunidade. WOLFRAM, Walt. 1969. A Sociolinguistic Description of Detroit
Negro Speech. Washington, DC: Center for Applied Linguistics
V. Conclusões ZILLES, A.M.S. 1994. “Projeto VARSUL: banco de dados e proje-
Chegamos então ao fim da palestra e às conclusões desta expo- tos de análise.” In: Cadernos do Instituto de Letras, v.12:29-31.
sição. Vemos que usando os critérios de traços lingüísticos e atitudes Porto Alegre, UFRGS.
compartilhados, junto com densidade de comunicação interna relati-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 37


A gramática : o uso e a norma
Maria Helena de Moura Neves
Universidade Estadual de São Paulo - CAr. / CNPq

ABSTRACT: The connection between use and norm is evaluated in its relationship with the period of time, starting from the traditional relationship
between norm and “auctoritas” as well as between norm and “urbanitas”. The study puts forward the idea that the decision on prescriptive norm cannot
result from anybody’s authority.
PALAVRAS-CHAVE: gramática; uso lingüístico; norma prescritivista; padrão lingüístico.

Num confronto entre uso e norma que se pretenda iluminado ses sabores falava), não foi aí que deixamos de colocar autoridade nos
por princípios de uma ciência lingüística, o primeiro pecado seria “clássicos” portugueses (clássicos entre aspas, porque aí estavam ro-
fixar as bases do exame naquele esquema antigo clássico de associa- mânticos como Herculano, Garrett, Camilo, e aí estava Eça). A revira-
ção de uso (usus) com rusticidade (rusticitas) e de norma (auctoritas) volta foi muito depois, com certeza ligada à introdução da disciplina
com urbanidade (urbanitas). Sabemos que a marca desse fosso entre Lingüística nos Cursos de Letras. Basta examinar os livros didáticos a
autoridade de modelos e uso popular, entre garantia na fixidez e partir de meados do século XX1 e acompanhar a mudança em relação a
corrupção na mudança, permaneceu na tradição, e o que é mais inte- uma Antologia Nacional (de Carlos de Laet e Fausto Barreto) ou a um
ressante, na própria visão do povo, que, como percebemos claramen- Trechos seletos (de Sousa da Silveira). Note-se bem que, nas Observa-
te nos dias de hoje, fala como pode, mas considera e aceita que não ções gerais da Reforma Capanema, de 1941, ainda se lê que o profes-
fala como deve, quando não tem o padrão autorizado. sor deve zelar pela língua, “protegê-la das forças dissolventes que es-
No percurso dessa anteposição de forças, até mesmo a fixação tão continuamente a assaltá-la” (grifo meu).
do padrão da língua no uso de bons escritores contemporâneos – isto A desvinculação se deu atabalhoadamente: povoaram-se os li-
é, a fixação do bom uso sem vinculação com um determinado perío- vros didáticos de textos de autores contemporâneos, de crônicas, e,
do do passado – foi uma conquista. Com a desvinculação do passado até, de histórias em quadrinhos, que reproduziam, em balões, a língua
e a transposição do bom uso contemporâneo em norma, continua a falada da conversação. Entretanto, o que se apresentava como uma
imposição de padrões, continua a valorização de modelos, mas um total liberação de parâmetros instituídos não encontrava contraparte na
par componente daquele fosso clássico perde posição: a relação de condução das lições (especialmente lições de gramática) que acompa-
uso (usus) com modernidade (modernitas) e de autoridade (auctoritas) nhavam esses textos. Mantinha-se uma gramática de paradigmas, pos-
com “antiguidade” (vetustas). tos agora apenas como esquemas, desacompanhados de um discurso
Preciso fazer um parêntese para dizer que a mudança lingüística é normativo de orientação de emprego, algo como um molde de rótulos
obviamente reconhecida por qualquer usuário atento da língua. Vejamos de categorias a ser distribuído pela superfície das ocorrências. Com
que já dizia Dante (De vulgari eloquentia I, IX, 6-11, apud Schlieben- tanta teoria despejada nos livros e nas aulas de lingüística nas universi-
dades, no entanto o que os manuais didáticos ofereciam – e foram
Lange, 1994) que:
oferecendo seguidamente – eram lições vazias, exercícios mecânicos,
a) uma língua não pode ser durável (durabilis) porque os seres
uma gramática pífia. Foi a partir daí que a comunidade de falantes
humanos também não o são;
começou a pedir socorro, com base neste raciocínio: de que servem
b) as línguas não são contínuas (continuae), o que significaria
aulas de língua portuguesa se não só não fazem refletir sobre a língua
que elas mudam em saltos;
como também não oferecem ganho social, porque não logram colocar
c) as línguas variam como os costumes e os hábitos (mores et
o indivíduo na “aristocracia” da linguagem?
habitus), isto é, elas se comportam como os outros objetos culturais
Quando se diz - como disse Luft (1985, p.23) - que “a verda-
socialmente constituídos;
deira gramática” é “flexível” e que a disciplina normativa “tende à
d) as línguas não podem ser fixadas nem pela natureza nem
fixação e inflexibilidade, portanto à morte”, e, ainda, que “a Gramá-
por veredito jurídico (nec natura nec consortio), e ganham sua esta- tica completa de uma língua deveria registrar a variabilidade e evolu-
bilidade pela tradição (beneplacitum) e proximidade local ( locali ção”, com certeza não fica implicado que a norma é um conceito a ser
congruitate). descartado. Pelo contrário, a própria “variabilidade e evolução” - que
Lembremos, entretanto, que foi a ciência lingüística que, com a sociolingüística traduz em “variação e mudança” - é o suporte da
marco em Coseriu, mais que verificar e explicitar mudança na vida consideração da existência de diversos modos de uso, não só em lu-
das línguas, colocou a variação lingüística como uma manifestação gares e em tempos diferentes, mas, ainda, em situações diferentes
evidente da natureza e da essência da linguagem. (entendida situação não apenas como contexto, mas como o conjun-
Especialmente na história da língua portuguesa no Brasil, te- to que se assenta nos próprios sujeitos das enunciações, com toda a
mos ingredientes para ilustrar essa alteração do confronto entre uso e história, a natureza e o estatuto que eles carregam).
norma, menos preso à crença em uma invariabilidade das línguas. Ora, é a própria consideração da funcionalidade da língua que
Houve um Brasil colônia submetido política, jurídica e culturalmen- leva à consideração de que a noção de norma (e não apenas no sentido
te a Portugal, e, trezentos anos depois, um Brasil independente, ávi- que lhe dá Coseriu, mas também no sentido de modelo) é inerente à
do da construção de uma identidade nacional e disposto a um con- noção de uso lingüístico. A primeira ressalva, entretanto – que é liga-
fronto com a antiga metrópole nas questões de cultura e língua, os da, também, à consideração da funcionalidade da língua –, é que, se as
pontos nevrálgicos da afirmação de uma nacionalidade. Era, afinal,
uma nacionalidade que nascia marcante: nova nas cores das muitas
raças, nova nos sabores das muitas selvas).
Entretanto, com toda a retórica dos nossos autores românticos 1
Aponte-se, nos anos 60, o desenvolvimento da etnometodologia, com
nacionalistas (especialmente Alencar, que em nome dessas cores e des-
Dell Hymes, Gumperz, Erickson.

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normas emergem naturalmente dos usos lingüísticos, exatamente por 1. O prefeito Miguel Colasuonno deixou o lbirapuera e, durante toda
isso a elas não pode vincular-se nenhuma noção de autoridade a manhã assiStiu O desenrolar da tragédia. (FSP)
(auctoritas): é do próprio uso (usus) que emergem os padrões de do que
adequação que compete observar e seguir, se o que se busca é o bom 2. O prefeito Miguel Colasuonno deixou o lbirapuera e, durante toda
desempenho em termos socioculturais. São padrões que “gramáticos” a manhã ASSISTIU AO desenrolar da tragédia.
poderão registrar, examinando-lhes a natureza e as condições de uso, Já que, na essência, ele quer dizer que Fulano “viu o desenrolar
mas que nenhum gramático poderá instituir como modelo, ditando- da tragédia”.
os com sua autoridade. O fato de que a gramática codificada na tradição diz que assistir é
Nem linguisticamente nem socioculturalmente fica aberto terre- um verbo transitivo indireto não é garantia de que a relação que hoje os
no para que indivíduos (por mais especialistas que sejam) pontifiquem falantes sentem que estabelecem entre assistir e televisão, por exemplo,
sobre qual seja a norma legítima. seja uma relação codificável de modo indireto, intermediada por prepo-
Nas diferentes épocas as obras gramaticais diferiram, e , a prin- sição. Numa observação jocosa, poderíamos até dizer que, com certeza,
cípio, pode-se entender que elas tenham estado, a cada momento, o que se assiste hoje não são as mesmas coisas a que se assistia quando
respondendo às necessidades sociais. Disso temos certeza quando os manuais registraram pela primeira vez – e para sempre – que a prepo-
pomos em consideração a gramática alexandrina, vista no seu modelo, sição é obrigatória, bem como que o verbo assistir “não vai” para a voz
a Téchne Grammatiké de Dionísio o Trácio. Diz o autor que gramática passiva, embora todos saibam que se diz normalmente.
é “o conhecimento prático dos usos correntes dos poetas e prosado- 3. O recital FOI ASSISTIDO por cerca de 1.000 pessoas. (FSP)
res” (Uhlig, 1883) (cf. Clairis, p.37; Lopes, p.183). Com efeito, no A primeira lição que se tira desse exercício é que o ponto de
contexto em que se codificou (final do século II, início do século I a.C.) partida – e o de chegada – é semântico, fato reconhecido e tratado
a obra tinha de definir-se como centrada na linguagem dos escritores nos estudos de gramaticalização, especialmente na consideração da
modelares, já que para isso ela se instituía, sob “ameaça” do abandono unidirecionalidade do processo (Heine et alli, 1991). Isso só confir-
dos usos helênicos por pressão das línguas “bárbaras” adventícias. A ma que a mudança está a serviço da busca de mais exata expressão, e,
finalidade é a perpetuação dos cânones do grego clássico para evitar a conseqüentemente, de mais eficiente uso da linguagem. Lembre-se
“barbarização”, o “abastardamento” da língua. Já não há tanta certeza que o sujeito de assistir é, no caso, estabelecido como experimentador
dessa necessidade de natureza prescritiva naquele grande edifício gra- de um processo (o processo de ver), e essa função semântica não é,
matical que Apolônio Díscolo (Schneider e Uhlig, 1986-1910) cons- em princípio, de codificação indireta.
truiu já praticamente no século II d.C, e, no entanto, na sua Sintaxe Outra lição importante é que qualquer prescrição que se apóie
também se diz que a finalidade da obra é explicar os textos poéticos numa categorização de entidades gramaticais em unidades discretas
(Neves, 1987). não terá sustentação, já que o caráter vivo da linguagem implica
E por aí adiante, temos de pôr em dúvida se, de fato, as obras movimentação das peças que se arranjam, sendo o rearranjo do con-
gramaticais atendem às necessidades sociais, ou, pelo menos, se há algu- junto uma solução - e não um problema - resultante da variação dos
ma agilidade nessa relação entre as necessidades da sociedade e o produto usos, a serviço da eficácia do uso lingüístico.
posto à sua disposição. Fixemo-nos, especificamente, nos primórdios da Quem diria que não são eficientes intensificações como as que
atividade de codificação da gramática no Brasil, e veremos, em 1536, se fazem nestas amostras do registro distenso, em que sintagmas nomi-
Fernão de Oliveira com uma gramática que passa de leve, sem muita nais (preposicionados ou não) se usam para efeito de intensificação
sistematicidade, e saborosamente, sobre alguns fatos da linguagem, e qua- positiva ou negativa?
se concomitantemente, em 1540, João de Barros (segundo consta, com 4. Ficamos fofocando a noite inteira, e ela ria pra burro das nossas
muito mais sucesso), com uma obra prescritivista que vê na gramática abobrinhas.(FAV)
“um modo certo de falar e escrever, colheito do uso e autoridade dos 5. Passada a zonzura, percebeu que fazia um calor de matar.(VER)
barões doutos”. 6. Tivemos uma sorte dos diabos. (ACM)
Uma resposta ao social – mas, em se tratando de linguagem, na 7. Também o bicho era feio mesmo; feio de doer. (CR)
sua forma mais indesejável, que é a submissão ao oficializado – vemos 8. Achava o Beto um sujeito lindo de morrer. (BE)
na massificação que se verificou logo após a instituição arbitrada e 9. Não brinca comigo, Bocão, é tarde pra cacete. (FSP)
legalizada da Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB). No bolo de 10. Eu curtia horrores os dois minutos que durava o café da manhã.
gramáticas subseqüentes a essa instituição, isto é , a partir dos anos 60 (FAV)
do século XX – ressalvadas as honrosas exceções – pouco se poderia 11. Também foi um tratamento difícil barbaridade. (AVL)
encontrar que não fosse a apresentação de paradigmas (à moda da 12. Durante todo o tempo que conversamos, não disse bolacha. (AL)
velha Téchne Grammatiké), só que agora sob o molde da NGB. 13. Eles não entendem patavina de cascalho. (CAS)
Se digo paradigmas, entretanto não digo modelos, no sentido de 14. Mas o índio não entendeu bulhufas. (BP)
“exemplaridade”. As gramáticas – voltadas para uma aplicação didáti- 15. Mas eu não me incomodava um pingo com o Bergman. (DE)
ca, escolar – passaram a cumprir o papel “social” de rechear a propos- Ou que não é eficiente o uso destes sintagmas, em que adjetivos
ta oficializada, a NGB – que é um simples recorte de campo, um referentes a cores (fortes) ou referentes a qualidades extremas também
se usam como intensificadores?
esquemão, um “molde”, como eu já disse – com definições e exem-
16. ROXO de raiva, o capitão decidiu escolher três dos retardatários
plos. O que resta de “exemplaridade” está exatamente nos exemplos,
para punir com 200 pranchadas cada um. (VPB)
nos quais se mantêm tanto urbanitas como auctoritas, mas já não há
17. Ficava VERDE de raiva. (VB)
lugar para vetustas, isto é, para o culto da “antigüidade”. Já ninguém
18. Eu estava MORTO de fome. (CEN)
ousaria falar em mudança lingüística como abastardamento ou deca-
19. Tá desse jeito, PODRE de bêbado... (AS)
dência. Já ninguém diria uma frase como a de Cândido de Figueiredo
20. Eu presenciava tudo calado, MOÍDO de dor na consciência. (REL)
(1900, p. 7): “se da decadência da língua é lícito inferir a decadência da
21. João Soares não respondeu, CAÍDO de sono. (V)
respectiva nacionalidade, Portugal tem decaído muito”.
O difícil é o corte de fronteira, tradicionalmente decidido
Por exemplo, pode-se perguntar por que não reconhecer, nas cir-
indiscriminadamente por auctoritas, pontificando-se com o “pode”
cunstâncias de uso efetivo, as evidências de que um falante, com certeza, diz
ou “não pode”, o “deve” ou “não deve”, o “legítimo” ou o “não legí-
melhor o que quer dizer usando.
timo”, sem indicação de critérios. Até se poderia propor que, no ge-

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ral, haja três grandes tipos de “desvios” da norma, e que, de certo Um conhecimento mínimo das descobertas da sociolingüística,
modo, pela diferente natureza, eles correspondam a diferentes julga- uma noção mínima dos conceitos de variação e mudança basta para alijar
mentos de “mérito”. das obras gramaticais a colocação explícita de preconceitos contra a
- O primeiro é aquele em que a forma recomendada é modernitas. Temos de confessar, entretanto, que não há ainda lugar
estabelecida por convenção pública e tem força de lei, caso, por exem- para a rusticitas: é pacífica a idéia de que, lingüisticamente, não existem
plo, do emprego do hífen com prefixos, do uso de maiúsculas, e, em comunidades homogêneas e de que a heterogeneidade é inevitável, mas
geral, de ortografia; nesse caso, existiriam, propriamente transgres- é menos pacífica a idéia de que, dentro dessa heterogeneidade, qualquer
sões (obviamente, não de cunho lingüístico). estrato seja legítimo. A própria noção natural das comunidades de que
- O segundo é aquele em que, de fato, não se podem prover a língua vernácula é fator de aglutinação social, é símbolo da consciência
mecanismos lingüísticos que respondam por usos vigentes, como o nacional, leva à noção de que deve existir um padrão uniforme que
emprego de uma categoria gramatical no ponto de distribuição de ou- constitua a norma de eleição – uma norma que não será rústica, que há de
tra: por exemplo, o emprego do acento grave, indicador de crase, em ser urbana- à qual deve submeter-se aquele que deseja ser visto como
um elemento a que, naquele ponto de distribuição, só pode ser prepo- detentor do uso lingüístico de prestígio.
sição, ou casos como o emprego de há (verbo) por a preposição, ou Assim, não é legítimo descartar simplesmente prescrição, como
vice versa, em frases como Estamos HÁ 8 meses da Copa do Mundo, ou se não fosse uma realidade – e legítima – o enfrentamento da pressão
em Eles chegaram A 8 meses; nesses casos, existiriam, realmente “aber- da norma pelo falante da língua. Por isso, pelo vigor da noção de
rações” lingüísticas. norma, cabe ao lingüista assumir o seu papel, que não é apenas o de
- O terceiro grupo, entretanto – que é numericamente muito combater – sem mais – a atitude prescritivista. Ele é quem sabe, em
significativo - nada mais representa que variação, a mais cabal prova cada caso de “desvio” (na verdade, de variação), refletir sobre o que
da vida das línguas: diferentes modos de dizer as coisas, em diferen- ocorre, e, assim, não lhe é lícito deixar o campo para quem venha
tes registros, em diferentes situações, atendendo a diferentes inten- responder a essa necessidade alheado de compromisso com a ciência
ções e diferentes projeções de interpretação. Caracterizado especifi- lingüística. O importante é que, com isso, vamos inverter a direção:
camente por sempre novas criações (seja lexicais, seja sintáticas, seja
vamos partir dos usos (explicá-los, do ponto de vista lingüístico, que
de uso funcional de itens lexicais), esse grupo tem de entrar em outra
é o da ação, e do ponto de vista sociocultural, que é o da valoração),
ordem de apreciação.
e daí é que há de surgir, naturalmente, a norma (ou as normas), não
Ora, não se pode entender que seja na submissão a regras rígi-
da autoridade de quem quer que seja, coloque-se no passado ou no
das estabelecidas em empregos registrados em outras épocas, própri-
presente essa fonte de autoridade.
os de outros gêneros de discurso e pertencentes a outros registros
lingüísticos, que um falante, numa situação particular - e sempre úni-
Referências bibliográficas
ca - de comunicação obterá condições de exercer plenamente suas
“capacidades” de usuário da língua, e chegar a uma comunicação
BARROS, J. Gramática da língua portuguesa. Lisboa: Tip. De
eficiente, fechando com sucesso circuito tão complexo como o da
interação verbal. Ludovico Rotorigio,1540.
Por isso, exatamente, a questão da gramaticalização - vista tanto HEINE, B. et alii. Grammaticalization: a Conceptual Framework.
na diacronia como na sincronia - encontrou abrigo tão natural nos es- Chicago: Univ. of Chicago Press, 1991.
tudos funcionalistas da linguagem. Obviamente não foram os FIGUEIREDO, C. Lições práticas da língua portuguesa. Vol. I . 3
funcionalistas que descobriram a gramaticalização. Esse processo ed. Lisboa: Ferreira Editora, 1900.
estruturador da mudança lingüística, hoje tão estudado, especialmente LOPES, O. Construções concessivas: algumas reflexões formais ló-
quanto à sua caracterização em organizações seriadas, já foi natural gico-pragmáticas. Universidade do Porto: Mimeo, s/d.
objeto de reflexão de pensadores argutos, por exemplo Cassirer (1923- LUFT, Celso Pedro. Moderna Gramática brasileira. Porto Alegre:
1929, p. 159 apud Schlieben-Lange, 1994, p. 236), que observou que Globo, 1985.
“a expressão de relações de espaço está intimamente ligada a determi- NEVES, M. H M. A vertente grega da gramática tradicional. São
nadas palavras orgânicas, entre as quais as palavras que designam par- Pulo: Hucitec / Editora Universidade de Brasília / FAPESP, 1987.
tes singulares do corpo humano ocupam o primeiro lugar.” Entretanto, OLIVEIRA, F. Gramática da linguagem portugueza. Lisboa: Germão
o lugar que a explicitação desse processo ocupa na teoria funcionalista Galharde, 1536.
é uma importante evidência de que não há como desconhecer as ques- SCHLIEBEN-LANGE, B. Reflexões sobre a pesquisa em mudança
tões ligadas à mudança e à variação lingüística, e isso não apenas no lingüística. D.E.L.T.A., v. 10, n. esp., p. 223-246, 1994.
sentido de detectar os processos que se verificam em uma dada língua, SCHNEIDER, R., UHLIG, G. Grammatici graeci. Leipzig: Teubner,
mas especialmente no sentido de compreender o princípio geral que 1867-1910.
sustenta a possibilidade da comunicação pela linguagem. UHLIG, G. Dyonisii Thracis Ars Grammatica. Leipzig: Teubner, 1883.

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Mesas Redondas
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Mudanças lingüísticas na România
Célia Marques Telles
Universidade Federal da Bahia

RÉSUMÉ: Le Grupo de Filologia Românica, dirigé par Nilton Vasco da Gama, fait des recherches qui analysent le procès de formation de quelques
caracteristiques des langues romanes. Les deux directions des études sont les fondaments de l’investigation – le texte – qui est à l’origine des éditions
critiques preparées. L’investigation des changements linguistiques ne s‘ éloigne du texte, le but le plus noble et le plus autentique de la Philologie.
PALAVRAS-CHAVE: Línguas românicas, mudanças lingüísticas; texto

Ao considerar-se que a Filologia estuda o fato cultural e que a fessor Nilton Vasco da Gama, a partir do enfoque da lexicografia em
língua é um dos elementos da cultura do homem, evidencia-se que os parte dos cursos de Filologia Românica, vem traçando um breve esboço
estudos filológicos tanto se ocupam dos textos escritos, como da da história da lexicografia francesa, comentando algumas das etimologias
língua falada. Desse modo, a base para o desenvolvimento das pesqui- justas, parcialmente justas, falsas e obscuras propostas por G. Ménage
sas em Filologia Românica é a noção de que a língua é um ser histórico no seu Dictionnaire étymologique ou Origines de la Langue Française.
e de que a sua história se confunde com a história do povo que a fala. Tece, desse modo, algumas considerações a respeito de uma das mais
A pesquisa em Filologia Românica na Universidade Federal da controvertidas figuras no campo da lexicografia no século XVII: Gilles
Bahia sempre privilegiou duas vertentes, o estudo das mudanças lin- Ménage. Célia Marques Telles estuda, a partir de documentos da litera-
güísticas e o das edições críticas de textos. No sentido de que as duas tura de viagens em quatro línguas românicas tanto o discurso desses
perspectivas são inseparáveis lembre-se o que já foi dito em outras textos, como as relações grafemático-fonéticas que permitem documen-
ocasiões e que se pode resumir dizendo dever ser o trabalho filológico tar neles o registro que corrobora a mudança fonética em processo,
acompanhado de uma tomada de consciência dos seus processos e das acompanhando a grafia das consoantes africadas e fricativas palatais em
limitações que eles não permitem ultrapassar. Realmente, não é possí- textos portugueses e espanhóis de finais do século XV a fins do século
vel distanciar-se daquilo que é o elemento fundamental do texto: a XVI. Teresa Leal Gonçalves Pereira estuda processos de gramaticalização
língua. E, ao enfocar-se a língua, é preciso considerar a problemática na morfologia verbal e relações grafemático-fonéticas também a partir
da natureza tempo-dependente (“tipe-dependent nature”) do sistema de textos quinhentistas.
lingüístico (Thibault, 1996:80-110). Nesse enfoque de interfaces, duas A outra linha de pesquisa, a Crítica Textual, acha-se alocada na
perspectivas podem ser consideradas: na primeira, o da mudança lin- área Teorias e Crítica da Literatura e da Cultura. Evidencia-se, assim,
güística, o texto é testemunho da língua; na segunda, a da crítica textu- pela distribuição nas duas áreas a compreensão de que os estudos
al, a língua é apenas um dos elementos do texto, embora o mais impor- filológicos, como estudos da cultura, sempre se situam sobre as duas
tante deles, pois, o texto é estruturado pelas possibilidades de uso da vertentes: a da descrição lingüística e a da exploração dos textos.
língua. (Telles, 2001). A linha Crítica Textual estuda os documentos relacionados
A linha Mudanças lingüísticas na România, inserida na área de com aspectos culturais do Recôncavo Baiano, visando à edição crítica
Lingüística Histórica enfoca especificamente o tratamento lingüístico de textos manuscritos e de textos modernos. Examina e edita textos
do texto e estuda dos elementos básicos da Romanística, buscando quinhentistas a fim de acompanhar a mudança em processo da língua
analisar fatos da formação das línguas românicas em diferentes níveis no seu momento de cristalização. Dedica-se, ainda, à análise e edição
lingüísticos. Desenvolvem-se dentro dela dois projetos coletivos: de um texto em letra gótica: o Libro de açedrex, dados e tablas de
• Estudo Diacrônico de Fenômenos Lingüísticos da România, Alfonso X. Os projetos distribuem-se em dois grandes programas: o
onde se faz o levantamento de fatos comprobatórios das mudanças Programa Edição Crítica da Obra de Arthur de Salles e o Programa
lingüísticas na România, especialmente a partir de textos quinhen- Edição de textos manuscritos.
tistas. O primeiro abarca seis projetos, um deles, participando de
• Estudos sobre a Lexicografia Românica, onde são desenvol- Projeto Integrado, com financiamento do CNPq, outro com financia-
vidos estudos diacrônicos sobre a formação do léxico românico. Por mento de bolsas de iniciação científica (PIBIC/CNPq).
outro lado, faz-se, também, a análise da historiografia dos estudos 1. Arthur de Salles: o homem e a obra, no qual se faz a análise
lexicais na França, em especial o século XVIII. dos dados obtidos na busca da obra dispersa, que permitem compre-
Nessa linha de pesquisa trabalham três professores, Nilton ender e descrever o homem e entender o processo de construção do
Vasco da Gama, Célia Marques Telles e Teresa Leal Gonçalves Perei- discurso do autor; enfim, preparam-se as edições crítico-genéticas,
ra. Acham-se desenvolvendo teses de doutorado dentro dela, três criticas e semidiplomáticas da obra do autor.
alunos: José Raimundo Galvão (orientado por Célia Marques Telles), 2. A Cultura Baiana: visão de Arthur de Salles nas cartas a
Samantha de Moura Maranhão (orientada por Teresa Leal Gonçalves Durval de Moraes, onde se procede à análise do registro dos fatos que
pereira) e Gustavo Ezequiel Etkin (orientado por Célia Marques Telles) marcaram a atividade cultural na Bahia, a partir da correspondência
que estudam a descrição do léxico românico e aspectos da evolução entre A. de Salles e D. de Moraes, na tentativa de procurar analisar a
semântica de formas românicas. Os trabalhos de mestrado, de modo cultura baiana na visão de Arthur de Salles. Os resultados desse pro-
geral estudam a descrição do vocabulário do português medieval, do- jeto são confrontados com aqueles do projeto integrado Resgates da
cumentado nas cantigas de escárnio e de maldizer. Em 2000 foi defen- memória cultural: acervos, imagens, identidades.
dida uma dissertação que estava sendo preparada segundo esse enfoque, 3. Estudo do vocabulário de Arthur de Salles, trata-se da reto-
a de Aurelina Ariadne Domingues Almeida, orientada por Nilton Vasco mada do estudo sistemático do vocabulário de Arthur de Salles. De-
da Gama (Almeida, 2000). senvolve análises e classifica o vocabulário de Arthur de Salles, a
Quanto ao trabalho desenvolvido pelos docentes têm-se concen- partir de cada uma das suas obras publicadas ou das edições que
trado quer na descrição funcional das mudanças, quer no estudo vierem a ser preparadas de sua obra dispersa.
grafemático-fonético, quer na análise das estruturas discursivas. O pro- O segundo programa, Edição de textos manuscritos, engloba

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quatro projetos, um coletivo e três individuais. Essa é a atuação do Grupo de Pesquisa de Filologia Românica,
4. Edição de Manuscritos dos Séculos XVIII e XIX, que prepara hoje cadastrado no Diretório de Pesquisa do CNPq, que tem como
edições de manuscritos da Comarca de Santo Amaro da Purificação e líder o Prof. Dr. Nilton Vasco da Gama e conta com a colaboração de
da Instrução Pública da Bahia. Ao lado dessas edições são feitos quatro doutores, três mestres, um graduado. Contam-se, além disso,
estudos que enfocam aspectos culturais ligados à documentação as- ao todo, sete doutorandos, oito mestrandos, quatro bolsistas de
sim como fatos da língua registrados nesses documentos. iniciação científica, um monitor, como se acha distribuído no quadro
Cada um dos três projetos individuais desenvolvidos atende às anexo.
especificidades da experiência profissional dos respectivos pesquisa-
dores. São eles:
5. Edição de Manuscritos do século XVI da BNL: “Libro Uni- Referências bibliográficas
versal de derrotas...” de Manoel Gaspar, de Célia Marques Telles,
no qual o objetivo é preparar a edição crítica de um texto não literário TELLES, Célia Marques. 2000. Mudanças lingüísticas e Crítica Textu-
quinhentista, bilíngüe, comparando o discurso em língua portuguesa al. Estudos Lingüísticos e Literários, Salvador, v. 25-26. No prelo.
com aquele em língua espanhola. Além disso, faz-se o estudo THIBAULT, Paul. 1996. Re-reading Saussure: the dynamics of signs
grafemático-fonético da scripta dos roteiros em língua portuguesa e in social life. London: Routledge. Cap. 4, p. 80-110. Dissertações1
em língua espanhola. ABBADE, Celina Marques de Souza. 1995. Três campos lexicais no
6. “Libro de Açedrez, dados e tablas” de Alfonso X: manuscri- vocabulário do Livro de Cozinha da Infanta D. Maria. Salvador:
to do século XIII, de Albertina Ribeiro da Gama, no qual se busca fazer UFBA/PPGLL. 2v. Orient. pela Profa. Célia Marques Telles.
uma edição comentada de texto em letra gótica (códice j.t.6 da Biblio- ALMEIDA, Aurelina Ariadne Domingues. 2000. Vocabulário
teca do Escorial), datado do século XIII, proveniente do scriptorium onomasiológico do cancioneiro satírico de Afonso Eanes do Coton.
de Alfonso X. Toma-se como base a primorosa e rara edição em Salvador: UFBA/PPGLL.
alemão de A. Steiger. ASSUNÇÃO, Lucidalva Correa. 1999. A prosa inacabada de Arthur
7. Edição crítica de um manuscrito do século XVI (n. de cota de Salles: Os “Rincões Patrícios” e outros escritos. Salvador:
3232 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra), de Teresa UFBA/Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística. 209f.
Leal Gonçalves Pereira, no qual se está preparando a editoração se- Orient. pela Profa. Albertina Ribeiro da Gama.
guindo critérios conservadores com o intuito de preservar as caracte- BALDWIN, Elisabeth. 1996. O dote de Mathilde, conto de Arthur de
rísticas lingüísticas do texto e possibilitando as sua utilização para Salles: proposta de edição crítico-genético e estudo. Salvador:
estudos da história da língua. Os estudos da grafia, dos aspectos UFBA/ Instituto de Letras. 242p. Orient. pelo Prof. Nilton Vasco
gramaticais e do vocabulário do texto complementam a leitura crítica. da Gama.
Ressalte-se, ainda, que o resultado dessas pesquisas servem de CAFÉ, Andréia Caricchio. 1995. Uso da preposição a em dois jornais
embasamento para o ensino quer das disciplinas de graduação, sobre- do estado da Bahia. Salvador: UFBA/ Instituto de Letras. 98p.
tudo as de nível profissionalizante (optativas), quer das disciplinas Orient. pela Profª. Teresa Leal Gonçalves Pereira.
oferecidas regularmente aos cursos de Pós-Graduação. CARVALHO, Hilda Maria Ferreira de. 1982. Considerações lexemáticas
A cada uma dessas linhas se acham ligadas três disciplinas a propósitos da tradução portuguesa de Arthur de Salles da tragé-
(princípio geral para todas as linhas do PPGLL). O quadro das disci- dia de William Shakeaspeare, “Macbeth”. Salvador: UFBA/ Insti-
plinas compreende, portanto, três disciplinas em Mudanças Lingüís- tuto de Letras. 114p. Anexos. Orient. pela Profª Maria Luigia
ticas na România: Magnavita Galeffi.
Problemas de Lexicologia e Semântica afetos às Línguas Româ- CARVALHO, Rosa Borges Santos. 1995 . “Poemas do mar” de Arthur
nicas de Salles: tentativa de adição crítica. Salvador: UFBA/ Instituto
Contato de Línguas e Mudanças Lingüísticas na România de Letras. 226p. Anexos. Orient. pelo Prof. Nilton Vasco da Gama.
Tópicos em Diacronia FERREIRA, Permínio Souza. 1996. “Inquirições de D. Dinis”: índices
e três na linha Crítica Textual: e 27 primeiros fólios; edição crítica de um texto medieval notarial
A Edição Crítica de Textos Manuscritos português. Salvador: UFBA/ Instituto de Letras. 148p. Anexos.
A Edição Crítica de Textos Modernos Orient. pela Profª. Drª. Rosa Virgínia Mattos e Silva.
Escritas Cursivas Posteriores ao Século XVI GAMA, Gustavo Ribeiro da. 1995. Arthur de Salles: tradutor de
Atualmente essas disciplinas apresentam as seguintes ementas: Shakespeare?. Salvador: UFBA/ Instituto de Letras. 146p. Ane-
• Contato de línguas e mudanças lingüísticas na România: “Estudo da xos. Orient. pela Profª. Célia Marques Telles.
formação dos sistemas lingüísticos românicos, a partir da covariação GOMES, Vera Lúcia Britto. 1979. A palatalização de t e k no ibero-
existente no latim entre as situações de diglossia latim culto / língua romance. Salvador: UFBA/ Instituto de Letras. 105p. Orient. pelo
latina espontânea e de bilingüismo latino-bárbaro” Prof. Nilton Vasco da Gama.
• Problemas de lexicologia e semântica afetos às línguas românicas: GONÇALVES, Eliana Correia Brandão. 2000. Edição do livro “Poesi-
“Exame dos problemas afetos à análise do léxico, de um ou mais as” (1920) de Arthur de Salles: uma leitura crítica. Salvador:
sistemas lingüísticos românicos”. UFBA/IL/PPGLL. 2v. Orient. pelo Prof. Nilton Vasco da Gama.
• Tópicos em diacronia: “Estudo da formação de línguas românicas, GUIMARÃES, Ana Lúcia Silveira. 2000. Edição diplomática de docu-
em diferentes níveis lingüísticos”. mentos notariais da Instrução Pública da Bahia; manuscrito do
• A edição crítica de textos manuscritos: “Estudo dos elementos im- seçulo XIX. Salvador: UFBA/Programa de Pós-Graduação em Le-
prescindíveis ao estabelecimento crítico de textos do século XIV a tras e Lingüística. 267.f. Orient. pela Profa. Albertina Ribeiro da
XVI, com ênfase especial em textos de língua portuguesa”. Gama.
• A edição crítica de textos modernos: “Elementos básicos para o MARANHÃO, Samantha de Moura. 1997. O vocabulário das recei-
estabelecimento de um texto de tradição impressa”. tas de medicamentos e regimentos relativos à saúde do “Livro
• Escritas cursivas posteriores ao século XVI: “Estudos dos elemen-
tos essenciais à edição diplomático-interpretativa ou semidiplomática
de manuscritos posteriores ao século XVI”.
1
As teses estão sendo desenvolvidas no momento, devendo a primeira
delas ir à defesa em 2002.

44 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


da Cartuxa”. Salvador: UFBA/ Instituto de Letras. 231p. Ane- SOUZA, Genésio Seixas. 1999 Um Roteiro Quinhentista da Carreira
xos. Orient. pela Profª. Drª. Teresa Leal Gonçalves Pereira do Brasil – O décimo segundo roteiro do ms. 1507 da B.N.L.
PEREIRA, Teresa Leal Gonçalves. 1982. Considerações sobre a mu- Salvador: UFBA/Programa de Pós-Graduação em Letras e Lin-
dança lingüística: o vocalismo latino-romance. Salvador: UFBA/ güística. 2v. 360f. Orient. pela Profa. Célia Marques Telles.
Instituto de Letras. 108p. Orient. pelo Prof. Nilton Vasco da SOUZA, Mônica Pedreira de. 2000. Documentos da Coleção Santo
Gama. Amaro relativos a escravos; edição semidiplomática. Salvador:
POGGIO, Rosauta Maria Galvão Fagundes. 1991. Estudo sincrônico- UFBA/Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística. 2v.
diacrônico das orações infinitivas em latim e em português. Sal- 360f. Orient. pela Profa. Célia Marques Telles.
vador: UFBA/ Instituto de Letras. 200p. Orient. pela Profª SOUZA, Risonete Batista de. 1995. Estudo descritivo do vocabulá-
Teresa Leal Gonçalves Pereira. rio de Pero da Ponte. Salvador: UFBA/ Instituto de Letras. 237p.
QUEIROZ, Rita de Cássia Ribeiro de. 1995. “Sonetos” de Arthur de Anexos. Orient. pelo Prof. Nilton Vasco da Gama.
Salles: tentativa de adição crítica. Salvador: UFBA/ Instituto de
TAVARES, Célia Goulart de Freitas. 1986. Alguns aspectos da prosa
Letras. 239p. Anexos. Orient. pelo Prof. Nilton Vasco da Gama.
dispersa e inédita de Arthur de Salles. Salvador: UFBA/ Institu-
REIS, Maria da Conceição Souza. 1996. “O Ramo da fogueira”,
to de Letras. 225p. Orient. pelo Prof. Nilton Vasco da Gama.
obra regional de Arthur de Salles: proposta de edição crítica.
TELES, Maria Dolores. 1998. A obra dispersa de Arthur de Salles
Salvador: UFBA/ Instituto de Letras. 120p. Anexos. Orient.
em: “Nova Revista”, “Bahia Illustrada” e “A Luva”: tentativa
pela Profª. Albertina Ribeiro da Gama.
SANTOS, Arlete Silva. 1999. Edição diplomático-interpretativa do de edição crítica. Salvador: UFBA/ PPGLL. Orient. pela Profa.
inventário dos bens de Antônio Gomes de Souza: manuscrito do Célia Marques Telles.
século XVIII. Salvador: UFBA/Programa de Pós-Graduação em TELLES, Célia Marques. 1982. As categorias de modo, tempo e as-
Letras e Lingüística. 159f. Orient. pela Profa. Albertina Ribeiro pecto em textos românicos do séc. XVI. Salvador: UFBA/ Institu-
da Gama. to de Letras. 190p. Orient. pelo Prof. Nilton Vasco da Gama.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 45


46 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001
O “programa para a história da
Língua Portuguesa – PROHPOR”
Rosa Virgínia Mattos e Silva
Universidade Federal da Bahia/CNPq

ABSTRACT: This paper summarizes origins, formation and implementation of the “Programa para a história da língua portuguesa – PROHPOR”.
This research group is linked at the Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia. It researches in the frame of Historical Linguistics and
of the history of the Portuguese language.
PALAVRAS-CHAVE: Lingüística Histórica, História da Língua Portuguesa, Filologia.

A linha de pesquisa, vinculada ao Departamento de Letras Poggio, em 1996, do Departamento de Fundamentos para o Estudo
Vernáculas e ao Programa de Pós-graduação em Letras e Lingüística do das Letras, do Instituto de Letras.
IL-UFBa, Constituição histórica da língua portuguesa é a reformulação Esse grupo tem tido desde 1992 bolsistas de Iniciação Científi-
da linha anterior Morfossintaxe do português arcaico, inscrita em ca, nunca muito numerosos e, na ordem cronológica são eles:
nosso Curso de Mestrado, iniciado em 1976, linha sob minha respon- Maximiliano Miranda Guimarães, Permínio Ferreira, Fabiana Cam-
sabilidade, como pesquisador individual, de 1976 a 1990 e fundamen- pos, Anna Maria Frascolla Calmon, Alex Simões, Uilton Santos, Síl-
ta o “Programa para a história da língua portuguesa – PROHPOR”. via Silva, Klebson Oliveira, José Mendes. Desses, dois estão se dou-
Em 1990, com outros professores do Departamento de Letras torando: Max Miranda, em Maryland (USA) e Permínio Ferreira, na
Vernáculas – Maria do Socorro S. Netto, Therezinha Barreto e Sônia USP; e já concluiu o seu Mestrado Sílvia Silva. O Grupo também teve
Borba Costa – começamos a nos estruturar no Grupo de pesquisa que e tem bolsistas de Iniciação Científica na UEFS e na UNIFACS, a
viria em 1991 a ser batizado de Programa para a história da língua partir da atuação da Drª. Ilza Ribeiro nessas universidades.
portuguesa – PROHPOR. Reformulamos a linha anterior, para torná- Outro aspecto a destacar na dinâmica do Grupo é o fato de que
la mais abrangente no campo da história da língua portuguesa e assim se iniciou com um doutor, eu própria; em 1994, Ilza Ribeiro se douto-
surgiu a linha Constituição histórica da língua portuguesa. rava na UNICAMP; em 1999 Therezinha Barreto e Rosauta Poggio
Em 1991 se integraram a essa linha e a esse Grupo de pesquisa se doutoraram pelo PPGLL-IL-UFBa – os primeiros doutores de
professores da Universidade Estadual de Feira de Santana (agora tam- nosso Programa de Pós-graduação; em agosto passado, doutorou-se
bém da UNIFACS as duas primeiras): Ilza Ribeiro, que iniciava seu Dante Lucchesi, que em 1993 concluía seu Mestrado na Universidade
doutoramento em diacronia gerativa na UNICAMP; Sílvia Rita Olinda, de Lisboa. Em processo de doutoramento estão Tânia Lobo, na USP,
Tânia Lobo e Dante Lucchesi, logo depois, os dois últimos, concursados com Mestrado também em Lisboa; Sônia Costa e Anna Maria Macedo,
para a UFBa. no PPGLL; Zenaide Carneiro e Norma Fernandes, na UNICAMP. É
Em 1992 nos apresentamos, os oitos antes nomeados, para soli- de notar que a formação acadêmica do Grupo tem se diversificado,
citação de nosso primeiro Auxílio Integrado ao CNPq, com o Programa evitando a endogenia – Universidade (Clássica) de Lisboa; UNICAMP;
para a história da língua portuguesa – PROHPOR. Programa, porque USP; UFRJ têm sido instituições em que os pesquisadores de nosso
reunia um conjunto de Projetos – projetos individuais de cada pesquisa- Grupo têm ido buscar aperfeiçoamento.
dor e um projeto coletivo que resultou em 1996 no livro A ‘Carta de Mestrandos e doutorandos do PPGLL vinculados à linha Cons-
Caminha’: testemunho lingüístico de 1500. tituição histórica da língua portuguesa têm se fixado ao Grupo ou a
Esse Programa de pesquisa, em seu texto inaugural, de 1992, se ele se vinculam enquanto dura a sua pós-graduação. Os que estão
estruturou em quatro campos de trabalho: a. Estudos da morfossintaxe filiados ao Grupo sem vínculo empregatício com a UFBa e em outras
e sintaxe na história do português; b. Fontes para a história da língua universidades são Permínio Ferreira, doutorando-se na USP; Américo
portuguesa no Brasil; c. Construção de um banco de textos Machado Lopes Filho, que defendeu seu Mestrado em março deste
informatizados para a história do português; d. Seminários de for- ano e que tem avançado o seu doutoramento no PPGLL e Juliana
mação contínua dos pesquisadores do grupo. Definiu-se, como arco Soledade Coelho, mestranda com vistas ao doutoramento. Esses dois
de tempo para pesquisa, a língua portuguesa das origens ao fim do últimos, além de seus projetos próprios para a pós-graduação, junta-
período arcaico (meados do séc. XVI), daí infletindo para a história do mente com Sílvia Silva, estão levando à frente um dos Projetos iniciais
português brasileiro. Como objetivo principal, o PROHPOR tem a do PROHPOR, pensado por Dante Lucchesi – o do Banco de textos
reconstrução de aspectos do passado do português, com base em informatizados para a história do português, que ficou em suspenso,
análise de novos dados e de velhos dados reanalisados. não só pela saída de Dante Lucchesi para seu Doutoramento, mas
Ao longo desses dez anos o quadro de pesquisadores vem se também por limitações técnicas.
refazendo, saindo dele Maria do Socorro S. Netto e Sílvia Rita Olinda, Quanto às linhas teóricas do PROHPOR: a. há pesquisadores,
por razões de ordem profissional; e agora o Professor, já Doutor, liderados por Ilza Ribeiro, que, com seus orientandos de Mestrado e
Dante Lucchesi, recém doutorado pela UFRJ e já está credenciado em Doutorado, trabalham no quadro teórico da teoria da gramática
nosso PPGLL na linha da Diversidade lingüística do Brasil. Por outro gerativa (ordem sintática, clíticos); b. no quadro teórico variacionista,
lado, outros pesquisadores entraram no Grupo e, pela via de Ilza Tânia Lobo, tanto no seu Mestrado como no Doutorado em andamen-
Ribeiro, da UEFS se integraram ao PROHPOR as professoras Zenaide to (clíticos), também Dante Lucchesi, na sua tese de doutoramento
Carneiro e Norma Fernandes, no momento doutorando-se na (variação de gênero em comunidade afro-brasileira isolada); c. no qua-
UNICAMP; da UFBa, pela via da pesquisa para o Mestrado e Dou- dro teórico funcionalista, centradas em questões de gramaticalização
torado se integraram ao Grupo, respectivamente, Anna Maria Macedo, – Therezinha Barreto (itens conjuncionais na história do portugu-
em 1994, do Departamento de Letras Vernáculas e Rosauta Fagundes ês); Rosauta Poggio (preposições do latim para o português arcai-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 47


co); Sônia Costa (adverbiais, a partir do período arcaico); Anna anos de “feliz enlace”.
Maria Macedo (locuções prepositivas no português e no galego Digo “feliz enlace” porque tem sido altamente estimulante e
arcaicos); d. também no âmbito de Filologia, no sentido estrito, ou produtivo o convívio acadêmico e amigo desse Grupo, que se
seja, da edição de textos– Permínio Ferreira e, em parte, Américo interalimenta por seus entusiasmos, suas dúvidas, seus pânicos, seus
Machado Lopes Filho, que está editando um Flos Sanctorum do saberes diferenciados e, sobretudo, pelo prazer e gosto em relação ao
século XIV, sobre ele fará um estudo lingüístico específico, sobre os campo de estudo e de pesquisa escolhido, a Lingüística Histórica, e,
anafóricos arcaico en(de) e hi, e um glossário geral do texto. Também nela, a história da língua portuguesa.
no campo da edição de textos, estão trabalhando os pesquisadores e Olhando de hoje para o passado, vejo que a semente do que
bolsistas que estão constituindo corpora de documentos escritos no viria a ser o Grupo de Pesquisa ‘Programa para a história da língua
Brasil entre os sécs. XVI e XIX, para posteriores estudos lingüísticos, portuguesa (PROHPOR)’ está certamente na minha formação acadê-
já concluído e sendo impresso pela Editora Humanitas da USP, o mica da década de cinqüenta para sessenta, quando, licenciando-me
livro Cartas baianas setecentistas, realizado sob a coordenação de em Línguas Anglo-Germânicas, tive uma coesa preparação, dirigida
Tânia Lobo, por Permínio Ferreira e pelos bolsistas Klebson Olivei- pelo Mestre Nelson Rossi, na Lingüística de orientação histórica, que
ra e Uilton Gonçalves. No que chamaria de descritivismo dominou a cena dos cursos de Letras no Brasil até os anos sessenta,
interpretativo, Sílvia Silva (dêiticos e anafóricos), eu própria (sinta- em que História da Língua, Filologia e Dialectologia constituíram a
xe-semântica de ser/estar e haver/ter no período arcaico), Juliana base da minha preparação profissional para o futuro. Ao finalizar a
Soledade Coelho (sobre a morfologia derivacional no período arcai- Licenciatura, na 4ª. série de 1961, nosso grupo de colegas realizou um
co). trabalho coletivo, sob a orientação de Nelson Rossi que resultou na
Entre 1990, quando se instituiu a linha Constituição histórica edição crítica do Livro das Aves, publicado em 1965. Desde então, o
do português e o Grupo de Pesquisa PROHPOR, que dá o suporte meu objetivo final não era fazer Filologia, no sentido de “editar tex-
humano à linha, já foram concluídas: duas teses de doutorado (em tos”, mas, a partir de edições, pensar, observar e tentar interpretar o
1999) e há três em andamento, orientadas por mim; duas em andamen- processo de constituição histórica da língua portuguesa.
to, orientadas por Ilza Ribeiro. No que se refere ao Mestrado, foram Entre 1960 e 1980, a Lingüística no Brasil se concentrou,
concluídas onze dissertações, orientadas por mim e uma por Ilza
hegemonicamente, nos estudos sincrônicos das línguas, especialmente
Ribeiro; em andamento, a nível de Mestrado, há uma, orientada por
da língua portuguesa e do português brasileiro. Com o retorno, na déca-
mim; uma, por Ilza Ribeiro e duas, por Therezinha Barreto.
da de oitenta, aos estudos histórico-diacrônicos, com renovadas orien-
A partir de 1999, quando enviamos a nossa quarta solicitação
tações no Brasil, sobretudo pela via da Teoria da variação e mudança
de Auxílio Integrado ao CNPq, estamos com dois Projetos Coletivos:
laboviana e da Teoria paramétrica chomskiana, ultimamente dos estu-
1. O português quinhentista: estudos lingüísticos, em que estão envol-
dos funcionalistas que tratam de gramaticalização, um novo interesse
vidos os seguintes pesquisadores: eu própria, Ilza Ribeiro, Therezinha
começou a ser despertado entre alguns lingüistas e pós-graduandos no
Barreto, Rosauta Poggio, Sônia Costa, Anna Maria Macedo, Tânia
Brasil, sobretudo em busca de interpretações para o português brasilei-
Lobo, Zenaide Carneiro e Sílvia Silva; pretende-se que os estudos
ro e suas diferenças em relação ao português.
desse Projeto se torne livro logo que possível. 2. Para a história do
português brasileiro – Bahia, em que estão envolvidos: Tânia Lobo, Esse novo momento da Lingüística no Brasil, sem dúvida, mo-
Ilza Ribeiro, Zenaide Carneiro, Norma Fernandes, eu própria e bolsis- tivou jovens pesquisadores pós-graduandos baianos para os estudos
tas de Iniciação Científica (Klebson Oliveira e José Mendes, da UFBa) histórico-lingüísticos e favoreceu a formação do grupo de pesquisa
e mais três da UNIFACS. A vertente do PROHPOR que pesquisa a “Programa para a história da língua portuguesa”.
história do português brasileiro está, desde 1997, vinculada ao Projeto
Nacional, então iniciado, Para a história do português brasileiro,
coordenado em âmbito nacional por Ataliba de Castilho (USP/ Referências bibliográficas
UNICAMP). E ainda um Projeto Individual de Ilza Ribeiro que visa a
construção de um manual de sintaxe gerativa diacrônica fundado na LOBO, Tânia et alii (no prelo). Cartas baianas setecentistas. São
língua portuguesa, do período arcaico ao português brasileiro, centrado Paulo: Humanitas.
sobretudo na ordem sintática. MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (1991). O português arcaico:
Ao longo desses anos, sem a preocupação de um rigor exausti- fonologia. São Paulo/Salvador: Contexto/EDUFBa.
vo, já apresentamos em Congressos nacionais e no estrangeiro e em MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (1994). O português arcaico:
Revistas especializadas, nacionais e estrangeiras Ö além das teses e morfologia e sintaxe. São Paulo/Salvador: Contexto/EDUFBa.
dissertações referidas e de três livros publicados (o já citado sobre a MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (org.) (1996). A ‘Carta de Cami-
Carta de Caminha (1996), o Português arcaico: fonologia (1991) e o nha’: testemunho lingüístico de 1500. Salvador: EDUFBa/UEFS/
Português arcaico: morfologia e sintaxe (1994), ambos de minha auto- CNPq/EGBa.
ria, e um no prelo, as já referidas Cartas baianas setecentistas Ömais de ROSSI, Nelson et alii (1965). Livro das aves. Rio de Janeiro: Institu-
cem comunicações, artigos, trabalhos em coletâneas. Temos como meta to Nacional do Livro.
publicar a bibliografia geral produzida pelo PROHPOR, em breve, tal-
vez ainda em 2001, para comemorar a sua primeira década, seus dez

48 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A concepção de intertextualidade
nos livros didáticos de Língua Portuguesa
Cristina Teixeira Vieira de Melo
Universidade Federal de Pernambuco

ABSTRACT: This paper analyses how the Portuguese Didatic Books treats the intertextuality fenomena of language . We pay atention to the forms
the exercices are proposed to the students and how the Teacher‘s Manual explains the concept of intertextuality..
PALAVRAS-CHAVE: Intelectualidade, vozes, discurso.

1. Introdução Koch (1991) distingue ainda a intertextualidade das semelhanças,


As teorias lingüísticas contemporâneas vêm, gradativamente, quando o texto incorpora o intertexto para seguir-lhe a orientação
sendo incorporadas à prática de sala de aula, aos livros didáticos de
argumentativa e, freqüentemente, para apoiar nele a sua argumentação
língua portuguesa, e à própria política educacional do MEC. Os
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN,1998:12), por exemplo, fa- (parafraseamento, argumentação por autoridade), e a intertextualidade
zem referência explícita à intertextualidade como fenômeno importante das diferenças, quando o texto incorpora o intertexto para ridicularizá-
no processo de ensino/aprendizagem de língua materna. Consta nos lo, refutá-lo, ou colocá-lo em questão (paródia, ironia, contra-argumen-
PCN a seguinte observação: tação). Neste último caso, a intertextualidade tem um claro valor de
“A produção de discursos não acontece no vazio. Ao contrá- subversão. Koch fala também de intertextualidade com intertexto alheio
rio, todo discurso se relaciona, de alguma forma, com os que
e intertextualidade com intertexto próprio (intratextualidade ou
já foram produzidos. Nesse sentido, os textos, como resultan-
tes da atividade discursiva, estão em constante e contínua rela- autotextualidade), e intertextualidade com intertexto atribuído a um
ção uns com os outros, ainda que, em sua linearidade, isso não enunciador genérico (provérbios, ditos populares, frases feitas).
se explicite. A esta relação entre o texto produzido e os outros De modo geral, podemos afirmar que o conceito de
textos é que se tem chamado intertextualidade.” intertextualidade envia tanto a uma propriedade constitutiva de todo
Nesta passagem fica claro que os PCN trabalham com a idéia de texto, como ao conjunto das relações explícitas ou implícitas que um
que todo discurso é interdiscurso, que todo texto é intertexto, de que texto mantém com outros textos. Na primeira acepção ele é uma vari-
todo discurso é marcado radicalmente pela heterogeneidade (ou
ante de dialogismo, interdiscursividade ou heterogeneidade2. Mas, como
polifonia).
Tomando como ponto de partida a definição de intertextualidade lembra Maingueneau (1998) se tais conceitos têm sentido equivalen-
presente nos PCN, objetivamos analisar como os livros didáticos de te, não são, contudo, empregados nos mesmos domínios. Enfim, o
português operacionalizam tal conceito. Para tanto, tomamos como conceito de intertextualidade concerne ao processo de construção,
objeto de estudo quatro diferentes coleções dirigidas a alunos de quin- reprodução ou transformação do sentido.
ta a oitava séries. 1 Para Beaugrande & Dressler (1981), a intertextualidade é um dos
critérios da textualidade e diz respeito aos modos como a produção e
2. Perspectiva teórica
recepção de um texto dependem do conhecimento que se tenha dos
O termo intertextualidade é cunhado por Julia Kristeva (1974),
que afirma que qualquer texto se constrói como um mosaico de cita- outros textos com os quais ele, de alguma forma, se relaciona.
ções e é a absorção e transformação de um outro texto. É bom lembrar
que antes de Kristeva, o termo intertextualidade já aparecia nos escri- 3. Análise
tos de Bakhtin sendo empregado no sentido de dialogismo (Todorov, Como se apresentam hoje a concepção e a proposta de trabalho
1981). Por comodidade, Moirand (1990) distingue entre dialogismo com o fenômeno da intertextualidade nos LDP? Esta era a nossa per-
intertextual e dialogismo interacional (1990:75). O primeiro remete às gunta central quando iniciamos este estudo. Após a nossa análise
marcas de heterogeneidade enunciativa, à citação, no sentido mais
constatamos que os autores de manuais didáticos, em sua maioria,
amplo; o segundo às múltiplas manifestações da troca verbal.
Da mesma forma, Koch (1991) diferencia intertextualidade em ainda não sabem onde e como situar o estudo da intertextualidade. Há
sentido amplo e em sentido estrito. A intertextualidade em sentido uma quase inexistência de observações teóricas a respeito da
amplo diz respeito a condição da existência do próprio discurso. Já a
intertextualidade em sentido estrito consiste na relação de um texto
com outros textos previamente - e efetivamente - produzidos. A 1
As coleções analisadas foram as seguintes: 1) BISOGNIN, Tadeu Rossato.
intertextualidade em sentido estrito, por sua vez, pode-se dividir em 1991. Descoberta & Construção – Português. São Paulo: FTD; 2) CORREA,
explícita e implícita. A intertextualidade explítica ocorre quando há Maria Helena & LUFT, Celso Pedro. 2000. A Palavra é Sua – Língua
portuguesa. (Ed. Reform.) São Paulo: Scipione; 3) FARACO, Carlos &
citação expressa da fonte do intertexto: discurso relatado (discurso
MOURA, Francisco. 1999. Linguagem Nova. São Paulo: Editora Ática; 4)
direto, discurso indireto, discurso indireto-livre), citações, referênci- PROENÇA, Graça & HORTA, Regina. 1997. A Palavra é Português. São
as, resumos, resenhas, traduções, retomadas do texto do parceiro no Paulo: Editora Ática.
diálogo. A intertextualidade implícita ocorre quando não há citação 2
Como já foi dito, o termo ‘dialogismo’ aparece em Bakhtin (1992, 1993);
expressa da fonte, cabendo ao interlocutor recuperá-la para construir o termo ‘interdiscurso’ tem suas raízes da Análise do Discurso Francesa,
o sentido do texto. Insere-se nesse grupo: alusões, paródia, paráfra- especialmente nos escritos de Pêcheux, (1990) e Foucault (1990); a
ses, ironia, plágio, aspeamento de conotação autonímica, detournement, noção de ‘heterogeneidade’ nos remete aos estudos de Authier-Revuz
argumentação por autoridade polifônica. (1982).

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 49


intertextualidade nos manuais dirigidos ao professor3. Por exemplo, b) O índio disse ao filho que não chorasse, porque a vida é uma
das quatro coleções analisadas, só duas trazem no Manual do Profes- luta.
sor menção ao fenômeno da intertextualidade. Na coleção “A palavra A pontuação e o tempo dos verbos são diferentes nas duas formas,
é sua” toca-se rapidamente no assunto. Somente na coleção “Lingua- como você observou acima.
gem nova” abre-se um espaço maior para se falar de intertextualidade.
Neste ponto vale retomar as constatações de Cunha (2001) so-
(Exemplo 1 - A palavra é sua – Manual do Professor - 5a. série) bre a análise do DR nos LDP. No seu estudo, Cunha também conclui
“Quando possível, colocamos textos de gêneros diferentes no que nos LDP predominam os exercícios de transformação DD/DI, e que
mesmo capítulo para possibilitar a intertextualidade (relação o DR é sistematicamente tratado no nível visual e formal. Como bem
entre textos diferentes). (p. 6) coloca a autora, esses exercícios são estéreis, pois: a) não levam o aluno
à interpretação das funções do DR num texto; b) reduzem o DR às
(Exemplo 2 - Linguagem Nova – Manual do Professor – 8ª marcas tipográficas e às transformações, através de procedimentos pu-
série) ramente gramaticais, faltando uma análise e uma explicação do fenôme-
O estabelecimento da intertextualidade constitui o ponto de par- no que leve em conta a enunciação; c) habituam os alunos a manipular as
tida para as várias atividades sugeridas nesta coleção. Da lin- formas da língua sem fazer menção ao sentido estabelecido entre o DR
guagem predominantemente visual à leitura de textos exclusiva- e o contexto, incluído aí o ato ilocucionário realizado no momento da
mente verbais e de tipos diversos – literários, jornalísticos, cien- produção da fala. Cunha constata que, os LDP continuam a trabalhar
tíficos, instrucionais, informativos, humorísticos – pretende-se com definições de DD e DI como se fossem de uso estritamente literá-
sugerir um caminho seguro para que o aluno se desenvolva rio, não dando margem a que o aluno perceba o DR como um fenômeno
como leitor e produtor de textos. ( introdução) da linguagem, presente tanto na modalidade falada como na escrita.
O trabalho com intertextualidade, atualmente uma das rele- “Os exercícios de reconhecimento, de colocação de pontuação e
vantes preocupações do professor de comunicação, define-se de transformação (do DD para o DI e vice-versa) veiculam uma ima-
como eixo do trabalho de cada unidade e orienta a relação gem de língua reduzida a formas, desvinculada das condições de pro-
entre as unidades. As mensagens exclusivamente ou predomi- dução do discurso, revelando contradições em relação à perspectiva
nantemente não-verbais representam ferramenta particular- teórica adotada nos mesmos LDP. Essa amputação tem conseqüências
mente adequada, a nosso ver, para iniciar o aluno na observa- lingüísticas, pedagógicas e ideológicas, uma vez que exclui o principal:
ção e análise desse fenômeno. Os estímulos visuais apresenta- as relações entre discursos que são relações entre pontos de vista dife-
dos nesta parte do livro podem também tornar-se ponto de rentes sobre o mundo, relações entre consciências e ideologias diferentes,
partida para a realização de trabalhos interdisciplinares, ou- entre sujeitos e não objetos.” (Cunha, 2001: 111)
tra questão importante na escola hoje. (p.6) Antes de finalizarmos, gostaríamos de chamar atenção para
O texto apresentado nesta seção (Texto) constitui o centro de duas ocorrências verificadas na análise. A primeira é positiva e diz
cada unidade. Na seleção dos textos procuramos priorizar os respeito ao tratamento e explicação dos recursos da paródia, paráfrase
temas transversais, o interesse à faixa etária do aluno, a diver- e estilização como manifestação da intertextualidade, no livro da 8a.
sidade de gêneros, o ponto de vista de cada autor ao desenvol- série da coleção “A palavra é sua” (capítulo 8). A segunda ocorrência,
ver o tema, a relação com a imagem de abertura, a presente no manual do professor da 8a. série da coleção “Linguagem
intertextualidade com os demais textos de todo o volume e da Nova” (p. 80), aponta para um mal entendimento do emprego das
coleção. (p. 8) aspas em determinada situação de comunicação. Após apresentar o
texto “Merecemos respeito”, de Roberto Duailibi, vem a indicação de
Das passagens selecionadas acima, pode-se inferir que a que se trabalhará com a ‘pontuação’. Na parte de compreensão de
intertextualidade está sendo entendida como a retomada de um mes- texto, tem-se a questão reproduzida abaixo acompanhada da devida
mo tema em diversos gêneros de texto presentes numa mesma unida- indicação de resposta:
de ou em unidades diferentes. Essa é uma visão bastante limitada do
fenômeno. (Exemplo 04 - Linguagem Nova, 7a. série)
Vale salientar ainda que, mesmo quando focalizam teoricamen- 1) Porque, na primeira linha do sexto parágrafo do texto Progra-
te o fenômeno da intertextualidade, nem sempre os autores de LDP mas de auditório, o autor colocou entre aspas o termo “realis-
conseguem operacionalizar o trabalho prático com o conceito. Os mo”?
exercícios restringem-se ao trabalho com o discurso relatado (DR). O autor sugere que não há qualquer realismo. Com esse recur-
Ainda assim, raras são as vezes que se explicita que o DR diz respeito so de pontuação, ele substitui a ironia da linguagem falada.
a um dos tipos de intertextualidade. De fato, as aspas aqui estão sendo empregadas para indicar
Com relação ao trabalho com o DR, prevalecem os exercícios ironia, mas esse não é um fenômeno típico da linguagem falada como
de transformação do discurso direto (DD) para o discurso indireto a resposta indicada deixa supor. Além disso, o fato da explicação do
(DI) e vice-versa, segundo a tradição gramatical; bem como o estudo emprego dessas aspas aparecer numa lição sobre ‘pontuação” revela
das marcas tipográficas do DD: dois-pontos, travessão ou emprego uma perspectiva bastante gramatical de tratar o fenômeno. Perde-se
de aspas.

(Exemplo 03 - Descoberta & Construção – 6a. série, p. 59)


Podemos reproduzir a fala das personagens de duas maneiras.
Uma é fazer a própria personagem falar diretamente através do
discurso direto. Exemplo:
3
Como lembra Elizabeth Marcuschi (2001:139), “Em sua quase totalidade,
os LDP são acompanhados de um Livro/Manual do Professor (MP). A esse
a) O índio disse:
material cabe, em princípio, aprofundar com o professor as bases teórico-
- Não chores, meu filho, que a vida é uma luta. metodológicas que alicerçam o livro do aluno, propiciando ao docente
A outra forma é contar o que a personagem disse, utilizando o segurança e autonomia no desenvolvimento de competências (habilidades,
discurso indireto. Exemplo: conteúdos) e atividades propostas pelo LDP para determinada série ou
ciclo”.

50 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


uma ótima oportunidade de mostrar ao aluno estratégias lingüístico- curso; e que aquele que narra pode introduzir seus comentários, sua
discursivas diretamente ligadas a enunciação que se fazem presentes entonação no discurso do outro.
num enunciado. Poderia-se explicitar que ao empregar o recurso das
aspas sob a palavra ‘realismo’, o locutor coloca em cena uma outra Referências bibliográficas:
voz (a voz do enunciador) que afirma exatamente o contrário do que
está sendo dito literalmente. Não se trata de ensinar Lingüística aos AUTHIER-REVUZ, J. 1982. “Hétérogénéité montrée et hétérogénéite
alunos, mas fornecer elementos teóricos básicos ao professor de iden- constitutive: éléments por une approche de l’autre das le discours”.
tificar a imensa riqueza e variedade de usos da língua. Os autores de In: DRLAV 26, pp. 91 – 151.
LDP não podem mais ignorar as conquistas teóricas básicas já obtidas BAKHTIN, M. (Volochinov). (1992). Marxismo e Filosofia da Lin-
no contexto das relações interpessoais no uso diário da língua. Assim, guagem. 6ª. ed. São Paulo: Hucitec.
devem levar professores e alunos a perceberem a riqueza que envolve BAKHTIN, M. (1993). Questões de Literatura e de Estética (A Teo-
o uso efetivo da língua como patrimônio maior do qual não podemos ria do Romance). 3ª.ed. São Paulo: Editora Unesp/Hucitec.
abrir mão. BEAUGRANDE, R De & DRESSLER, W. 1981. Introduction to
textlinguististics. Londres: Longman.
4. Sugestões CUNHA, D. 2001. “Atividades sobre os Usos ou Exercícios Grama-
Concordamos com Possenti (1996) quando diz que uma boa ticais? Uma Análise do Discurso Reportado”. In: Dionísio, A. &
estratégia pedagógica no sentido de evidenciar a importância do fenô- Bezerra, M. A. O Livro Didático de Português, múltiplos olha-
meno da intertextualidade na constituição dos discursos é analisar res. Rio de Janeiro: Lucerna, pp. 101 - 112 .
textos com alunos, explicitando os recursos de estilo pelos quais se FOUCAULT, M. 1996. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola.
pode dar voz a outras vozes. Possenti afirma que ao se aceitar a idéia KOCH, I. 1985. “A intertextualidade como critério de textualidade”.
de que o discurso é basicamente interdiscurso (ou que a intertextualidade In: FÁVERO, L. L. & M. S. Z. PASCHOAL (orgs). Lingüística
é a condição de existência do próprio discurso), então deve-se aceitar Textual: texto e leitura. São Paulo: EDUC. pp. 39 -46 (Série
que falar é em grande parte deixar falar. Nesse sentido, sustenta que é Cardenos PUC, no. 22)
válido mostrar aos alunos como os autores falam pouco nos próprios KOCH , I. 1991. “Intertextualidade e polifonia: um só fenômeno?”.
textos. O que eles mais fazem é atribuir enunciados a outros. Ou seja, D.E.L.T.A. vol 7 (2), São Paulo: EDUC, pp. 259 -542.
a principal função de quem escreve é saber costurar as outras vozes KOCH, I. 2000. O texto e a inevitável presença do outro. (mimeo)
que aparecem no texto. Assim, é válido explicitar os recursos de estilo MAINGUENEAU, D. 1998. Termos-chave da Análise do
pelos quais se pode dar voz a outras vozes (discurso direto, discurso Discurso.Belo Horizonte: Ed. UFMG.
indireto, ironia, aspas, etc), pois, são eles que conferem aos textos MARCUSCHI, E. 2001. “Os destinos da avaliação no Manual do
este ar de multiplicidade de pontos de vista. Professor”. In: In: Dionísio, A. & Bezerra, M. A. O Livro Didá-
Ressalta-se também a importância levar os alunos a descobri- tico de Português, múltiplos olhares. Rio de Janeiro: Lucerna,
rem o quanto eles já fazem uso de “intertextos” no seu cotidiano, pp. 139 - 148.
especialmente quando produzem relatos e outros tipos de textos orais. MOIRAND, S. 1990. Une grammaire des textes et des dialogues.
Ficará claro que os textos produzidos pelos alunos no seu dia a dia Paris: Hachette.
têm citações, desmentidos, ironias, elementos que raramente aparece PÊCHEU, M. 1990. “A Análise de Discurso: três épocas. In: GADET,
nas redações dos mesmos alunos. F. & HAK, T. (orgs). Por uma análise automática do discurso,
É necessário ainda enfatizar o poder argumentativo presente no uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Editora da
intertexto. Nos usos da língua, o falante apreende o discurso do outro Unicamp, pp. 311-318.
numa situação de enunciação (S1) e o retoma numa outra (S2), dirigin- PÊCHEUX, M & FUCHS, C. 1990. “A propósito da análise automá-
do-se a uma terceira pessoa, com um propósito diferente daquele com tica do discurso: atualização e perspectivas”. In: GADET, F. &
que o discurso inicial foi proferido. Em todos os casos, os locutores, HAK, T. (orgs). Por uma análise automática do discurso, uma
em graus diferentes, assumem uma atitude em relação ao discurso introdução à obra de Michel Pêcheux. Campinas: Editora da
original que se revela através de modificações, retematizações, comen- Unicamp, pp. 163 -252.
tários e julgamentos, marcados diferentemente, visto que todo DR POSSENTI, S. 1996. Por que (não) ensinar gramática na escola.
serve a um propósito numa situação sócio-histórica. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras & Associação de Lei-
Dessa forma, trabalhar-se-á com a enunciação completa. Como tura do Brasil.
lembra Cunha (2001) este é o único meio de estudo produtivo das TODOROV, T. 1981. Mikhail Bakhtine, le príncipe dialogique. Paris:
formas sintáticas. Um trabalho dessa natureza permitirá que os alu- Ed.du Seuil.
nos descubram a riqueza de possibilidades lingüísticas para se reto- SECRETARIA DO ENSINO FUNDAMENTAL. 1998. Parâmetros
mar um discurso; que num diálogo autêntico, habitualmente, não se curriculares de língua portuguesa: 3º e 4º ciclos. Brasília: MEC:
retoma as mesmas palavras produzidas por outrem no próprio dis-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 51


O guia de livros didáticos e a leitura do professor
Elizabeth Marcuschi
Universidade Federal de Pernambuco

ABSTRACT: This article debates the analysis made from Portuguese teachers on ‘Guia de livros didáticos’ (1999) reviews. Note that not always the
review structure suggests the classification intended for the didactic manual, that is, “recommended with distinction, recommended and recommended
with provisos”.
PALAVRAS-CHAVE: Resenha. Livro didático. Leitura do professor.

Introdução Nele predomina a atitude comunicativa de fazer crer/fazer fazer. A


Desde 1996, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) superestrutura argumentativa envolve uma ordenação ideológica dos
disponibiliza, para os educadores do ensino fundamental, o “Guia de argumentos e contra-argumentos. Na superfície lingüística há conectores
Livros Didáticos” (doravante, Guia), “trazendo informações sobre os de tipo lógico, modalizadores, tempos verbais do mundo comentado,
livros inscritos no programa” (MEC, 1999: 3)1 . Dessa forma, o operadores argumentativos, etc.. O tipo expositivo, por sua vez, ca-
Ministério pronuncia-se a respeito da qualidade e organização dos racteriza-se pela asserção de conceitos e ordenação lógica. Envolve a
diversos livros didáticos (LD) disponíveis no mercado brasileiro. Para atitude comunicativa de fazer saber. As marcas principais da superfí-
o MEC, o Guia pode atuar como um dos subsídios que orientam o cie lingüística são: conectores do tipo lógico, tempos verbais do mun-
docente na escolha do LD a ser utilizado em sala de aula. do comentado e presença do interdiscurso.
Entendendo-se que o leitor visado pelo Guia é o professor e que Por sua vez, o gênero textual ou discursivo é observado a partir
as resenhas nele contidas têm como propósito levar o educador a defi- de seu uso social, de sua realização empírica, estando estreitamente
nir-se por uma das coleções apresentadas são destacados, nos textos, relacionado aos sujeitos enquanto produtores e receptores de texto. É
aspectos positivos e/ou negativos, adequados e/ou inadequados dos LD cultural e historicamente situado. Marcuschi (op. cit.:99) propõe um
(segundo as concepções teóricas das áreas e os princípios político- sistema de correlação multinível para a categorização dos diferentes
pedagógicos eleitos como ideais). Diante dessa expectativa, algumas gêneros textuais que circulam socialmente. Os cinco níveis indicados
perguntas podem ser colocadas: Como o educador lê os textos (‘se’ os são: Funções; Situacionalidade; Ações procedimentais; Estruturação;
lê) contidos no Guia? O modo enunciativo e o grau de informatividade Modelos globais. No caso do gênero ‘resenha crítica’ de um livro,
das resenhas são suficientes para sugerir ao professor, no decorrer de esses níveis poderiam ser assim descritos:
uma leitura crítica, a classificação dada pelo MEC aos LD, ou seja, I. Funções: Condensação das idéias de um livro tidas como cen-
‘recomendado com distinção’, ‘recomendado’ e ‘recomendado com res- trais sob aspectos selecionados pelo resenhador que ao mesmo tempo
salvas’? situa, avalia, sugere ou não a leitura ou compra da obra no contexto da
Para chegarmos a alguns dados, que nos permitissem sugerir matéria de que trata.
respostas a esses questionamentos, submetemos algumas das rese- II. Situacionalidade: produzido por um especialista (não autor
nhas do Guia de quinta a oitava séries (1999)2 a um conjunto de do livro) para um grupo específico, que tem interesses profissionais
professores que atuam na segunda etapa do ensino fundamental. As próximos. Elaborado na modalidade escrita.
informações colhidas são o objeto de reflexão desse artigo. Antes, III. Ações procedimentais: O autor da resenha pretende dar a
porém, de partirmos para a análise, explicitamos os conceitos básicos conhecer o conteúdo de uma obra: mostrar para o grupo o valor da obra
adotados em nosso estudo, como ‘tipo e gênero textual’, mais precisa- e mover o leitor à sua leitura ou não, compra ou não. O modo enunciativo
mente, os tipos expositivo e argumentativo e o gênero resenha. Para é avaliativo.
tanto, nos apoiamos em Marcuschi (2000). Além disso, dada a natu- IV. Estruturação: Deve conter os dados originais da obra com
reza do material investigado, entendemos ser elucidativo discorrer, uma apresentação do autor e do conteúdo básico da obra, situação da
ainda que brevemente, sobre as concepções aqui assumidas para ‘dis- obra no contexto geral de sua área, idéias centrais encadeadas com uma
curso oficial e autoria’ e, nesse caso, recorremos à Análise do Discur- avaliação e indicação de áreas e especialistas de interesse.
so Francesa, mais precisamente a Maingueneau (1987). V. Modelos globais: A seqüenciação típica é a dos enunciados
expositivos entremeados de aspectos avaliativos.
O gênero resenha É interessante observar que os recursos gráficos não são essen-
O estudo sobre tipos e gêneros textuais vem ganhando cada vez ciais à identificação da resenha enquanto resenha, ainda que eles pos-
mais espaço no âmbito das reflexões lingüísticas, na medida em que sam estar presentes. Esse aspecto, como veremos, será, no entanto,
“os tipos ou as categorizações são os modos básicos de organização decisivo para o desencadeamento das ‘ações procedimentais’ preten-
de nossa experiência cotidiana. Neste sentido, os tipos são também didas pelas resenhas do Guia.
um meio de determinar as condições em que se formulam as expecta-
tivas que conduzem a própria compreensão” (Marcuschi, 2000:7). Discurso oficial e autoria
A noção de tipo textual tem sido considerada principalmente a Retomemos o nível ‘funções’, agora no caso específico das
partir de uma perspectiva teórica, levando-se em conta os aspectos resenhas aqui analisadas e publicadas no Guia. É pertinente caracterizá-
lingüísticos. O tipo textual possui uma estruturação interna homogê-
nea e raramente será encontrado em ‘estado puro’ nos textos de circu-
lação social. A maioria dos autores admite, tendo em vista a natureza 1
Programa Nacional do Livro Didático – PNLD.
lingüística do texto, quatro tipos: narrativo, argumentativo, expositivo, 2
Trata-se da terceira edição do Guia de Livros Didáticos (1999). As
descritivo. Segundo Koch & Fávero (1987:7), o texto argumentativo edições de 1996, 1998 e 2000/2001 dedicam-se a obras de 1a a 4a
tem como perspectiva convencer, persuadir. Essa é a sua marca maior. séries. A elaboração dos quatro Guias foi realizada, sob a coordenação
do MEC, no âmbito do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).

52 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


las melhor, dada a especificidade do portador, o volume “Guia de O interesse de nossa investigação era o de verificar se os textos
Livros Didáticos”, um documento oficial. É importante ter claro que o das resenhas são suficientemente elucidativos, isto é, se o professor
Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) não cumpre mera fun- consegue identificar a classificação atribuída ao livro com base na
ção informativa, mas é veiculador de uma determinada ideologia. Por estrutura e nos fenômenos destacados na resenha ou se, via de regra,
ser um documento oficial, o Guia propõe-se (no bojo de outras medi- ele é levado a considerar o LD resenhado como de maior ou menor
das), dar visibilidade à política educacional do governo. Não se pode qualidade, tendo em vista prioritariamente os elementos gráficos, isto
esquecer que o leitor presumido do Guia, a quem ele se dirige, é o é, a categorização por estrelas e/ou a reprodução da capa e/ou outros
professor do ensino fundamental. Afinal, o MEC pretende conquistar elementos identificadores da obra. Para tanto, foram submetidas aos
a adesão desse profissional, convencendo-o de que as ações empreen- professores cinco resenhas, sendo duas RR, duas Rec e uma RD4 , das
quais foram retiradas toda e qualquer identificação, permanecendo
didas pelo governo se revestem de qualidade e, ainda mais, de que a
apenas o texto. As resenhas foram numeradas de um a cinco, alteran-
melhor proposta educacional a ser praticada é exatamente a defendida
do-se a seqüência original do Guia. No conjunto, 38 professores de
por quem está, no momento, no poder. Nesse sentido, as classifica- escolas públicas municipais e estaduais em Pernambuco participaram
ções propostas para os LD se revestem do discurso de autoridade e do experimento5 . Solicitou-se aos docentes que, com base nas rese-
suas resenhas podem ser vistas como ‘oficiais’. nhas lidas, indicassem a classificação que teria sido atribuída a cada
O discurso oficial situa-se no interior de uma formação discursiva, coleção pelo Guia. Posteriormente, os professores deveriam comen-
é ideológico, tem caráter público e busca a legitimação do poder no tar cada resenha, apontando os indicadores de conteúdo que teriam
ordenamento social. Por encontrar sua motivação na sociedade em servido de base para a classificação por eles (professores) proposta. É
que está inserido e na ideologia que pretende ver implantada ou con- interessante destacar que a maioria (90%) revelou já ter tido acesso ao
servada, o discurso oficial não pode ser visto como um simples trans- Guia e que suas escolhas (92% dos que consultam o Guia) orientam-
missor de informações, mas como um regulador da formação social. se, pelo menos em uma triagem inicial, pelas estrelas atribuídas aos
Ele deve ser entendido como o lócus privilegiado para o virtual exercí- livros.
cio do autoritarismo, do convencimento, da explicitação polêmica, da
persuasão, etc. É importante lembrar que o termo ‘oficial’ caracteriza A leitura das resenhas
também o lugar genérico de onde emana esse tipo de discurso, ou seja, A análise das informações oferecidas pelos educadores indica
as instituições ou autoridades constituídas do governo. Na mesma que as classificações atribuídas pelos docentes às coleções divergiram
linha argumentam Frade e Silva (1998:97), para quem o texto oficial com maior ou menor intensidade daquelas propostas pelo Guia. O
(educacional) é “aquele produzido a partir de fonte oficial e que se quadro a seguir ilustra essa conclusão:
caracteriza por expressar posições pedagógicas e políticas de órgãos CLASSIFICAÇÕES ATRIBUÍDAS PELO MEC E PELOS
públicos reguladores da política educacional”. É nesse sentido que as PROFESSORES ÀS COLEÇÕES ANALISADAS
resenhas publicadas no Guia são aqui tratadas como oficiais.
Ainda que elaboradas por um grupo de pareceristas convida-
dos, cujos nomes são listados no início dos volumes do Guia, as
análises dos livros são feitas sob encomenda e seguindo um roteiro de
critérios previamente estabelecidos. Como explicita Rangel (2001:
13), o conjunto de princípios e critérios pelo qual se pauta a avaliação
dos LD “pretende garantir (...) que o LD disponível para a escola
pública contribua efetivamente para a consecução dos objetivos do
ensino de língua materna no ensino fundamental, tais como vêm defi- Os dados indicam que apenas nas resenhas 03 e 05 as opiniões dos
nidos em documentos como os parâmetros e referências curriculares professores e a proposta do MEC convergem em percentual significati-
nacionais”. Ora, os parâmetros expressam exatamente uma política de vo, ou seja, 66% e 76%, respectivamente. No texto 04, pouco mais da
governo. metade dos docentes (55%) definiu-se pelo mesmo conceito emitido pelo
Assim, independentemente do fato da equipe de avaliadores des- MEC, apontando para uma discrepância significativa. As divergências
frutar de alguma autonomia acadêmica na elaboração dos pareceres, sua mais notáveis, contudo, estão nas resenhas 01 e 02, pois as indicações
publicação só ocorre após a anuência dos representantes oficiais do sugeridas pela maioria dos professores estão em evidente desacordo com
MEC. Nesse sentido, o discurso (no caso, o Guia como um todo) é as do Ministério. No caso da resenha 01 apenas 37% dos docentes opi-
produzido por um sujeito histórico, que detém autoridade e representa nam pelo conceito REC. No que diz respeito à coleção 02, como se
o poder no seu papel sócio-político. Segundo Frade e Silva (op. cit.:102) constata, o MEC atribuiu conceito RR. Todavia, para grande parte dos
“para entender o papel do autor nos aspectos de autonomia, estilo, docentes pesquisados o LD mereceria classificação REC (47%) ou até
geração de idéias, singularidade de posições, é preciso considerar que as
políticas internas de produção de material nem sempre são definidas
com os autores empíricos. Isso porque as decisões sobre o que publicar,
como publicar e para que publicar antecedem/condicionam as condições 3
Esta é também a estrutura de duas outras edições (1998 e 2000/2001).
de produção dos ‘escritores’ escolhidos ou convidados”. A de 1996 apenas apresenta os livros aprovados, destacando, com um
asterisco, os livros recomendados.
O Guia e os professores pesquisados: características
4
As resenhas utilizadas foram: RR – “Descoberta & Construção”, Tadeu
A edição do Guia aqui analisada (1999) está estruturada por R. Bisognin; “Português/ Idéias & Linguagens”, M a da Conceição Castro.
Rec – “Palavra Aberta”, Isabel C. Cabral; “Português em Outras Pala-
área do conhecimento e série3 . Cada resenha é encabeçada por uma
vras”, Ma Sílvia Gonçalves e Rosana Rios. RD – ALP, Ma Fernandes Cócco
ilustração, que reproduz a capa do LD, destacando-se ainda, em sepa-
e Marco A. Hailer. As coleções RR e Rec foram selecionadas aleatoria-
rado, o título, o(s) autor(es) e a editora da obra. Além disso, conside- mente. No caso da RD não houve escolha, pois há apenas uma com essa
rando os princípios e critérios previamente estabelecidos, as obras classificação.
vêm agrupadas em três grandes blocos ‘recomendados com distinção 5
Os docentes que participaram da pesquisa constituíam, no momento da
(RD), recomendados (Rec) e recomendados com ressalvas (RR)’. E, investigação (2o semestre de 2000), uma turma do Curso de Especializa-
para “facilitar uma rápida visualização da categoria em que o livro se ção em Língua Portuguesa oferecido pelo Programa de Pós-graduação
insere” (MEC, 1998:12) convencionou-se atribuir a cada uma das em Letras e Lingüística da Universidade Federal de Pernambuco e coor-
categorias mencionadas, respectivamente, três, duas e uma estrela(s). denado pelo Núcleo de Avaliação e Pesquisa Educacional da mesma
Essa convenção gráfica acompanha cada uma das resenhas. universidade.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 53


mesmo RD (19%). Para efeito de análise tomaremos aqui, exemplarmen- aqueles fenômenos considerados mais relevantes, tanto do ponto de
te, os aspectos destacados pelos professores no estudo da resenha 02, vista positivo como negativo, são os mais destacados e observados.
tendo em vista que aí se encontram as maiores disparidades na relação Com isso, a perspectiva avaliativa e os conceitos atribuídos oscilam,
com a proposta do Ministério. tendo em vista os valores postos em jogo. Certamente, um estudo
A seguir, reproduzimos trechos de comentários dos professores, mais acurado da estrutura argumentativa da resenha revelaria algumas
por meio dos quais buscam fundamentar a classificação por eles atribuída à incongruências na forma como esses argumentos são interpretados e
coleção destacada na resenha 02. compreendidos pelos professores-leitores. Mas, não foi isso que se
pretendeu debater nesse artigo. Buscamos, sobretudo, focalizar as
R02-10 – RR6 múltiplas leituras que o gênero resenha crítica suscita e destacar que,
O livro preocupa-se em fazer uma seleção equilibrada dos tex- de acordo com a leitura realizada, muda o conceito atribuído à coleção
tos literários e não literários para se trabalhar a leitura, observando-se retratada.
as diversidades de registros e variedades lingüísticas. Mesmo assim, Não há objetividade no gênero resenha, nem estamos pleitean-
não é considerado tão bom por não se trabalhar a leitura de mundo do do que devesse ter. Contudo, na forma como o Guia vem sendo divul-
aluno, e, explorar demasiadamente os autores do sul do país, o que gado, há uma clara pretensão de persuadir os professores de que a
traduz uma visão sectária. proposta eleita pelo MEC é a melhor para o ensino de língua. Na
Outros problemas a serem apontados é a ausência de articula- dúvida em relação à leitura que será realizada pelo docente, essa dire-
ção entre a fala e a escrita, o trabalho de produção textual desvinculado ção é evidenciada pelas estrelas, buscando atingir o convencimento
da abordagem “língua em uso” e o reforço na memorização de regras. não conseguido com a argumentação. Parece-nos, no entanto, que ao
MEC caberia disponibilizar as resenhas, para que os professores pu-
dessem analisá-las e decidir, com autonomia, segundo seus conheci-
R02-19 – REC mentos, qual dos livros resenhados seria mais adequado para o con-
A coleção analisada apresenta características bastante positi- texto em que atuam.
vas tais como:
- Diversidade de tipologia textual, estudo das características dos Referências bibliográficas
gêneros, solicitação de produções também de acordo com esses gêneros
(na maioria das vezes). FRADE, Isabel Cristina & SILVA, Ceris Salete. A leitura de textos
- Abordagem das variedades lingüísticas, embora não se possa oficiais: uma questão plural. In: M. MARINHO & C. S. SILVA
inferir exatamente qual o trabalho que é realizado em cima desse as- (orgs.), Leituras do Professor. Campinas: Mercado de Letras,
pecto... (...) ALB, 1998: 93-117.
Chama a atenção, no entanto, o tratamento dado às questões gramati- KOCH, Ingedore & FÁVERO, Leonor. Contribuição a uma tipologia
cais por terem como objetivo a memorização e o uso da linguagem poética de textual. Letras & Letras, 3 (1), junho, 1987: 3-10.
forma “utilitária”, o que certamente constitui um ponto bastante negativo. MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do dis-
curso. 3a ed. São Paulo: Pontes/ Editora da Universidade Estadu-
R02-37 – RD al de Campinas, 1997 (edição original, 1987).
A resenha no 2 apresenta uma proposta de trabalho que mais se MARCUSCHI, Luiz Antonio. Gêneros textuais: o que são e como se
adequa aos avanços do ensino-aprendizagem, pois ele valoriza: Pri- constituem. Recife, UFPE, 2000. Mimeo.
meiramente os gêneros textuais, “fazendo a distinção de tipos de MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Guia de livros di-
textos”, a faixa etária do estudante, não descarta os textos literários, dáticos. 5a a 8a séries. PNLD 1999. Brasília, 1998.
pelo contrário, propõe o seu estudo com textos não literários; chama RANGEL, Egon. Livro didático de língua portuguesa: o retorno do
atenção da importância dos registros e das variedades lingüísticas; recalcado. In: A. DIONISIO & M. A. BEZERRA. O livro didá-
alerta para os conhecimentos prévios dos alunos a partir de uma tico de português. Múltiplos olhares. Rio de Janeiro: Lucerna,
abordagem lingüística pertinente ao estudo oral e escrito do estudante. 2001:7-14.
Como é possível observar, os professores recorreram a aspec-
tos diferenciados para fundamentar suas propostas ou, quando se
servem dos mesmos argumentos, atribuem a eles pesos diferenciados
no conjunto da explanação. Assim, para o professor R02-10, apesar
do LD possuir qualidades, como a diversidade de textos, de registros,
de variedades, pesam negativamente o fato de haver predominância de
autores do sul, do trabalho com a produção de texto deixar a desejar e
de haver memorização de regras, fazendo com que o livro não seja
“considerado tão bom”. No comentário R02-19, os aspectos destaca-
dos são praticamente os mesmos do anterior, mas o peso a eles atribu-
ído pelo autor pende para o positivo e o LD recebe uma melhor
classificação. A produção de texto, por exemplo, é tida como parcial-
mente bem encaminhada. Já as observações do texto R02-37 reto-
mam, ampliando, os fenômenos já indicados, de tal forma que a cole-
ção é considerada avançada e em sintonia com os estudos mais recen-
tes sobre ensino-aprendizagem. O trabalho com a oralidade e a escrita
que, na primeira resenha, é tida como deficiente aqui é considerado
pertinente.
Conclusão
A análise aqui brevemente retratada indica que os professores
desenvolvem suas análises (e não poderia ser diferente) com base em
6
O código identifica a resenha, o número do texto e a classificação atribuída.
sua prática pedagógica, em seu conhecimento teórico da área. Assim, Os textos são aqui reproduzidos tal como elaborados pelos educadores.

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Produção de texto no livro didático:
gradação ou repetição?
Márcia R. de S. Mendonça
Universidade Federal de Pernambuco

ABSTRACT: This paper examines how (and if) writting exercises in portuguese school books (PSB) deal with complexity gradation. The corpus includes
5 didatic colections (19 books). Two principles guided the work: a) writting hability expands through the contact with different kinds of text; b) PSB, for
their didatic nature, shall consider complexity gradation in writting activities.
PALAVRAS-CHAVE: produção de texto, livro didático, ensino de português, gêneros textuais.

Este trabalho enfoca as propostas de produção de textos escri- Língua Portuguesa de 5a a 8a séries afirmam:
tos em livros didáticos de português (LDPs) quanto à gradação de “Nessa perspectiva, é necessário contemplar, nas atividades
complexidade. Dois princípios referentes à aprendizagem de língua de ensino, a diversidade de textos e gêneros, e não apenas em
materna nortearam esta análise: a) não é suficiente expor os aprendi- função de sua relevância social, mas também pelo fato de que
zes a uma tipologia textual variada; é preciso fazê-lo de modo a permi- textos pertencentes a diferentes gêneros são organizados de
tir, gradativamente, o domínio de diferentes recursos de textualização; diferentes formas.” (Brasil, 1998: 23-24).
b) os manuais didáticos, por sua natureza pedagógica – refletida na Outros autores, como Bronckart (1999: 103, apud Marcuschi,
sua organização interna – devem apresentar gradação de complexida- 2000: 6) também apontam essa necessidade: “A apropriação dos
de nas atividades de produção textual. gêneros é um mecanismo fundamental de socialização, de inserção
Nosso corpus é composto de 19 volumes: uma coleção de prática nas atividades comunicativas humanas”.
ensino médio e quatro coleções do ensino fundamental, sendo, dentre Quanto à constituição dos gêneros, dizem os PCN
estas últimas, duas destinadas aos dois primeiros ciclos e duas desti- “Todo texto se organiza dentro de determinado gênero em fun-
nadas aos dois últimos ciclos. Examinamos as propostas de produção ção das intenções comunicativas, como parte das condições de
textual quanto aos seguintes aspectos: a) tipologia pedida; b) relação produção dos discursos, as quais geram usos sociais que os
com a tipologia do(s) texto(s) de leitura da unidade; c) orientações determinam. São caracterizados por três elementos:
para a produção; d) orientações para a avaliação (seja por parte do • conteúdo temático: o que é ou pode tornar-se dizível por meio
aluno-autor, dos colegas ou do professor). Nossa preocupação não é do gênero;
quantitativa, portanto os comentários sobre os exemplos represen- • construção composicional: estrutura particular dos textos
tam a tendência dos LDPs examinados. pertencentes ao gênero;
• estilo: configurações específicas das unidades de linguagem deriva-
Mudança à vista: o livro didático e a Lingüística das, sobretudo, da posição enunciativa do locutor; conjuntos particu-
É preciso admitir: o livro didático melhorou e muito. Rangel, lares de seqüências que compõem o texto, etc.” (Brasil, 1998: 21)
em seu artigo Livro didático: o retorno do recalcado (2001), aponta
esse aprimoramento como uma conseqüência das cobranças feitas Podemos relacionar os três elementos acima com o que é neces-
tanto por parte das instâncias governamentais, através do Programa sário, segundo Geraldi (1997:137), para a atividade de produção de
Nacional do Livro Didático (PNLD) do MEC, quanto por parte da texto. Assim, é preciso: a) ter o que dizer (conteúdo temático); b) ter
ciência lingüística e dos professores, insatisfeitos com o que até então um razão para dizer; c) ter a quem dizer; d) constituir-se como sujeito
vinha sendo apresentado. do que diz (estilo); e) ter como dizer (construção composicional e
Antes da chamada “virada pragmática” no ensino de língua estilo). Diante dessas considerações de ordem teórica, vejamos como
(Rangel, 2001), os LDPs apresentavam: a) gramática como eixo cen- os LDs propõem as atividades de escrita.
tral de trabalho; b) exclusividade ou predominância do texto literário; Os exercícios de produção de texto dos LDPs, em geral, dei-
e c) deconsideração do funcionamento social dos textos. Cada um xam implícitas muitas das orientações fundamentais a respeito do
desses aspectos foi revisto, o que levou grande parte dos LDPs a gênero textual pedido. Há quem defenda essa postura por uma ques-
privilegiarem, respectivamente: a) enfoque centrado no texto; b) di- tão de simplificação pedagógica. No entanto, mesmo sem expor todos
versidade tipológica; e c) consideração de fatores situacionais, tanto os detalhes a respeito do gênero, é possível explicitar para o aluno o
para a leitura quanto para a produção. que, de fato, é esperado de seu texto, de modo que a avaliação possa
Apesar desses avanços, ainda não houve um aprimoramento alicerçar-se sobre critérios claros e previamente estabelecidos.
significativo no que diz respeito à gradação de complexidade1 das Reinaldo (2001), ao analisar as orientações para a produção
atividades de produção de texto. Tendo em vista o caráter pedagógico textual em LDPs, encontrou as seguintes tendências metodológicas:
dos LDs, ou seja, o seu compromisso com a aprendizagem do aluno,
é essencial considerar essa gradação.
Nesse momento, encontramos uma grande dificuldade: que 1
Esse é um dos critérios de avaliação de LDPs, estabelecidos pelo MEC,
parâmetro ou critério deve nortear a gradação de complexidade no que deve ser observado para todos os blocos de conteúdos da área:
caso da produção de texto nos LDs? leitura, conhecimentos lingüísticos e produção de texto.
2
Segundo Marcuschi (2000: 6), tipos são construtos teóricos que abrangem
em geral, cinco a dez categorias, designadas narração, argumentação, ex-
Produção de texto: muitos implícitos, poucas orientações
posição, descrição, injunção e, para alguns autores, diálogo. Os gêneros,
É consenso, entre os especialistas da língua, a necessidade de se por sua vez, são formas textuais estabilizadas, histórica e socialmente situ-
tratar a diversidade de tipos e gêneros textuais na escola. 2Os PCN de adas.

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a) predomínio da tipologia clássica (narração, descrição e dissertação); mostrando o que o mundo deve fazer
b) não-distinção teórica entre seqüência textual e gênero textual; para se curar.(B4, p. 200)
c) ausência da denominação ou denominação inusitada da espécie de
texto a ser criado;
d) apelo excessivo à criatividade, preferindo-se o texto literário para Uma observação há que ser feita: nos volumes das duas primei-
produção; ras séries do ensino fundamental, a preocupação com os gêneros é
e) ausência de critérios de avaliação que orientem a participação do menor, uma vez os alunos estão ainda em processo de aproximação do
outro na construção do texto. texto escrito. Por isso, é comum que a temática seja o critério mais
No nosso corpus, essas tendências se confirmaram, o que pre- adotado para guiar a produção, o que é justificável nessa fase inicial.
nuncia as dificuldades a serem encontradas quanto à gradação de com- Uma exceção a essa tendência é a coleção A, especificamente nos
plexidade na produção textual. Assim, a análise dos livros revelou que volumes 3 e 4, em cujo manual do professor, pode-se ler:
há três critérios básicos de gradação de complexidade: 1) a temática Nossa preocupação é fazer com que o aluno possa
abordada; 2) os recursos lingüísticos empregados e 3) a tipologia clás- fazer (sic) uso da escrita como um espaço de tradu-
sica - narração, descrição e dissertação. ção das coisas que pensa, que sabe e sente, podendo
elaborar e deixar emergir através dela o seu mundo
Critério da temática interno. Quanto menos nós o restringirmos mais es-
Se a gradação de complexidade das propostas de produção tex- taremos dando-lhe a palavra para que aprenda a
tual guia-se pelo tema, isso se deve à quase ausência de orientação para mostrar, por meio dela, o produto do seu conheci-
a produção dos gêneros. Sabe-se que, mais do que apenas o assunto, as mento e sua visão de mundo, e não a palavra alheia.”
especificidades das formas possíveis de textualização, concretizadas (Carvalho et al., 2000, vol. 4, MP, p. VIII).
nos diversos gêneros textuais, constituem os maiores desafios para a
aprendizagem da escrita. Assim, mais do que temas, deve-se priorizar Essa proposta se concretiza à medida que o gênero pedido na
o estudo dos gêneros, a fim de oportunizar ao aluno o domínio dos seção de produção textual é sempre o mesmo do texto de leitura. O
recursos necessários para que os textos por ele criados possam funci- fundamental não é escrever sobre o mesmo tema abordado na leitura,
onar socialmente, inclusive segundo as características do gênero. Eis mas sensibilizar os aprendizes para os recursos empregados no gêne-
alguns exemplos3 do privilégio do critério temático: ro lido, de modo que possam usá-los em seu texto também.
(1) Em algum momento de sua vida, você já sentiu medo? Quan-
do foi? Escreva o que aconteceu e conte também que solução você Critério dos recursos lingüísticos
encontrou para perder esse medo. Não se esqueça de colocar um títu- Outra possibilidade de se estabelecer uma gradação de comple-
lo. (B2, p. 120) xidade está centrada na seleção de estruturas e recursos lingüísticos
(2) Agora, escreva um texto que procure responder às seguin- usados na construção do texto, tais como metáforas, comparações,
tes questões: foco narrativo e as várias formas do discurso reportado. Vejamos
a) De quem é a culpa pelo abandono de crianças nas ruas: dos alguns exemplos:
pais ou do Estado? (5) Experimente, agora, escrever em seu caderno um texto usan-
b) Como a sociedade pode ajudar a resolver a situação dessas do os mesmos recursos que Ricardo Ramos utilizou. Conte a
crianças? vida de outro personagem (que pode ser até você!). (A3, p. 16)
Atenção: escreva como se seu texto fosse publicado no jornal (6) Observe com atenção a cena da fotografia ao lado e, restrin-
de sua cidade. Procure mostrar claramente sua opinião lançando mão gindo-se aos elementos que a compõem, redija um texto narra-
de exemplos que a justifiquem. (D1, p. 144) tivo com foco narrativo em 1a pessoa. Dê um título à sua reda-
Algumas propostas de redação, apesar de destinadas a séries ção. (E1, p. 68)
diferentes, são bastante parecidas, em muitos casos, diferenciando-se
apenas pela temática que abordam. Deixa-se para o momento da ava- O uso de metáforas ou outras figuras de linguagem é considera-
liação do professor o estabelecimento de critérios que possam julgar do como o ponto máximo no domínio da habilidade de escrita. Nor-
uma narrativa elaborada por um aluno da 4a série (2o ciclo do ensino malmente, esses recursos são abordados em textos literários e publici-
fundamental) e outra criada por um aluno do 3o ano do ensino médio. tários, passando-se a idéia equivocada de que a esse universo se res-
O privilégio da temática apresenta-se também na discrepância tringem.
entre os gêneros dos textos de leitura e o gênero solicitado nos exercí-
cios de produção. Critério da tipologia clássica
Do texto narrativo ao dissertativo, passando pelo descritivo:
(3) LEITURA PRODUÇÃO essa é a seqüência de gradação mais freqüente nos LDPs do ensino
• Fábula sobre o • Narrativa fundamental II. Normalmente, inicia-se o trabalho solicitando a cria-
ato de pechinchar. Como será o uso do dinheiro no futuro? ção de histórias, para, mais adiante, exercitar a descrição de persona-
• Duas tirinhas Você acha que vai mudar alguma coisa? gens, ou mesmo a criação de textos puramente descritivos (cujo gêne-
sobre dinheiro. ro, por razões óbvias, o próprio LDP tem dificuldade de estabelecer,
• Texto informativo sobre Imagine e escreva uma história bem deixando-o indeterminado). Por fim, vêm os textos expositivos e/ou
a origem do dinheiro. diferente.(B1, p.76) argumentativos, todos denominados “dissertativos”. É como se nar-

(4) LEITURA PRODUÇÃO


• Conto sobre a Terra • Receita
• Tirinhas sobre os problemas da Terra Pense em todas as coisas
• Verbetes de almanaque 3
Designamos as coleções por letras: A (Carvalho et al., 2000), B (Miranda
ruins que existem na Terra e, como
sobre problemas de et al., 1998), C (Faraco et al., 1999), D (Tiepolo et al., 1998) e E (Cereja
um médico, escreva uma receita, et al., 1994) e seguidas do número da série (1, 2, 3 ou 4).
ecologia.

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rar fosse mais fácil do que descrever, que, por sua vez, seria mais fácil que baseiem a gradação de complexidade dos exercícios de produção
do que dissertar. de texto. Enquanto isso, os LDPs podem começar pela introdução, ao
Nos manuais do professor, é raro encontrarmos as justificati- menos nos manuais do professor, de distinções claras entre tipos,
vas para esse ordenação, fazendo-nos suspeitar de que ela permanece gêneros e seqüências textuais de modo que atividade de escrever possa
mais pela tradição do que por razões teoricamente justificáveis. Há ser mais progressão do que repetição, avaliando-se a adequação
também casos de tipologia absolutamente indefinida, em que sequer o tipológica, bem como o grau de aprofundamento dos temas e de sofis-
tipo de seqüência textual a ser privilegiada (narrativa, descritiva ou ticação das formas lingüísticas empregadas.
dissertativa) é indicado (ex. 7):
(7) Você vai escrever um texto sobre a discussão que foi pro-
posta na seção Ponto de Vista: é machista a argumentação de Referências bibliográficas
Moça deitada na grama? (...) (C3, p. 136)
(8) O quadro abaixo, A descoberta, retrata a curiosidade infan- BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros
til: um menino, revirando a gaveta de roupas do pai, descobre curriculares nacionais: 3o e 4o ciclos do ensino fundamental:
quem é o verdadeiro Papai Noel. Imagine-se no lugar do garoto língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.
e narre os fatos anteriores e posteriores à descoberta. Sua nar- CARVALHO, C. S.; PANACHÃO, D.; KUTNIKAS, S.; SALMASO,
rativa deverá ser em 1a pessoa e conter, pelo menos, uma fala de S. Construindo a escrita: leitura e interpretação de textos. 2a ed.
personagem em discurso indireto. Pronto seu texto, dê-lhe um São Paulo: Ática, 2000, v. 1, 2 3 e 4.
título. (E3, p. 107) CEREJA, W. R. e MAGALHÃES, T. C. Português: linguagens:
literatura, gramática e redação. 2a ed. São Paulo: Atual, 1994, v.
Considerações finais 1, 2 e 3.
Só a temática ou só os recursos lingüísticos não são critérios FARACO, C. A. e MOURA, F. Linguagem nova. São Paulo: Ática.,
suficientes para promover o desenvolvimento do domínio da escrita. 1999, v. 1, 2, 3 e 4.
É preciso não fragmentar o ensino da produção textual, pois esta é GERALDI, J. W. Portos de passagem. 4a ed. São Paulo: Martins
uma atividade que põe em jogo o desejo de dizer algo (temática) a Fontes, 1997.
alguém (interlocutor) de uma forma específica (recursos lingüísticos MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: o que são e como se constitu-
empregados). Assim, a produção de gêneros textuais concretizaria a em. Recife, UFPE, mimeo, 2000.
articulação entre essas dimensões da atividade discursiva. MIRANDA, C. e RODRIGUES, M. L. D. Linguagem Viva. São
Outro ponto que merece destaque é o da avaliação do texto. Na Paulo, Ática, 1998, v. 1, 2, 3 e 4.
maioria dos casos examinados, os critérios de julgamento permanece- RANGEL, E. Livro didático de língua portuguesa: o retorno do
riam implícitos, restando ao aluno e ao professor apelar para a “intui- recalcado. In Dionisio, Angela e Bezerra, Maria Auxiliadora (orgs.)
ção”, no momento de produzir e de avaliar respectivamente. O livro didático de português: múltiplos olhares. Rio de Janeiro:
Relembramos aqui as reflexões de Marcuschi (2000: 124): Lucerna, 2001, pp. 7 a 14.
“(...) há que se indagar se há gêneros textuais ideais para o REINALDO, M. A. A orientação para a produção de texto. In
ensino de língua. Tudo indica que a resposta seja não. Mas é Dionisio, Angela e Bezerra, Maria Auxiliadora (orgs.) O livro
provável que se possam identificar gêneros com dificuldades didático de português: múltiplos olhares. Rio de Janeiro: Lucerna,
progressivas, do nível menos formal ao mais formal, do mais 2001, pp. 87 a 100.
privado ao mais público e assim por diante.” TIEPOLO, E. V., GREGOLIN, R. M. e MEDEIROS, S. A. G. Lin-
Portanto, cabe aos pesquisadores ampliar os estudos a respeito guagem e interação. Curitiba: Módulo, 1998, v. 1, 2,3 e 4.
da tipologia textual (tipos e gêneros), buscando estabelecer parâmetros

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A oralidade no livro didático de
língua portuguesa: erros e acertos
Marianne Carvalho Bezerra Cavalcante
Universidade Federal de Pernambuco

ABSTRACT: When proposing the orality treatment in the portuguese-speaking class book, the National Curricular Parameters (PCN) are contributing
to exclude from the teaching Portuguese language the belief that the orality while “mistake place”, of the informality, of the language bad use. This
work aims articulate PCN’s proposals, relative to the orality, and its treatment in the class book.
PALAVRAS-CHAVE: oralidade, ensino de português, livro didático, exercícios

O tratamento da oralidade passou a ser objeto de estudo no Pois apenas pinçam aquilo que é proposto nos PCNLP e apli-
livro didático de língua portuguesa (LD) a partir da implantação dos cam em seus manuais didáticos na forma de exercícios freqüentemente
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) em 1997. Até então, não desconexos e sem sentido, sem a articulação prometida na “atraente”
havia critérios para o ensino de língua materna – pautada apenas no apresentação do manual ao professor,concluindo que preencheram os
ensino da escrita - a não ser os estabelecidos pela gramática normativa. requisitos de um LD adequado.
A oralidade, ou melhor, a fala era encarada como o lugar do mau uso da Pode parecer que estou fugindo ao tema que diz respeito à
língua. Pois partia-se de uma perspectiva dicotômica da relação “fala oralidade, mas o que acontece é que a questão de fato é mais complexa
e escrita”, cabendo à primeira o erro e à segunda o acerto. do que imaginamos. Se o tratamento da oralidade vai mal no LD, esta
Tal perspectiva reflete uma tradição teórica Saussureana (1916) é somente a “ponta do iceberg”. Que reflete, entre outras coisas,
adotada ao longo da história da lingüística, a qual excluía de seus problemas referentes
estudos ‘a fala’, revelando ser ‘a língua’- enquanto estrutura – seu · ao papel dado ao ensino neste país, ou melhor às políticas
objeto ideal. Assim estruturou-se o ensino de língua portuguesa, ou públicas e privadas do ensino no país,
melhor, de gramática da língua portuguesa. · ao distanciamento entre pesquisa e a prática de sala de aula,
Com as mudanças ocasionadas pelos PCN muitos autores/ · à delimitação do próprio objeto língua materna.
editores passaram a se preocupar com a apresentação do material Se a oralidade é posta à escanteio nos manuais de ensino de
didático por eles produzidos. Por outro lado, o MEC inicia o Pro-
Língua Portuguesa, muito se deve não só aos problemas rapidamente
grama Nacional do Livro Didático (1998) visando avaliar a qualidade
destacados, mas também às próprias escolhas na delimitação do obje-
destes livros. Aos livros cujos critérios correspondem ao mínimo
to da lingüística e esta escolha sempre privilegiou a língua, que apre-
desejado pelos PCN, estes recebem “estrelas” classificatórias, quanto
senta regras/normas/ regularidades, e a fala, pela “crença” em seu cará-
maior a quantidade de estrelas, melhor a qualidade do LD. Este
ter individual e idiossincrático, foi deixada de lado. Mas com a emer-
material é disponibilizado ao professor, que a partir de resenhas e do
gência de trabalhos sociolingüísticos, de etnografia da fala,
número de estrelas classificando o manual, poderá adotá-lo em seu
etnometodologia, análise da conversação, as pesquisas lingüísticas
trabalho. Como mostra o trabalho de Elizabeth Marcuschi (O guia
voltam-se para fala. Com destaca Marcuschi (2001: 22):
de livros didáticos e a leitura do professor) tais resenhas nem sem-
pre são elucidativas quanto à qualidade do livro a ser escolhido pelo
professor. “Na sociedade atual, tanto a oralidade quanto a escrita são
Ao que parece a “mudança” na qualidade do LD deve-se muito imprescindíveis. Trata-se, pois, de não confundir seus papéis e
mais à uma demanda mercadológica, afinal o maior mercado consumidor seus contextos de uso, e de não discriminar seus usuários”.
destes livros é o próprio governo (MEC), pois nas escolas públicas o
material é gratuito, do que a uma vontade em melhorar a qualidade do É nesta perspectiva também que os PCNLP tomam o traba-
ensino e do material didático de Língua Portuguesa. lho com a oralidade quando destacam que o uso da língua envolve a
Vários são os critérios que estes manuais devem cumprir para prática de escuta, isto é,
serem considerados aceitáveis e ter direito às famosas estrelas. Mas o que
se tem visto é que muitos autores/editores não têm uma noção clara do “a escuta refere-se aos movimentos realizados pelo
que representa: sujeito para compreender e interpretar textos orais”
(PCNLP:35).
“o domínio da linguagem, como atividade discursiva e cognitiva, Diante deste panorama, partimos para a observação do traba-
e o domínio da língua, como sistema simbólico utilizados por uma lho proposto pelo LD, referente a esta modalidade de uso da língua: a
comunidade lingüística” (PCNLP1 , 1998:19). oralidade2 . Ao analisar três coleções referentes ao terceiro e quarto
ou ciclo do Ensino Fundamental (Coccó & Hailer, 1994; Guindaste et al,
1998; Lopes & Lara, 1997). Nestas coleções, o Manual do Professor
“a unidade básica do ensino só pode ser o texto” (PCNLP, explicita de maneira bastante genérica o tratamento que será dado à
op.cit.: 23) oralidade. Assim temos:

ou sequer que
1
Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa.
“os conteúdos de Língua Portuguesa articulam-se em torno de 2
Marcuschi (2001) destaca a relação oralidade versus letramento e fala
dois eixos básicos: o uso da língua oral e escrita (...) “ versus escrita, cabendo ao primeiro grupo uma distinção entre práticas
(PCNLP:35) sociais e ao segundo, uma distinção entre modalidades de uso da língua.

58 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


(1) Se pensarmos na diversidade de perspectivas que envolvem a chama-
“O que se quer do trabalho com a língua é que o aluno domine da Análise do Discurso, não podemos precisar exatamente a que se
a linguagem em toda sua dimensão discursiva, usando-a ade- refere o LD. Na continuação, destaca que o aluno deve usa-la ade-
quadamente nas modalidades oral e escrita” quadamente na modalidade oral e escrita. Quer dizer, toma não
Guindaste, Tiepolo & Medeiros, 1998:7 – Manual do Professor somente as noções oral e escrito como perfeitamente claras para o
(2) professor, mas também mostra que ao explicar significados oral-
“Ao tomar consciência de que há diferenças entre a produção mente, discutir e fazer comentários com colegas é suficiente para
oral e a escrita, o estudante, na fala ou na escrita, usará os garantir o uso adequado da modalidade oral.
recursos pertinentes a cada uma delas. Por isso, apresentamos Na coleção 2, Lopes & Lara, faz-se uma menção à existência
também situações de exercício da oralidade.” diferenças entre oralidade e escrita. O objetivo é fazer com que o
Lopes & Lara, 1997:7 – Manual do Professor aluno se utilize dos recursos pertinentes a cada modalidade. No
(3) entanto, não há comentários sobre as características de cada uma das
A coleção de Coccó & Hailer (1994) não menciona a oralidade modalidades. Percebe-se nos exercícios propostos, um cuidado em
no seu Manual do Professor. caracterizar de alguns gêneros como o debate, por exemplo (ver qua-
Nos manuais faz-se menção à importância da oralidade no ensi- dro 1). Mas a preocupação parece situar-se apenas na estrutura
no de língua portuguesa, mas quando partem parte o tratamento efe- organizacional do gênero, não nas características intrínsecas à fala.
tivo desta oralidade, a questão muitas vezes se complica. Pois, apesar A coleção 3, Coccó & Hailer, sequer menciona o trabalho com
dos PCN de Língua Portuguesa descreverem objetivos, conteúdos e a oralidade no Manual do Professor. Mas em seus exercícios deixa
claro como entende a linguagem oral, enquanto linguagem coloquial
estratégias de ensino da oralidade, tais como:
e informal (quadro op.cit.). Apesar de propor exercícios de escuta e
Quanto aos objetivos no processo de produção de textos
“cópia” de fala, solicita dos alunos a pontuação adequada na versão
orais espera-se:
escrita da fala. E perde a oportunidade de mostrar ao aluno que as
• planejamento da fala pública usando a linguagem escrita em marcas prosódicas e entonacionais da fala não correspondem à pontu-
função das exigências da situação e dos objetivos estabelecidos; ação da escrita, pondo um fim à idéia, amplamente aceita, de que a
• considerar os papéis assumidos pelos participantes, ajustan- escrita é uma representação da fala.
do o texto à variedade lingüística adequada;
• monitorar seu desempenho oral, levando em conta a intenção
comunicativa e a reação dos interlocutores e reformulando o planeja-
mento prévio, quando necessário. PCNLP: 51

Quanto às práticas de escuta de textos orais:


• compreensão dos gêneros do oral previsto para os ciclos arti-
culando elementos lingüísticos a outros de natureza não-verbal;
• identificação de marcas discursivas para o reconhecimento de
intenções, valores, preconceitos veiculados no discurso;
• emprego de estratégias de registro e documentação escrita na
compreensão de textos orais, quando necessário; etc. PCNLP: 55

Quanto às práticas de produção de textos orais:


• planejamento prévio da fala em função da intencionalidade do
locutor, das características do receptor, das exigências da situação e dos
objetivos estabelecidos;
• seleção, adequada ao gênero, de recursos discursivos, semân-
ticos e gramaticais, prosódicos e gestuais;
• emprego de recursos escritos (gráficos, esquemas, tabelas)
como apoio para a manutenção da continuidade da exposição;
• ajuste de fala em função da reação dos interlocutores, como levar
em conta o ponto de vista do outro para acata-lo, refuta-lo ou negocia-lo.
PCNLP: 58
Assim, ensinar língua oral de acordo com os PCNLP:

“ (...) deve significar para escola acesso a usos da linguagem


mais formalizados e convencionais (...). Significa desenvolver o
domínio dos gêneros que apóiam a aprendizagem escolar de Quadro 1: Papel da oralidade no Livro didático x proposta de
Língua Portuguesa e de outras áreas (exposição, relatório de exercícios
experiência, entrevista, debate etc.) e, também, os gêneros da vida Como podemos perceber, as exíguas oportunidades propiciadas
pública (debate, teatro, palestra, entrevista etc.)” PCNLP: 68 para o tratamento da oralidade no LD são sub-utilizadas, pois apesar
O ensino desta modalidade, no entanto, ainda está longe de dos PCN atribuírem valor e importância a ela, esta ainda não é visualizada
alcançar seus objetivos. Observemos um pouco a tipologia dos exercí- como de relevância para ser devidamente tratada nos LD de língua
cios propostos nos LD. Numa análise comparativa entre o papel portuguesa. De fato, poucas são as obras publicadas3 , direcionadas a
atribuído por tais coleções e as propostas de trabalho apresentadas professores de uma maneira geral, dedicadas a seu estudo, no âmbito do
(ver quadro 1 a seguir), temos um distanciamento entre aquilo pro-
ensino de língua portuguesa. Vale citar aqui o livros “Da Fala para
posto no Manual do Professor pelo LD e o que de fato ocorre nos
exercícios ao longo da coleção.
Na coleção 1, Guindaste et. al, os autores afirmam a importân-
cia do aluno dominar sua linguagem na dimensão discursiva, no
entanto sequer esclarece ao professor o que vem a ser esta dimensão. 3
Vale salientar aqui também: Fávero et al. (1999).

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Escrita. Atividade de Retextualização” do Prof. Luiz Antônio Marcuschi fessor. Comunicação apresentada na Mesa Redonda: O livro di-
e o “Livro Didático de Português. Múltiplos Olhares”, organizado dático de língua portuguesa: múltiplos olhares. II Congresso In-
pelas Profs. Ângela Dionísio e Maria Auxiliadora Bezerra, ambos em ternacional da ABRALIN. Fortaleza, 14 a 16.03.2001.
processo de lançamento. Estes livros discutem questões de relevância, MARCUSCHI, L. A. (2001) “Da Fala para Escrita. Atividade de
não só pertinentes ao papel da oralidade, mas também o papel do Retextualização”. Cortez: São Paulo.
próprio ensino de língua materna. São obras que valem a pena serem BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental (1998). “Parâmetros
adquiridas. Já no âmbito acadêmico, tais questões vêm sendo ampla- Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fun-
mente discutidas em Projetos como o NELFE – Núcleo de Estudo da damental. Língua Portuguesa”. MEC/SEF: Brasília, DF.
Língua Falada e Escrita – Coordenado pelo Prof. Marcuschi e o NAPE SAUSSURE, F. (1916-1982). “Curso de Lingüística Geral”. Cultrix:
– Núcleo de Avaliação e Pesquisa Educacional – Coordenado pela Profa. São Paulo.
Elizabeth Marcuschi e do qual as integrantes desta mesa fazem parte.
Quanto aos erros e acertos. Acertam os LD quando tentam Livros Didáticos consultados:
propor um trabalho com a oralidade, mas erram na maneira equivoca- COCCÓ, M. F. & Hailer, M. A. (1994). “ALP. Análise, Linguagem e
da com que apresentam um objeto que sequer conhecem. Pensamento. A diversidade de textos numa proposta
sociocontrutivista”. v. 5-8. Livro do Professor. FTD: São Paulo.
Referências bibliográficas LOPES, V. & Lara, A. (1997). “Tudo dá trama. Língua Portuguesa:
Enunciação. Gramática a serviço do texto”.v. 5-8. Livro do Pro-
DIONÍSIO, A. P. & Bezerra, M. A. (2001) (org.). “O Livro Didático fessor. Dimensão: Belo Horizonte, MG.
de Português. Múltiplos Olhares”. Lucerna: Rio de Janeiro. GUINDASTE, R. M. G. ; Tiepolo, E. V. & Medeiros, S. A, G. (1998).
FÁVERO, L. L.; Andrade, M. L. C. V. O. & AQUINO, Z. G. O. “Português”. v. 5-8. Livro do Professor. Módulo: Curitiba, PR.
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gua materna”. Cortez: São Paulo. “Português”. v. 5-8. Módulo: Curitiba, PR .
MARCUSCHI, E. (2001) O guia do livro didático e a leitura do pro-

60 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


As interferências no texto do aluno:
uma relação singular e imprevisível
Eduardo Calil1 & Regina
Nagamine
Universidade Federal de Alagoas

RÉSUMÉ: Cet article a pour objectif d’analyser, dans la perspective théorique linguistique et discursive, les effets des commentaires rédigés par un
instituteur sur la première version qu’un élève de CE22 a écrite sur la fable “La cigale et la fourmi”. L’ auteur examine également les rapports entre
la première et la deuxiéme version écrite par l’ écolier.
PALAVRAS-CHAVE: texto em sala de aula, interferência do professor, singularidade, autoria.

As interferências feitas pelo professor no texto do aluno estão


necessariamente inscritas pelas articulações entre os registros do Real,
do Simbólico e do Imaginário (Milner, 1983, 1987). São os efeitos de
semelhante (do imaginário), a partir das relações com os outros regis-
tros, que estabelecem aquilo que será apontado como problemas no
texto do aluno, e, conseqüentemente, indicado para ser modificado,
visando, imaginariamente, a supressão dos erros e a produção de um
texto melhor ou mais adequado ao modo de funcionamento estabiliza-
do da língua.
Tradicionalmente, estas formas de interferência se estabelecem
a partir de formações discursivas ligadas ao ensino de ortografia, de
gramática e de pontuação, havendo um intenso conjunto de enuncia- Apesar de não termos acesso à discussão que se passou em sala
dos voltados aos problemas formais que estes aspectos mobilizam. A de aula entre a professora e seus os alunos, o bilhete faz referência a
configuração imaginária que aí se põe tem o poder de evocar no pro- ela, pedindo para o aluno relembrar o que conversaram sobre separa-
fessor a crença de que sua interferência no texto do aluno atue de modo ção de falas de personagens. Assim, pelo que consta no bilhete, pode-
direto sobre a melhoria ou a qualidade do próprio texto, apagando ou mos observar que há um enfoque sobre dois pontos:
minimizando os efeitos da relação do sujeito com aquilo que escreveu 1. Separação entre o discurso direto e o indireto;
e com o que está sendo escrito durante a prática de textualização. Em 2. Uso de sinais de pontuação, particularmente, os sinais “dois
outras palavras, oblitera a relação entre significantes que o próprio pontos”, “travessão” e “interrogação”.
texto que se está escrevendo mobiliza. Vejamos a outra versão do texto produzido pelo aluno, após as
É justamente sobre este ponto que indicaremos que esta relação interferências realizadas pela professora.
entre o aluno e os significantes que tecem seu texto, intermediada pelo
que diz o professor, não é tão direta ou transparente como um primei- [2ª versão, escrita em 23/02/1995.]
ro olhar poderia supor. Escolhemos uma prática de textualização em
que um aluno de 2ª série, Yuri, reescreve, a pedido da professora, a É importante destacar que a interferên-
fábula “A cigarra e as formigas” de Monteiro Lobato, tomando como cia da professora não produz os efeitos espe-
texto-referência a versão “a formiga boa”, lida para os alunos dias rados, pois as questões que foram apontadas
antes3. não são modificadas conforme ela sugere. Os
problemas apontados no bilhete em relação à
[1ª versão4, escrita em 17/02/1995.] primeira versão permanecem no segundo tex-
to. Cabe então perguntar: quais foram os efei-
Como se pode observar, tos produzidos por estas interferências? Se elas
Yuri, conforme a proposta fei- não produziram as mudanças esperadas, po-
ta pela professora, escreve seu deríamos dizer que as interferências não tive-
texto, retomando e narrando ram importância no retorno ao texto?
sem muitos detalhes o que se
passa entre a cigarra cantadora 1
eco@fapeal.br
e as formigas trabalhadoras. A 2
CE2 corresponde, no sistema educacional brasileiro, à 2ª série do 1º grau
professora, ao dirigir seu olhar do Ensino Fundamental.
para o texto do aluno, aponta 3
Este corpus foi utilizado na dissertação de Maria do Socorro Ferreira dos
alguns problemas, como mos- Santos intitulada “Reescrevendo Histórias: uma análise lingüístico-discursiva
tra o bilhete abaixo: da prática de reescritas de textos”, e pertence ao banco de dados “Prá-
ticas de Textualização na Escola”, coletado e organizado com apoio do
CNPq.
[Interferência da pro- 4
Apresentaremos os textos escritos por Yuri respeitando o máximo possí-
fessora feita em 19/02/1995.] vel a disposição gráfica (como por exemplo, o que está escrito em cada
linha) e os problemas diversos que ele apresenta (como por exemplo, a
ortografia, os erros gramaticais, a ausência de pontuação, etc).

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 61


No bilhete a professora faz uma referência direta às falas dos do eixo metafórico faz com que o estatuto semântico entre elas se
personagens “formiga” e “cigarra” no trecho “eu poço ficar até o assemelhe, isto é, “pedir”, “perguntar”, “falar”, “dizer”, “responder”
verão pos entre cigarra”, solicitando uma pontuação adequada. Na acabam sendo intercambiáveis. A emergência de “pediu” cria uma
2ª versão, este momento da história aparece na forma do discurso restrição em relação ao elemento transpositor, que não permite a for-
indireto: “[a cigarra] pidiu se podia dormir”. Se, por um lado, fica ma dubitativa “se”. Foi o estabelecimento deste eixo de equivalência
minimizada a questão da omissão do ponto de interrogação e demais entre “pediu” e “perguntou” que parece, por um lado, produzir o erro,
sinais de pontuação para marcar a separação formal da fala do perso- e por outro, não haver uma “escuta5” de Yuri para ele.
nagem, por outro, temos o aparecimento de uma quebra sintática, A nossa hipótese é que a presença de “pedir” no bilhete da
produzida pela inadequação do verbo “pedir”, que nesta posição, professora, juntamente com a concorrência das estruturas acima
antecedendo o “se”, cria um erro. O que poderia estar interferindo no indicadas, teria relação com a forma “pediu” no enunciado “e pediu se
movimento provocado pela emergência imprevisível deste significante podia dormir”, indiciando esta relação de texto com texto, constitutiva
na cadeia? de qualquer prática de textualização, ou para ser mais geral, de qualquer
Se voltarmos ao bilhete da professora, encontramos o seguinte relação possível entre sujeito e língua.
enunciado “No momento em que a formiga pede auxilio a cigarra, ela Outros efeitos inesperados se produzem nesta relação de texto
está fazendo uma pergunta. Você não deveria utilizar o sinal de inter- com texto.Iremos destacar um outro problema na 2ª versão de Yuri
rogação para indicar isto ao leitor?”. Talvez haja aqui uma pista da para tentar mostrar a singularidade e imprevisibilidade que a relação
relação imprevisível entre o bilhete e a 2ª versão. O enunciado “... a entre aquele que escreve e seu próprio escrito pode estar trazendo.
formiga pede auxílio a cigarra...” aparece mobilizar um significante, a Comparando o inicio da 1ª versão com o início da 2ª versão destaca-
saber, a forma “pidiu” no enunciado “e pidiu se podia dormir”, mos:
marcando a solicitação de um personagem (a cigarra) para o outro (a 1ª versão
formiga), mas também o inesperado cruzamento de, pelo menos, duas
estruturas: 2ª versão

1. (a cigarra) perguntou se podia dormir;


2. (a cigarra) pediu para dormir

A cadeia manifesta “e pidiu se podia dormir”, escrita na 2ª


versão, indica a latência destas estruturas e as relações metafóricas
entre “perguntou” e “pediu” que inesperadamente o significante
“pede” presente no bilhete da professora mobilizou.
Há também que se considerar, para avançarmos na tentativa de
explicação daquele “erro”, as relações que podem ter sido produzidas
pela passagem do discurso direto, marcado por um verbo dicendi na 1ª
versão (“[a cigarra] falou: eu posso ficar até o verão”), para o indireto.

Em relação ao discurso direto teríamos a estrutura “sujeito (3ª No início da 1ª versão destacado acima não há grandes surpre-
pessoa do singular, neste caso) + verbo dicendi + fala do personagem” sas. Apesar do texto ser menor, Yuri mostra, no enunciado “A cigarra
que poderia se apresentar através dos seguintes enunciados: cantava enquanto as formigas trabalhavam”, uma adequação se-
mântica e sintática que poderia ser indicada pela posição dos elemen-
- “a cigarra falou: eu posso [ficar até o verão/dormir]?” tos na cadeia sintagmática “X (a cigarra cantava) enquanto Y (as
- “a cigarra perguntou: eu posso dormir?” formigas trabalhavam)”. Estas posições dos termos X e Y apresen-
- “a cigarra pediu: eu podia/poderia dormir aqui?” tam-se de modo previsível e como possível na língua.
- “a formiga respondeu/disse: pois entre, cigarra.” Já o texto inicial da 2ª versão traz outros elementos que produ-
zem abalos nesta estrutura estabilizada. Depois de uma breve intro-
No discurso indireto a estrutura se apresenta como “sujeito (3ª dução “a cigarra morava em um tronco no topo de uma árvore...”,
pessoa do singular, neste caso) + verbo dicendi + o enunciado do perso- Yuri preserva a estrutura da cadeia sintagmática “X (a formiga cons-
nagem, introduzido por um elemento de ligação”. Este elemento de truía sua casa) enquanto Y (a cigarra cantava)”.
ligação pode se efetivar pelo “transpositor que, pela dubitativa se e O termo X marcado na 1ª versão (“a cigarra cantava”) sofre
pelos pronomes e advérbios de natureza pronominal quem, qual, onde, uma inversão de posição em relação ao termo Y (“as formigas traba-
por que, quando, etc.” (Bechara, 1999:482). lhavam”). Além disso, há uma metaforização entre “as formigas
trabalhavam” e “a formiga construía sua casa”, que se mantém
- “a formiga falou para ela dormir no formigueiro.” como uma espécie de paráfrase entre a ação de “trabalhar” e a ação de
- “a cigarra perguntou se podia dormir.” “construir sua casa”, que, de certa forma, retoma de modo mais espe-
- “a cigarra pediu para [ficar até o verão/dormir].” cificado a primeira ação. Esta relação de semelhança semântica entre
- “a formiga respondeu/disse para ela entrar.” os dois enunciados faz com que a emergência de “a formiga construía
sua casa” na posição de “X” restringisse o aparecimento de “a formi-
As formas “pediu”, “perguntou” e “falou” se mantêm tanto ga trabalhou”, mantendo-o na cadeia latente. No entanto, este enun-
no discurso direto como no indireto. Todavia, as restrições impostas ciado permanece na cadeia manifesta, fazendo com que ele soe estra-
pela cadeia não se estabelecem da mesma maneira, uma vez que a nho.
entrada do discurso direto amplia as possibilidades de continuidade, Assim, a emergência do enunciado “a formiga construía sua
enquanto que, no discurso indireto, a exigência do elemento de liga-
ção as restringe.
A semelhança entre as formas produzidas no estabelecimento
5
Para melhor compreender a noção de “escuta” sugerimos a leitura de
Calil (1997; 1998) e Calil & Nagamine (1999).

62 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


casa” como primeiro termo da estrutura “X enquanto Y”, restringe professor sobre o texto do aluno não conseguem conter os movimen-
tanto sintática quanto semanticamente a emergência dos termos que tos singulares e imprevisíveis entre o aluno e o texto que escreve?
virão a seguir. Esta estrutura define uma relação de concomitância Afirmamos, logo no primeiro parágrafo, uma necessária articulação
temporal entre dois fatos, dois acontecimentos ou duas ações simultâ- entre os registros do Real, do Simbólico e do Imaginário para se pensar
neas. O que parece ocorrer nesta 2ª versão é a ruptura desta estrutura a estruturação da relação entre sujeito, língua e sentido. É precisamen-
pela entrada de um terceiro elemento, no caso, o enunciado “e a te por haver esta articulação que as interferências não tem o poder de
formiga trabalhou”. Quando o termo “a cigarra cantava” deu con- apagar os movimentos desta relação.
tinuidade ao enunciado “a formiga construía sua casa enquanto...” Apesar dos limites entre os registros serem míticos6, na análise
fica sem lugar aquele enunciado em relação à estrutura anteriormente que realizamos tentamos indicar um pouco da relação entre o sujeito e
manifesta. a língua, que estes registros estruturam. Como efeito do registro Ima-
Talvez a presença deste enunciado e a ruptura que ele marca ginário, temos as produções de semelhança, de unidade de sentido que
fique mais clara se voltarmo-nos para a 1ª versão. Podemos observar se cristalizam enquanto um funcionamento atestado na língua. De um
que lá encontramos a mesma estrutura “X enquanto Y” e os mesmos lado, os pontos que a professora destaca como problemas no texto do
termos (“a cigarra cantava” e “as formigas trabalhavam” / ”a aluno. De outro, aquilo que para o aluno se estabelece como unidade
formiga trabalhou”). Isto indica uma relação bastante próxima entre do texto. Em relação ao registro do Simbólico, as análises feitas acima,
um texto e outro, e provavelmente até mais intensa do que a relação através dos processos metafóricos e metonímicos, indicaram justa-
que o aluno teria com o bilhete da professora. Parece que, por um lado, mente aquilo que é da ordem do dessemelhante, da diferença, em que
é a concorrência destes termos nesta estrutura que interfere em sua alguma coisa pode estar por outra, através do cruzamento entre cadei-
ruptura, e por outro, a posição subjetiva na língua ocupada por Yuri as. Como efeito do registro do Real, temos o equívoco que as estrutu-
(2ª posição, conforme Lemos, 1998) não permite um estranhamento, ras manifestas indiciam, enquanto deslocamento do significante. As-
nem um reconhecimento de sua imprevisibilidade, na medida em que a sim, enquanto que a singularidade estaria atrelada ao modo como o
presença de “a formiga construía sua casa” não parece ser suficiente sujeito se inscreve nesta estruturação, a imprevisibilidade emerge
para apagar ou re-significar o enunciado “as formigas trabalhavam” / das relações entre significantes. O texto é o efeito desta relação entre
“a formiga trabalhou”, mantendo-o nesta 2ª versão quase como um o singular e imprevisível e seu modo de inscrição nos universos
fragmento daquela 1ª versão. enunciativos que o configuram dentro de um registro imaginário. Isto
A quebra na estrutura “X enquanto Y” também pode estar relaci- vale, necessariamente, tanto para a posição ocupada pelo professor,
onada com o processo metonímico (Lemos, 1998, 1999) que talvez esteja quanto para aquela ocupada pelo aluno.
interferindo aí, pois, se observamos bem, a presença do “e” logo após “a
cigarra cantava” parece se impor na cadeia sintagmática apagando o ele- Referências bibliográficas
mento X daquela estrutura, que aparece estabilizada na 1ª versão. Deste
modo, o “e” estaria convocando metonimicamente a manifestação de “a BECHARA, E. (1999) Moderna Gramática Portuguesa, Rio de Ja-
formiga trabalhou”. neiro: Lucerna.
Deste modo, a presença do “e” antes da colocação do enuncia- CALIL, E. (1997) “A escuta e o funcionamento da rasura”. Revista
do “a formiga trabalhou” reitera o argumento em direção a esta rup- Leitura, 20 Maceió: Editora da Universidade Federal de Alagoas.
tura e o modo fragmentado e, poderíamos também dizer, metonímico, _____, (1998) “Autoria como movimento de escuta” In: Loni Grimm
através do qual ele se insere na cadeia. Cabral & Edair Gorski (org.) Lingüística e Ensino: reflexões para
Não podemos deixar ainda de observar a mudança do verbo do a prática pedagógica da língua materna Florianópolis (SC):
pretérito imperfeito (“trabalhava”) para o pretérito perfeito (“traba- Editora Insular (91-109).
lhou”) como outro lugar de ruptura. A quebra no tempo verbal em CALIL, E. & NAGAMINE, R. (1999) “O que produz unidade na
relação ao termo anterior (“a cigarra cantava”) é mais um vestígio da produção do erro ortográfico” In: Denilda Moura (org.) Os Múl-
dificuldade em abandonar esse enunciado ou re-significá-lo no encade- tiplos usos da língua Maceió: Edufal.
amento daquilo que vem sendo escrito. LEMOS, Cláudia T.G. de (1998) Os processos metafóricos e
É interessante ainda destacar que o pretérito perfeito é o tempo metonímicos como mecanismos de mudança. In: Substratum:
verbal utilizado em todo o restante do texto, a partir a emergência de temas fundamentais em Psicologia e Educação. vol.1, n.3.Porto
“e a formiga trabalhou”: Alegre: Artes Médicas.
- “chegou o inverno”; _____ (1999) Questioning the notion of development: the case of
- “a cigarra bateu na porta”; language acquisition. Campinas, SP: IEL/Unicamp.
- “pediu se podia dormir”; MILNER, J. C. (1983). Les noms indistints. Paris: Seiul.
- “a formiga deixou”; MILNER, J-Cl. (1987) O Amor da Língua. Porto Alegre: Artes Médicas.
- “você que cantou”; VORCARO, A (1997) A criança na clínica psicanalítica. Rio de Ja-
- “chegou o verão”; neiro: Companhia de Freud.
- “a cigarra voltou a sua cantoria”
Poderíamos supor que há um efeito interferindo duplamente na
produção de unidade entre estes enunciados. Uma das interferências
estaria ligada a um movimento retroativo da forma verbal “chegou” -
presente na 1ª versão e estabilizada nas estruturas verbais comumente
encontradas nas narrativas ficcionais - que anteciparia a manifestação
da terminação do pretérito perfeito no enunciado “a formiga traba-
lhou”. A outra interferência ligada ao mesmo efeito de semelhança
seria a restrição que este tempo verbal produz em todas as outras
formas verbais que aparecem na continuidade da cadeia.
Precisamos finalizar tentando pontuar um pouco mais a ques- 6
Ver Milner (1987), particularmente, capítulo 1. Ver também Vorcaro
tão suposta no título do trabalho, a saber, por que as interferências do (1997:68) para uma explicação mais precisa das relações entre Real,
Simbólico e Imaginário.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 63


Variantes lexicais e seu estatuto em
face do sistema e da norma
José Alves Fernandes
Universidade Federal do Ceará

ABSTRACT: The propose of this work is to show, by means of exemplar cases, the illimited virtuality of the linguistic system in guaranteeing the
continuous renewal of language in the field of the lexicography.
We have tried, in the first place, to demonstrate the linguistic feeling of native speakers to put in practice the idiomatic rules that underlie the processes
of word formation un Portuguese, in spite of their taken for grandet ignorance.
In the second place, we have presented the special case of some not yet studied type of word formation, that’s to say, the singular oxytone words in
– é and ó – a kind of strange morphemes bearing the semic feature: “standard anatomic deviation”.
PALAVRAS-CHAVE: Virtualidade; canonicidade; variação; base paradigmática.

A prova provada da infinita potencialidade do sistema lingüístico acabado, mas uma ¦ν©ρνεια, uma criação contínua e que, tal como a
revela-se na produção ininterrupta de novas formas léxicas na suces- vida, está sempre se renovando. Colhemos o termo em gravação feita
são do tempo bem como na multiplicação dos espaços configurados com o Sr. Raimundo Carlos Filho, de Nova Russas, em que ele nos
como novos ecúmenos na constituição geopolítica dos povos. conta a peripécia de um caçador que se dispôs a pegar uma onça,
Com relação à língua portuguesa do Brasil cuja população re- munido apenas de uma corda e um cornimboque bem abastecido de
presenta a continuidade da herança lusitana a que se veio somar o tabaco ou rapé. No clímax do relato diz ele: quando a bicha saltou pra
aloglotismo dos aborígines e dos transplantados africanos, o panora- pegar o caboclo, ele destampou o cornimboque e sapecou o tabaco nas
ma lingüístico é dos mais variados e ricos que se possa imaginar. enxergas da onça. Aí ela, cegada pelo tabaco foi fácil amarrar e trazer
Focalizaremos nesta sumária comunicação algumas amostras pro curral.”
de variações lexicais representativas da criatividade do falante brasilei- Na realidade, o termo, claramente um deverbal de “enxergar”,
ro no processamento do seu direito de uso do sistema lingüístico por nos remete de imediato a “oiças”, deverbal de “ouvir”, de cunho
ele herdado e cujas regras ele nos dá continuamente provas de conhe- popular, e clicherizado na expressão deprecativa : “Deus tape-lhe as
cer à revelia das nossas cismas, suspeitas ou suposições em contrário. oiças.” Podemos, assim, estabelecer a seguinte quarta proporcional:
Decidimos apresentar alguns casos de formas lexicais margina- Enxergas: enxergar:: oiças (ou ouças): ouvir.
lizadas em face da canonicidade lexicográfica e procurar explicá-las à Observemos ainda que a base paradigmática por nós
luz de certos processos utilizados recorrentemente pelo sistema estabelecida, encontra igualmente um perfeito símile no francês, em
lingüístico, o que lhes confere, a nosso ver, o estatuto de legitimidade que o termo popular “Esgourde” designativo de “oiça” (ouvido ou
gramatical. orelha) representa o provençal “escouta”, ou seja, escuta, 3ª pessoa
AZUNHAR: Para significar “ferir ou riscar com as unhas” , do singular do verbo “escutar”. Neste particular, acrescente-se que
como se lê no dicionário ou no vocabulário ortográfico oficial. em português temos também o deverbal “escuta” do verbo “escutar”,
No registro popular do Ceará, no entanto, emprega-se corren- só que é sempre usado em acepção abstrata, o ato de escutar, e não
temente “azunhar’, forma de que se têm utilizado os escritores com valor concreto de órgão da audição.
regionalistas, conferindo-lhe assim, progressiva e irrestivelmente Em boa verdade, se de “ouvir” temos a “oiça”, e de “escutar”
foros de cidade, sob a canonização da literatura. (“Jacira, porém, não temos a “escuta”, por que não poderíamos ter de “enxergar” a
se deu por vencida: lutou ferozmente, azunhou-me o rosto, mordeu- “enxerga”? E assim, fortalece-se cada vez mais a nossa convicção de
me o braço, puxou meus cabelos.” Fran Martins, O amigo de infân- que não se pode pôr em dúvida ou sob suspeição o saber lingüístico do
cia, p. 80) falante e a sua capacidade para preencher as casas vazias da norma
Na verdade, a formação do termo revela-nos simplesmente o através da utilização dos modelos anteriores ou das regras inscritas na
resultado de uma juntura operada pela realização fonética do sintagma virtualidade do sistema.
as + unhas = /azuñas/ donde: azunhar. Compare-se o francês “zieuter”,
olhar, ao nível do “argot”, resultante do sândi ‘les+yeux+/lezieu/ em NACARÉ, CORÓ, TOCÓ, CARIJÓ, GOBÉ: Levantamos,
perfeita simetria com a nosso “azunhar”. nas cartas de n°s 54, 55,56 e 59 do Atlas Lingüístico do Paraná, as
Não admira, pois, que os nossos atlas lingüísticos registrem designações acima especificadas, designativas de raças ou variedades
formas autenticamente vigentes entre os nossos informantes, quer de galinha, baseadas em características descritivas como cor, disposi-
analfabetos, quer alfabetizados, como “zolhos”, “zorelhas”, ção e qualidade das penas e outras particularidades anatômicas.
“zouvidos”, etc. Dessas denominações chamou-nos particularmente a atenção a
Conceder a tais formas o estatuto de variantes lexicais não opacidade semântica das formas oxítonas em é e ó que caracterizam
estigmatizadas dependerá certamente de condicionamentos de ordem aquelas unidades lexicais.
vária de natureza sociológica, política, cultural, etc. Na verdade, o primeiro – Nacaré – aplicado à galinha arrepia-
Registra-se, aliás, na língua a forma canônica “zorate”, que sig- da, ou seja, de penas arrepiadas ou crespas, não se encontra registrado
nifica “maluco, doido”, oriunda, pelo mesmo processo, do sintagma em nenhum dicionário ou vocabulário da língua, e sua forma e consti-
“casa dos orates”, casa dos loucos, manicômio. tuição apresentam-se totalmente opacas. O segundo nome – Coró –
Não faltam, portanto, exemplos paradigmáticos suficientes para a aplica-se à “galinha do pescoço pelado”; trata-se de um vocábulo
validação de variantes da natureza das que ora acabamos de comentar. dicionarizado com outras acepções totalmente alheias à do nosso elen-
ENXERGAS – S.f.pl. – Este segundo exemplo enseja-nos lem- co, bem como desacompanhado de qualquer indicação etimológica. O
brar a tese de Humboldt de que a língua não é um ¨ργον, um produto terceiro – Tocó – é aplicado à “galinha sem rabo” e é dado por alguns

64 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


dicionários como uma metátese ou hipértese de “cotó”, o qual por sua vocábulos oxítonos um morfema “sui generis” designativo de particu-
vez não tem etimologia líquida e certa. “Carijó”, finalmente, é o único laridade física, quase sempre de natureza deformadora ou aberrante do
para o qual é oferecida uma etimologia tupi que aponta para o significa- padrão normativo de constituição do indivíduo em causa.
do pertinente do termo, a saber, galinha cujas penas são salpicadas de
branco e preto. Na indicação etimológica feita pelo AURÉLIO lê-se: do Referências bibliográficas
tupi = procedente do branco.
Gostaríamos de acrescentar que no Ceará, na região de AGUILERA, Vanderci de Andrade. Atlas lingüístico do Paraná. Lon-
Uruburetama, colhemos do informante Francisco Caetano das Chagas drina: Imprensa Oficial do Paraná, [1994].
a designação de “Gobé”, galinha gobé”, para a galinha do pescoço DAUZAT, Albert. Lês argots – Caractères, Évolutions, Influence.
pelado. E mais uma vez, um termo oxítono em é, totalmente opaco do Paris: Librairie Delagrave, 1946.
ponto de vista da sua constituição. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI.
Para concluir, gostaríamos de reafirmar a validade do princípio 3ª ed. totalmente revista e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fron-
de que no sistema lingüístico residem todas as virtualidades sobre que teira, 1999.
assenta o processo de formação da linguagem, inclusive no domínio MARTINS, Fran. O amigo de infância (contos). Rio de Janeiro: De-
do léxico. No caso vertente dessa categoria de palavras a que acaba- partamento de Imprensa Nacional, 1959.
mos de referir-nos sugerimos que se veja nos elementos é e ó desses

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 65


à paraître in: Proceedings do II Congresso Internacional da ABRALIN (Associaçao Brasileira de Linguistica), Fortaleza, 14-16.3.2001.

Pour une approche conversationnelle


des objets de discours
Lorenza Mondada
Romainsches Seminar, Université de Bâle
(lorenza.mondada@unibas.ch)

ABSTRACT: This paper presents some issues raised by a conversational approach of topics and discourse objects, within the framework of the
interactional linguistics. First, key assumptions of this approach are discussed, focussing on the interactional activities of the speakers. Then some
consequences for the study of topics and discourse objects are explicitated, with a special emphasis on various features specially underlined by this
approach, such as the configurating effect of the participants’ orientation, the interactive construction of discourse objects and the local exploitation
of grammar within sequentiality.
PALAVRAS-CHAVE: análise do discurso, etnometodologia, lingüística interacional, tópico, objeto do discurso, referenciação.

1. Objectifs système que les locuteurs ne feraient qu’actualiser, mais traite de


Ce texte vise à expliciter les apports spécifiques de la linguistique catégories rendues localement pertinentes par les orientations situées
interactionnelle aux problèmes de référenciation. Pour ce faire, il précise des locuteurs dans leurs activités spécifiques. Elle ne traite pas d’unités
d’abord la “mentalité analytique” de la linguistique interactionnelle minimales définies a priori par leurs caractéristiques structurales et
pratiquée, pour ensuite développer quelques propriétés des objets de combinables selon des règles prédéfinies, mais d’unités plastiques,
discours que cette approche permet de décrire. dynamiques, émergentes, qui se constituent dans la temporalité des
séquences interactionnelles et dans les ajustements entre les locuteurs
2. Horizon conceptuel: la linguistique et qui donc sont contingentes par rapport à leurs actions (Goodwin,
interactionnelle 1979; Ford, 1993; Selting, 1995; Ono & Thompson, 1995; Mondada,
2.1. Cette contribution se fonde sur la linguistique 1995a, 2000a, à paraître).
interactionnelle, entendue ici comme le tournant linguistique de l’analyse
conversationnelle d’inspiration ethnométhodologique. Il existe en effet 2.3. Il découle de cette approche spécifique une vision particulière
de nombreuses approches de l’interaction dans le paysage des sciences de la langue: la langue, en effet, existe d’abord dans et par les pratiques
humaines, qui se basent sur des présupposés différents et des cadres langagières des locuteurs; elle est profondément imbriquée en elles et
théoriques distincts, allant de l’analyse des faces de Goffman à l’analyse ne peut donc être définie indépendamment d’elles: il s’agit de se
du discours de l’Ecole de Birmingham; parmi elles l’analyse demander comment la langue se manifeste et se constitue en même
conversationnelle au sens strict, d’inspiration ethnométhodologique, temps dans les pratiques, c’est-à-dire, plus précisément, comment les
initiée dans les cours de Harvey Sacks dans les années ’70 (cf. Sacks, pratiques langagières, et notamment les activités interactionnelles des
1992) et prolongée dans sa collaboration avec Schegloff (cf. Sacks, participants, identifient, exploitent, et par là configurent les ressources
Schegloff, Jefferson, 1974), constitue une tendance spécifique (cf. les de ce qui sera désigné (par eux, par les entreprises normatives, par les
distinctions que fait Levinson, 1983, ch. 6; cf. Gülich & Mondada, à grammaires) comme étant la langue. La langue appartient aux locuteurs
paraître pour une présentation détaillée; cf. ten Have, 1998 pour une - avant qu’au linguiste; c’est le « je » qui se la réapproprie dans chaque
introduction). acte d’énonciation, qui la réinvente pour mieux s’ajuster à la situation
en cours. Les effets de codification et de standardisation ne sont donc
2.2. Alors que Sacks et ses collègues (cf. Schegloff & Sacks, pas les seuls aspects définissant la langue; ils sont le résultat de pra-
1973) ne visaient pas à l’origine une analyse du langage mais plutôt tiques sédimentées, à décrire dans leurs effets constituants et non pas
une analyse des activités sociales que les enregistrements (limités à à considérer dans leur évidence constituée (Mondada, 1995a; à paraître).
l’audio à cette époque) rendaient disponibles pour une écoute répétée
et donc pour une analyse détaillée, ces dernières années l’analyse 3. Une approche de la référenciation
conversationnelle a progressivement pénétré dans plusieurs secteurs 3.1. Dans ce cadre, nous allons nous pencher sur les phénomènes
de la linguistique (cf. Ochs, Schegloff, Thompson, 1996). Sa réception, de référenciation en nous focalisant sur la façon dont les objets de
néanmoins, reste ambiguë: si d’une part de nombreux linguistes discours sont interactivement élaborés par les participants dans leurs
reconnaissent l’efficacité de l’analyse conversationnelle pour le activités langagières.
traitement des données orales interactives, d’autre part ils la réduisent
souvent à un ensemble d’outils techniques et résistent ainsi à adopter 3.2. La question de la référence est un thème classique de la
la “mentalité analytique” qui la caractérise (cf. Sacks, 1984; Schenkein, philosophie du langage, de la logique et de la linguistique; dans ces
1978). Cette “mentalité” implique en effet un regard particulier sur les cadres elle a été historiquement posée comme un problème de
ressources langagières: elle ne traite pas des formes pour en faire une représentation du monde, de verbalisation du référent où la forme
description générale dans une grammaire, mais traite plutôt des linguistique choisie est évaluée en termes de vérité et de correspondance
procédés des locuteurs (les “ethnométhodes” de Garfinkel, 1967) avec lui. La question de la référenciation opère un glissement par
pour construire le sens, assurer l’intercompréhension, rendre possible rapport à ce premier cadre: elle ne privilégie pas la relation entre les
les activités langagières ordinaires. Elle ne traite pas de catégories mots et les choses mais la relation intersubjective et sociale au sein de
descriptives abstraites dont les conditions d’application seraient laquelle des versions du monde sont publiquement élaborées, évaluées
définies de façon nécessaire et suffisante et qui constitueraient un en termes d’adéquation aux finalités pratiques et aux actions en cours

66 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


des énonciateurs (Mondada & Dubois, 1995). De cette façon, ce sont et cette civilisation du cerf CONtinue à les imprégner au point que
les procédés mis en oeuvre par les participants à l’interaction pour sous DROgue et ça c’est un thème qui reviendra: euh . tout à l’heure
assurer des opérations de référenciation qui deviennent l’objet de la . sous drogue/ ils revoient l’animal qui a été la base de la civilisation de
description de l’analyste. leurs ancêtres
Au sein de ces opérations de référenciation, les interlocuteurs
élaborent des objets de discours, i.e. des entités qui ne sont pas conçues Extrait 2 (cité par Orletti 1989:81)
comme des expressions référentielles en relation spéculaire avec des 1 A Bello sto maglione. Te l’ha fatto tua madre?
objets du monde ou avec leur représentation cognitive, mais des entités 2 B No, l’ho comprato. E fatto a mano, però, è pure caro. Sai
qui sont interactivement et discursivement produites par les 3 stamattina ho comprato un barattolo di marmellata di ribes =
participants au fil de leur énonciation. Les objets de discours sont 4 A = Che vuoi dire perchè tua madre non te l’ha fatta ((ride))
donc des entités constituées dans et par les formulations discursives 5 B No, mi è venuto in mente pensando a cose che costano caro.
des participants: c’est dans et par le discours que sont posés, délimités, 6 Pensa, 4500 per un barattolo piccolo=
développés, transformés, des objets de discours qui ne lui préexistent 7 A = Ah adesso ti seguo, non è che fosse cosi chiaro, prima,
pas et qui n’ont pas une structure fixe, mais qui au contraire émergent 8 il ragionamento
et s’élaborent progressivement dans la dynamique discursive.
Autrement dit, l’objet de discours ne renvoie pas à la verbalisation Dans l’extrait 1, le locuteur identifie explicitement le thème de
d’un objet autonome et externe au discours; il n’est pas un référent qui son propos et en projette la pertinence vers la suite, créant ainsi à la
aurait été codé linguistiquement (Mondada, 1994). Certains de ces fois des attentes et des effets de cohésion. Dans l’extrait 2, à la ligne 4,
objets peuvent constituer des topics, i.e. des objets traités et manifestés A interroge rétrospectivement la pertinence de l’enchaînement
par les participants comme ce à propos de quoi ils énoncent le discours thématique que vient d’effectuer B en passant du pullover à la confiture:
en train de se faire. Le topic est ainsi reformulé comme une entité A manifeste sa propre lecture de l’enchaînement, en privilégiant un
considérée ainsi par les participants avant que par l’analyste (cf. lien de continuité thématique possible, reliant les “choses faites par la
infra). mère de B” - alors que B montrera (5-6) qu’un autre lien thématique
est à l’oeuvre, reliant les “choses qui coûtent cher”. Ils montrent ainsi
3.3. Nous allons nous concentrer sur un certain nombre de le fait que les locuteurs, de façon éventuellement divergente, recherchent
propriétés des objets de discours et des processus de référenciation et construisent constamment des pertinences thématiques.
qui ne sont que très partiellement considérés par les approches La description de leurs orientations est susceptible de redéfinir
grammaticales et cognitives de la référence et qui jouent par contre un les propriétés situées de la topicalité, telles qu’elles sont élaborées
rôle central dans l’approche interactionnelle découlant de l’analyse ensemble par les participants en relation aux contingences du
conversationnelle. déroulement séquentiel et contextuel de la conversation. Ainsi en est-il
Nous insisterons en particulier sur le fait les participants s’orientent par exemple de certaines propriétés identifiées dans la littérature comme
vers les objets de discours en train d’émerger dans l’interaction et vers définissant le topic: c’est le cas de la propriété “connu” (known) (par
leur statut éventuel de topic (4.), sur le fait que les objets de discours ne opposition à la “nouveauté” censée caractériser le comment ou le rhème,
relèvent pas de l’énonciation d’un locuteur isolé mais sont des élaborations selon les modèles) (cf. p.ex. Chafe, 1994; Givon, 1992; Lambrecht,
collectives (5.) et sur le fait que leur formulation est accomplie en 1994). Mais alors que la littérature a traité cette propriété de façon ou
mobilisant la grammaire-en-action dans des environnements séquentiels formelle ou cognitive, il est possible de la traiter comme une
particuliers, i.e. un ensemble de ressources indexicalement appropriées à caractéristique rendue pertinente et établie par les participants dans
l’activité conversationnelle (6.). l’interaction, qui se manifeste dans le travail public d’établissement
d’un savoir commun:
4. Les orientations des participants vers des
objets de discours traités comme des topics Exemple 3 (Mondada & Zay 1999:405) (radio)
4.1. La notion de topic a suscité une abondante littérature (cf. le café\ ce qu’on ne sait pas toujours/ . est d’origine africaine\
Mondada, 1994, ch. 4 pour un état de la question) traversée par des
tentatives contradictoires de la définir. Une façon d’échapper à ces Exemple 4 (cité par Sacks & Schegloff 1979)
apories terminologiques et conceptuelles consiste à traiter le topic 1 A well I was the only one other than than the uhm tch
non pas comme une notion de l’analyste définie par un modèle 2 Fords?, uh Mrs. Holmes Ford? You know
théorique, mais comme une notion des participants, qu’ils peuvent 3 uh = [the cellist?
thématiser mais surtout vers laquelle ils s’orientent pratiquement dans 4 B [oh yes. She’s she’s the cellist
la production de leurs tours de parole. Cette approche est consistante 5 A Yes. Well she and her husband were there.
avec celle de Sacks ou de Schegloff en analyse conversationnelle, où la
question des topics a été approchée avec une certaine méfiance, due Comme on le voit dans le premier exemple, la propriété “connu”
surtout à la volonté d’éviter des analyses fondées sur des paraphrases peut être modulée de diférentes façons, dans le marquage explicite du
de contenus (cf. Sacks, 1992, I, 752; Schegloff, 1990, 51-2). statut du topic: ici l’incise permet de spécifier le caractère “pas
Le fait de respécifier le topic comme une notion des participants toujours connu” de ce qui est dit du topic, le rendant ainsi digne d’être
permet de montrer l’efficace de son fonctionnement dans la mentionné et développé. Dans le second cas, la mention de la référence
conversation. Les participants s’orientant constamment vers la question personnelle, sous forme de nom propre, est énoncée accompagnée par
“why that know?” (Schegloff & Sacks, 1973) qui leur permet d’établir des try markers, des hésitations, des contours interrogatifs, des reprises
in situ et collectivement la pertinence de toute contribution du nom propre, une mention de la catégorie professionnelle de la
interactionnelle. Cela relève aussi bien d’une interprétation personne. C’est ainsi que A établit d’abord le statut “connu” (cf.
rétrospective (extr. 2) des tours de parole que d’une anticipation “you know” 2) du topic, avant de continuer à le traiter (sous forme
prospective (extr. 1) de ce qui va suivre, comme dans les extraits pronominale).
suivants: Les propriétés du topic sont ainsi établies par les participants,
Extrait 1 (cité par Mondada & Zay 1999:403) (radio) de façon située (et non de façon générale) et attentive aux contingences

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de l’interaction. Ces contingences émergent au fil du développement pourra reformuler sa version (19-24). On voit que les interventions
séquentiel où les topics sont introduits et développés de façon des autres participants ne laissent pas intacte la formulation de Présenti,
collaborative. laquelle subit un ensemble de transformations de la première (4-6) à la
dernière (19-24) version: la première est plus abstraite, caractérisée
5. Les objets de discours comme élaborations collectives par des nominalisations d’actions, alors que la seconde est ancrée
Un objet de discours n’appartient en effet pas en propre à un dans les actions d’un acteur particulier mis en scène à la première
seul locuteur, mais, une fois introduit, il est pris en charge par tous les personne.
participants (Mondada, 1995b). Ceux-ci interviennent dans son On peut ainsi dire qu’en cas de désaccord comme en cas d’accord
développement et dans sa configuration de différentes façons: même et de construction collaborative, les objets de discours sont
lorsqu’ils se limitent à en accompagner la formulation par des signes collectivement élaborés par les participants. Cette co-élaboration est
d’acquiescement, voire des évaluations et des commentaires, ils notamment rendue possible grâce à la façon dont les participants
interviennent d’une certaine manière sur sa forme, que l’énonciateur mobilisent les ressources grammaticales dans l’interaction en train de
ajuste réflexivement à eux. En outre, ils peuvent intervenir de façon se faire.
plus radicale, en collaborant à l’établissement même de ses contours. En particulier, une façon pour les participants de montrer qu’ils
Tel est le cas par exemple de l’extrait suivant: sont en train co-élaborer l’objet de discours consiste à construire
Exemple 5 (FT31011) (réunion de travail) collaborativement des énoncés, comme dans les extraits suivants:
1 TRO l’o- l’objectif c’est quoi alors/ en fait\ Exemple 6 (une95boe)
du thème/ . 1 C enfin/ y a une année maintenant qu’il a deux
2 que vous proposez\ qu’il a deux
3 (2) 2 passeports\
4 PRE c’est-à-dire/ est est-ce qu’il existe une prise de 3 B ah il en a deux/
5 pouvoir par contamination/ hein au travers 4 C mais à dix-huit ans ils lui ont dit euh:
6 de [de quand on parle de rapprochement 5 B qu’il devait choisir/
d’entreprise/] 6 C qu’il devait choisir\ puis lui il avait cru que il a- il
7 TRO [c’est l’évolution des modèles cul]turels ou 7 avait renié l’italienne/
8 est-ce que c’est euh:: l-
9 PA qui va bouffer l’autre\ Exemple 7 (une95boe)
10 TRO ouais\ 1 C il croyait aussi qu’en signant/ parc’qu’j’sais plus/ il se
11 PRE non c’est [l’évolution/ 2 souvenait qu’à dix-huit ans il avait dû signer quelque
12 PA [d’Orange ou de France Télécom 3 cho(se)\.. il avait l’impression qu’il avait: euh dû: ouais
13 B par exemple 4 [xx
14 PRE c’est pas [c’est pas pour bouffer/ 5 B [<renoncer ((accéléré))>
15 TRO [est-ce que c’est 6 C renoncer
16 PA [xx finalement comme ça/ 7 B renoncer à sa: [à sa nationalité italienne
17 C [non c’est pas bouffer/ c’est l’évolution du du- 8 C [pis en fait pas du tout\
18 PA attends
19 PRE y a y a y a\ y a Orange qui est le petit/ . et qui euh H. Sacks a montré dans ses cours dès la fin des années ’60 que ces
20 et et qui euh euh et vraiment un contrat/ c’est énoncés collaboratifs (joint productions) étaient une façon à la fois de
France faire quelque chose ensemble – quelque chose que la littérature considère
21 Télécom qui dit OK\ vous vous êtes comme habituellement comme relevant de la compétence syntaxique d’un
ça/ nous on seul locuteur – et d’exhiber ainsi les participants comme formant un
22 on on a tel profil/ . euh\ . moi ce qui groupe (Sacks, 1992, I, 321ss; Lerner, 1991; cf. Mondada, 1999 pour
m’intéresse/ d’autres références et analyses). Ces procédés de composition
23 c’est c’est votre nom et votre philosophie collective d’énoncés montrent combien la grammaire peut être exploitée
pa- parce de façon située pour des actions collaboratives. C’est dans ce cadre
24 que j’y crois et en plus je veux qu’on la qu’une reformulation de la façon de considérer les marquages
contamine\ grammaticaux des objets de discours est possible.

Encore une fois (cf. ex. 4) les participants exhibent leur orientation 6. Ressources grammaticales et organisation séquentielle
vers non seulement ce qui est le topic (l. 1) mais encore vers sa La littérature sur les processus de référenciation, de thématisation et
formulation, ses contours, ses caractéristiques sémantiques. Cela d’anaphorisation a buté contre la polyfonctionnalité des marqueurs
déclenche une reformulation du topic (4) effectuée par Présenti (4-6) grammaticaux des objets de discours: en effet ceux-ci ne sont pas
mais immédiatement concurrencée par Trovin en chevauchement (7- biunivoquement articulés à une fonction discursive précise – le pronom
8). La version de Présenti est donc confrontée à une double version ne marquant pas toujours une information ancienne ou connue, la
alternative de Trovin, la seconde n’étant que partiellement énoncée dislocation à gauche étant exploitée parfois pour introduire un nouvel
(“ou est-ce que c’est euh:: l-” 7-8) et complétée par Pasquin (9). objet, parfois pour en mettre un relief un ancien, etc. (cf.Apothéloz,
L’alternative est donc collaborativement formulée par Trovin et 1997; Cornish, 1999). Ces constats, dont la littérature abonde,
Pasquin (qui continue ligne 12), ratifiée par Trovin (10), niée par montrent la difficulté d’établir une articulation générale entre formes
Présenti (11) qui esquisse une double reformulation de la sienne (positive et fonctions, fondée implicitement sur une conception selon laquelle
11 et négative 14). La seconde nie celle de Trovin et Pasquin et est la langue “coderait” des statuts des référents ou des informations.
reprise par un autre participant, Carven (17), dans un passage où les Une approche alternative se penche plutôt sur les activités par
chevauchements sont multiples. Ce n’est qu’après une régulation lesquelles les locuteurs rendent localement et publiquement intelligibles
explicite du mode de l’échange de la part de Pasquin (18) que Présenti leur choix expressifs, en ne se limitant pas simplement à “coder” des

68 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


entités référentielles ou cognitives, mais en bricolant contextuellement considérer la non pertinence du jugement pour la fondation (8, 11),
les marquages les plus appropriés à la situation communicative. Ainsi sur le fait que Coriolan ne fonde rien (13, 14), sur le rôle de victime de
la valeur des marqueurs utilisés est moins à rapporter à un modèle Coriolan (16, 17). Toutefois, au-delà de cet accord, une divergence
général de la fonctionnalité de ces marqueurs et davantage à la façon apparaît qui aboutit à un désaccord (23-25): elle concerne précisément
dont ils sont utilisés de façon située et dont ils acquièrent un sens la façon dont l’objet de discours est conçu, dont la continuité thématique
rendu manifeste par leur positionnement séquentiel particulier, lié à est manifestée et construite par les deux interlocuteurs. Alors que W
l’organisation de l’interaction. L’analyse se concentre alors sur les se réfère de façon constante à Coriolan, par le pronom “er” (“il”), en
procédés par lesquels les participants structurent leurs activités en faisant ainsi de la discussion une interaction thématiquement centrée
utilisant de façon située certaines formes linguistiques. sur ce personnage historique, au contraire V mentionne des objets
L’extrait suivant permet de caractériser cette approche: plus abstraits (V 18 “la figure” vs W “il”, V 11 “le jugement” vs W “il
est jugé”) et change d’objet à plusieurs reprises, qu’il marque de façon
Extrait 8 (HR20118/MUL/ap2-1157-1181) à les mettre en relief et à souligner un contraste possible (par une
1 W müssten wir schon nochmal genauer construction disloquée, l. 11, par une construction clivée l. 18, et en
defi[nieren& on devrait encore définir une fois faisant référence une seule fois à Coriolan, par un pronom tonique
plus précisément& disloqué “lui-même il”). On peut constater ainsi que V et W utilisent
2 V [mhm=mhm des ressources formelles très différentes pour marquer des objets de
3 W &was wir unter äh fondation wirklich verstehen\ discours ainsi rendus divergents: alors que W montre qu’il considère
äh:: . weil &ce qu’on comprend vraiment comme comme allant de soi le maintien thématique de Coriolan, V montre au
étant la fondation\ äh:: . contraire que l’identification de l’objet de discours pertinent pose
4 es eben doch verwandte begriffe auch gibt\ . und problème. C’est dans le contraste entre les deux, en même temps que
und parce qu’il y a justement des concepts dans leur développement séquentiellement imbriqué, que leurs choix
apparentés\ . et et grammaticaux prennent leur sens. Ainsi, par exemple, la dislocation à
5 und phänomene gauche peut intervenir dans un contexte où il y a désaccord et permettre
et des phénomènes une organisation séquentielle qui retarde l’apparition de ce désaccord
6 (2s) (de Fornel, 1988).
7 W ich mein der koriolan ist kein- deswegen weil er
j’veux dire Coriolan est pour ça n’est pas parce qu’il 7. En guise de conclusion
8 verurteilt wird ist [er noch kein fondatEUR/ Dans ce bref texte, nous avons voulu insister sur le caractère
est jugé [il n’est pas encore un fondatEUR/ dynamique et localement construit des objets de discours dans
9 V [mhm=mhm l’interaction verbale. Cette attention particulière nous invite à analyser
10 W [<ebenfalls\ .. das xxxx ((bas))> moins les contenus sémantiques des objets de discours que les procédés
[<pareillement\ .. le xxxx par lesquels les participants les élaborent discursivement. Cette
11 V [le: le: le: jugement/ .. le jugement n‘est pas fondateur approche procédurale insiste donc sur les activités langagières des
12 (4s) participants, où ceux-ci agissent et interprètent à la fois leur action, en
13 Walso er er grÜndet nichts\ . so[ndern er ist allenfalls lui fournissant son intelligibilité et son sens au fur et à mesure qu’ils
donc il il ne fonde rien] . ma[is il est de toute façon l’organisent collectivement. Les objets de discours sont avant tout
14 V [NON ... NON .. NON NON définis par les interactants – avant que par l’analyste –; ils ne dépendent
15 W so ein passiv . eine passive rolle dabei\ jamais d’un seul locuteur qui les contrôlerait et les développerait
un passif . il a un rôle passif solitairement, mais du collectif des participants qui interviennent dans
16 V NON\ lui-même depuis lui-même il est victime/ leur élaboration en les stabilisant, en les renforçant, voire en les réifiant,
17 W [ (er ist das opfer) ja=ja\ ja=ja\] ou bien en les destabilisant, en les mettant en question, ou en les
[ (il est la victime) oui=oui\ oui=oui\] détournant. Dans ces dynamiques, et pour organiser l’interaction, les
18 V [mais sa figure est fondatrice/ . c‘est sa fIgUre qui est participants recourent aux ressources de la grammaire qu’ils utilisent
19 fondatrice\] à toutes fins pratiques, en les “bricolant” de façon située, en en
20 W ja=JA: aber exploitant les propriétés typiques mais aussi en faisant émerger d’autres
oui=OUI: mais principes d’ordre, de façon locale, contingente et liée à l’action.
21 V d‘une procédure\ . d‘un événement/ . d‘une C’est ainsi que l’approche des objets de discours repose sur
procédure\ . et une triple préoccupation analytique, concernant l’organisation
22 et et susceptible de reproduction\= séquentielle de l’interaction, la configuration émergente de la grammaire,
23 W =(ja) aber ist das wirklich fondatrice l’élaboration de versions publiques du monde.
=(oui) mais est-ce que c’est vraiement fondatrice
Conventions de transcription
24 (8s) [ chevauchements . .. ... pauses
25 V <euh:: . euh:: oui/ moi je . je pense oui/ enfin\ ((bas))> (2 s) pauses en secondes xxx segment inaudible
/ \ intonation montante/descendante exTRA segment accentué
((rire)) phénomènes non transcrits : allongement vocalique
Dans cet extrait d’une réunion de travail bilingue, deux < > délimitation des phénomènes entre (( )) & continuation du tour de parole
= enchaînement rapide par- troncation
professeurs, l’un suisse, W, et l’autre français, V, sont en train de
discuter sur un projet de recherche scientifique qu’ils développent
ensemble, portant notamment sur la notion de “fonction fondatrice”, Références bibliographiques
qui est ainsi un objet de discours qui accompagne leur travail sur
plusieurs années, qui est donc aussi un “objet de savoir” (Mondada, APOTHÉLOZ, D. (1997), Les dislocations à gauche et à droite dans
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70 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Atos de referenciação na interação face a face1
Luiz Antônio Marcuschi
Universidade Federal Pernambuco - UFPE

ABSTRACT: Starting from the premise that the process of referenciation is neither a simple activity of extensional designation nor of identification
or discrimination of beings, individuals, things, facts, situations, states, etc., but a complex interactive decision developed by individuals in specific
situations, this paper makes explicit how interlocutors arrive at referential consensus in the public and social use of language. It is based on the idea
that reference is much more a situated and interactive action than an explicitation of a language-world relation or an act of affirmation of successful
and conventionalized correspondences in the language. In the end, it postulates that our assertions are assertions of beliefs assumed as facts
because as Putman says, it is reasonable to take them as facts. Therefore, to refer is essentially a process of explicitation of beliefs, interactively and
publicly elaborated and admitted.
PALAVRAS-CHAVE: processos de referenciação (referentiation processes); uso social da língua (social use of language); interação colaborativa
(collaborative interaction).

1. A irrelevância da vericondicionalidade para a determi- comum acordo entre os atores sociais envolvidos numa dada tarefa
nação referencial comunicativa.3
Se eu afirmasse aqui que o processo referencial é muito mais uma Vejamos aqui um exemplo extraído de um diálogo ocorrido em
questão etnográfica do que uma questão semântica e epistemológica, de 1980 entre uma moça de 27 anos (N) que chega a um posto de gasolina
que tamanho seria a heresia? Imagino que para os devotos das teorias com seu carro e um frentista de 29 anos (F), coletado por Sette
semânticas vericondicionais eu deveria tirar umas longas férias distante (1980:153).
da comunidade lingüística e para os interacionistas e sócio-cognitivistas Exemplo (1)
eu seria elevado ao status de guru. Como não pretendo me afastar da 1 N: quer verificar água da bateria por favor
comunidade lingüística nem me tornar guru de ninguém, matizarei um 2 F: um momentinho moça (...) está baixa (..) vai pegar uma
pouco minha assertiva sem me afastar muito destas duas idéias centrais: meia garrafa
1. A noção de verdade como correspondência é irrelevante 3 N: quanto é a garrafa?
para o processo referencial; 4 F: é vinte e cinco (..) o resto você guarda que serve para
2. A referenciação na relação face a face é fruto de uma ativida outra vez
de colaborativa e não uma simples convenção lingüística. 5 N: o senhor quer verificar o óleo também? (...)
6 F: o óleo tá bom (..) tá um bocado sujo mas ainda agüenta
Disto decorrem várias conseqüências às quais me dedicarei aqui uns dias
mostrando como a referência, na relação face a face, é muito menos 7 N: se tiver muito sujo ‚ melhor mudar logo
uma determinação lingüística e muito mais uma ação conjunta num 8 F: olhe aqui (..) está preto já mas ele ainda tem visgo
processo interativo com atividades inferenciais realizadas na 9 N: visgo como?
enunciação, sem esquecer que a cognição situada exerce um papel 10 F: ainda tá grosso assim (..) quando ele tá ralo não
central. Disse ‘na relação face a face’, mas poderia certamente admi- presta mais
tir qualquer tipo de enunciação, tanto escrita como falada. Em suma, 11 N: então deixa (..) na semana que vem eu troco (..) dá uma
parece que a determinação referencial prevê um processo de arbitra- limpadinha no vidro por favor
gem interativamente controlado.
Interessam, no exemplo (1), as linhas 8 a 10, em que os
Quanto à primeira tese, convém frisar que a noção de referência interlocutores N e F constroem colaborativamente a noção de ‘visgo’
adotada não é a das teorias verifuncionais que vêem na correspondência
linguagem-mundo uma relação biunívoca, numa postura epistemológica 1 Este trabalho insere-se no contexto do Projeto Integrado “Fala e
realista e com uma significação rígida. No caso, a linguagem, tida como Escrita: Características e Usos” desenvolvido no Departamento
realidade mental, seria um espelhamento do mundo sendo este uma de Letras da Universidade Federal de Pernambuco com apoio do
realidade extra-mental. Daí surgiria a noção de correspondência. Não CNPq, (proc. nº 523612/96-6) e situado no NELFE (Núcleo de
adotando essa posição, afirmo ser a vericondicionalidade irrelevante Estudos Lingüísticos da Fala e da Escrita).
para a referenciação2 , já que esta é uma atividade interativa e não uma 2 Em parte, esta posição retoma a questão já levantada por
relação de correspondência convencional e fixa. Em conseqüência, a Donnellan (1966) quando ele distinguiu entre o “uso referencial”
e o “uso atributivo” de descrições definidas, postulando que no
referência será aqui definida como atividade de construção colaborativa caso dessas expressões poderia ocorrer um conteúdo descritivo
de referentes como objetos de discurso e não objetos do mundo falso sem prejuízo da determinação referencial.
(v. Mondada & Dubois, 1995). A idéia central neste ponto é a de que a 3 Na realidade, as posições aqui sugeridas são bastante comuns,
referência não se dá apenas na relação linguagem – mundo. só não têm sido desenvolvidas nesta perspectiva. Vejam-se, por
Quanto à segunda tese, que postula ser a referência uma questão exemplo, os conhecidos trabalhos de John L. Austin (1962), John
etnográfica, trata-se de situar a discussão no contexto das investiga- R. Searle (1969) sobre os atos de fala, e Herbert Paul Grice (1968
ções etnometodológicas (v. Goffman, [1979] e Gumperz, 1982) que e 1975) com o princípio de cooperação e as implicaturas basea-
postulam ser a racionalidade e a construção da própria realidade uma dos na distinção entre significação natural (do enunciado) e não-
natural (do falante) que, rigorosamente falando, não levaram a
atividade de enquadre cognitivo socialmente realizado. A rigor, gostaria quase nada de relevante na questão do tratamento das interações
de chegar a afirmar que a referência não se resolve na epistemologia nem verbais reais devido ao formalismo a que estão submetidos. É
na ontologia e sim na ação interativa. Trata-se de uma questão sócio- provável que nem Austin, nem Searle e muito menos Grice te-
cognitiva em que o processo referencial é melhor caracterizado como nham analisado uma única transcrição de fala ou tenham se dedi-
interativo. A referência poderia ser tida como aquilo que, na atividade cado a alguma audição de fita ou de indivíduos em situações
discursiva e no enquadre das relações interpessoais, é construído num interativas.

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como forma de determinação da consistência do óleo do motor em tes não se desempenham num “vácuo”, mas sim “em arenas de ações
função de uma tomada de decisão. O referente de ‘visgo’ não é evidente altamente estruturadas” das quais tomam parte os atores sociais (parti-
como objeto do saber de N e precisa de ser construído, o que é feito com cipantes), os processos sociais e as ações coletivas.
base numa explicação (como estratégia comum nestes casos). Com isto Em sua obra mais recente, Clark (1996:3) propõe e desenvolve
desfazem-se equívocos, determinam-se referentes e tomam-se decisões. como tese central que “o uso da língua é realmente uma forma de ação
O tema da produção lingüística como atividade conjunta, como conjunta”. Para o autor, “uma ação conjunta é aquela produzida por um
mostrarei adiante, é o núcleo das duas últimas obras de Herbert H. grupo de pessoas que agem coordenadamente”. Neste sentido, a ação
Clark, “Arenas do Uso da Língua”(1992) e “Usando a língua” (1996), lingüística “envolve tanto processos individuais como sociais”. Ao pri-
numa perspectiva bem diversa daquela proposta por Searle (1969) e vilegiarmos essa tradição lingüística, admitimos que a maneira mais
Grice (1975). Também Lorenza Mondada (1994 e 1997), Dennis comum de produzir sentido em nossas práticas culturais é considerá-lo
Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995), entre outros, se dedicaram es- como uma construção social.
sencialmente a esse tema nos últimos anos e suas posições constituem
aqui meu ponto de partida.
3. Língua como lâmpada e não como espelho
Vários estudos recentes sobre as anáforas, em especial as
Uma concepção dinâmica de língua, não essencialista nem
anáforas indiretas analisam a questão (v. Schwarz, 2000 e Marcuschi,
formalista é decisiva para as análises que pretendo fazer aqui. Neste
2001). Ultimamente, inclino-me cada vez mais a considerar as teorias
sentido, concebo a língua muito mais pela metáfora da “lâmpada” que
dos espaços mentais e das mesclas de domínios conceituais tal como
vêm sendo desenvolvidas por Gilles Fauconnier (1985, 1997) e, entre do “espelho”, pois ela não é uma representação especular do mundo e
nós por Margarida Salomão (1999) como uma das melhores aborda- sim uma apresentação; a língua não é um retrato e sim um trato do
gens dos processos de referenciação como atividades interativas e não mundo, isto é, uma forma de agir sobre ele. Mais do que capital, a língua
operações lingüísticas. Portanto, nem o tema nem as principais solu- é uma moeda, servindo para trocas; mais o que um almoxarifado de
ções são novos. mercadorias disponíveis (num estoque de itens lexicais) a língua é uma
carpintaria (uma espécie de heurística). A língua não é uma dupla de
2. As duas tradições: língua como produto e língua como ação trilhos a ligar dois pólos – o mundo e a mente -, mas um conjunto de
Em sua proveitosa obra sobre o funcionamento da língua em trilhas que decidimos seguir mesmo que dê em aporias. Com isto
contextos sociocomunicativos, Herbert Clark (1992:xi-xvi) distingue perguntamos muito mais pelos processos de construção de sentido na
duas tradições na lingüística contemporânea dos anos 60 do século XX interlocução e muito menos pelos sentidos eventualmente construídos
para cá: (a) tradição do produto e (b) tradição da ação. Até os anos 60 nessa interlocução.
dominava a tradição estruturalista e descritivista tributária de um ideal A condição aporética da linguagem enquanto fenômeno humano
de ciência positivista que progressivamente foi perdendo sua consis- é a forma de ser da língua. Daí ser ela uma atividade social e cognitiva em
tência inclusive em áreas como a Física e a Química, tradicionalmente as contextos historicamente delineados e interativamente construídos. A
mais resistentes. linguagem se dá como interlocução situada e se oferece como conheci-
A tradição do produto, é representada em especial pelo mento para o outro. Dinâmica por natureza, a língua é estável, mas não
gerativismo, pelos estruturalismos e pelos diversos tipos de formalismo estática e permite que os indivíduos a sigam. Deixa-se normatizar, em-
que se ocupam de analisar a língua enquanto produto com fonologia, bora de forma variável e variada. A linguagem é um de nossos nichos
morfologia, sintaxe e semântica bem estabelecidas. É a perspectiva da humanos mais antigos. Muito anterior à invenção do machado e da roda;
significação dos enunciados baseada no conhecimento da língua; não se anterior também à descoberta do fogo e da pólvora. Foi o motor da
interessa pela questão da contextualização dos enunciados. Os falantes própria construção da condição social do homem que só assim conse-
dominam a língua a ponto de não terem problemas no processo interativo guiu fazer o outro saber que pensa e o quê pensa. Veja-se a este respeito
que não conta como fator relevante. Para esta tradição, o aspecto estru-
a posição de Tomasello (1999) que postula ser a evolução sócio-cultural
tural da frase é mais básico que o da sua significação. Aqui a língua tem
do ser humano fundada em seus instrumentos semiológicos mais im-
um nível de autonomia suficiente para permanecer na análise da frase.
portante que a evolução biológica, e que o processo de “evolução cultu-
A tradição da ação, inaugurada em especial por Austin e conti-
ral cumulativa”, que nos torna humanos, funda-se na “inventividade
nuada por Searle, Grice e os pragmaticistas, analistas da conversação,
colaborativa” denominada sociogênese (p. 41). Trata-se de uma interação
etnometodólogos, analistas do discurso, busca ver o funcionamento da
língua em vários níveis de ação: não nega a existência e importância dos cooperativa em que dois ou mais indivíduos desenvolvem instrumen-
níveis estritamente lingüísticos mencionados, mas frisa a relevância de tos, símbolos etc. para uso comum.
todos os demais níveis, tais como o da enunciação, modalidade, cognição,
situacionalidade e assim por diante. Nesta tradição o aspecto enunciativo 4. A referenciação não é unívoca
e a significação são mais básicos do que a estrutura em si. A convicção Explicar como conseguimos referir e como sabemos que referi-
aqui é a de que não produzimos frases e sim enunciações sempre situa- mos determinadas entidades com enunciados lingüísticos é uma tarefa
das em contextos em que indivíduos se encontram em interações. A tese bastante árdua e ainda aberta à discussão. Não é uma saída muito segura
central nesta tradição é a de que falar ou escrever não são atividades dizer que partilhamos uma língua com uma sintaxe, morfologia, fonologia
autônomas mas sim são parte de uma atividade pública, coletiva, coor- e um dicionário embutido, convencionalmente utilizados em nossas
denada e colaborativa. enunciações. Pois é fácil mostrar que um sem-número de enunciações
Na segunda tradição, a expressão uso da língua é de certo modo podem ter variadas e legítimas interpretações, variados e legítimos refe-
imprecisa, pois ela suporia que os sentidos seriam produtos do uso de rentes designados sem que se possa dar preferência a um ou outro sem
frases particulares por falantes, como se essas frases tivessem em si os invocar o contexto enunciativo, a intenção e outros expedientes.
Veja-se o caso comentado por Jakob Mey (1993:89), supondo
conteúdos e aos falantes só restasse identificar tais conteúdos. Melhor
uma situação em que eu estaria no meu quarto num hotel de um país
será, nesta tradição, falar sem ações lingüísticas, o que traduz bem a
estrangeiro e ouvisse batidas à porta. Não abro a porta, mas pergunto:
noção de agir com a língua como uma forma de “produzir uma classe
“quem é?” e obtenho como resposta: “sou eu”. O que é que eu faço
de ações coletivas nas quais a significação dos falantes joga um papel
neste caso? Abro a porta ou não? Se conheço a qualidade da voz e nela
necessário” (Clark, 1992:xvii). Para Clark, isso é assim porque os falan-
identifico uma pessoa conhecida posso abrir; do contrário, me encontro

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fico na dúvida. Na realidade, um “sou eu” não é uma identificação nem sentidos ab ovo, como se fossem os primeiros a dizerem determina-
uma referência muito clara pois eu é todo aquele que enuncia o enunci- dos conteúdos. Quando digo que a interação é a base para os proces-
ado encabeçado por esse pronome. Trata-se de uma asserção dêitica o sos referenciais, proponho que se veja a interação como ponto de
que mostra que a referência é basicamente, pelo menos neste caso, uma convergências para a construção de referentes ou de sentidos, mas
questão pragmática. Sua solução é situativa, como em todos os demais não a fonte do sentido. É claro que existem bastidores interessantes
dêiticos de pessoa, espaço e tempo. nessa “arena” interativa, tal como a história, a cultura, a sociedade,
Em contraposição aos pronomes e a todos os dêiticos que atuam as crenças e assim por diante, que se sobrepõem aos indivíduos em
numa dependência contextual bastante grande, haveria, segundo muitos carne e osso.
semanticistas, os itens lexicais ditos plenos que teriam pelo menos uma
referência “virtual” ou prevista pelo dicionário. Mas isto é apenas uma 5. Para interagir precisamos ter algo em comum
suposição, pois como bem lembra Searle ([1979]-1995:183) não existe Disse acima que o processo referencial é melhor caracterizado
um suposto “significado literal” que pode ser definido para um enunci- como interativo. Mas a interação supõe a presença de algo comum, por
ado fora de contexto. Não existe algo assim como um ‘contexto zero’ exemplo cultura, crenças, língua, contextos situacionais e outros aspec-
para a interpretação de enunciados. tos mais. Esta é a tônica da obra de Clark (1992) para quem todo uso
Suponhamos um caso simples, não tão rebuscado como o de significativo da língua supõe uma base comum. Contudo, isto gera o
Searle ([1979]-1995:198-202). Alguém chega num restaurante e pede: famoso paradoxo do conhecimento mútuo (p.10), que poderia ser
“me dá um sanduíche com presunto queijo e ovo”. Embora tudo resolvido não por uma definição nominal ou essencial do conceito, mas
pareça muito simples, a atendente diz: “aqui ninguém dá nada, aqui ao se responder a essas duas questões funcionais: (a) que tipo de conhe-
tudo é pago”. Será que ela teria entendido mal aquele “me dá”, pois o cimento partilhado é necessário para o uso da língua? e (b) como esse
freguês certamente não queria algo de graça, apenas queria algo pelo conhecimento partilhado é na prática acessado e assegurado?
qual seguramente pagaria, pois ele sabe que em restaurantes a comida Veja-se o exemplo (2) que reproduz uma breve interação entre
é paga, dado que essas instalações ainda não são organizações filantró- uma entrevistadora universitária (E) e uma benzedeira (B) nos arredo-
picas; ele sabia que aquela era uma forma que dava certo sempre res de Brasília (v. Bortoni, 1984:17).
quando a usava e sabia muitas outras coisas relacionadas a essa ação.
Contudo, não há nenhuma garantia de que as fórmulas sempre vão Exemplo (2)
funcionar do mesmo jeito. Tudo dependerá das atividades serem 1 B — Outros traz um agradinho, um sabão assim...
colaborativas e cooperativas. 2 E - Traz o quê?
Quando dizemos que a linguagem é uma atividade colaborativa, 3 B - Traz um agradinho de - alimento, né?
isto certamente envolve a questão referencial. É interessante indagar-se 4 E - Como é que a senhora chama?
como é que alguém sabe, por exemplo, que com uma dada expressão ‘X’ 5 B - Conceição Moreira!
ele refere uma entidade ‘Y’? Mais: como é que um indivíduo A supõe 6 E - Não!
com tanta segurança que um outro indivíduo B saiba o mesmo que ele 7 B - Ah!
sabe quando usa a expressão ‘X’ para referir ‘Y’? De duas uma: ou
ele(s) sabe(m) isso antes ou depois. Se sabe(m) antes, então isso já O problema (linha 2) era o desconhecimento da expressão
estava lá e a língua era um espelho; se sabem depois, isso veio de algum ‘agradinho’ por parte da entrevistadora. A entrevistada esclarece como
lugar ou por algum tipo de esforço produzido por ele(s). No primeiro sendo alguma coisa como alimento, por exemplo (linha 3). O curioso é
caso temos que resolver quem pôs esse ‘Y’ lá e se esse ‘Y’ é invariante que a entrevistadora demonstra não ter entendido e lança a pergunta
para todos os indivíduos (de uma dada comunidade) que usam a expres- (linha 4): “Como é que a senhora chama?” e recebe a resposta em que
são ‘X’. No segundo caso, temos que resolver que lugar é esse e que a benzedeira diz seu nome “Conceição Moreira” (linha 5), numa atitu-
esforço é esse que produz um ‘Y’ interativamente e se esse ‘Y’ assim de cooperativa como observa Bortoni (1984), mas se trata de uma
produzido tem alguma consistência ou se ele se esgota num subjetivismo incompreensão, pois a expressão:
aleatório. No próximo item, tento dar algumas sugestões para a solução - como é que a senhora chama?
dessa questão. De qualquer modo, parece claro que a linguagem não é pode tanto significar:
um tipo de feromônio semiótico4 com compreensão garantida por (a) ‘como é seu nome?’ (uso pronominal: chamar-se), ou então
osmose, infiltração ou acupuntura. (b) ‘como é o nome disso?’ (uso não-pronominal: chamar).
Defendo, portanto, centralmente a tese de que tratar a referência A entrevistadora tinha em mente a compreensão (b) no uso não-
fora das práticas comunicativas é incorrer numa inadequação teórica e pronominal. Mas no dialeto da entrevistada, o verbo ‘chamar’ nun-
empírica. Não se trata de radicalizar a pragmática transformando-a em ca é pronominal e só é usado na versão não-pronominal (a), ‘como é
base de toda a atividade semântica. Também não se trata de tornar-se que a senhora chama?’ equivalendo a ‘como é o seu nome?’, ao passo
um perspectivista radical como os criticados por Searle (2000). Trata- que para a versão (b) a entrevistada usa o verbo “falar”, ou seja:
se de defender a inserção dos processos referenciais na atividade lingüís- - como é que fala isso?
tica interativa, envolvendo aqui a enunciação e a cognição. Trata-se de O certo é que a benzedeira se dá conta do equívoco e admira-se de
retirar da língua a autonomia que lhe foi conferida, em especial no caso sua incompreensão (linha 7). O uso da língua não foi suficiente para
dos estudos dos anos 50 a 80 (e na tradição do produto, vista acima). saber do que se tratava; era necessário o uso de uma variante comum.
Parece possível defender que as práticas comunicativas situadas em Ter uma língua em comum é mais do que ter um sistema¨é ter uma
contextos relevantes são um bom apoio para a determinação de signifi- variante comum, uma vivência comum e muitas outras coisas mais.
cações lingüísticas. O problema neste momento é: o que é ter algo em comum?
Não se pense aqui que estou reduzindo a significação às prá-
ticas interativas. Pois isto me conduziria a um relativismo de difícil
sustentação. Também convém alertar para o fato de que não estou
esquecendo a complexa questão levantada pela Análise do Discurso 4 Segundo o Dicionário Aurélio, Século XXI, versão eletrônica, feromônio
é uma “Designação genérica de substâncias segregadas por animais, esp.
em relação à noção de sujeito aqui implicada. Seria ingênuo postular
insetos, que servem de meio de comunicação entre indivíduos da mesma
que os sujeitos nos seus encontros sociais estariam determinando os espécie ou são atraentes sexuais”.

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Quando é que duas pessoas têm algo em comum? E como sabem que Exemplo (3)
têm algo em comum? Até hoje continua ainda bastante obscura a idéia
de conhecimentos comuns partilhados. O melhor seria afirmar que os
conhecimentos (os objetos do saber) são construídos em comum e que
essa condição de ser comum seria o resultado de um movimento interativo
que leva ao partilhamento, mas não é um a priori lingüístico embutido
nas mentes humanas (e conduzido pelos itens lexicais). Assim, dominar
a mesma língua seria ter em comum as condições de construir conjunta-
mente sentidos.
E com isto podemos entrar nas duas questões de Clark (1992),
ou seja, o que é que se deve partilhar para o uso da língua e como isso é Fonte: FOLHA DE SÃO PAULO, 07/03/2001
acessado e assegurado. Neste caso, quais dos aspectos acima lembrados
– cultura, crenças, língua, contextos – devem ser necessariamente co- A que é que a Helga, a famosa esposa de Hagar está se referindo?
muns para se poder referir sem problemas (partilhadamente) na Como é que ambos constroem o referente? E como é que nós sabemos
interação?, já que retiramos a referência do interior da língua, como se que eles estão construindo o mesmo referente que nós? Que indícios são
fora uma propriedade intrínseca aos itens lexicais e a deslocamos para a postos aqui pelo autor da tirinha como pistas relevantes para pensar-
atividade interativa. Certamente, não podemos prescindir da língua na mos as mesmas coisas? E como é que nós vamos ‘pescar’ essas mesmas
interação, mas embora ela possa ser tida como necessária, a língua per se coisas?
ainda não seria suficiente. O contexto é outro aspecto necessário, mas
não suficiente. E assim poderíamos prosseguir com todos os demais Esta é uma questão conhecida como o paradoxo do conheci-
aspectos invocáveis. Não chegaríamos a determinar quais são os neces- mento mútuo que aqui será retomado na argumentação de Clark
sários e suficientes. Isto porque a caracterização de processos não se dá (1992:10-19) com alguns exemplos por ele analisados. Clark parte de
por esse tipo de propriedades essencialistas. uma situação básica que se desenvolve num conjunto de variações. A
É por essa via que chegamos ao descarte da idéia de que a situação básica é assim posta:
referenciação tem na convencionalidade lingüística sua propriedade
necessária e suficiente. Se estas propriedades semânticas existissem Exemplo (4)
para a referenciação, a língua seria transparente, inambígua e Suponhamos que esteja ocorrendo um festival de filmes dos Ir-
monossemântica e gloriosamente autônoma. Ela seria o desejado co- mãos Marx no Cine Roxy com um filme por noite durante a semana.
nhecimento comum que levaria ao partilhamento. No entanto, não só Vejamos agora alguns cenários para esse pano de fundo:
a noção de vericondicionalidade é irrelevante para o processo referencial,
mas também a tão cara distinção pragmática versus semântica. Pare- VERSÃO 1: Na quinta-feira pela manhã, Anne lê na edição
ce que a distinção entre um sentido do falante e um sentido do enunci- matutina do jornal local que naquela noite está passando o filme Monkey
ado não passa de mais uma ficção a ser descartada das condições de Business. Mais tarde ela encontra Bob e pergunta: “Você já viu o filme
produção de sentido. que está passando no Roxy esta noite?”

6. O que é ter uma língua em comum? Interessa aqui considerar a expressão definida ‘t’: ‘o filme que
Vale a pena insistir na indagação acima: o que é mesmo ter uma está passando no Roxy esta noite’, usada por Anne para referir o filme
língua em comum? Será que é o fato de dominar um conjunto de “Monkey Business”, como o referente ‘R’. Assim, a condição 1 é admi-
regras sintáticas e morfológicas, um léxico e uma fonologia? É a habi- tir que:
lidade de produzir um enorme conjunto de enunciados mutuamente a) Anne sabe que “ t é R “.
compreensíveis? Quais são os conhecimentos que fazem parte dos A questão é: do que deve Anne assegurar-se a fim de que sua
conhecimentos da língua? Estão ali incluídos os conhecimentos de referência seja bem-sucedida? Entre as condições que devem ser
mundo? São os conhecimentos de mundo parte integrante dos conhe- asseguradas para que Bob infira corretamente, Anne deve fazer uma
cimentos da língua? suposição de conhecimentos comuns partilhados para que ambos to-
Mais do que dominar regras, parece que conhecer uma língua é mem o mesmo referente pretendido. Ela não pode fiar-se em alguma
saber como lidar com ela nas atividades interativas, ou como dizia virtude intrínseca da expressão definida usada, pois o fato de Anne
Wittgenstein: é saber jogar o jogo dos atos de linguagem. O certo é que saber que “t é R” não garante o sucesso da referência para Bob. Uma
conhecimentos de mundo, conhecimentos sociais, conhecimentos de condição sine qua non para o sucesso da referência é que Bob saiba que
regras de comportamento etc. e conhecimentos lingüísticos não podem
“t é R”. Segundo Clark (1992:11), uma das maneiras de a referência de
ser distinguidos com muita precisão. Eles estão de tal modo imbricados
Anne falhar ocorre nesta segunda versão do caso:
que não conseguimos mais distingui-los. É essa imbricação que consti-
tui a racionalidade de um povo (como lembram os etnometodólogos)
Exemplo (5)
que vai dar origem à composição dos fenômenos comuns de procedên-
VERSÃO 2: Na quinta pela manhã Anne e Bob lêem a edição
cia diversa.
matutina do jornal e discutem o fato de que o jornal diga que “A Day at the
Certamente, fazem parte dos conhecimentos lingüísticos os co-
Races” está sendo exibido naquela noite no Roxy. Mais tarde, após Bob ter
nhecimentos que permitem entender as metáforas, as metonímias, as
saído, Anne compra a última edição do jornal que traz uma correção que diz
associações, as analogias e todos os demais usos lingüísticos que fogem
que é Monkey Business” que está sendo exibido naquela noite. Mais tarde,
ao controle rigoroso da vericondicionalidade. Não há correspondência a
Anne encontra Bob e pergunta: “Você já viu o filme que está passando no
priori, nem há correspondência descarnada.
Roxy esta noite?
Embora esta versão satisfaça a condição (a) posta acima de conheci-
7. Paradoxos do conhecimento comum
mento comum, Anne produziu sua descrição definida sem assegurar devi-
Não se trata de uma metáfora a idéia de que a referência é uma
damente o acesso à nova realidade. Ela não tem fundamento algum para
atividade conjunta, colaborativa e situada. Veja-se como é construída a
pensar que Bob saiba que se trata de Monkey Business e não de A Day at the
referência nesta tirinha de jornal.

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Races. Para que a referência seja bem-sucedida, Anne deveria assegurar-se da mesma comunidade e partilharmos certas normas sociais ou uma
de uma segunda condição, ou seja, que: série de outros aspectos culturais. A presença física também traz uma
b) Anne sabe que Bob sabe que “t é R”. série de condições favoráveis a se ter um conjunto de elementos co-
Poderíamos pensar que as duas condições (a) e (b) até aqui propos- muns, como a situação imediata e um foco de visão comum. Resolvere-
tas seriam suficientes para que a referência pudesse ocorrer. Contudo, a mos a referenciação dêitica com mais facilidade e segurança in praesentia.
terceira versão desse caso mostra que isso não bem assim. Enfim, como afirma Clark (1996: 92), qualquer coisa que façamos con-
juntamente com outras pessoas nos processos interativos, vai estar na
Exemplo (6) dependência de informações, conhecimentos, situações, interesses, cul-
VERSÃO 3: Na quinta pela manhã Anne e Bob lêem a edição turas, normas, língua etc. comuns ou partilhados. Assim, para o autor,
matutina do jornal e discutem o fato de que o jornal diga que “A Day at the “uma base comum é um sine qua non para tudo o que viermos a fazer
Races” está sendo exibido naquela noite no Roxy. Quando chega a edição da com o outro – desde as atividades conjuntas mais gerais até as mais
tarde, Bob lê a seção de filmes e nota que o filme foi corrigido para Monkey simples e estreitas ações conjuntas”.
Business” e circula-o com sua caneta vermelha. Mais tarde, Anne pega a
última edição e nota a correção e reconhece a anotação de Bob. Ela imagina 7. Referenciação como atividade conjunta e colaborativa
que ele não tem como saber se ela viu a última edição. Mais tarde, no mesmo Este trabalho iniciava defendendo a tese de que a referenciação é
dia, Anne encontra Bob e pergunta: “Você já viu o filme que está passando um processo mais etnográfico (ligado aos processos sócio-interativos)
no Roxy esta noite? do que semântico e epistemológico. Vimos uma série de questões que
Este cenário satisfaz as condições (a) e (b) acima. Contudo, como nos conduziram a desenvolver aspectos que poderiam trazer alguma luz
Bob não sabe que Anne viu a anotação dele, ele imagina que ela esteja para ao caso, em especial uma noção de língua e uma noção de referência
indagando pelo filme da primeira edição e com isso se engana porque não adequada. Agora vamos tratar a questão específica da referenciação na
satisfazia esta terceira condição: atividade conversacional, já que a conversação é a forma mais genuína
c) Anne sabe que Bob sabe que Anne sabe que “t é R” de se usar a língua como observa Clark (1992, 1996).

Isto nos leva a uma quarta versão, já que esses três postulados A tese mais geral a defender é a de que não são os conhecimentos
devem ser satisfeitos. comuns que resolvem a situação, mas condições comuns e partilhadas
de construção de conhecimentos que permitem a referenciação. Assim,
Exemplo (7) para superar o paradoxo posto pela série de enunciados:
VERSÃO 4: Na quinta pela manhã Anne e Bob lêem a edição a) A sabe X
matutina do jornal e discutem o fato de que o jornal diga que “A Day at the b) A sabe que B sabe X
Races” está sendo exibido naquela noite no Roxy. Mais tarde, Anne vê a c) A sabe que B sabe que A sabe X
segunda edição do jornal e nota que o filme foi corrigido para “Monkey d) ...
Business”, e marca o fato com sua caneta azul. Mais tarde, enquanto Anne podemos propor o princípio de construção colaborativa da
observava sem Bob saber, ele toma a última edição e nota a marcação de referência, ou seja:
Anne. Nessa mesma noite Anne vê Bob e pergunta: “Você já viu o filme que - A partilha com B as condições de interação necessárias
está passando no Roxy esta noite? para, juntos, construírem o conhecimento X.
Esta versão satisfaz as condições (a), (b) e (c) postas acima, mas Esse partilhamento de condições necessárias se dá como proces-
embora Anne saiba que Bob viu sua marcação, ele não sabe que ela viu e ela so interativo em contextos sociais e culturais relevantes mediados pelo
sabendo que ele não sabe que ela o viu, pode imaginar que ele imagina que ela uso da língua. Veja-se a questão lustrada neste exemplo (8), também
vá pensar que ele não saiba o referente correto. Assim, precisamos de uma extraído de Bortoni (1984:19) em que uma entrevistadora universitária
quarta condição para haver partilhamento de referentes: (E) não entende a entrevistada (MP) em virtude de uma regra fonológica
d) Anne sabe que Bob sabe que Anne sabe que Bob sabe que “t é R” que interfere na identificação da expressão referidora que deve então ser
Pois bem, esta edificante historinha poderia ir adiante numa infi- trabalhada colaborativamente para atingir seu objetivo. Vejamos:
nidade de versões e nunca iríamos preencher todas as condições neces-
sárias para que a inferência se desse de modo seguro. Este é, em suma, Exemplo (8)
o paradoxo do conhecimento mútuo, que na verdade sugere haver 1 E - Depende de que o sucesso da gente? Pra gente conseguir
algumas condições a serem necessariamente satisfeitas ad infinitum. alguma coisa,
Por isso, não há saída plausível por esse lado. 2 depende de quê? de quem?
Imagino, como observa Clark (1992:19), que a versão de Grice 3 MP-uai, depende da... da sistença da gente e da boa vonta
(1957) a respeito da significação do falante (a intenção) depois desen- de, né? Num disisti
volvida em outros trabalhos, também não seja um bom caminho. Pois 4 daquilo í sempri..
distinguir entre significação do falante (intenção) e significação do 5 E - Mas que tipo de assitência seria essa?
enunciado (referência) não é suficiente nem leva longe. 6 MP - Não ... assistença assim da gente mesmo falá: i’eu vô
Contudo, o que se nota é que nestas elucubrações tudo se baseia fazê aquilo, aquilo que i’eu
em condições e suposições unilaterais e não em negociações ou 7 tenho vontade, né, de trabalhá pra... pra se consegui
partilhamentos úteis em função da convivência entre os indivíduos. A aquilo, a gente trabalha e
única via para superar o problema posto pelo paradoxo dos conheci- 8 consegue, o faiz aquilo que a gente tem vontade de fazê,
mentos comuns é conduzir o processo por mais caminhos. Clark né?
(1992:35-36) arrola tipos diversos de conhecimentos comuns. Podem
ser de uma maneira geral (1) duradouros ou (2) temporários. E os No caso da primeira resposta, a informante (linha 3) usou a
temporários podem subdividir-se em: (a) genéricos (sobre fatos gerais, expressão ‘sistença’, tendo aqui a palavra ‘insistência’ “sofrido uma
como o fato de os canários serem aves, os leões serem carnívoros etc.), aférese da sílaba inicial e redução do ditongo crescente na sílaba átona
ou (b) particulares (objetos, eventos, pessoas, coisas pessoais, indi- final” (Bortoni 1984:19). Com esta mudança fonética a entrevistadora
viduais etc.) . interpretou essa palavra como ‘assistência’ por não dominar a variante
Seguramente, os conhecimentos mútuos serão maiores se formos

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da entrevistada. Como não entendeu, pediu esclarecimentos. E os escla- podemos incorrer em maior número de equívocos.
recimento foram dados com vários exemplos que conduziam ao Este é precisamente o caso do exemplo (9), em que dois colegas
partilhamento de uma experiência de vida e não uma experiência lingüís- de trabalho, uma datilógrafa de 25 anos (S) e um auxiliar administrativo
tica apenas. de 30 anos (P), coletado por Sette (1980:164).
Neste caso, podemos postular com J. Gumperz & J.Cook-
Gumperz (1982:1) a premissa básica de que “os processos sociais são Exemplo (9)
processos simbólicos, mas esses símbolos têm significação apenas na 1 S: tu já lanchasse?
relação com as forças que controlam a utilização e a alocação de fontes 2 P: ainda não ... tô ocupado agora ... eu vô daqui a pouco
circundantes”. Isto significa que todos os fatores que entram nos pro- 3 S: vai demorar muito?
cessos comunicativos só adquirem sentido em seus contextos de reali- 4 P: não mas é melhor você não me esperar ... vai indo
zação e que a comunicação não pode ser estudada no isolamento. Com 5 S: tá legal ... se tu não quer
esta premissa básica, aqueles autores deixam claro que uma análise 6 P: que é isso garota ... não tá vendo que tô ocupado aqui?
meramente estrutural ou imanentista dos fenômenos interacionais esta- ... deixa disso
ria fadada ao fracasso. 7 S: tá seu besta ... já vou indo mesmo
8 P: eu hein? te morderam hoje?
Num outro trabalho, J.Cook-Gumperz & J. Gumperz (1984:3)
dizem que sua premissa básica é a de A pergunta colocada inicialmente (linha 1) não era um pedido de
“que a interação verbal é uma atividade cooperativa que requer informação, mas sim um convite que é entendido pelo parceiro de diálo-
uma coordenação ativa dos atos por parte de dois ou mais partici- go. Tanto assim que tudo o que segue é uma espécie de reprovação por
pantes e que tudo o que é realizado, tudo o que é interpretado e parte de S ao pouco caso feito por P daquele convite. Note-se que a
toda a informação atingida não é inerente aos signos verbais ou observação final de P não é sequer uma indagação e sim uma forma
não-verbais como tal, mas deve emergir dessas trocas interativas indireta de insultar num revide ao que S dissera (linha 7) de maneira
seqüencialmente organizadas”. insultuosa. Houve uma construção ascendente do conflito neste diálo-
go. O conflito deu-se como fruto de um processo e não como um ponto
Essa premissa sugere que não podemos confiar apenas nas carac- de partida.
terísticas estruturais da interação nem nas propriedades comunicativas da Já no caso do exemplo (10) temos uma situação um pouco
língua, nem nos contextos físicos (imediatos) de produção da interação, diferente, em que as relações de poder interferem na construção de
mas devemos estar atentos para o que os falantes fazem com tudo isso, se relações interpessoais e interpretação de enunciados. Temos aqui um
queremos de fato perceber como eles se entendem. O importante não é a diálogo extraído de Sette (1980:166) entre uma empregada doméstica H,
identificação das regras da estrutura conversacional, mas a habilidade de 33 anos, e a filha da patroa M, de 18 anos, na residência.
desenvolvida pelos falantes no uso das estratégias conversacionais com o
objetivo de se entenderem e atingirem metas comuns em situações sociais Exemplo 10
de fala. O modelo interacional é muito menos dependente do código do 1 H: Marta tua mãe saiu e disse pra você estudar
que os outros e constitui um modelo que opera crucialmente com a infor- 2 M: agora tá bom (..) até a madame tá se metendo na minha
mação situada. 3 vida é?
Suponha-se, por exemplo (v. Schiffrin 1987:400), que alguém 4 H: tá bom (..) nem falo mais (..) você se vire com tua mãe
chegue numa sala de um escritório em que trabalham várias pessoas, 5 M: é isso aí (..) deixa de se meter Hilda
onde eu me encontro falando com um colega, e esse alguém senta na sua 6 H: só tava dizendo o que tua mãe me mandou
mesa de trabalho e aguarda um momento; quando eu olho para o lado 7 M: sei (..) bem que você gos::ta
dele, ele levanta a mão e diz “oi!” e eu respondo “oi!”. Para o modelo
baseado no código trata-se de um cumprimento por força da significa- Aqui, o interlocutor mais fraco nas relações de poder – a empre-
ção do próprio código; para o modelo baseado na inferência griceana, gada doméstica – inicia transmitindo a informação de fora incumbida
trata-se da demonstração da intenção de cumprimentar; mas para o pela patroa. Contudo, a filha da patroa reinterpreta essa informação no
modelo baseado na interação colaborativa, pode-se ter uma série bas- contexto das relações de poder e inverte a situação com uma ironia “até
tante grande de fenômenos comunicados: a madame...” o que sugere a construção de um referente (você não
- ele pode querer dizer que agora, com essa forma informal de passa de uma empregada) numa dada condição de submissão que não
cumprimentar, já esqueceu uma briga antiga; deveria ser ultrapassada, sendo que no final (linha 7) isso é reforçado de
- pode demonstrar para os outros, mas sem que ele queira isso modo explícito sugerindo a vontade de dominação como um desejo da
intencionalmente, uma certa intimidade comigo; empregada. A rigor, neste diálogo, colaborativamente, constrói-se a li-
- pode, mas não intencionalmente, revelar que nos encontramos nha divisória clara de relações entre ambas, mesmo que essa linha pu-
com frequência. desse ser outra a partir das condições prévias em que se encaminhara a
- Pode demonstrar que somos grandes amigos primeira proposta.
- ... Vejamos um último caso de trabalho colaborativo de determina-
ção de referentes numa relação de poder bastante clara em que a igual-
No caso do modelo interacional não se coloca como central a dade de posição na escala social impede que um mande no outro. O
intenção comunicativa nem a intersubjetividade, mas a significação situ- diálogo também extraído de Sette (1980:166), realiza-se entre duas
ada. Assim, por exemplo, numa interação com alguém, um bocejo pode empregadas domésticas que trabalham na mesma residência: I de 33
me dar a entender cansaço, sem que o outro tenha querido me dizer que anos e B de 20 anos.
estava cansado. Diante disso, como interlocutores, no processo
interacional, estamos sempre propensos a ver nos comportamentos de Exemplo (11)
nossos parceiros de diálogo significações. Também estamos o tempo 1 I: Bia apanha um balde pra mim?
todo interpretando suas palavras para além de seus significados. Tendo 2 B: eu não (..) vá você (..) tô ocupada
em vista esta super-atividade interpretativa, no modelo interacional, 3 I: tu é chata mesmo

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4 B: é nada bele:za (..) qué que eu deixe o serviço pra i buscá GUMPERZ, John (1982). Discourse Strategies. Cambridge, Cambridge
o balde ? eu hein? University Press.
____________. (ed.) (1982). Language and Social Identity. Cambridge,
De início, I faz um pedido a B que toma como uma ordem e dá uma Cambridge Univ. Press. (Uma série de textos sobre interação
desculpa, mas na verdade, tratava-se de um indicador de má-vontade que intercultural e inter-étnica).
se explicita no turno 4 em reação à resposta de I “tu é chata mesmo”. LEVINSON, Stephen C. (1979). Activity Types and Language.
Quando B refere-se a I com a expressão “beleza”, sabemos o grau de Lingüístics 17: 365-399.
ironia que isto comporta e que tipo de referente constrói. ____________. (1981).The essential inadequacies of speech act
Estes exemplos são ilustrativos pelo que eles contém de fenôme- models of dialogue. In: H. PARRET (ed.), Possibilities and
nos culturais, sociais e cognitivos e mostram com grande nitidez as mais Limitations of Pragmatics. Amsterdam, John Benjamins, pp.473-
diversas formas de relação de poder entre os indivíduos. Além disso, 492.
mostram que entre as estratégias utilizadas para a introdução, alteração, ____________. (1980). Speech act theory: The state of the art,
identificação, explicitação e dispersão de referentes na interação, pou- Language Teaching and Lingüístics: Abstracts, 13:5-24.
cas são de natureza mais estrutural, ou seja, aproveitam-se mais os MARCUSCHI, L. A. (no prelo 2001). Anáfora indireta: o barco
recursos cognitivos que formais para a construção referencial. textual e suas âncoras. A sair nas Atas da IV Jornada do CelSul,
Curitiba, novembro de 2000. mimeo.
8. Um parágrafo final MAZELAND, Harrie (1986). Short note on Gumperz’s
Por tudo o que ficou expresso até este momento, não se pode contextualization cues. Osnabrucker Beitraege zur Sprachtheorie.
admitir que referir seja designar, nomear ou apontar algo objetivamente 33:170-182.
MEY, Jacob L. 1993. Pragmatics. An Introduction. Oxford, Blackwell.
verificável. Pois a noção de objetividade é indevidamente definida, como
MONDADA, Lorenza. 1994. Verbalisation de l’Espace et Fabrication
observou Hillary Putnam (1992), se a definimos como fruto de opera-
du Savoir. Lausanne, Université de Lausanne, faculté de Letres
ções cientificamente controladas e passíveis de atributos tais como a
[Tese de Doutorado].
verdade (no sentido de correspondência). Por outro lado, a linguagem
____________. 1997. Processus de catégorisation et construction
não é uma imitação da realidade ou uma produção facsimilar artificiosa discursive de catégories. In: D. Dubois (Org.). Categorisation et
porque, neste caso, como já disse alguém, a linguagem seria tão ruim cognition: de la perception au discours. Paris: Éditions Kimé,
como a carne de soja tida como fac-símile da carne bovina. Em suma, pp. 291-313.
por não ser a linguagem uma produção facsimilar da realidade, mas uma MONDADA, L. e D.DUBOIS (1995) Construction des objets de
atividade interativa, ela contribui de forma decisiva para a construção discours et categorisation: une approche des processus de
não só do sabor, mas da própria carne enquanto tal. référenciation. In: BERRENDONNER, A . e M-J. REICHLER-
BEGUELIN (eds). Du syntagme nominal aux objets-de discours.
Referências bibliográficas SN complexes, nominalisations, anaphores. Neuchâtel, Institute
de Linguistique de l’Université de Neuchâtel. TRANEL 23
APOTHÉLOZ, Deniz & Marie-José REICHLER-BÉGUELIN. 1995. (1995): 273-302.
Construction de la référnce et strategies de designation. TRANEL PUTNAM, Hilary. 1992. Razão Verdade e História. Lisboa, Publi-
23 – Du syntagme nominal aux objets-de-discours, 1995:227-271. cações Dom Quixote.
AUSTIN, John L. 1962. How to do things with words. Oxford, Oxford SALOMÃO, Margarida. 1999. A questão da construção do sentido e
University Press. a revisão da agenda dos estudos da linguagem. Veredas, Revista
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Referenciação e heterogeneidade enunciativa: análise de
formas meta-enunciativas no discurso de sujeitos afásicos
Edwiges Maria Morato
Universidade de Campinas/CNPq

RÉSUMÉ: Cette communication analyse les processus de référenciation et les formes meta- énonciatives dans les aphasies. Notre hipothèse est que
la compétence pragmatico-discursive des sujets aphasiques n’est pas détruite en raison des altérations des processus metalinguistiques ou cognitifs.
Les données presentés ont été extraits des interlocutions entre sujets aphasiques et non-aphasiques.
PALAVRAS-CHAVE: afasia; meta-enunciação; referenciação; interação.

Introdução ideológicos) implicados na referenciação, sobre os quais os sujeitos se


Creio que não é difícil imaginar que as discussões em torno do apóiam e trabalham para dar representabilidade às coisas do mundo.
páthos da linguagem estão sempre marcadas - ao longo de nossa traje-
tória científico-filosófica- por um discurso logocêntrico, cujo com- 1. Patologia da linguagem: questionando a vi
promisso com a questão da referência tem sido reduzida ao são referencialista
referencialismo, ao conhecimento metalingüístico do mundo, à busca De acordo com Vion (1992), a referenciação consiste na sele-
da presença da lógica na linguagem (em detrimento de uma lógica ção, dentre a totalidade de eventos, de certos objetos do discurso. O
própria da linguagem, como já postulava Ducrot nos anos 70). Para mundo que o sujeito constrói em seu relato depende em grande medida
muitos, essa seria a grande perda sofrida pelo sujeito afásico 1: a capa- de suas escolhas lexicais, de suas intenções discursivas, do reconheci-
cidade de, através da linguagem, localizar (e localizar direito) os obje- mento de implícitos culturais, do reconhecimento de elementos
tos do mundo, e também os “objetos do discurso” (cf. Mondada & temáticos, do tipo de relação interlocutiva que estabelece com os
Dubois, 1995). A linguagem, pois, cuja alteração ou perda é lastimada outros, de coordenadas dêiticas de que lança mão para transformar
nas afasias, é aquela que não permite excrescências ou heteróclitos “referentes” em “objetos do discurso” (Mondada & Dubois, 1995).
como o páthos verbal, as irregularidades das formas lingüísticas, a Por afetarem a polissemia existente entre a língua (isto é, do
indeterminação dos sentidos, as constantes reformulações enunciativas, sistema lingüístico) e a exterioridade discursiva, as patologias tradici-
as ambigüidades semântico-pragmáticas. A linguagem que é lastimada onalmente têm sido consideradas um lugar interessante para o estudo
é, na verdade, uma fantasmagoria, fruto de uma percepção idealizada das atividades inferenciais e referenciais dos falantes.
que os homens têm feito de si mesmos, de seus cérebros e de seus Em relação à questão da referência, especificamente, apenas
comportamentos. alguns autores têm se dedicado a esse tema no campo das patologias.
Especialmente nos últimos anos, muitos autores, entre os quais
os que abrilhantam esta mesa-redonda (Mondada, Villaça-Koch e
Marcuschi), têm destacado em suas análises o caráter interativo e 1
Resumidamente, as afasias são alterações lingüistico-discusivas que se
sócio-cognitivo da referenciação. Contudo, no campo dos estudos
seguem a lesões cerebrais adquiridas, não raro acompanhadas de seqüe-
neuropsicológicos e neurolingüísticos, é forte ainda o entendimento las neurológicas físicas e cognitivas. Ainda que em graus variados de seve-
de que nas patologias neuropsicológicas (cerebrais, cognitivas) se en- ridade, pessoas afásicas em geral hesitam muito para falar, muitas vezes
contram afetados justamente os processos lógico-perceptivos (isto é, perdem com isso o “fio da meada”, mostram alta instabilidade no uso das
não lingüísticos) responsáveis pela identificação e controle dos refe- palavras, trocando de forma inesperada e algo incompreensível umas
rentes e da referência. Nessa perspectiva, o que estaria perdido ou pelas outras, e têm dificuldades de encontrar aquelas que gostariam de
alterado nas patologias lingüístico-cognitivas seria o caráter enunciar, mas não são amnésicas; pronunciam de forma laboriosa os sons
metalingüístico e referencial da linguagem, a capacidade que a lingua- da fala, repetem partes da palavras ou as distorcem ou suprimem, mas
não são gagas ou padecem de deficiências físicas que as impeçam de
gem teria de representar ou autorizar as representações senso-
articular; podem falar de maneira “telegráfica”, sem que isso signifique
perceptivas do mundo. necessariamente que perderam as palavras ou que não mais entendem a
Esta comunicação procura ampliar a consideração de Ducrot complexidade lingüística; às vezes seus enunciados parecem desconexos e
(1987), segundo a qual a referenciação é parte integrante da enunciação. as pessoas afásicas sentem-se à deriva porque não conseguem estabelecer
Enquanto atividade discursiva, a referenciação tem a ver com uma relações de sentido entre as palavras ou entre as palavras e as coisas do
“postura meta-enunciativa” (cf. Morato, 1999a) dos sujeitos em rela- mundo a que se referem, o que dificulta não apenas os processos expres-
ção aos objetos do discurso. Em outras palavras, a referenciação pode sivos da linguagem, mas também os interpretativos (necessários para
ser entendida como um fenômeno discursivo por explicitar lermos nas entrelinhas ou captarmos duplos sentidos e subentendidos),
mas isso não quer dizer que têm uma deficiência mental.
enunciativamente os processos de significação nela envolvidos (o pla-
Afetando sobremaneira a linguagem (oral e escrita) e por decorrência
no enunciativo da metalinguagem), por ser constituída por instâncias todos os processos afeitos a ela (a própria identidade, a afetividade, o
pragmáticas e culturais que presidem a utilização da linguagem, por papel social), não é difícil imaginar o impacto da afasia sobre a completa
ser marcada pelos aspectos sociais e intersubjetivos das interações vida das pessoas que com ela passam a conviver: o sujeito afásico, seus
que lhe são próprias. Assim, repostos na língua aqueles objetos tidos familiares e amigos, todo o corpo social. É preciso lembrar que não é raro
como heteróclitos por Saussure, a questão da referência prevê uma que as afasias, que decorrem de lesão cerebral adquirida por sujeitos até
arbitragem de fatores que pressupõem mas transcendem o lingüístico. então “normais” do ponto de vista de sua capacidade de usar a linguagem
Portanto, o que pode estar instável nas patologias de linguagem é para vários propósitos, sejam acompanhadas por dificuldades físicas im-
portantes, como paralisias (que podem atingir braço, perna, rosto, língua)
precisamente a consideração do conjunto ou a seletividade desses
e demais alterações cognitivas (como uma desorganização da atividade
fatores (lingüísticos, cognitivos, pragmáticos, discursivos, afetivos, gestual ou da percepção visual).

78 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Alguns o fazem, naturalmente, estudando outras categorias teóricas, Finalmente, a visão anti-referencialista questiona a noção de
implicadas ou correlacionadas à questão da referência, como a metalinguagem reduzida a parâmetros logicistas, redirecionando a dis-
metalinguagem, a inferência ou a significação lingüística. Todorov cussão para uma perspectiva enunciativa dos procedimentos meta3.
(1980), por exemplo, enfrentou o problema da referência no discurso
psicótico, que “falam sem dizer”, segundo ele. Em minha tese de 2. Alguns dados
doutoramento (1995), enfrentei o problema da confabulação (a “men- Vejamos, a título de ilustração, alguns dados de um sujeito
tira honesta”, cf. Moscovith, 1989), fenômeno em geral reservado afásico em que fatores enunciativos estão de alguma forma concernidos
erroneamente aos contextos patológicos, e no qual tanto a linguagem, à questão da referenciação e à da subjetividade:
quanto a memória, parecem, à primeira vista, estar à deriva. Nos trechos a seguir (extraídos de um texto anterior de Coudry
Quais seriam os elementos significativos para a construção da & Morato, 1988) podemos observar o movimento enunciativo que
referência que estariam ausentes do discurso de sujeitos que permite a estabilização da manipulação (lingüística) da auto-referên-
confabulam, por exemplo? cia no caso de uma senhora afásica de 71 anos, AD, que, após superar
Parece-nos que não são exatamente os elementos lingüísticos, o estágio inicial de uma grave afasia, passa a se referir a si mesma na
como os que remetem os enunciados uns aos outros (elementos de terceira pessoa. Os dados foram retirados de interlocuções entre AD
coesão e de coerência). Pelo contrário, muitos dos textos produzidos e Iem no ano de 1987. Para ajudar AD a assumir diferentes posições
por sujeitos potencialmente confabuladores são bastante coerentes e enunciativas e recompor aspectos ligados à subjetividade e ao traba-
nem sempre apresentam problemas de coesão ao nível dos enuncia- lho referencial, foi introduzida na interação entre AD e Iem outra
dos. Os problemas também não serão aqueles relativos às proposi- pessoa afásica, que passou - pouco a pouco - a ocupar o lugar da
ções incompletas, aos empregos de verbos transitivos sem comple- terceira pessoa nos enunciados de AD. A subjetividade, que emerge
mento, à ausência de conjunções semânticas. O bom uso (ou o uso em sua fala na posição da terceira pessoa, o “eu” que emerge como
indevido) de elementos dêiticos, por sua vez, não parece suficiente “ela”, é recomposta em instância dialógica (que prevê um “eu”e um
nem para fixar a referência nem para caracterizar a confabulação, ainda “tu”), em função dos papéis enunciativos assumidos pelo sujeito e no
que sejam importantes e necessários para o engajamento nas situações reconhecimento da presença do interlocutor.
interlocutivas ou propostas discursivas.
Se existe nas confabulações um problema de referência, como (1)
ele se apresenta, afinal? Ao que parece, manipular com relevância AD - //mostrando à Iem as fotos do álbum de família, em que
vários e diferentes processos referenciais que estão em jogo na signi- aparece junto ao marido e os netos// Ela com meu neto e minha
ficação. neta //apontando para sua foto ao lado do marido// Ela e ele...
O efeito mórbido da confabulação, ao contrário do discurso Iem - Aqui é a mulher dele?
psicótico (que tem a ver com a atitude do sujeito que, ao proferi-lo, AD - É, é ela.
considerado-o verdadeiro, cf. Foucault)2, parece ter como objeto o
próprio discurso, e nisso ela se assemelha tanto à veridicção quanto à (2)
mentira, recebendo, pois, uma aplicação judiciosa da noção de verdade AD - //no mesmo contexto do episódio anterior// Meus filhos
(e de realidade). O discurso cotidiano está repleto de exemplos de pequenos, meu marido...
confabulação, espraiados em nossa vida prática, em nossa cultura. Iem - Seu marido...
Alguns pertencem ao anedotário, como uma pesquisa informal sobre AD - //apontando para a sua foto ao lado do marido// Ela e o
o conhecimento enciclopédico feito há alguns anos por um jornal meu marido dela //AD ri, como que flagrando um ato falho//
paulista. O repórter perguntava aos transeuntes, entre outras coisas,
se eles tinham ouvido falar do concerto que Beethoven daria no Teatro (3)
Municipal de São Paulo. Como resposta, obtinha afirmações e co- AD //irritada, comentando suas dificuldades lingüísticas e
mentários sobre a importância do evento para o Brasil etc. motoras// Eu faço um negócio e ela não consegue!
Os dados de linguagem patológica são interessantes para quem Iem - Quem não consegue?
tem uma inclinação anti-referencialista com relação à linguagem. AD - Eu! Eu não ando bem, eu noto, viu? O Plínio achou que
A visão anti-referencialistao questiona uma concepção ela...eu //procede a uma rápida reformulação// estava...estou
referencial de linguagem (pelo menos no que ela tem de formal, de bem melhor.
causal), pois admite que seu objeto de análise deixa de ser o próprio
mundo; seu objeto diz respeito ao mundo narrado, ao mundo enunci-
ado, ao mundo enunciável: seu objeto de análise são os objetos do 2
É o que nos diz Foucault (1989:232): “No momento preciso quando saímos
discurso. No anti-referencialismo não há possibilidade de homologia de um sonho podemos constatar: “Eu imagino que estou morto”. Isto denun-
nem dicotomia entre linguagem e as coisas, entre linguagem e cultura, cia e permite avaliar a imaginação arbitrária e não se há loucura. Há loucura
entre objetos do mundo e objetos do discurso. quando o sujeito pretende, como uma afirmação, que está morto, e quando
Mas a visão anti-referencialista questiona também a visão permite que o conteúdo seja tomado como verdade, embora neutra, da
representacional da linguagem. Ou seja, desde que o conhecimento da imagem “Eu estou morto”.
linguagem, suas regras próprias e seus efeitos de sentido não equiva- 3
Se nos afastarmos dos princípios logicistas da metalinguagem e, portanto,
lem ao conhecimento que temos do mundo, o outro (nosso interlocutor, do compromisso formal (no sentido de causal) que submete a linguagem
nossa audiência, nosso outro-eu, enfim, um outro empírico, não uma a uma ordem que não ela mesma (do cognitivo ou do mental, ou mesmo
do cerebral), podemos postular uma natureza enunciativa para a
construção metateórica) nos é necessário para entendermos o que
metalinguagem. É isso o que alguns autores, certamente em decorrência
estamos a expressar ou a interpretar. Eis aqui um outro elemento que dos estudos interacionistas dos anos 80 (sobretudo no campo da
nos leva para uma visão não-representacional da linguagem: se a lin- Psicolingüística e da Aquisição de linguagem), vem procurando fazer nos
guagem tem alguma capacidade de refletir algo, não é nem a si mesma últimos anos: refiro-me a analistas do discurso que se pautam pelas aná-
e nem o mundo propriamente, mas o estabelecimento de condições lises inter e intra-discursivas da significação, aos psicolingüistas que se
(pragmáticas, discursivas) de produção e interpretação dos sentidos e interessam pelos erros reorganizacionais, aos neurolingüistas (entre os
da referência. quais me incluo) que procuram estabelecer uma perspectiva discursiva
das relações entre linguagem e cognição.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 79


(4) atua de forma a eleger em muitos casos processos alternativos de
//Iem conta à AD a viagem que fizera ao Mato Grosso// significação. Daí o fato de que a alteração de uma metalinguagem
Iem - Fui também para o Pantanal. corrente ou natural (sobre a língua stricto sensu) não parece ser capaz
AD - Ah, foste? Porque lá é... de destruir a capacidade discursiva dos sujeitos afásicos.
Iem - Lindo...
Referências bibliográficas
AD - E tu achaste lindo?
Iem - Sim, sim. Pena que haja tanta matança de jacaré. O Gover-
BENVENISTE, É. Problemas de Lingüística Geral I. Campinas: Pon-
no não está muito atento...
tes, 1989.
AD - E com o que ele está atento? //risos//
COUDRY, M.I.H. & MORATO, E.M. A ação reguladora da
interlocução e de operações epilingüísticas sobre objetos
(5)
lingüísticos. Cadernos de Estudos Lingüísticos 15: 117-136, 1988.
//AD relata à Iem um encontro que tivera com outra senhora
_____. Aspectos discursivos das afasias. Cadernos de Estudos
afásica//
Lingüísticos 19: 127-145, 1990.
AD - Ela tá bem.
DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987.
Iem - Ela tá mais animada agora?
KOCH, I.G.V. Referenciação: construção discursiva. (mimeo), 1999.
AD - Eu acho, ela ela está ela come //hesitações// melhor pra //
MARCUSCHI, L.A. Estratégias de identificação referencial na
hesitações//melhor pra comer não. Melhor do que eu //ri//
interação face a ace (mimeo), 1994.
MONDADA, L. & DUBOIS, D. Construction des objets de discours
(6)
et catégorisation: une approche des processus de référentiation.
//AD comenta com Iem as opiniões de amigos a respeito de suas
Berrendonner, A. & M-J Reichler-Béguelin, 1995.
dificuldades lingüísticas e motoras//
MORATO, E.M. O discurso à deriva ou as sem-razões do sentido:
AD - Mas elas sabem que eu vou saber, ela sabe.
um estudo da confabulação no contexto neuropsicológico. Tese
Iem - Ela quem? //AD ri, aparentemente da expressão de exage-
de Doutoramento.
rada surpresa de Iem//
IEL/Unicamp. Inédito, 1995.
AD - As pessoas. “Ela” é as pessoas, as pessoas//ri novamente//
_____. A construção meta-enunciativa na linguagem de sujeitos
Pensou que eu não sabia mais? Agora ela é eu.
afásicos: subsídios para um protocolo de investigação
neurolingüística (Proc./CNPq n.
3) À guisa de conclusão: referenciação e
301396/96-5), 1999a.
procedimentos “meta”
_____. Afasia e heterogeneidade discursiva. Investigando a lingua-
O estudo da postura meta-enunciativa (isto é, o movimento de
gem. (orgs. Loni Grimm Cabral & José Morais). Florianópolis:
distanciamento e reflexão dos sujeitos com relação ao dizer próprio e
Editora Mulheres, 1999b.
alheio), ao salientar a maneira como ele se “move na linguagem”, tende
MOSCOVITCH, M. Confabulation and the frontal systems: Strategic
a confirmar a hipótese de que os modos de funcionamento do compo-
versus retrieval in Neuropsychological theories of memory.
nente “meta” (relativos às atividades inferenciais verbais e não-ver-
Varieties of memory and consciousness; essays in honour of
bais, a diferentes processos de memória - cultural, semântica, discursiva,
Endel Tulving (Roediger, H.L. & Craik, F.I.M. eds.). Hillsdale,
procedural - , a diferentes aspectos psico-pragmáticos - como o
N.J.: Erlbaum, 1989.
processamento semântico-lexical e as analogias, por exemplo) não são
TODOROV, T. Les genres du discours. Paris: Minuit, 1980.
subsumidos pela língua ou pela cognição; antes, eles são de responsa-
TULVING, E. Elements of episod memory. Oxford: Oxford University
bilidade de uma competência que articula enunciativamente um saber
Press, 1983.
da língua e um saber do mundo. Essas duas formas de conhecimento
VION, R. La communication verbale - Analyse des interactions.
não sobredeterminadas e não alinhadas por um princípio de redundân-
Paris: Hachette, 1992.
cia (cf. Benveniste, 1966/1989), mas ligadas ontogenticamente por
uma relação de solidariedade que, longe de desaparecer nas afasias,

80 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A referenciação como atividade
cognitiva e interacional
Ingedore G. Villaça Koch
Universidade de Campinas/CNPQ

ABSTRACT: This paper aims to discuss the cognitive, resumptive, cohesive, organizational and avaliative functions performed by nominal
expressions occurring in referential chains, in order to highlight their contribution to ther argumentative orientation of texts, and, by consequence,
to the construction of meaning.
PALAVRAS-CHAVE: referenciação; cadeias referenciais; expressões nominais; argumentação; sentido.

1. Introdução exemplo, com a expressão o magistrado, em (1):


Nesta discussão, vou levantar algumas questões relacionadas à (1) “A Justiça dos EUA decidiu ontem, em caráter liminar, suspender
referenciação quando efetuada por meio de formas ou expressões nominais, a efetividade de uma lei que previa retirar da Internet sites que ofere-
partindo dos seguintes pressupostos: cessem material pornográfico gratuitamente (...)
1. a referenciação é uma atividade cognitivo-interativa realizada por “ O magistrado, de uma corte de Filadélfia, aceitou os argu-
sujeitos sociais; mentos de críticos da Lei de Proteção On Line à Criança, que dizem
2. os “referentes” não são “coisas” do mundo real, mas objetos de discurso, que ela poderia cercear a liberdade de expressão na Internet”. (Folha
construídos no decorrer dessa atividade; de São Paulo, 3/2/1999)
3. o processamento do discurso, por ser realizado por sujeitos ativos, é As anáforas indiretas desempenham um papel extremamente
estratégico, isto é, implica, da parte dos interlocutores, a realização de importante na construção da coerência. Muitas vezes, por ocasião do
escolhas significativas entre as múltiplas possibilidades que a língua processamento textual, existem diversas representações tópicas po-
oferece. tenciais e, somente no co-texto subseqüente, fica claro, por meio do
encadeamento referencial efetuado, qual delas deve ser selecionada na
2 . Conceituação interpretação.
Como se sabe, denominam-se formas nominais as formas lingüís- Um ponto pouco discutido na literatura sobre referenciação e que eu
ticas constituídas, minimamente, de um determinante (que pode ser um φ) gostaria de ressaltar aqui é que a progressão referencial pode realizar-se,
seguido de um nome (substantivo). A estrutura e função desses grupos também, pelo uso de expressões nominais indefinidas com função anafórica
nominais com função referencial, sobretudo a questão da seleção do ( e não, como é mais característico, de introdução de novos referentes
determinante - artigo ou demonstrativo – e do seu comportamento textu- textuais). Vejam-se, no exemplo (2), as expressões que referenciam o prota-
al-discursivo em cada caso, vem merecendo na minha pesquisa atenção gonista e como esse referente vai sendo – polifonicamente! -construído
especial. As estratégias que vou enfocar aqui são as do uso de descrições textualmente, nessa operação dupla de referenciação e progressão temática:
definidas, de formas resultantes de nominalização - incluindo as que (2) “Leio no jornal a notícia que um homem morreu de fome(...)
constituem algum tipo de rotulação metalingüística ou metadiscursiva (cf. “Um homem morre em plena rua, entre centenas de passantes.
Francis, 1994; Conte, 1991, 1993; Koch, 1998, 1999) -, bem como daque- Um homem caído na rua. Um bêbado. Um vagabundo. Um mendigo,
las expressões que funcionam no texto como anáforas indiretas. um anormal, um tarado, um pária, um marginal, um proscrito, um
Ao colocar em ação a estratégia da descrição definida, opera-se bicho, uma coisa - não é um homem. E outros homens cumprem o seu
uma seleção, dentre as propriedades passíveis de serem atribuídas a destino de passantes, que é o de passar. (...)”(Sabino, F., A mulher do
um referente, daquela(s) que, em dada situação discursiva, é (são) vizinho, 8ª ed., Rio de Janeiro: Record, 1962).
relevante(s) para o locutor, tendo em vista a viabilização do seu pro- Observem-se, também, os exemplos (3) e (4). Mais adiante,
jeto de dizer . Por meio da estratégia da nominalização erigem-se em voltarei a essa questão.
objetos de discurso conjuntos de informações presentes no texto pre- (3) “(...) Se há fuga de divisas para o exterior e as ações despencam, os
cedente. As anáforas indiretas, por seu turno, caracterizam-se pelo reflexos na sociedade são imediatos.
fato de não existir no co-texto um antecedente explícito, mas sim um “Um exemplo clássico foi a quebra da Bolsa de Valores de Nova
elemento de relação (por vezes uma estrutura complexa), que se pode Iorque em 1929, quando todo o mercado internacional se ressentiu
denominar âncora (cf. Schwarz 2000) e que é decisivo para a interpre- (...) (“Crise na Bolsa não ensinou brasileiro”, A Tribuna de Campinas,
tação; ou seja, trata-se de formas nominais que se encontram em de- 17/5/1998).
pendência interpretativa de determinadas expressões da estrutura tex- (4) O assassino havia encontrado sua próxima vítima. No dia seguin-
tual em desenvolvimento, o que permite que seus referentes sejam te, a polícia encontrou uma mulher estrangulada no parque central da
ativados por meio de processos cognitivos inferenciais que mobilizam cidade...
conhecimentos dos mais diversos tipos armazenados na memória dos
interlocutores. As anáforas indiretas, como veremos, são responsá- 3. Principais funções das formas nominais
veis pelos dois fatores básicos de progressão textual: a introdução de referenciais na progressão textual
novos referentes, isto é, a inserção de referentes na estrutura de Venho postulando para as formas referenciais nominais fun-
referencialização mental, o que vai acarretar uma ampliação do modelo ções de diversas ordens no texto, cujo estudo merecerá ainda um
textual, pela inserção de um novo nódulo informacional; e a retomada aprofundamento maior. Entre elas, podem-se destacar as seguintes:
ou reativação, responsável pela continuidade referencial, ou seja, a Cognitivas
remissão constante aos mesmos domínios de referência, garantindo a As formas referenciais definidas desempenham funções
prosseqüência do quadro referencial global. É o que acontece, por cognitivas de extrema relevância para o processamento textual:

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 81


1. como formas de remissão a elementos anteriormente apresentados “Num buraco negro, o espaço curvou-se tanto que acabou fechan-
no texto ou sugeridos pelo co-texto precedente, elas possibilitam a do-se sobre si mesmo. (...) (Romildo Póvoa Faria, “Buracos Negros”, A
sua (re)ativação na memória do interlocutor, ou seja, a alocação ou Tribuna de Campinas, 17/5/1998)
focalização na memória ativa (ou operacional) deste;
2. por outro lado, ao operarem uma recategorização ou refocalização 4. Os determinantes nas expressões referenciais
do referente ou, em se tratando de nominalizações, das informações– Na reativação de referentes textuais, a seleção do determinante
suporte, elas têm, ao mesmo tempo, função predicativa. Trata-se, desempenha papel de destaque, dado que o tipo de determinação das
pois, de formas híbridas, referenciadoras e predicativazs, isto é, expressões nominais estabelece relações referenciais específicas
veiculadoras tanto de informação dada, como de informação nova. (Schwarz, 2000). Existe uma literatura bastante alentada sobre a se-
Schwarz (2000) denomina essa função de tematização remática. mântica e a pragmática dos determinantes, especialmente do artigo
definido (Vater, 1979, 1984, 1996; Hawkins, 1978; Kleiber, 1983 a ,
• Encapsulamento ou sumarização b; 1984; Cornish, 1987; entre vários outros), mas os critérios aí apre-
Esta é uma função própria particularmente das nominalizações que, sentados, tais como unicidade, identificabilidade, localizabilidade etc.
conforme foi mencionado, sumarizam as informações-suporte contidas em – com algumas exceções, é claro – abarcam apenas um pequeno espec-
segmentos precedentes do texto, encapsulando-as sob a forma de um substan- tro do fenômeno.
tivo-predicativo e transformando-as em objetos-de-discurso. Quanto aos três usos mais freqüentemente apontados para o de-
Trata-se nesses casos, segundo Schwarz (2000), de anáforas “com- monstrativo – dêitico, anafórico e dêitico memorial -, Béguelin (1998) dis-
plexas”, que não nomeiam um referente específico, mas referentes textu- tingue as posições do locutor e do alocutário. Na perspectiva do alocutário,
ais abstratos, como ESTADO, FATO, EVENTO, ATIVIDADE etc. os empregos situacionais e anafóricos são os mais fáceis de processar, na
Trata-se, como se pode ver, de nomes-núcleo inespecíficos, que exigem medida em que o referente já se encontra validado em sua memória discursiva,
realização lexical no co-texto. Essa especificação vai constituir uma sele- devido aos conhecimentos que ele tem do contexto em sentido amplo. No
ção particular e única dentre uma infinidade de lexicalizações possíveis, momento da ocorrência da forma nominal demonstrativa, a memória
efetuada a partir das proposições veiculadoras das informações-suporte. discursiva encerra tanto a informação de origem perceptual associada ao
A interpretação dessas anáforas obriga o receptor não só a pôr em ação a denotatum, quanto a informação construída por via verbal. Os pressupos-
estratégia cognitiva de formação de complexos, como ainda lhe exigem a tos associados à forma lingüística esse N são assim verificados pelo estado
capacidade de interpretação de informação adicional. Tais expressões da memória discursiva, de modo que a competência inferencial do alocutário
nominais, que são, em sua maior parte, introduzidas pelo demonstrativo, é apenas modestamente solicitada.
desempenham duas funções: rotulam uma parte do co-texto que as prece- Ao contrário, no caso da dêixis memorial, o locutor,
de e estabelecem um novo referente que, por sua vez, poderá constituir egocentricamente, se exime de adaptar a forma de seu discurso ao estado
um tema específico para os enunciados subseqüentes. É esta a razão por presumido de conhecimentos partilhados, utilizando a expressão de-
que, freqüentemente, aparecem em início de parágrafos. monstrativa “unilateralmente”, de forma que cabe ao alocutário acomo-
dar a posteriori a memória discursiva. Entra aqui em jogo um contrato de
• De organização textual comunicação fundamentado não sobre a antecipação de dificuldades
a. no nível microestrutural interpretativas, mas sim sobre o apelo à cooperação do alocutário, que
As formas nominais referenciais constituem recursos coesivos dos deverá “verificar” por si mesmo os pressupostos inerentes à forma
mais produtivos na construção da textualidade, podendo funcionar quer demonstrativa.
anafórica, quer cataforicamente. Há, mesmo, casos em que são simultane- Apothéloz & Chanet (1997: 167 ss.), bem como Apothéloz &
amente anafóricos e catafóricos. Reichler-Béguelin (1999) sugerem alguns fatores que favorecem o
b. no nível macroestrutural aparecimento de um artigo definido ou de um pronome demonstrativo
Como bem mostra Francis (1994:87), as formas remissivas nomi- como determinantes das formas nominais referenciais, embora reco-
nais têm uma função organizacional importante: elas sinalizam que o nheçam que, em um número considerável de contextos, as duas formas
autor do texto está passando a um estágio seguinte de sua argumentação, se encontram praticamente em variação livre. Contudo, o que determi-
fechando o anterior por meio de seu encapsulamento em uma forma na o caráter complementar ou não de ambas, especialmente no que diz
nominal. Possuem, portanto, uma importante função na introdução, mu- respeito ao português - que parece apresentar características diferen-
dança ou desvio de tópico, bem como de ligação entre tópicos e subtópicos. tes de algumas outras línguas quanto ao uso do definido ou do de-
Ou seja, elas introduzem mudanças ou desvios do tópico, preservando, monstrativo – constitui objeto central de pesquisa não só de minha
contudo, a continuidade tópica, ao alocarem a informação nova dentro do parte, como de outros pesquisadores como Cavalcante (2000) e
quadro da informação dada. Desta forma, são responsáveis simultanea- Zamponi (tese de doutorado em fase de conclusão na UNICAMP).
mente pelos dois grandes movimentos de construção textual: retroação
e progressão. 4.1 Uso do demonstrativo
Assim sendo, como também apontam Apothéloz & Chanet De acordo com Apothéloz & Chanet, os casos em que se privi-
(1997:170), as expressões referenciais efetuam a marcação de parágrafos, legiaria o emprego do pronome demonstrativo seriam, entre outros:
incrementando, desta forma, a estruturação do produto textual. Ressal- • casos em que a expressão referencial opera uma recategorização
tam que não se trata aqui de parágrafo no sentido tipográfico, mas no mais ou menos metafórica do processo, isto é, sempre que o substan-
sentido cognitivo do termo, embora, evidentemente, as duas coisas pos- tivo escolhido requalifica o referente de forma pouco predizível:
sam coincidir. Observe-se o exemplo (5): (6) “Nestes tempos de crise e de cortes de gastos públicos, o presi-
(5) “(...) A gravidade na superfície do astro em contração vai mais e mais dente planeja dar uma cara mais moderna a seu governo (...)
aumentando e, a partir de um certo ponto, até mesmo a luz não consegue “Mais do que essa operação plástica no governo, o que motiva
mais escapar-lhe. Forma-se, então, um buraco negro. uma queda-de-braço entre os aliados é a criação de um superministério
“Esse nome tem sua origem na interpretação oriunda da Teoria da para cuidar da produção e comércio exterior (...)”(Isto é, 1518, 4/11/
Relatividade sobre a interação gravitacional. Dentro dessa teoria, a gravi- 1998, p.33)
dade nada mais é que o resultado da curvatura do espaço ao redor de um • casos de polifonia (Ducrot, 1980) ou heterogeneidade discursiva
corpo com massa. (Authier-Révuz, 1982), como, por exemplo, o discurso indireto livre e a

82 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


denominação reportada, ou seja, sempre que o substantivo-núcleo da tomada de consciência, que se vem fazendo necessária há tanto tem-
expressão referencial não é – ou não parece ser – totalmente assumido po, poderá levar a mudanças significativas”.
pelo locutor, ou é empregado ironicamente, isto é, quando colocado entre Em suma: um dos efeitos produzidos pelo demonstrativo é o
“aspas de conotação autonímica” (Authier, 1981:136), como se pode ver de recuperar a informação do co-texto à esquerda. É por isso que os
em (7): SNs demonstrativos podem ser facilmente parafraseados por um SN
(7) Ao analisar os resultados do Sistema Nacional de Avaliação Básica do seguido de um adjunto adnominal ou de uma oração relativa que ve-
MEC, o ministro Paulo Renato Souza (Educação) afirmou que “a escola nham a atualizar tal informação. Este fenômeno é claramente verificável
está cada vez mais chata, e o aluno cada vez mais dispersivo e quando o núcleo nominal do SN anafórico é um nome de processo, por
indisciplinado”. (...) terem estes valor semântico incompleto, sendo, pois, intrinsecamente
Para Paulo Renato, esse “efeito chatice” é provocado por duas anafóricos. Quando introduzidos por um determinante demonstrati-
razões centrais: a falta de reciclagem das escolas e a grande oferta de vo, este acarreta a captação dos argumentos do processo por meio da
conhecimento fora da sala de aula, principalmente na Internet. (Folha de referência.
São Paulo, 29/11/2000) Parece ficar claro que esse N (= o N que eu mostro, o N de que
• casos em que o nome-núcleo do SN vem modificado por um eu falo) funciona como um gesto do locutor (dêixis textual). Gary-
adjetivo na função de adjunto adnominal – não pertinente para a iden- Prieur (1998), contudo, aponta ainda que, além dessa face do demons-
tificação do referente, mas importante do ponto de vista da argumen- trativo, existe outra, voltada para o destinatário. Esse permite apre-
tação (exemplo 8). Caso se queira de qualquer forma usar o definido, sentar um objeto como sendo ligado às pessoas do discurso, o que lhe
será necessário, modificar o seu estatuto sintático, transformando-o dá uma dimensão discursiva. Assim, a autora propõe a seguinte
em aposto, como em (9): ampoliação da definição do demonstrativo, para incluir também o
(8) A Polícia Militar, durante uma blitz, prendeu hoje vários morado- interlocutor:
res da favela da Rocinha. Essa detenção brutal e sem motivo declara- Esse N = um x que é um N e sobre o qual eu chama a atenção de tu.
do revoltou os moradores do lugar. Essa definição mostra que o referente do demonstrativo, classi-
(9) A Polícia Militar, durante uma blitz, prendeu hoje vários moradores da ficado como N, é identificado para o locutor e não impõe nenhuma
favela da Rocinha. A detenção – brutal e sem motivo declarado – revoltou condição de identificação prévia para o alocutário. E talvez aí repouse
os moradores do lugar. a dificuldade para a resolução do demonstrativo em relação aos demais
• casos de SNs associativos em que o demonstrativo não seria determinantes (indefinido e definido): a instrução semântica dada pelo
passível de substituição por um definido, visto que, se isto aconteces- demonstrativo é precisamente colocar o referente do SN introduzido
se, teriam alterado seu valor referencial ou se criariam dificuldades em relação com o par eu/tu constitutivo do discurso.
relativamente sérias para se chegar a uma interpretação adequada.
Observe-se o exemplo (10): 4.2 Uso do artigo definido
(10) Os caminhoneiros fizeram uma paralisação, bloqueando total- Favoreceriam, entre outros casos, o aparecimento do artigo
mente as principais rodovias do território nacional. Considere-se que definido:
esse meio de transporte é vital para a economia do país. • presença no interior do SN anafórico de um adjunto adnominal
• Nos casos de uso de hiperônimos, quando se pretende evitar ou complemento nominal que designa um dos actantes do processo (mais
uma referência genérica: freqüentemente o Objeto):
(11) A antiga Estação Sorocabana, em São Paulo, foi transformada em (13) “O cronômetro começou a correr. Quando o ministro da Fazenda,
uma das mais modernas salas de concerto do mundo. Essa arte vinha Pedro Malan, anunciou na quarta-feira 28 o tão adiado pacote fiscal
exigindo maior incentivo de parte das autoridades públicas. para desarmar a bomba que pode detonar o Real, o governo iniciou,
• casos de marcação de parágrafo: o fato de ser comum encontrar mais uma vez, uma corrida contra o relógio. Em menos de um ano, foi
expressões referenciais nominais em fronteira de parágrafos decorre de o segundo pacotão em seguida a uma alta estratosférica de juros.
uma estratégia que consiste em balizar as fases mais importantes do “O palco do anúncio, o auditório do Ministério da Fazenda em
discurso, para facilitar não apenas a sua recepção, mas também a sua Brasília, foi o mesmo.”(Isto é, 1518, 4/11/1998, p. 27).
produção. Nesse caso, a visibilidade das expressões referenciais é utiliza- • substantivos predicativos morfologicamente derivados de
da como recurso para incrementar a estruturação textual. A referência verbo que figuram na proposição nominalizada:
demonstrativa é justamente um meio de tornar perceptivelmente saliente (14) “O Ministério da Saúde adverte: o cigarro causa impotência”. A
uma expressão. Por esta razão, as nominalizações demonstrativas são advertência vem acrescentar mais um dano aos que vinham sendo
comuns nos momentos em que se produz uma mudança de ponto de vista anteriormente anunciados.
e contribuem para marcar essa transição. • nomes predicativos que designam um atributo da enunciação,
• casos de referência problemática: o referente da expressão isto é, nominalizam um processo, mas não aquele denotado pelo con-
anafórica possui, em geral, um alto grau de predizibilidade e, portanto, teúdo proposicional e sim o tipo de ato de comunicação realizado por
de acessibilidade, Isto é, o referente pode ser facilmente inferido com uma enunciação, categorizando-o de determinada forma:
base no co-texto prévio e/ou no contexto de uso, de forma que sua (15) O presidente afirmou em recente entrevista que não é um neoliberal,
presença na memória discursiva pode ser considerada latente no mo- mas que defende um Estado Moderno (...). A explicação não conven-
mento em que a anáfora aponta para ele. Contudo, os referentes são, ceu os presentes.
por vezes, menos predizíveis e até mesmo impredizíveis, obrigando o • casos em que o substantivo predicativo é um nome genérico,
receptor a introduzir um novo objeto em sua memória discursiva e como coisa, fato, evento etc., especialmente quando não seguido de
construir a informação contextual de modo a permitir que esta uma expansão determinativa e se encontra em posição temática:
introduçào seja consistente e compatível com o estado atual daquela. (16) Mais um condenado é levado à cadeira elétrica nos EUA. A cena
Neste caso, o uso do demonstrativo seria praticamente obrigatório, foi filmada pela TV americana e chocou os telespectadores.
como em (12): Com base em análise prévia, parece ser possível afirmar que o
(12) “As lideranças sindicais estão promovendo, em todo o território português tem, em diversos desses casos, um comportamento dife-
nacional, mutirões de esclarecimento da população sobre a aflitiva rente, pelo menos relativamente ao francês e ao alemão: poder-se-ia
situação do país e as alternativas possíveis para enfrentá-la. Só esta dizer, à primeira vista, que nossa língua é mais “tolerante” quanto à

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 83


intercambialidade do demonstrativo e do definido. Basta, por exem- forte da Líbia, o coronel Muammar Gadafi, que se recusara a ficar
plo, retomar os exemplos aqui apresentados, que permitirão verificar hospedado no Sheraton alegando que este representava um símbolo
que, a par de casos categóricos de emprego de uma e outra dessas do imperialismo americano. O gesto circense do ditador líbio não
formas, parece haver uma extensa faixa intermediária em que eles se chegou a surpreender (...) (Isto é, 06/09/2000).
encontram em variação livre.
5. Para concluir...
4.3 Uso do artigo indefinido Grande parte dos estudos sobre a referência textual têm-se
As expressões nominais introduzidas por artigo indefinido não ocupado excessivamente com a questão das restrições sobre a anáfora,
são normalmente adequadas para a retomada de referentes já introdu- sem levar em conta as funções semânticas, pragmáticas e interativas
zidos no texto. Contudo, como foi destacado anteriormente, elas po- das diversas formas de expressões referenciais, que precisam ser vis-
dem em certas circunstâncias, desempenhar tal função. São três os tas com multifuncionais (Apothéloz & Rechler-Béguelin, op. cit.,
principais desses casos (cf. Schwarz, 2000:59-60): falam em poli-operadores). Todas elas têm, além disso, uma dimensão
• quando se seleciona um referente no interior de um conjunto simultaneamente construtiva e intersubjetiva.
já mencionado: O discurso, à medida que alimenta a memória discursiva, forne-
(17) Um grupo de colegiais entrou na sala. Um estudante loiro ace- ce uma representação de seus estádios sucessivos, particularmente
nou para mim.. “formatando” as expressões referenciais, que, nesse sentido, operam
• quando se nomeiam partes de um referente previamente men- como “chaves” (clues). Tal representação, no entanto, pode ser ela
cionado (exemplo 18) ou, então, conscientemente, não se especifica mesma manipulada e as expressões referenciais são precisamente um
melhor o referente, para criar um efeito de suspense (exemplo 19) : dos lugares onde a manipulação é não só possível, como visível.
(18) Preciso consertar o telhado. Uma telha está quebrada. Em outras palavras: a função das expressões referenciais não é
(19) Assalto a Banco: os meliantes atiram no motorista de um carro apenas o de referir. Pelo contrário, como multifuncionais que são, elas
forte. O caixa age com a rapidez de um raio: fazendo o dinheiro desa- contribuem para elaborar o sentido, indicando pontos de vista, assina-
parecer não se sabe como, apresenta aos assaltantes duas caixas vazi- lando direções argumentativas, sinalizando dificuldades de acesso ao
as. À noite, ele recebe uma visita inesperada. No dia seguinte, um referente, recategorizando os objetos presentes na memória discursiva.
cadáver é retirado de um riacho próximo.(exemplo adaptado de O que foi aqui discutido permite verificar o importante papel
Schwarz, 2000:59). desempenhado pelas expressões nominais na organização do texto e sua
• quando a expressão anafórica focaliza mais fortemente a in- contribuição decisiva para a orientação argumentativa dos enunciados que
formação por ela veiculada do que o prosseguimento da cadeia coesiva: o compõem e, em decorrência, para a construção interativa do sentido.
(20) A velha senhora desaba sobre a cadeira da cozinha. E quando sua
amiga chega, não encontra a avozinha, mas um montinho de infelicidade,
uma coisinha danificada e confusa. (adaptado de Schwarz, 2000:59) Referências bibliográficas

4.4 Referenciação e argumentação APOTHÉLOZ, Denis; Marie-José REICHLER-BÉGUELIN. 1995.


Por fim, a função de recategorização argumentativa, que pode “Construction de la référence et stratégies de désignation”. In:
ser realizada apenas por meio do nome-núcleo ou pelo acréscimo de BERRENDONNER, Alain; M-J. REICHLER-BEGUELIN
modificadores avaliativos (positivos ou negativos), pode ser observa- (eds), p. 227-271, 1995.
da nos exemplos (21)- (24), que evidenciam a relação íntima entre APOTHÉLOZ, Denis. “Nominalisations, réferents clandestins et
referenciação por formas nominais e argumentação: anaphores atypiques”. In: BERRENDONNER, A. e M-J
(21) (...) “O problema reside no ponto de vista em que da virtude se REICHLER -BEGUELIN (eds), p.143-173, 1995.
passa ao vício. Procuradores ou promotores por vezes não têm feito APOTHÉLOZ, Denis; Catherine CHANET. Défini et démonstratif
o melhor uso de sua função. Alguns utilizam-se do cargo apenas para dans les nominalisations. In: DE MULDER, Walter & Carl Vetters
ganhar visibilidade na mídia quando, mesmo desprovidos de indícios (eds.), Relations anaphoriques et (in)cohérence. Amsterdam:
consistentes, lançam acusações que prejudicam terceiros, não raro de Rodopi, p.159-186, 1997.
maneira irreversível. Há basicamente dois tipos de remédios para es- .AUTHIER, Jacqueline. “Paroles tenues à distance”. In: Materialités
ses abusos”. (Folha de São Paulo, 27/07/2000) discursives. Presses Universitaires de Lille, 1981.
(22) “Nas conversa que teria sido gravada em 19 de agosto, Miranda BÉGUELIN, M-J. L ‘usage des SN démonstratifs dans les Fables de
diz que o chefe ironizou a proposta, dizendo que só aceitaria como La Fontaine. Langue Française 120, p. 95-109, 1998.
suborno “a metade de um terço do que fora anteriormente acordado, BERRENDONNER, Alain; Marie-José REICHLER-BEGUELIN
que os empresários caça-níqueis de Minas calculam em R$ 6 milhões. (eds). Du syntagme nominal aux objets-de discours. SN complexes,
“O escândalo ocorreu uma semana depois da mais recente ação nominalisations, anaphores. Tranel v. 23, Neuchâtel, Institute
ostensiva de apreensão de máquinas em Belo Horizonte (...)”(Isto é, de Linguistique de l’Université de Neuchâtel, dez. de 1995.
06/09/2000) CONTE, Elisabeth “Anaphoric encapsulation”. Belgian Journal of
(23) “No Brasil, ao longo dos anos 80, várias vezes a proposta de Linguistics: Coherence and anaphora, v. 10, p.1-10, 1996a.
‘pacto social’ foi cogitada e até negociada, mas prevaleceram os acor- _____. Dimostrativi nel testo: tra continuitá e discontinuitá
dos entre oligarquias, enquanto se agudizavam as resistências referenziale. Lingua e Stile v. 31, p. 135-145, 1996b.
corporativistas. CORBLIN, F. Indéfini, défini et démonstratif. Genève: Droz, 1987.
“Ainda que esses “pactos” sejam muitas vezes retóricos, os FRANCIS, Gill. Labelling discourse: an aspect of nominal-group lexical
espanhóis têm a seu favor a capacidade de colocar também as ques- cohesion In: COULTHARD, Malcolm (ed.), Advances in written
tões sociais no âmbito da modernização política e econômica.”(Folha text analysis. Londres: Routledge, 1994.
de São Paulo, 26/11/2000) _____ & LEONARD, M. Le démonstratif dans les textes et dans la
(24) “(...) no gramado daquele luxuoso hotel estava montada uma langue. Langue Française, v. 120, p. 5-20, 1998.
gigantesca tenda verde, cercada por guarda-costas armados até os den- GARY-PRIEUR, M-N & M. NOAILLY.1996. Demonstratifs
tes. Nela estava alojado ninguém menos que o todo-poderoso homem insolites. Poétique, v. 105, p. 111-21.

84 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


KLEIBER, Georges. Les démonstratifs (de)montrent-ils? Sur le sens referenciação na produção discursiva. D.E.L.T.A ., vol.14, no.
reférentiel desadjectifs et pronoms démonstratifs. Le Français especial, p.169-190, 1998.
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UNICAMP, dez. 1999.
KOCH, Ingedore G. V; Luiz. Antônio MARCUSCHI. Processos de

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 85


O gramatical e o abstrato
num modelo fonético/fonológico dinâmico
Eleonora Cavalcante Albano
Univerdade de Campinas - LAFAPE/IEL

ABSTRACT: Facts about Brazilian Portuguese stress and vowel reduction are brought together to show that, contrary to recent claims, Articulatory
Phonology can deal successfully with grammatically-driven, lexicalized speech processes. The key to this success lies in the logical potential of the
spatial and temporal dimensions of the articulatory gesture.
PALAVRAS-CHAVE: Fonética, Fonologia, Dinâmica, Gramática.

A proposta da Fonologia Articulatória (doravante FAR; magnitude relativas conseqüências gramaticais observáveis? Veremos
Browman e Goldstein, 1990, 1992) de usar primitivos fônicos dinâ- abaixo que sim.
micos para tornar a Fonética e a Fonologia parcialmente comensuráveis
vem merecendo menos atenção ultimamente, embora tenha, de início, 1. Distinções Temporais e Espaciais no Léxico
ganhado adeptos entre foneticistas e fonólogos (Kingston e Beckman A FAR afirma que o contraste lexical discreto (i. e., as velhas
1990). A razão é que circula na comunidade uma crença de que a oposições “fonêmicas”) é passível de expressão por gestos tanto quanto
unidade de análise proposta – o gesto articulatório – só dá conta da a variação fonética contínua. Como em outras teorias fonológicas, são
alofonia gradiente, contínua e deixa de fora a alofonia clássica, categó- categóricas as distinções lexicais e gradientes as distinções fonéticas.
rica, gramatical (Nolan 1999, Zsiga 1997). A questão da representação lexical está, porém, mal resolvida. As
Este trabalho pretende mostrar que essa crença é equivocada. discussões não passam, até agora, da expressão gestual das oposições
Com base em dados do português brasileiro (doravante PB) argumen- distintivas.
É que o excesso de fisicalismo atribuído ao modelo obscurece
ta-se que o gesto articulatório é capaz de dar conta tanto de aspectos
uma pergunta potencialmente reveladora: seriam os gestos capazes de
concretos, ligados à produção da fala, como de aspectos abstratos,
expressar contrastes que a representação tradicional por segmentos e/
ligados à gramática, daquilo que os falantes sabem sobre o sistema
ou traços ignora? Por exemplo, seriam “reduzido” (no espaço) e “encur-
fônico da sua língua (Albano, 2001).
tado” (no tempo) úteis como categorias lexicais? Ou, ainda, é possível
Passemos rapidamente em revista o modelo em questão. A contrastar “seqüencial” a “sobreposto”? Dados do PB mostram que a
originalidade da FAR reside em afirmar que a fala é um caso particular, adoção de categorias dinamicamente interpretáveis ilumina a descrição
especial porque audível, da gestualidade, i. e., consiste em movimen- dos processos fônicos e simplifica o tratamento das restrições
tos discretos de partes do trato vocal – movimentos que comparti- fonotáticas lexicais.
lham com o resto da motricidade o fato de se sobreporem uns aos
outros no tempo e no espaço. 2. Reduzido como Categoria Lexical
A questão do movimento é tratada através das ferramentas É conhecida a hesitação dos estudiosos do português, tanto
muito gerais da Dinâmica (Kelso, Saltzman e Tuller, 1987). É justa- brasileiro como europeu, entre as orientações fonológica (p. ex., Bisol,
mente aí que costumam incidir as críticas ao modelo. A permeabilidade 1992) e morfológica (p. ex., Mateus, 1983) na análise do contraste
dos processos fônicos a explicações dinâmicas é, com efeito, muito lexical entre as paroxítonas e as oxítonas.
variável. Enquanto os da fala fluente tendem a se render a elas facil- As análises fonológicas acentuam a penúltima sílaba a menos
mente, os lexicalizados e gramaticalizados estão, geralmente, longe de que a última seja fechada sob certas condições, geralmente abstratas e
se reduzir a questões de movimento. passíveis de exceção. As análises morfológicas geralmente distinguem
Daí decorre a pergunta: seria o gesto articulatório um primitivo entre verbos e não-verbos e condicionam o acento à posição do radi-
tão útil à Fonologia quanto tem sido, até agora, à Fonética? A respos- cal. Ambos os tipos de análise obrigam-se a desacentuar, i. e., a anular
ta, negativa, de certos críticos da FAR é precipitada porque se baseia parte da prosódia lexical, para estruturar ritmicamente sintagmas rela-
no argumento, vicioso, de que qualquer evidência contra o tratamento tivamente longos.
dinâmico de um processo fônico é evidência contra o modelo. Ignoram Uma maneira de reunir as vantagens e superar as desvantagens
dos dois tipos de análise é efetivamente eliminar o acento lexical. A
eles que existe uma outra alternativa, também compatível com a FAR,
abordagem alternativa baseia-se na noção de inacentuabilidade ou
que prescinde de operações dinâmicas on line. Trata-se de conceber os
repulsão do acento e permite combinar informações fônicas e grama-
processos em questão em termos de gestos quase simbólicos, conge-
ticais de maneira bastante natural e econômica.
lados, ou seja, lexicalizados. Considerando que, no PB, as vogais postônicas são, fonetica-
É perfeitamente possível postergar a questão se a dinâmica é mente, muito mais reduzidas que as pretônicas, pode-se explorar a
capaz de se auto-organizar simbolicamente a fim de, antes, demons- hipótese de que a redução constitua uma marca lexical, dinamicamente
trar que “símbolos” com uma dimensão espaço-temporal iluminam a interpretável, da inacentuabilidade. Diferentemente de um diacrítico
descrição fonológica. Dado que o gesto articulatório é, até agora, o que marque uma vogal ou uma consoante como extramétricas, um gesto
único primitivo fônico sujeito a mudanças de magnitude e/ou articulatório de magnitude por definição reduzida repele naturalmente o
sobreposição à medida que se desdobra no tempo e no espaço, cabe a acento, i. e., não pode acoplar-se a batidas rítmicas fortes e delas receber
previsão de que a gramática, assim como a fonética, seja sensível a maior duração e energia (modo como o acento frasal é implementado por
essas duas variáveis. Em outras palavras, teriam a sincronização e a modelos rítmicos como o de Barbosa, neste volume).

86 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Ao invés de prever a localização do “acento” lexical, a fonologia
simplesmente estipularia restrições de boa formação sobre a distribui-
ção de vogais plenas e reduzidas no léxico. As convenções de atribui-
ção rítmica dos níveis mais altos fariam o acento (ou, dito de outro
modo, a batida superior na hierarquia rítmica) incidir sobre a última
vogal plena da palavra acentuada.

3. Vogais Plenas e Reduzidas no Léxico do PB


A restrição de boa formação mais geral sobre a acentuabilidade A restrição (4) exclui o caso da fricativa coronal reduzida de (3)
no PB é aquela que gera o indiscutível predomínio dos paroxítonos: e resgata, para os demais, a noção de peso silábico, garantindo que
(1a) Uma vogal é reduzida se alinhada à direita1 (doravante, D) a uma vogal seja plena se acompanhada de um gesto final sobreposto:
fronteira de palavra ou se parcialmente sobreposta a uma fricativa
coronal reduzida alinhada, D, a fronteira de palavra. (4a) Uma vogal é plena se parcialmente sobreposta a um gesto
Uma representação gráfica simplificada2 ajuda a visualizar o ca- seguinte, pleno (se obstruinte4) ou reduzido (se soante), alinhado, D,
ráter espaço-temporal3 dessa proposição. Tem valor unitário o grau de a fronteira de palavra.
constrição habitual do gesto: Ou, em termos gráficos:

Ficam, assim, resolvidos casos tais como ‘francês’, ‘feliz’, ‘herói’,


Note-se que, além de cobrir a maioria das palavras existentes, ‘irmã’, ‘azul’, ‘amor’. Resolvem-se também os infinitivos, pois a maioria
(1) dá conta da pronúncia de muitas siglas, tais como EMBRAPA e preserva o rótico final, ainda que bastante reduzido. Dessa forma, o
CAPES (ver também nota 4 abaixo), assim como de derivações regres- sistema verbal abriga poucas exceções, já que, além de se constituir, na
sivas, tais como ‘Sampa’ e ‘Supla’. maioria, de paroxítonos, contém muitos oxítonos em semivogal, tais como
Quatro outras restrições completam a descrição dos casos mais ‘andei’, ‘cantou’, resolvidos pela restrição (4).
comuns no PB. A primeira exige que vogais ou obstruintes sejam Os oxítonos em [i], tais como ‘comi’, não constituem propria-
plenas em fronteira acumulada de palavra e radical sem tema, i. e., mente exceção, pois o viés lexical introduzido pelas línguas nativas
radical cujos gestos finais ou pré-finais não se alinhem à esquerda brasileiras, via palavras tais como ‘saci’ e ‘anu’, já contempladas, em
(doravante, E) a fronteira de morfema. princípio, por (2), justifica postular uma última restrição geral, que
(2a) Um gesto vocálico ou obstruinte não alinhado E é pleno se alinha- torna plenas as vogais finais com grau de constrição estreito e máximo,
do, D, a fronteira acumulada de palavra e radical. a saber:
Ou, recorrendo, de novo, à nossa representação gráfica
simplificada: (5a) Toda constrição vocálica estreita máxima alinhada, D, a
fronteira de palavra é também plena.
Ou, em termos gráficos:

Cabem aqui, no primeiro caso, oxítonas como ‘maná’, ‘café’, etc.


O segundo caso garante a aplicação da restrição (4), abaixo, a palavras
como ‘montês’, ‘atrás’, etc. Oxítonos terminados em outras vogais, tais como os do futuro
A próxima restrição trata do caso mais geral de final em fricativa (p. ex., ‘amará’) ou os dos infinitivos em que a perda do rótico tende
coronal, que inclui os sufixos de plural e segunda pessoa, sem, entre- a se lexicalizar (p. ex., ‘fazê’), são mais intuitivamente tratados por
tanto, mencioná-los. O que se afirma é, simplesmente, que uma fricativa restrições morfofonológicas, i. e., restrições que alinhem, D e/ou E,
coronal final é reduzida, excluídas as sujeitas a (2), cujo ambiente é um gesto vocálico pleno às fronteiras dos morfemas implicados.
mais específico, e, portanto, prevalece onde satisfeito. Fica, assim, Limitações de espaço obrigam-nos a abreviar a discussão dos
caracterizada a diferença entre finais tais como ‘Campinas’, que satis-
fazem (3) e, portanto, também (1), e outros, tais como ‘ananás’, que
satisfazem (2), devendo ser tratados, como os demais oxítonos em
coda, pela restrição (4) abaixo.
1
Cf. McCarthy e Prince (1997). Note-se que a temporalidade dos gestos
permite o seu alinhamento à esquerda e à direita.
(3a) Um gesto fricativo coronal alinhado, D, a fronteira da palavra é 2
Um gesto compõe-se de duas oscilações, correspondentes ao grau e ao
reduzido. local de constrição. Aqui a mais diretamente envolvida é a primeira.
Ou, em termos gráficos: 3
Com o tempo na abscissa e o deslocamento em direção ao alvo da
constrição na ordenada.
4
Isso vale também para siglas tais como UNICAMP, na ausência de
lexicalização do [I] paragógico.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 87


casos verdadeiramente excepcionais, que são as proparoxítonas e as para o português europeu por Gonçalves Viana (1973 [1883]: 108-
paroxítonas em G, N, L, R (p. ex., ‘órgão’, ‘ímã’, ‘fácil’, ‘sóror’). 122). A única forma de redução “congelada” é a descrita na seção
Sobre as primeiras, basta dizer que nenhuma das restrições anterior. Todas as demais são geradas dinamicamente pela interação
propostas proíbe a existência de vogais reduzidas na penúltima, o que entre as oscilações que constituem a pauta rítmica (V. Barbosa, neste
possibilita a incorporação excepcional das mesmas ao léxico (p. ex., volume) e as oscilações que constituem os gestos. Obviamente, uma
em ‘lâmpada’) e a formulação de restrições específicas para tratar dos língua só recorreria à categoria lexical reduzido no caso de ter
casos previsíveis ( p. ex., ‘telégrafo’, ‘estávamos’). lexicalizado distintivamente a acentuação.
Sobre as segundas, é necessário mencionar que ainda está sendo A possibilidade de dar à redução implicada em contrastes lexicais
investigada instrumentalmente a hipótese de que os gestos consonantais um estatuto lingüístico congruente com a variabilidade da sua realiza-
envolvidos não constituam verdadeiras codas por estarem inteira- ção fonética torna atraente, porque parcimonioso, um modelo dinâmi-
mente sobrepostos aos das respectivas vogais. co que, na linha da FAR, procure explorar a comensurabilidade possí-
vel entre a Fonética e a Fonologia.
4. Redução Vocálica e Comensurabilidade entre
a Fonética e a Fonologia
Em Albano, Barbosa, Madureira, Gama-Rossi e Silva (1998),
mostramos que a redução do [X] postônico final é, numa mesma Referências bibliográficas:
palavra, maior em contextos prosodicamente fracos do que em con-
textos prosodicamente fortes. ALBANO, E.C. 2001. O Gesto e suas Bordas: para uma fonologia
Concomitantemente, Aquino (1997), comparando vogais tôni- acústico-articulatória do português brasileiro. Campinas: Mer-
cas de logatomas oxítonos e vogais postônicas de logatomas paroxítonos cado de Letras.
e proparoxítonos, encontrou dois graus distintos de redução de [a, X] : ____; P. Barbosa.; S. Madureira; A. Gama-Rossi; A. Silva. 1998. A
na postônica medial dos proparoxítonos, [“ X ] é mais fechado e interface fonética-fonologia e a interação prosódia-segmentos.
posteriorizado que na postônica final dos paroxítonos, sendo aí, por Estudos Lingüísticos XXVII: Anais do Grupo de Estudos
sua vez, mais fechado e posteriorizado que o [a] da tônica dos oxítonos. Lingüísticos do Estado de São Paulo (GEL). São José do Rio
A Figura 1 mostra, para um informante, os três tipos de vogal no Preto: UNESP-IBILCE, 135-143.
espaço constituído por F1 e F2: AQUINO, P. 1997. O papel das vogais reduzidas postônicas na
construção de um sistema de síntese concatenativa para o portu-
guês do Brasil. Dissertação de mestrado inédita. LAFAPE-IEL,
F 1 x F 2 d e /a / tônic o, p ós-tôn ico fin al e pó s-tônico m ed ial UNICAMP.
300
Barbosa, P.A. no prelo. O universal e o específico a língua
em um modelo dinâmico de produção do ritmo (fonético e
fonológico) da fala. Neste volume.
400
Bisol, L . 1992. O acento e o pé métrico binário. Cadernos
de Estudos Lingüísticos, 22(1): 69-80.
500 Browman, C.; L. Goldstein. 1990. Tiers in articulatory
a tô nico
phonology, with some implications for casual speech. In:
F1

A final
A m edial
600 Kingston e Beckman, pp. 341-376.
____. 1992. Articulatory phonology: an overview.
700
Phonetica, 49 (3-4): 155-180.
Golçalves Viana, A. 1973. Estudos de Fonética portuguesa.
Lisboa: Imprensa Nacional.
800
15 00 1400 13 00 12 00 11 00 10 00 Kelso, S.; E. Saltzman; B.Tuller. 1987. The dynamical
F2 perspective on speech production: data and theory. Journal
Figura 1 - F1 e F2, em Hz, de [a, X]: tônico, postônico medial e postônico of Phonetics, 14, 1, 29-59.
final. KINGSTON, J.; M. Beckman. 1990. (orgs.). Papers in laboratory
phonology: between the grammar and the physics of speech.
Juntos, esses dois achados apontam para um comportamento Cambridge: Cambridge University Press.
ora categórico, ora gradiente, da redução vocálica. Na Figura 1, por MATEUS, M.H. 1983. O acento de palavra em português: uma nova
exemplo, há categorias claramente insinuadas: a postônica final situa- perspectiva. Boletim de Filologia, 28:211-229.
se, no espaço vocálico, entre a medial e a tônica, mas não se confunde MCCARTHY, J.; A. Prince. 1997. Generalized alignment. Manuscri-
com elas. É preciso, entretanto, lembrar que os logatomas em que se to Inédito. Rutgers Optimality Archive.
fizeram as medidas preenchiam a lacuna de uma frase-veículo e, por- NOLAN, F. 1999. The devil is in the detail. In: Ohala, J. ; Y. Hasegawa;
tanto, carregavam o acento frasal. Considerando que, conforme o ou- M. Ohala; D. Granville & A. Bailey. Proceedings of the XIVth
tro achado, a redução pode variar com o grau de acentuação da palavra ICPhS. Berkeley: University of California, vol. I, p. 1-8.
na frase, tem-se que os três tipos de vogal se multiplicam pelo número ZSIGA, E. 1997. Features, gestures, and Igbo vowel assimilation: an
de níveis possíveis na hierarquia prosódica, formando, no espaço approach to the phonology/phonetics mapping. Language,
vocálico, uma “nuvem” muito densa e difícil de discretizar. 73(2):227-274.
Para um modelo fonológico padrão, surge a pergunta: seriam os
alofones categorizáveis do nível fonológico e os não-categorizáveis do
nível fonético?
Para um modelo gestual na linha da FAR, essa pergunta não 5
Conforme a terminologia clássica: glides (semivogais), nasais, laterais e
existe. Só existe a pergunta se a redução tem ou não valor distintivo, róticos. Todos são representados por gestos reduzidos por estarem
gerando contrastes semelhantes aos propostos, há mais de um século, sujeitos a processos de enfraquecimento no PB.

88 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


O universal e o específico: a língua em um
modelo dinâmico de produção do ritmo
(fonético e fonológico) da fala *
Plínio Almeida Barbosa
Universidade de Campinas, Instituto de Estudos da Linguagem, LAFAPE.

RÉSUMÉ: Cet article propose un modèle de production du rythme de la parole doublement dynamique : un système avec oscillateurs syllabique
et accentuel couplés et un réseau connexionniste qui réalise l’interaction prosodie-segments. Ce modèle rend compte des caractéristiques universelles
et spécifiques à langue de la composante rythmique.
PALAVRAS-CHAVE: Análise do ritmo, Duração, Modelo de ritmo, Português brasileiro

Introdução dos ritmos teta (Parthasarathy, 1999). O oscilador silábico implementa


É inquestionável a periodicidade dos chamados “ritmos bioló- a silabicidade durante o processo de enunciação: os máximos dos ciclos
gicos”, sejam eles o ritmo das batidas do coração, o ritmo dos braços sucessivos desse oscilador correspondem aos núcleos silábicos e os
e das pernas ao andar ou ao correr, ou o ritmo da mastigação e da fala, mínimos, às margens silábicas.
para nos limitarmos apenas ao homem. Para que qualquer organismo Um outro relógio cognitivo, o oscilador acentual, dá conta da
sobreviva, a adequação entre os seus ritmos biológicos (internos) e os acentuação, o fato que, de tempos em tempos, marcamos mais forte-
ritmos naturais (externos) é imprescindível (Fraisse, 1974). mente uma determinada sílaba ao longo da frase, assinalando a fronteira
Os ritmos biológicos elencados acima são produzidos e do chamado grupo acentual. Esses dois componentes estão presentes
monitorados por sistemas de osciladores acoplados, isto é, sistemas em qualquer língua, sendo próprios do nosso sistema cognitivo.
de osciladores simples que se influenciam mutuamente, possibilitan- Uma técnica matemática qualitativa, a Diferença de Fase Mé-
do a exibição de padrões temporais extremamente complexos. Uma dia, apresentada e utilizada recentemente por O’Dell e Nieminen (1999)
mesma rede de osciladores neurais acoplados pode assim explicar os permite justamente estudar os padrões de acoplamento possíveis en-
diferentes padrões de movimento dos membros de um cavalo ao tro- tre os osciladores silábico e acentual.
tar, galopar ou correr (Strogatz & Stewart, 1994) ou os diferentes Essas duas oscilações são consideradas a partir da relação entre
padrões do movimento mandibular ao mastigarmos e ao falarmos. duas variáveis. A primeira, é a duração dos grupos acentuais1 (I),
O modelo de produção do ritmo da fala que estamos desenvol- grupos estes delimitados por dois onsets de vogal (frasalmente) acen-
vendo tem como primeiro componente dinâmico um sistema de tuada sucessivos, definindo um ciclo do oscilador acentual. A segun-
osciladores acoplados e como segundo componente dinâmico uma da, o número de sílabas (n) nos grupos acentuais, representando n
rede neural recorrente responsável pela interação prosódia-segmen- ciclos inteiros do oscilador silábico para um ciclo do oscilador acentual.
tos. Esse modelo procura ser biológica e lingüisticamente plausível Diversos pesquisadores avaliaram a possibilidade de isocronismo ab-
simplesmente porque a fala é o produto de uma negociação entre um soluto em produção para línguas de ritmo acentual, o chamado stress-
sistema biológico e um sistema lingüístico. Sendo assim, o modelo timing perfeito, ou de ritmo silábico, o syllable-timing perfeito, avali-
considera a existência, em nosso aparato cognitivo, de um sistema de ando precisamente a relação entre essas variáveis (cf. Lehiste, 1977;
osciladores acoplados sujeito às leis da Dinâmica e a interação de um Major, 1981; Roach, 1982; Bertinetto, 1989; Nooteboom, 1991 e
tal sistema, que denominamos de sistema rítmico, com as representa- mais recentemente, com uma reavaliação do caso do PB: Barbosa,
ções lingüísticas do português brasileiro (doravante, PB). 2000a). A relação entre I e n pode ser aproximada por uma reta de
O modelo é abstrato o suficiente para dar conta das caracterís- regressão linear que nos dá a equação seguinte:
ticas universais e específicas à língua, bem como dos aspectos fonéti- I = a + b.n (1)
cos e fonológicos do ritmo. A universalidade do sistema de osciladores Na fórmula acima, o parâmetro a, expresso em segundos, é o
acoplados está ligada não somente ao fato de ser próprio do humano ponto de intercepção da reta com o eixo das ordenadas e o parâmetro b,
como também à relação do mesmo com as noções de silabicidade e expresso em segundos por sílaba, a inclinação da mesma. O parâmetro b
acentuação. A especificidade à língua está relacionada com a maneira é uma medida do inverso da taxa de elocução (em sílabas por segundo).
precisa pela qual um oscilador influencia (ou induz) o outro. Um tal É importante salientar que a relação entre I e n para toda e
modelo é capaz de explicar os complexos padrões duracionais exibi- qualquer língua do mundo é expressa pela equação acima, com a e b
dos pelas línguas do mundo. não nulos. Os casos de ritmo acentual perfeito (que corresponde a b =
0 na equação acima) e ritmo silábico perfeito (que corresponde a a = 0
1. Osciladores silábico e acentual: componentes universais do na equação acima) são ideais e jamais foram encontrados em alguma
sistema rítmico língua.
Para garantir a plausibilidade biológica do modelo, consideramos
que o movimento oscilatório que caracteriza a sucessão silábica é obtido
a partir do movimento de um relógio cognitivo, um oscilador silábico. É *
Agradecemos ao Auxílio-Pesquisa Jovem Pesquisador em Centro Emergente
bem conhecido que redes de neurônios no cérebro podem gerar sinais (n° 95/09708-6) e à Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq
periódicos em uma gama de freqüência idêntica à da oscilação mandibu- (n° 350382/98-0), vinculada ao projeto de n° 524110/96-4.
lar (tipicamente entre quatro e oito ciclos por segundo): são os chama-
1
As fronteiras dos grupos acentuais precisam ser previamente determina-
das (cf. Barbosa, 2000a para considerações a esse respeito).

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 89


A maneira como se dá o acoplamento entre os osciladores, americano, em uma taxa mais rápida (com valores de força de acoplamento
expresso pela noção de força de acoplamento, resolve com elegância a evidentemente mais elevados). Pelo exposto, o ritmo do PB parece ser
questão da tipologia rítmica das línguas caracterizando sistemas rítmi- melhor caracterizado como de tipo misto (cf. Major, 1981 e Barbosa,
cos específicos à língua. 2000a).
Os osciladores acentual e silábico dão conta das unidades do
2. O acoplamento específico à língua entre os osciladores silábi- tamanho e maiores que a sílaba, mas também é preciso considerar
co e universal: A fonética (lingüística) do ritmo como se dá a integração com os gestos consonantais e vocálicos que
O’Dell e Nieminen (1999) mostram em seu trabalho que a ra- constituem a primeira unidade prosódica.
zão r entre os parâmetros a e b (r = a/b) expressa a força de
acoplamento entre os osciladores acentual e silábico e permite definir 3. Interação entre pauta gestual e Sistema rítmico: A fonologia do
três tipos rítmicos. Se o valor da força de acoplamento r é 1, não há ritmo
predomínio de um oscilador sobre outro e temos uma língua de ritmo A proposta de integração do sistema rítmico com os compo-
misto (com igual predomínio de ritmos acentual e silábico). Se r é nentes subsilábicos considera as pautas gestuais da fonologia acústi-
maior que 1, o oscilador acentual induz mais fortemente modificações co-articulatória de Albano (2001). Essa integração pode ser efetuada
no período do oscilador silábico no sentido de desacelerá-lo, aumen- via bordas esquerdas do gesto Tongue Body de grau de constrição não
tando as durações de unidades do tamanho da sílaba (diz-se então que crítico e não fechado (livre), conforme figura 1.
o oscilador silábico foi induzido). A desaceleração é tanto mais forte
quanto maior o valor da força de acoplamento, caracterizando assim
uma língua de ritmo acentual. Se r é menor que 1, o oscilador silábico
é pouco alterado pelo acentual e temos uma língua de ritmo silábico.
É importante salientar que a força de acoplamento é um número
real e, portanto, os sistemas rítmicos das línguas do mundo se colo-
cam em uma escala contínua entre dois extremos idealizados.
Ao fazer um estudo com o PB (Barbosa, 2000a) com um corpus
de 36 frases lidas em três taxas de elocução, constatamos que a força Figura 1: Pauta gestual integrada
de acoplamento muda com o número de sílabas no grupo acentual e É dessa forma que o sistema rítmico impõe ao componente
com a taxa de elocução, conforme mostrado na tabela 1. fonológico gestual o seu timing. As batidas (beats) do oscilador silá-
Tabela 1: Regressões Lineares a partir de um corpus do bico, já induzido pelo acentual, completam com o tempo extrínseco
PB. Forças de acoplamento (r) para três taxas de elocução segundo aquilo que faltava às fonologias gestuais para que pudessem ter a
tamanho de grupo acentual (GA) e dominância no mesmo grupo. O possibilidade de implementação fonética. Gestos reduzidos, como as
número de grupos acentuais em cada análise é indicado (N). vogais pós-tônicas em PB e consoantes de coda como /s/ e /r/, que têm
uma duração curta quando não seguidas de pausa silenciosa, são redu-
zidas devido ao seu tempo intrínseco na pauta gestual lexical (cf.
figura 2) e não por uma suposta aceleração local da taxa de elocução.
Em relação à grade temporal imposta pelo oscilador silábico
induzido à pauta gestual lexical (que então passa a se chamar pauta
gestual integrada), visto que os gestos consonantais se coordenam pri-
meiramente em relação aos gestos vocálicos, o intervalo entre duas
batidas do oscilador silábico define um ciclo completo dentro do qual os
gestos consonantais se subordinam aos gestos vocálicos imediatamente
precedentes. Torna-se claro que, nessa abordagem, os segmentos acús-
Grupos com cinco ou mais sílabas contribuem, em taxas normal ticos, sobretudo as consoantes, são subprodutos de uma organização
e rápida (compare segunda e quarta colunas e terceira e quinta colunas eminentemente silábica (cf. Fujimura, 1995 e Öhman, 1966).
na tabela 1), para caracterizar a língua como de ritmo acentual. Na taxa Em relação aos aspectos discretos e contínuos na pauta gestual
lenta, o limite da desaceleração é atingido e não há modificação significa- integrada, do ponto de vista lingüístico, abstrato, as batidas do oscilador
tiva no padrão. Tanto as taxas de elocução lenta quanto rápida favore- definem ciclos, unidades discretas porém dotadas de extensão. Do
cem o ritmo acentual pois tendem igualmente a elevar o valor da força de ponto de vista paralingüístico, para implementação motora, essas
acoplamento, embora por mecanismos distintos. A primeira, pela batidas definem a taxa de elocução, cujo valor default é adquirido pelo
desaceleração extrema ao final dos grupos acentuais (maiores valores de locutor, valor esse que pode ser representado por um número real
a, relativamente a b), a segunda, pelo elevado valor da própria taxa (Barbosa, 2000b). Tais aspectos podem ser implementados por um
(menores valores de b, relativamente a a). modelo dinâmico de produção do ritmo da fala que também considera
Da tabela também se deduz que não há muita diferença se o a interação prosódia-segmentos como o resultado da dinâmica de uma
grupo acentual é considerado como começando em sílaba acentuada rede neural recorrente.
(dominância à esquerda) quanto terminando em sílaba acentuada
(dominância à direita)2, pois as diferenças entre a segunda e terceira 4. Modelamento dinâmico da produção do ritmo da fala
colunas ou entre a quarta e quinta colunas conduzem às mesmas con- O modelo cujo esboço é apresentado na figura 2 está em fase de
siderações sobre a natureza do ritmo do PB. Essa natureza só pode ser implementação mas já apresenta resultados parciais com o acoplamento
caracterizada ao compararmos nossa língua com outras, para uma
mesma faixa de variação da taxa de elocução, tendo em vista o que já
foi exposto. 2
Para resolver o problema da direção da dominância, aspectos de natureza
Ao fazermos uma tal comparação em artigo recente (Barbosa, fonética (o aumento de duração, por exemplo, favorece a percepção dos
2000a), o PB apresenta-se como próximo ao espanhol europeu e finlan- grupos como terminando pela sílaba com maior duração: Fraisse, 1974)
dês para uma determinada taxa de elocução (todos com valor de força de e fonológica (em Massini-Cagliari, 1999, todos os domínios prosódicos
acoplamento próximo à unidade) e entre o italiano ou grego e o inglês maiores que o pé têm dominância à direita) precisam ser considerados.

90 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


entre osciladores inteiramente implementado por uma rede neural recorrente e a integração entre representações do discreto e do contínuo dentro
(Barbosa, 2001). de um mesmo mecanismo de implementação.

Referências bibliográficas

ALBANO, E. C. (2001) O Gesto e suas Bordas: por uma fonologia


acústico-articulatória. Campinas, Brazil: Mercado de Letras.
BARBOSA, P. A. (2001) Para a emergência de síntese de fala de alta
qualidade em língua portuguesa: um gerador automático de
prosódia e um ambiente de desenvolvimento. Relatório Científi-
co Final do Projeto Jovem Pesquisador em Centro Emergente,
FAPESP.
____________. (2000a) “Syllable-timing in Brazilian Portuguese”:
uma crítica a Roy Major. D.E.L.T.A., 16 (2), 369-402.
____________. (2000b) Modelamento Dinâmico da Produção do Rit-
mo da Fala: a integração possível entre o discreto e o contínuo?
Manuscrito referente a conferência plenária proferida no VI
Congresso Nacional de Fonética e Fonologia, 27 a 29 de novem-
Figura 2: Esboço de modelo de produção do ritmo da fala bro, Niterói-RJ.
As linhas tracejadas representam o acoplamento entre BERTINETTO, P.M. (1989) Reflections on the dichotomy “stress-
osciladores (assinalado na figura 2 pela palavra indução). O oscilador ” vs “syllable-timing”. Revue de Phonétique Appliquée, 91-92-
silábico impõe ao oscilador acentual o seu compasso ou cadência: esse 93, 99-130.
último tem um período múltiplo do período do primeiro. Por outro BROWMAN, C. & Goldstein, L. (1992), Articulatory Phonology:
lado, a cada ciclo, o oscilador acentual impõe retrospectivamente seu an overview. Phonetica, 49, 155-180.
efeito sobre os ciclos do oscilador silábico até o fim do ciclo de oscilador FRAISSE, P. (1974) La Psychologie du Rythme. Paris: Presses
acentual anterior. Gradualmente, o oscilador silábico tem seu período Universitaires de France.
(ts) alongado pelo mecanismo de acoplamento ou indução. O oscilador FUJIMURA, O. (1995) Prosodic organization of speech based on
silábico abstrato, assim modificado, comanda a oscilação mandibular, syllables: the C/D model. Proceedings of the XIIIth International
modificando o período natural de oscilação da mandíbula (que passa a Congress of Phonetic Sciences, 3, 10-17.
ser tm). LEHISTE, I. (1977) Isochrony reconsidered. Journal of Phonetics, 5,
Os níveis lingüísticos mais elevados (supralexicais) informam 253-263.
os momentos de ocorrência do início dos ciclos do oscilador acentual, MAJOR, R. C. (1981) Stress-timing in Brazilian Portuguese, Journal
impedindo que haja prejuízo da informação sintática a ser decodificada of Phonetics, 9, 343-351.
pelo ouvinte. MASSINI-CAGLIARI, G. (1999) O conceito de pé como unidade
A variável gi representa a informação relativa às variáveis de rítmica: trajetória. In: Scarpa, E. M. (Org.) Estudos de Prosódia.
trato da pauta gestual (cf. Browman & Goldstein, 1992). À saída da Campinas: Editora da Unicamp. 113-139.
rede neural recorrente, as variáveis pk e dur(sj) indicam respectiva- NOOTEBOOM, S. G. (1991) Some observations on the temporal
mente a presença de uma pausa silenciosa e a duração de cada segmen- organisation and rhythm of speech. Proceedings of the XIIth
to acústico. A duração acústica é assim o resultado da interação International Congress of Phonetic Sciences, 1, 228-237.
conexionista entre o oscilador silábico induzido e as variáveis de trato O’DELL, M. & Nieminen, T. (1999) Coupled oscillator model of
da pauta gestual integrada, isto é, entre informação temporal extrínseca speech rhythm. Proceedings of the XIVth International Congress
e intrínseca. of Phonetic Sciences. August 1-7, San Francisco, USA, v. 2, 1075-
1078.
5. Conclusão ÖHMAN, S. (1966) Coarticulation in VCV utterances: spectrographic
Esse trabalho teve por objetivo mostrar o quanto se ganha em measurements. J. Acoustic. Soc. Am., 39, 151-168.
considerar um modelo de produção do ritmo da fala que seja plausível Parthasarathy, H. (1999) Mind rhythms. New Scientist, 30 October,
tanto do ponto de vista biológico quanto lingüístico. Em relação à 28-31.
primeira plausibilidade, apresentamos um modelo que integra um sis- ROACH, P. (1982) On the distinction between ‘stress-timed’ and
tema dinâmico de dois osciladores acoplados e uma rede conexionista ‘syllable-timed’ languages. In: Crystal, D. (Ed.) Linguistic
que realiza a interação prosódia-segmentos. Quanto à segunda controversies. Essays in linguistic theory and practice in honour
plausibilidade, o modelo dá conta de componentes lingüísticos uni- of F. R. Palmer. London: Edward Arnold. 73-79.
versais (pois cognitivos) e específicos à língua (pois parametrizados STROGATZ, S. & Stewart, I. (1994) Oscillateurs couplés et
de língua para língua). Um tal modelo defende uma fonética lingüística synchronisation biologique. Pour la Science, no. 196, 40-46.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 91


A duração da vogal na fala adulta
do português brasileiro
Aglael Juliana A. Gama-Rossi
Universidade Católica de São Paulo
FAPESP-LIAAC-LAEL.

ABSTRACT: The paper presents a comparison between two adults, native speakers of Brazilian Portuguese, for duration measures. The focus is the
vowel duration, although consonant, syllable and word durations are considered for discussion. Vowel duration is seen as the more variable among
all, due to the character of the vowel gestures
PALAVRAS-CHAVE: duração, vogal, fala adulta, português brasileiro

1. Considerações sobre a Coleta e a Análise dos Dados realiza a maior proeminência da sentença, uma vez que, mudanças no
Este trabalho apresenta uma comparação, para medidas de du- contorno de pitch, combinadas à maior ou menor distensão dos seg-
ração, entre a fala de dois sujeitos adultos, do sexo feminino, com mentos acústicos em posição de acento, poderiam intervir (Vogel,
idade média de 40 anos na época da coleta, ambos paulistanos e falan- Bunnell e Hoskins, 1995).
tes do português brasileiro como primeira língua. Apesar de o foco do Quanto à análise estatística2, de onde emergiram os resultados que
trabalho ser a duração da vogal, os sujeitos serão primeiramente com- serão aqui apresentados e discutidos, os dois sujeitos adultos foram com-
parados para a duração de segmentos acústicos correspondentes a parados entre si para a média e o desvio-padrão das diferenças de duração
consoantes, sílabas e palavras de diferentes extensões, como do mesmo tipo de segmento acústico (vogal, consoante, sílaba ou pala-
contraponto necessário à discussão da duração da vogal. vra), numa mesma posição de acento (início de sentença, pré-tônica 1,
A gravação que serviu de base à realização das medidas de duração pré-tônica 2, tônica, pós-tônica ou final de sentença). Assim, tomando
foi feita por técnicos de um estúdio profissional, numa sala relativamente como exemplo vogais na primeira pré-tônica, para cada uma delas foi
silenciosa, mas sem tratamento acústico, uma vez que teve lugar em uma calculada, primeiramente, a diferença entre sua duração na fala da profes-
escola municipal da cidade de São Paulo, porque da coleta faziam parte sora e sua duração na fala da pesquisadora e, a seguir, a média e o desvio-
crianças da faixa etária de 4 anos (Gama-Rossi, 1999)1. padrão das diferenças de duração. Por fim, um teste t, com nível de
As medidas de duração foram feitas em um corpus de 17 sen- significância previamente fixado para 5%, foi realizado para verificar se
tenças, cada uma delas enunciada primeiramente pela pesquisadora e havia diferenças significativas entre as falas de ambos os sujeitos.
repetida, na seqüência, pelo outro adulto (professora da classe das Alguns aspectos devem ser ressaltados quanto aos dados: (1) a
crianças de 4 anos que participaram da coleta), sendo que a ordem do normalização dos valores de duração, parâmetro acústico muito suscetí-
conjunto de sentenças foi aleatorizada antes de cada repetição do vel a variações de acento e de fronteiras (dentro de e entre sentenças), deu-
mesmo. As medidas foram realizadas com o auxílio do software CSRE se por meio da comparação entre os sujeitos para o mesmo tipo de
4.5 (AVAAZ, 1995), a partir de critérios estabelecidos com base na segmento acústico, na mesma posição de acento; (2) os valores das médi-
forma da onda e em fomant trackings (ou espectrogramas via análise as das diferenças de duração são expressos por meio de barras, para cada
LPC), gerados para o sinal de fala digitalizado. tipo de segmento acústico, em cada posição de acento. Quando a barra
A análise dos dados teve como inspiração a proposta em graus está acima do eixo da abscissa, a média das diferenças de duração do
de acento de Câmara (1969). Assim, a comparação entre os sujeitos segmento acústico foi maior na fala da professora, e obviamente, quando
foi feita para cada tipo de segmento acústico (vogal, consoante, sílaba a barra está abaixo do eixo da abscissa (valores negativos), na fala da
e palavra) em cada uma das posições de acento por ele ocupada dentro pesquisadora; (3) os valores dos desvios-padrão são expressos por meio
da palavra e/ou da sentença. Para tanto, os segmentos acústicos foram de linhas sobrepostas às barras; (4) cada gráfico mostra ainda, nas duas
demarcados para 7 posições de acento: início absoluto da sentença, últimas posições, as médias e os desvios-padrão das diferenças de dura-
primeira pré-tônica da palavra, segunda pré-tônica da palavra, tônica ção dos agrupamentos de (4a) todos os segmentos acústicos átonos (pré
lexical, pós-tônica e final absoluto da sentença. Os segmentos de iní- e pós-tônicas) e de (4b) dos segmentos acústicos em todas as posições de
cio e final de sentença (respectivamente, primeira e última sílabas) acento, respectivamente; (5) somente o gráfico referente às sílabas con-
foram analisados separadamente por estarem sujeitos ao alongamento tém a posição de “início de sentença”, uma vez que todas as sentenças
de fronteira maior (Fougeron e Keating, 1997). começavam com artigos definidos (segmentos acústicos correspondentes
As divergências em relação à proposta mattosiana (Câmara, a vogais), os quais foram analisados separadamente nessa posição.
op. cit.) na demarcação dos segmentos acústicos referem-se à: (1)
análise das pré-tônicas da palavra separadamente, uma vez que, du- 2. Resultados
rante a inspeção prévia dos dados, análises qualitativas em contornos Primeiramente, serão expostos os resultados de consoantes,
duracionais mostraram que as pré-tônicas variavam entre apresentar: sílabas e palavras, para, então, chegarmos às considerações sobre a
mesma duração, durações diferentes ou durações gradativamente cres- duração da vogal na fala de ambos os adultos aqui investigados.
centes em direção à realização do acento lexical sobre a tônica; (2)
análise da maior proeminência da sentença juntamente com os demais
acentos lexicais, uma vez que a observação dos contornos duracionais
mostrara que nem sempre havia concordância entre os sujeitos de que
o local da maior proeminência da sentença era o último acento lexical 1
Tese de doutorado realizada no LAFAPE-IEL-UNICAMP, sob a orienta-
mais à direita. Além disso, apenas com base em medidas de duração, ção da Dra. Eleonora Cavalcante Albano, com bolsa CNPq.
não seria possível concluir de modo definitivo algo sobre como se
2
Agradeço ao estatístico Paulo Rehder.

92 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


2.1 Duração de Segmentos Acústicos
correspondentes a Consoantes

O que chama a atenção na observação do gráfico acima é que


diferenças no número de sílabas das palavras (todas paroxítonas) não
No que concerne às consoantes, chama a atenção sua estabilida- acarretam diferenças nos valores das médias (repectivamente, -17ms4,
de na fala de ambos os adultos3, com exceção das consoantes que -15ms e –13ms, para dissílabos trissílabos e quadrissílabos) e desvi-
ocupam a sílaba final da sentença, uma vez que esta, na fala da pesqui- os-padrão (respectivamente, 36ms, 46 ms e 41 ms, para dissílabos,
sadora, é submetida ao alongamento da sílaba final ou alongamento trissílabos e quadrissílabos) das diferenças de duração entre a fala de
pré-fronteira, o que provoca a maior distensão da duração de todos os ambos os sujeitos, sendo que apenas para dissílabos foi encontrada
seus segmentos acústicos. Fora isso, os valores das médias das dife- uma diferença significativa (p=0.0282).
renças de duração e dos desvios-padrão são muito baixos, tendendo a
zero. Ou seja, não há, no geral, diferenças no grau de distensão sofrido 2.4 Duração de Segmentos Acústicos
pela duração dos segmentos acústicos correspondentes a consoantes correspondentes a Vogais
em função da posição de acento por eles ocupada (p.e., átonas vs.
tônica). Quando ambos os sujeitos são comparados para o agrupa-
mento de consoantes átonas (pré e pós-tônicas juntas), a média das
diferenças de duração é de fato igual a zero, não havendo diferença
significativa (p=0.9172). Quanto aos valores de desvio-padrão, vale
notar que o único pico, sugerindo maior variação na distensão sofrida
pela duração, encontra-se sobre a consoante da sílaba final.

2.2 Duração de Segmentos Acústicos


correspondentes a Sílabas

Para as vogais, são encontradas diferenças significativas entre


ambos os sujeitos em todas as posições de acento. Na comparação
entre consoantes, sílabas e vogais, na posição tônica, as vogais apre-
sentam maiores valores para as médias e desvios-padrão das diferen-
ças de duração que as consoantes e valores próximos aos das sílabas
(para vogais, -26ms (média) e 41 ms (desvio-padrão); para consoan-
tes, -5 ms (média) e 19 ms (desvio-padrão); e para sílabas, –32ms
(média) e 47 ms (desvio-padrão)). Em outras palavras, na posição de
acento lexical (que aqui inclui a maior proeminência da sentença),
vogais são mais distendidas que consoantes e tão distendidas quanto
sílabas. Na comparação entre ambos os sujeitos para vogais e sílabas,
a pesquisadora apresenta vogais mais longas em quase todas as posi-
Da mesma forma que para as consoantes, os dados referentes ções de acento, exceção feita apenas para a posição pós-tônica, e
aos segmentos acústicos correspondentes à sílaba confirmam a esta- também sílabas mais longas, com exceção das sílabas de início de
bilidade da fala adulta, uma vez que não são encontradas diferenças sentença e da pós-tônica.
entre ambos os adultos para as sílabas das seguintes posições ou Até aqui, parece não haver muita diferença entre a
agrupamentos de posições de acento: primeira pré-tônica (p=0.2554), implementação da duração de vogais e sílabas na realização do acento
pós-tônica (p=0.6485) e agrupamento das átonas (p=0.7478). Ape- na fala adulta do português brasileiro, uma constatação que corrobora
nas as sílabas nas posições tônica e de final sentença sofrem maior o fato de haver divergências na literatura sobre qual é o domínio de
distensão na fala da pesquisadora, o que pode ser visto por meio das atribuição do acento, se a vogal ou a sílaba. Contudo, o fato de que não
barras invertidas e dos picos na linha dos desvios-padrão sobre elas. foram encontradas diferenças significativas entre ambos os adultos
para as sílabas nas posições de primeira pré-tônica e na pós-tônica
2.3 Duração de Segmentos Acústicos correspondentes mostra, conforme Barbosa (comunicação pessoal), que a professora
a Palavras em Posição Não-Final de Sentença conseguiu sincronizar sua taxa de elocução à da pesquisadora na tarefa

3
Por estabilidade, entenda-se a menor variação na distensão na duração de
segmentos acústicos em posição átona, os quais, de acordo com Barbosa
e Bailly (1994) constituem as batidas de referência na realização do ritmo.
4
Relembrando, o valor negativo significa que a média das diferenças de
duração foi 17ms maior na fala da pesquisadora.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 93


de repetição das sentenças, o que nos leva a inferir que a sílaba tem um Referências bibliográficas
papel mais preciso na realização do ritmo que a vogal. A seguir, tenta-
remos discutir essa diferença a partir da noção de osciladores ALBANO, E. C. O gesto e suas bordas: para uma fonologia acústi-
adaptativos (Port, Cummins e Gasser, 1995). co-articulatória do português brasileiro. Campinas: Editora
Mercado Aberto, no prelo.
3. Discussão Final AVAAZ Innovations Inc. Sound Scientific Solutions. CSRE User’s
Para Port, Cummins e Gasser (1995), osciladores adaptativos Guide. Ontario, 1995.
são mecanismos empregados pelo sistema lingüístico para que o cére- BARBOSA, P.; BAILLY, G. Characterisation of rhythmic patterns
bro possa perceber padrões quase-periódicos ou parcialmente regula- for text-to-speech synthesis. Speech Communication, v.15,
res como periódicos e regulares. O oscilador adaptativo é sensível à p.127-37, 1994.
freqüência do input constituído por pulsos de oscilação periódica ou BROWMAN, C.; GOLDSTEIN, L. Tiers in articulatory phonology,
quase-periódica, ao qual se ajustaria, não sendo afetado por pequenas with some implications for casual speech. In: Kingston, J.;
quantidades de variação e voltando à sua taxa intrínseca de vibração, Beckman, M. E. (eds.) Papers in laboratory phonology I. Between
alguns pulsos após o término do input. Assim, para Port et al. (op. the grammar and physics of speech. Cambridge, Cambridge
cit.), o sistema lingüístico, de cada língua, emprega um sistema University Press, 1990.
oscilatório (com diversos osciladores adptativos), o qual gera, duran- CÂMARA, J. M. Problemas de lingüística descritiva. 2.ed. Petrópolis,
te a produção de fala, a estrutura rítmica da língua, e durante a percep- Vozes, 1969.
ção, um ritmo similar a essa estrutura. Para os autores, é devido a esse FOUGERON, C.; KEATING, P. A. Articulatory strengthening at
sistema oscilatório que os ouvintes impõem regularidade ao sinal de edges of prosodic domains. Journal of the Acoustical Society of
fala, conseguindo prever o quê e quando vai acontecer. America, v.101, p.3728-40, 1997.
Os dados sobre a duração de segmentos acústicos correspon- FOWLER, C.; SALTZMAN, E. Coordination and coarticulation in
dentes a consoantes, sílabas e palavras, apesar de restritos a apenas speech production. Language and Speech, v.36, p.171-95, 1993.
dois falantes adultos, fazem supor que o sistema rítmico do português GAMA-ROSSI, A. J. A. Relações entre desenvolvimento lingüístico
brasileiro emprega osciladores adaptativos para a implementação da e neuromotor: A aquisição da duração no português brasileiro.
duração de cada um desses tipos de segmentos acústicos. Quanto à Tese de doutorado, LAFAPE-IEL-UNICAMP, Campinas, 1999,
vogal, a implementação de sua duração, apesar de muito parecida à da não publicada.
sílaba, parece ter apresentado a maior variação entre os dois sujeitos, ÖHMAN, S. Coarticulation in VCV utterances: spectrographic
uma vez que, para ela, obtivemos diferenças significativas entre am- measures. Journal of the Acoustical Society of America, 41, p.151-
bos em todas as posições de acento. 68, 1966.
A questão que se coloca é por que a vogal é mais livre para PORT, R.; CUMMINS, F.; GASSER, M. A dynamic approach to
variar, ou seja, pode prescindir de um oscilador adaptativo, ao contrá- rhythm in language toward a temporal phonology. In: Dainor,
rio dos demais tipos de segmentos acústicos analisados? A.; Hemphill, R.; Luka, B.; Need, B. & Pargman, S. (eds.) Papers
A resposta parece estar no tipo de gesto articulatório (Browman from the 31th Meeting of the Chicago Linguistic Society. Chicago,
e Goldstein, 1990) no que a vogal se constitui. O gesto vocálico Chicago Linguistic Society,1995.
(Öhman, 1966; Browman e Goldstein, 1990) é uma espécie de pano VOGEL, I.; BUNNELL, T.; HOSKINS, S. The phonology and
de fundo ou fluxo contínuo para a fala, por ser caracteristicamente um phonetics of the Rhythm Rule. In: Connell, B.; Arvaniti, A.
gesto com início e final mais lentos, minimamente coarticulado aos (eds.) Phonology and phonetic evidence. Papers in Laboratory
gestos vocálicos precedente e seguinte, sendo que, sobre suas bordas Phonology IV. Cambridge, Cambridge. University Press, 1995.
(Albano, no prelo) sobrepõem-se os gestos consonantais (Öhman,
1966; Browman e Goldstein, 1990), conforme mostra a figura inspira-
da em Fowler e Saltzman (1993), colocada abaixo.

Portanto, o gesto vocálico, apesar de indiretamente subme-


tido à freqüência de oscilação das constelações (Browman e
Goldstein, 1990) de gestos articulatórios do tamanho de sílabas e
palavras, ainda resiste como o local de variações idiossincráticas e/
ou estilísticas da língua.

94 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Um enfoque dinâmico no estudo de erros de fala
Ana Luiza G. P. Navas
Universidade de Campinas, IEL

ABSTRACT: The study investigates the dynamic nature of speech production through a study on induced speech errors. During transcription there
was an auditory impression of gradience in the production of such errors. The tendency to palatalize was evident in these substitutions. Acoustic
analysis, evaluates relevant parameters for the description of gradience in these errors.
PALAVRAS-CHAVE: erros de fala – representações fonológicas - palatalização

Introdução Análise: As emissões foram digitalizadas 22kHz e analisadas


Erros de fala têm sido utilizados como evidência da realidade através do CSL da Kay Elemetrics no LAFAPE (Laboratório de Foné-
psicológica de segmentos. Estes erros, que acontecem na fala espontâ- tica Acústica e Psicolingüística Experimental). Os seguintes parâmetros
nea com certa freqüência, são emissões que se desviam da intenção do foram avaliados: a) duração do ruído fricativo: a duração do ruído
falante. A grande maioria dos estudos sobre erros de fala utiliza como fricativo foi medida examinando tanto a forma de onda como o
material, erros cometidos de forma espontânea (Fromkin, 1973). Este espectrograma. b) faixa de freqüência de amplitude mais intensa.: a
tipo de análise, apesar de ser valiosa, não é precisa o suficiente para partir do espectrograma foi obtido espectro FFT (Fast Fourier
certos tipos de indagação e portanto vêm sendo criticado por diversos Transform) na metade do ruído fricativo para os 72 pares de palavras.
autores (Boucher, 1994; Ferber, 1995; Mowrey & MacKay, 1990).
Especificamente, a crítica mais direta a estes estudos refere-se Resultados
à metodologia de análise destes erros que além de serem registrados Duração do ruído fricativo: O padrão geral dos fonemas surdos
através de transcrição fonética, estão sujeitos às tendências de per- serem mais longos do que os fonemas sonoros foi confirmado para as
cepção dos ouvintes. A partir de estudos eletromiográficos (EMG) consoantes alveolares e palatais. A análise realizada considerando os
em situação experimental com trava línguas Mowrey & MacKay erros e acertos separadamente revelou um padrão de duração ambíguo
(1990) concluíram que muitos dos erros que eram transcritos como (figura1.)
erros ao nível de fonemas ou traços poderiam ser interpretados como
erros ao nível da execução motora. Este estudo revelou níveis gradien-
tes de ativação gestural com conseqüências imperceptíveis. Recente- Faixa de freqüência do ruído: A partir dos valores obtidos atra-
mente, Pouplier, Chen, Goldstein, & Byrd (1999) revelaram através vés do espectro FFT em um ponto na metade do ruído calculei a média
de dados articulatórios a ocorrência de erros de fala categóricos e de amplitudes para intervalos de 1KHz a partir de 0 a 11KHz, para as
gradientes para o Inglês.
Além de um enfoque articulatório para análise de erros de fala
há a possibilidade de análise acústica destes erros como no estudo
desenvolvido por Frisch & Wright (1998). Os autores analisaram 3
parâmetros acústicos para as consoantes fricativas alveolares /s/ e /z/
. A análise acústica revelou a ocorrência de erros gradientes e categó-
ricos. A partir destes dados os autores confirmam a preferência por
um modelo de produção de fala onde as unidades lingüísticas são
vistas como constelações de gestos articulatórios organizadas de modo
preferencial (Browman & Goldstein, 1990). Estes gestos são defini-
dos por parâmetros dinâmicos que estabelecem as configurações do
trato vocal, o que justificaria o surgimento de erros gradientes.
O presente estudo tem como objetivo estabelecer os parâmetros
relevantes para a caracterização da gradiência em erros de fala induzi-
dos experimentalmente, no Português Brasileiro.

Materiais e métodos
O material para análise foi obtido através de um estudo experi- repetições corretas, e para os erros de fala que resultaram em substi-
mental de indução de erros de fala com trava línguas (Navas, 2000). A tuições.
lista para indução de erros foi elaborada a partir de 24 palavras dissílabas As figuras 2 e 3 apresentam valores das médias de amplitude
paroxítonas, combinadas aos pares, obedecendo ao padrão /s V1 CV/ para os intervalos de freqüências de 0 a 11KHz para os fonemas
- /S V2 CV/, ex: /sopa/ -/Sapa/ ou /z V1 CV/ - /Z V2 CV/, ex: /zito/ - / fricativos /s/ e /S/ e para as substituições de /s/ por / S/.
Zato/. Os 12 pares foram repetidos seis vezes para um total de 72
pares de palavras (18 pares na ordem /s/-/S/, 18 /S/-/s/, 18 /z/-/Z/, 18 /
Z/-/z/). A apresentação da lista-estímulo para repetição foi feita atra-
vés de gravador simples da Sony e fones auriculares. As respostas dos As figuras 4 e 5 apresentam valores de médias de amplitudes
sujeitos foram gravadas em gravador semi-profissional em aparelho para os intervalos de freqüências de 0 a 11KHz para os fonemas
de alta fidelidade Sony II Pro, com microfone unidirecional, em ambi-
ente silencioso. Foram selecionadas para esta análise as respostas de
apenas um informante (s1).

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 95


uma fricativa alveolar. O mesmo padrão foi encontrado para a única
substituição de /Z/ por /z/. Por outro lado, para as fricativas surdas as
emissões transcritas como erros, ou seja substituições de /s/ por /S/
apresentaram duração ainda maior do que a média para as emissões de
/S/, quando este era o fonema alvo. Acredito que somente uma análise
com maior número de repetições permitirá uma discussão mais acurada
do parâmetro duração.
O estudo das médias de amplitudes para intervalos de 1KHz
revelou que embora haja erros de fala do tipo substituição categórica,
existem alguns erros que produzem um resultado acústico ambíguo.
Esta gradiência foi mais claramente verificada na produção de substi-
tuições de /s/ por /S/ com a vogal /i/ (ver exemplo na figura 2). Este
dado soma-se à evidência encontrada por Zsiga (2000). Neste estudo,
comparou-se a palatalização em Inglês e em Russo em seqüências do
tipo /s + j/ com o intuito de verificar se a sobreposição de consoantes
está relacionada à palatalização. A autora encontrou um grau variável
e gradiente de palatalização somente para o Inglês, o que corrobora
achados anteriores (Zsiga, 1995). Além disso, justifica a ausência de
um grau gradiente de palatalização no idioma Russo por restrições
impostas pela própria característica fonológica da língua em questão.
No Português Brasileiro há também evidências preliminares de uma
tendência à palatalização não-categórica das oclusivas coronais [t, d]
diante de [i] (Albano, 199?).
Análise fonético-acústica em curso levando em conta a pers-
pectiva dinâmica. considera que uma fricativa palatal é a realização
simultânea de uma vogal e de uma constrição crítica que gera turbulên-
cia na região coronal. Se essa vogal é do tipo [i] ou do tipo [y] é uma
questão que depende da língua, do dialeto ou mesmo do contexto. A
fricativos /z/e /Z/ e para as substituições de /z/ por /Z/. vantagem de [y] parece não ser apenas visual: o gesto de protrusão
labial leva a língua a assumir uma forma ligeiramente convexa, que
Comentários preliminares também forma um canal largo e longo na região coronal. É possível que
Os dados de duração revelam que apesar de que os erros de assim se obtenha o efeito acústico de [S, Z] sem muito esforço. Fica
repetição do fonema /z/ resultarem perceptualmente em uma fricativa claro, agora, que o predomínio de [S, Z] sobre [s, z] nos lapsos, assim
palatal, a duração mantém-se similar à duração do fonema alvo, ou seja como na aquisição da linguagem, decorre da presença, implícita ou

96 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


explícita, do gesto vocálico. Muito provavelmente, os erros categóri- FERBER, R. (1995) Reliability and validity of slip-of-the-tongue
cos, em que [S, Z] efetivamente substituem [s, z], resultam da atração corpora: A methodological note, Linguistics, 33, pp. 1169-1190.
desse gesto para onde havia apenas uma constrição crítica na região FRISCH, S. & Wright, R. (1998) The phonetics of phonological speech
coronal. Estes erros gradientes, podem resultar da desorganização do errors: An acoustic analysis of /s/ and /z/ errors by four
próprio gesto constritivo, que se desacelera e forma um canal mais talkers(Bloomington, IN, Indiana University, Speech Research
largo do que o exigido por [s, z]. Neste caso, não há propriamente um Lab.).
gesto vocálico; o que há é uma queda na freqüência da oscilação que FROMKIN, V. (1973) Speech errors as linguistic evidence (Mouton,
gera a constrição, formando uma passagem de ar com efeitos acústicos The Hague).
semelhantes. MOWREY, R.A. & Mackay, I.R.A. (1990) Phonological Primitives -
Espera-se que, com a complementação deste estudo, que pre- Electromyographic Speech Error Evidence, Journal of the
tende analisar as emissões de outros nove informantes, possamos Acoustical Society of America, 88, pp. 1299-1312.
quantificar com mais precisão estes erros de fala gradientes no Portu- NAVAS, A.L.G.P. (no prelo). Estudo experimental sobre a natureza
guês Brasileiro. das representações fonológicas. V Encontro Nacional de Aquisi-
ção de Linguagem, Porto Alegre, RS.
Referências bibliográficass POUPLIER, Chen, Goldstein, & Byrd (1999). Kinematic Evidence
for the Existence of Gradient Speech Errors. In Papers in
ALBANO, E.C. (1999). O Português Brasileiro e as controvérsias da
Laboratory Phonology VII
fonética atual: pelo aperfeiçoamento da Fonologia Articulatória.
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Linguística, 11.
and postlexical palatization in American English. In: Connell, B.
____________. (2001) O gesto e suas bordas: Esboço de Fonologia
& Arvaniti, A. (orgs) Phonology and phonetic evidence: papers
Acústico-Articulatória do Português Brasileiro. (Editora Merca-
in Laboratory Phonology IV. Cambridge University Press, pp.
do das Letras: Campinas).
BOUCHER, V.J. (1994) Alphabet-related biases in psycholinguistic 282-302.
esquires: Considerations for direct theories of speech production ________. (2000). Phonetic alignment constraints: consonant overlap
and perception, Journal of Phonetics, 22(1), pp. 1-18. and palatalization in English and Russian. Journal of Phonetics,
BROWMAN, C.P. & Goldstein, L. (1990) Representation and reality: 28, pp. 69-102.
physical systems and phonological structure, Journal of
Phonetics, 18, pp. 411-424.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 97


Caracterizações genéricas e específicas do processo
argumentativo: da língua ao discurso
Maria Aparecida Lino Pauliukonis
Universidade Federal do Rio de Janeiro

ABSTRACT: This paper studies the text as an act of discourse, that is, a text as an instrument of communication between two actors in a determined
situation. In this way the text must be seen, not as a product of an interation, but as a result of some strategies, that transform Languaje in Discourse.
PALAVRAS-CHAVE: Língua, discurso, texto, processo interativo.

Texto e interação gou de seu objeto de estudo os ingredientes da interação discursiva,


A partir da temática proposta- o genérico e o específico na hoje considerados decisivos para a atribuição de sentido aos textos. É
linguagem- vamos focalizar o que se entende por texto como um ato de consenso entre os analistas do discurso, que a melhor estratégia para
discurso e descrever o como se dá o processo de apreensão de seu compreender/explicar os textos como unidades de sentido, é considerá-
significado, pelo sujeito leitor/ interpretante. Partimos da constatação los peça de uma realidade socio-cultural, historicamente situada, que
simples e óbvia de que as coisas existem no mundo real, mas para que compreende além da definição de seus interlocutores, o meio de comu-
tomemos consciência delas, é necessária sua representação no discur- nicação utilizado, as experiências partilhadas, os papéis sociais dos
so. Ou seja, existe um mundo a significar que somente passa a mundo atores envolvidos, a ligação com outros textos etc...
significado por meio de uma série de operações lingüísticas, cognitivas Dessa forma, qualquer análise que pretenda interpretar o fenô-
e sociointeracionais, que se processam nos variados tipos de textos e meno interativo da linguagem por meio de textos, não pode ater-se
se transformam, assim, em instrumentos para apreensão da realidade. apenas ao exame da sua configuração lingüística, ou apenas à classifi-
Para que duas pessoas se relacionem, é preciso que entre elas se cação dos elementos lingüísticos, pois interessa sobretudo analisar a
estabeleça um ato de comunicação, o qual se processa por meio de um dimensão socio-psico-lingüística dos participantes, ou seja, toda a
contrato comunicativo. A noção de contrato pressupõe que os indiví- organização sociocultural em que se dá o discurso.
duos pertencentes a um mesmo corpo de práticas sociais estejam
dispostos a aceitar as mesmas representações de linguagem dessas 2. Argumentação e ato discursivo
práticas sociais. (Charaudeau,1995); a noção de contrato não invalida Aceitando- se o princípio de que estamos todos envolvidos num
a idéia de negociação. ou seja, há um Código que regula o processo de processo de persuasão, ou de convencimento, deduz-se que todo emis-
interlocução, mas que não é apenas um sistema de informação, pois sor, para ser aceito, precisa reforçar a verdade daquilo que transmite
participa da autolegitimação do emissor e do receptor. pela linguagem, já que, como já se disse, não se traduz o real, mas uma
Dentro desse quadro que permite focalizar a problemática da configuração lingüística da realidade. Sob esse aspecto, o uso obrigató-
produção de sentido, podemos situar e definir o texto como uma rio de estratégias discursivas destina-se a garantir a credibilidade do que
forma de comunicação interativa que se subordina a certas condiçóes é transmitido. Mesmo num texto informativo, em que não se tem difi-
particulares da situação, a saber: a identidade dos participantes culdade de compreender o que está sendo transmitido, é necessário
(quem?), a finalidade do ato (o quê? e para quê?), a cumplicidade e o também que se aceite a seleção ou a relevância dos fatos, que se acredite
reconhecimento dos papéis recíprocos do Eu e do Tu (como? e por nas informações e que se realizem as ações sugeridas; em suma, que se
quem? ). Dessa forma, a identidade dos participantes, a intenção co- obedeça aos comandos implícitos presentes em qualquer texto. Sob a
municativa e os papéis sociais influem também na significação resul- óptica argumentativa ou retórica, além de informar, a linguagem presta-
tante de um texto como um todo. Por isso a fala produzida por um se a modificar crenças e comportamentos, pois é um meio político de
sacerdote ou um juiz, no exercício de suas funções, constitui um ato de atuação humana.
linguagem ritualizado com um significado próprio e uma formalização Ressalte-se daí que o significado de um texto deriva sobretudo
determinada, da mesma forma que uma piada, um texto humorístico do reconhecimento desse processo de construção textual, ou da inter-
têm seu repertório especial, seu lugar e hora. pretação de recursos estratégicos, que se realizam quer lingüisticamente,
Considerar o texto como a realização de um ato de discurso quer por meio de implícitos textuais, ou ainda pela troca de informa-
interativo pressupõe ser possível definir e identificar as intenções ções e de convenções entre os parceiros envolvidos no ato de comuni-
comunicativas dos protagonistas as quais se projetam como fazendo cação. Torna-se, dessa forma, fundamental a concepção do texto, na
parte da mensagem lingüística. Estabelece-se, assim, que entre os par- modalidade escrita ou oral, como o resultado de um conjunto de estra-
ceiros há uma lógica das ações, capaz de produzir e testemunhar as tégias discursivas.
regras, que são acatadas convencionalmente e cristalizadas na socieda- O significado de um texto constrói-se, portanto, na integração
de. Essas regras fazem parte de um saber partilhado, de um inventário de dois processos: o da seleção (eixo paradigmático) e o da combina-
de crenças, que são os “lugares comuns” ou os “topoï”, no dizer de ção, (sintagmático), sem a exigência de uma camisa de força dicotômica,
Aristóteles, típicos de cada grupo social. Neste sentido considera-se mas com a escolha de alternativas, limitadas nos níveis frasais e textu-
que toda linguagem está vinculada a sua realidade psicossocial e que as ais; no primeiro processo operam limitações de natureza gramatical,
circunstâncias situacionais do discurso são os elementos responsá- relativas à coesão e no segundo, operações relativas à coerência, em
veis pela construção do sentido de um texto. Considera-se, portanto, sentido amplo.
o discurso como uma realização lingüística dentro de um contexto Assim, no âmbito da compreensão, dá-se o reconhecimento das
social e histórico. categorias da linguagem e da organização sintática e semântica, propri-
A Lingüística de inspiração saussureana e chomskiana que pri- amente dita; no âmbito da interpretação, processa-se o reconhecimen-
vilegiou o locutor e as funções lógico-referenciais da linguagem, expur- to das estratégias textuais utilizadas. Segundo esse enfoque, não se

98 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


busca captar apenas o que o texto diz ou representa em termos de comunicativa que deve estar concretizada nas estratégias utilizadas.
referêncía ao real, ao exterior, mas o que ele faz, e como faz e por quê Um dos fatores chave responsáveis pela realização do ato co-
o faz desse modo, já que as formas de apresentação contribuem para municativo através de textos é, portanto, a aceitaçáo do Projeto de
a construção do sentido final. Por isso náo basta ao leitor ou ouvinte fala do Eu comunicante, ou seja, o Sujeito interpretante precisa reco-
descodificar os elementos lingüísticos, é preciso captar o universo nhecer que seu interlocutor tem um propósito que o torna digno de ser
textual e isso abrange reconhecer o conjunto de estratégias utilizadas escutado. O direito à palavra, portanto, é o próprio fundamento da
nos textos em geral. relação interativa que se apóia, portanto, em três condições: o reco-
nhecimento do Saber do falante (baseado nas verdades e crenças soci-
3. Texto e Interpretação: o texto como processo ais), do Poder (que fornece legitimidade a sua palavra) e do Saber
de apreensão da realidade Fazer (base da credibilidade do sujeito comunicante).
O mundo extralingüístico ou o “real” é apresentado a nós, atra- Dessa forma, pode-se concluir que a construção de um texto
vés de textos, ou de fragmentos textuais, oferecidos e selecionados promove uma “encenação” em que um “sujeito emissor”, perseguindo
segundo uma ideologia ou uma intenção comunicativa, que precisa ser uma “intencionalidade”, consciente ou não, busca transmitir a repre-
descodificada pelo receptor, para ser compreendida. Para que essa sentação de uma experiência de mundo a “alguém”, que é marcado
intenção do emissor se concretize, ou se realize por meio de um texto, como “interlocutor” e o faz servindo-se de elementos lingüísticos e
é preciso que se leve em conta a situação de ambos - emissor e recep- extralingüísticos, ou situacionais, apresentados de um determinado
tor- em dado espaço comunicativo. Assim a construção de um texto “modo”.
realiza-se por meio de uma seleção de elementos e de uma operação de
organização textual, que se constitui de estratégias comunicativas, que 4. Operações lingüísticas da discursivização
devem ser apreendidas pelo interpretante, sob pena de não se realizar O conjunto de operações que se encarrega de transformar a
a interação. Língua em Discurso constitui o processo de discursivização, ou seja,
Dessa forma, se a um sentido da Língua corresponde um senti- é o que faz a passagem do significado (sentido genérico da Língua)
do de Discurso, é somente através do desvendamento das estratégias para a significação ( sentido específico do Discurso).
utilizadas em determinadas situações que se pode chegar ao significa- Para que o significado ganhe significação, ou ainda, para que um
do contextualizado, ou aos efeitos de sentido de um texto. Acrescen- texto se materialize a partir das intenções de um determinado falante
te-se ainda que o texto constrói significados por eliminação de possi- / escritor, são necessárias algumas operações que envolvem o manu-
bilidades, que só a situação (contexto) pode instruir. Ou seja, o texto seio de elementos lingüísticos. Admitindo-se que qualquer texto é o
produz um ou mais significados recorrentes a uma dada situação e à resultado de uma série de operações a partir de um mundo
inter-relação do Eu comunicante com o Tu interpretante. extralingüístico ou pré-textual, são necessários pelo menos dois pro-
Após essas considerações, pode-se questionar se existe a pos- cessos, realizados em duas instâncias: primeiramente por meio da
sibilidade de se estabelecerem critérios objetivos para a apreensão seleção do material linguístico, ocorre a operação de semiotização e
dessa passagem da generalização para a especificação, ou seja da trans- depois, na arrumação desse material, ocorre a organização dos elemen-
formação da Língua em Discurso e a conseqüente definição das inten- tos discursivos, em modos específicos de organização da matéria
ções dos sujeitos envolvidos em uma interação discursiva. Charaudeau discursiva.
(1992), propõe quatro princípios de base que devem ser observados
para que haja a garantia do reconhecimento de uma intenção comuni- I- O primeiro processo (seleção lingüística) abrange várias ope-
cativa, que está presente em qualquer texto. São eles os princípios da rações:
interação, da influência, da regulação e da pertinência. - uma operação de identificação que designa os seres, trata-se da
- Segundo o princípio da interação, todos os parceiros estão nomeação e classificação das entidades discursivas - processo de
ligados por um contrato de comunicação que os intima ao reconheci- substantivìzação, como ocorre nas denominações: sapato, cafezal, es-
mento e à aceitação recíproca de seus papéis comunicativos; logo, cola, congresso.
tanto emissor quanto o receptor devem estar conscientes de seu papel - uma operação de qualificação, (atribuição), que consiste em
e agir de acordo com ele, já que sofre de uma injunção jurídica diante do atribuir propriedades aos seres ou informações a seu respeito - proces-
ato interativo. so de adjetivação; como em sábias palavras, prédio antigo, aluno inteli-
- O princípio da influência predica que cada um dos parceiros gente. A discursivização das características dos seres permite que sejam
procura sempre influenciar e modificar o comportamento do Outro, reconhecidos três tipos de caracterízações: as identificadoras: bolsa
buscando formas de se conseguir sua adesão às teses apresentadas, marrom, sapato preto; as qualificações ou atributos subjetivos: filme
segundo leis gerais, próprias dos processos argumentativos e persua- interessante, problema difícil; e as informações, dados novos ao contex-
sivos. to: quadro que recebeu de herança, filme de Bruno Barreto.
-O princípio da regulação exige a obediência às regras gerais do Observe-se que essa classificação é extremamente funcio-
funcionamento da linguagem; tal princípio coloca os parceiros em nal na produção de textos, já que cada um dos tipos obedece a desem-
“luta” pela construção de seus papéis e pelo reconhecimento e aceita- penho textual diferente: as identificações distinguem entidades, por
ção das condições lingüísticas e sociais em que se processa a comuni- meio de alguns traços específicos: mesa de fórmica, mesa de mármo-
cação. Como conseqüência do embate, pode haver, por um lado, recu- re; as qualificações são comuns nas descrições subjetivas, e por isso,
sa ou desvalorizaçáo de um dos parceiros, ou o desrespeito ao direito usadas em textos de sedução,: dia lindo para ... ir à praia, proposta
de fala do outro, ou ao contrário, o pleno reconhecimento e aceitação interessante porque... e as informações são necessárias ao enredo, à
da dinâmica do diálogo, que exige a obediência às normas, lingüísticas progressão textual etc...
e sociais, à troca de turno, à aceitação das imagens propostas pelos - uma operação de processualização, ou representação de
interlocutores, enfim às condiçóes necessárias para que se processe a fatos e ações que permite identificar as mudanças na relação entre os
interação. seres - processo de verbalização; ele saiu, voltou, dançou, roubou;
- Finalmente o princípio da pertinência fundamenta a recorrência - uma operação de modalização/explicação que revela as razões
a um saber comum partilhado, a obediência a um projeto de fala do Eu de ser e fazer do emissor - processo de modalização; que marca o ponto
comunicante e o reconhecimento pelo interlocutor de uma intenção de vista do locutor sobre alguns elementos discursivos, como em: tenho

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 99


certeza, ele deve sair pois..., ou : Não há empecilhos, portanto ele pode 5- Conclusão
casar-se com ela; Isto não vai acontecer, com certeza... O ponto de vista adotado e defendido aqui procurou abranger o
- e, por último, um processo de relação que especifica as regras que a análise discursiva do texto denomina de problematização do
de combìnação e hierarquização nos níveis sintático e semântico - por sentido de um texto, que consiste em compreender e analisar o “signi-
meio da conectividade, como em: Ele saiu mas ainda não voltou; se eu ficado textual” em função do referente e da identidade dos contratan-
puder, irei à sua festa, porque ele é meu amigo...Devido a falta de tes do ato comunicativo. O significado, por sua vez, deriva de um
chuva, tiveram que abandonar a casa.
“contrato de comunicação” que existe entre o emissor e receptor e de
Dessa forma, entidades, atributos e determinantes, proces-
um “projeto de fala” do emissor, que é aceito e reconhecido pelo
sos, conectores e modalidades são os elementos discursivos encarre-
gados do processo de semiotização do mundo, realizado sempre tex- receptor. (Charaudeau, 1996)
tualmente, por meio de uma gama variada de elementos lingüísticos. Procurou-se levar em consideração não somente as operações
fundamentais que transformam a Língua em Discurso e que constitu-
II- O segundo processo (modos de organização) corresponde à em a base para o processo de compreensão de textos, mas também as
organização dos elementos discursivos em textos; temos quatro mo- estratégias que permitem reconstruir os sentidos subentendidos ou
dos básicos de organizar o discurso, a saber: modo enunciativo, modo implícitos; buscou-se ainda definir a importância do quadro contratual
descritivo, modo narrativo e modo argumentativo. e a situação social, em que se processa o ato interativo, bem como
A uma visão dinâmica, de seqüenciação cronológica de fatos e determinar a relevância da identidade dos participantes e a finalidade
ações envolvendo seres protagonistas e antagonistas, numa lógica co- do ato discursivo – esses elementos em conjunto são a base necessária
erente, marcada por uma finalidade – definição da mensagem ou da para o processo de análise e interpretação de textos.
moral da história - corresponde o ponto de vista narrativo.
A uma visão estática, em oposição à seqüência narrativa, em Referências bibliográficas
que se propõe reconstruir o mundo de forma descontínua, atendo-se a
enumeração de detalhes, de certas aspectualizações do objeto descrito
ANGELIM, Regina C. Cabral.(1996) Repensando a argumentação
em foco, corresponde o ponto de vista descritivo.
A uma visão dialética em que, a partir de um tema, o textual. In: Discurso,coesão, argumentação., Rio de Janeiro,
sujeito argumentador organiza uma tese - constituída de uma ou um Oficina do Autor p.7-19
conjunto de asserções que dizem algo sobre o mundo - em função da BAKHTIN, M. (1981). Língua, fala e enunciação. A interação verbal.
qual ele deve assumir uma posição contra ou a favor, ancorada em In: Marxismo e filosofia da linguagem, São Paulo, Hucitec.
justificativas ou argumentos, corresponde o ponto de vista BENVENISTE, E. (1974) Aparelho formal da enunciação. In: Proble-
argumentativo. Pairando sobre esses três modos temos o modo mas de Lingüística Geral II. Campinas, Pontes.
enunciativo, que corresponde aos processos de modalização do CHARAUDEAU, Patrick, (1992) Grammaire du sens et de
narrador, referente à matéria lingüística elaborada.Tais modos de or- l’expressión. Paris, Hachette.
ganização da matéria lingüística podem ser realizados nas modalida- ———————————————(1995) O que quer dizer comu-
des escrita ou oral e em situação monolocutiva ou dialógica. nicar?, UFRJ, Mimeo.
O reconhecimento desses generalizações permite compreender ———————————————(1996) Para uma nova análise
melhor as significações específicas de cada texto particular, que se
do discurso. In: O discurso da. Mídia. Rio de Janeiro, Oficina do
assentam, muitas vezes, na forma como se organizam, nas duas ins-
Autor, p. 5-44.
tâncias discursivas, processo esse que deve ser reconhecido e inter-
pretado pelo sujeito receptor. PARRET, H. (1988). Enunciacão e pragmática. São Paulo, Pontes.
PAULIUKONIS, Maria A. Lino.(2000) O texto como um processo
de apreensão da realidade. In: O modo descritivo. UFRJ. Rio de
Janeiro, Fundação José Bonifácio, p. 32-37.

100 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A avaliação dos conhecimentos de língua no provão:
coerências e incoerências
Ilza Maria de Oliveira Ribeiro
Universidade de Salvador

ABSTRACT: This paper is an analysis of questions on the Portuguese language structures in undergraduate courses National Exams. It shows that
poorly written questions or instructions can lead to difficulties taking the exam, such as: a) allowing more than one interpretation of the question;
b) leading the student to incorrect conclusions; c) confusing the student’s understanding of the language concepts and underlying rules for special
situations.
PALAVRAS-CHAVE: Provão, Exame Nacional de Cursos, Língua Portuguesa.

O objetivo da minha apresentação é o de analisar algumas ques- (E) III. (10.5%)


tões de estrutura da língua portuguesa, extraídas dos Exames Nacio-
nais de Cursos, procurando mostrar que certos equívocos na redação A questão não é difícil e, aparentemente, não exige um conheci-
dos comandos podem ocasionar problemas de diferentes ordens, como: mento além daquele esperado em graduandos de Letras. No entanto,
a) possibilitar mais de uma interpretação dos enunciados; b) permitir todas as opções de resposta, em maior ou menor grau, foram
inferências contestáveis; c) confundir a reflexão do graduando sobre a selecionadas pelos estudantes. Primeiro, pode-se colocar a seguinte
língua, por não explicitar os conceitos de língua e norma subjacentes pergunta: por que só a percentagem de 25.2% de opções pela resposta
a certas questões. em (C) II? Observa-se que, marcada como a certa no gabarito, a forma
Reconhece-se a importância dos processos de avaliação do en- como foram redigidas a pergunta e a resposta permite dúvidas quanto
sino no Brasil, mas não se espera que seu instrumento de avaliação a ser esta a resposta certa, por a questão assinalar expressões dos dois
apresente incoerências que conduzam a uma visão distorcida da for- textos, enquanto a resposta contempla só as de um texto, pois as
mação dos futuros profissionais de Letras e da competência das IES expressões “dafada, derre pente” são irrelevantes para a resposta (C)
para preparar tais profissionais. É preciso que os resultados da ava- II. O que justifica a inclusão dos dados da criança, se tais dados foram
liação do Provão forneçam um retrato fiel das habilidades dos desconsiderados quando da elaboração da opção dada como correta?
graduandos, o que só pode acontecer se esse instrumento de avaliação Isso pode ter dificultado a escolha da resposta, fazendo parecer uma
selecionar adequadamente as habilidades a serem testadas e apresen- armadilha, prática comum em provas deste tipo, pois os dados da
tar, na sua formulação, questões adequadas, coerentes e não ambí- criança não permitem concluir coisa alguma sobre os textos antigos.
guas. Em resumo, a opção (C) II não é uma resposta adequada à pergunta
Antes de iniciar a análise das questões propriamente, quero formulada.
ressaltar que muito do que colocarei aqui sobre o conteúdo das ques- Há um outro dado que também se mostra inadequado: o de usar
tões resulta de discussões e análise dos Provões com colegas de pro- a denominação “português arcaico/antigo” como oposto a “português
fissão1 e, sobretudo, com estudantes de cursos de Letras. Como não contemporâneo”, quando se sabe que as denominações adequadas
haveria tempo para analisar todas as questões problemáticas dos três para este período da língua são “português clássico” ou “português
exames realizados, fiz algumas seleções, centrando-me no Provão de moderno”. Em uma prova em que mais da metade das questões de
1999, um dos mais problemáticos. língua estão centralizadas em domínio de metalinguagem, não se espe-
As três primeiras questões do Provão de 1999 foram formula- ra um uso “frouxo” de termos técnicos. Afinal, é justamente o domí-
das com base em dados/trechos extraídos de dois textos: uma carta de nio do conteúdo conceptual destes termos que está em jogo. Um
1734, escrita ao rei por Pedro Bueno Cacunda e um texto de uma estudante conhecedor das periodizações propostas para o português
criança da 1a. série do ensino fundamental. A primeira pergunta for- pode ficar indeciso, por não saber se a resposta se refere ao texto de
mulada e as respostas oferecidas são as seguintes (sublinhados e 1734 (português clássico ou moderno, mas não antigo) ou ao portugu-
percentagens de acertos acrescentados por mim): ês antigo.
Além disso, a resposta oferecida em I, com o maior percentual
1. Formas como aospêz, esertoens, seaggregarão, asmesmas, no das opções assinaladas (39,6%):
texto I, e dafada, derre pente, no texto II, permitem concluir que:
I - Tanto o autor como a criança demonstram desconhecer a
I. Tanto o autor da carta como a criança demonstram desconhecer a legislação relativa à segmentação de palavras na escrita da língua por-
legislação relativa à segmentação de palavras na escrita da língua por- tuguesa
tuguesa.
II. Era freqüente, nos textos antigos, a opção por grafar palavras indica também que o problema na seleção das respostas está na for-
funcionais monossilábicas acopladas a radicais acentuados. mulação da questão: o macete é saber se havia ou não legislação relati-
III. Apenas os clíticos pronominais podiam ser grafados juntamente va à segmentação de palavras na escrita em 1734.
com os radicais acentuados, na escrita de textos antigos.

É correto o que se afirma APENAS em


(A) I. (39.6%)
(B) I e II. (12.4%) 1 Especialmente Sônia Borba Costa e Conceição Araújo Ramos, a quem
(C) II. (25.2%)2 agradeço as sugestões bem pertinentes.
(D) II e III. (12.1%) 2 Assinalada como certa, no gabarito.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 101


Diante de tantas inconsistências, os resultados são como na apenas limitou o uso a recurso estilístico, excluindo-o do português
escolha de números para a loteria: cada um faz uma opção, pois não há brasileiro em geral. Assim, pode-se dizer, como muitos estudantes me
lógica nas opções oferecidas. Algumas perguntas podem ainda ser disseram: “As construções com essa interpolação não são empregadas
colocadas em relação à questão 1: a) algum curso de letras discute com no português brasileiro contemporâneo, exceto como recurso estilístico”,
os estudantes problemas relacionados com as legislações relativas à tornando corretas as respostas II e III. Enfim, são nuances que separam
segmentação de palavras na escrita?; b) Saber isto é essencial/funda- a resposta considerada errada da considerada certa.
mental na avaliação de um futuro profissional de letras?; c) por que A questão 3 também é problemática. Está apresentada da
não usar os dados da criança para explorar o conhecimento dos estu- seguinte forma:
dantes sobre as fases de aprendizagem da escrita: quais as hipóteses
das crianças sobre a escrita que levam a esse fenômeno?; d) ou usar 3. Com relação à grafia dos ditongos nasais 4 , observa-se que:
ambos os dados para formular perguntas sobre a filogênese e a
ontogênese da escrita, comparando o fenômeno dos dois textos? Algo I. Tanto a carta como o texto da criança apresentam uma variação na
assim poderia mostrar o entendimento dos estudantes sobre essas grafia dos ditongos nasais átonos.
questões. O que é cobrado na prova é mais um tipo de saber II. A representação gráfica da nasalidade, variável na escrita do portu-
questionável quanto à sua real necessidade na formação mínima dos guês antigo, encontra-se sistematizada no português contemporâneo.
estudantes, e sobretudo atenção na interpretação das questões, pois III. A variação na grafia dos ditongos nasais, em ambos os textos,
são as pequenas nuances nas suas formulações que estão em jogo. deve-se ao fato de que a nasalidade é tardiamente adquirida na oralidade.

A questão 2 também é problemática. Está apresentada da É correto o que se afirma em


seguinte forma: (A) I, apenas. (23.8%)
(B) II, apenas. (21.8%)
2. Com relação ao trecho por lhenão ter aquelle ministerio que lhestinhão (C) III, apenas. (16.7%)
asfolhetas (texto I): (D) I e II, apenas. (25.3%)
(E) I, II e III. (11.8%)
I. Existe uma ocorrência de interpolação sintática da negação na cons-
trução clítico pronominal + verbo. Somando-se as percentagens das respostas das letras A, D e
II. As construções com essa interpolação sintática não são emprega- E, vê-se que há um número alto de respostas afirmativas para I. O
das no português brasileiro contemporâneo. problema está com a afirmação em II que também deveria ser conside-
III. Essa interpolação sintática é empregada apenas como recurso rada correta. Dois problemas podem ser considerados: a) o que signi-
estilístico no português brasileiro contemporâneo. fica dizer que a representação gráfica se encontra sistematizada; b) a
que norma do português brasileiro contemporâneo a resposta faz
É correto o que se afirma APENAS em referência. Vários estudantes disseram que não optariam por II por-
(A) I. (12.0%) que a escrita da criança e a escrita popular são também manifestações
(B) II. (43.8%) de escrita do português contemporâneo e nelas a representação gráfica
(C) III. (11,4%) da nasalidade é variável. Se muitos estudantes refletem dessa forma,
(D) I e II. (20.0%) então as escolhas das respostas são aleatórias, como as percentagens
(E) I e III. (12.5%) revelam. Os organizadores da questão poderiam ter dito que a repre-
sentação gráfica está normatizada no português contemporâneo (ou
A percentagem de acerto da resposta dada como correta no sistematizada na norma culta escrita). Aí seria outra coisa.
gabarito é de 12.5%, um índice muito baixo. 43.8% dos estudantes Como não haveria tempo para discutir detalhadamente cada
optaram pela resposta II, a de que não há interpolação sintática da questão, passo só a pontuar alguns fatos incoerentes em mais algumas
negação no português brasileiro contemporâneo. Concordo com eles. respostas:
A resposta dada indica que sabem o que é interpolação sintática;
então, por que os 43.8% não optaram também pela resposta I, mar- a) Uma das afirmativas consideradas corretas da questão 6 diz que o
cando a letra D do gabarito? Possivelmente, porque a resposta I não uso das formas vááárias (“Na minha praia dos meus sonhos, ia rolar
está formulada de forma que permita ser considerada correta. Unindo vááárias vós e uma pá de tia Anastácia”.), nooosa (“rachei o bico e
a pergunta 2 com a afirmativa em I temos o seguinte, sublinhando o falei nooossa!”) e sooonho (”É o sooonho!”, teria menas água salga-
elemento que invalida a resposta: da!”) produz um efeito de intensificação semelhante ao obtido com o
uso de advérbios, como se isso fosse possível. Que advérbio poderia
Com relação ao trecho por lhenão ter aquelle ministerio que ser usado em “e falei nooossa!”? E em “É o sooonho!”? Que advérbio
lhestinhão asfolhetas (texto I) existe uma ocorrência de interpolação de intensidade poderia ser usado, mantendo-se o sentido?
sintática da negação na construção clítico pronominal + verbo. b) A resposta dada como correta na questão 7 afirma que as explica-
ções “Haveriam porque é vários tubarães!” e “Menas porque água é
É evidente que na construção clítico pronominal + verbo não há feminina!” fornecem “os motivos que levam muitas pessoas a flexionar,
interpolação de negação; há uma ocorrência de interpolação da nega- nesses contextos, o verbo haver e o advérbio menos”, quando, na
ção na construção clítico pronominal + negação + verbo. Observa-se realidade, as explicações não fornecem os motivos de brasileiros
que no trecho citado há duas construções com clíticos: “lhenão ter” e
“lhestinhão”; só há interpolação sintática na primeira construção; na
segunda construção, formada por clítico pronominal + verbo, eviden-
temente não há interpolação. Parabéns aos estudantes que desenvol- 3 Penso que se pode dizer que a interpolação da negação é um recurso
veram esse raciocínio! estilístico no português europeu contemporâneo, mas no português bra-
Podemos observar ainda que o termo apenas faz a diferença entre sileiro contemporâneo!!!!
as afirmativas II e III. Supondo que III3 seja uma afirmativa correta, o 4 Ditongos nasais estão grafados como: a) dezião, colhiam, colhião =
texto de 1734; b) forão, rapitarão, tinham = texto da criança.

102 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


flexionarem “haver” e “menos”; elas simplesmente fornecem os con- determinado conjunto de habilidades e uma adequada capacidade crí-
textos em que esses fatos ocorrem. Os motivos devem ser outros: no tica. Para o curso de Letras, é importante o “conhecimento aprofundado
primeiro caso, pode-se pensar nas semelhanças de sentido entre das diversas facetas da linguagem humana” (p.57); o graduando “de-
esses dois verbos (ou talvez se possa falar até em substituição de verá não apenas saber fazer uso dos recursos da língua oral e escrita,
existir por haver). Sobre “menos”, é possível propor uma reanálise como também ser capaz de desempenhar o papel de multiplicador,
do advérbio como adjetivo, o que explicaria a ocorrência da flexão de capacitando outras pessoas para a mesma proficiência lingüística” (p.
concordância com o nome. Se um dos objetivos do Provão é testar a 58). O que se espera de um professor de Língua Portuguesa? As
capacidade de analisar, descrever e explicar a estrutura da língua diretrizes curriculares definem muito bem as habilidades desejadas.
portuguesa, porque não apresentar possibilidades de análises mais Destacam-se algumas fundamentais para os pontos abordados aqui:
coerentes com os fatos?
c) A questão 13 trabalha com uma noção de escopo de advérbio muito a) domínio de diferentes noções de gramática e (re)conhecimento das
estranha. Para a construção ela não achava muito as qualidades de variedades lingüísticas existentes, bem como dos vários níveis e regis-
Lukas adequadas p/ seu casamento, são propostas duas afirmativas, tros de linguagem (Perfil, letra b);
ditas corretas, em relação ao escopo do advérbio muito. A primeira b) capacidade de analisar, descrever e explicar, diacrônica e
considera que “Dada a colocação sintática, o termo achar está dentro sincronicamente, a estrutura e o funcionamento .... (Perfil, letra c);
do escopo (alcance) do advérbio muito”, mas essa é uma relação de c) conhecimento de diferentes teorias, para análise lingüística e aplica-
escopo só sintática pois a outra resposta dada como correta é que “Do ção ao ensino (Perfil, letra d);
ponto de vista do sentido, o termo adequadas está dentro do escopo d) domínio da metalinguagem (Perfil, letra g);
do advérbio muito”. Em resumo, a questão leva a uma conclusão errô- e) capacidade para descrever e justificar as peculiaridades fonológicas,
nea, a de que um advérbio pode modificar sintaticamente um verbo morfológicas, lexicais, sintáticas e semânticas do português brasilei-
sem incidência sobre seu sentido. ro, com especial destaque para as variações regionais e socioletais e
para as especificidades da norma padrão (Competências e habilida-
d) Na questão 5, a afirmativa 1, que contém a frase “A música que ele
des, letra c)
gosta é a que toca no rádio todos os dias e faz o maior sucesso” é
excluída por não seguir a regência padrão. Contudo tal afirmação entra
Pode-se perguntar, então, se as questões do Provão permitem
em contradição com o que é proposto nos Parâmetros Curriculares
a avaliação das competências e habilidades dos estudantes. A respos-
Nacionais. O texto dos PCN diz o seguinte: “... professores e gramáticos
ta óbvia é não. As questões do Provão tratam dos conteúdos amplos
puristas continuam a exigir que se escreva (e até que se fale no Brasil!):
definidos pelas diretrizes, mas a escolha dos conteúdos específicos e
O livro de que eu gosto não estava na biblioteca, quando já se fixou na
das formas de organizar perguntas e respostas só permitem verificar
fala e já se estendeu à escrita, independentemente de classe social ou
saberes acumulados, mas não pensamento reflexivo, capacidade de
grau de formalidade da situação discursiva, o emprego de: O livro que
análise, capacidade crítica. O que é cobrado na prova é sobretudo
eu gosto não estava na biblioteca”5 . Ao tempo em que se aconselha o
atenção na interpretação das questões, pois são as pequenas nuances
abandono da exigência de emprego das relativas preposicionadas, da
nas suas formulações que estão em jogo. E em vários casos, a “inten-
fala e da escrita, e a sua exclusão do ensino e da gramática, cobram esse
ção” de quem formulou as questões.
conhecimento no Provão com base em critérios de gramáticas
Após as primeiras manifestações de insatisfação com o pro-
normativas, e não da lingüística. Quando nos PCN se faz referência a
cesso de avaliação implantado pelo MEC, muitas das quais ocorreram
“independentemente de classe social ou grau de formalidade da situa-
no calor das paixões, há agora uma certa acomodação com os instru-
ção discursiva”, não está incluída aí a norma padrão? Então, de qual
mentos usados para a avaliação e com os seus resultados. Para as IES
regência padrão se está falando na questão 5 do Provão? A regência
nota A, todos se congratulam, estendem faixas divulgando seus resul-
padrão é diferente da norma padrão? Esse poderia ser um tema inte-
tados. Para as que têm conceitos inferiores, a aceitação não-passiva
ressante de discussão se a formulação da questão tivesse como objeti-
do julgamento de outros de que o trabalho desenvolvido em sua IES
vo testar o conhecimento dos estudantes sobre o que está proposto
não é adequado. Internamente, algumas IES procuram resolver o pro-
nas gramáticas normativas como norma padrão e os verdadeiros usos
blema de diversas formas, entre elas: a) oferta de cursinhos para pre-
lingüísticos dos brasileiros. Assim, não haveria um descompasso en-
parar os estudantes para o Provão; b) mais grave ainda, alterar o
tre o que o se propõe nos PCN e o que se cobra no Provão.
projeto pedagógico, direcionando-o para os conteúdos cobrados no
e) A afirmativa dada como correta, na questão 8, implica saber o que Provão. E, mais grave ainda, para os estudantes de cursos com notas
estava na cabeça dos autores, pois diz o seguinte: “II. Os autores do inferiores a A, despontam as dificuldades na hora de procurar empre-
texto variam intencionalmente a maneira de representar o funciona- go, pois o conceito do seu curso no Provão tem sido usado como
mento das regras de concordância nominal e verbal, porque assim critério de seleção.
falariam os surfistas”. Como se as regras de concordância no portugu- Uma análise das questões do Provão mostra justamente que há
ês brasileiro não fossem variáveis! Poderiam ter aproveitado o texto um número considerável de questões ambíguas, mal formuladas, com
para fazer perguntas que mostrassem se os estudantes entendem a respostas inadequadas anotadas como as certas nos gabaritos. Na
amplitude da variação das concordâncias nominal e verbal no portugu- comparação das provas já realizadas, observa-se um aperfeiçoamento
ês brasileiro, atingindo até a fala de pessoas cultas, em situação de na elaboração das questões: pode-se dizer que o Provão de 2000 é
pouco controle. Isso estaria mais adequado ao teste de habilidades dos menos problemático do que o de 1999. Mas, enquanto a Fundação
futuros professores. Em que essa resposta mostra a competência do Carlos Chagas6 , instituição vencedora da concorrência e responsável
estudante para lidar com este problema, certamente presente em to- pela elaboração dos três exames de Letras já realizados, vai aprimo-
das as salas de aula?! Em que mostra um pensamento reflexivo sobre rando o instrumento de avaliação, as notas A, B, C, D e E são atribu-
esse fenômeno?

Segundo o texto da proposta para elaboração das Diretrizes


Curriculares para o Curso de Letras, o objetivo do ensino superior é 5 Sublinhados meus.
fazer com que o estudante adquira um determinado conhecimento, um 6 Consórcio com a Fundação Cesgranrio, exames de 1999 e 2000.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 103


ídas aos estudantes e seus cursos, de acordo com os seus desempe- internet [on line] via URL http://www.mec.gov.br/. Arquivo
nhos nas respostas a questões como essas discutidas acima. Nas pala- capturado em 10/1999.
vras do Ministro Paulo Renato, “O Provão é a parte mais visível de Proposta para elaboração das Diretrizes Curriculares para o Curso
todo um processo que está levando as Instituições de Ensino Superior de Letras. Arquivo disponível na internet [on line] via URL
a se conhecer melhor e a elevar seus níveis de qualidade”7 . Realmente, http://www.mec.gov.br/. Arquivo capturado em 16//11/00.
é uma parte bem visível; cabe-nos a palavra sobre este instrumento, Exame Nacional de Cursos (1998): provas e questionários. Brasília:
como professores e como profissionais, pois é o nosso trabalho e a MEC/INEP, 1999.
formação e futuro dos nossos alunos que estão sendo avaliados dessa Exame Nacional de Cursos (1998): caderno de questões. Fundação
forma. Carlos Chagas.
Exame Nacional de Cursos (1999): caderno de questões. Fundação
Carlos Chagas.
Referências bibliográficas Exame Nacional de Cursos (2000): caderno de questões. Fundação
Carlos Chagas.
AMARANTE, M. de F. S. “O Exame Nacional dos Cursos de Letras Exame Nacional de Cursos (1999): questionário de avaliação. INEP.
de 1988 e o Perfil do Professor de Língua Materna”. Revista Exame Nacional de Cursos: relatório-síntese 1998 / INEP. Brasília, O
Letras 18 (1/2):125-162, 1999. Instituto, 1998.
Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares Exame Nacional de Cursos: relatório-síntese 1999 / INEP. Brasília, O
nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua Instituto, 1999.
portuguesa. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/ Exame Nacional de Cursos: relatório-síntese 1999. Anexo Letras. /
SEF. 1998. INEP. Brasília, O Instituto, 1999.
Brasil. Secretaria de Educação Fundamental. Ações. Parâmetros Revista do Provão: A Universidade rumo ao século XXI. Ano III, No.
curriculares nacionais de 1ª a 4ª séries. Arquivo disponível na 2. Brasília, INEP, 1998.

7 Revista do Provão, Ano III, No. 2:10, 1998.

104 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A proposta de avaliação do MEC para
os Cursos de Letras
Conceição de Maria de Araújo Ramos
Universidade Federal do Maranhão

RÉSUMÉ: Cette étude propose une reflexion a propos du systeme d’évaluation des cours de Lettres proposés par le Ministere de l’Education. Elle
vise l’analyse des aspects positifs et négatifs de ce systeme d’évaluation de l’education qui est composé par l’Examen Nacional des Cours et par
l’Évaluation des Conditions de Fonctionnement des Cours de Graduation.
PALAVRAS-CHAVE: Letras; sistema de avaliação; avaliação das condições de oferta do curso.

A graduação, diferentemente, da pós-graduação, que já é avali- pontuação e ponderação diferenciada de diferentes indicadores, que
ada há mais de duas décadas, carecia de um sistema de avaliação que buscam refletir a combinação de variáveis qualitativas e quantitativas,
também viesse contribuir para a melhoria de sua qualidade, a exemplo previamente discutidas pelas Comissões de Especialistas em Ensino
do que ocorre com os cursos de pós-graduação. que assessoram a SESu.
Nesse sentido, um dos primeiros passos dados foi a aprovação Com esse exame preliminar como pano de fundo, dedico-me
da Lei no 9.131, de 24 de novembro de 1995, que estabeleceu a neces- agora à questão central de minha intervenção: os aspectos positivos e
sidade de recredenciamento periódico das instituições, baseado na os negativos desse sistema de avaliação educacional.
avaliação do desempenho dos alunos e do conjunto da instituição. A Quanto aos aspectos positivos, é importante ressaltar que a
seguir, a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as criação de um sistema de avaliação para o ensino superior, em nível de
diretrizes e bases da educação nacional, deu uma contribuição efetiva graduação, tem contribuído de forma extraordinária para promover, na
à construção do complexo sistema de avaliação, uma vez que, além de sociedade brasileira, a consciência da necessidade que temos de exigir
provocar profundas transformações na educação superior, no país, qualidade e relevância das instituições responsáveis pela educação su-
estabeleceu (Artigo 9o, Inc. VI) a responsabilidade de a União, sob perior. Os reflexos dessa tomada de consciência já se fazem sentir, por
regime de cooperação com Estados, Distrito Federal e Municípios, um lado, na melhoria da qualidade dos cursos, por meio, por exemplo,
assegurar o processo nacional de avaliação do rendimento escolar, nos da (re)elaboração de projetos pedagógicos que buscam responder aos
três níveis de ensino – fundamental, médio e superior. desafios propostos à educação superior diante das profundas transfor-
Assim, com base no disposto nessas duas leis e no Decreto do mações que têm ocorrido na sociedade atual, no mercado de trabalho e,
Ministério da Educação (MEC) no 2.026, de 10 de outubro de 1996, conseqüentemente, no exercício profissional. Por outro lado, as insti-
que estabelece procedimentos para o processo de avaliação dos cur- tuições têm procurado, entre outras coisas, investir na qualificação do
sos e das instituições de ensino superior, foi criado o sistema de corpo docente, melhorar suas instalações e ampliar e atualizar seus
avaliação desse nível de ensino. Esse processo, iniciado em 1996, acervos bibliográficos e seus laboratórios. É inegável, pois, que a
compreende dois procedimentos: retroalimentação, resultado do processo de avaliação ora desencadeado,
a) o Exame Nacional de Cursos, Provão, realizado anualmente, tem vivificado o ensino de graduação.
desde 1996, com o objetivo de avaliar a qualidade do curso por meio Entretanto, passado o impacto inicial provocado pela implanta-
dos conhecimentos demonstrados pelos graduandos; ção do sistema de avaliação e o calor das críticas inflamadas, é hora de
b) a Avaliação das Condições de Oferta de Cursos de Gradua- rever critérios e de apresentar sugestões que possam levar ao aperfeiço-
ção, iniciada em 1997, com a finalidade de avaliar a qualidade acadêmi- amento do sistema. Nesse sentido, examino agora alguns pontos que me
ca dos cursos com base num conjunto de indicadores sobre o corpo parecem cruciais para o avanço do processo de avaliação.
docente, a organização didático-pedagógica e as instalações, especial- Em primeiro lugar, creio que um dos pontos problemáticos
mente bibliotecas e laboratórios. desse processo consiste na falta de informação suficiente acerca do
A Avaliação das Condições de Oferta, objeto de minha inter- próprio processo. Muitos coordenadores de curso de algumas das
venção nesta mesa, é uma avaliação in loco, que dura em média dois instituições visitadas não tinham, até a visita da comissão, uma idéia
dias e é realizada por comissões compostas, normalmente, de dois clara do que é a Avaliação das Condições de Oferta e de como ela se
docentes que integram o cadastro de especialistas ad hoc da Secretaria realiza. O roteiro prévio de coleta de informações que visa a otimizar
de Educação Superior (SESu). No que concerne à Avaliação das Con- o trabalho dos avaliadores no momento da visita nem sempre dá o
dições de Oferta, o MEC tem como meta submeter, anualmente, a resultado esperado, uma vez que dá margem, por exemplo, a uma
essa avaliação todos os cursos que já participaram do Provão. dupla interpretação no item disciplina específica da habilitação refe-
O processo de Avaliação das Condições de Oferta ora em de- rida no relatório. Alguns professores interpretaram disciplina espe-
senvolvimento obedece a uma metodologia comum a todas as áreas do cífica como sendo todas as disciplinas da graduação, excetuando-se
conhecimento. Contudo, os procedimentos e os instrumentos respei- aquelas consideradas pedagógicas, no caso das licenciaturas. Outros,
tam a diversidade e as especificidades das áreas dos cursos examina- por sua vez, entenderam disciplina específica como sendo todas as
dos. disciplinas ofertadas no curso.
Aos três itens avaliados (Qualificação do Corpo Docente, Or- Para os especialistas ad hoc, membros das comissões de avali-
ganização Didático-Pedagógica e Instalações) podem ser atribuídos os ação, também faltaram alguns esclarecimentos com relação à produ-
seguintes conceitos: CMB – condições muito boas; CB - condições ção científica dos docentes: as publicações no prelo devem ou não ser
boas; CR – condições regulares ou CI – condições insuficientes. O consideradas.
conceito final de cada um desses itens é o resultado da combinação de O item titulação do docente também gerou discordâncias e crí-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 105


ticas por parte das instituições, uma vez que a orientação recebida Esses são alguns pontos que podem lançar alguma luz sobre o
pelos especialistas era para aceitar apenas a titulação devidamente processo de avaliação, que julgamos válido e necessário, mas que requer
comprovada com a cópia do diploma. Sabemos, entretanto, que as revisões e aperfeiçoamentos.
instituições demoram a expedir os diplomas, e as cópias das atas de
defesa de teses nem sempre foram aceitas. Referências bibliográficas
Outro ponto crucial para o processo de avaliação é a falta de
sincronia entre as exigências do MEC e a realidade de muitas institui- BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Enfrentar e vencer de-
ções. O MEC exige condições ideais (qualificação do corpo docente, safios. Brasília, 2000.
produção científica, dedicação ao curso, participação de docentes em BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Avaliação das condi-
eventos nacionais e internacionais, núcleo de apoio à pesquisa, labora- ções de oferta dos cursos de graduação. Disponível em <http:/
tórios equipados, bibliotecas com acervo atualizado e informatizado /www.mec.gov.br/Sesu/ofertas.shtm>. Acesso em 11/mar./2001.
etc.), mas as instituições, em grande parte, as federais não conseguem BUENO, Jayme Ferreira., ABAURRE, Maria Bernadete Marques.,
atender a tais exigências, por algumas razões muito evidentes: o núme- ZANDWAIS, Ana., BENN-IBLER, Veronika., MARTINS, De-
ro de professores substitutos é grande e a falta de verbas, maior. Que nise de Aragão Costa. Proposta para Elaboração das Diretrizes
devemos assinalar, por exemplo, no item organização didático-peda- Curriculares para o Curso de Letras. Ministério da Educação.
gógica, quando o professor, além de pesquisar lançando mão de seus Secretaria de Educação Superior. Brasília: MEC, 1999.
próprios recursos, não dispõe na instituição de um espaço físico para CARNEIRO, Moaci Alves. LDB fácil: leitura crítico-compreensiva
implantar um núcleo de pesquisa? artigo a artigo. Petrópolis: Vozes, 1998.

106 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


As provas de literatura de expressão portuguesa
no provão: os avanços e os recuos
na elaboração das questões
Márcia Manir Miguel Feitosa
Universidade Federal do Maranhão

ABSTRACT: This paper is a reflection on the methodology employed in the elaboration of the Literature questions in the Provão, from 1998 to 2000,
in the light of the abilities required for the interpretation of literary texts, their link with the culture of the period and their relation to other types of
discourse.
PALAVRAS-CHAVE: literatura, metodologia, interpretação, análise

O Exame Nacional de Cursos - o Provão -, como mecanismo árcade, a partir do poema Marília de Dirceu; as questões 23 e 24
integrante do Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior - no abarcam o movimento romântico no Brasil sob o enfoque da poesia e
tocante ao Curso de Letras e, mais especificamente, às questões do romance; a questão 25 retoma uma cena de Dom Casmurro, ícone
relativas à Teoria da Literatura, Literatura Brasileira e Literatura do Realismo brasileiro; a questão 26 já se insere no Modernismo, na
Portuguesa, tem se revelado, ao longo desses três últimos anos (1998, sua primeira geração, com a sondagem sobre Macunaíma. Já as ques-
1999 e 2000), desde que foi implantado, equânime quanto ao perfil tões 27 a 33 abarcam as gerações seguintes do Modernismo, com
do graduando que procura compor, pressupondo as seguintes capa- exceção da questão 30 que se dirige à poesia de Manuel Bandeira. O
cidades: mesmo se verifica quanto às questões sobre Literatura Portuguesa,
“a) apreensão crítica das obras literárias, por meio do contato compartimentadas em seus respectivos movimentos histórico-literá-
direto com elas, e também pela mediação de obras de crítica e de teoria rios.
literárias; b) estabelecimento e discussão das relações dos textos lite- Não se evidencia, portanto, no Exame de 98, aprimoramento na
rários com outros tipos de discurso e com os contextos em que se elaboração das questões, na medida em que não trabalham a
inserem; c) relacionamento do texto literário com os problemas e con- interdisciplinaridade, com a relação direta entre língua e literatura, e a
cepções dominantes na cultura do período em que foi escrito e com os intertextualidade, com o diálogo profícuo entre os textos literários
problemas e concepções do presente.” (MEC, 1998: 9) brasileiros e portugueses coetâneos ou não. Afora essa divisão estan-
Quanto ao programa exigido a partir dos conteúdos curriculares que, a maioria das questões não suscita a reflexão a partir de fragmen-
dos Cursos de Letras, poucas são as diferenças entre os exames reali- tos das obras indicadas ou dos poemas recomendados para a leitura.
zados em 98, 99 e 2000. As mais significativas mudanças se verificam São objetivas demais para despertar uma atitude reflexiva e raciocina-
quando da indicação das obras e dos autores a serem enfocados nas da sobre a arte literária. Um exemplo claro dessa pobre visão da
questões concernentes à área da literatura. Assim, do elenco de obras literatura é a questão 37, assim formulada:
apresentado nesses três anos, 21 (vinte e uma) se repetem de um total “37 - Amor de perdição é uma obra tipicamente romântica,
de 27 (vinte e sete) obras em 1998; 28 (vinte e oito) em 1999 e 36 porque nela Camilo Castelo Branco valoriza
(trinta e seis) em 2000. Esse relativo aumento da indicação de obras (A) o sentimento nativista e o nacionalismo, presentes na recusa de
em 2000, em relação aos dois anos anteriores, representa igualmente Simão e Teresa em fugirem de Portugal, apesar de perseguidos pela
maior número de questões, dentre as 40 (quarenta) de múltipla esco- justiça.
lha com enfoque sobre a literatura. Já no que se refere às questões (B) a natureza, como fonte de vida e inspiração, em que Simão se
discursivas, duas obrigatoriamente, das 4 (quatro) sugeridas, se diri- refugia, no final da obra, quando não pode mais ter acesso à Teresa.
gem ao âmbito literário; isso desde o primeiro exame. (C) os valores espirituais do Cristianismo, a que Simão se apega
Dentre as obras referenciadas nos três exames estão os clássi- quando é condenado ao degredo.
cos: Iracema, de José de Alencar; Macunaíma, de Mário de Andrade; (D) o mundo das paixões, o excesso de sentimentos, evidentes no
Dom Casmurro, de Machado de Assis; as obras poéticas de Carlos modo violento como Simão assassina Baltazar Coutinho.
Drummond de Andrade, Fernando Pessoa e os Sermões, do Padre (E) a noite e o mundo sobrenatural, presentes como cenário ao longo
António Vieira; além de Os Lusíadas, de Luís de Camões e O crime do de todo o drama passional.” (MEC, 1998: 27)
Padre Amaro, de Eça de Queirós. Uma das novidades da lista de obras Já o Exame de 99, diferentemente do ano anterior, aborda o
para o Exame de 2000 foi o gênero crônica com o livro Ai de ti, contexto literário não mais com base em uma visão estritamente cro-
Copacabana, de Rubem Braga. nológica dos movimentos estéticos; tanto é assim que entremeia obras
Relativamente ao conteúdo de Literatura nos Exames, é pos- modernistas a obras do Romantismo e do Realismo, com a inclusão de
sível constatar que, nos dois primeiros, os de 98 e 99, respectivamen- alguns fragmentos, como a questão 25 que suscita a análise de A hora
te, o número de questões que tratam do universo literário é o mesmo, da estrela, de Clarice Lispector ou como nas questões 29, 35, 37 e 40,
impondo uma separação bem nítida entre o conteúdo de língua portu- em que se destacam poemas inteiros para análise e reflexão.
guesa e lingüística e o que compete à literatura de expressão portugue- Infelizmente a questão 38, que trata da abordagem do roman-
sa. Isso se evidencia mais fortemente no Exame de 98 quando da ce queirosiano, colocou em destaque não a obra O crime do Padre
referência quase que cronológica às obras da fortuna crítica da Litera- Amaro, conforme indicado no programa de Literatura Portuguesa,
tura Brasileira e Portuguesa, reportando-se aos movimentos ou esté- mas a obra A relíquia, o que incorreu num grave deslize, dada a exigên-
ticas literárias e seus respectivos representantes. cia da leitura previamente divulgada de O crime do Padre Amaro.
Assim, a questão 21 abrange a estética barroca com a figura de Em síntese, tal como o ocorrido no Exame de 98, as questões
Gregório de Matos; a questão 22, Tomás Antônio Gonzaga, poeta de literatura de expressão portuguesa do Exame de 99 permaneceram

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desarticuladas da prova de língua portuguesa e lingüística, restringin- Curiosa também é a abordagem de D. Casmurro, circunscrita a
do-se a vinte questões em que o peso maior se concentrou sobre as três questões, duas das quais direcionadas à sintaxe e à estilística;
características das obras e dos movimentos em que se enquadram, sem diferentemente, pois, dos Exames de 98 e 99, cujas questões se redu-
o estabelecimento de possíveis diálogos entre os autores brasileiros e ziram à análise pura e simples da obra do grande escritor brasileiro e de
portugueses e suas respectivas produções. No entanto, um certo avanço suas características.
já foi possível constatar. No que tange ao estudo da literatura portuguesa, poucas modi-
Mudanças significativas na metodologia usada para a elabora- ficações foram identificadas em relação aos dois anos anteriores. Dig-
ção das questões de literatura se deram, de fato, no Exame de 2000, a na de nota é a forma como foi elaborada a questão 35 acerca da obra O
começar pela forma como foram explorados os vários textos (alguns crime do Padre Amaro, de Eça de Queirós. A partir de um fragmento
relativamente longos), abrangendo em média duas a três questões. Foi de texto crítico de autoria de Machado de Assis sobre o escritor
o caso do poema “O livro das ignorãças”, de Manoel de Barros, recor- português, a questão simula a realidade do ensino de literatura em sala
rente nas questões 5, 6 e 7, em que aparece sob a ótica da interpretação de aula, requerendo do graduando sua posição definida em face da
textual (questão 5), da análise lingüística (questão 6) e sabiamente crítica literária.
associada à literatura comparada na questão 7. Em relação às questões discursivas, reitera-se a abordagem da
Muito bem explorado foi o texto extraído do livro Ai de ti, teoria literária em torno das diferentes vertentes da crítica literária
Copacabana, de Rubem Braga, indicado para a leitura obrigatória dos (questão 3) e em torno da clássica oposição entre autor (escritor) e
graduandos. Novamente abrangendo três questões, suscitou a reflexão narrador, exigindo do graduando seu posicionamento crítico a favor ou
em torno do papel do cronista em função do estilo de suas composi- contra aos argumentos apresentados.
ções, o que induziu a uma interpretação metalingüística do ofício do Em linhas gerais, a título de conclusão, pode-se afirmar que os
escritor. As duas questões seguintes se pautaram em aspectos três Exames realizados até agora pelo Ministério da Educação, sob a
discursivos da língua (a de número 15) e nos aspectos pragmáticos e gerência do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educa-
discursivos a partir do léxico do texto de Rubem Braga (questão 16). cionais) e da DAES (Diretoria de Avaliação e Acesso ao Ensino Supe-
O mesmo se verifica quando da abordagem de um fragmento de A hora rior), revelam certo grau de amadurecimento no tocante à elaboração
da estrela, de Clarice Lispector, explorado tanto em nível interpretativo, das questões de literatura de expressão portuguesa, notadamente no
quanto discursivo, pragmático e fonológico. A leitura de tal livro, Exame de 2000, em que já é possível contar com a presença da
também enfocado no Exame de 98, ficou reduzida nesse Exame a uma interdisciplinaridade e da intertextualidade, novos paradigmas do en-
questão cujo ponto crucial se centrou basicamente na estrutura do sino de literatura, e, sobretudo, com uma das mais importantes: a
romance sob o ângulo do leitor; logo, aquém da leitura empreendida referência direta aos textos dos autores, literalmente transcritos, de
pelo Exame de 2000. modo a fazer jus a uma atitude mais reflexiva por parte do leitor/
A ausência da intertextualidade enquanto diálogo entre os tex- futuro professor de língua e literatura.
tos, identificada nos Exames anteriores, nesse de 2000 já se fez pre-
sente e de modo curioso: no próprio texto de João Cabral de Melo Referências bibliográficas
Neto intitulado “Graciliano Ramos” , do livro Serial, em que se evi-
dencia a relativa equivalência entre os procedimentos e atitudes em Exame Nacional de Cursos (1998): provas e questionários. Brasília:
torno do rigor da criação literária, visivelmente compartilhados por MEC/INEP, 1999.
ambos os escritores e inteligentemente explorados na questão 20.

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Perfil do profissional de Letras delineado nas
diretrizes curriculares propostas pelo MEC
José de Ribamar Mendes Bezerra
Faculdade Atenas Maranhense

ABSTRACT: This paper is a reflection on the professional profile of graduate of Letras, according Proposta para Elaboração das Diretrizes
Cuirriculares do Curso de Letras.
PALAVRAS-CHAVE: Letras; perfil profissional; mercado de trabalho.

Dando continuidade a esta reflexão sobre o sistema de avaliação O Ministro de Estado da Educação, Paulo Renato Souza, bai-
dos cursos de Letras, criado pelo MEC e composto do Exame Nacio- xou a Portaria no 11, de 4 de janeiro de 2001, que, baseada nas idéias
nal de Cursos e da Avaliação das Condições de Ofertas de Cursos de apresentadas na Proposta de Diretrizes Curriculares para o Curso de
Graduação, tratarei aqui, agora, do perfil do profissional de Letras, Letras, estabelece os objetivos do Exame Nacional de Cursos e deter-
notadamente no que diz respeito às capacidades, competências e ha- mina os procedimentos para sua realização, neste ano de 2001, em sua
bilidades, adquiridas durante sua formação acadêmica tanto no ambi- quarta edição. Quanto aos aspectos das capacidades, das competênci-
ente escolar quanto fora dele. as e das habilidades, a Portaria contém o seguinte:
Tanto a Avaliação das Condições de Ofertas de Cursos de Gra- Art. 1° O Exame Nacional de Cursos, parte integrante de um
duação quanto o Exame Nacional de Cursos tomam como um dos amplo processo de avaliação das instituições de ensino superi-
documentos orientadores básicos a Proposta para Elaboração das or, no que se refere a Letras, terá por objetivos:
Diretrizes Curriculares. A Proposta de Diretrizes Curriculares para o a) contribuir para a avaliação das instituições de ensino superior
Curso de Letras considera “os desafios da educação superior diante que ministram cursos de graduação em Letras, no intuito de pos-
das intensas transformações que têm ocorrido na sociedade contem- sibilitar ações permanentes voltadas para a melhoria da qualidade
porânea, no mercado de trabalho e nas condições de exercício profis- do ensino ministrado;
sional.”. Por isso, concebe a Instituição de Ensino Superior “não ape- b) integrar um processo de avaliação continuada da formação
nas como produtora e detentora do conhecimento e do saber, mas, pessoal e profissional do graduado em Letras;
também, como instância voltada para atender às necessidades c) fornecer elementos que possam contribuir para a discussão
educativas e tecnológicas da sociedade. Ressalta-se, no entanto, que a do papel do profissional de Letras na sociedade brasileira;
Universidade não pode ser vista apenas como instância reflexa da d) avaliar em que medida os cursos de Letras estão formando
sociedade e do mundo do trabalho. Ela deve ser um espaço de cultura profissionais dotados de repertório cultural e metalingüístico
e de imaginação criativa, capaz de intervir na sociedade, transforman- que lhes permita operar com diferentes questões e problemas
do-a em termos éticos.”. de linguagem e atuar como multiplicadores.
Portanto, para o Ministério da Educação (MEC), o perfil do Art. 2° Tendo como pressuposto que o graduando em Letras
profissional deve estar em consonância com o objetivo do Cursos de deverá demonstrar capacidade de utilizar os recursos da língua
Letras, que é “formar profissionais interculturalmente competentes, oral e escrita, de articular a expressão lingüística e literária com
capazes de lidar, de forma crítica, com as linguagens, especialmente a os sistemas de referência em relação aos quais os recursos ex-
verbal, nos contextos oral e escrito, e conscientes de sua inserção na pressivos da linguagem se tornam significativos e de desempe-
sociedade e das relações com o outro.”. nhar o papel de multiplicador, o Exame Nacional do Curso de
A Proposta de Diretrizes Curriculares para o Curso de Letras Letras de 2001 tomará como referência o seguinte perfil para o
ainda sugere: graduando:
Independentemente da modalidade e da habilitação escolhidas, o a) capacidade de organizar, expressar e comunicar o pensamento
profissional em Letras deve ter domínio do uso da língua ou das em situações formais e em língua culta;
línguas que sejam objeto de seus estudos, em termos de sua estrutu-
b) domínio teórico e descritivo dos componentes fonológico,
ra, funcionamento e manifestações culturais, além de ter consci-
ência das variedades lingüísticas e culturais. Deve ser capaz de morfossintático, léxico, semântico e pragmático da língua por-
refletir teoricamente sobre a linguagem, de fazer uso de novas tuguesa;
tecnologias e de compreender sua formação profissional como c) domínio de diferentes noções de gramática e (re) conheci-
processo contínuo, autônomo e permanente. A pesquisa e a ex- mento das variedades lingüísticas existentes e dos vários níveis
tensão, além do ensino, devem articular-se neste processo. O e registros de linguagem;
profissional deve, ainda, ter capacidade de reflexão crítica sobre d) capacidade de analisar, descrever e explicar, diacrônica e
temas e questões relativas aos conhecimentos lingüísticos e literá- sincronicamente, a estrutura e o funcionamento de uma língua, em
rios.
particular da língua portuguesa;
e) capacidade de analisar criticamente as diferentes teorias que
Abordadas essas idéias iniciais, sistematizadas pela Comissão de
fundamentam as investigações de língua e de linguagem;
Especialistas de Ensino para o Curso de Letras, examino, agora, a forma
f) domínio ativo e crítico de um repertório representativo de
de verificar se tais idéias estão sendo desenvolvidas a contento, no sentido
literatura em língua portuguesa e capacidade de identificar rela-
de obter respostas significativas que permitam avaliar os Cursos de Le-
ções intertextuais com obras de literatura universal;
tras existentes no país. Para tanto, passarei, agora, a examinar, sob os
g) domínio do conhecimento histórico e teórico necessário para
aspectos dos objetivos, das competências, das capacidades e das habili-
refletir sobre as condições sob as quais a expressão lingüistica
dades, um recente documento normatizador legal emitido pelo MEC.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 109


se torna literatura; Para refletir sobre a afirmação acima, considero essencial obser-
h) domínio de repertório de termos especializados com os quais var o seguinte:
se pode discutir e transmitir a fundamentação do conhecimento a) a visão de pragmatismo de Friedrich J. C. Schiller – que defendia
da língua e da literatura; o pensamento de que a verdade de uma doutrina consiste no fato
i) capacidade de usar o padrão culto e de operar, como profes- de ser útil e proporcionar alguma espécie de êxito ou satisfação ao
sor, pesquisador e consultor, com as diferentes manifestações ser humano;
lingüísticas; b) a adoção do pressuposto de que os valores humanistas são
j) capacidade de desempenhar papel de multiplicador, de modo manifestos pelo domínio do lógico e do ético, se situam numa
a formar leitores críticos, intérpretes e produtores de textos de perspectiva antropocêntrica, em domínios e níveis diversos, e
diferentes gêneros e registros lingüísticos e fomentar o desen- assumem com maior ou menor radicalismo, as conseqüências
volvimento de habilidades lingüísticas, culturais e estéticas; daí decorrentes;
k) atitude investigativa que favoreça processo contínuo de cons- c) os resultados apresentados até a terceira edição do Exame
trução do conhecimento na área e utilização de novas tecnologias; Nacional de Cursos de Letras – 39 cursos de Letras obtiveram
l) capacidade de pesquisar, reelaborar e articular dados, infor- conceito D ou E nos dois últimos exames, e a média de pontos
mações e conceitos, com vistas à produção de conhecimento. obtidos pelos alunos foi de 30,6, num total possível de 100
Art. 3o O Exame Nacional do Curso de Letras de 2001 avaliará pontos.
se o graduando desenvolveu, ao longo do curso, competências e Em face dos pontos elencados, levanto algumas questões sobre
habilidades para: a forma de avaliar os Cursos de Letras, as quais, acredito, merecem
a) compreender, analisar e produzir textos de gêneros variados; uma reflexão de todos nós responsáveis pela formação do profissional
b) ler e produzir textos em diferentes linguagens e traduzir de Letras:
umas em outras; a) As Instituições de Ensino Superior estão preparando os
c) descrever e justificar as características fonológicas, profissionais de Letras seguindo as orientações do MEC?
morfológicas, lexicais, sintáticas, semânticas e pragmáticas de b) Se estão seguindo as orientações do MEC é apenas com o
variedades da língua portuguesa , em diferentes contextos; objetivo de obter boas notas no Exame Nacional de Cursos ou
d) ler e analisar criticamente textos literários e identificar relações para colocar profissionais de alta qualidade a serviço da huma-
de intertextualidade entre obras da literatura em língua portuguesa nidade?
e da literatura universal; c) Será que ao seguirem as orientações do MEC, as Instituições
e) estabelecer e discutir as relações dos textos literários com de Ensino Superior estão mudando, para melhor, sua forma
outros tipos de discurso e com os contextos em que se inserem; ultrapassada de preparar profissionais de Letras?
f) relacionar o texto literário com os problemas e concepções d) Considerando que o maior mercado de trabalho do profissi-
dominantes na cultura do período em que foi escrito e com os onal de Letras ainda é a sala de aula, qual é o reflexo na educação
problemas e concepções do presente; de base (séries iniciais) da atuação de um profissional mal pre-
g) interpretar textos de diferentes gêneros e registros lingüísticos parado pela Instituição de Ensino Superior que revela uma prá-
e explicitar os processos ou argumentos utilizados para justifi- tica ultrapassada e ineficaz de “fazer” educação?
car tal interpretação; e) Qual é a motivação de um aluno de Letras para realizar o
h) compreender, à luz de diferentes teorias, os fatos lingüisticos Exame Nacional de Cursos, isto é, comparecer à prova e res-
e literários e conduzir investigações sobre língua e linguagem e ponder adequadamente às questões que lhe são apresentadas?
sobre problemas relacionados ao ensino/aprendizagem da língua f) Será que o Exame Nacional de Cursos, por meio das questões
materna. que são postas aos graduandos, consegue dar o retorno neces-
sário para uma avaliação criteriosa e confiável?
Observando o exposto acima, entendo que o processo de for- Sobre as questões de Língua, Lingüística e Literatura haverá
mação superior de nossos estudantes, proposto pelo MEC, tende a uma análise feita pelas comunicadoras que me seguirão.
valorizar capacidade, competência e habilidade, objetivando desen-
volver no universitário um comportamento capaz de enfrentar os
sérios desafios que a organização econômica mundial atual vem im- Referências bibliográficas
pondo às sociedades globalizadas. A interação constante e sistemática
com o mercado de trabalho é, a partir desse ponto de vista, fundamen- BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Portaria n.o 11, de 4 de
tal e indispensável para compor o perfil profissional adequado do janeiro de 2001. Estabelece objetivos e procedimentos para o
formando em Letras. Entendo, ainda, que além da profissionalização, Exame Nacional de Cursos de Letras. Diário Oficial [da] Repú-
adequadamente conteudística, é necessário proporcionar ao profissi- blica Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 5 jan.
onal de Letras uma formação humanística, para que ele desenvolva 2001, Seção 1.
uma responsabilidade ética e social de cidadão exemplar no convívio BUENO, Jayme Ferreira., ABAURRE, Maria Bernadete Marques.,
com sua comunidade circundante e com a sociedade em que atua. ZANDWAIS, Ana., BENN-IBLER, Veronika., MARTINS, De-
Vale lembrar ainda que a Proposta para Elaboração das Diretri- nise de Aragão Costa. Proposta para Elaboração das Diretrizes
zes Curriculares para o Curso de Letras, em sua introdução, afirma o Curriculares para o Curso de Letras. Ministério da Educação.
seguinte: “A área de Letras, abrigada nas ciências humanas, põe em Secretaria de Educação Superior. Brasília: MEC, 1999.
relevo a relação dialética entre o pragmatismo da sociedade moderna e PARAGUASSÚ, Lisandra. Regras ficam mais rígidas para letras. Fo-
o cultivo dos valores humanistas.”. lha de S. Paulo. São Paulo, 5 dez. 2000.

110 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Processos de intensificação prefixais na
norma urbana culta de Salvador
Carlos Alberto Gonçalves Lopes
Universidade Federal da Bahia
Universidade Estadual da Bahia

ABSTRACT: The prefixal intensification has merited little attention from studentes of Semantic. This work demonstrates the persuasive force of the
intensification by analysing of intensive prefixed in Salvador oral language.
PALAVRAS-CHAVE: Língua portuguesa; Semântica.

O assunto abordado aqui está inserido numa pesquisa maior que consideram a prefixação um processo de composição. Opinião
(LOPES: 2000) que tem por alvo descrever os processos de intensifica- melhor parece ser a daqueles que consideram a prefixação uma moda-
ção encontrados na língua falada por informantes cultos de Salvador, lidade de derivação, dentre os quais se incluem ROCHA LIMA (1972:
tomando como corpus doze inquérios reunidos na obra organizada por 173), CUNHA & CINTRA (1985: 83-84) e BECHARA (1999: 357),
MOTA & ROLLEMBERG (1994). Por outro lado, ao eleger como em razão da ponderação de que, embora os prefixos não sejam capa-
objeto de pesquisa a intensificação, situa-se no âmbito da Análise do zes de realizar uma mudança de categoria, como ocorre com alguns
Discurso, e, neste, mais especificamente, nos estudos da enunciação e sufixos em determinados casos (ex.: digno à dignidade), são, por natu-
da argumentação. reza, morfemas presos cons-tituintes das palavras, visto que não so-
Por processos de intensificação prefixais entende-se todos os brevivem fora delas, como é o caso do prefixo HIPER- em hiperten-
mecanismos lingüísticos constituídos de gramemas presos são, salvo se vierem a sofrer um processo de lexicalização, a exemplo
posicionados antes de uma base lexemática que, numa determinada de manteiga extra, o que é algo incomum e bem diferente do que
situação enunciativa, podem funcionar como operadores da intensida- acontece com a esmagadora maioria dos prefixos.
de por transferência de sentido (hiperacidez) ou por natureza Ainda sobre os prefixos, convém observar que, assim como
(microfilme). Tais intensificadores se caracterizam ainda por expres- ocorre com os processos analíticos de intensificação, eles se prestam
sarem, respectivamente, uma visão global ou relativa do locutor. menos à expressão da emotividade do que os sufixos. Diz
A diferença entre os gramemas presos prefixais por natureza e SANDMANN (1988: 161) que “o emprego crescente dos prefixos de
os por transferência de sentido está em que, enquanto os primeiros aumento e diminuição macro-, maxi-, mega-, micro- e mini- [...] deve-
sempre expressaram a noção de grau, como é o caso do prefixo se provavelmente ao fato de serem emocionalmente mais neutros do
MICRO-, que tem o sentido de pequeno em microfilme (= filme que os sufixos de grau [...]”.
pequeno, reduzido), os últimos, originalmente portadores do sentido Por outro lado, RIO-TORTO (1987), apud CARREIRA (1997:
de localização, só posteriormente é que passaram a expressar a noção 182), fazendo um estudo acerca das estruturas morfo-lexicais da in-
de intensidade, como é o caso do prefixo HIPER- (de origem grega, tensificação no português contemporâneo, “considère que la
com o sentido de posição superior) que, por transferência semântica, suffixation et la préfixation font partie de la sémantique lexicale et
toma o sentido figurado de alto grau em hipermercado (= mercado envisage différents niveaux d’intensification selon une échelle de
enorme). gradation”. E depois menciona “quatre zones d’évaluation (diminutive-
Cabe esclarecer ainda que, a depender do caso, tais intensificadores atténuative, augmentative-intensive, superlative, excessive)” (Ibid.).
podem vir não-integrados, a exemplo de ultra-rápido, em que o A reflexão acerca dos prefixos conduz inevitavelmente à con-
intensificador é o próprio prefixo; ou integrados na base, a exemplo de clusão de que eles têm um comportamento similar ao dos adjetivos, de
super-secretária, como se vê, respectivamente, nos seguintes exemplos: modo que podem, inclusive, se organizar também em séries gradativas
através das quais expressam diversos níveis de intensificação, como
(1) Este trem é ultra-rápido (= extremamente rápido). se verifica na série “HIPER-, SUPER-, SEMI-, SUB-” exemplificada
(2) Esta é uma super-secretária (= demasiadamente boa se- em “hiperdesenvolvido ← superdesenvolvido, semidesenvolvido, sub-
cretária). desenvolvido” e que corresponde, respectivamente, aos graus de in-
Em (1), o prefixo ULTRA-, com o sentido original de ultrapas- tensidade máximo, superior, aproximativo-inferior e inferior, ilus-
sagem em relação a uma norma, a um limite (de velocidade, nesse trados na seguinte escala:
caso), passa a traduzir a noção de intensidade elevada em relação à
base (rápido) exterior a ele, razão pela qual se diz não-integrado.
Por outro lado, em (2), o prefixo SUPER-, com o sentido origi- + + – hiperdesenvolvido (=muitíssimo desenvolvido)
nal de posição superior, assume o sentido figurado de alto grau. Toda-
via, cabe observar que, nele, encontram-se a base (boa), como um dos + – superdesenvolvido (= muito desenvolvido)
seus semas, e, implícito, o intensificador (demasiadamente), razão
pela qual se diz integrado.
Antes, porém, de prosseguir na apreciação dos gramemas pre- 0 – desenvolvido
sos prefixais, uma questão deve ser colocada como pré-requisito para ^
a abordagem desse assunto, que é a de ser ou não prefixo o que aqui se
^ semidesenvolvido (= quase desenvolvido)
denomina prefixo, levando-se em conta o fato de não ser pacífica a
^
posição de se considerar o prefixo um morfema preso capaz de operar
a derivação, problema esse inexistente em relação aos sufixos e que - – subdesenvolvido (= pouco desenvolvido)
tem a ver com os processos de formação das palavras. Sobre essa
questão, não é sensato concordar com PEREIRA (1926), BUENO Os prefixos serão amplificadores quando funcionarem como
(1958) e J. J. NUNES, apud ROCHA LIMA (1972), dentre outros, modificadores capazes de aumentar a noção contida na base de forma

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a direcioná-la para cima; e podem se subdividir, conforme o critério de Brasileira de Química congrega, principalmente, os químicos e os en-
seleção, em prefixos amplificadores por natureza e em prefixos am- genheiros químicos, com o processo intensificacional sendo reforçado
plificadores por transferência de sentido. por pausa marcada na escrita por vírgula. A propósito, resta ainda
Os prefixos amplificadores por natureza se caracterizam por esclarecer que “sobre- é a forma vernácula proveniente de super-”
expressar uma noção elevada de grau, situável numa escala de valores (DUARTE, 1999: 184), sendo super- um prefixo latino formador de
dimensiva parafraseável pela série gradativa “grande, médio, peque- vocábulos eruditos.
no”. Dentre eles, são conhecidos os prefixos MACRO-, MAXI- e Em (4), o prefixo SUPER-, aplicável a uma base adjetiva (pano-
MEGA-, situáveis no pólo positivo dessa escala, que se opõem aos râmica), intensifica a noção nela contida, de modo a expressar a idéia
prefixos MICRO- e MINI-. de uma tela muito grande. Tal noção intensiva se dá por transferência
Já os prefixos amplificadores por transferência de sentido de sentido, visto que SUPER- possui originalmente o sentido de loca-
(ARQUI-, EXTRA-, HIPER-, SOBRE-, SUPRA, SUPER-, ULTRA) lização espacial, significando por cima de, em cima de, sobre. Trata-
se caracterizam por, sendo originalmente portadores do sentido de se do intensificador prefixal mais freqüente nos inquéritos analisados,
localização (espacial ou hierárquica), traduzirem, por deslizamento o que sugere a sua vitalidade no português atual. Aqui, particularmen-
semântico, uma noção hiperbólica de intensidade. De fato, original- te, há uma avaliação subjetiva do informante, com uma inegável inten-
mente, ARQUI- (= superior hierárquico, comandante, chefe), EX- ção argumentativa de convencer o alocutário acerca do tamanho das
TRA- (= fora de, ao exterior), HIPER- (= em cima de, em posição telas de cinema.
superior, o oposto de HIPO-), SOBRE- (= por cima de, em cima Em (5), todavia, o mesmo prefixo aparece separado da base, na
de, além de), SUPRA- (= acima de, superior), SUPER- (= por cima expressão “super difícil”, significando muito difícil. Tem-se aqui um
de) e ULTRA- (= para além de, além do limite, ultrapassagem) são intensificador (super) modificando outro intensificador (difícil) que,
portadores da noção semântica de posição, e, por transferência de por sua vez, modifica a expressão “um (jogo) sobre os compositores”
sentido, são capazes de intensificar de tal modo a base modificada por (que tem o núcleo elíptico) com o propósito argumentativo de condu-
eles que o aumento da noção pode ir bem além dos limites da escala zir o alocutário a crer na grande dificuldade de se pronunciar as pala-
gradativa básica, razão pela qual podem ser parafraseados por muitís- vras em alemão dessa atividade lúdica. Nesse caso, trata-se de uma
simo, extremamente, excessivamente, extraordinariamente, demasia- separação aparente do prefixo, se for considerado o fato de não só ser
do. Assim, fica fácil perceber que tais amplificadores, por marcarem inviável a colocação de qualquer vocábulo entre super e difícil, como
um grau excessivo de intensidade, são também responsáveis pela ope- também de ser impossível a colocação do prefixo em outra posição
ração da modalidade de intensidade denominada amplificação absolu- que não seja imediatamente anterior ao lexema modificado. Portanto,
ta, como ocorre em “hiperdesenvolvido”, significando extremamente se há alguma diferença entre os exemplos (4) e (5) em relação ao
desenvolvido; e em “sobretudo”, “superpanorâmicas” e “super difí- prefixo mencionado, esta deverá ser buscada na prosódia, já que
cil”, encontráveis, respectivamente, nos seguintes trechos: “superpanorâmicas” possui apenas um acento prosódico, enquanto
“super difícil” possui dois.
(3) INF – E nós temos uma outra associação de classe também, Os prefixos serão atenuadores quando funcionarem como
que nós... eh... pertencemos, que é a Sociedade modificadores capazes de diminuir uma noção contida na base,
Brasileira de Química, não é? (superp) direcionando-a para baixo. Eles podem ser atenuadores aproximati-
DOC – Hum, Hum. (superp) vos ou atenuadores minimais.
INF – Essa congrega, como o próprio nome está dizendo, Os prefixos atenuadores aproximativos, dentre os quais SEMI-
sobretudo¸ os químicos e os engenheiros químicos, é o mais conhecido, se caracterizam por expressarem uma noção
né? imprecisa de intensidade passível de ser parafraseada por quase, como
(INQ283, INF360, p.216, LINHAS 18-24) se verá a seguir:

(4) INF Então, existem as máquinas de oito milímetros; geral ( 6) INF O clima é tropical no Brasil. Agora, clima tropical... eh...
mente essas de oito milímetros são usadas mais em casa, talvez semi-úmido, talvez, não sei, na região amazô-
ou naqueles fil... naqueles cinemas antigos, né? Depois, nica, talvez... eh... úmido, mas úmido não no sentido,
dezesseis milímetros, que há pouco tempo também era vamos dizer, de umidade... – não sei, talvez eu não
usada em cinemas. E agora as mais modernas são seten seja... não... não poss... não... não esteja me expres-
ta milímetros, que muitos até usam para aquelas telas sando bem –, mas úmido no sentido de umidade que
superpanorâmicas, pra dar idéia até do... terceira dimen dá lugar a suor e tal, no tempo de sol, aqui na área de
são, que na realidade não é terceira dimensão, né... Nordeste.
(INQ138, INF167, p.55-56, LINHAS 265-274) (INQ 135, INF164, p.130, LINHAS 81-88)

(5)INF Outro jogo que envolve animais é um quarteto, que Em “semi-úmido”, percebe-se que o grau de comprometimento
pode ser de animais. Eu tive um sobre os compositores do locutor acerca da umidade do clima é atenuado pelo prefixo SEMI-,
e que era super difícil nós dizermos aqueles nomes to que traduz a noção de um clima que não é úmido nem seco, mas quase
dos, quando nós nem falávamos português correto, ima úmido. A rigor, o prefixo supracitado (semi-) não marca com nitidez o
gine dizer os nomes em alemão; mas existe com ani grau de umidade, por estar situado numa zona medial imprecisa da
mais. escala gradativa próxima do grau médio. Entende-se aqui por grau médio
(INQ125, INF151, p.84, LINHAS 521-527) o ponto intermediário da escala, mais ou menos equidistante dos graus
superior e inferior. Outrossim, a imprecisão do sufixo SEMI- é acentu-
Em (3), o prefixo SOBRE-, aplicável a uma base pronominal ada aqui pela própria vacilação do informante, manifesta na sua insegu-
(tudo), resulta no intensificador sobretudo, sinônimo de especialmen- rança quanto à classificação do clima do Brasil.
te, principalmente, acima de tudo. Sendo assim, dizer que “Essa (a Os prefixos atenuadores minimais se caracterizam por situa-
Sociedade Brasileira de Química) congrega, [...], sobretudo, os quími- rem a intensificação no extremo inferior da escala gradativa básica e
cos e os engenheiros químicos”, corresponde a dizer que a Sociedade poderem se subdividir em prefixos atenuadores minimais de grande-

112 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


za (MICRO-, MINI-), passíveis de serem parafraseados por peque- (1972), como um prefixo propriamente dito, recentemente tem surgi-
no, e em prefixos atenuadores minimais de qualidade ou de caracte- do estudos defendendo ponto de vista diferente, tais como os realiza-
rização (SUB-, INFRA-, MAL-), passíveis de serem parafraseados dos por SANDMANN (1988: 109), para quem tal elemento mórfico
por pouco, com esse último tipo aparecendo nos seguintes trechos: é um prefixóide; e por DUARTE (1999: 166), para quem o gramema
MAL- nada mais é do que um prefixo correspondente a formas livres
( 7 ) DOC Mas, de qualquer forma, quer dizer, uma coisa está, e dependentes.
digamos, certa de que muitos desses problemas de de Nos três casos apreciados de atenuação minimal (com os sufi-
ficiência, ou auditiva, ou visual, ou mental, está, diga xos SUB-, INFRA- e MAL-) nota-se uma intensificação em sentido
mos, diretamente ligado ao problema da... inverso (para baixo) que conduz à conclusão de que a atenuação admi-
INF – Ah... é... (superp) te duas modalidades, a modalidade aproximativa (ilustrada com o
DOC – ...da subnutrição. (superp) prefixo SEMI-) e a modalidade minimal (ilustrada com os prefixos
(INQ356, INF452, p.275, LINHAS 648-654) SUB-, INFRA- e MAL-). No primeiro caso, com o emprego do pre-
fixo SEMI-, há uma vacilação do informante em situar com precisão
( 8 ) INF Nós tivemos – foi há dois anos atrás – também uma (consciente ou inconscientemente) o grau de apreciação, enquanto
aluna... eh... a família não tinha realmente habitação, e que, no segundo caso, há uma intensificação negativa (direcionada
eles também não podiam comprar o café, que é muito para baixo), movida pelo propósito de atuar sobre o alocutário que,
caro, não é, e se alimentavam de infusões, que eles em (7), é sensibilizado acerca da condição humana de subnutrição; em
iam... de folhas do mato, que eles iam arrancando, e (8), acerca da condição de vida infra-humana; e, em (9), acerca da
por aí eles iam se alimentando, não é? Essa criança era preferência do informante por bifes malpassados.
um... um problema na escola, mas atrás de tudo isso, De tudo o que foi dito acerca dos gramemas presos prefixais
do problema que ela apresentava, vinham todas as de amplificadores e atenuadores, resta mencionar ainda que os prefixos
monossilábicos (DES-, RE-, PRE-, TRES-) presentes, por exemplo,
ficiências que ela vinha sofrendo, né, em todos os ní
em desinfeliz, requeimado, prepotente e tressuar, não foram objeto de
veis...
apreciação, porque, conforme pondera RIO-TORTO (1987: 96), “não
DOC – Hum, hum. (superp)
são assumidos na linguagem corrente como monemas de intensifica-
INF – ... que era (superp) uma vida infra-humana que levava.
ção, ou porque fazem parte de vocábulos cultos de cuja estrutura
(INQ356, INF452, p.275, LINHAS 656-669)
complexa a generalidade dos falantes não tem consciência (pre claro,
pre potente, pre eminente, per feito, per seguir, tres ler, tres suar ), ou
( 9 ) INF [...] mas nós preferimos mesmo fazer uma refeição porque sofreram um desgaste semântico que absorveu o seu primitivo
mais, digamos assim, substancial, pela manhã, incluindo, conteúdo intensificador, apresentando-se hoje em dia como formas
nesse caso, vamos dizer, bifes, malpassado, etc. [...] mais ou menos lexicalizadas que veiculam outros valores sémicos”.
(INQ081, INF089, p.178, LINHAS 38-41) Nesses casos, não são tais prefixos que são, a rigor, formas
lexicalizadas, porque, resultado de um processo de aglutinação com
Em (7), o prefixo SUB- intensifica para baixo a base substantiva suas respectivas bases, e não isoladamente, é que se lexicalizaram em
à qual está preso (nutrição). A noção que se passa é a de uma alimenta- formas indecomponíveis.
ção muito deficiente (ou precária), abaixo das necessidades do organis-
mo. Trata-se de um prefixo latino que, apesar de admitir outros signifi-
cados, tais como transferência (sublocar) e derivação (subproduto), Referências bibliográficas
aqui significa, especificamente, posição inferior, com valor intensivo
por transferência de sentido. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática protuguesa. 37 ed. ver. e
No exemplo (8) aparece o prefixo INFRA- significando tam- ampl. Rio de Janeiro, Lucerna, 1999.
bém posição inferior, com valor intensivo por transferência de senti- CARREIRA, Ma. Helena Araújo. Modalisation liguistique en situation
do. Trata-se, a rigor, de um emprego insólito e, por isso mesmo, muito d’interlocution. Paris, Éd. Peeters, 1997.
expressivo de tal prefixo, por ter comumente apenas o sentido de CUNHA, Celso & CINTRA, Luís F. Lindley. Nova gramática do
posição inferior sem valor intensivo, a exemplo de infracitado (= português contemporâneo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1985.
citado abaixo). Portanto, uma vida infra-humana, mais do que uma DUARTE, Paulo Mosânio Teixeira. A formação de palavras por
vida abaixo de humana, posicionalmente falando, é uma vida pouco prefixo em português. Fortaleza, EUFC, 1999.
humana, uma vida inferior qualitativamente falando, uma vida ruim, LOPES, Carlos Alberto Gonçalves. Processos de intensificação na
nada humana. norma urbana culta de Salvador. Tese de Doutorado. Salvador,
Em (9), finalmente, tem-se o prefixo MAL- que, originalmente Universidade Federal da Bahia, 2000.
significando de modo ruim, por transferência de sentido tem nesse MOTA, Jacyra & ROLLEMBERG, Vera (orgs.) A linguagem falada
caso o sentido de pouco e se opõe a BEM-, razão pela qual “bifes culta na cidade de Salvador: materiais para seu estudo. Salvador,
malpassados” são bifes pouco passados, ou melhor, pouco assados Instituto de Letras da UFBA,1994.
ou pouco fritos, o oposto de “bifes bem-passados”. A propósito, diz RIO-TORTO, Graça Ma. O. S. Estruturas léxicas de intensificação no
SANDMANN (1988: 109) que “os prefixóides bem e mal (sic) têm português contemporâneo. In: CONGRESSO SOBRE A SITU-
como correspondentes sinônimos livres os advérbios bem e mal”; que AÇÃO ACTUAL DA LÍNGUA PORTUGUESA NO MUN-
“eles se prestam a formações em série”; e que “ocorrem principalmen- DO, 1, Lisboa, 1983. Actas. Lisboa, Instituto de Cultura e Língua
Portuguesa, 1987, p.87-113, vol. II.
te diante do particípio perfeito convertido em adjetivo”.
ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. Gramática normativa da lín-
Acerca do gramema MAL-, cabe observar ainda que, apesar de
gua portuguesa. 22. ed. Rio de Janeiro, J. Olympio, 1972.
não ser ele comumente reconhecido pelos gramáticos, dentre os quais
SANDMANN, Antônio José. Formação de palavras no português
BECHARA (1999), CUNHA & CINTRA (1985) e ROCHA LIMA
brasileiro contemporâneo. Curitiba, Scientia et Labor/Ícone, 1988.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 113


A variação diafásica no Português do Brasil
Jacyra Andrade Mota
Universidade Federal da Bahia

RÉSUMÉ: Le travail ici présenté analyse la variation linguistique selon la dimension diaphasique (les styles ‘réponses aux questions du questionnaire’
et ‘conversation libre’). Les données en examen appartiennent à 12 interviewes accomplies, à titre expérimental, dans le cadre du Projet Atlas Lingüístico do Brasil.
PALAVRAS-CHAVE: Variantes Fônicas, Variantes Diafásicas, Atlas Lingüístico do Brasil.

Voltada inicialmente para a investigação da diversidade espa- dos — o de escolaridade 1 (até a 4a. série do ensino fundamental) e o
cial, a geolingüística, sem deixar de lado o caráter prioritário da varia- de escolaridade 3 (universitária) — distinguem-se pelo desempenho
ção diatópica, que a distingue essencialmente dos estudos de natureza lingüístico que apresentam, o que parece relacionar-se com o modo
sociolingüística, tem incorporado outros parâmetros como o diastrático, pelo qual se encontram inseridos no mercado ocupacional, conforme
o diageracional, o diassexual (ou diagenérico) e o diafásico. O desen- quadros a seguir:
volvimento dos estudos geolingüísticos vem mostrando não só a im-
portância da inclusão desses outros parâmetros, como também as
inter-relações entre eles, de tal modo que, freqüentemente, uma varia-
ção diatópica ou diageracional é vista como diastrática pelos falantes
de outras áreas ou de outro grupo e uma variação diastrática assume
feição diafásica no registro coloquial de indivíduos de alto grau de
escolaridade.
Abordamos, nesta comunicação, a variação diafásica, no nível
fônico, documentada em inquéritos experimentais realizados dentro
dos princípios metodológicos previstos para o Atlas Lingüístico do
Brasil (ALiB).
Para a depreensão da variação diafásica prevê-se, na metodologia
do AliB, o registro não só das respostas a questões previamente
elaboradas, nos questionários destinados à apuração das variantes
fônicas (QFF), semântico-lexicais (QSL) ou morfológicas (QMS), que
se apresentam em um tipo de diálogo assimétrico e que ocupam a
maior parte da interação informante/documentador1, mas também o
de outros tipos de discurso. Esses outros tipos são: (a) o discurso
livre do informante, em elocuções mais descontraídas e mais coloqui-
ais, sobre um momento marcante de sua vida, a sua avaliação a respei-
to da atuação política de um governante, a descrição do seu próprio
trabalho ou o relato de um fato de seu conhecimento, temas que lhes
são sugeridos já ao final do inquérito, quando a tensão ou a desconfi-
ança iniciais desapareceram e, em geral, estabeleceu-se uma interação
mais próxima da situação normal de fala; (b) a descrição de gravuras
que são apresentadas no Questionário Morfossintático para o regis-
tro de formas plurais que apresentem variações importantes; e c) a
leitura de um texto, ao final do inquérito.
Embora restritos a fatos de natureza fônica ou morfossintática, Destacam-se, no 1º grupo, principalmente os informantes 11
esses diferentes tipos de registro podem fornecer elementos impor- (que exerce, na UFBA, a função de cozinheira e professa a religião
tantes para análise da variação diafásica, conforme tem sido observa- evangélica) e 12 (que, apesar de não haver concluído a 5a. série do
do nos inquéritos experimentais que vêm sendo realizados por diver- ensino fundamental, foi casado com uma pessoa de nível universitá-
sas equipes integrantes do Projeto ALiB, com o objetivo de formar rio, com quem trabalhou durante muito tempo).
inquiridores, testar a metodologia de recolha de dados e aperfeiçoar o No grupo 2, as universitárias identificadas como informantes
próprio questionário. 13 (dentista) e 17 (doutoranda) distinguem-se das que se identificam
Selecionamos para essa comunicação doze inquéritos experi- como 09 e 10, a primeira já fora do mercado ocupacional e a segunda,
mentais realizados na Bahia, em 1999 e em 2000: oito a informantes trabalhando como professora primária, em colégios públicos. Na fala
que cursaram até a 4a. série do ensino fundamental — quatro em
Salvador e quatro em Santo Amaro — e quatro a informantes
soteropolitanos, de nível universitário2. Esses informantes, de acordo 1
Cf. AGUILERA, Vanderci, ARAGÃO, Maria do Socorro, CARDOSO,
com a metodologia do ALiB, distribuem-se pelos dois gêneros e pelas Suzana, MOTA, Jacyra, KOCH, Walter, ZÁGARI, Mário Roberto. Atlas
duas faixas etárias — a primeira, de 18 a 30 anos — e a segunda, de 50 Lingüístico do Brasil – Questionários. Londrina, UEL, 1998.
a 65 anos. 2
Os inquéritos foram realizados, com nossa orientação, pelas estudantes
Apesar de terem o mesmo grau de escolaridade formal, obser- bolsistas de IC-UFBA: Letícia Magalhães, Lair Farias de Aragão e Sira de
va-se que alguns informantes de cada um dos dois grupos considera- Souza Borges.

114 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


das duas informantes (13 e 17) que exercem atividades profissionais apenas essa variante em muito, prefeito, peito, direito e em outro (ao
que requerem mais a utilização de uma norma considerada padrão, não informante masculino de faixa etária 1) a única ocorrência, no grupo de
se encontram os casos de variação aqui analisados. inquéritos analisado, da sonora [ dZ], em [ÈdodZU ], como res-
Para a depreensão de variantes diafásicas, destacamos algumas posta à pergunta 138 do QFF (doido).
questões do QFF e confrontamos as respostas aí obtidas com ocor- A variante palatalizada não se documenta nos quatro inquéri-
rências do mesmo vocábulo ou do mesmo fato fônico, registradas em tos a informantes de nível universitário, o que não nos autoriza a
elocução espontânea, no discurso livre, ou a propósito de outras ques- concluir pela ausência da variante em informantes com esse grau de
tões do questionário, no decorrer do inquérito. escolaridade, principalmente porque ela se encontra em alguns dos
Foram analisadas as questões do QFF que buscam apurar a inquéritos do Projeto de Estudo da Norma Lingüística Urbana Culta
variação entre: (a) realizações palatalizadas africadas ([tS, dZ]) e rea- (NURC) e pode ser ouvida, ocasionalmente, em Salvador, em infor-
lizações oclusivas dento-alveolares ([t, d]), depois de semivogal pala- mantes mais velhos.
tal, nas formas: muito, prefeito, peito, doido; (b) realizações alveolares
ou palatais ([s, z, S, Z]) e realizações laríngeas ([ú]), em coda silábica, 2. [ s, z, S,Z ] ~ [ h, ú ]
na forma mesmo, -a; (c) presença ou ausência da oclusiva dento-
alveolar sonora ([nd] ~ [n]), nas formas gerundivas remando, ferven- A realização laríngea das fricativas não labiais, em coda silábi-
do, sorrindo.
ca, freqüente no vocábulo mesmo, é também documentada em outros
vocábulos como desvio (perg. 15), desmaio (perg. 53), pescoço (perg.
1. [ tS, dZ ] ~ [ t, d ]
37), fósforo (perg.93).
Confrontando as respostas monovocabulares ao QFF com ocor-
As variantes palatalizadas ([tS, dZ]) que ocorrem em alternância
rências encontradas durante o diálogo entre informante e documentador
com as dento-alveolares ([t, d]), em formas como muito, prefeito,
peito, doido são as chamadas “africadas baianas”, embora não se res- a propósito de outras questões, observamos que:
trinjam a essa área e se estendam por todo o Nordeste. Além do Nos inquéritos a dois informantes que cursaram até a 4a. série
caráter diatópico, essas variantes, podem ser vistas também como do fundamental — a informante feminina de Santo Amaro, já referida
características de estratos pouco escolarizados, sendo estigmatizadas (inf. 25) e um informante masculino de faixa etária 2, de Salvador (inf.
pela norma considerada padrão, e, em Salvador, como diageracionais, 07) — e a duas informantes de nível universitário, uma de faixa etária
mais freqüentes em falantes mais idosos. 1 (inf.10) e outra de faixa 2 (inf.09), ocorre a realização [ÈmezmŒ]
A consciência de alguns falantes quanto ao caráter estrático da como resposta à questão 156 do QFF, registrando-se variantes com
variação e, conseqüentemente, a utilização de outra variante, pode ser laríngea ([ú]) em outros trechos dos inquéritos, como nos exemplos:
flagrada nos inquéritos analisados, nas respostas às questões do QFF, “O terreno que é mais ruim é porque não dá [ÈmeúmU]” (QMS,
fato que confere a essa variação um caráter diafásico. 22, inf. 07)
Desse modo, quando diretamente perguntada pelo “contrário “Ficamos em casa [ Èmeúmu ]” (QMS, 34); “Eu [ Èmehmu ]
de pouco” (QFF, perg. 77), uma das informantes femininas de Salva- fui atropelada na porta” (QMS, 39, inf. 25)
dor, de faixa etária 2 (60 anos), com escolaridade até a 3a. série do “... até o horário [Èmeúmu ]” (QMS, 41, inf. 09)
ensino fundamental (informante 11), utilizou a variante [Èmu)jt ) U], “Era uma amizade bem social [È meú mu]” (Discurso
mas, no decorrer do inquérito, emitiu com freqüência a outra variante, semidirigido, inf. 10)
como no trecho em que explica a diferença entre dois terrenos, a A variante laríngea também se encontra, em distribuição
propósito da pergunta 22 do QMS, que visa a apurar a variação mais intervocálica, podendo alternar com as fricativas sonoras alveolar
bom / melhor, mais ruim / pior. ([ z ]), em formas como casa, fazenda, palatal ([Z]) em gente, e labial
“A diferença é que o de cá tem [Èmu)tSŒ] argila, [Èmu)tSŒ ] ... ([ v ]), em cavalo. Nas perguntas do QFF, especificamente dirigidas à
aí não há condições da... das fruta podê saí, que só... só é pedra, num... apuração dessa variante (casa, fazenda, cavalo), isso não se verifica,
num é terreno assim... bem úmido, pras que as fruta venham... ve- registrando-se ca[z]a, fa[z]enda, ca[v]alo, em resposta às questões
nham....” 01, 42 e 53, respectivamente. No entanto, no decorrer dos inquéritos
Também a informante feminina de faixa 2, de escolaridade até a
aos informantes masculinos, de escolaridade 1, de faixa 1, de Santo
2a. série do ensino fundamental (inf. 25), natural de Santo Amaro, que,
Amaro (inf. 22) e de faixa 2, de Salvador (inf. 12), assim como a uma
no QFF, emite [Èmu)jt ) U], tanto como resposta à questão 77 (muito)
informante de Salvador, de faixa 2, de escolaridade 3 (inf. 09), registra-
quanto à 79 (muito obrigada), utiliza com freqüência a variante africada
se a variante, em exemplos do tipo:
palatal [Èmu)tSU,Èmu)tSŒ], a propósito de outras perguntas do QSL
“Muita [Èhe) t SI] também fala: temporal retado que
e do QMS, como, por exemplo, nos trechos:
“Gancho é um prendedor [Èmu)tSU] ... que pouco se usa” (QSL, 99) [Èhe)j] ) ali” (QSL, 11, inf.22)
“Tem [Èmu)tSUÈzŒ)nUs] (QMS, 40). “[ aÈhe)tSIÈtaúŒ ] tudo conversando...” (QMS, 39, inf. 22)
“Não. Algumas assim... [È mu)tSU], besta, assim” (QMS, 42) “[lEhŒ)tU] cinco horas da manhã ” (QMS, 32, inf. 22)
E, alternando as duas variantes na mesma frase, na descrição “Antigamente, carnaval [ aÈhe)tSI] (...) [aÈZe)tSI] vi-
das festas de antigamente (QMS 41): nha andando...” (QMS, 41, inf. 09)
“Que a praça ficava [Èmu)j)tU], assim [Èmu)tSŒ] gente, “O brega ele num [ ÈtaúŒ sŒÈbe)nU]” (Discurso semidirigido,
[Èmu)tSŒStRŒ...ŒtRŒÈsŒ)w)]... inf. 12)
[Èmu)tSŒ] coisa, [Èmu)jt ) Œ,Èmu)jt ) Œ,Èmu)jt) Œ] briga,
[Èmu)tSŒ] violência”. 3. [ nd ] ~[ n ]
Chama a atenção a ocorrência da variante [Èmu)jt ) U], como
resposta à questão do QFF, em Santo Amaro, pelo fato de a variante A simplificação, por assimilação, do morfema identificador do
palatalizada ter sido a documentada com mais freqüência nessa locali- gerúndio é também geral no português coloquial, documentando-se
dade, em três dos quatro informantes ali registrados, encontrando-se, com freqüência, mesmo em falantes de escolaridade alta, como varia-
em um dos inquéritos (ao informante masculino de faixa etária 2) ção diafásica, em elocuções espontâneas, emitidas rapidamente.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 115


Nos inquéritos experimentais analisados, é interessante obser- Considerações finais
var que, nas perguntas especificamente dirigidas à obtenção do fato,
os informantes utilizaram a variante com / d / (remando, fervendo, A ocorrência de variantes diafásicas, documentadas em diferen-
sorrindo), enquanto as variantes simplificadas ocorreram com muita tes tipos de discurso mostra-nos a consciência do falante, que adapta
freqüência a respeito de outras perguntas e, principalmente, nos dis- o seu desempenho à situação imediata do ato de fala, mostrando a sua
cursos semidirigidos, excetuando-se apenas dois dos inquéritos com multidialetalidade, independentemente de seu grau de escolarização.
informante de nível universitário, onde não se documenta essa varia- Um outro ponto a ser considerado, na metodologia de trabalhos
ção (a informante feminina de faixa etária 1, doutoranda, e a de faixa 2, que requerem o levantamento de dados empíricos, é o controle rigoro-
dentista). so dos dados dos indivíduos que fornecem as amostras de fala —
Exemplificam o fato as ocorrências de trabalhano, cozinhano naturalidade, profissão, ocupação, atividades religiosas, contato com
(inf. 25), ameaçano, bebeno, gritano, desceno, esperano, apanhano, os meios de comunicação, etc. — de modo a que se possa analisar do
sabeno, correno, etc. (inf. 12), andano, ganhano, cresceno (inf. 09)
ponto de vista sociolingüístico a variação encontrada.
nos trechos:
“Então aí o comércio vai [ k R E È s e ) n U ], o povo vai Também pode-se discutir a classificação de certas variantes
[ gŒ)jÈ) Œ)nU] mais dinheiro, tudo isso... (... ). Nessa época eu mora- como estráticas e, conseqüentemente, os limites entre o diastrático e o
va no Barbalho, ia... can... só ia [ ŒÈ)dŒ)nU] e voltava [ŒÈ)dŒ)nU] pra diafásico. Variantes como me[ h ]mo, fazeno, etc., como vimos, po-
escola, de noite, numa boa, né?” (Discurso semidirigido, inf. 09). dem caracterizar, pela freqüência com que ocorrem, um determinado
“Aí, eu vinha [ dEÈse)nU ] com o cigarro (...), maior farra! Aí, estrato, mas se distribuem por todos os estratos sócio-culturais, em
quando eu chego na esquina, tá meu pai, assim, [ISpERȌ)nU], né? situações de fala descontraída.
Aí, a primeira coisa que ele fez foi me dar uma tapa na cara pra eu Por outro lado, ressalta-se a importância de utilização de tipos
engoli cigarro e tudo.(...). Na frente de todo mundo e vim [ Œ0pŒ)jÈ)Œn
) U] diversos de questionário em pesquisas geolingüísticas, uma vez que a
lá de cima até em casa”. (Discurso semidirigido, inf. 12). interrogação especificamente dirigida para a obtenção de determinado
Além dos fatos analisados, outros podem ser vistos como exem-
fenômeno lingüístico faz aflorar, às vezes, variantes não utilizadas no
plos de variação diafásica, tanto no nível fônico quanto no
cotidiano ou utilizadas com menor freqüência em elocuções informais,
morfossintático. Entre esses últimos, podemos citar: (a) a ausência
do morfema de plural em alguns dos constituintes do sintagma no- espontâneas.
minal, como em “caíam assim com as perna aberta, voando, pareci- Vale também ressaltar o fator “velocidade de fala”, ainda pouco
am uns bonequinho (...) minhas perna não respondiam mais... os estudado, embora de grande importância para a realização de algumas
carro”, ouvido à informante de nível universitário de faixa 2 (inf. 09), variantes.
no relato de um desastre que ela havia presenciado; (b) a ocorrência E, por fim, observamos, mais uma vez, que os inquéritos expe-
flexionada do determinante menos, documentada à informante de rimentais, além de representarem um procedimento metodológico
nível universitário de faixa etária 1 (inf.10), ao descrever as festas de importante para o aperfeiçoamento dos instrumentos a serem utiliza-
antigamente (QMS, 41): “uma coisa com menas vontade de vender a dos na recolha dos dados para o ALiB e para a formação de inquiridores,
imagem”, embora, essa mesma informante, tenha emitido a forma têm fornecido alguns elementos para o levantamento de variantes
sem flexão, quando solicitada a comparar a força de dois indivíduos
lingüísticas no português do Brasil.
na questão 32 do QMS.

116 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A variação diastrática do Português do Nordeste
Maria do Socorro Silva de Aragão
Universidade Federal do Ceará

Abstract: The Linguistic Atlas of Brazil - ALIB Project, now at the beginning , intends to show that dialectology today is not merely geolinguistics,
as it was considered until a few years ago, studying only the regional or diatopics variations, that produce only monodimentional, monostratics,
monogeracional and monofasics results, as ELIZAINCIN and THUN (1992: 128-9) say, but also studies the social and stylistics causes that
determine the regional variations.
In this work, we will analyze some aspects the diastratics or sociocultural variations concerning school level and register found in the experimental
inquiries done in two states in the northeastern region of Brazil, Paraíba and Ceará.
Palavras-Chave: Dialetologia, Geolingüística, Variação social

Introdução
A pesquisa para a elaboração do Atlas Lingüístico do Brasil - social group in a different area than to people from a
AliB, seguindo as orientações das pesquisas dialetais e different social group in the same area.3
sociolingüísticas atuais, está levando em consideração não apenas os Para Chambers e Trudgill (1980:54) não pode haver dialeto
aspectos diatópicos ou regionais, mas, ao mesmo tempo, os aspec- social sem o regional pois todos os falantes têm uma background social
tos diastráticos, diafásicos, diageracionais, diassexuais e diacrônicos, mas têm, também, uma localização regional. Em suas palavras:
abrangendo, deste modo, a realidade lingüística e extra-lingüística do All dialects are both regional and social, since all
falante da Língua Portuguesa. speakers have a social background as well as a regi-
Esta Mesa-Redonda pretende mostrar que a Dialetologia atual onal location.4
não é uma mera Geolingüística, como se considerava até alguns anos Se tomarmos a definição de variável lingüística dada por Calvet
atrás, com o estudo, somente, das variações regionais ou diatópicas, (1997: 76) teremos que ela ocorre quando:
que produzia apenas resultados monodimensionais, monostráticos, ...deux formes différentes permettent de dire ‘la même
monogeracionais e monofásicos, no dizer de ELIZAINCÍN e THUN chose’, c’est-à-dire lorsque deux signifiants ont lê
(1992: 128-9), mas que estuda, também, as causas sociais e estilísticas même signifié [...] mais lê probléme est alors de savoir
que determinam as variações regionais, pois: à quelle fontion correspondent ces différentes formes.
“... el Atlas lingüístico tiene la obrigación y es además Et c’est là que commencent lês difficultés...5
capaz de dar uma imagen de la multidimensionalidad y Assim, a forma não terá tanta importância, mas, sim, a função
de las interrelaciones de los fenómenos variacionales”1 que ela possa exercer, quer lingüística quer socialmente. Esta é uma das
O corpus do AliB, constituído por informantes que têm as grande funções da sociolingüística: analisar o tipo de correlação entre as
mesmas características socioculturais de idade, sexo, profissão, esco- variantes lingüísticas e as categorias sociais dos grupos sociais em ob-
laridade, além de diferentes registros de fala para todo o país, confere servação. Mas, como afirma Calvet (1993: 81):
uma grande uniformidade ao material com o qual trabalharemos. ... cette distiction et fragile, car lês attitudes et les
Neste trabalho analisaremos alguns aspectos da variação sentiments linguistiques font que des caractéristiques
diastrática ou sociocultural no que diz respeito ao nível de escolarida- regionales peuvent être perçues socialement.6
de e ao registro, detectados nos inquéritos experimentais realizados Porém é importante que possamos fazer a distinção entre a
em dois estados da região nordestina do Brasil, Paraíba e Ceará, ao chamada variação intra-lingüística: a que se manifesta no uso e nas
mesmo tempo que minhas colegas falarão sobre os demais tipos de estruturas de um mesmo sistema e a variação inter-lingüística: a que
variação encontrados nos inquéritos experimentais do AliB em outras existe entre os próprios sistemas. Garmadi (1981: 26).
regiões do país. Em vez de falar em atitude lingüística, como Calvet, Garmadi
prefere falar em “afetação funcional”, ou seja, como as atitudes lin-
1. Variação diatópica e variação diastrática - considera- güísticas e os julgamentos de valores que a elas são associadas, afetam
ções teóricas o funcionamento da língua. O autor diz, também, que:
Para analisarmos a variação diastrática, no âmbito da dialetologia Il serai donc scientifiquement utile de pouvoir disposer
e da geolingüística, é necessário que se defina, rigidamente, ambos os d’une terminologie permettant de dissocier la varieté
campos de atuação. Assim, a definição de Wardhaugh (1992:46) nos lingusitique de son affectation fonctionelle et dês jugements
parece clara: de valeur qui sont attachés à celle-ci.7
Whereas regional dialects are geographically based, so- Sobre o caso da função, Sankoff acha que forma e função estão
cial dialects originate among social groups and depend sempre em distribuição complementar e que o problema é o conceito
on a variety of factors, the principal ones apparently
being social class, religion, and ethnicity.2
Mas, ao analisarmos o problema da variação regional em rela-
1
THUN, H. et al. El atlas lingüístico diatópico y diastrático del Uruguay.
Presentación de un proyeto. Iberoromânia, 3. Tübingen: 26-62, 1989,
ção à variação social, muitos problemas e muitas dúvidas surgem
p.28.
quanto aos limites de cada tipo de variação. Onde termina uma e onde 2
WARDHAUGH, R. An introduction to sociolinguistics. Oxford/Cambridge:
começa a outra. Qual a prevalência de uma sobre a outra, são questões Blackwell, 1992, p. 46.
que surgem aos primeiros estudos. 3
HUDSON, R.A. Sociolinguistics. Cambridge: Cambridge University Press,
Hudson (1980:43) diz que os dialetólogos falam de dialeto 1980, p. 43.
social ou socioleto para se referir às diferenças que não sejam regio- 4
CHAMBERS, J. K. et TRUDGILL, A. Dialectology. Cambridge: Cambridge
nais. Acrescentando que: University Press, 1980, p. 54.
Because of these factors, a speaker may show more
5
CALVET,L-J. La sociolinguistique. Paris: PUF, 1993, p.76.
6
CALVET,L - J. op. cit p. 81.
similarity in his language to people from the same 7
GARMADI,J. La sociolinguistique. Paris: PUF, 1981, p. 29.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 117


de função e ram, como primeira forma e como forma padrão ou “mais correta”
... no el hecho de que las formas alternas compitan Arco-íris- Estrela cadente - Orvalho ou Sereno - Tempestade - Souti-
em desempeñar una función.8 en - Útero - Rótula e Sovina.
Para ele, mesmo os falantes cultos usariam as formas conside- Indagados sobre outros nomes para esses termos, utilizaram arco-
radas populares ou “incultas” dependendo do contexto e da situação celeste / arco-da-aliança, para arco-íris; estrela d’alva e sete estrelas,
de uso. para estrela cadente; neve, para orvalho; chuva de pedra e chuva gros-
Ao tratar das relações entre dialetologia e sociolingüística e, conse- sa, para tempestade; bolacha do joelho e cabeça do joelho, para rótula;
qüentemente, de variação diatópica e diastrática, Morales (1993:31-32) amarrado, unha de fome, somítico, para sovina. Não conhecem, ou não
diz que a sociolingüística deve preocupar-se em como duas possibilida- quiseram falar, outras formas, para soutien e útero.
des de realização, não marcadas socialmente pela dialetologia, entram em Os informantes do interior e com escolaridade de primeiro
competição no momento em que uma delas começa a converter-se em grau, apresentaram, como primeira forma conhecida: Arco-íris; Es-
símbolo de status. Diz ele que: trela d’alva; Sereno, Tempestade(a); Soutien; Mãe do corpo, para
Lo que las reglas sociolingüísticas describen se expli- útero; Bolacha do joelho, para rótula, sovina(o), para sovina. Ou-
ca mediante el análisis de las actitudes hacia ambos tras formas conhecidas foram: arco-celeste /arco-da-aliança; arco-
fenómenos, de las creencias que las fundamentan y de da-velha, para arco-íris; planeta, rabisca, zelação, estrela mariana,
otros aspectos más - el grado de consciencia lingüís- para estrela cadente; neve, garoa, neblina, molhação da noite, para
tica, por ejemplo - que redondean nuestro orvalho; dilúvio, chuva passageira, chuva pesada, chuva braba;
conocimiento de la presión social sobre el dialecto.9 para tempestade; califom / porta seio, para soutien; ventre da mãe /
Ao analisar as variantes lexicais, objeto deste trabalho, alguns dona do corpo, para útero; bolacha, patinho, rodinha do joelho,
autores consideram que, dentre as variantes lingüísticas, esta é a mais para rótula; amarrado, morto a fome, tacanha resina, para sovina.
complexa uma vez que envolve problemas semânticos de difícil deter- Resumindo:
minação. Sankoff (1972:93) diz que: 3. Considerações finais
... fenômenos como la sinonímia, los significados Apesar da amostragem ser pequena e poder ser total ou parci-
sobrepuestos, la especificidad versus la generalidad o almente confirmada ou refutada, pode-se tirar alguns indícios de vari-
referentes que son marginales o están en la frontera de ação diastrática, relacionados principalmente à marca de escolaridade
dos dominios semánticos pueden todos llevar a
consideraciones probabilisticas del lexicón.10
Numa primeira análise das variantes léxicas, do ponto de vista
diastrático, de inquéritos experimentais da pesquisa Atlas Lingüístico
do Brasil - Projeto AliB, percebe-se a importância das questões de
registro e de atitude lingüística de informantes de nível de escolaridade
mais alto, que escolhem ou privilegiam formas consideradas cultas ou
do registro padrão da linguagem, embora conhecendo algumas das
variantes léxicas utilizadas por informantes de baixa escolaridade.
Ao estudarmos o registro, definido por Wardhaugh (1992:49)
como
...sets of vocabulary items associated with discrete
occupational or social groups,11
percebemos que o registro é independente do dialeto (ou forma regio-
nal), estando intimamente ligado à categoria sócio-cultural do falante.
Ou seja, no caso de nossos informantes, o que está marcado é o
registro culto, padrão, relacionado ao seu status social e não a marca
da região onde eles nasceram e vivem.

2. A variação diastrática no Corpus analisado


O corpus por nós analisado faz parte dos inquéritos experi-
mentais da pesquisa do Atlas Lingüístico do Brasil, Projeto AliB, em
fase inicial de realização. Utilizamos, para este trabalho, uma
amostragem com quatro informantes assim caracterizados:
1. Faixa etária ( 22, 24, 47 e 52 anos)
2. Grau de escolaridade ( 4a série do 1º grau e curso superior)
3. Local de nascimento (João Pessoa e Campina Grande, na Paraíba;
Fortaleza e Limoeiro do Norte, no Ceará)
4. Sexo (masculino e feminino)
Nossa análise levou em conta a variação lexical referente aos
itens: Arco-íris, estrela cadente, orvalho, tempestade, soutien, útero,
rótula e sovina.
Apesar de todos os informantes conhecerem as formas base,
por nós investigadas: arco-íris, estrela cadente, orvalho, tempestade, 8
SANKOFF, G. et THIBAUT, 1981; SANKOFF, G. 1982,apud. MORALES,
soutien, útero, rótula e sovina, o uso das mesmas, como primeira H.L. Sociolingüística. Madrid: Gredos, 1993, p. 101
forma apresentada, variou entre os informantes das capitais e do inte- 9
MORALES, H.L. op. cit. p.31-32.
rior e entre os informantes com nível superior de escolaridade e os que 10
SANKOFF, G. apud MORALES, H.L. op. cit. p. 105.
têm até a quarta série do primeiro grau.
11
WARDHAUGH, R. An introduction to sociolinguistics. Oxford / Cambridge:
Assim, os informantes das capitais e com nível superior usa- Blackwell, 1992, p.49.

118 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


e de registro e não de localidade - capital x interior, que poderia confi- York: St. Martin’s Press, 1997.
gurar uma variação regional. GARMADI, J. La sociolinguistique. Paris: PUF, 1981.
Viu-se, também, que a atitude lingüística do informante, esco- HUDSON, R. A. Sociolinguistics. Cambridge: Cambridge University
lhendo as formas consideradas padrão ou “mais correta”, confirma o Press, 1980.
que Garmadi e Calvet afirmaram sobre a função ou “afetação funcional” MARCELLESI, J. P. et GARDIN, B. Introduction à la
e os julgamentos de valores que podem marcar a variação lingüística e, sociolinguistique - la linguistique sociale. Paris: Larousse, 1974.
mais especificamente, a variação diastrática ou social. MONTEIRO, J. L. Para compreender Labov. Petrópolis: Vozes,
2000.
MORALES, H. L. Sociolingüística. Madrid: Gredos, 1993.
4. Referências bibliográficas SANKOFF, G. Language use in multilingual societies: some alternative
approaches. In: Pride and Holmes, 1972.
CALVET, Louis-Jean. La sociolinguistique. Paris: PUF, 1993. THUN, Harald et al. El atlas lingüístico diatópico y diastrático del
CARDOSO, Suzana A. M. Atlas lingüístico do Brasil - ALiB - Pro- Uruguay (ADDU) Presentación de un proyeto. Iberoromânia, 3.
jeto. Salvador: UFBA, 1998. Tübingen: 26-62, 1989.
CHAMBERS, J. K. et TRUDGILL, P. Dialectology. Cambridge: WARDHAUGH, R. An introduction to sociolinguistics. Oxford /
Cambridge University Press, 1980. Cambridge: Blackwell, 1992.
COUPLAND, N. et JAWORSKY, A. Sociolinguistics - a reader. New

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 119


A variação diagenérica no Português do Brasil: uma
visão a partir de inquéritos experimentais do projeto ALIB
Suzana Alice Marcelino Cardoso
Universidade Federal da Bahia

PALAVRAS-CHAVE: Geolingüística. Português Brasileiro. Variação. Gênero.


RÉSUMÉ: À partir d’une brève réflexion sur les variables qui doivent intéresser, actuellement, à la réalisation d’un atlas linguistique, on traite les
aspects du genre et ses rapports avec la diversité des usages de la langue en analysant, de forme préliminaire, les résultats ébauchés par les enquêtes
expérimentales du projet ALiB.

Introdução dimensão social mas também política à vida nacional a qual, por certo,
Trato, nesta comunicação, de aspectos da variação do português se faz acompanhar de mudanças lingüísticas, cuja extensão ainda não
brasileiro, observando, especificamente, a relação entre fenômenos pôde ser plenamente avaliada.
lingüísticos e a variável gênero. Com esse entendimento, examino um conjunto de inquéritos
À guisa de introdução, mister se faz assinalar que a preocupação experimentais, descritos e identificados mais adiante, com vistas à ob-
com fatores sociais na pesquisa dialetal não se constitui em novidade do servação da variável gênero.
mundo contemporâneo, mas já foi objeto de consideração nos primórdios
da Dialectologia como ramo de estudo sistemático da variação lingüísti- O projeto ALIB e a variável gênero
ca. Fato ilustrativo está na atitude assumida por Millardet e pelo Abbé A metodologia do Projeto ALiB, como tem sido divulgado em
Rousselot, para me ater a duas citações exemplificativas (CARDOSO, diferentes momentos, contempla, para o estabelecimento da escolha
2000). O primeiro elege informantes jovens e informantes mais velhos de informantes, além do controle da variação diatópica, o referente a
do que advém a vantagem de, como afirma, saisir sur le vif, dans le variáveis sociais, sobre o que se debruça esta mesa-redonda. Dessa
même pays et la même famille, différentes étapes d’une transformation forma, passo a tratar da variável de gênero na tentativa de que,
linguistique (Apud POP, 1950, p. 325). O segundo considera o conhe- descrevendo fatos e fenômenos, venha a obter uma visão, ainda que
cimento da idade dos informantes indispensável, a fim de permitir com- preliminar e parcial, do comportamento dessa variável em dados
parar a fala dos mais jovens à dos mais velhos: geolingüísticos, colhidos, de forma experimental, para o atlas do
La connaissance de l’âge des sujets observés est Brasil.
indispensable afin de pouvoir comparer les divergences São tomadas para exame duas regiões, Bahia e Paraná. Da Bahia,
existant entre le parler des jeunes et celui des vieillards, et utilizo-me de 04 inquéritos realizados na cidade de Vitória da Conquista
déterminer leur point de départ (Apud POP, 1952, p. 43). e do Paraná, 04 inquéritos da cidade de Adrianópolis. Em cada uma das
cidades, examinam-se os resultados obtidos com dois informantes do
Também sobre a variação diastrática manifestou-se o Abbé
sexo masculino e dois do sexo feminino, todos eles com escolaridade
Rousselot, tomando, assim, uma outra variável sociolingüística para
que não ultrapassa a 4ª série do primeiro grau, como vem definido pela
consideração, levando-o, dessa forma e a propósito das diferentes mo-
metodologia do projeto. Dispomos, a essa altura, de inquéritos experi-
dalidades de uso da língua, a identificar entre os patois, celui du peuple
mentais feitos em Salvador e a informantes de nível universitário. A
et celui des messieurs, explicando, logo a seguir, que:
inexistência, porém, de inquéritos experimentais em outras capitais fez
Le patois des messieurs donne l’explication de certains anomalies com que a opção se fizesse pelo confronto entre dados de áreas do
qui se rencontrent dans le langage du peuple; il montre aussi de quel interior desses dois estados.
côté viennent les influences étrangères qui agissent sur le patois. Para estas considerações, foi tomada, sistematicamente, a variá-
Mais il n’est pas le patois du pays (Apud POP, 1950, p. 43). vel gênero, sendo as demais variáveis — idade e escolaridade — trazidas
A postura do Abbé Rousselot levou THUN a afirmar, recente- à cena sempre que necessárias à interpretação da variável selecionada.
mente (2000, p. 369), que C’est qui est encore plus remarquable, c’est Para efeito da descrição, os informantes numerados de 1 a 4 são da
que l’abbé ROUSSELOT esquisse un programme qu’on pourrait de bon Bahia e de 5 a 8, do Paraná, cabendo os dois primeiros números de cada
droit qualifier de “partiellement pluridimensionnel”(grifo nosso). série aos informantes masculinos e os dois últimos aos informantes
Reconhecendo, como o fazem CONTINI & TUAILLON femininos. Assim, os informantes 1, 2, 4 e 5 são masculinos e os de
(1996,7), que La dialectologie a pour tâche essentielle d’étudier la números 3, 4, 7 e 8, femininos.
variation géolinguistique, o Projeto ALiB, ao tempo em que prioriza o
registro da diversidade diatópica, leva em conta fatores sociais — idade, Aspectos fonéticos e variável gênero
gênero e grau de escolaridade —, adotando, assim, o controle de variá- Examino resultados obtidos com a aplicação experimental do ques-
veis sociolingüísticas que lhe vão imprimir um caráter pluridimensional. tionário fonético-fonológico (QFF) do projeto ALiB, nas duas cidades
Ao assumir essa posição metodológica de implicação social, mencionadas, servindo-me de levantamento geral feito por Mota1.
política e filosófica, o Projeto ALiB parte do princípio de que a realida- Os informantes são, para a Bahia, 2 homens de faixa etária I,
de do mundo contemporâneo e, conseqüentemente, do Brasil de hoje uma mulher de faixa etária 1 e outra de faixa etária 2; para o Paraná
apresenta-se bastante distinta do que se configurava há anos atrás. O são considerados 2 homens de faixa etária 2, uma mulher da faixa
novo perfil demográfico do País com o aumento de concentração da
população nos grandes centros urbanos, com o esvaziamento das áreas
rurais e com a intensa migração interna a que se pode acrescentar o papel 1
Jacyra Andrade Mota organizou dados de um conjunto de inquéritos
que vem desempenhando a mulher na construção da sociedade contem- experimentais, entre os quais se incluem os que são tomados para análise
porânea, seja pela sua inserção no mercado de trabalho seja pelo neste trabalho, produzindo um levantamento circunstanciado do qual
redimensionamento da sua atividade, tem trazido não só uma nova muito me beneficiei e pelo que registro os meus agradecimentos à colega.

120 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


etária 1 e outra da 2, perfazendo um total de 4 homens e 4 mulheres. Tabela 2 - Seqüências consonânticas oclusiva + lateral
Como não há possibilidade de comparação sistemática segundo a
faixa etária e tendo em vista que estão todos os informantes recobertos
pelo mesmo nível de escolaridade, desprezaram-se essas variáveis —
faixa etária e escolaridade —, considerando-se apenas a variável gêne-
ro.
O exame dos dados lingüísticos, originários da aplicação do ques-
tionário fonético-fonológico, está centrado em três aspectos: (i) no com-
portamento da vogal postônica não final, (ii) na realização das seqüên-
Os dados tabelados mostram que:(a) não há uma preferência de
cias consonânticas constituídas de oclusiva + líquida lateral e (iii) no
realização segundo o gênero, em nenhuma das áreas; (b) dos 9 itens
exame do comportamento das seqüências consonânticas constituídas
registrados no Paraná, apenas um deles e para um dos informantes se
por oclusiva + líquida vibrante.
realizou com a líquida lateral; ( ) na Bahia, há uma discreta predomi-
nância da realização com a líqüida lateral.
Vogal postônica não final
Seqüências consonânticas constituídas de oclusiva + líquida
Foram considerados 12 itens do questionário fonético-
vibrante
fonológico que contemplam o contexto em causa. Os resultados vêm
Os itens considerados apresentam as seqüências consonânticas /
apresentados na Tabela 1, na qual se assinalam com (+) os casos de
tr/, /dr/, /pr/ e /br/, cujas realizações se dão conforme se indica na Tabela
manutenção da realização da vogal postônica não-final, com (-), os
3 para a qual se acrescentam duas novas informações relativas ao trata-
casos de supressão e com (0), os casos de pergunta não respondida ou
mento da seqüência consonântica: (i) a presença da metátese que desfaz
não considerada por razões técnicas.
a seqüência, transformando a sílaba de CCV em CVC, assinalada com
um asterisco, e (ii) a realização africada palatal sonora que substitui a
Tabela 1 - Presença/ausência da vogal postônica não-final
seqüência cosonântica, indicada por dois asteriscos.

Tabela 3 - Realização de /tr/, /dr/, /pr/ e /br/


Os dados constantes da Tabela 3 mostram, por um lado, a
sistemática manutenção da realização desses grupos consonantais e,
por outro, revelam comportamento similar entre homens e mulheres.
Destacam-se, no conjunto, dois tipos de mudança, observadas, na
Bahia, e em itens específicos: (i) a metátese em BRAGUILHA à
barguilha e PRATELEIRA à parteleira, e a realização africada palatal
surda em COMADRE e COMPADRE que elimina a seqüência
cosonântica dr.
Para concluir
Os dados reunidos, como se vê do exame da tabela, mostram que:
Essa breve incursão nos dados de questionários experimentais,
(a) tanto na Bahia quanto no Paraná o índice maior de ocorrên-
direcionada para apurar o comportamento dos resultados no tocante à
cia está reservado para a presença da vogal postônica não-final uma
variável gênero, revelou que, pelo menos no campo da fonética-
vez que, das 48 possibilidades de ocorrência, apenas 15 documentam
fonologia, não afloram diferenças relevantes de uso entre homens e
o apagamento;
mulheres. É possível que a extensão do exame a outros níveis, como o
(b) dos 15 casos de apagamento, na Bahia, 6 pertencem aos
semântico-lexical, o morfossintático ou o pragmático-discursivo pos-
informantes masculinos e 9 às informantes do sexo feminino;
sa traçar um outro perfil dessa variável. Por agora, ficam essas consi-
(c) dos nove casos, na Bahia, anotadas às mulheres, 7 deles o
derações na esperança de que, em breve, se venha a dispor de dados
foram na informante da faixa etária 2;
ampliados que permitam conclusões abalizadas sobre o comportamente
(d) no Paraná, considerados os casos de não-resposta, que foram
da variável gênero no falante do português brasileiro.
numerosos (22 do total de 48 possibilidades previstas), registraram-se
apenas 6 casos de apagamento, dois dos quais nas informantes do sexo
feminino.
Fato a destacar-se diz respeito ao item FÓSFORO para o qual,
na Bahia, registrou-se o apagamento sistemático e no Paraná, em três
dos quatro informantes.
Não se configura com este item uma preferência de uso segundo
o gênero, não obstante merecer destaque o fato de a informante femi-
nina da faixa etária 2, na Bahia, exibir uma diferença, para mais, na
presença do apagamento da vogal.

Seqüências consonânticas constituídas de oclusiva + líquida


lateral
Foram considerados, como se mostra na Tabela 2, quatro itens
do questionário fonético-fonológico para os quais se assinala com (+)
quanto realizados com a líquida lateral, com (-), quando realizados com
a líquida vibrante e com (0) para os casos de ausência de resposta.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 121


linguistico do Brasil: questionários. Londrina: Ed. UEL.
Referências bibliográficas CONTINI, Michel; TUAILLON, G. (1996). Introduction. In: Atlas
Linguistique Roman. v. 1.
CARDOSO, Suzana Alice Marcelino (2000). Que dimensões outras, POP, Sever (1950). La Dialectologie. Aperçu historique et méthodes
que não a diatópica, interessam aos atlas lingüísticos? In: XXIIe. d’enquêtes linguistiques. Louvain: Chez l’Auteur.
CONGRÈS INTERNATIONAL DE LINGUISTIQUE ET DE THUN, Harald (2000). La géographie linguistique romane à la fin du
PHILOLOGIE ROMANES. Actes... v. 3. Vivacité et diversité de XXe. siècle. In: XXIIe. CONGRÈS INTERNATIONAL DE
la variation linguistique. Tübingen: Max Niemeyer Verlag, p. LINGUISTIQUE ET DE PHILOLOGIE ROMANES. Actes...
411-421. v. 3. Vivacité et diversité de la variation linguistique. Tübingen:
COMITÊ NACIONAL DO PROJETO ALiB (Brasil) (1998). Atlas Max Niemeyer Verlag, p. 367-389.

122 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


O papel do adulto letrado na aquisição da escrita
Lélia Erbolato Melo
Universidade de São Paulo - Departamento de Lingüística-FFLCH

RÉSUMÉ: L’ídée centrale concerne le rôle de l’adulte lettré et ses effets sur la construction de la connaissance du langage écrit par l’enfant.
L’objectif initial est de contraster ce rôle, dans la perspective piagétienne, avec celui de Vygotsky, et ensuite montrer que dans le modèle bakhtien
l’adulte occupe trois positions discursives.
PALAVRAS-CHAVE: adulto, criança, aquisição, escrita

Cada vez mais a literatura científica no âmbito da Psicolingüística, Dessa forma, estaríamos promovendo ao mesmo tempo a in-
da Etnografia da Comunicação, da Psicanálise vem se ocupando do serção dos sujeitos naquelas práticas letradas de sua cultura que fa-
estudo da aquisição da língua escrita por parte da criança pequena. Ao zem algum sentido dentro de suas atividades cotidianas de trabalho,
mesmo tempo, esta literatura demonstra que para algumas crianças o lazer, etc.
processo se inicia no momento da pré-escola, através de experiências Paralelamente, outra fonte de inspiração, respresentada pelos
significativas com a leitura e a escrita. trabalhos de F. François, no que concerne à influência bakhtiniana, e
Enfim, como Wallon, pensamos que as descobertas mais im- definição das categorias de análise, passou também a ter um papel
portantes se “fazem nas fronteiras”, isto é, na intersecção de várias importante nesta busca de caminhos, uma vez que se situam dentro de
disciplinas e abordagens científicas. Embora, nestes últimos anos, as uma perspectiva de linguagem em oposição a uma perspectiva lingüís-
pesquisas em psicolingüística tenham se multiplicado sobre o desen- tica stricto sensu.
volvimento da linguagem escrita, poderíamos dizer que há ainda muito Disto isto, passamos a levar em conta dois objetivos que con-
para ser feito, e que os próximos progressos serão provavelmente o sideramos como sendo relevantes e que precisam ser retomados e
fruto dos encontros desses especialistas. rediscutidos no estudo da aquisição da escrita:
Prosseguindo nesta linha de reflexão, verificamos numa pers- a) contrastar o “sujeito” em Ferreiro e Vygotsky;
pectiva psicolingüística, que a questão fundamental não seria mais b) descrever o papel do adulto letrado e seus efeitos na constru-
como ensinar a ler às crianças, o que supõe o problema resolvido, mas ção de conhecimento sobre a escrita pela criança pequena. Nesta em-
o que constitui problema às crianças quando aprendem a ler. O debate preitada, nos inspiraremos em Mayrink-Sabinson (1997 e 1998)
se desloca então do objeto-língua ao sujeito-aprendiz. Assim, parafra- * Quanto ao primeiro item, lembramos que o “sujeito”, em
seando os psicolingüistas, preferimos falar de “entrada na escrita”, e Ferreiro, é “o sujeito cognoscente, o sujeito que busca adquirir
não de “aprendizagem da leitura-escrita/escritura”. Neste sentido, a conhecimento, o sujeito que a teoria de Piaget nos ensinou a
entrada na escrita é um departamento da psicolingüística. descobrir (...) um sujeito que procura ativamente compreender
Ora, e lembrando Smolka (1993) para quem ‘não se ensina’ ou o mundo que o rodeia, e trata de resolver as interrogações que
‘não se aprende simplesmente a ler e escrever’, mas ‘aprende-se uma este mundo provoca. Não é um sujeito que espera que alguém
forma de linguagem, uma forma de interação...’, elegemos o diálogo que possui um conhecimento o transmita a ela (...) É um sujeito
como fio condutor de nossa pesquisa, realizada entre os anos 1997 e que aprende basicamente através de suas próprias ações so-
1998, no âmbito do Projeto de Cooperação Universitária USP/ bre os objetos do mundo, e que constrói suas próprias catego-
COFECUB (Brasil/França). rias de pensamento, ao mesmo tempo que organiza seu mun-
Foi precisamente, a necessidade de pensar e redimensionar a do”. (Ferreiro & Teberosky, 1989: 26)
visão da aquisição da escrita em termos de interação e interlocução que A partir deste fragmento, observamos que a autora privilegia o
nos fizeram buscar apoio em outras direções tendo em vista a análise conhecimento sobre o sujeito que constrói a linguagem e o desenvolvi-
que desejávamos fazer. mento das habilidades cognitivas que interagem nesse processo de
A partir dessa preocupação, as primeiras respostas para nos- construção. Este sujeito piagetiano não é um sujeito individual mas,
sas indagações começaram a ser encontradas na Teoria da Enunciação enquanto construto teórico, um sujeito idealizado, universal, que pas-
(Bakhtin) e nas abordagens interacionistas (ou na lingüística sa por etapas/estágios na construção do conhecimento. Por outro
interacionista). lado, embora o contexto esteja pressuposto, ele não é visto como
Por que justamente a adoção dessas perspectivas teóricas na con- constitutivo do processo de aquisição.. Ou melhor: segundo Mayrink-
sideração de questões aparentemente pedagógicas? A razão principal, Sabinson (1997: 39), seu eventual papel mediador não é teoricamente
sem dúvida, por vermos a leitura e a escrita, antes de mais nada, como explorado.
momentos discursivos. Já Vygotsky (1991: 33) afirma que: “Desde os primeiros dias do
A intenção, portanto, era mostrar que a ‘entrada da criança na desenvolvimento da criança, suas atividades adquirem um sig-
escrita’ não implica apenas a aprendizagem da escrita de letras, pala- nificado próprio num sistema de comportamento social e, sendo
vras e orações. Nem tampouco envolve apenas uma relação da criança dirigidas a objetivos definidos, são refratadas através do pris-
com a escrita. Ela vai muito além na medida em que implica, desde a ma do ambiente da criança. O caminho do objeto até a criança e
sua gênese, a construção do sentido e, mais profundamente, uma for- desta até o objeto passa através de outra pessoa.”
ma de interação com o outro. E, neste sentido, esta escrita precisa ser
permeada por um desejo e pressupõe um interlocutor, geralmente um Este autor atribui, portanto, um papel ao OUTRO: O papel do
adulto letrado. OUTRO, conforme Mayrink-Sabinson (ibid.), que consistiria
Surgiu, então, a idéia de recorrer, como alternativas de articula- em prover o que seria imitado, incorporado pela criança, num
ção de atividades e constituição da interdiscursividade, à “literatura momento de seu deenvolvimento e, mais tarde, internalizado,
infantil” e às “situações de narrativa”, sobretudo, em razão da dimen- por ela, transformado e modificado como novo conhecimento.
são lúdica e estética, suas marcas registradas.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 123


* Quanto ao segundo item, o papel do adulto letrado, nos que distinguem a tarefa de resolução de problemas e as atividades de
trabalhos sobre a aquisição da escrita de Ferreiro e colaboradores, na linguagem.
linha do construtivismo piagetiano, atribui-se ao adulto letrado um pa- Enquanto a tarefa a ser realizada está explícita, no caso da
pel de simples suporte, informante sobre a escrita. Quer dizer: o papel construção da pirâmide, o mesmo não ocorre necessariamente quando
do interlocutor, do OUTRO, que interage com a criança, é (apenas) se trata de uma narrativa (por exemplo). Não há um modelo de narra-
visto como um elemento a mais no contexto social em que a construção tiva mais aceitável do que outro. E também existem não somente
do conhecimento sobre o objeto se dá. Assim, o trabalho de construção vários meios lingüísticos para veicular uma mesma significação como
de conhecimentos sobre a escrita seria exclusivo da criança,a partir de também várias estratégias discursivas possíveis para contar um fato,
sua interação com o próprio objeto (escrita), desconsiderando-se, por- descrever uma figura, etc. E, ainda, no caso das atividades verbais, a
tanto, o fato de essa interação sujeito/escrita ser mediada por um sustentação do adulto pode se transformar em “contratutela”.
interlocutor (e sua linguagem). Como fecho, verificamos que é extremamente difícil definir o
O que observamos em Vygotsky, por outro lado, seria o seguin- que se entende por eficácia da tutela, e que as manifestações de recusa
te: embora admitindo que o social desempenha um papel no desenvol- ou resistência, ao contrário, poderiam indicar um ganho de autonomia.
vimento da criança, um papel que é enfatizado quando o autor propõe Assim, o “diálogo” que se estabelece em torno de uma história
as noções de mediação e zona de desenvolvimento proximal (isto é, lida ou contada por um adulto, de um desenho, ou mesmo numa
quando a criança aprende inicialmente em cooperação com outro, de- situação de narrativa, no cotidiano de uma criança, está sendo por
pois sozinha), esse OUTRO vygotskyano aparece como já pronto, nós considerado como fundamental no processo de elaboração, de
estabilizado, permanente. Para Mayrink-Sabinson (1997: 40-41) “pelo produção compartilhada de conhecimento. A título de ilustração, cita-
menos essa estabilidade e permanência é atribuída à linguagem, quan- mos três exemplos:
do o autor discorre sobre a formação de conceitos ao falar dos falsos
cognatos”. Vejamos então a seguinte passagem: “A linguagem do meio Situação 1: Repetição de uma história que acabou de ser contada (O
ambiente, com seus significados estáveis e permanentes, indica o “passarinho Rafa”, Regina Drummond)
caminho que as generalizações infantis seguirão. No entanto, cons- 1. A: olhe você se lembra como se chama a história?... o passarinho
trangido como se encontra, o pensamento da criança prosssegue por como era o nome dele?
esse caminho predeterminado, de maneira peculiar ao seu nível de 2. PR: ( passarinho )
desenvolvimento intelectual. O adulto não pode transmitir à criança o 3. A: Rafa... passarinho Rafa... essa é a Juliana essa é a Liliam...
seu modo de pensar. Ele apenas lhe apresenta o significado acabado como é a história?
de uma palavra, ao redor do qual a criança forma um complexo – 4. PR: num lembro
com todas as peculiaridades estruturais, funcionais e genéticas do 5. A: faz um esforço você vai virando as páginas do livro e vai con
pensamento por complexos, mesmo que o produto de seu pensamento tando... quer segurar o livro?... o que você faz quando você
seja de fato idêntico, em seu conteúdo, a uma generalização que pode- vem aqui na oficina... você pega um livro e lê?
ria ter-se formado através do pensamento conceitual”. (Vygotsky, 6. PR: só vejo
1987: 58-59) 7. A: só vê?... então vê o livro e me conta o que você vê... tá?
Concluímos, então, que, apesar de ser previsto um movimento da 8. PR: ( )
criança, o OUTRO que com ela interage e, nessa interação possibilita esse 9. A: que é?
movimento, não se movimenta, preso que está numa linguagem estável e 10. PR: ( num tá dando pra mim lê )
já constituída, ao contrário da perspectiva bakhtiniana, e parafraseando
Hudelot (mimeo), segundo a qual o adulto não só assume vários papéis Situação 2: Narrativa de uma história apresentada por uma suces-
mas aparece no processo de letramento emergente como um verdadeiro são de figuras
parceiro, que não somente escuta as proposições das crianças, mas em- 1. A: agora eu vou dá pra você umas figuras todas misturadas... tá?
presta sua própria colaboração para a elaboração discursiva, quando as- eu vou pedir pra você olhar todas as figuras arrumar e contar
sume três posições principais: uma, incitativa que exigiria uma atividade uma história. (“A chuva”, Eva Furnari)
verbal da criança, uma outra, compensatória que preencheria a eventual 2. PR: mas não é assim
ausência de reação e, enfim, uma terceira que avaliaria a verbalização da 3. A: então olhe... veja
criança em relação à atividade em andamento. 4. PR: eu já falei... a bola ( ) bola
Em seguida, e esmiuçando o quadro dessas três posições-chave ............................
da troca entre adulto e criança, abrimos parêntese para citar, com 5. A: agora eu vou dar uma folha... pra você
Bruner (1991: 277-279), os diferentes aspectos de tutela (ou andai- 6. PR: desenhá
me). Entre os pontos que o autor considera (num exemplo não- 7. A: desenhar pra você escrever... enfim...
lingüístico de uma tarefa de encaixe proposta a crianças pequenas), 8. PR: ai meu Deus... de novo isso
podemos levar em conta as modalidades de tutela: 9. A: e conta uma história...quê que você vai escrever?...quer contar
a) engajamento: apresentação da tarefa; uma história DEsse livro?
b) redução dos graus de liberdade (evitar as buscas em outras 10.PR: ah eu não sei desenhá nen...nenhum hipopótamo nenhum veio
direções, delimitar a tarefa, etc.); nenhum peixe nenhum moleque
c) manutenção da orientação contra as distrações, os desvios; 11. A: e o que é que você sabe desenhar?
d) sinalização das características determinantes, ou seja, de 12. PR: eu sei desenhá coisa diferente
indicações positivas; 13. A: então desenhe...o que você sabe
e) controle da frustração, por exemplo, sob forma de aprova
ções e encorajamentos; Situação 3: Narrativa do que você fez no domingo
f) demonstração: quando não se pode ajudar a fazer, faz-se no 1. An: ((risos)) escolhi o livro do Pica- Pau Amarelo
lugar... 2. A: ah escolheu o livro do Sítio do Pica-Pau Amarelo?
3. An: que tava ali
No entanto, no que diz respeito à “interação com tutela”, é 4 A: você vai levá pra casa ou você leu aqui na creche?
importante chamar a atenção para um certo número de características

124 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


5. An: vou levá pra casa vou levá pra casa Referências bibliográficas
6. A: quem é que vai ler pra você?
7. An: minha mãe BAKHTIN, M. (1992). Estética da criação verbal. Trad. de Maria
Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo, Martins Fontes.
* Considerações finais BRUNER, J. S. (1991). Le développement de l’enfant, savoir faire,
Sem a pretensão de ter chegado a conclusões sobre este tema, o savoir dire. Trad. de Michel Deleau. Paris, PUF.
trabalho em questão tem simplesmente o objetivo de contribuir de FERREIRO, E., GOMEZ-PALACIO, M. et alii (1988). Lire-écrire à
alguma forma para alimentar alguns pontos na discussão, sempre aberta, l’école. Comment s’y apprennent-il?. Trad. de BESSE, J.-M. et
sobre o papel do OUTRO (adulto letrado) na aquisição da escrita. Um alii. Lyon, CRDP.
papel que, para nós, pode ser visto como de “intérprete” na medida FERREIRO, E. & TEBEROSKY, A. (1989). Psicogênese da língua
em que introduz a criança pequena no movimento lingüístico-discursivo escrita. Trad. de Diana Myriam Lichtenstein. Porto Alegre, Ar-
da escrita. tes Médicas.
Como Scarpa (1987: 126-127), pudemos identificar uma continui- FRANÇOIS, F. (1996). Práticas do oral. Diálogo, jogo e variações das figuras
dade processual entre a aquisição e o desenvolvimento de linguagem oral do sentido. Trad. de Lélia Erbolato Melo. São Paulo, Pró-Fono.
e a aprendizagem da escrita. HUDELOT, Ch. (s/d) Échanges verbaux adulte-petit groupe d’enfants
Os fragmentos selecionados nos permitem verificar, por outro en crèche et en maternelle (mimeo).
lado, o que a criança diz da escrita quando ela se confronta ativamente, MAYRINK-SABINSON, M. L. T. (1997). O papel do interlocutor.
e o que ela faz para tentar ler-escrever antes de chegar a fazê-lo, ao In: ABAURRE, M. B. et alii. Cenas de aquisição da escrita: o
mesmo tempo que tentamos reconstituir o que a criança pensa deste trabalho do sujeito com o texto. Campinas, Mercado de Letras.
objeto e desta atividade. SCARPA, E.M. (1987). Aquisição de linguagem e aquisição da escri-
Enfim, constatamos ainda que a criança já exprime concepções ta: continuidade ou ruptura? Estudos lingüísticos, XIV Anais de
originais, que variam conforme as atividades propostas, e que estas, natu- Seminários do GEL. Campinas, SP, Unicamp/GEL: 118-128.
ralmente, evoluem com a idade. SMOLKA, A.L. B. (1993). A criança na fase inicial da escrita: a
Além disso, o que a criança diz nos esclarece também sobre o Alfabetização como processo discursivo. 5ª ed. São Paulo, Cortez;
que ela faz, quando procura interpretar a escrita que encontra ou a Ed. da UNICAMP.
escrita que produz. VYGOTSKY, L.S. (1987). Pensamento e linguagem. Trad. de Jeferson
Isto nos leva a pressupor que, antes mesmo de entrar na escola, Luiz Camargo. São Paulo, Martins Fontes.
a criança mantém relações complexas - e, muitas vezes, despercebidas ______. (1991). A formação social da mente. 4a ed. Trad. de José
- com a escrita que está presente em seu ambiente, mas que a escola, Cipolla Neto. São Paulo, Martins Fontes.
geralmente, tende a fazer “tabula rasa”.

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Produção de textos: maneiras de ver, maneiras de dizer...
Alba Maria Perfeito
Universidade Estadual de Londrina - UEL

ABSTRACT: This research debates, in linguistic terms, the social difference among children from different social classes concerning language uses.
It analyses what is common and individual among written narratives, produced by two subjects from different social groups, taking into consideration
the writing as secondary discoursive gender.
PALAVRAS-CHAVE: usos lingüísticos – escrita – classes sociais – diferenças.

Nessa exposição, partiremos do pressuposto de que não é tan- vamente, o que há de comum e de singular em narrativas escritas por
to a língua abstrata que pode distinguir as crianças de diferentes clas- dois alunos de 5ª série, de diferentes classes sociais (I., 10 anos, de
ses sociais, mas os modos diferentes da cultura de linguagem, classe média-alta, estudante de escola particular, imersa em um mun-
produzidos fundamentalmente pelos gêneros discursivos. François, do letrado e R., 12 anos, de classe social pobre, filho de pais com
(1996a), em seus estudos sobre narrativas orais de crianças, faz a primeiro grau incompleto, estudante de escola pública - único local
seguinte colocação: que poderia lhe possibilitar maior contato com a escrita).
“Se existem diferenças sociais entre crianças de classes sociais Para atingir o objetivo proposto, valemo-nos da categoria tex-
diferentes é mais, sem dúvida, no plano de tipos de uso de tos de criação, didaticamente formulada por Meserani (1995), ao
linguagem (...) Prescrevemos e proibimos, sem dúvida, a to- analisar como os gêneros discursivos circulam na escola. Esse tipo de
das as crianças. Há, certamente, crianças a quem damos ar- texto é caracterizado pelo novo, diferente, original, em que o aluno
gumentos, outras não. Há crianças que habituamos ao monó- articula o que ao como dizer.
logo, ao prazer da história contada e outras não. (op. cit. 120) Na realização dessa atividade, propusemos a I. e R. o relato de
Em nossa investigação, centrada na escrita, complementaremos experiências vividas, através do tema: um momento de grande feli-
a fala do autor, postulando que há sujeitos a quem foi dada, desde cidade.
tenra infância, a possibilidade de maior contato com textos escritos, Após interação inicial, os sujeitos construíram seus textos a
em suas diversas configurações, e à fala perpassada pela escrita, a partir de instruções de apoio, baseadas nos elementos da narrativa.
outras não. Puderam, também, elaborar as histórias, planejando-as, escrevendo a
Sem o objetivo de polemizar a respeito da classificação de gêne- lápis e lançando mão de reelaboração total ou de inserções, apagamen-
ros/tipos discursivos-textuais, procuraremos nos ater à proposição tos, substituições, etc.
bakhtiniana a esse respeito. Após afirmar a impossibilidade de definir Os textos elaborados foram os seguintes:
uma tipologia dos gêneros, Bakhtin (1992) propõe a diferença essen-
cial entre eles: a existência do gênero do discurso primário (do
cotidiano, mais simples, constituído em situações de comunicação
verbal espontânea, estabelecendo relação direta com a realidade exis-
tente e com a realidade dos outros) e a do gênero discursivo secun-
dário (que aparece em situação mais complexa e relativamente mais
“evoluída”, relacionado, sobretudo, à escrita).
Dessa forma, considerando a especificidade dos textos escritos
(a substituição da entonação e prosódia por sinais gráficos; a necessi-
dade de contextualização de elementos extra-lingüísticos; de maior
concisão temática e coesão entre as partes do texto, tendo o parágrafo
como marca de construção), tomaremos a escrita como um gênero
discursivo secundário, criadora de espaço para ampliação da subje-
tividade.
Assumiremos também a idéia de que aquilo que faz um gênero
funcionar – nesse caso narrativas escritas – é o fato de incorporar
outros gêneros a ele. Para François (1996b), tais subgêneros
discursivos, elementos não parafraseáveis e não diretamente cronoló-
gicos, mais ou menos equivalentes aos atos de fala, são relativos aos
pontos de vista produzidos pelo sujeito e responsáveis por tornar a
narrativa interessante. O mais interessante seriam as maneiras de
dizer - e não apenas aquilo que se diz. Isto porque, segundo o autor
(1996a), o problema não é ser contra ou a favor do estruturalismo,
mas saber o que se faz ao se analisar a estrutura de um texto ou de um
conjunto de textos. Tratar-se-ia, assim, de falar dos ingredientes antes Em sua produção, I. veicula o conteúdo da narrativa, ocupando
de se falar de como combiná-los. o lugar de filha, no mundo familiar de classe média alta, evocando,
Nesse sentido, procuraremos não perder de vista que os modos conforme tema proposto, lembranças de situações experimentadas,
de organização das histórias dizem respeito aos aspectos de narrando, por isso, em primeira pessoa.
heterogeneidade do sujeito, relativos aos lugares discursivos ocu- I., em seus movimentos textuais, encaixa com coesão os seguin-
pados e aos mundos em que o texto é produzido. tes subgêneros discursivos, concisamente, em quatro parágrafos:
Levando em consideração o exposto, analisaremos, comparati-

126 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


1º parágrafo 6º, 7º e 8º parágrafos
Elemento complicador da história (Minha mãe foi para a Euro- Resolução da história, através de sucessão de ações, devida-
pa (...) e eu fiquei com minha tia e minha vó...) / evocação de senti- mente circunstancializadas temporal e espacialmente (Aí então no
mentos (... eu fiquei triste...) / explicações/justificativas (... pois ela outro dia, minha irmã compreendeu e resolvel mudar para Londrina.
não me levou junto comigo, porque ela fez “renovação de Lua de / Daí então meu pai contratou um caminhão para levar a mudança. Ai
Mel...) / avaliação intensificada (... foi muito bom.). então no outro dia, meu pai mudou para Londrina...) / evocação de
sentimento, com nova circunstancialização temporal (...e nesse mo-
2º parágrafo mento eu fui muito feliz).
Acontecimento notável/circunstancialização espácio-temporal Observamos que R. seleciona e mobiliza vários subgêneros
(Quando minha mãe me aparece no aeroporto...) / evocação intensi- discursivos em oito parágrafos, no entanto, com pouca concisão. Para-
ficada de sentimentos (eu fiquei feliz, mas tão feliz...) / evocação carac- fraseando Tfouni (1998) diríamos que a coesão nos textos escritos pode
terizada, modalizada circunstancialização temporal de outro senti-
ser considerada como um aspecto importante quando se fala em auto-
mento (... uma saudade inexplicavelmente inexplicável era o que eu
ria. O sujeito em questão narrou um fato corriqueiro de maneira interes-
estava sentido naquele momento).
sante, porém, mais de acordo com os moldes do gênero discursivo
primário: repete elementos coesivos seqüenciais próprios da oralidade;
3º parágrafo
trunca o texto, ao repetir duas vezes o circunstancializador quando, no
Desfecho da história, através de sucessão de ações. (Chegamos
em casa, abrimos a mala e começou a fala, mais ou menos assim:...) primeiro parágrafo; comete equívoco lexical ao colocar a atitude da irmã
e uso de discurso direto-pergunta e respostas – com sobreposição de como pergunta ao qual o pai responde.
vozes (... isso é para quem? Pra mim né, claro que não, é pra mim.).
Considerações finais
4º parágrafo Os sujeitos pesquisados apresentam o texto com unidade de
Avaliação (Mas enfim foi o dia mais “delicioso” de minha sentido e certo grau de informalidade, pois trata-se de relatos de expe-
vida.). riências vividas – e entendemos que tanto fala e escrita abarcam um
continuum que vai do formal ao informal (Fávero et al., 1999). Am-
Ao observar o texto de I., podemos verificar que, no primeiro bos também recorrem a variados (e semelhantes) subgêneros
parágrafo do texto, ela faz uma avaliação (... foi muito bom...) que discursivos na construção de suas narrativas, relacionando os con-
contraria seu sentimento anterior por ter ficado (... e eu fiquei tris- teúdos de suas histórias aos lugares discursivos ocupados e mun-
te...). É a concessão feita a sua interlocutora, agora a tia, não a pesqui- dos nos quais elas ocorrem, tornando suas narrativas interessantes.
sadora. As singularidades textuais dizem respeito aos diferentes mo-
Utiliza-se, ainda de variados coesivos (por ex.: mas, pois, por- dos de cultura de linguagem em que se encontram inseridos. Embo-
que, enfim), misturando os subgêneros com precisão e, recorrendo a ra ambos demonstrem sentir-se à vontade na construção de textos
sinais gráficos (aspas), para querer enfatizar ou referir-se a expressões narrativos - levando-se em conta que o ato de contar é considerado
de uso comum. Demonstra uma escolha lexical criativa e própria do como característica psicológica humana -, I., imersa em um mundo
meio social em que vive. letrado, dentro e fora de casa, revela maior domínio de aspectos
R., assim como I., mobiliza seus conteúdos colocando a felici- específicos do texto escrito. R. mostra-se perpassado pelos gêneros
dade também no mundo familiar, e ocupando o lugar discursivo de discursivos primários, certamente, por não lhe ter sido oportunizado
filho, mas na realidade de criança pobre. mais freqüente contato com a prática social da leitura e escrita, como
Seu texto é segmentado em oito parágrafos, da seguinte forma: espaço para ampliação de sua subjetividade.
1º parágrafo
Referências bibliográficas
Acontecimento notável, circunstancialização temporal e espaci-
al (Quando eu morava em São Paulo com meus pais e quando eu
FÁVERO, Leonor Lopes et alii. Oralidade e escrita: perspectivas
cheguei em casa, meu pai estava pensando em mudar para Londri-
para o ensino de língua materna. São Paulo: Cortez, 1999.
na...) / evocação intensificada de sentimento, circunstancializada tem-
FRANÇOIS, Fredéric. Práticas do oral. Trad. de L.E. Meto. São
poralmente e intensificado (... naquela hora eu me senti muito feliz).
Paulo: Pró-Fono, 1996.
2º parágrafo ______. Anotações de aula do curso A linguagem e a análise adulto-
Conflito (A minha irmã... não gostou da idéia, de mudar para criança. São Paulo: FFLCH/USP, 6 a 21 de novembro, 1996.
Londrina.) / nomeação (... que se chama Fernanda...). MESERANI, Samir. O intertexto escolar: sobre leitura, aula e reda-
ção. São Paulo: Cortez, 1995.
3º parágrafo PERFEITO, Alba Maria. Leitura e produção de textos: maneiras de
Evocação, avaliada e intensificada de sentimento de outro com ver, maneiras de dizer... São Paulo: Tese (doutorado). Departa-
encaminhamento para o discurso direto (O meu pai muito aborrecido mento de Semiótica e Lingüística Geral do Departamento de
com esta pergunta respondeu:). Filofosia de Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, 1999.
4º parágrafo: TFOUNI, Leda Verdiani. A emergência da função poética nos textos
Discurso direto, com uso de interpelação direta, asserção, or- escritos produzidos por um adulto que aprendeu a ler e a escrever
dem (Você é minha filha e vai ter que ir comigo, querendo ou não.). na prisão. In: Revista da ANPOLL (5), jul/dez, 1998. p. 139-150.
5º parágrafo
Evocação de sentimento/circunstancialização temporal e restri-
ção (Naquele momento só eu era feliz)

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Produção de textos escritos: “a concepção
dos professores de 1ª grau”
Regina Maria Gregório
Universidade Estadual de Londrina - UEL

ABSTRACT: The increasing importance of text production in school life is a challenge for students and teachers, mainly in those difficulties they do
not quite understand. A number of corrective actions have been adopted, which included official skills development programs. In an attempt to
measure the responsiveness of such programs the research reported in this article was conducted with a language interactivity background.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino - Concepção - Produção - Texto

Embora as diretrizes teórico-pedagógicas dos Parâmetros Foi elaborado um instrumento de pesquisa, contendo dez ques-
Curriculares Nacionais (1998) persistam na ênfase ao caráter interativo tões (abertas e fechadas) fundamentadas nas visões (textual/cognitivista
pelo qual a linguagem deve ser percebida e estudada, Silva (1997) e interativo/discursiva) que têm norteado os estudos atuais a respeito
chama atenção para o fato de que o ensino-aprendizagem de produção do ensino de Língua Portuguesa mais especificamente de produção
de textos ainda carrega uma forte influência behaviorista e do estrutu- textual (enfoque específico do estudo).
ralismo nos seus modelos. A autora faz essa observação após realizar Geraldi ressalta em “Portos de Passagem” (1991) uma distin-
pesquisa no estado de São Paulo, constando de observação direta de ção entre produção de texto e redação. O autor concebe a redação
aulas, ações dos professores em sala, análise de redações e livros como uma produção estudantil para a escola, produto de uma obriga-
didáticos, dentre outros materiais e recursos levados a exame. ção escolar, ação sem interlocutor e considera produção de texto a
Geraldi (1991) cujas obras formam um conjunto de profundos produção estudantil realizada na escola, produto de uma atividade
ensinamentos acerca da visão interacionista (esta também a base da escolar, expressão livre do aluno, uma autêntica forma de expressão.
pesquisa objeto deste trabalho) sustenta que, para construir um texto, Reforçando a visão dialógica da escrita, Brandão (1997) enfatiza que
em qualquer modalidade, é necessário que o produtor assuma-se como “numa sociedade letrada, a escrita adquire função de suma importân-
locutor numa relação interlocutiva. Isto implica que ele tenha o que cia, porque, além de seu papel documental de guardiã da tradição, ela
dizer, supondo os interlocutores para quem dizer. Criar essa condição é instância instauradora de diálogos nas várias dimensões espaciais e
requer, da parte do professor, estabelecer as situações, organizar ex- temporais”.
periências e contextos adequados para que o aluno escreva sobre te- A concepção que entende a linguagem como forma de interação
mas que tenham sentido para ele próprio, sobretudo. Desse modo, portanto é a que interessa a esta pesquisadora e também se faz pre-
passa à condição de criador, já tendo sido assegurada a passagem pela sente nos Parâmetros Curriculares e propostas recentes pois repre-
fase preliminar da aquisição da linguagem, uma vez que, de tanto se senta mais do que conforme aponta Koch (1998) representação (“es-
desejar um usuário competente, esquece-se de deixá-lo à vontade para pelho”) do mundo e do pensamento; instrumento (“ferramenta”) de
seguir pela via de seu próprio ritmo. comunicação, a linguagem serve para que o locutor em uma relação
A idéia de realizar este trabalho que busca investigar a concep- interlocutiva assuma-se como locutor e para que esse autor aja, atue
ção dos professores do ensino fundamental sobre produção de textos sobre o outro, provocando reações, estabelecendo-se assim um espa-
nasceu de duas motivações importantes para a pesquisadora: dar con- ço dialógico de atuação entre autor/leitor.
tinuidade a uma pesquisa realizada em 1997 no norte do Paraná, em Trata-se, é importante observar, no entanto, que esta pesquisa
que buscou traçar o perfil do professor do primeiro grau e apontar o está em processo, tendo em vista que os questionários foram entre-
modo como os cursos, seminários oferecidos pela Secretaria de Edu- gues ao final do ano, que se conseguiu colher apenas 20% dos questi-
cação haviam influenciado a prática desse professor - em primeiro onários distribuídos, e no momento de recolhê-los no início de 2001,
lugar, e, em segundo, o desejo de fazer uso da experiência adquirida ocorreram problemas devido a falta de tempo dos professores, difi-
junto a professores da rede pública por meio da ligação proporcionada culdades em responder a questões e até perda dos mesmos. Os dados
pelo acompanhamento dos estágios supervisionados e dos relatos e colhidos até o momento serão completados com os que ainda estão
vivências dos alunos - estagiários. Outro dado que ainda motiva a por chegar, mas já podem servir como amostragem a respeito da con-
permanência na atitude de ida-a-campo é o discurso cada vez mais cepção e prática dos professores sobre produção de textos.
freqüente dos professores de língua materna ao afirmarem que os Como se afirmou, a presente pesquisa está em processo; mes-
alunos não sabem escrever. mo assim, uma análise dos dados já levantados é importante para abrir
Diante desse desafio, a proposta foi investigar questões relati- um caminho de discussão de questões com perspectivas de expandir
vas à formação do professor, à sua concepção de texto e produção de com posteriores análises de um corpus mais amplo.
texto e sua prática docente e, a partir das análises dos dados e informa- Na construção do questionário, as questões versaram sobre:
ções colhidas, efetuar proposta para realizar um trabalho interativo • Questão 1- Formação do professor / caminhos percorridos .
entre a Universidade Estadual de Londrina e escolas. Foram relaciona- • Questões 2, 3, 4, 9 e 11 - Concepção de texto / produção de
das as escolas de Londrina - PR de maior porte físico, situadas nas texto
regiões Norte, Sul, Leste, Oeste e Centro, totalizando 11 escolas pú- • Questões 6, 7, 8, 10 - Prática docente
blicas, o que correspondeu a 30% de cada região. A pesquisa, em sua Em relação ao processo de formação docente as respostas mais
totalidade, foi realizada no final do segundo semestre de 2000 em precisas foram as que afirmaram ter entrado na Universidade por
Londrina-Paraná (cidade de porte médio, com 500.000 habitantes gostar de literatura ou de Inglês. Ao definir texto somente um infor-
aproximadamente). mante contemplou a visão interativo - discursiva de ensino presente

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nos Parâmetros Curriculares, ou seja, afirmou ser “manifestação lin- preocupado com aquilo que ocorre na sala de aula em relação ao pro-
güística em que parceiros autor - leitor interagem e são capazes de cesso de ensino-aprendizagem de Língua Portuguesa: “- ainda não
construir determinado sentido”, os outros ou demonstram idéias va- consegui fazer com que produzam textos mostrando plena consciên-
gas ou extremamente estruturalistas, aliás confundindo a definição de cia de seu lugar de autor e sujeito”.
texto com linguagem. Na questão que busca verificar qual a relação estabelecida pelo
Na questão dois, os professores tiveram dificuldade para esta- professor entre leitura e produção de textos, todos foram unânimes
belecer diferenças entre texto oral e texto escrito; no entanto, o seguin- em dizer que a leitura serve como “modelo” para as futuras configura-
te paralelo foi estabelecido pelos sujeitos: a distância/proximidade ções textuais que os alunos venham a construir.
entre interlocutores relativos à ausência/presença do outro no proces- No que diz respeito ao embasamento teórico para trabalhar
so de interlocução. Ao serem interpelados sobre a concepção de pro- produção de texto, a maioria afirmou ter dificuldade e precisar de
dução de texto, os professores confundiram definição com objetivos, maior embasamento e aprofundamento teórico; no entanto, um dos
definiram a produção genericamente como (expressão do pensamen- informantes que apresentou generalidades em suas respostas foi o
to, organização de idéias). único a dizer que se sente suficientemente embasado porque “tem
Quando foram interpelados sobre seu interesse por produção procurado trabalhar dentro dos temas transversais e metodologia que
de texto, apenas um respondeu que a produção de texto é intrínseca ao o momento requer”, (tendo sido novamente genérico).
trabalho com Língua Portuguesa nas escolas, a maioria respondeu que A última questão sobre como o professor concebe o sujeito -
o interesse nasceu no seu projeto de formação escolar: magistério, produtor de textos demonstra que parte dos discursos dos PCNs foi
graduação, especialização, etc. realmente incorporado, todos foram unânimes em afirmar que o sujei-
Na questão de desenvolvimento das atividades de produção de to produtor de textos é aquele que constrói coerentemente os sentidos
texto em sala de aula o processo é quase sempre o mesmo, ou seja, do texto; não consegue, no entanto, interrelacionar essa visão do sujei-
através de leitura, interpretação de texto para posterior produção. Um to-produtor com a concepção de texto, produção de texto e a prática
dos informantes falou no trabalho de reestruturação de textos, já outro docente e isto se coaduna com a resposta dada pela maioria (12 pro-
primou por enfatizar os “aspectos teóricos” no ensino - aprendiza- fessores) no que tange ao trabalho de acordo com os PCNs (que
gem de produção textual: “... procuro fornecer um suporte conceitual propõe uma visão interativo - discursiva dos estudos lingüísticos no
depois trabalho com os textos que funcionam como ilustração do que 1º e 2º graus).
foi discutido na exposição teórica ... na maioria das vezes faz-se ne- E apesar de grande parte dos professores haver freqüentado os
cessário o uso de exercícios que contenham trechos escolhidos pelo vários cursos de capacitação oferecidos, em grande parte pela Secreta-
seu caráter de exemplaridade” ... logo a seguir afirma “... por último ria de Educação do Estado desde 1990, apenas um demonstrou maior
solicito ao aluno que procure operar criativamente com os mecanis- conhecimento de uma concepção interativa da linguagem e coerência
mos estudados, explorando-os para a produção de texto”. deste com sua prática. É desse mesmo informante a idéia de buscar
Quanto às dificuldades que encontram ao trabalhar com produ- mais informação, o que acima se constata que ele, com toda certeza
ção de texto, alguns enfatizaram falta de tempo para corrigir os traba- possui consciência que a busca do conhecimento é um processo que
lhos, excesso de alunos em sala de aula; outros já afirmam não saber não se esgota.
como levar os alunos a organizar as idéias. E finalmente, um professor
chamou atenção para a dificuldade de fazer o aluno romper com a
crença do que seja ensino de Língua Portuguesa, quando se passa do Referências bibliográficas
ensino mecânico para o reflexivo, ou seja, como fazer o aluno entender
que “agora” que se trabalha de fato o processo de aprendizagem de BRANDÃO, Helena Nagamine (1997). Escrita, leitura e dialogicidade.
Língua Portuguesa e não anteriormente. In: Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Brait, B. (or.) .
Sobre a avaliação que faria de si mesmo quanto às atividades Campinas: UNICAMP, p. 281-282.
desenvolvidas sobre produção de texto, todos se avaliaram como bons BRASIL. Parâmetros Curriculares de Língua Portuguesa 3º e 4º
professores; um dos respondentes assinalou duas alternativas somen- Ciclos. Brasília: MEC/SEF, 1998.
te regular e boa, deixando transparecer uma certa insegurança no pro- GERALDI, João Wanderley (1991). Portos de Passagem. São Paulo:
cesso de auto-avaliação. Martins Fontes.
Ao responder por que se consideram bons, parte deles não se SILVA, Luciana Brandão (1997). Escrita em questão: concepções teó-
atribui a nota máxima (excelente) por razões distintas: um deles usa ricas e sala de aula. In: Anais de Seminários do XXVI GEL. Cam-
como pretexto a falta de tempo, enquanto o outro se mostra realmente pinas: IEL/UNICAMP, 1997, p.100-105.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 129


As marcas de (as)sujeitamento do aluno pela escola
Flávio Luis Freire Rodrigues
UNOPAR/Londrina

RÉSUMÉ: Ce travail propose de mettre en vérification l’hypothèse qui considère l’école productrice d’inhibition de la manifestation du sujet-élève
- cette école le maintiendrait dans les modèles (ou “moules”) scolaires. À partir de lectures essentielles de Bakhtin et Vygotsky, nous examinons, pour
cette proposition, les productions textuelles de huit étudiants du lycée brésilien (l’enseignement moyen) participant d’un projet universitaire, afin
d’expliciter les marqueurs d’inhibition (ou inhibiteurs) dans le procès d’effacement du sujet-élève et par conséquent confirmer cette hypothèse.
PALAVRAS-CHAVES: assujeitamento, escola, escrita.

A função precípua e milenar da escola tem sido a transmissão ponto pelo qual passariam discursos prévios; acredito em su-
do conhecimento. As tentativas de mudança do perfil da escola, do jeitos ativos, e que sua ação se dá no interior de semi-sistemas
educador e do educando mostram-se um tanto tímidas. Prolongamos, em processo” (1996: 37).
ainda, a concepção de ensino como “educação bancária”, como afirma A leitura que Possenti faz de vários textos que tratam da Aná-
Paulo Freire, e não como construção do conhecimento. Aquele pro- lise do Discurso não é uma leitura pré-conceituada. Para ele, só forço-
cesso parece estar até hoje bem inculcado, tanto em professores, quanto samente, se pode deixar de ver que os vários textos não querem elimi-
nos alunos; já faz parte do “inconsciente coletivo escolar”. nar o eu, mas mostrá-lo; tais textos insistiriam na existência e impor-
O trabalho que apresentamos parte de um projeto de extensão tância do outro, e no seu aspecto multifacetado, e não uno do sujeito,
da Universidade Estadual de Londrina, o qual ministra aulas de Língua que seria efeito e nunca origem, pois sendo efeito, tem seu lugar e
Portuguesa (incluindo-se aí a produção de textos) a alunos da rede papel (idem).
pública, integrantes de um programa de preparação e colocação de Para esta terceira fase da AD, o centro da relação não é mais o
menores “carentes” no mercado de trabalho formal como office-boys. eu nem o tu, mas se desloca para o espaço discursivo entre eles. O
Queríamos verificar em um ambiente extra-classe, portanto, menos sujeito é ele mais a complementação do outro, em uma amálgama de
marcado pelas pressões escolares, quais efeitos ou resultados advindos subjetivo e social, influenciado, talvez, pela posição de Maingueneau,
da escola pública na/para a produção textual (após regularmente um a respeito da postura da AD diante da língua e do discurso:
aluno cursar ali onze dos principais anos de sua vida), mais precisa- “a AD afirma ... a dualidade radical da linguagem, a um só
mente, se a escola consegue constituir seus alunos em sujeitos. Era o tempo integralmente formal e integralmente atravessada pelos
primeiro encontro do ano (1998) entre os estagiários e alunos partici- embates subjetivos e sociais” (Maingueneau, 1993: 12).
pantes do programa. O projeto da Universidade desenvolve-se em Este é, como não poderia deixar de ser, o ambiente em que os
sintonia com as propostas mais atuais de ensino de LP, ou seja, levan- nossos sujeitos de pesquisa vão desenvolver sua subjetividade: nos
do-se em consideração aluno-professor-contexto-conhecimento. A embates com o professor (representante da escola e do status quo),
opção por estes alunos deve-se ao fato de que o segundo grau repre- com os outros alunos (influenciados também pelo professor), com os
senta o ponto final escolar para a maior parte de nossos alunos. Toma- textos e seus autores (via de regra escolhidos pelo professor) etc. A
mos como corpus os textos produzidos pelos 8 alunos da classe do posição ocupada pelos sujeitos-alunos, dificilmente, escapa à de sub-
projeto que compõem a classe de estudantes do terceiro ano do segun- missão, visto que a força ideológica escolar utilizada para manter o
do grau. status quo é sutilmente agressiva e totalizante.
Como arcabouço metodológico, tomei de empréstimo a Carlo O outro pressuposto que precisa ser discutido é a palavra, peça
Ginzburg, em Mitos, emblemas e sinais (1989), os paradigmas principal do jogo lingüístico que vai se desenvolver entre professor e
indiciários. O autor prega que os detalhes sempre foram pistas impor- alunos. Segundo Bakhtin, “a palavra é o fenômeno ideológico por
tantes para o cotidiano do ser humano, dependendo do olhar cuidado- excelência, [...] o modo mais puro e sensível da relação social” (1999:
so e carinhoso do observador, seja no desvendamento de fatos passa- 36), cujo sentido é totalmente determinado pelo contexto, seja no
dos ou na adivinhação de fatos futuros. Assim, creio ser possível a sentido mais restrito ou mais amplo. Sem dúvida, a escola está presen-
fundamentação teórica sobre a qual se erguem os paradigmas indiciários te em ambas as situações: tanto no meio social mais imediato, quanto
como instrumental analítico válido para pesquisas, principalmente no no mais amplo. É ela a responsável por grande parte da encarnação
âmbito das ciências humanas, nas quais se buscam resultados diferen- material do signos pelos alunos, que vão imprimir os matizes de toda
tes das pesquisas quantitativas, dominantes ainda na grande parte das criação ideológica dos indivíduos, que por sua vez, é a responsável
ciências, merecendo toda a consideração, uma vez que até o momento pela formação da consciência desses mesmos indivíduos; no dizer de
tem sido útil no desvelamento de várias questões, procurando apre- Bakhtin:
sentar soluções coerentes. “a consciência só se torna consciência quando se impregna de
Para iniciar as discussões, tomaremos alguns pressupostos que conteúdo ideológico (semiótico) e, conseqüentemente, somen-
se complementam. O primeiro e necessário aqui é uma pequena pon- te no processo de interação social” (1999: 34).
tuação sobre sujeito. Optamos pela releitura brasileira, sob o olhar de A escola é quem indica como devem ser interpretados os signos
Possenti (1996) da última fase da Análise do Discurso, a da novos e reinterpretados os antigos, tecendo o conteúdo semiótico que
heterogeneidade, para a qual o papel do O/outro é considerado crucial. formará a consciência desses indivíduos.
Possenti deixa claro que, para ele, o sujeito não é uno, não está sozi- Vygotsky (1984) reforça o ponto de vista de Bakhtin. Para
nho, não há sujeitos livres nem assujeitados, pois aquele autor, a relação do sujeito com o mundo é mediada por instru-
“sujeitos livres decidiriam a seu bel prazer o que dizer numa mentos e por signos, ou instrumentos psicológicos, que são proporci-
situação de interação; sujeitos assujeitados seriam apenas um onados essencialmente pelo outro (meio, cultura, etc) e visam realizar

130 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


transformações no outro ou no mundo material através do outro. Os do em um final mais realista, portanto, mais condizente com sua
signos vão transformar, determinar nossa relação psicológica com a história, mesmo assim há a marca do final feliz no início da sentença,
realidade. Através das interações face a face entre os indivíduos, é que e o desfecho, à medida que sua história permite, termina em final feliz:
ocorre a interiorização das formas culturalmente estabelecidas de fun- texto 5 R.1: Os dois se encontraram e ficaram muito felizes conversa-
cionamento psicológico. A linguagem, como sistema simbólico, per- ram, brincaram se olharam o dia inteiro desde aquele dia então dois
mite o estabelecimento de significados compartilhados pelo grupo sábados por mês eles se encontraram.
social dos objetos e situações do mundo real. Ainda para Vygotsky
(1989), os significados são construídos ao longo da história do ho- Categoria Ter para quem dizer
mem, em suas relações sociais e físicas (como a história se modifica,
os significados também se alteram); são também os significados que Como estou tentando discutir a constituição do sujeito, é im-
permitirão ao indivíduo compreender o mundo e agir sobre o mesmo. portante identificar a quem esses alunos dirigem seus textos. Como
A partir da prática social da criança no grupo, ocorre a internalização afirma Bakhtin (1999), já citado anteriormente, a palavra é determina-
das experiências práticas, resultando em sujeitos conscientes do pen- da tanto pelo contexto restrito (espaço intra-muro escolar), como
samento e da experiência. pelo mais amplo (não só pela prescrição de deveres de casa, mas
Convém lembrar que a escola controla boa parte dessa prática também e principalmente, pelos juízos de valor que estende seu poder
social, uma vez que desde tenra idade (isso não é regra geral) as crian- a espaços extra-muros). Os interlocutores parecem ser o sistema es-
ças ficam a cargo da escola, passam boa parte do tempo dedicando-se colar, representado pelo professor ou pela própria escola: 4 alunos
a ela, e têm-na na mais alta consideração como instituição da verdade parecem escrever ao professor e 3 à escola. Dos oito alunos, apenas
e do saber (chegam mesmo a preterir ensinamentos da mãe, preferindo um consegue fugir às regras e conceber como interlocutor, não a esco-
os da professora!). Pécora (1992) argumenta que a escola é que impõe, la, mas um amigo virtual (ou escreve a si mesmo), visto ser o seu texto
além de um padrão de linguagem, um padrão de referências para pen- um tipo de testamento ou ideário de amizade para seu autor.
sar e interpretar o mundo, fato este que talvez tenha levado Althusser
a classificar a escola como um dos aparelhos ideológicos do Estado Categoria Ter uma razão para dizer
(1987).
Bakhtin (op. cit.) e Vygotsky (op. cit.) deixam bem claro que é Tomando outra seção (não estou obedecendo a seqüência origi-
o signo o responsável pela formação ideológica e psicológica dos indi- nal), a Ter uma razão para dizer, verificaremos, através das pistas
víduos, e dele também depende a construção do sujeito. Na atividade deixadas pelos alunos, que foram vários os motivos que provavelmen-
proposta por estagiários do projeto, os participantes deveriam pro- te os levaram a escrever. Enquanto dois estavam preocupados em
duzir um texto narrativo sobre o afastamento de dois grandes amigos cumprir o dever solicitado, quatro outros desejavam contar a sua
e um plano para o reencontro. Essa foi a única orientação dada pelos história, um deles utilizou o texto como instrumento de oposição ao
estagiários do projeto. Os textos que constituíram o corpus deste status quo e um último queria dar mostras de que era capaz de escrever
trabalho serviriam como avaliação diagnóstica inicial do grupo de um texto criativamente.
participantes do projeto.
Wanderley Geraldi, em Portos de Passagem, elenca cinco con- Categoria Constituir-se como locutor
dições necessárias à produção de um texto, embasadas nos pressu-
postos da teoria da enunciação de Bakhtin e também da AD, e foi A última seção analisada permite ver como o aluno se constitui
também a partir desses aspectos, com exceção do último, que o pre- como locutor, define que, praticamente, todos os alunos assumiram
sente corpus foi examinado. Segundo eles, é preciso que: seus textos. Quando assinalo que o aluno assumiu seu texto, estou
a) se tenha o que dizer; querendo dizer que ele conseguiu deixar nele marcas próprias e que,
b) se tenha razão para dizer o que se tem a dizer; além disto, imprimiu também sua posição ideológica. Ainda mais: ele se
c) se tenha para quem dizer o que se tem a dizer; coloca como responsável pelo texto produzido. É o caminho para se
d) o locutor se constitua como tal, enquanto sujeito que diz o fazer autor, que é, segundo Orlandi, “o princípio de agrupamento do
que diz para quem diz; discurso, unidade e origem de suas significações” (1996: 68).
e) as estratégias sejam escolhidas para realizar a), b), c) e d).
Os aspectos acima foram avaliados em trabalho anterior. Va- Reflexões...
mos agora tomar cada categoria analisada e verificar a confirmação de
nossa hipótese. A seção Estratégias não será tomada aqui, visto que As narrativas analisadas têm, todas elas, marcas de singularidade
tem por finalidade indicar o caminho tomado pelos alunos para con- nas escolhas lingüísticas feitas para a produção da unidade de sentido,
cluir as outras seções. como requer Perfeito (1999); todos os alunos também respondem pelo
que dizem, como aponta Orlandi (1996), sendo, portanto, autores.
Categoria Ter o que dizer Para Bakhtin, se tem estilo quando se tem unidade constituída
pelos recursos empregados para dar forma ao conteúdo do texto (1997),
Na categoria Ter o que dizer, à exceção de um aluno, todos os o que nos leva a conceber os alunos que produziram os textos como
outros parecem dizer que, entre outras coisas, acreditam em conto de autores munidos de estilo.
fadas, haja vista o modo como construíram seus textos, todos eles Tenho em mãos, então, um corpus de oito redações que, após
buscando o tradicional final feliz, motivados talvez pelos sonhos pró- analisadas, permitem atribuir aos alunos escritores os conceitos de au-
prios da idade adolescente ou ainda por esta ser a forma canônica mais tor e estilo. Isso parece, a princípio, estar em confronto com a hipótese
difundida pela escola. Dos finais utilizados, apenas um aluno usa toda que levanto neste trabalho, a de que a escola, como agente de
a oração “e viveram felizes para sempre” explicitamente; outro, utili- homogeneização, eliminaria a subjetividade do aluno. Propus-me, como
za “para sempre”; outro ainda lançou mão somente da palavra “sem- já mencionado, a constatar se existe ou não a (in)constituição do aluno
pre”; os demais, subrepticiamente, usam a mesma idéia, porém, com como sujeito pela escola.
outras formas. Pelas análises feitas, a resposta imediata seria de que os alunos
A única aparente exceção indica que seu autor estaria interessa- não são assujeitados pela escola, uma vez que se constituem como

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 131


autores de seus textos. É aí que poderíamos nos deixar levar pela A constituição de alunos em sujeitos, viria, a meu ver, com
ingenuidade de crer que o processo de assujeitamento se daria tão base em Vygostsky (1989), pela possibilidade dos alunos construí-
superficialmente. Ele acontece mais profundamente. As marcas não rem os significados de sua história, em suas relações sociais e físicas
ficam tão evidentes, são apagadas a fim de fazer crer que a escola com o contexto mais amplo e o mais restrito que os circundam, para
cumpre com a sua função de formar indivíduos críticos, capazes de que pudessem compreender o mundo e agir sobre este mesmo mundo.
utilizar a linguagem dentro de todas as configurações possíveis e ne- A escola deveria expandir possibilidades de entender e agir sobre a
cessárias, como argumenta Bakhtin: realidade, e não fechá-las, como aconteceu com os textos deste corpus.
“a palavra do outro torna-se anônima, familiar, em uma forma A pluralidade das literaturas e de suas incontáveis leituras poderiam
reestruturada: a consciência se monologiza. Esquece-se com- ser a porta de entrada para este sujeito na sua história.
pletamente a relação dialógica original com a palavra do outro:
esta relação parece incorporar-se, assimilar-se, à palavra do
outro tornada familiar” (1997: 406). Referências bibliográficas
A evidência mais forte para o que estou afirmando são os finais
das narrativas em questão. Majoritariamente elas apresentam um final ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do estado. 2ª ed. Trad.
feliz, nos moldes dos contos de fadas, enquanto este episódio da histó- de Walter
ria parece ser um dos poucos em que o aluno poderia criar um desfecho Evangelista e Maria Laura V. de Castro. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
à revelia, uma vez que todas as outras etapas da narrativa foram dadas BAKHTIN, Mikhail (V. N. Volochínov). Marxismo e filosofia da
de antemão: os alunos deveriam escrever sobre dois amigos que se linguagem. 9ª ed. Trad. de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira.
separam e um deles formula um plano para encontrar o outro amigo. O São Paulo: Hucitec, 1999.
final poderia ter assumido um episódio trágico, como a morte do amigo, ______. Estética da criação verbal. Trad. de Maria Ermantina Galvão
ou simplesmente frustrante, por não encontrar no amigo o mesmo sen- G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
timento que fluía antes. O que fica nítido, no entanto, é a homogeneização GERALDI, J. W.. Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes,
do final do texto.
1993.
Mesmo subrepticiamente a escola parece impor modelos. To-
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas e sinais: morfologia e história.
dos os alunos são autores, todos os textos têm unidade de sentido,
Trad. de Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras,
porém essas unidades parecem-me pré-determinadas, fixadas pela
1989.
escola. Disto pode-se depreender que autor e sujeito não são condição
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em Análise do dis-
sine qua non, e que autor pode ser assujeitado e o estilo pré-moldado.
curso. 2ª ed. Trad. Freda Indursky. Campinas: Pontes, 1993.
É o aluno produzindo textos para a escola, e não na escola, como
ORLANDI, Eni P. Interpretação. Autoria, leitura e efeitos do traba-
conjectura Geraldi (1993).
lho simbólico. Petrópolis, Vozes, 1996.
Se recuperarmos Pécora (1992) do início do trabalho, quando
PÉCORA, Alcir. Problemas de redação. 4ª ed. São Paulo: Martins
afirma que a escola é que impõe, além de um padrão de linguagem, um
padrão de referências para pensar e interpretar o mundo, podemos Fontes, 1992.
dizer que a produção de textos para a escola é um instrumento eficaz PERFEITO, Alba Maria. Leitura e produção de textos: maneiras de
nesta tarefa. A modelação de referências viria, não explicitamente, ver, maneiras de dizer... Tese de doutorado. São Paulo: USP,
como pensaríamos a princípio, encarnando um dualismo “dominantes 1999.
x dominados”, mas em um movimento dialético em que se embatem os POSSENTI, Sírio. “O sujeito fora do arquivo”. As múltiplas faces da
ditames da escola e do aluno, em graus, forças, modos e momentos linguagem. Izabel Magalhães (org.). Brasília: UNB, 1996.
variados. Talvez a própria escola não se dê conta desse processo de VYGOTSKY, L. S.. A formação social da mente. 6ª ed. Trad. José
massificação (o que quero dizer é que talvez ele não seja intencional). Cipolli Neto et alii. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
Mas o processo ocorre. A modelação atinge a maioria dos alunos que ________. Pensamento e linguagem. Trad. de Jeferson Luiz Camargo.
passa pelo banco escolar. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

132 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A correção na língua falada: texto e interação
Maria Eulalia Sobral Toscano
Universidade Federal do Pará

ABSTRACT: This paper observes the necessary relationship between text and interaction by means of the investigation of correction in spoken
language. It highlights correction as a textual construction strategy – a linguistic phenomenon in the service of the text constitution – in its relation
to the interactional circumstances under which it is done.
PALAVRAS-CHAVE: texto falado, interação, correção.

Introdução No caso das autocorreções morfossintáticas, a imagem


Os falantes, em suas conversas diárias, fazem escolhas de construída é sempre positiva, porquanto o falante demonstra, com a
modo a promover o mútuo entendimento. Esse objetivo, a princípio correção, que de fato domina as regras da gramática5; o erro é então
geral das trocas verbais, é o que orienta as seleções léxico- considerado um “lapso”. Em contrapartida, nas heterocorreções
morfossintáticas e as estratégias utilizadas pelos participantes em morfossintáticas, cria-se normalmente uma imagem negativa do falan-
um evento comunicativo. te corrigido, razão pela qual esses tipos de correção são freqüentemente
Tendo em vista a intercompreensão, o locutor corrige para mitigados.
que seu parceiro compreenda, por exemplo, seu ponto de vista acer- Geralmente, nas heterocorreções de natureza morfossintática,
ca do assunto, a imagem de sujeito que ele deseja para si e a que ele o falante corretor implementa a correção de maneira a não constranger
atribui ao outro, o estabelecimento ou alteração de determinadas o corrigido – a elocução da segunda formulação (F2) é normalmente
relações intersubjetivas. Nesse universo, a interacionalidade consti- rápida e em voz baixa, uma “voz dos bastidores” que “sopra” a forma
tui critério determinante e norteador do ato de corrigir. Em outros adequada. No entanto, o falante corrigido, a fim de se livrar dos “estig-
termos, a correção pressupõe indivíduos em interação cujas esco- mas” impostos por um erro morfossintático, a exemplo do que ocorre
lhas são feitas a fim de que a tarefa a que eles se propõem possa ser em (1), pode repetir a primeira formulação (F1) de forma acentuada e
levada a bom termo. Em assim sendo, ela se realiza em função dos entre risos, numa explícita demonstração do “absurdo” que fora capaz
interactantes, sendo a interação “um componente do processo de de cometer. O falante corretor pode aceitar o jogo proposto e acompa-
comunicação, de significação (e) que faz parte de todo ato de lingua- nhar as reações do falante corrigido, aliviando-o assim do “peso” do
gem”1, e permite a circulação de imagens, projetadas em decorrência erro.
de procedimentos de adaptação (auto-adaptação e adaptação ao ou-
(1)6
tro) e de antecipação, os quais possibilitam desarmar objeções e
F1 L2: mêu... sua mãe é judeu né?
corrigir representações2.
F2 L1: é judia ((baixo e rápido))
Os falantes, no mais das vezes, mostram-se atentos às imagens
L2: Jsua mãe é juDEUJ
que circulam no momento da interação e trabalham para fazer circular
L1: Jmêu sua mãe é juDEU caraJ
algumas e, negar outras, empregando práticas defensivas para prote-
[
ger suas próprias projeções e práticas protetoras para salvaguardar a
L2: Jmêu sua mãe é judeuJ sua mãe
definição da situação projetada pelos parceiros com os quais
é judia né?
contracena3. Essas impressões, que podem ser positivas ou negati-
L1: não minha mãe não meu padrasto
vas4, são construídas, no caso da correção, em função de como a
L2: ah tá
correção é realizada e de quem a realiza - se o falante que enunciou a
primeira formulação (autocorreção) ou se outro falante qualquer à
(202FEU11)
exceção daquele que enunciou a primeira formulação (heterocorreção)
Os risos “tentam” neutralizar a imagem negativa que pode ser
-, da natureza do erro corrigido e da aceitação ou rejeição da correção,
criada pelo cometimento do erro assim como fazem do erro um
no caso de heterocorreção.
objeto de gozação: levá-lo na brincadeira implica dimimuir-lhe a
Destacamos, para evidenciar a correlação texto e interação, cor-
importância, e conseqüentemente, desqualificá-lo enquanto parâmetro
reções que incidem sobre fatos morfossintáticos, correções que incidem
de avaliação.
sobre a relação entre o conteúdo proposicional e as representações da
Entretanto, quando esta estratégia de aliviar tensões é iniciada por
realidade objetiva e correções que referem a falta de ajuste da mensa-
qualquer participante à exceção daquele que cometeu o erro, o alvo dos
gem às orientações discursivas desejadas e às expectativas dos falan-
risos, em vez de ser o absurdo do cometimento do erro, “dá a impressão”
tes em relação a eles mesmos e a seus parceiros de conversas.

1. Correções gramaticais
Em geral, a correção de erros morfossintáricos atribui ao falante 1
Brait, 1993:194.
corretor uma imagem positiva, a daquele que tem, ou pelo menos faz 2
v. Vion, 1992:41-44.
crer que tem, um bom domínio do código, e ao falante corrigido, uma 3
Cf. Goffman, 1992:22.
imagem negativa, a de uma certa falta de competência lingüística, prin-
4
Positivas e negativas, no sentido de serem ou não favoráveis ao que é
cipalmente no caso dos informantes desta pesquisa - alunos de Letras representado.
5
Gramática enquanto o conjunto das possibilidades e das restrições
da Universidade de São Paulo e professores de Língua Portuguesa. E a
morfossintáticas, fonético-fonológicas e semânticas de uma dada varie-
imagem de discurso que se constrói com a correção é a de um discurso dade da língua.
escorreito, adequado às exigências gramaticais da norma de referência. 6
O símbolo J indica que o enunciado foi produzido entre risos.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 133


de ser o próprio falante, o qual, talvez por isso, ignore a correção - uma L2: huh
estratégia defensiva, portanto, que é o que ocorre em (2). L1: e::... eu falei “mêu quatro a ze::ro” ele
(2) falou pra mim “três a zero”
L2: que os padrinhos estão estão lá:: dando a maior L2: ele assistiu o jogo inteiro?
força... e assim... L1: assistiu
minha mã/ no::ssa... minha mãe f/ foi L2: ah porque eu só assisti pela metade... toda
madrinha... mêu... ela fez a pior vez que saía gol eu
burrada ligava a televisão
[ Doc: foi três a zero ( )
L1: burrada L1: três a zero é
[ L2: é eu vi até o terceiro gol só::... EdMUN:do
L2: da vida dela... porque só tomou... fez o gol né?
porque... o:: o casal (202FEU06)
F1 esse casal que:: que ela apadrinhou... passou O desacordo quanto ao resultado do jogo gera as correções, e a
um tempo de rejeição da correção por L1, uma contenda, que só é resolvida após L1
[ apresentar provas que comprovam ser seu placar o correto. Prevalece
F2 Doc: J amadrinhou J finalmente a informação de L1, fato que desqualifica L2 enquanto
L2: dificuldades “dona da verdade”.
L1: amadrinhou A Nesse fragmento, as locutoras negociam uma informação clara-
[ mente objetiva (o resultado do jogo) por meio de heterocorreções não
Doc: J amadrinhouJ mitigadas e em cadeia: na primeira e na segunda, F2 é enunciada de
L2: porque ela:: ela passou um tempo de forma acentuada, com o volume da voz alterado (as locutoras gritam);
dificuldades financeiras... na terceira, F2 ocorre sobreposta à F1 e é repetida. Esses comporta-
Doc: aí... a sua mãe amadrinhou JAve MariaJ mentos verbais das interactantes concorrem para a produção de um
[ discurso “apaixonado” em que se defende mais o amor ao clube do
L2: aí... ela ia tinha que a “fidelidade” à informação, e para a construção de uma imagem de
que:: ela ia lá:: levava sujeitos beligerantes, patrocinada por um terceiro provocador, no caso,
feijão arroz essas coisas a documentadora.
(202FEU06) Caso diferente ocorre no fragmento (4):
A documentadora, em (2), pode até ter tentado aliviar o des- (4)
conforto da correção e, conseqüentemente, salvaguardar a imagem L2: o que eles pagam pro DCE toda a:: a
pública de L2, porém, o fato de L2 não reagir de forma semelhante (ao lanchoNEte... aquela Ótica...
invés de acompanhar as reações das interlocutoras, ela continua con- éh:: a farMÁcia
tando o que aconteceu a sua mãe quando decidiu ser madrinha) indica F1 L1: a papelaria
claramente que o comportamento da documentodora é considerado F2 L2: e as duas papelarias que têm ali...
ameaçador, isto é, expõe L2 ao ridículo. aquele espaço é todinho do DCE
ele aluga...
2. Correções informacionais (202FEU02)
Nas correções de cunho informacional - relativas à adequação No trecho acima, L2 corrige L1 sob a égide da co-produção
das informações às representações da realidade objetiva -, o falante, discursiva, ou seja, a locutora “engata”, por intermédio da partícula
ao corrigir pode arregimentar para si o estatuto daquele que se mostra “e”, o ato corretor em seu enunciado, a exemplo do que vinha fazendo
fidedigno a essas representações, daquele que conhece e sabe e por com as contribuições anteriores do interlocutor, dando assim progres-
isso, corrige; e a imagem discursiva gerada é então a de “veracidade”. são ao assunto. Ao incorporar a intervenção de L1, L2, mesmo corri-
A propósito, observe-se (3): gindo, demonstra a pertinência daquela contribuição - valoriza-a, por-
(3) tanto - e, por extensão, a pertinência do parceiro. Nesse sentido, a
Doc: você pode falar por exemplo sobre o discrição da correção salvaguarda a imagem pública de L1 e ameniza o
Corinthians que ganhou desconforto interpessoal gerado pela correção, criando assim a ima-
ontem de cinco a zero gem de um sujeito deferente, atento para os melindres que uma
F1 heterocorreção pode causar, e o discurso flui, ao contrário de (2), sem
F 2 > F1 tensão.
L1: foi TRÊS a zero
Doc: ah... desculpe 3. Correções pragmáticas
[ F2 > F1 Em atenção a seu projeto de fala, o falante também pode instau-
L2: foi QUA-tro a ze-ro rar, por intermédio da correção, uma outra voz a partir da qual e em
[ F2 confronto com a qual ele emite suas considerações. Ele coloca então
L1: foi três três a três a zero A... em cena uma instância que assume a responsabilidade do dito, como
fo/ foi três a zero no caso de (5), o que imprime mais objetividade a seu discurso e dá
sabe por quê::? mais credibilidade a ele, locutor.
[ (5)
L2: então por que ela gritou “quatro a zero” hoje L2: coitadas... e aí::... tiveram que ir e aí
de manhã? tiRAram do bolso e tudo
L1: eu eu encontrei o o:: E... ele com aquela mas... né? daí nunca mais também porque
blusa do Corinthians toda tal elas não poderiam nunca

134 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


mais... ( ) mais nada interação e as motivações em função das quais os falantes elegem suas
[ estratégias discursivas, contribuindo para a circulação de imagens,
L1: elas já saíram já se forMaram... tudo? alinhavadas clara ou sutilmente por vozes com as quais discurso e
L2: a AA já se forMOU:: e a AN acho que tá no sujeito se confrontam e em função das quais eles se constituem.
último ano aGOra... e deve estar se formando As correções normalmente qualificam o sujeito corretor como
[ competente no que tange à topicalidade - assuntos tratados, sua
L1: da manhã? organização - (correções informacionais e pragmáticas) e ao código
(correções gramaticais), demonstrando a sensibilidade do falante para
F1 L2: são... são as duas... são da manhã... mas
o contexto, para os parceiros de interação e para as ações em curso.
( ) sei lá... elas... sei que elas/
No caso das heterocorreções, em particular, como há o risco de
F2 DIzem elas que não querem mais participar ameaça à imagem do falante corrigido - desqualificação dele enquanto
de NAda... que dá muito traBAlho dá provedor de informação adequada ou enquanto representante da nor-
prejuízo não sei o que acho que no fundo no ma de referência -, as correções podem ocasionar, no caso de falantes
fundo elas ficaram traumatiZAdas com tudo isso com laços de amizade estreitos, “contendas” que só são resolvidas
L1: huh huh quando um dos envolvidos se dá por vencido (fragmento (2)); em
(202FEU02) outros casos, elas podem ser mitigadas - elocução baixa e rápida,
No fragmento (5), cujo tópico são as razões que levaram as correção dando a impressão de progressão tópica -, uma estratégia de
tesoureiras do CAELL a saldar as dívidas do Centro Acadêmico antes aliviar tensões (fragmentos (1) e (4)), ou ignoradas por aquele que
de o repassarem para outra gestão, é visível o esforço de L2 para cometeu o erro, uma estratégia de defesa por meio da qual se
retornar ao assunto anterior à digressão7 ocasionada por L1: L2 faz desconsidera a importância do erro e, conseqüentemente, a relevância
uso de pausas, marcadores conversacionais (“sei lá”), dando-se tem- de sua correção (fragmento (2)).
po para elaborar sua produção discursiva com vistas a recolocar o
tópico em cena. A primeira formulação, após o desvio, é alvo de uma Referências bibliográficas
correção, revelando, assim, o duplo trabalho da locutora que fora
interrompida: retomar “o fio da meada” e produzir um enunciado que BRAIT, B. (1993). O processo interacional. In: Preti, D. (org.). Aná-
atenda a seu projeto de fala. Se, por um lado, essa correção pode ser lise de textos orais. São Paulo, FFLCH/USP.
creditada àquela dificuldade de voltar às relevâncias centrais que esta- GOFFMAN, E. (1992). A representação do eu na vida cotidiana.
vam em foco no momento da interrupção, por outro, ela ocorre em Trad. M. C. S. Raposo. 5ª ed. Petrópolis, Vozes. (O texto origi-
função dos propósitos comunicativos de um enunciador, o qual, exi- nal é de 1959. The presentation of self in everyday life. New York,
mindo-se do dito, cria a imagem de um discurso neutro e a de um Doubleday.)
sujeito fidedigno. VION, R. (1992). La communication verbale: analyse des interactions.
Paris, Hachette.
4. Considerações finais
As análises dos fragmentos pontuaram a correlação texto e

7
Destacada em itálico.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 135


Sobre o papel dos núcleos funcionais
na construção da interpretação semântica referencial
Lucia Maria Pinheiro Lobato
Universidade de Brasília (UnB)

ABSTRACT: This article argues that referential interpretation is licensed by functional heads (FHs). It shows how null FHs license individual-level/
stage-level predication and generic/existential interpretation in Brazilian Portuguese predicative sentences with ‘ser’/’estar’. It is argued that the
generic / existential readings of German sentences with ‘ja doch’ likewise result from the effect of null FHs.
PALAVRAS-CHAVE: Leituras Genérica / Existencial, Núcleos Funcionais, Predicação de Indivíduo / de Situação, Referencialidade.

1. Introdução
Este trabalho defende a tese de que a interpretação semântica 3. Predicação de Indivíduo e de Situação
referencial é licenciada por meio de núcleos funcionais (NFs). A argu- Os exemplos (4) ilustram a distinção entre predicação de indi-
mentação se concentra especialmente nos NFs da sintaxe oracional víduo (PI) — (4a) —, e predicação de situação (PS) — (4b). Em (4a),
(NFSs) T e Asp, deixando para outra oportunidade a discussão sobre diz-se que as pessoas que são bombeiros são disponíveis, indepen-
o NFS C e os NFs da morfologia e da sintaxe sintagmática. A análise dentemente de sua profissão. Em (4b), diz-se que os bombeiros estão
se restringe a dados do português do Brasil (PB) e do alemão. Está disponíveis como bombeiros. Logo, na predicação de indivíduo há
sendo pressuposta a estrutura sintática em (1): predicação sobre a extensão da expressão nominal, como em (5a), e na
predicação de situação, predicação sobre a extensão e a intensão da
expressão nominal, simultaneamente, como em (5b):

(4) a. Bombeiros são disponíveis.


b. Bombeiros estão disponíveis.
(5) a. [x.bombeiro] ^ [x.disponível] PI
b. [x.bombeiro] <— [disponível] PS

Estou propondo que há uma diferença sintática entre ‘ser’ e


‘estar’ predicativos, tal que ‘ser’ ocorre em T e ‘estar’ em Asp. Logo, as
estruturas de (4) são as em (6):

(6) a. [CP C [TP bombeiros são-T [AspP t Asp


[VP t disponíveis]]]]
2. Evidência Empírica de que T Licencia b. [CP C [TP bombeiros T [AspP t estão-Asp
Interpretação. Semântica Referencial1 [VP t disponíveis]]]]
O fato de que o PB coloquial restringiu a ocorrência dos clíticos
à posição pré-verbal e limitou sua interpretação às 1ª e 2ª pessoas, Estou também propondo que os vestígios de SNs ou DPs con-
como o demonstra a interpretação de (2), é evidência de que T licencia têm informação semântica sobre entidade, indivíduo, que é a informa-
interpretação referencial. Estou propondo que os clíticos ocorrem em ção correspondente ao ‘tipo semântico’ dos nomes. Logo, em (6), os
posição de especificador, precisamente Espec,AspP, ao contrário da vestígios têm tal informação. Além disso, estou analisando os adjeti-
posição corrente, que os analisa como núcleos. Já que os clíticos do vos como elementos que ocorrem na primeira projeção máxima em
PB coloquial são sempre pré-verbais, ocorrem numa estrutura em que que encontram informação sobre entidade sobre a qual podem predicar.
T está nulo (i.e., sem inserção lexical), como (3): Nos exemplos considerados, o adjetivo sempre ocorre dentro do VP
porque aí encontra, na informação portada pelo vestígio, esse tipo de
informação referencial. Em (6a), Asp está nulo, e em (6b), T. Tanto
tempo quanto aspecto são conceitos temporais, a diferenca sendo que
tempo, mas não aspecto, se define em relação ao falante, e, logo, ao ato
de fala. Ém (6a), Asp está nulo e o adjetivo predica do indivíduo
independentemente da sua atuação profissional. Concluo que Asp
licencia a interpretação de existência do referente denotado pelo ves-
tígio em Espec,VP, só que não relativamente ao ato de fala. Em (6b), T
está nulo e o adjetivo predica do indivíduo em dada situação espacio-
temporal. Concluo que T licencia a interpretação do referente denota-
do pelo vestígio em Espec,AspP como entidade do mundo existente
As 1ª e 2ª pessoas são protagonistas do ato de fala. O conceito no momento do ato de fala (mundo real). Logo, a PI em (6a) deriva de
de Tempo se define em relação ao ato de fala. Logo, no PB, em senten-
ças como (2) em que Espec,AspP é preenchido por informação
referencial disjunta, T nulo tem efeito semântico referencial sobre o
Espec,AspP que ele c-comanda imediatamente.
1
A análise nesta seção reproduz argumentação em Lobato (No Prelo).

136 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Asp nulo, e a PS em (6b), de T nulo. Segundo essa análise, apesar de b. Crianças estão resfriadas/altruistas
em cada exemplo em (6) haver dois vestígios, um só deles sofre efeito c. As crianças estão resfriadas/altruistas.
do NF c-comandante – é sempre o NF nulo que é o licenciador de
leitura semântica referencial. Nessa perspectiva, a diferença entre PI e Lurdes Jorge observou (Discussões) que certos adjetivos tornam (13a)
PS é que na PI o tipo de predicação do predicativo é interpretado no gramatical:
domíno c-comandado por Asp nulo, e na PS, no domínio c-comanda-
do por T nulo. (14) Mulher está solta.

4. Geração de Leituras Genérica e Existencial A interpretação, no entanto, muda. Em (13a) há agramaticalidade


Nas estruturas predicativas em que ‘ser’ e estar’ são ambos e a interpretação esperada seria a existencial relativa a uma certa situ-
possíveis, respeitadas certas condições modo-temporais do predicado ação espacio-temporal específica, mesmo que não explícita na frase
e referenciais do sujeito, a alternância leva a uma distinção entre leitura (tem/há criança resfriada). Em (14), gramatical, a interpretação é que
genérica (LG) e leitura existencial (LE). Obtém-se LG com ‘ser’ e LE ‘hoje em dia a espécie mulher está solta’. Concluo que (13a) é
com ‘estar’, como em (7) e (8), cujas estruturas estão em (7') e (8'). agramatical porque o predicado é interpretado como predicador de
membro de espécie, mas o sujeito não denota membro, denotando,
(7) a. Crianças são engraçadas. G antes, a espécie, e (14) é gramatical porque o predicado é interpretado
b. Crianças estão engraçadas. E como predicador de espécie, e encontra no SN sujeito nú a denotação
(8) a. As crianças são engraçadas G apropriada sobre a qual predicar. Por outro lado, esse contraste forne-
b. As crianças estão engraçadas. E ce evidência empírica de que SN nú singular é denotador de espécie.
Acabamos de ver que um predicado interpretado como
(7') a. [CP C [TP crianças são-T [AspP t Asp [VP t engraçadas]]]] predicador de membro não pode predicar de SN singular, por esse
b. [CP C [TP crianças T [AspP t estão-Asp [VP t engraçadas]]]] denotar espécie. No entanto, o uso de um advérbio como ‘sempre’
(8') a. [CP C [TP as crianças são-T [AspP t Asp [VP t engraçadas]]]] pode tornar gramatical uma tal seqüência:
b. [CP C [TP as crianças T [AspP t estão-Asp [VP t engraçadas]]]]
(13a) *Criança está resfriada Episódica
Logo, a LE decorre de licenciamento referencial por T nulo, e a LG, da (15) a. Criança está sempre resfriada. Recorrente
sua falta. b. *Criança está sempre altruista. Recorrente
A LG independe do número do sujeito ou de ser ele nú ou não, como (16) a. Criança esta/estará sempre resfriada. Recorrente
mostrado em (9), e é forçada pelo verbo ‘estar’ no presente do b *Criança esteve/estava/estaria
indicativo, como ilustrado pelas interpretações dos exemplos (10): sempre resfriada. Recorrente
Proponho uma análise para os advérbios diferente da análise
(9) a. Criança é engraçado. G corrente. Segundo essa nova análise, a inserção de ‘sempre’ na senten-
b. Crianças são engraçadas. G ça leva à projeção de um TP ou AspP adicional, incluindo o próprio
c. As crianças são engraçadas. G NF T ou Asp, (será T ou Asp, dependendo da posição do advérbio).
(10) a. As crianças são engraçadas. G Nessa abordagem, a estrutura de (15a) é (15’a), em contraste com a de
b. As crianças foram engraçadas. Ação episódica (13a), que é (13’a):
c. As crianças serão engraçadas. Ação episódica ou G
(15’a) [CP C [TP criança T [AspP t está-Asp
Por sua vez, a LE é forçada pelo uso do verbo ‘estar’, em qualquer [AspP sempre Asp [VP t resfriada]]]]
tempo-modo: (13’a) [CP C [TP criança T [AspP t está-Asp
[VP t resfriada]]]]
(11) a. As crianças estão engraçadas. E
b. As crianças estiveram engraçadas. E Analiso os contrastes em (13) como devidos à falta, em (13a),
c. As crianças estarão engraçadas. E de elemento referencial que possa ser interpretado como membro de
classe. Nas estruturas com plural e/ou determinante — (13b,c) —, o
Existem na verdade restrições modo-temporais na LE, no sen- plural e/ou determinante trazem tal informação, daí a gramaticalidade
tido de se exigir uma certa correlação entre o tipo de interpretação das sentenças. Já que (15a) é gramatical, há interpretação de membro.
referencial do sujeito e do predicado. Se o sujeito denota, ou inclui Logo, o nova projeção Asp causada pela inserção de ‘sempre’ é a
denotação, de membro existente no mundo real, não há restrições licenciadora da interpretação de membro.
modo-temporais ao predicado, como em (11), mas se o sujeito denota
indivíduo existente em mundo possível, há restrições, devendo o 5. Fatos do Alemão: Estruturas com ‘ja doch’
predicado também expressar existência em mundo possível, como em 5.1 Duas Posições Estruturais para o Sujeito
(12): em Alemão?
No alemão, a expressão ‘ja doch’ (com efeito, de fato) ocorre
(12) a.*Qualquer criança está/esteve/estava engraçada. em duas posições – ou imediatamente antes do sujeito, ou imediata-
b. Qualquer criança estaria/estará engraçada nessa situação. mente depois, como em (17):

Há também uma correlação entre o tipo semântico do predicativo (17) a. ... weil Ameisen ja doch einen Postbeamten
e a interpretação referencial do sujeito. Se o predicativo é interpretado gebissen haben
como predicador de propriedade de membro de espécie, o sujeito não já que formigas de fato um carteiro mordido têm
pode ser nú singular: já que formigas de fato morderam um carteiro
b. ... weil ja doch Ameisen einen Postbeamten
(13) a. *Criança está resfriada/altruista. gebissen haben

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 137


já que de fato formigas um carteiro mordido têm b. *? weil ja doch Wildschweine intelligent sind E
já que de fato formigas morderam um carteiro uma vez que de fato javalis são (neste momento) inteligentes

Diesing (1992) considera que ‘ja doch’ sempre ocorre na fron- Segundo a proposta deste artigo, a estrutura desses exemplos é como abaixo, onde os
teira do VP, logo, em IP, daí decorrendo que o sujeito pode estar em IP adjetivos também estão em AspP, dado o fato de que os adjetivos predicativos se comportam
ou VP, como em (18): como os particípios no alemão, colocando-se antes do verbo final flexionado:

(18) a. ... [CP weil [IP Ameisen ja doch (20') a..[CP weil [TP Linguisten T [AspP ja doch-Asp
[VP einen Postbeamten gebissen haben]]] [AspP Kammermusik Asp [VP spielen ]]]]]
b. ... [CP weil [IP ja doch [VP Ameisen einen Postbeamten gebissen b..[CP weil [TP ja doch-T [TP Linguisten T
haben]]] [AspP Kammermusik Asp [VP spielen ]]]]

Estou analisando diferentemente a estrutura das sentenças em (17), (21') a. [CP weil [TP Professoren T [AspP ja doch Asp
como em (19): [AspP t verfügbar Asp [VP sind ]]]]
b. [CP weil [TP ja doch-T [TP Professoren T
(19) a. [CP weil-C [TP Ameisen T [AspP ja doch Asp [AspP t verfügbar Asp [VP sind ]]]]
[AspP einen Postbeamten gebissen Asp
[VP haben]]]]] (22') a. [CP weil [TP Wildschweine T [AspP ja doch-Asp
b.[CP weil-C [TP ja doch T [TP Ameisen T [AspP t intelligent Asp [VP sind ]]]]
[AspP einen Postbeamten gebissen Asp [VP haben]]]]] b.*?[CP weil [TP ja doch-T [TP Wildschweine T
[AspP t intelligent Asp [VP sind ]]]]
(Por ser irrelevante para a argumentação estou deixando de lado
nas estruturas do alemão a questão de haver vestígios dentro do VP.) A questão relevante para a tese defendida neste artigo é o
As estruturas (19) mantêm o espírito da análise para ‘sempre’: a licenciamento, nos exemplos de (20) a (22), de LG para (a) e LE para
projeção de ‘ja doch’ leva à projeção de um novo Asp ou T nulo. Por (b). Ora, é exatamente quando ‘ja doch’ leva à projeção de um AspP
que considerar que há nessa nova projeção um NF nulo? Para manter adicional que se tem LG, e quando leva à projeção de um TP adicional
a generalidade da análise (haveria um certo tipo de licenciamento de que se tem LE. Aceitando que as partículas modais do alemão proje-
referencialidade na GU) e captar a gramaticalização que ocorreu com tam um AspP ou TP adicional completo, com um núcleo Asp ou T
as partículas modais do alemão, em contraste com as partículas do disponível, a conclusão natural é que a LG decorre do efeito do Asp
inglês, por exemplo (V. Abraham, 1991). adicional sobre o AspP que ele c-comanda imediatamente, e a LE, do
Há uma série de diferenças entre (18) e (19). Em (18), é ‘ja efeito do T adicional sobre o TP que ele c-comanda imediatamente.
doch’ que tem posição fixa, havendo duas posições estruturais dife- Esses exemplos do alemão levantam uma nova questão, relativa
rentes para o sujeito nessas orações — Espec,TP e Espec,AspP. Em ao licenciamento de PI e PS: Por que (22b) é agramatical, mas não a
(19), é o sujeito que tem posição fixa — sempre Espec,TP —., e é ‘ja sentença correspondente em português? Dado o contraste entre (22a)
doch’ que tem posição variável. Uma outra diferença é que em (19) o e (22b), podemos concluir que a agramaticalidade de (22b) decorre do
objeto também se move para uma projeção funcional, precisamente efeito do T adicional projetado por ‘ja doch’. A análise natural é que
para Espec,AspP, ao passo que em (18) é mantido dentro do VP. em (22b) há incompatibilidade entre a predicação estabelecida por
Além disso, em (19) o particípio também ocorre em AspP. A evidên- ‘intelligent’ (PI) e a decorrente do efeito do T adicional sobre o TP que
cia empírica para isso é a exigência do alemão de que os particípios ele c-comanda imediatamente (PS). Como a seqüência é gramatical no
ocorram antes do V final flexionado em subordinadas, como se vê em português, uma análise completa teria de investigar as propriedades
(17). Considerando que a ordem básica para uma seqüência de auxiliar dos adjetivos e dos licenciamentos sintáticos no português e no ale-
e verbo principal é Aux+V, a explicação para a ordem V+Aux nessas mão, contrastivamente.
estruturas está no posicionamento do particípio dentro de AspP.
5.3 Evidência Empírica Adicional
5.2 A Posição de ‘ja doch’ e a Interpretação A proposta estrutural acima explica diferentes fatos do alemão,
Referencial da Asserção como as estruturas com ‘denn’ (então, afinal), outra partícula modal.
Diesing mostra que, em estruturas com certos predicados e Em (23) temos exemplos com ‘denn’ extraídos de Diesing, mas com a
verbo no presente do indicativo, a alternância de posição para ‘ja estrutura defendida neste artigo:
doch’ leva a uma alternância entre LG / LE:
(23) a. [CP Was für Ameiseni haben-C [TP denn T [TP ti T
(20) a. weil Linguisten ja doch Kammermusik spielen G
[AspP einen Postbeamten gebissen Asp ]]]]
uma vez que lingüistas de fato música de câmera tocam
o que para formigas, tem então um carteiro mordido
uma vez que lingüistas tocam de fato música de câmera
Que tipo de formiga mordeu um carteiro afinal?
b. weil ja doch Linguisten Kammermusik spielen E
b. [CP Was haben-C [TP denn T [TP für Ameisen T
uma vez que há de fato lingüistas tocando música de câmera
[AspP einen Postbeamten gebissen Asp ]]]]
c.* [CP Was haben-C [TP für Ameisen T [AsoP denn Asp
(21) a. weil Professoren ja doch verfügbar sind G
[AspP einen Postbeamten gebissen Asp ]]]]
uma vez que professores de fato estão (em geral)
/ são disponíveis
Como esses exemplos mostram, em interrogativas Wh- com o
b. weil ja doch Professoren verfügbar sind E
sujeito topicalizado em Espec,CP, como em (23a), ‘denn’ se coloca
umavezquedefato professoresestão(nestemomento)disponíveis
imediatamente à esquerda do objeto. Se uma parte do sintagma Wh-
fica em Espec,CP, a outra ficando imediatamente à esquerda do obje-
(22) a weil Wildschweine ja doch intelligent sind G
to, como em (23b), ‘denn’ tem de ocorrer imediatamente à esquerda
uma vez que javalis de fato são (em geral) inteligentes

138 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


dessa ocorrência mais baixa do sujeito. O que não se dá é de, nesse estudo de Lobato (Em Preparação). Antecipo, de qualquer modo, que
último caso, ‘denn’ ficar imediatamente à esquerda do objeto, como os resultados acima a respeito do alemão são favoráveis a uma distin-
em (23c). A agramaticalidade de (23c) mostra que ‘denn’ não projeta ção de dois planos — o da estrutura léxico-conceptual e o da estrutura
AspP, projetando sempre um TP. Em outras palavras, o fato de as sintática —, como argumentado para o português em Lobato (No
partículas modais do alemão projetarem AspP e/ou TP é decorrência Prelo): o alemão fez uma espécie de gramaticalização das partículas
dos próprios traços inerentes a cada partícula, e os traços de ‘denn’ só modais em virtude de ter especializado os NFSs T e Asp da sintaxe
levam à projeção de TP. para o licenciamento de ocorrência de XPs em Espec,TP e Espec,AspP,
respectivamente.
6. Observações finais
Neste trabalho ocupei-me estritamente em defender que a in- Referências bibliográficas
terpretação referencial é licenciada por NFs e em mostrar a relevância
dos NFSs T e Asp nulos para PI/PS e LG/LE em estruturas predicativas ABRAHAM, W. (1991) The Grammaticalization of the German Modal
com ‘ser’/’estar’ no PB, e para LG/LE em estruturas com partículas Particles. In Traugott, E. & Heine, B. Approaches to
modais no alemão. Apesar de a argumentação ter se baseado mais Grammaticalzation. Vol. II. Amsterdam, John Berjamins, pp.
fortemente nos NFs da sintaxe, deixou entrever que os NFs da estru- 331-380.
tura de palavras e de sintagmas também atuam nesse licenciamento, DIESING, M. (1992). Indefinites. Cambridge, Mass. , MIT Press.
sendo esse o caso do efeito da marca de plural na interpretação de LOBATO, L. (No Prelo). A que se Devem as Diferenças Sintáticas
membro. A análise levou a propostas inovadoras para adjetivos e entre o Português do Brasil e o Português Europeu? Anais do
advérbios e tem repercussão teórica a respeito de diferentes fenôme- Congresso Internacional ‘500 anos da Língua Portuguesa no
nos, como o processo de gramaticalização sofrido pelas partículas Brasil”. Universidade de Évora
modais do alemão, e abre as portas para uma explicação do conceito de ––––– (Em Preparação) The Notion of Case and its Manifestations.
Caso. A análise desses fatos não foi aqui discutida, sendo o objeto de

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 139


Aspectos sintático-semânticos
de construções bitransitivas
Heloisa Maria Moreira Lima Salles
Universidade de Brasília

ABSTRACT: The study examines syntactic and semantic aspects of ditransitive constructions, in particular the dative alternation. It is shown that the
occurrence of this phenomenon is sensitive to quantificational properties of the nominal phrase in the syntactic position licensing accusative
(structural) Case, allowing to account for differences in the aspectual interpretation and restrictions to the occurrence of one of the constructions in
the alternating pair.
PALAVRAS-CHAVE: alternância dativa; estrutura argumental; aspecto; preposição

1. Introdução 2. A alternância dativa


O presente estudo examina aspectos sintático-semânticos de A alternância dativa é um fenômeno associado à sintaxe de
construções bitransitivas, considerando o papel da interpretação construções bitransitivas e consiste na alternância entre (i) a constru-
aspectual no licenciamento dos argumentos na projeção lexical do ção em que o objeto indireto é introduzido por uma preposição, ocor-
predicado. Discute-se o fenômeno da alternância dativa, encontrada rendo obrigatoriamente depois do objeto direto (V+OD+PP) (cf. (1a));
em inglês, cuja ocorrência se mostra sensível às propriedades (ii) a construção, referida como construção de objeto duplo, em que o
quantificacionais do sintagma nominal na posição que licencia o Caso argumento dativo não é introduzido por preposição, sendo realizado
acusativo (estrutural) – o objeto direto (OD). Tal fator permite anali- obrigatoriamente na primeira posição, antes do objeto direto
sar diferenças na interpretação aspectual dos predicados alternantes, (V+OD+OD) (cf. (1b)):
bem como restrições à ocorrência de uma das variantes. Apresenta-se (1) a. Mary gave a book to John
ainda resultado parcial de estudo da variação na escolha da preposição b. Mary gave John a book
introdutora do objeto indireto em uma variedade do português do ‘Maria deu o livro ao João’
Brasil (a saber, a falada em Fortaleza), demonstrando-se que está Tal fenômeno está em variação entre as línguas, sendo encon-
encaixada na matriz lingüística, em termos das mesmas propriedades trado, no inglês e em outras línguas germânicas (holandês e línguas
licenciadoras da alternância dativa: as propriedades quantificacionais escandinavas), mas não no grupo românico. Além disso, parece estar
associado à interpretação possessiva, não sendo encontrado em
do sintagma nominal na posição OD.
predicados bitransitivos com interpretação locativa (cf.Green (1974)):
A codificação gramatical do aspecto tem sido amplamente discu-
(2) a. John brought flowers to Mary/ Mary brought
tida na literatura gerativa, em particular a correlação entre classes
John flowers
aspectuais e a estrutura sintática dos predicados, o que se apóia na
b. John brought flowers to the table/ *John brought
concepção de que os eventos têm uma estrutura complexa, formada de
the table flowers
subeventos. Tal estrutura apresenta propriedades que podem ser defi-
‘João trouxe flores para Maria/ para a mesa’
nidas em termos de representações lógicas (operadores: DO, CAUSE,
Destacam-se ainda casos em que somente a construção de obje-
BECOME) e conectivos aspectuais (cf. Dowty (1979); Pustejowsky
to duplo é encontrada1:
(1991)) ou em termos de propriedades léxico-semânticas, como o as-
(3) a. * Mary gave a kiss to John
pecto, sintaticamente representadas (cf. Roberts (1987), Tenny (1994), b. Mary gave John a kiss
Borer (1994), Salles (1997), entre muitos outros). Vários estudos têm discutido a alternância em (1) (cf. Larson (1988),
Remonta a Ross (1974) a idéia de atribuir um núcleo DO (=fa- no âmbito da gramática gerativa). Reformulando análise em Salles (1997) e
zer) abstrato à estrutura de verbos de atividade, o que foi retomado em adotando as teorias de Hale & Keyser (op. cit.) e Tenny (1994), demonstra-
Larson (1988), que propõe uma estrutura em camadas para constru- se, na seção 3, que as restrições à alternância dativa podem ser explicadas em
ções bitransitivas – a VP shell. A hipótese da VP shell tem sido ampla- termos do licenciamento de traços aspectuais nas configurações projetadas
mente adotada. Em Chomsky (1995), (1999), o núcleo mais alto da pelos núcleos lexicais.
projeção, referido como verbo leve (light verb), tem propriedades
relevantes para o processo de checagem de traços formais, licenciando 3. Estrutura argumental e papéis temáticos aspectuais
argumentos em posições sintáticas de Caso (estrutural). Chomsky De acordo com Hale & Keyser (1993:53), ‘each lexical head
adota, por sua vez, a teoria da estrutura argumental de Hale & Keyser projects its category to a phrasal level and determines within that
(1993, ms.), a qual propõe que os argumentos são licenciados em um projection an unambiguous system of structural relations holding
número restrito de configurações sintáticas projetadas por núcleos between the head, its categorial projection and its arguments (specifier,
lexicais.
O estudo será desenvolvido como a seguir: na seção 2, será
ilustrada a alternância dativa, sendo indicadas as restrições à ocorrên-
cia desse fenômeno; na seção 3, será apresentada a teoria da estrutura 1
Não será analisado o caso em (i), em que não ocorre a variante com o
argumental de Hale & Keyser (1993, 1999), que será adotada parcial- objeto duplo. Note-se que a restrição não pode ser discutida em termos
mente, dado que não dá conta das restrições observadas, e em seguida, da interpretação (locativa/possessiva) – considera-se tentativamente que
proposta de Salles (1997) de atribuir traços aspectuais às projeções não corresponde a uma estrutura bitransitiva, já que o argumento realiza-
do no sintagma preposicional pode ser omitido (cf. (ii)):
lexicais, em termos da teoria aspectual de Tenny (1994). Finalmente,
(i) Mary gave birth to John
serão discutidos os dados parciais da pesquisa variacionista. (ii) Mary gave birth many times

140 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


if present, and complement)’. Essa configuração e o sistema de rela- (1957), sob a forma de classes de eventos. Existem, porém, evidências
ções a ela associado definem uma estrutura lexical relacional (Lexical de que a interpretação aspectual é determinada composicionalmente,
Structural Relation), a qual por sua vez corresponde à estrutura pela interação entre as propriedades verbais e nominais do predicado
argumental do núcleo lexical. A estrutura argumental é, portanto, uma (cf. Verkuil (1972); Tenny (1994), Schmitt (1996) e referências ali
sintaxe no domínio lexical, devendo ser distinguida da sintaxe oracional, citadas).
que envolve o item lexical, seus argumentos (a LSR) e as categorias De acordo com Tenny (1994), o argumento tema prototípico
funcionais associadas à projeção da oração (projeção estendida). tem papel fundamental na estrutura aspectual, dado que pode medir o
O número restrito de categorias lexicais (N, V, A, P) e de relações tempo interno do evento descrito pelo predicado, traduzindo delimi-
sintáticas em que podem ocorrer (núcleo-complemento; especificador- tação espacial em delimitação temporal. É o que ocorre com o argu-
núcleo) explica o número de limitado de configurações possíveis, ilus- mento manga em (8a), em oposição a (8b), em que o argumento, sendo
tradas em (4)2: não-contável (de extensão e quantidade indefinida), não pode delimi-
(4) a. [X X [ Y]] tar o evento:
b. [X Z [X X [ Y]]] (8) a. Leandro comeu uma manga
c. [A Z [A A [X]]] b. Leandro comeu manga
d. X Nos predicados bitransitivos (locativos) (cf. (2b)), a interpretação
Na configuração em que se verifica a interpretação causativa, aspectual é composicional: o sintagma nominal flores indica o caminho
está implícita a hipótese de que o verbo projeta uma configuração em (PATH) no desenvolvimento do evento e o sintagma locativo crucialmente
camadas, constituída de um núcleo lexical e um núcleo dito leve, a VP o término.
shell (a respeito do verbo leve: cf. Grimshaw (1991), Scher (2000) e Assumindo hipótese formulada em Tenny (1994), segundo a
referências ali citadas). qual o mapeamento dos argumentos na estrutura sintática é determi-
Relativamente à alternância dativa, Hale & Keyser propõem nado pelas propriedades aspectuais da predicação verbal, propõe-se,
que a variante preposicionada é uma projeção de V e P (cf. (5)), seguindo Salles (1997), que tais propriedades se encontram represen-
correspondendo à estrutura (4b) encaixada em (4a), enquanto a de tadas na configuração sintática projetada pelos núcleos lexicais (cf.
objeto duplo resulta da projeção recursiva de V (cf. (6)) – as variáveis seção 2.1). Esse mapeamento pode ser formalizado em termos de
DP correspondem a sintagmas nominais que representam a meta (ou checagem de traços formais, conforme em Manzini & Roussou (1997)5
recipiente) e o tema. O rótulo V designa a classe de elementos que (cf. também Borer (1996)).
podem projetar3: Assim, em predicados locativos, a alternância não ocorre por-
(5) [VP Vgive [ DP1tema [P Pto DP2meta]]]] que o argumento locativo é interpretado como um ponto no espaço
(6) [VP Vgive [V DP1meta tV [DP2tema tV [ tDPmeta]]] (podendo ser realizado por um dêictico (Maria pôs as flores ali) – cf.
A configuração em (5) comporta ainda que tema e meta tro- Jackendoff (1992)): o sintagma nominal na posição de objeto da pre-
quem de posição, o que implica que o núcleo P seja realizado pela posição participa da interpretação aspectual indiretamente, não po-
preposição with (=com), como em I provided them with books4. dendo ser realizado na posição do argumento que mede o evento6.
Nessas configurações, está implícita exigência morfofonológica Nos predicados com interpretação possessiva, diferentemente, o
de que um núcleo nulo incorpore seu complemento, o que permite evento descrito implica transferência de posse. Conforme ressaltado em
assumir que predicados do tipo calve (= parir bezerros) e shelve (= Jackendoff (op. cit.), o argumento na posição de objeto da preposição
pôr na prateleira) são o resultado da incorporação do nominal inter- (João) é interpretado como um indivíduo (não um ponto no espaço), do
pretado como uma constante lógica (calf/shelf), ocorrendo na mesma que decorre a possibilidade de ocorrer na posição por excelência do
configuração das perífrases have a calf ou put the book on a shelf, argumento medidor do evento – nesse caso, o argumento estruturalmen-
ilustradas em (7): te mais baixo (o livro) não participa da interpretação aspectual do
(7) a. ... [VP Vcalve [NP Ncalf]] predicado.
b. ... [VP Vshelve [PP DPthe book P [NP Nshelf]]]
Conforme ressaltado em Salles (1997), tal formulação não dis-
cute, porém, a distribuição translingüística da alternância dativa, as 2
A realização lexical de tais configurações varia nas línguas do mundo: em
restrições léxico-semânticas associadas a sua distribuição (interpreta- inglês, (a) e (d) são predominantemente V e N, respectivamente, enquan-
ção possessiva versus interpretação locativa) (cf. (2)), além das res- to (b) e (c) têm mais de uma realização, com o predomínio de P e A,
trições que bloqueiam a variante preposicionada (cf. (3)). respectivamente
Com relação às restrições translingüísticas, é possível formular
3
A argumentação para justificar a configuração em (6) para a construção
uma generalização descritiva que correlaciona a perda da distinção de objeto duplo provém da constatação de que a predicação secundária
é regularmente do tema (não do recipiente). Partindo de uma disposição
morfológica entre acusativo e dativo à possibilidade de projetar (6).
que coloca o argumento tema na posição mais alta em relação ao argu-
De fato, em línguas que apresentam a alternância dativa (inglês, holan- mento meta, pode-se captar o contraste em (i) e (ii):
dês, línguas escandinavas), essa distinção não é encontrada. Ressalta- (i) I handed the bottle to its mother crying/ *I gave the bottle to the baby
se ainda a correlação entre a codificação morfológica do caso e a flexi- crying
bilidade na ordem dos constituintes: línguas com a alternância dativa (ii) I handed the mother her baby crying/ * I gave the baby its bottle crying
apresentam ordem rígida (cf. Salles (1997)). 4
Essa configuração não se aplica à construção com objeto duplo pelo fato
Na próxima seção, será discutida a proposta de atribuir traços de que a teoria não prevê uma situação em que um núcleo lexical
aspectuais às configurações postuladas em (5), (6) e (7), dada a hipótese preposicional foneticamente nulo não é incorporado pelo núcleo lexical
mais alto.
formulada em Tenny (1987) de que o mapeamento dos argumentos na 5
Nessa análise, o controle é analisado em termos de movimento-A traços
estrutura sintática é determinado pelas propriedades aspectuais da aspectuais.
predicação verbal. 6
Compare com give the book away. O adverbial away apresenta, além do
traço locativo, um traço durativo, identificado na interpretação: ‘deslo-
3.1 Codificação gramatical de propriedades aspectuais camento em relação a um ponto de origem’. Na presente análise, a
A tradição de classificar os predicados em termos de categori- interpretação durativa do adverbial é crucial para explicar a gramaticalidade
as aspectuais, como atividade, estado e consecução/término – Aktionsart de give away the book – pode-se dizer que o traço [+durativo] do adver-
– remonta a Aristótelis, tendo sido retomada por exemplo em Vendler bial licencia o traço de aspecto associado àquela posição.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 141


Quanto ao contraste em (3), é possível discuti-lo também em 3. Conclusão
termos de restrições relacionadas à interpretação aspectual, assumin- O presente estudo examinou restrições na distribuição da
do que também envolvem o processo descrito em (7). Duas realiza- alternância dativa em inglês, bem como fatores que determinam a
ções são possíveis: (i) com incorporação, que dá origem à forma escolha da preposição introdutora do objeto indireto em construções
lexicalizada (cf. (9a)); e (ii) sem incorporação, que corresponde à es- bitransitivas no português do Brasil, apontando que podem ser discu-
trutura perifrástica (cf. (9b)): tidos em termos da estrutura conceptual do predicado, em particular
(9) a.... [VP kiss [VP John tV [VP tV [NP Nkiss]]] (=kiss John) a natureza semântica do nominal, em dar um livro/ dar um beijo:
quantificável, no primeiro, não-quantificável (ou parte do evento), no
b.... [VP give [VP John tV [VP tV [NP a kiss]]] (=give
segundo.
John a kiss)
Foi proposto que as propriedades aspectuais do predicado estão
Na configuração em (8b), o argumento John é interpretado como representadas na projeção sintática dos núcleos lexicais, o que explica a
afetado pelo evento expresso pelo complexo [give a kiss]. O núcleo exigência de um argumento quantificável na posição sintática saturada
nominal, por sua vez, é interpretado como uma parte do evento, não pelo argumento que mede o evento. As construções de objeto duplo se
apresentando conteúdo referencial. Isso pode ser confirmado pelo distinguem daquelas envolvendo o núcleo preposicional pelo fato de
fato de que a quantificação do nominal implica um interpretação iterativa que o licenciamento dos traços aspectuais do predicado é feito exclusi-
do evento (não do nominal): give two kisses (= kiss twice); dar dois vamente pelo argumento realizado na referida posição. Nas construções
beijos (= beijar duas vezes). A agramaticalidade de (3b: *give a kiss to em que a preposição tem matriz fonológica, o licenciamento dos traços
John) é então explicada em termos da impossibilidade de o nominal aspectuais do predicado é feito por meio de um processo composicional
(não quantificável), interpretado como parte do evento, licenciar pro- de que participa crucialmente a projeção preposicional, indicando o
priedades aspectuais do predicado. término do evento.
Do ponto de vista da interpretação do predicado, essas obser- Considerou-se que o estudo contrastivo dos fatos observados
vações se aplicam ao português. Entretanto, dadas as restrições no inglês e no português vem confirmar a hipótese de que informação
morfossintáticas relacionadas à ocorrência da projeção em (6), tais lexical está representada sintaticamente (e morfologicamente), a
fatos estão gramaticalizados diferentemente: em português, a inter- codificação gramatical do dativo variando de acordo com as proprie-
pretação aspectual do predicado necessariamente envolve o núcleo dades da projeção lexical.
preposicional (cf. (5)). Na próxima seção, será discutido o caso do
Referências bibliográficas
português, considerando-se particularmente o fato de que o portugu-
ês do Brasil codifica propriedades léxico-semânticas do predicado Borer, H. (1996) ‘Passive without theta grids’. S. Lapointe (ed.)
bitransitivo em termos da escolha da preposição. Morphological Interfaces, CSLI, Stanford.
Dowty, D. (1979) Word Meaning and Montague Grammar. Dordrecht:
3.2 O caso do português do Brasil Reidel
É interessante notar que, no português do Brasil (mas não no Green, G. M. (1974) Semantics and Syntactic Regularity. Bloomington:
português europeu), o contraste na estrutura conceptual dos predicados Indiana University Press.
(dar livro/dar beijo) está codificado em termos da escolha da prepo- Hale, K. and Keyser, S. J. (1993) ‘On Argument Structure and the
sição: para, na transferência de posse; em, se o nominal é interpretado Lexical Expression of Syntactic Relation’, in K. Hale and S. J.
como parte do evento, ilustrado em (10): Keyser (eds.), The view from building 20. Cambridge, Mass.:
(10) a. Maria deu um livro pro/ao filho The MIT Press.
b. Maria deu um beijo no/ao filho —— (ms) On the double object construction. MIT.
Conforme demonstrado em Salles & Scherre (2001), em estudo Jackendoff, J. (1992) Languages of the Mind – Essays on Mental
variacionista da variedade nordestina falada em Fortaleza, a escolha da Representation. Cambridge, Mass.: The MIT Press.
preposição parece estar encaixada na matriz lingüística em termos das Larson, R. (1988)‘On the Double Object Construction’, Linguistic
propriedades quantificacionais do nominal: quantificável, na transfe- Inquiry 19(3):335-91
Manzini, R. & A. Roussou (1997) ‘A Minimalist Theory of A-
rência de posse (deu um livro/ livros), não quantificável, no caso de
Movement and Control’, ms, Florence/UCL and University of
ser parte do evento (deu um beijo) (cf.(9)).
Wales/Bangor.
Assim, de um total de 52 construções examinadas, 34 são Roberts, I. (1987) The Representation of Implicit and Dethematized
introduzidas pela preposição para (71%) e 18 pela preposição a Subjects. Dordrecht: Foris.
(29%). Entre aquelas introduzidas pela preposição a, em 16 (94%) o Ross, J. R. (1972) ‘Act’, in Harman & Davidson (eds.) Semantics of
nominal é não quantificável (cf. (11))7, enquanto em apenas 1 (6%), o Natural Language. Dordrrecht: Reidel, 70-126.
nominal é quantificado (cf. (12)): Salles, H.M.L. (1997) Prepositions and the Syntax of Complementation.
(11) a. nós tamos com quatro noite que nós faz quarto a ela Doctoral dissertation, University of Wales – Bangor, United
b. o país num dá assistência a essas pessoa Kingdom.
(12) deu um cachorrinho a ele Salles, H. M. L. & M. M. P. Scherre (2001) ‘Variation between a and
Quanto às construções introduzidas pela preposição para, ve- para introducing indirect objects’. (ms), Universidade de Brasília.
rificou-se uma situação de variação laboviana: em 25 (73,5%), o nomi- Tenny, C. (1994) Aspectual Roles and the Syntax-Semantics Interface.
nal relevante é quantificado (cf. (13)), enquanto em 9 (26,4%), o Dordrecht: Kluwer.
nominal é não-quantificável (cf. (14)):
(13) a. é porque aquela menina num manda carta né’ pra ele
b. ela manda dois milhão (...) aí manda roupa
sapato pra gente
(14) a. não, não, dava o maior apoio, nós damos o
maior apoio pra ela
b. quer dizer que a mais nova dá conselho pra
mais velha.
7
Foram computados nesse grupo os casos em que o objeto direto é
proposicional

142 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Ensino de língua portuguesa e os discursos
da construção da cidadania
Edna Maria Fernandes dos Santos Nascimento
Universidade Estadual Paulista - UNESP-FAAC

ABSTRACT: Starting from the current concept of citizenship, our proposal is to rethink the epistemological cuts that teaching of the Portuguese
language is based on in different times with the purpose of observing the citizen in each historical moment that the Brazilian educational politics
sought to build.
PALAVRAS-CHAVE: ensino, língua portuguesa, discurso, cidadania.

Nossa Carta Magna reza: Todos somos iguais perante a lei. valor é ser o que os outros não são (1970: 136). Cabe ao ensino de
Entendendo-se lei como exteriorização do direito que vigora em uma língua portuguesa a descrição desses valores que constituem a invariante
comunidade, um código de cidadania, pode-se concebê-la como uma homogênea, a língua padrão. É a estrutura dessa língua correta,
linguagem comum a todo cidadão que se manifesta por meio de uma figurativizada pelo mestre genebrino como um dicionário comum a
língua tida como nacional e, portanto, propor a paráfrase: Todos so- todos, que a parcela da sociedade que conseguia passar no exame
mos iguais perante a língua. Mas que igualdade é essa do cidadão escrito e oral de admissão ao ginásio teria que introjetar. Uma língua já
perante a língua? com feições luso-brasileiras, cujos exemplos clássicos são também
Partindo dessa paráfrase e do conceito de cidadão como indi- nossos escritores e nossa cultura, molda ainda uma elite, mas, nesse
víduo no gozo dos direitos civis e políticos de um Estado, ou no momento, uma elite burguesa. Pelo distanciamento entre a língua ensi-
desempenho de seus deveres para com este, e lembrando que é o nada na escola e aquela em uso, pode-se dizer que, nas gramáticas, o
Estado que deve promover e garantir o ensino da língua pátria, a nossa nosso idioma era ensinado quase como uma língua estrangeira.
proposta é repensar os recortes epistemológicos que embasaram o Com a disseminação do ensino público, em virtude da sua
ensino de língua portuguesa em diferentes épocas com a finalidade de democratização, mais ou menos no final da década de 60, uma nova
verificar o cidadão que cada momento histórico a política educacional clientela, adentra à escola, principalmente pública, não só no antigo
brasileira visava construir. primário, mas principalmente no curso ginasial. Novas escolas come-
É sabido que as nossas primeiras gramáticas, fundamentadas çam a funcionar e é extinto o exame de admissão para o ginásio. A nova
no modelo greco-romano, pregavam a arte de bem falar e bem escre- clientela traz para a sala de aula o falar do povo, o falar coloquial,
ver. Para usar a língua com engenho e arte, o estudante devia memori- padrões culturais diferentes daqueles com que a escola estava habitu-
zar textos exemplares. No dizer de Edward Lopes (1986:2): ada a conviver. Para dar conta dessa nova realidade lingüística, os
Entender-se-ia, nesse caso, por memorização, a decoração do estudiosos de língua voltam os olhos para a Lingüística norte-america-
discurso que por sua perfeição merecesse ser estocado na com- na e fundamentam-se em Noam Chomsky. O conceito de competência
petência das pessoas como dispositivo a ser reproduzido ou lingüística na gramática gerativa de Chomsky (Borba, 1976:18), isto é,
imitado posteriormente, por meio da sua reescritura ou cita- a capacidade que tem o falante nativo de uma língua para entender e
ção, no todo ou em parte, como peça autônoma ou no corpo de produzir um número infinito de frases, ou seja, uma aptidão, um saber
outro discurso. implícito que ele desenvolve para usar a língua e que permite a comu-
nicação diária, ampara os livros didáticos da época. Salientando a
Como se pode observar no texto de Lopes, esse ensino decora-
diferença entre a postura que se fundamenta em uma escola francesa
tivo, nos dois sentidos do termo, como processo mnemônico e como
cujo representante é Saussure e a postura de Chomsky, escreve Borba
ornamento, privilegia a imitação ou a reescritura de modelos de perfei-
(!976:18):
ção da língua. Com esses modelos clássicos de textos verbais, ensina-
va-se ou dotava-se o aluno de um arquivo de textos ilustrativos de Costuma-se vincular essa dicotomia competência (=conheci-
uma língua que, certamente, pouco se distanciava daquela que usual- mento da língua) - atuação (=desempenho real) com a
mente ele utilizava. A presença na escola dessa elitização das formas saussuriana língua-fala. Na verdade, elas diferem pela base
do dizer tem como decorrência a formação de um cidadão da elite e filosófica: a chomskiana é de orientação racionalista, a de
para a elite. Freqüentar a escola e, em conseqüência, usar bem a língua Saussure é empirista (positivista). Enquanto a língua é
portuguesa é um privilégio para poucos. Até aproximadamente os supraindividual, coletiva, adquirida, inventário sistemático de
anos 50, o ensino no Brasil destinava-se, quase que, fundamentalmen- unidades e produto histórico, a competência é individual, ina-
te, a essa camada privilegiada da população. Os oriundos dessa elite ta, conhecimento da língua e atividade criadora. Desse modo,
chegavam com um razoável domínio da língua de prestígio, o portugu- a fala também difere da atuação porque é uso individual da
ês na sua variante culta, que a escola pregava. A função do professor língua e a atuação é a manifestação das habilidades lingüísti-
de língua era levar ao conhecimento do aluno, para muitos apenas o cas do falante-ouvinte nativo.
reconhecimento, o funcionamento das regras de bem falar e escrever. É essa competência que se manifesta nos atos concretos de fala
Esse ensino da língua dotava o aluno de um repertório metalingüístico, e que faz com que o falante reconheça frases gramaticais e frases
um saber sobre a língua que de certa forma ele já dominava. agramaticais da sua língua materna que o professor deve aprimorar. O
Com a divulgação das dicotomias saussurianas, a língua passa aluno é então visto, conforme essa nova postura teórica emprestada
a ser entendida como estrutura em que cada elemento tem um valor. dos Estados Unidos, não mais como tabula rasa, mas como um falan-
Para Saussure (1970:136), o valor é puramente diferencial, definido te ideal que já preencheu a sua memória lingüística com uma compe-
não positivamente por seu conteúdo, mas negativamente por suas tência ideal. O ensino de língua pátria, visando ao desenvolvimento de
relações com outros termos do sistema. A característica mais exata do habilidades lingüísticas, é programado a partir de exercícios que têm

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 143


como finalidade a construção de esquemas arbóreos que representam plurilíngüe na sua própria língua, que o professor de primeiro, segun-
as invariantes frásticas. A descrição dessas estruturas determina uma do e terceiro graus deve formar. Sem alimentar a idéia de que um uso
língua homogênea que deverá ser usada pelo cidadão ideal, portanto, lingüístico possa ser melhor ou pior que outro, a variante padrão pode
abstrato, fora da sociedade em que vive. Se, nas gramáticas que têm passar a ser buscada pelo estudante, ao invés de se ter uma única
como pano de fundo os ensinamentos saussurianos o enfoque é na variante imposta pela escola. Cabe ao aluno escolher a variante mais
palavra, a descrição da sua estrutura, naquelas de base chomskiana, o adequada para cada situação.
ponto central é a geração de frases pertinentes. Recentemente, em meados de 90, reiterando a concepção de
Na década de 80, por sua vez, o que se busca é uma gramática da que os indivíduos não se comunicam apenas pelo texto verbal, mas
língua em funcionamento em que os fatores da comunicação são privi- também pelos textos não verbais, o que se busca é uma gramática do
legiados. Conforme os postulados do mestre russo Roman Jakobson texto, os mecanismos que fazem com que um texto seja um texto e não
(1969), as mensagens atualizam invariantes estruturais características um amontoado de palavras, de frases, privilegiando-se, com esse ob-
ao privilegiarem um dos fatores da comunicação, o emissor, o destina- jetivo, os fatores que lhe imprimem coesão e coerência. Entende-se,
tário etc; e a relação entre os fatores da comunicação e as funções da portanto, que a comunicação é um ato sincrético e que, para que o
linguagem pode determinar o aparecimento de um gênero específico, aluno compreenda o mundo, ele tem de aprender o funcionamento das
como, por exemplo, a focalização no destinatário prevê estruturas diferentes linguagens, dos diferentes códigos, além do lingüístico, ou
lingüísticas como o vocativo, o imperativo, que caracterizam o texto ainda, que o próprio mundo é concebido como um texto e que para lê-
de propaganda. Os estudos desse teórico permitiram que a escola lo o educando deve ampara-se em várias disciplinas, como a história,
desse conta de outros tipos de textos com que o aluno tem contato, a geografia, a ciência. Essa interdisciplinaridade amplia o conceito de
além dos textos tidos como clássicos, como, por exemplo, os textos da leitura que deixa de ser soletrar para ser um entendimento do mundo,
mídia seja escrita, seja oral. da “palavramundo”, no dizer de Paulo Freire (1981:12), uma repre-
Corroborando essa postura funcionalista, os estudos do rome- sentação dos discursos em curso na sociedade.
no Eugenio Coseriu (1961) pregam, no lugar da dicotomia saussuriana Na materialidade da língua, que expressa o discurso, ficam as
língua/fala, a tripartição sistema, norma e fala. Para esse estudioso, a marcas de quem o produziu e o contexto sócio-histórico onde ela está
língua não é homogênea, mas ela é composta de normas, de variações inserida. Nessa perspectiva, a língua deixa de ser apenas um fator de
em uso que se constituem em subcódigos em uma determinada época. comunicação para ser a expressão das condições de sua produção e o
Nesse sentido, a língua muda; parafraseando suas palavras: a língua aluno, por sua vez, é concebido como um ser ativo que constrói suas
evolui funcionando, há, a todo momento, formas nascendo e formas habilidades lingüísticas em interação com os outros e com a própria
morrendo. A visão homogênea da língua como um organismo estático língua. O aluno é entendido como um sujeito construído na língua e
é substituída por uma concepção heterogênea. A visão heterogênea de pela língua que materializa o discurso. As atividades programadas
língua permite explicar as diversidades lingüísticas dos falantes da para o ensino de língua portuguesa devem então prever a formação
língua portuguesa, quer sejam elas diastráticas, diatópicas, diacrônicas não só de um aluno conhecedor das variantes lingüísticas para ser um
ou diafásicas. O que se pretende ensinar na escola é a variante padrão, plurilíngüe dentro da sua própria língua, como na postura funcionalista,
mas se reconhece que o aluno é um representante de uma ou mais mas conscientizá-lo de que essas variantes materializam diferentes
dessas variações. O que se tem, portanto, não é uma única gramática, discursos. O aluno que se tem como objetivo formar deve então ser
mas gramáticas que devem ser usadas conforme o registro escolhido pluridiscursivo.
pelo falante para compor um texto. As conseqüências dessa postura Com a ampliação da noção de texto, como qualquer plano de
teórica logo se fazem sentir, explícita ou implicitamente, nos nossos expressão que tenha coesão e coerência, e com uma nova concepção de
manuais de ensino de língua. leitura como interpretação de discursos, o ensino de língua visa a
O erro gramatical passa a ser explicado como um desvio da formar um cidadão “real” pleno que, sabendo ler os discursos, conhe-
norma. O erro (Borba, 1976: 37) é entendido como uma decorrência ça a comunidade em que vive, podendo torná-la melhor.
social, pois o grupo seleciona certos usos classificando-os como bons Dessa breve reflexão sobre as teorias lingüísticas que se encon-
e rejeita outros como maus ou errados. O erro é então explicado como tram como pano de fundo no ensino de língua portuguesa no Brasil,
resultado de valorização social dos elementos lingüísticos. Será consi- podem ser destacadas três palavras que caracterizam cada um desses
derado como errado tudo o que for contra a tradição coletiva. Por si momentos: “estrutura”, para os anos 50 e 60, “variação” para os anos
mesma a língua não comporta erros, pois os conceitos de certo e 80 e “discurso” para os anos 90. O ensino orientado pelo estruturalis-
errado são meras convenções sociais. mo dá ênfase ao sistema da língua (palavra/frase) e tem como base
Conforme o tipo de texto é possível a utilização de um registro procedimentos estruturais segundo o modelo da fonologia. O segundo
não previsto na norma padrão. Ao se ler e interpretar as tiras ou momento concede prioridade às diversidade lingüísticas do sujeito
histórias em quadrinho onde aparece o personagem Chico Bento, de falante. O terceiro, por sua vez, que corresponde ao sistema de ensino
Maurício de Sousa, por exemplo, o professor deve chamar a atenção atual, volta sua atenção para a dimensão interativa, dialógica,
do aluno para o efeito de sentido do uso da variante da fala desse conversacional, discursiva.
representante da zona rural. É uma outra realidade, ou a própria reali- O que se pode observar é que a escolha das teorias lingüísticas
dade do aluno, que a escola apresenta e descreve: um Brasil plurilíngüe. que embasam o ensino da língua portuguesa servem de esteio para a
A incorporação de diferentes tipos de textos, jornalísticos, técnicos, chamada democratização do ensino no Brasil. Fundamentada em co-
políticos, ao corpus de análise da sala de aula demonstra os diversos nhecimentos lingüísticos, a escola passou a ensinar variantes que não
subcódigos, estimulando a mudança de postura do professor de lín- são padrão e discursos que não representam somente uma elite. A
gua portuguesa. Ele que deveria ensinar apenas a língua padrão, a escola busca trazer para a sala de aula o mundo do aluno e quer torná-
partir de exemplos clássicos, agora tem de ensinar as variantes em uso lo cidadão pleno para a sua realidade, para a realidade na qual vive.
nos diferentes textos. Ensinar língua é, portanto, nesse momento, Mas, lembrando Fournier e Leeman que constatam que toda gramáti-
ensinar a adequação do registro às diferentes situações que se apresen- ca supõe uma teoria da língua e que nenhuma teoria da língua é
tam no cotidiano do educando. O ensino de língua volta-se, portanto, inocente (1970:104), pode-se pensar que não é inocente a escolha da
para o falante não mais ideal, mas para o falante que usa o seu idioma teoria lingüística que cada época elege para transmitir os conhecimen-
e que pretende ler e produzir textos do cotidiano. É esse aluno, tos solidificados na sociedade. Cada época constrói um discurso edu-

144 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


cacional que visa a formar um cidadão que se adapte a seu momento Referências bibliográficas
histórico, que seja um cidadão que se paute pelos padrões vigentes,
ANDRADE, M. Macunaíma. O herói sem caráter. São Paulo: Martins
ou seja, um cidadão padrão. Fontes, 1965.
Em todas essas posturas educacionais resta muito pouco para CHOMSKY, N. Linguagem e pensamento. Rio de Janeiro: Vozes,
a individualidade, como comenta Edward Lopes (1986:22): 1971.
COSERIU, E. Sistema, norma y habla. Teoria del lenguaje y lingüistica
Promovendo, assim, a substituição do indivíduo pelo grupo general. Madrid: Gredos, 1961. p. 13-113.
enquanto instância de deliberação e de tomada de decisão, a FOURNIER, F. e LEEMAN, D. Questions sur la grammaire
traditionalle. Le profil grecque. Langue Française 41. Paris, 1979,
padronização abole as diferenças individuais em que se funda 77-104.
a experiência imaginária da liberdade do indivíduo e interioriza FREIRE, P. A importância do ato de ler. Caderno de estudos lingüísticos.
no espaço da escola o sistema de relações de poder vigente lá Campinas: UNICAMP, 1981. p.11-21.
JAKOBSON, R. Lingüística e poética. Lingüística e comunicação.
fora, no macro-espaço social. São Paulo: Cultrix/EDUSP, 1969. p.118-162.
LOPES, E. Metáfora: da retórica à semiótica. São Paulo: Atual, 1986.
Não é fácil vivenciar a experiência imaginária da liberdade em LOPES, E.O texto literário e o texto de massa e o ensino de língua
um país que, apesar de todas propostas de ensino de Língua Portu- portuguesa. Stylos 91, São José do Rio Preto, UNESP, 1986,
guesa, continua sendo uma comunidade de gente de dois Brasis, como p.1-30.
SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix, 1970.
já ponderou Macunaíma na Carta pràs Icamiabas (1965:105):
Ora sabereis que a sua riqueza de expressão intelectual é tão
prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 145


Variação e mudança das estratégias de negação
Maria Angélica Furtado da Cunha
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

ABSTRACT: The existence of postverbal negation in Romance has been accounted for in terms of contact with African languages. This work argues that
the emergence of double and final negatives in BP is the result of a process of change motivated by the interaction of rival pressures on the linguistic system.
PALAVRAS-CHAVE: Hipótese crioulista, negação, motivações competidoras.

Estudos sobre a negação oracional têm atribuído a existência de sistema lingüístico está sujeito. A hipótese crioulista justificaria as
negativas duplas e finais nas línguas românicas à teoria do contato diferenças entre o PB e o PE, que se desenvolveram a partir do século
com línguas africanas, o que evidenciaria a origem crioula do portugu- XVII.
ês do Brasil (Schwegler 1991, Holm 1988). Este trabalho tem por A gênese de negativas duplas e finais nas línguas românicas tem
objetivo apresentar evidências de que a emergência da negativa dupla sido apontada como um traço de crioulização resultante da influência
e da negativa final no português do Brasil (PB) é resultado de um da estrutura de línguas africanas (cf. Schwegler 1991, Holm 1988,
processo diacrônico, independentemente motivado pela atuação de Marroquim 1934, Silva Neto 1986, Elia 1979, Camara Jr. 1976, entre
pressões rivais sobre o sistema lingüístico. A análise combina dados outros). De um modo geral, esses autores não apresentam evidências
sincrônicos e diacrônicos, no que se caracteriza como uma abordagem que sustentem que o contato com línguas africanas tenha sido respon-
pancrônica, e toma como suporte teórico o modelo das motivações sável pela emergência da negativa dupla e da negativa final no PB.
competidoras, tal como formulado por Haiman (1985), Du Bois (1985) Schwegler (1991) relaciona a existência das negativas duplas e
e Givón (1995) no contexto da Lingüística Funcional Contemporânea. finais no PB, no francês, em alguns dialetos italianos e em outras
A conclusão é que as estratégias inovadoras de negação representam línguas hispanoamericanas, faladas na Colômbia, em Cuba e São Do-
estágios sucessivos de reanálise. A posição estrutural do marcador mingos, ao contato com línguas africanas, o que evidenciaria a origem
negativo aponta para um processo de variação/mudança na ordenação crioula do PB. Para esse autor as duas negativas pós-verbais do PB
vocabular das construções que codificam o domínio funcional da nega- estão associadas a funções pragmáticas distintas: a negativa padrão,
ção. pressuposicionalmente neutra, é usada para negar uma asserção, en-
A análise sincrônica tem como fonte de dados básica o Corpus quanto as negativas dupla e final, pressuposicionalmente marcadas,
Discurso & Gramática (D&G), composto por textos orais e seus são usadas para rejeitar uma expectativa (explícita ou implícita) no
correspondentes escritos produzidos pela comunidade estudantil de discurso precedente. Segundo Schwegler, a posição do morfema nega-
diferentes cidades do Brasil: Natal (RN), Rio de Janeiro (RJ), Niterói tivo acrescenta informação pragmática importante ao significado bási-
(RJ), Juiz de Fora (MG) e Rio Grande (RS). Para comprovação adici- co: a negativa padrão (a forma não-marcada) simplesmente declara um
onal da distribuição das negativas dupla e final, foram ainda consulta- fato, sem nenhuma pressuposição, enquanto as negativas dupla e
dos outros bancos de dados representativos da variedade falada no pós-verbal (as formas marcadas) assinalam contradição. A análise dos
Rio de Janeiro (PEUL – Amostras do português falado no Rio de meus dados não sustenta o argumento de Schwegler e revela que as
Janeiro e Banco de dados interacionais), Fortaleza (A linguagem negativas padrão, dupla e pós-verbal podem ser intercambiáveis uma
falada em Fortaleza) e Salvador (NURC – A linguagem falada culta na vez que são usadas para recusar, rejeitar ou contradizer uma expecta-
cidade de Salvador) e uma amostra do português europeu atual (Por- tiva ou asserção previamente mencionada ou pressuposta no texto
tuguês fundamental), a fim de verificar a ocorrência das negativas em (Furtado da Cunha 2000), como nos exemplos que se seguem.
foco. Em (4), a negativa dupla rejeita uma asserção presente no con-
Na análise diacrônica da negação, procedi ao levantamento das texto imediato, exemplificando, assim, uma negação explícita. O fa-
negativas em textos representativos do português escrito arcaico (do lante está narrando o filme Uma linda mulher. A negativa é usada para
século XIII até meados do XVI): A demanda do Santo Graal, Auto do refutar a informação dada pelo próprio falante de que o carro que
pastoril português, Obras-primas do teatro vicentino, Obras comple- seguia o persanagem principal estava sendo dirigido por seu próprio
tas de Gil Vicente, Crestomatia arcaica, A mais antiga versão portu- motorista. Assim essa negativa funciona como um recurso de auto-
guesa dos Quatro Livros dos Diálogos de São Gregório, Um tratado reparo:
da cozinha portuguesa do século XV, Crônica de D. Pedro I e Crônica (4)... e um motorista dele... nesse tempo ele... nun era... num era
de D. Fernando. Foram ainda verificados dois outros textos do portu- um motorista dele não... era do hotel... porque ele ficou sem motoris-
guês moderno: Auto dos dous ladrões (segunda metade do século ta... (D&G/Natal, fala, 2º grau, p. 244).No exemplo (5) o falante usa a
XVI) e A vingança da cigana (século XVIII). negativa pré-verbal para contradizer uma asserção apresentada no
O português do Brasil exibe três estratégias de negação contexto imediatamente precedente. Ela está falando sobre seu pri-
oracional:(1) a negativa canônica pré-verbal não + SV:... com a luz meiro namorado e como eles conseguiam namorar apesar da oposição
acesa a gente não conseguia dormir ... (D&G/Natal, fala, 2o grau, p. da sua mãe:
273).(2) a negativa dupla não + SV + não: ... mude pra um ambiente ... às vezes eu dizia pra minha mãe que tinha aula no sábado e
mais limpo ... porque sua rinite num tá muito boa não ... (D&G/Natal, num tinha... ligava pra ele e a gente se encontrava... (D&G/Natal,
fala, 8a série, p. 364).(3) a negativa final SV + não:... tudo eu faço ... fala, 2o grau, p. 228).
s
abe? tem isso comigo não ... (D&G/Natal, fala, 2o grau, p. 264). A negativa em (6) é usada para negar uma asserção implícita,
O estudo das estratégias de negação do PB se insere no debate algo que o falante assume que o seu interlocutor está inclinado a ouvir.
teórico sobre a mudança lingüística que se desenvolve em torno da Ou seja, a negativa desfaz uma expectativa “incorreta” (cf. Givón
questão de se construções características do PB decorrem de uma base 1979). Nesse trecho, a falante conta o filme Mudança de hábito, no
crioula ou se seriam o resultado de mudanças naturais a que qualquer qual a personagem principal, uma cantora de boate que procura abrigo

146 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


em um convento, se envolve com o coral da igreja: De origem neogramática, o princípio do uniformitarismo tor-
... a nova regente... ela não tava sabendo reger direito... a nou-se um ingrediente essencial em grande parte das pesquisas lin-
regente do coral... tava errando lá um monte de coisas... né... quando ia güísticas históricas (cf. Labov 1994). Ele prevê que tendências hoje
dar as notas pra pessoa... não dividia o coral em vozes ... né... em curso devem ter atuado em estágios anteriores da língua e possivel-
soprano... contralto... esse negócio todo... (D&G/Natal, fala, 2o grau, mente continuarão a atuar. A noção de unidirecionalidade, tal como
p. 278). proposta pelo paradigma da gramaticalização, leva à hipótese de que
Dado nosso conhecimento do senso comum, espera-se que um existem fatores de ordem cognitiva, sócio-cultural e comunicativa que
regente de coral tenha conhecimentos musicais que lhe permitam de- norteiam a mudança. Nesse sentido, pode-se falar em pancronia, ou
sempenhar essa tarefa a contento. A negativa contradiz essa expecta- leis gerais que se fundamentam em bases não exclusivamente estrutu-
tiva – a pressuposição de que um regente de coral saiba como reger. rais e admitir que há transformações que ocorrem em todos os tempos
Um último exemplo de negação implícita está em (7). A negati- e lugares (cf. Furtado da Cunha, Oliveira & Votre 1999). Desse modo,
va dupla ocorre em um trecho de conversação em que a estudante está a compreensão da mudança na ordenação dos constituintes de uma
falando sobre um congresso de protestantes de que participou. Nesse sentença negativa tem que considerar não só a estrutura sintática mas,
caso, a falante parece supor que o ouvinte esperava alguma informa- sobretudo, fatores extra-sintáticos, como os contextos discursivos de
ção sobre o hino; usa, então, a oração negativa para contradizer essa uso dos padrões negativos. Sob esse ponto de vista, a forma negativa
expectativa: é motivada por uma confluência de fatores textuais-discursivos e es-
(7) o grupo Agraphos dirigiu a música... o cântico oficial né... truturais.
do congresso que falava sobre o tema né... falava sobre a bíblia... e Em síntese, sugiro os seguintes estágios no desenvolvimento
dirigia... não vou falar agora a letra do cântico não que é muito das negativas pós-verbais no PB, motivados por fatores de natureza
difícil... mas... o grupo Agraphos né... da igreja de... Santarém e Jordão... diversa, pragmáticos, cognitivos, sintáticos e fonológicos:
eles dirigiam esse cântico... (D&G/Natal, fala, 2o grau, p. 271). 1. reforço opcional da negação através de acréscimo de não pós-ver-
Como se pode concluir dos exemplos citados, as três constru- bal;
ções negativas se sobrepõem funcionalmente no que diz respeito à sua 2. reanálise do não pós-verbal como elemento obrigatório via repeti-
motivação discursiva. ção de uso;
O exame dos fatos sustenta a trajetória de mudança implicada 3. redução fonológica do não tônico pré-verbal para num átono;
na variação sincrônica das estratégias de negação do PB. Primeiro, a 4. eliminação da redundância através da omissão do não pré-verbal.
negativa pré-verbal mais antiga, gramaticalizada, é a mais freqüente As estratégias de negação no PB refletem algumas das caracte-
tanto na fala quanto na escrita. Segundo, tanto a negativa dupla quanto rísticas mais salientes da gramaticalização, tais como: a) sobreposição,
a final são usadas em contextos restritos na fala: os casos de duplo não que se refere à coexistência de várias camadas do mesmo fenômeno
em meus dados sugerem que esse padrão é favorecido em contextos gramatical; b) enfraquecimento fonológico e semântico de uma for-
que correspondem a uma pausa temática, isto é, trechos em que há ma como gatilho para a emergência de uma nova forma funcional-
uma suspensão, interrupção ou digressão da cadeia tópica principal., mente equivalente; c) processos morfossintáticos que levam à
enquanto o contexto de uso específico da negativa final é o de resposta iconicidade entre forma e função e, finalmente, d) reanálise, através
a uma pergunta direta. Terceiro, ambas as negativas duplas e finais são da qual um marcador originalmente opcional passa a ser usado como
raras em textos escritos. Finalmente, as negativas dupla e final são um marcador regular.
mais freqüentes na fala de estudantes mais jovens (cf. Furtado da A concepção de gramática como uma estrutura emergente reco-
Cunha 1996, 2000). nhece a interação das motivações que operam na língua. De acordo
Note-se que o uso de negativas duplas se expande por todo o com essa orientação, a gramática de uma língua natural é concebida
Brasil, enquanto as negativas finais são mais características das vari- como um sistema que se adapta a pressões internas e externas ao
antes nordestinas (cf. Roncarati 1996 e Alkmim 1999 sobre as cons- sistema, que continuamente interagem e se confrontam. As mudanças
truções negativas na fala do Ceará e na cidade de Mariana (MG), lingüísticas são, em muitos casos, resultado da interação entre pres-
respectivamente). Assim, diferenças regionais também estão envolvi- sões de origens distintas e mesmo opostas. Parte-se do princípio de
das no uso das estratégias de negação. Uma vez que se pode atestar a que as estruturas lingüísticas devem equilibrar, de forma ideal, as
negativa dupla, que postulamos como um estágio intermediário, em necessidades e esforços do falante e do ouvinte. Nesse contexto, ad-
vários pontos do Brasil, a emergência da negativa pós-verbal em ou- mite-se a existência de motivações que competem por um determina-
tras regiões não seria surpreendente. do domínio funcional. De um lado, há uma tendência em maximizar a
É importante enfatizar que, ao menos em textos escritos, a informatividade; do outro, há uma tendência em maximizar a econo-
negativa dupla não é uma construção exclusiva do PB, podendo ser mia. Tendo o ouvinte como meta, o falante procura ser informativo e
atestada não só no português arcaico, nos textos de Gil Vicente, como claro para atingir seus propósitos comunicativos. Ao mesmo tempo,
também no PE do século XVI e no PE atual, em contextos de uso da parte do falante há uma tendência em reduzir o sinal falado no
semelhantes aos do PB. A diferença básica entre o PE e o PB tem a ver discurso rápido, o que resulta em desgaste fonológico e conseqüente
com a freqüência de uso da negativa dupla, que parece ser muito maior desbotamento semântico. Tais necessidades e restrições do falante e
no PB do que no PE. do ouvinte configuram a forma da língua. A economia é assumida
Os fatos discutidos aqui sugerem que a negativa dupla, caracterís- como um fenômeno relacionado à nossa capacidade de processamento,
tica da norma vernácula brasileira, já estaria prefigurada no português que envolve memória de curto termo. A eficiência no processamento,
europeu, evidenciando a atuação do princípio do uniformitarismo. Dife- tanto para o falante quanto para o ouvinte, aumenta pelo encurtamen-
rentemente do PE, o PB vernacular teria avançado a mudança embrionária to de formas mais comuns (estruturalmente não-marcadas) e simplifi-
do sistema de negação presente no português que veio da Europa, hipó- cação das formas menos usadas. A iconicidade também é uma questão
tese plausível dada a deriva secular das línguas românicas, conforme Naro de processamento: é mais eficiente que a língua seja paralela à estrutu-
& Scherre (1993). Esses autores localizam no PE as origens de uma série ra da experiência (cf. Givón 1985).
de traços do PB atribuídos a processos de crioulização em que o portugu- O estudo da negação revela a interação de duas motivações que
ês teria entrado como língua lexificadora e diversas línguas africanas teri- competem por esse domínio funcional, uma na direção da restauração
am entrado como substratos, fornecendo estruturas gramaticais. da iconicidade e a outra levando a uma perda da iconicidade, num

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movimento em direção à economia. A aparente arbitrariedade da nega- Edwaldo Cafezeiro. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro,
tiva pós-verbal pode ser interpretada como o resultado de um conflito 1965.
entre motivações icônicas e econômicas. Por um lado, dada a redução LOPES, F. Crónica de D. Fernando. Lisboa: Clássica, 1963a.
do ditongo do não pré-verbal pra num, a pressão por clareza leva à _____. Crónica de D. Pedro I. Lisboa: Clássica, 1963b.
emergência da negativa dupla, em um movimento em direção à MATTOS E SILVA, R. V. A mais antiga versão portuguêsa dos
iconicidade (maximização da informatividade); por outro, a exigência Quatro Livros dos Diálogos de São Gregório. v. 2. São Paulo:
de rapidez na produção do discurso motiva o desenvolvimento da USP. Tese de Doutorado, 1971.
negativa pós-verbal, em um movimento contra a iconicidade MOTA, J. & ROLLEMBERG, V. A linguagem falada culta na cidade
(maximização da economia). A omissão do não pré-verbal fere à de Salvador. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1994.
questão da relevância no sentido de que a negativa assinala contra- NASCIMENTO, M. F. B., MARQUES, M. L. G. & GRUZ, M. L.
expectativa ou rejeição do pressuposto e, portanto, informação rele- S. (orgs.). Português fundamental. Lisboa: Instituto Nacional de
vante. Em outras palavras, a posição final do marcador negativo não Investigação Científica, 1987.
corresponde ao ponto de aterrissagem, na oração, da informação NUNES, J. J. Crestomatia arcaica. Lisboa: Clássica, 1943.
relevante. A perda de transparência da mensagem é compensada NUNES, I. F. (ed.). A demanda do Santo Graal. Imprensa Nacional/
pelo ganho em velocidade de processamento da informação. Assim, Casa da Moeda, 1995.
a economia discursiva supera a transparência semântica como moti- PAIVA, M da C. de. (org.). Amostras do português falado no Rio de
vação para a negativa pós-verbal. Com respeito à presença do Janeiro. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro,
marcador negativo, então, a negativa dupla é icônica enquanto a 1999.
negativa pós-verbal é econômica. Embora à primeira vista a negativa RONCARATI, C. (org.). Banco de dados interacionais. Rio de Janei-
final pareça arbitrária, ela é diacronicamente motivada, se admitir- ro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996.
mos que a direcionalidade da mudança na negação vai da negativa VOTRE, S. J. & OLIVEIRA, M. R. (orgs.) Corpus Discurso & Gra-
pré-verbal à negativa dupla e daí à negativa pós-verbal. Temos, des- mática – a língua falada e escrita e na cidade do Rio de Janeiro.
se modo, uma série de mudanças, das quais uma leva em direção à Rio de Janeiro: UFF, 1998. (mimeo)
restauração da iconicidade (negativa dupla) enquanto a outra leva a _____. Corpus Discurso & Gramática - a língua falada e escrita na
uma perda da iconicidade (negativa final). cidade de Juiz de Fora. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. (mimeo)
O modelo das motivações competidoras permite interpretar a
ocorrência das três construções negativas como resultado do conflito
entre iconicidade e economia no domínio funcional da negação no Referências bibliográficas
português do Brasil. Não é necessário, portanto, recorrer à influência
de falares crioulos para justificar a existência desses padrões negati- ALKMIM, M. G. R. Ação de dois fatores externos no processo de
vos pós-verbais no PB. Junte-se às evidências arroladas acima o fato mudança em negativas sentenciais no dialeto mineiro. Trabalho
de que, como corretamente argumentam Naro & Scherre (1993, 2000), apresentado no II Congresso Nacional da ABRALIN, UFSC,
parece improvável que tenha existido uma língua pidgin ou crioula de 1999.
base lexical portuguesa e gramática africana associada predominante- CAMARA JR., J. M. História e estrutura da língua portuguesa. Rio
mente com a etnia afro-brasileira que não tenha deixado nenhum regis- de Janeiro: Padrão, 1976.
tro. Além disso, sabe-se que as populações africanas no Brasil eram DU BOIS, J. W. Competing motivations. In: HAIMAN, J. (ed.).
geograficamente muito concentradas: logo, seria de se esperar que as Iconicity in syntax. Amsterdam: John Benjamins, 1985.
negativas dupla e final se circunscrevessem às regiões brasileiras que ELIA, S. A unidade lingüística no Brasil. Rio de Janeiro: Padrão,
apresentavam maior contingente de escravos por volta do século XIX, 1979.
o que não acontece, ao contrário do que afirma Schwegler (1988), que FURTADO DA CUNHA, M. A. A negação no português: uma pers-
relaciona a negativa pós-verbal a um falar pidgin ou semi-crioulo pectiva pancrônica. In: _____. (org.). Procedimentos discursivos
afroportuguês para explicar o caráter marginal dessa construção, para na fala de Natal - uma abordagem funcionalista. Natal: EDUFRN,
ele restrita a áreas brasileiras de população predominantemente negra. 2000.
Assim, a causa da divergência entre o PB e o PE é atribuída à presença _____. Gramaticalização dos mecanismos de negação em Natal. In:
maciça de pessoas de origem africana no Brasil. Contrariamente a essa MARTELOTTA, M. E., VOTRE, S. J. & CEZARIO, M. M.
hipótese, contudo, cabe notar que em Natal e Fortaleza, que registram (orgs.) Gramaticalização no português do Brasil. Rio de Janeiro:
ocorrência freqüente desses padrões negativos, por exemplo, não houve Tempo Brasileiro, 1996.
concentração de escravos de origem africana. FURTADO DA CUNHA, M. A., OLIVEIRA, M. R. & VOTRE, S.
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GIVÓN, T. Functionalism and grammar. Amsterdam: John Benjamins,
ARAGÃO, M. do S. S de & SOARES, M. E. (orgs.). A linguagem 1995.
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148 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


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Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 149


Estabilidade e variação da sintaxe adjetiva
Mariangela Rios de Oliveira
Universidade Federal Fluminense

ABSTRACT: Interpretative analysis of the adjectival clause linking, under functionalist theoretical orientation, with a corpus composed by Christian
religious texts of four distinct synchronies; research of phenomena of linguistic stability and variability, in the cicle hipotaxis > subordination.
PALAVRAS-CHAVE: adjetivas; pancronia; estabilização; variação

Introdução nais com que a nomenclatura gramatical se refere às adjetivas, estariam


De acordo com o pressuposto funcionalista da trajetória de situadas em pontos distintos da referida trajetória, representantes de
gramaticalização de cláusulas formulado por Hopper e Traugott núcleos diversos. Assim, as explicativas, mais desvinculadas da cha-
(1993), o processo de vinculação semântico-sintática das estruturas mada oração principal, situar-se-iam no nível da hipotaxe, enquanto
oracionais obedeceria um percurso histórico rumo à crescente integração. as restritivas, mais integradas ao SN antecedente, estariam localizadas
Na testagem dessa formulação, o que temos verificado na sintaxe em estágio mais avançado de vinculação – a subordinação. Em meio às
adjetiva do português é a tendência à estabilidade ou variação desses duas classes, transitariam uma série de orações, desprovidas, em me-
usos. Ao contrário do inicialmente esperado, temos observado, con- nor ou maior grau, dos traços gerais básicos de uma ou outra classe.
forme Votre et alii (2000), processos mais estáveis e regulares na
organização da sintaxe adjetiva. Paralelamente à estabilidade, encon- 2. Variáveis do continuum de Integração
tramos variação de uso, aparentemente não associada a questões de A fim de testar a proposta de derivação e crescente vinculação
ordem temporal, mas motivada por fatores de natureza pragmático- adjetiva, trabalhamos com três variáveis que se mostraram sensíveis à
comunicativa,. integração semântico-sintática em sua aplicação nos corpora em aná-
Para ilustrar a estabilidade e a variação da sintaxe adjetiva, tra-
lise. Essas variáveis, mencionadas a seguir, quando presentes, recebe-
balhamos aqui com corpora de sincronias distintas da língua: do sécu-
ram grau 1. Assim, chegamos ao estabelecimento de um continuum
lo XX, investigamos Oração cristã (Gloden, 1990); do século XVIII,
com quatro pontos de fixação: grau 3 (mínima integração) > grau 2 >
utilizamos o Sermão do glorioso patriarca São Filippe Néri, escrito
grau 1 > grau 0 (máxima integração). Os pólos da série, corresponden-
pelo padre Manoel Bernardes (1946); do século XVII, selecionamos o
Sermão de São Roque, obra do padre Antônio Vieira (Wittschier, tes aos graus 3 e 0, representariam, respectivamente, os pontos bási-
1973); e, finalmente, do século XV, pesquisamos o Virgeu de cos da hipotaxe e da subordinação.
Consolaçon, de autoria controversa, a partir de sua edição crítica
(Veiga, 1959). Com base nessas obras, de similar tipologia textual - 2.1. Informatividade do SN antecedente
materiais escritos de doutrinação religiosa - testamos três variáveis O maior nível de informação do SN atribuído tende a tornar
favorecedoras a menor integração oracional de conteúdo e forma: mais dispensável ou acessória a adjetiva, motivando, assim, a hipotaxe
informatividade do SN atribuído, genericidade da adjetiva e presença – valor 1. Por outro lado, quanto mais indefinido, genérico ou abstrato
de pausa entre SN e adjetiva. for o termo que recebe a atribuição, maior a tendência para o uso
adjetivo encaixado; assim, a informação veiculada pela adjetiva faz o
1. Fundamentação teórica recorte identificador do SN, num papel fundamental para a especificação
Na investigação dos estágios de vinculação adjetiva numa pers- do mesmo, portanto, mais integrado formalmente também – valor 0.
pectiva pancrônica, partimos de fontes de estudo da mudança sintáti- Em termos formais, observamos que a informatividade maior
ca numa abordagem funcionalista (Heine et alii, 1991; Traugott e Heine, do SN tende a se relacionar a nome próprio (pessoa, região, institui-
1991; Givón, 1995; Martelotta et alii, 1996; Votre et alii, 1998). ção), no singular (mais individualizado, portanto), a que se podem
Em consonância com essa linha, encontram-se Hopper e acrescentar determinantes (atributo, dêitico, numeral, entre outros).
Traugott (1993), no âmbito do que estamos atualmente denominando Inversamente, a menor informatividade do SN refere-se a substanti-
de concepção lato sensu do processo de gramaticalização. Segundo vos de significação imprecisa (abstratos, coletivos, indefinidos), não
esses autores, os arranjos oracionais, mais ou menos integrados, po- raro no plural (o que reforça a generalização) e desacompanhados de
deriam ser distribuídos segundo uma trajetória unidirecional, localiza- maior determinação (em geral, apenas o artigo os antecede).
dos em um dos três estágios de junção a seguir, no sentido da menor Valor 1 (presença de informatividade do SN):
para a maior integração de conteúdo e expressão: (1) Tal a Cruz, ou o Sinal da Cruz milagroso, que formava sobre os
parataxe > hipotaxe > subordinação apestados a mão de Roque. (S. Roque)
(conteúdo) - dependente + dependente + dependente (2) ... tomar consciência da presença amorosa de Deus que nos
(expressão) - encaixada - encaixada + encaixada
espera em nós próprios. (Or. Cristã)
Além desses pontos de aglomeração categorial : parataxe -
Valor 0 (ausência de informatividade do SN):
hipotaxe - subordinação - a proposta de escalaridade dos vínculos
(3) E por esta se podem quebrantar todolos laços que o diaboo ten
oracionais abre espaço para a abordagem de uma série de graus ou
per que possa enganar os bõos. (Virgeu)
níveis de junção situados em espaço mais marginal, fora do eixo básico
de cada um dos três núcleos. Desta forma, entre os pontos referidos, (4) Os passos que nós lemos na Escritura, explicaõ-se com os passos
estariam situados arranjos menos representativos de cada padrão que elles derão em sua vida... (S. Filippe)
classificatório. 2.2. Genericidade da adjetiva
Nesse continuum, explicativas e restritivas, rótulos tradicio- Essa variável relaciona-se com a anterior e se refere à menor

150 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


relevância do conteúdo da oração que funciona como atribuição. Nos variáveis, apresentamos a seguir as tabelas com os índices obtidos. A
casos de hipotaxe – valor 1, mais raros na maioria dos corpora ordem de apresentação parte da sincronia atual para fases progressi-
pesquisados, a genericidade da adjetiva é maior - a informação é secun- vamente mais recuadas, na tentativa de serem registrados ou resgata-
dária e menos relevante, uma vez que o SN antecedente já se encontra dos vestígios da trajetória do vínculo oracional adjetivo rumo à cres-
mais recortado e definido. Temos comprovado motivação discursiva cente integração, conforme a hipótese ide mudança lingüística referida
para a baixa informatividade da adjetiva, que tenderia a ocorrer como inicialmente.
estratégia de argumentação, de convencimento.
Já na subordinação – valor 0, o significado da adjetiva torna-se 3.1. Oração Cristã (Sec. XX)
mais fundamental e saliente, integrado que está ao conteúdo veiculado Tabela 1: incidência de graus e ocorrências de adjetivas em toda a obra
pelo termo antecedente, funcionando na compensação da generalida-
de, abstração ou indefinição do mesmo.
Valor 1 (presença de genericidade da adjetiva):
(5) Ora se começa o livro muy nobre e de gram consolaçõ pera alma,
que se chama Virgeu de Consolaçon. (Virgeu)
(6) Virtude que mete ao outros no Ceo, e fica de fora? Virtude que
salva aos outros, e se perde a si? (S. Roque)
3.2. Sermão do glorioso patriarca São Filippe Néri (Sec. XVIII)
Valor 0 (ausência de genericidade da adjetiva):
Tabela 2: incidência de graus e ocorrências de adjetivas em dois capí-
(7) O artífice que fez dócil o coração de Filippe foy a graça de
tulos
Deos... (S. Filippe)
(8) Isto vale mais do que tudo para os membros da Igreja terrena,
mas não vale menos para a Igreja que sofre no purgatório. (Or.
Cristã)
A respeito de (8), é interessante notarmos como o encaixamento
da adjetiva recorta e se integra ao SN a Igreja. Não se trata de atribui-
ção genérica à instituição Igreja, como um todo; mas sim a uma de
suas ramificações (que sofre no purgatório), que passa a contrastar, 3.3. Sermão de São Roque (Sec. XVII)
no mesmo período, com a Igreja terrena. Exemplos como esse, em Tabela 3: incidência de graus e ocorrências de adjetivas em qua-
que se combinam informatividade do SN (menor integração – valor 1) tro capítulos
e da adjetiva (maior integração – valor 0), evidenciam a importância do
tratamento escalar, da combinação de variáveis, para a análise aqui
proposta.

2.3. Pausa
De acordo com a orientação funcionalista, quanto mais unidos
no plano conceitual estiverem dois termos, mais estarão próximos na
ordem linear da expressão lingüística. Segundo esse princípio, uma
das marcas formais da maior integração semântico-sintática entre ora- 3.4. Virgeu de Consolaçon (Sec. XV)
ções é a proximidade. A pausa, representada na modalidade escrita Tabela 4: incidência de graus e ocorrências de adjetivas em
geralmente pela vírgula, é um fator de quebra dessa unidade. Assim, a cinco capítulos
hipotaxe adjetiva, como organização sintática de menor integração,
costuma estar margeada por pausa (valor 1), enquanto a subordinação Graus Nº de Percentual
restritiva, pelo vínculo mais estreito em relação ao SN antecedente, ocorrências
0 15/50 30%
tende a se articular diretamente, sem pausa, numa única seqüência
1 17/50 34%
(valor 0). 18%
2 9/50
Os exemplos anteriores confirmam a estreita relação entre pre- 3 9/50 18%
sença de pausa e quebra de vínculo. Em (1) e (5), orações em que
predominam traços de não encaixamento, verifica-se a pausa como
uma marca estrutural ratificadora da menor integração semântico-sin-
tática. Já nas seqüências (3), (4), (7) e (8), em que prevalece o 4. O que apontam os resultados?
encaixamento, não há pausa, o que confirma a maior proximidade de Observados os índices das quatro sincronias, verificamos certa
sentido e forma entre o SN antecedente e a adjetiva. tendência à polarização no uso das adjetivas. Assim, os graus 0 e 1,
Como estamos propondo tratar as adjetivas como um continuum representativos de maior encaixamento, em três obras – as do século
pancrônico de integração, é interessante a observação dos exemplos XX, XVIII e XV – totalizam cerca de 65% dos dados, distribuindo-se
o restante – 35%, entre o grau 2 e, menos acentuadamente, o grau 3,
(2) e (6). Em ambas as seqüências, a ausência de pausa (valor 0) se
este de menor nível de integração.
combina com informatividade do SN (valor 1) e genericidade da adjetiva
Dessas sincronias, o que poderia ser interpretado como marca
(valor 1). Estruturas como essas são entendidas como não categóricas,
de possível tendência à hipotaxe – as nove ocorrências do grau 3 no
em posição marginal, desprovidas dos traços básicos da hipotaxe ou
Virgeu de Consolaçon, maior percentual desse grau nas três obras, de
da subordinação. Temos interpretado esses arranjos como motivados
certa forma se anula pelo registro aí de quinze estruturas de grau 0,
por pressões discursivas, artifícios comunicativos voltados para con-
nível de integração máxima.
vencimento ou ênfase.
Por outro lado, em apenas uma sincronia, do século XVII, re-
3. Graus de vinculação adjetiva - índices
presentada pelo Sermão de São Roque, do padre Antônio Vieira, os
Selecionados os corpora, levantadas as adjetivas e aplicadas as
dados encontram-se diversamente distribuídos. Aqui, a maior fre-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 151


qüência das adjetivas situa-se nos graus 3 e 2, registrada em 25 das 37 até aqui obtidos, por outro lado, não podemos refutá-la, em vista do
estruturas analisadas, perfazendo cerca de 68% dos dados. O fato de número ainda insuficiente de fontes pesquisadas, das dificuldades e
somente nesta obra ter sido levantado maior número de orações me- limitações caracterizadoras da investigação de textos mais antigos e
nos vinculadas possivelmente pode ser motivado, como já diagnosti- mesmo da natureza contingente e circunstanciada do fazer humano.
camos em outros corpora, por fatores de natureza pragmático-comu-
nicativa. Não nos esqueçamos das condições ideológico-culturais que
marcaram a época e a produção de Vieira. Conforme Coutinho (1975), Referências bibliográficas
sob a égide do Barroco, a literatura jesuítica é sobretudo missionária,
fundada em ideais religiosos e pedagógicos, orientada para a conver- BERNARDES, M. 1946. Obras completas do Padre Manoel
são e a catequese, formalmente moldada por elaborados jogos Bernardes – sermões e práticas. Tomo 1. São Paulo: Anchieta.
lingüísticos. Portanto, podemos interpretar as adjetivas em Vieira como COUTINHO, A. 1975. Introdução à literatura no Brasil. 7a. ed. Rio
artifício a serviço de tal meta: doutrinação e guia para os servos de de Janeiro: Distr. de Livros Escolares.
Deos. Assim, freqüentes são as ocorrências de natureza reiterativa e GIVÓN, T. 1995. Functionalism and grammar. Amsterdam:
menos integradas como: Benjamins.
GLODEN, E. 1990. Oração cristã. Trad. Eugenia Flavian. São Paulo:
(9) Christo morto com o remédio, em que dava a vida a todos, prega- Paulinas.
do nos braços, Roque morto com o remédio, em que dava a vida HEINE, B. et alii. 1991. Grammaticalization: a conceptual framework.
a todos, formado nas mãos. Chicago: The University of Chicago Press.
(10) Isto he o que fez Christo, e esta foy a mayor acção de hum HOPPER, P. & TRAUGOTT, E. 1993. Grammaticalization.
Homem, que juntamente era Deos. Cambridge: Cambridge University Press.
MARTELOTTA, M. et alii (org). 1996. Gramaticalização no portu-
5. Considerações finais guês do Brasil – uma abordagem funcional. Rio de Janeiro: Tem-
Até o momento, nossa pesquisa tem revelado mais continuida- po Brasileiro.
de ou variação do que propriamente mudança lingüística. Nesse senti- TRAUGOTT, E. & HEINE, B. 1991. Approaches to
do, temos observado uma estrutura mais regular, no nível da subordi- grammaticalization. Vol. 1. Amsterdam: Benjamins.
nação ou encaixamento, que se mantém muito freqüente e estável na VEIGA, A. 1959. Virgeu de consolaçon. Salvador: UFBA.
trajetória do português. Essa sistematização eventualmente é abalada VOTRE, S. et alii, 2000. A perspectiva pancrônica da integração
por interferências da esfera pragmático-comunicativa; em tais mo- função-forma na sintaxe do português. Cadernos do CNLF –
mentos, compromete-se a integração semântico-sintática adjetiva, com Série IV, no. 2. Rio de Janeiro: UERJ/ABF/CFCM.
a articulação de estruturas oracionais mais hipotáticas, o que acaba VOTRE, S. et alii. 1998. Marcação e iconicidade na gramaticalização
por motivar variação. de construções complexas. In: Gragoatá. Vol. 5. Niterói: EDUFF.
Assim posto, a tese da mudança histórica parataxe > hipotaxe (p. 41-58)
> subordinação, no contexto de nossos estudos, continua como uma WITTSCHIER, H. 1973. António Vieiras pestpredigt. Münster
questão em aberto. Não podemos confirmá-la, diante dos resultados Westfallen: Aschendorffsche Verlagsbuchhandlung.

152 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Da formação do conceptus à estruturação semântica lexical
Maria Aparecida Barbosa
Universidade de São Paulo

RÉSUMÉ: Ce travail examine, dans le cadre du parcours génératif de l’énonciation, la complexité structurale/fonctionnelle du concept; des
différences conceptuelles opposant concept et définition; une méthodologie permettant de formaliser les traits d’un concept donné, caractérisant
l’engendrement du concept dans les langues de spécialité et dans les discours littéraires et non-littéraires.
PALAVRAS-CHAVE: Conceito; Definição; Semântica Cognitiva; Terminologia.

Introdução to, em que se conclui o processo de conceptualização (Pais, 1993:


A articulação entre a semântica cognitiva e a semântica lingüís- 569-578), é o da produção dos modelos mentais, dos conceptus
tica tornou-se um dos paradigmas das ciências da linguagem, em sua (Rastier, 1991: 73-114), noções ou conjuntos noêmicos – traços se-
fase pós-moderna. Acreditamos, pois, da maior importância o desen- mânticos conceptuais –, a que correspondem, por seu turno, os recor-
volvimento de modelos que possibilitem analisar e descrever o pata- tes culturais, os recortes construídos, em última análise, os designata.
mar da cognição e suas relações com o patamar da semiotização lin- Esses três momentos – da percepção, do início e do fim da
güística. Assim, examinamos aqui aspectos importantes dos níveis conceptualização – constituemo próprio percurso da cognição,
conceptual, lexemático/terminológico do percurso gerativo da apreensão e construção de uma ‘visão de mundo’. O quarto mo-
enunciação de codificação e de decodificação. Analisamos, de um lado, mento do percurso gerativo é o da lexemização e da
a complexidade estrutural e funcional dos constructos do primeiro terminologização, ou seja, corresponde à conversão do conceito
nível – arquiconceito, metaconceito, metametaconceito -; de outro, em grandeza-signo, em que se deixa o nível cognitivo e se passa ao
diferenças conceituais e metodológicas entre os processos de conceituar nível semiótico. A lexemização é aqui entendida como “la mise em
e de definir, de modo a obter subsídios, para uma metodologia de lexème”, e terminologização como “la mise en terme”, ou seja, a
configuração dos traços semântico-conceptuais de um conceito. Isso configuração do conceito em grandeza-signo, no próprio ato de
torna possível, ainda, a caracterização de diferentes tipos de contex- instaurar a significação. Dessa forma, o metassistema conceptual,
tos, discursos manifestados em que são engendrados conceitos, por o mesmo para todas as semióticas-objeto de uma cultura, produz
distintos processos. Tais contextos constituem as principais fontes conjuntos de semas conceptuais que desempenham o papel de
de que são extraídos os correspondentes traços semântico-conceptuais. matrizes sígnicas, para os diferentes sistemas semióticos de uma
Na instância discursiva se produzem a cognição e a semiose, se ins- mesma cultura, de uma macrossemiótica, em suma, por meio dos
taura a conceptualização de um ‘fato’, se engendra um conceito e sua processos de semiologização, lexemização, terminologização e
manifestação lingüística. No discurso manifestado, pois, se semiotização. Segundo Pais (1993: 188), os conceptus ou lexes
presentificam os traços conceptuais, num procedimento de devem ser considerados lexias potencias, configurando-se como
codificação; e é dele que se extraem, num procedimento de investiga- ponto de partida do processo de lexemização e de terminologização.
ção, esses mesmos traços. Assim, o metassistema lexemático, ou terminológico, conjunto das
lexias com suas expressões e conteúdos (sobressememas ou
1. Conceptualização e percurso gerativo da enunciação: sememas polissêmicos), sua rede de relações, constitui, por sua
conceituar e definir vez, uma instância de competência que precede e autoriza a atua-
Os termos conceituar e definir, conceito e definição, não raras lização da lexia num discurso concretamente realizado.
vezes, são indevidamente empregados e, até mesmo, considerados No quinto momento, o da contextualização, tem-se um
equivalentes. Essa relação de equivalência, entretanto, não se justifica; epissemema (simultaneamente, com a redução dos semas do
são grandezas que têm qualidades conceituais específicas, constituin- sobressemema, a seleção, determinada por uma situação de discurso
do, inclusive, unidades-padrão e processos de distintos níveis do per- e de enunciação, e o acréscimo de semas do contexto, na combinatória
curso gerativo da enunciação de codificação e decodificação (Pais, sintagmática), de que resulta a semiose.
1993: 562-578). Como se verifica, a grandeza conceito situa-se num nível pré-
Esse percurso inicia-se com a percepção dos ‘fatos naturais’, lingüístico, pré-semiótico de designação, podendo mesmo existir sem
que são substâncias estruturáveis, enquanto informação potencial, esta última, já que se pode ter a percepção e o conhecimento de um
para os homens, mas que se convertem em substâncias estruturadas, fato, sem se possuir, ainda, a sua respectiva denominação. De fato, os
quando apreendidas pelos grupos lingüísticos e socioculturais, de di- conceitos mantêm diferentes tipos de relações com as denominações:
ferentes maneiras, embora mantenham um núcleo de percepção bioló- há conceitos sem denominações, há conceitos com apenas uma deno-
gica universal. Esse primeiro momento, da percepção, desencadeia um minação, há conceitos com duas ou mais denominações, há denomina-
segundo momento, o de início do processo de conceptualização, ou da ções que comportam dois ou mais conceitos.
passagem da percepção à conceptualização. Esta compreende, por Esse ciclo prossegue, então, com o fazer interpretativo do su-
sua vez, nesse estágio, três tipos de atributos semânticos: o das jeito enunciatário, a que se seguem a recuperação e a armazenagem da
latências, em que os fatos observáveis têm os seus traços identificadores informação, que desencadeiam, por sua vez, um subseqüente proces-
em estado potencial, enquanto substâncias de conteúdo (Hjelmslev, so de conceptualização.
1975: 53-64) estruturáveis, apreensíveis; o das saliências, em que Definidos esses níveis de codificação e de análise, parece pos-
certas características dos fatos se destacam por si mesmas, na semiótica sível delimitar com maior rigor as grandezas conceito/definição, os
natural; e o das pregnâncias, em que o sujeito enunciador individual e/ processos de conceituar/definir. Se o conceito, como vimos, estabele-
ou coletivo seleciona e escolhe os traços que irão configurar o conceito ce-se num nível pré-lingüístico, a definição resulta de uma análise e
que têm do fato em questão (Pottier, 1992: 61-69). O terceiro momen- descrição de grandezas sígnicas, situando-se, pois, no nível semiótico,

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pelo menos no que diz respeito ao seu ponto de partida. Com efeito, é o mais importante, por oposição ao [ideológico] do subconjunto
o conceito é o resultado de uma interpretação de fatos naturais e/ou anterior, não tão marcado como o [intencional]. Esses três subconjuntos
culturais, enquanto a definição é o resultado de uma interpretação de formam o conceito lato sensu (Barbosa, 2000: 95-120).
unidades lexicais. Conceituar é o processo de construção de um mode-
lo mental que corresponde a um recorte cultural e, em seguida, de Campo conceptual como conjunto unitário
escolha/engendramento da estrutura léxica que pode manifestá-lo de
maneira mais eficaz. Tal processo tem como ponto de partida o univer- noemas ideológicos,
so natural. Definir é o processo de analisar e descrever o semema intencionais, modalizadores (III)
lingüístico, para reconstruir o modelo mental: o seu ponto de partida é
a estrutura lingüística manifestada. noemas ideológicos, culturais (II)
Ressalte-se que o percurso gerativo é realizado pelo sujeito
enunciador que cria um vocábulo e/ou termo novo, como também por noemas ‘universais’ (I)
esse sujeito, ao reutilizar vocábulos e/ou termos pré-existentes, em
qualquer situação de atividade lingüística. A cada ato de fala, há uma
reorganização do sistema lingüístico e do metassistema conceptual.
Atos de conceituar, ou de engendrar um discurso manifestado Figura 1
qualquer – são processos onomasiológicos – tomam como ponto de
partida o continuum amorfo dos dados da experiência, passam pelo Julgamos importante ressaltar que, ao engendrar-se um concei-
nível noêmico e chegam ao nível lexemático, cujo produto é a denomi- to, geram-se, simultânea e necessariamente, três outros conceitos: seu
nação. É o percurso do fazer persuasivo do sujeito de enunciação de contrário e os contraditórios decorrentes, já que o raciocínio do ho-
codificação, desencadeado por quem fala, quem escreve. Esse sujeito, mem funciona por oposições, dentre as quais, relações entre contrári-
tendo uma intenção de comunicação de determinado esquema lógico- os e contraditórios.
conceptual, seleciona diferentes formas lingüísticas, suscetíveis de Desse modo, ao criar-se o conceito <<bem>>, por exemplo,
representá-lo, para engendrar o seu discurso enfim manifestado. Essa concomitantemente engendra-se o seu contrário, <<mal>>, e seus
escolha integra o processo de modalização do discurso, enquanto com- respectivos contraditórios, <<~bem>> e <<~mal>>:
petência e desempenho do sujeito enunciador. Desse percurso resul-
tam: conceitos, seus representantes semiotizados – grandezas-signos <<bem>> <<mal>>
- e, presentificados em discursos manifestados.

2. A organização dos patamares conceptual e lexical <<~mal>> <<~bem>>


Existem diferentes tipos de campos conceptuais e de campos
lexicais, distintas relações entre os elementos do conjunto dos primei- Figura 2
ros e os dos últimos. Há diferenças nocionais e estruturais entre cam-
po conceptual, campo lexical, campo semântico e respectivas unida- Essas relações ‘necessárias’ e ‘não-eventuais’ nos autorizam a
des-padrão: conceito, lexemas/vocábulos/termos, sememas. conceber o processo da intertextualidade lato sensu como iniciando-se
Essa questão insere-se no modelo do percurso gerativo de já no patamar conceptual do percurso gerativo da enunciação, pois um
enunciação, pois cada um daqueles campos situa-se em diferentes conceito liga-se sempre outro conceito, constituindo um microssistema
patamares desse percurso: o campo conceptual, conjunto de concei- conceptual. Assim, um conceito lato sensu é um campo conceptual, já
tos é resultado do processo de conceptualização do ‘saber sobre o que, implicitamente contém esses três outros conceitos. Chamaremos
mundo’ - pré-lingüístico, pré-semiótico, trans-semiótico; o campo esse caso de campo conceptual unitário pleno, por oposição ao campo
lexical, conjunto de lexemas, lexias, vocábulos/termos que têm um conceptual unitário vazio (Æ), o que contém conceitos virtuais ainda
núcleo sêmico comum, resulta do processo de lexemização - conver- não engendrados. Diferente é a organização do campo conceptual con-
são da informação conceptualizada em significação lingüística; o junto múltiplo, que contém vários conceitos lato sensu explicitados, com
campo semântico, em uma de suas acepções, constitui um conjunto um núcleo sêmico comum, apresentando, cada um deles, implicitamen-
de sememas e resulta da intersecção do significado das unidades te, seus conceitos contrários e contraditórios.
lexicais de um campo lexical. As relações existentes entre os três Retomando o subconjunto de noemas ‘universais’, conceito stricto
campos não são simétricas, visto que um campo lexical pressupõe e sensu, noutra perspectiva - a da análise contrastiva, entre grupos
contém necessariamente os seus correspondentes campo conceptual socioculturais diferentes, e a da análise comparativa entre subgrupos de
e campo semântico; entretanto, um campo conceptual pode não ter, uma mesma cultura -, chegamos à noção de arquiconceito, resultante da
ainda, os campos lexicais e semânticos que lhes corresponderiam. neutralização da oposição entre concepções diferentes de um mesmo
Constituem, pois, constructos não confundíveis, na medida em que ‘fato’. Semelhante conjunto de traços semânticos conceptuais de natu-
pertencem a níveis de articulação e de análise distintos. Desses três reza ‘universal’ corresponde a um arquiconceito (Béjoint e Thoiron,
tipos de campos, apresentaremos, aqui, apenas a organização do 1996: 512-526), já que neutraliza as diferenças conceptuais entre lín-
campo conceptual. guas e culturas distintas. Estaria relacionado o arquiconceito ao protóti-
Um conceito, em sentido amplo, constitui um ‘modelo mental’, po (Dubois, 1991) e à intersecção do sentido recortado culturalmente
conceptus, dialeticamente articulado a um recorte cultural ou ou formado (Hjelmslev,1975: 53-64). Sustenta e viabiliza os processos
designatum. É um conjunto de traços semânticos conceptuais que, em de tradutibilidade interlingüística e intersemiótica.
nossa concepção, apresenta grande complexidade estrutural: um Entre o sentido estruturável e o estruturado, há a formação de
subconjunto de noemas (Pottier, 1992: 61-69), biofísicos ou ‘univer- um protótipo conceptual biofísico, núcleo noêmico comum a todas as
sais’, conceito stricto sensu; um subconjunto de traços semânticos culturas, que corresponderia ao arquiconceito, ou conceito stricto sensu,
conceptuais ideológicos, culturais, metaconceito; um subconjunto de primeiro nível de “formação”, resultante das latências e salências.
traços semânticos conceptuais ideológicos, intencionais, Entretanto, no processo de pregnâncias, começam a ficar visíveis os
modalizadores, metametaconceito. Neste último, o noema [intenção] noemas culturais, específicos de cada cultura, correspondentes ao

154 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


metaconceito, segundo nível de “formação”, e, no interior de uma A construção do conceito assume características semânticas,
mesma cultura, os discursos ‘políticos’ eufóricos ou disfóricos sobre sintáticas, semióticas, pragmáticas diversas, se ocorre nas linguagens
o mesmo fato engendram o metametaconceito, subconjunto dos traços de especialidade ou nos discursos literários e sociais não-literários: o
semântico-conceptuais modalizadores. modo de engendramento de um conceito está em função do universo
Parece-nos que a noção de arquiconceito é fundamental, quan- de discurso. Assinalemos, aqui, uma diferença relevante: no discurso
do da análise contrastiva de línguas e culturas e, também, no âmbito da científico, sujeito e anti-sujeito correspondem freqüentemente a
mesma língua e cultura, no exame da variação conceptual do mesmo interlocutores; no discurso literário, sujeito e anti-sujeito são instala-
‘fato’: assegura o rigor do estudo da variabilidade e das identidades dos no texto pelo autor. No discurso científico/tecnológico, o
conceptuais do mesmo ‘fato’, inter-culturas e inter-grupos. Cremos engendramento de um conceito geralmente se dá em relações
que essa noção de arquiconceito completa as formalizações já existen- intertextuais/interdiscursivas de vários pesquisadores, simultaneamente
tes, que descrevem as estruturas do patamar cognitivo e confirma o à formulação da teoria que o contém; no discurso literário, uma obra
princípio do isomorfismo, ou identidade formal entre os processos de pode ser auto-suficiente, no engendramento de um conceito, numa
neutralização fonológica, morfológica, lexical, semântica, conceptual, intertextualidade intradiscursiva. No discurso técnico-científico, teó-
mesmo textual e seus respectivos produtos: arquifonema, rico e/ou prático, assim como no discurso literário, o engendramento
arquimorfema, arquilexema, arquissemema, arquiconceito, arquitexto, do conceito é sintagmático, narrativo, transfrástico; no discurso
este último (Rastier, 2000: 445-470), resultado da neutralização das terminológico, é eminentemente paradigmático, como processo e pro-
diferenças existentes entre textos implicados num processo de duto final, embora resulte de extrações de contextos de natureza
intertextualidade. transfrástica.

3. Proposta de percurso metodológico, para análise e des- 4. Conclusão


crição de um conceito Constatamos a diversidade organizacional do conceito, com seus
Analisando os contextos que sustentam e manifestam essa com- sucessivos conjuntos de traços caracterizadores - dos biológicos aos
plexa formação, no caso discurso técnico-científico, contextos consti- ideológicos -, bem como a existência do processo de neutralização,
tuídos de textos de especialistas e da mídia -, de que se extraem os também no plano conceptual, de que resulta o arquiconceito. Pude-
traços conceptuais, formadores de um conceito, verifica-se que alguns mos construir modelos que permitissem a descrição da estrutura dos
desses contextos privilegiam o conceito stricto sensu, outros, o campos conceptuais unitário e múltiplo, de seus respectivos
metaconceito e, outros ainda, o metametaconceito. arquiconceitos, metaconceitos e metametaconceitos, numa perspecti-
Propusemos, em trabalho anterior, modelo de ficha conceptual- va mono e plurilíngüe. Pudemos, também, propor metodologia de
terminológica que possibilita a descrição e análise desses três níveis de análise do engendramento de conceitos no domínio terminológico e
construção de um conceito. Tal ficha permite-nos o registro dos con- caracterizá-lo nos diferentes universos de discurso.
textos em que os caracterizadores conceptuais de um termo se apre-
sentam. Permite, ainda, identificar o conjunto dos traços semântico-
conceptuais, distinguindo os formadores do conceito stricto sensu, ou Referências bibliográficas
do metaconceito ou do metametaconceito, relacionando-os aos vocá-
bulos/termos que os manifestam. BARBOSA, Maria Aaparecida. Estruturas e tipologia dos campos
Cumpre ressaltar, ainda, que o processo de construção de um conceptuais, campos semânticos e campos lexicais. Acta semiotica
conceito pode ser “vertical” – do “fato” para o patamar cognitivo –, ou et linguistica, São Paulo, v. 8, p. 95-120, 2000.
pode ser desencadeado nas relações sintagmáticas de um discurso ma- BÉJOINT, Henri, THOIRON, Phillipe et al. Notion d’ “archi-concept”
nifestado, em que o autor vai pouco a pouco construindo, no seu texto, et dénomination. Meta. Journal des Traducteurs, Montréal, p.
um conceito qualquer. No segundo processo, a combinatória das pala- 512-523, 1996.
vras-ocorrência vai paulatinamente configurando o recorte conceptual HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São
que o autor tem de um ‘fato’. De outro ângulo, tem-se o percurso que Paulo: Perspectiva, 1975.
toma como ponto de partida o discurso manifestado, para chegar nova- PAIS, Cidmar Teodoro. Conditions sémantico-syntaxiques et
mente ao nível conceptual, que caracteriza o fazer interpretativo do sémiotiques de la productivité‚ systémique, lexicale et discursive.
sujeito enunciatário, ou, noutras palavras, um processo semasiológico, Thèse de Doctorat d’État. Paris/Lille: Université de Paris-
do signo para o conceito, realizado por quem ouve ou quem lê; qualifica- Sorbonne, ANRT, 1993.
se, assim também, o percurso lexicográfico-terminográfico, enquanto POTTIER, Bernard. Sémantique générale. Paris: P.U.F, 1992.
processo que parte da manifestação do nível lexemático, com as sele- RASTIER, François. Sémantique et recherches cognitives. Paris: PUF,
ções, restrições e combinatórias sêmicas estabelecidas em discurso, para, 1991.
num metadiscurso igualmente configurado como fazer interpretativo, ——————. Para uma poética generalizada. Acta semiotica et
articular semas representados por metatermos lexemáticos, operação linguistica, São Paulo, v. 8, p. 445-470, 2000.
de que resulta a definição.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 155


Do processo de conceptualização, da produtividade
lexical e discursiva, da intertextualidade,
da interdiscursividade
Cidmar Teodoro Pais
Universidade de São Paulo

RESUMÉ: Ce travail examine certains aspects des processus de cognition et de sémiosis, en tant que des phénomènes conceptuels et métalinguistiques,
des procédés déterminant l’intertextualité, l’interdiscursivité, la transcodification, suivant des articulations entre sémantique cognitive, sémantique
de langue et de discours, socio-sémiotique et sémiotique des cultures, conduisant à l’archi-texte et à l’archi-discours.
PALAVRAS-CHAVE: Cognição; semiose; arquitexto; arquidiscurso.

Introdução conceptualização; a relação de denominação, entre ‘modelo mental’,


Este trabalho examina aspectos dos processos de cognição e do metassistema conceptual, e unidade ‘lexical’, de sistema e normas
das relações de significação, fenômenos conceptuais e metalingüísticos, discursivas; a relação de designação, entre unidade ‘lexical’ e recorte
conjunto de procedimentos determinantes de intertextualidade, cultural; a referência, relação entre funções semióticas intra-sígnicas
interdiscusividade, transcodificação, face às articulações postuláveis manifestadas e recortes culturais, ‘objetos do mundo’, tomados no
entre semântica cognitiva, semântica de língua e de discurso, texto. Nesse percurso, entendem-se as latências como os atributos
sociossemiótica, semiótica das culturas. Utilizaram-se modelos teóri- semânticos possíveis dos ‘objetos’ e ‘processos’ da semiótica natu-
cos relativos ao percurso gerativo da enunciação de codificação e de ral; as saliências, como os atributos que se destacam, na estrutura,
decodificação, às transformações/conversões entre as unidades cor- funcionamento e hierarquia dos ‘fatos naturais’. As pregnâncias, por
respondentes aos distintos patamares de produção discursiva: da per- sua vez, constituem o resultado da atividade do homem, das escolhas
cepção à conceptualização, entre uma vivência e sua apreensão, se- que faz nas diferentes maneiras de apreensão daqueles ‘fatos’. Assim,
gundo pregnâncias socioculturais, escolhas coletivas de traços semân- o protótipo constitui núcleo noêmico, núcleo sêmico conceptual. A
tico-conceptuais; a conceptualização, construção do conceptus, ‘mo- ele podem corresponder um ou vários conceptus que o contêm, numa
delo mental’, em função das pregnâncias e do correspondente recorte relação de inclusão. O conceptus, ou ‘modelo mental’, constitui, dessa
cultural, designatum; a denominação, que estabelece relação entre maneira, um conjunto noêmico expandido, conjunto sêmico conceptual,
‘modelo mental’, do metassistema conceptual, e unidades lexicais, do resultante de uma escolha do sujeito individual e/ou coletivo. Articu-
sistema e das normas discursivas; a designação, que instaura relação lam-se dialeticamente os conceptus e os recortes culturais, ou designata,
entre unidade lexical e designatum; a referência, que engendra relação que funcionam como ‘referentes’ ou, mais precisamente, como ‘obje-
entre a função semiótica e os ‘objetos no mundo’. tos do mundo’ semioticamente construído de uma cultura e sociedade.
Por outro lado, esse ‘modelo mental’, mais precisamente, o
1. Conceptualização e semiose no âmbito do percurso conceptus lato sensu, no nível semântico cognitivo, tem uma estrutura
gerativo da enunciação complexa. Compreende: a) o conceptus stricto sensu, subconjunto dos
O processo de produção do conhecimento, articulado ao da traços semântico-conceptuais ‘biológicos’ ou ‘universais; b) o
produção da significação, como função semiótica, ou, noutras pala- metaconceptus, subconjunto dos atributos culturais, ideológicos; c) o
vras, as relações entre episteme, como projeção do homem sobre os metametaconceptus, subconjunto dos traços modalizadores,
‘objetos do mundo’, na concepção aristotélica, como construção do manipulatórios; d) o arquiconceptus, subconjunto-intersecção, que au-
‘saber sobre o mundo’, e semiose, enquanto produção da significação, toriza as transcodificações multilíngües e trans-culturais (Barbosa, 2000).
ou seja, das designationes que manifestam os designata, recortes cul- Tomando por base nosso modelo anterior, construímos um
turais, nas diferentes semióticas-objeto, verbais, não-verbais e novo modelo teórico que procura dar conta da produtividade sistêmica
sincréticas, podem ser mais satisfatoriamente explicados, quando exa- e discursiva, da produção, reiteração, transformação dos recortes e
minados no quadro do percurso gerativo da enunciação. Nosso mode- das significações que os manifestam em discurso, da modificação da
lo de percurso gerativo da enunciação de codificação e de decodificação, competência, decorrente da produtividade discursiva, ao longo do
compreende os patamares da percepção, da conceptualização, da processo histórico, numa dinâmica configuradora de processo semiótico.
semiologização, da lexemização, da atualização, da semiose, quanto Explica-se, assim, o processo de produção do discurso, a partir do
ao fazer persuasivo, do sujeito enunciador; os do reconhecimento da sistema - a competência autoriza o desempenho -; a produção, reitera-
semiótica-objeto, da ressemiotização, da ressemiologização e da ção, transformação dos recortes e das significações que os manifestam
reconceptualização, quanto ao fazer interpretativo, do sujeito em discurso; a produção de novo estágio do sistema, modificação da
enunciatário; e as transformações que entre eles se realizam (Pais, competência, decorrente da produtividade discursiva, ao longo do
1993, 1997, 1998). processo histórico da sociedade, em seu todo, como em cada um de
Tornou-se necessário examinar a estruturação das unidades cor- seus membros, numa relação dialética.
respondentes a cada patamar do percurso e suas relações: a questão Essa produção, reiniciada e reiterada em cada enunciação, con-
das latências, saliências, pregnâncias (Pottier, 1992: 72); a constru- duz à (re)constituição de um metassistema conceptual - ‘léxico’ e
ção do protótipo (Dubois, 1990: 29-100) e do conceptus (Rastier, ‘sintaxe’ -, disponível para atualização em qualquer semiótica-objeto
1991: 73-114), ‘modelo mental’, sua relação com o recorte cultural, na de determinada comunidade, caracterizando-se como uma pancronia

156 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


(funcionamento e mudança). Articulam-se dialeticamente conceptus e são viáveis a produção cognitiva e a produção de significação,
recortes culturais, ou designata, que funcionam como ‘referentes’, concomitantes e articuladas.
como ‘objetos do mundo’ semioticamente construído da cultura e da A combinatória particular das unidades no enunciado de de-
sociedade envolvidas. terminado discurso manifestado, em função das relações intratextuais,
Importa salientar nesse modelo, pois, de forma mais minucio- intertextuais, intradiscusivas, interdiscursivas, conduz, dialeticamente
sa, alguns aspectos das relações entre o fazer do sujeito da cognição e a uma ampliação do epissemema dessas unidades, nesse discurso, de
o fazer do sujeito da semiose. que resulta o processo da semiose, do ponto de vista do sujeito
Em cada processo discursivo, desenvolve-se o fazer persuasi- enunciador, com a produção de significação e informação novas, espe-
vo do sujeito enunciador do discurso, através dos patamares da per- cíficas do discurso em causa e dotadas de valor de comunicação. Veri-
cepção, da conceptualização, da semiologização, da lexemização, da fica-se, na verdade, que as mesmas relações entre sistema, normas e
atualização, da semiose. Verifica-se que, na enunciação de codificação discurso manifestado ocorrem nas semióticas não-verbais e sincréticas,
e a partir da percepção biológica - culturalmente filtrada em função mutatis mutandis.
dos comportamentos e condicionamentos adquiridos, ou, noutros ter- Em síntese, cumpre distinguir diferentes relações. A
mos, do ‘aprendizado’ de uma comunidade - dos dados da experiên- conceptualização estabelece o percurso entre a percepção e a constru-
cia, desencadeia-se no patamar da conceptualização, a produção de ção do ‘modelo mental’, conceptus, dialeticamente articulado a um
modelos mentais - conceptus - e recortes culturais - designata -, que recorte cultural; a denominação configura a etapa pela qual um
leva em conta a prévia detecção e escolha de atributos semânticos conceptus é lexemizado, ou, se preferirmos, é convertido em ‘lexema’
conceptuais, das pregnâncias dos ‘objetos’, dos processos e atributos de determinada semiótica-objeto, estabelecendo-se a relação conceptus-
da semiótica natural e sociocultural. denominação; a designação define a relação entre a função semiótica e/
Essa produção, sempre reiniciada e reiterada em cada enunciação, ou metassemiótica lato sensu e o designatum, o recorte cultural, a
conduz, por geração, acumulação e transformação, à construção de um referência qualifica-se como relação de implicação entre o significado
‘léxico’ conceptual - protótipos e conceptus - e de uma ‘sintaxe’ (excepcionalmente, também, o significante, na ‘função poética’)
conceptual, ou, noutras palavras, de um metassistema conceptual construído no texto e o mundo semioticamente construído, que para
disponível para atualização em qualquer semiótica-objeto de determi- os sujeitos enunciador-enunciatário, naquele universo de discurso,
nada cultura e sociedade. equivale à uma ‘visão de mundo’, apoiada na rede de designata, de
Dessa forma, comporta-se o metassistema conceptual como recortes culturais.
sistema de matrizes sígnicas - dialeticamente articuladas aos recortes Ao fazer do sujeito enunciador correspondem, como vimos, no
culturais, como vimos - da produção de funções semióticas e fazer interpretativo do sujeito enunciatário, os patamares da percep-
metassemióticas lato sensu. ção do objeto semiótico concreto, da reatualização ou do reconheci-
Segue-se à conceptualização, já examinada, a semiologização, mento (da semiótica-objeto e dos elementos manifestados), da re-
enquanto processo de conversão dos atributos dos conjuntos noêmicos semiotização, da ressemiologização, da reconceptualização,
em atributos semânticos pré-semióticos, trans-semióticos, e de conducentes à realimentação e a auto-regulagem do metassistema
(re)ordenamento de campos semânticos, os tópoi. conceptual. De maneira sumária, pois, podemos considerar em con-
A semiotização configura-se como outro nível que depende da junto o fazer persuasivo do sujeito enunciador e o fazer interpretativo
escolha - consciente ou não - da semiótica-objeto - verbal (uma língua do sujeito enunciatário, inseridos e articulados no percurso gerativo
natural), não-verbal ou sincrética -, inserida na macrossemiótica de uma da enunciação do processo discursivo.
cultura. Entrementes, o conceptus lato sensu e, particularmente, o
Compreende a semiotização o nível da lexemização, entendida, arquiconceptus constituem critérios, no nível da estrutura
por sua vez, como processo de conversão dos conceptus, das matrizes hiperprofunda, ou seja, funcionam como um tertius comparationis,
noêmicas, em funções semióticas (grandezas signos) de uma semiótica- que determina o grau de aceitabilidade e permite avaliar a relativa
objeto e/ou em funções metassemióticas dessas grandezas, ou seja, da ‘precisão’ das equivalências propostas nos atos metalingüísticos, no
geração e/ou transformação de designationes, relacionadas a determi- rediscurso, nas transcodificações intratextuais, intertextuais,
nado conceptus e seu correspondente designatum. intradiscursivas, interdiscursivas, intersemióticas e transculturais.
Nas línguas naturais e seus discurso, por exemplo, importa Nesse sentido, considerados, por exemplo, dois processos
distinguir, na etapa da atualização, o nível do sistema e o das normas. discursivos, concomitantes (em paralelo) ou subseqüentes – cada um
No sistema, caracterizam-se as unidades lexicais, enquanto com suas enunciações de codificação e de codificação – e seus textos –
designationes, por um semema polissêmico, denominado do enunciador e do enunciatário -, enquanto discursos manifestados
sobressemema. Sofre esse semema uma restrição sêmica, quando de de semiótica-objeto verbais, não-verbais e sincréticas, o conceptus
sua inserção numa norma, no plano diatópico e/ou diastrático e, so- (intracultural) e, sobretudo, o arquiconceptus (transcultural) assegu-
bretudo, num universo de discurso. Desse modo, a um sobressemema, ram que tais discursos sustentem - no nível hiperprofundo, semânti-
ao nível do sistema, correspondem vários sememas específicos, co-cognitivo, do percurso gerativo de enunciação de codificação e de
caracterizadores de normas discursivas. decodificação -, as mesmas ‘isotopias’ conceptuais, trans-semióticas
e transculturais, determinando relações de interdiscursividade (entre
2. Intertextualidade, interdiscursividade, transcodificação, processos) e de intertextualidade (entre textos-enunciados). Sabemos,
arquidiscurso, arquitexto igualmente, que os discursos só significam numa relação de
Nessa perspectiva, a produção, acumulação e transformação interdiscursividade, os textos só significam numa relação de
do saber sobre o ‘mundo’ somente ocorrem no processo de enunciação intertextualidade. Dessa maneira, o arquiconceptus, define as
do discurso, concomitante e indissociavelmente da produção, armaze- ‘isotopias’ conceptuais e determina, ipso facto, isotopias semânticas
nagem, e recuperação, durante o percurso gerativo, da significação e da equivalentes em diferentes semióticas-objeto e nos correspondentes
informação semioticamente construída. Esse percurso sustenta-se, discursos manifestados.
pois, dentre outros aspectos, num contrato de cooperação entre su- Desse modo, são os elementos do patamar semântico-cognitivo
jeito enunciador - sujeito da enunciação de codificação - e sujeito que autorizam as relações interdiscursivas e intertextuais e viabilizam
enunciatário - sujeito da enunciação de codificação -, sem o qual não os diferentes processos de transcodificação acima citados. Se tomar-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 157


mos dois discursos e seus textos, observaremos que têm em comum o mas de valores sustentados em semântica profunda, as isotopias
modelo de percurso gerativo da enunciação e, mais, ainda, semelhan- semânticas decorrentes das ‘isotopias’ conceptuais determinantes
tes ‘isotopias’ conceptuais, com intersecções diferentes de zero. das primeiras, que constituem a intersecção não-vazia entre os
Considerados vários discursos manifestados - de várias mesmos textos.
semióticas-objeto verbais, não-verbais e sincréticas, intraculturais ou O sujeito semiótico enunciador/enunciatário do discurso pos-
transculturais – e seus textos-enunciados, torna-se possível formalizar sui uma competência lingüística, semiótica, sociocultural e um ‘saber
duas noções relevantes, as do arquidiscurso e do arquitexto, esta última sobre o mundo’ que resultam dos discursos anteriores por ele codifi-
inspirada inicialmente na proposição de Rastier (2000). cados ou decodificados, ou, se preferirmos, do seu processo histórico
O arquidiscurso, a nosso ver, resulta da neutralização das
individual e/ou coletivo. Detém, ainda que de forma intuitiva, a expe-
especificidades de vários discursos manifestados, mantidos o proces-
riência e o conhecimento que lhe permitem reconhecer em cada pro-
so de produção discursiva, de enunciação, e as ‘isotopias’ conceptuais,
que constituem sua intersecção não-vazia. cesso discursivo e nos seus textos, o(s) universo(s) de discurso, o
Em nossa concepção, o arquitexto decorre, da mesma forma, da arquidiscurso, o arquitexto, estabelecer relações interdiscursivas e
neutralização das especificidades de vários textos enunciados, intertextuais, assim como as ‘isotopias’ conceptuais que dão significa-
mantidos os conceptus e recortes culturais subjacentes, os siste- do ao discurso e ao texto em causa. Temos:

Figura 1: Da intertextualidade, da interdiscursividade e da transcodificação conceptual no percurso gerativo da enunciação de codificação e de


decodificação

158 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Nessas condições, o arquidiscurso caracteriza-se como ‘mode- Referências bibliográficas
lo mental’ e intersecção entre processos discursivos; o arquitexto,
como ‘modelo mental’ e intersecçao entre textos enunciados. Essas BARBOSA, Maria Aparecida. Estruturas e tipologia dos campos
intersecções são variáveis, no sentido matemático (maiores que zero
conceptuais, campos semânticos e campos lexicais”. Acta semiotica
e menores que um), segundo as culturas, as sociedades, as diferentes
normas regionais, de classe social, de grupo profissional, dentre ou- et linguistica, São Paulo, v. 8, p. 95-120, 2000.
tros aspectos. De toda maneira, arquidiscurso e arquitexto constitu- DUBOIS, Danielle et al. Sémantique et cognition. Catégories,
em modelos e parâmetros que asseguram, respectivamente, a produti- prototypes, typicalité. Paris: CNRS, 1991.
vidade discursiva e a intelecção/interpretação de textos. PAIS, Cidmar Teodoro. Conditions sémantico-syntaxiques et
sémiotiques de la productivité systémique, lexicale et discursive.
3. Conclusão Paris/Lille: Université de Paris Sorbonne/A.N.R.T., 1993.
Observaram-se redes léxico-semântico-conceptuais, ——— Conceptualização, denominação, designação: relações. Revis-
referenciais, pragmáticas, da cognição à semiose. Verificou-se que
ta Brasileira de Lingüística, São Paulo, v. 9, p. 221-240, 1997.
relações de significação, rede de oposições, no plano lingüístico/
semiótico, pressupõem transformações na rede de ‘modelos mentais’, ——— Conceptualisation, dénomination, désignation, référence:
no nível conceptual e interdiscursivo. Formalizaram-se conjuntos de reflexions à propos de l’énonciation et du savoir sur le monde.
traços semântico-conceptuais, os conceptus, entre si e entre sememas Poulet, J. et al. (Orgs). Textures. Cahiers du C.E.M.I.A. Recueil
lingüísticos frásticos e transfrásticos co-ocorrentes, entre estes, d’Hommage à Mme. Le Professeur Simone Saillard. Lyon:
designata e referências, provocando uma releitura, um reordenamento Université de Lyon 2, p. 371-384, 1988.
léxico-semântico-conceptual. Conclui-se que, da neutralização de tex- POTTIER, Bernard. Sémantique générale. Paris: PUF, 1992.
tos no processo de intertextualidade, decorre o arquitexto; da
RASTIER, François. Sémantique et recherches cognitives. Paris:
neutralização interdiscursiva, o arquidiscurso. Explicam-se proces-
PUF, 1991.
sos de significação, de metalinguagem, de rediscurso, de reelaboração
do mundo semioticamente construído, do imaginário coletivo, do sa- ——— Para uma poética generalizada. Acta semiotica et linguistica,
ber compartilhado sobre o mundo. São Paulo, v. 8, p. 445-470, 2000.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 159


Descompasso entre formação teórica do professor e
atuação no ensino: o provão interfere nesse quadro?
Maria Auxiliadora Bezerra
Universidade Federal da Paraíba/Campina Grande

RÉSUMÉ: Ce travail a pour but de faire une réflexion sur le décalage existant entre la formation de l’enseignant de portugais et son travail en salle
de classe, en prennant en compte la tradition scolaire d’étudier la langue déporvue de son usage et le changement des conceptions d’enseignement-
apprentissage, de langue et de lecture/écriture.
PALAVRAS-CHAVE: Tradição escolar – Estudos lingüísticos – Curso de Letras

Introdução com esse aluno. Esses três elementos (formação técnica e científica,
O Curso de Letras, no Brasil, tem tradicionalmente duas grandes formação social e humanista e competência pedagógica) devem ser
habilitações – Bacharelado e Licenciatura - formando dois tipos de indissociáveis, para que o professor viabilize seu papel social. Formar
profissionais: o bacharel, voltado para a pesquisa, e o professor, volta- um professor de ensino fundamental, médio ou superior, como sim-
do para o ensino. Essa divisão demonstra a concepção de pesquisa e ples repetidor de aulas e repassador de fórmulas fará com que ele
ensino que se tinha desde a criação dos estudos universitários brasilei- perca a dimensão de educador e não questione o porquê de ensinar o
ros (década de 30 do século XX): de um lado um profissional produzin- que ensina, tornando-se elemento passivo no processo e fazendo o
do conhecimento, de outro, um profissional consumindo e repetindo mesmo com seu aluno que, se por ventura vier a ser professor, repe-
esse conhecimento. tirá o modelo, instalando-se o círculo vicioso do continuismo.
Com as mudanças sociais e mercadológicas, a formação do
profissional proporcionada pela universidade modificou-se, tentan- 2. Formação do professor de língua portuguesa
do atender não só o momento presente, mas também com visão de 2.1.Embate entre tradição escolar e renovações teóricas
futuro. E o profissional de Letras que influências recebe? De um As licenciaturas em Letras no Brasil seguem, em geral, duas verten-
lado, a do avanço nas pesquisas sobre linguagem, leitura e escrita, tes: uma mais próxima (não exclusivamente) dos estudos gramaticais e
informática, aprendizagem, etc., que tornaram ultrapassado o mode- filológicos e outra, dos estudos lingüísticos descritivos (também sem
lo tradicional do Curso de Letras; e de outro – e motivadas por esses exclusividade). Aquela reforça o modelo tradicional de estudo de língua
avanços – as diretrizes do MEC, identificadas na Lei de Diretrizes e portuguesa no ensino fundamental e médio e esta tenta uma mudança na
Bases da Educação (LDB), no Exame Nacional de Cursos (provão), perspectiva de abordagem da língua.
no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), no Sistema de Ava- A tradição escolar relativa ao ensino de língua portuguesa ba-
liação do Ensino Básico (SAEB) e nos Parâmetros Curriculares Na- seia-se ora na concepção da linguagem como expressão do pensamen-
cionais (PCN), que influenciam, pouco ou muito, os cursos de gra- to, ora como código, enfatizando o estudo da metalinguagem ou da
duação em geral. E as escolas de ensino fundamental e médio, prin- codificação/decodificação das mensagens inscritas em frases, perío-
cipal local de trabalho de professores de língua, exercem alguma dos ou textos. Essa postura é vista na escola básica, através dos livros
influência? Neste artigo tentaremos responder a essa questão além didáticos adotados, que, a despeito de objetivos muitas vezes volta-
de outras. dos para uma abordagem de língua em uso efetivo, continuam privile-
Se os estudos atuais da linguagem apontam para a variação giando o estudo da gramática normativa, prescrevendo formas do bem
lingüística, para a aquisição/aprendizagem de línguas em interação, falar e escrever.
para o estudo de línguas em uso efetivo; e se as concepções de educa- Não podemos obscurecer a presença do livro didático na esco-
ção defendem a autonomia do educando, o profissional de Letras deve la, pois para muitos professores e alunos ele é o único material im-
receber uma formação baseada na flexibilidade e abertura de currículo. presso a que têm acesso (quando o têm) e para outros ele é o
Essas flexibilidade e abertura favorecerão ao estudante conhecimentos determinador das práticas escolares, mesmo que professores e alunos
necessários ao seu desempenho profissional, mas também capacida- tenham outros recursos didáticos à mão. E aqui vemos o papel funda-
des e habilidades de produzir esse conhecimento e de continuar sua mental da tradição escolar reforçada pelos envolvidos na escola - dire-
formação. Dessa maneira já não há espaço para o profissional que se tores, coordenadores, professores, alunos, pais, etc. - que, à sua ma-
limita a repetir modelos ultrapassados, ele tem de ser um sujeito que neira, vão realizando/exigindo um estudo de língua portuguesa de acordo
sabe pensar, pesquisar e tomar decisões, de modo que influencie seu com seu imaginário, construído em torno do princípio de que para
ambiente de trabalho, isto é, seja um empreendedor. Em se tratando do aprender-se a ler e escrever precisa-se de antemão conhecer-se as
professor, sua função não é a de acomodar, adaptar seus alunos à regras gramaticais.
realidade. Acomodação e adaptação são sintomas de desumanização, A ausência do trabalho com pesquisa nos cursos voltados para
pois o que antes indignava passa a ser banal. Sua função é a de junto a tradição gramatical impede que o professor veja na sala de aula um
com os alunos investigar, descobrir, produzir, não simplesmente re- local de pesquisa, além de ensino. Por outro lado, não lhe dá condições
petir um modelo que se mostra esgotado e ineficaz. Para isso são de lidar facilmente com resultados de pesquisa, precisando, assim, da
necessárias uma formação técnica e científica, na área de sua especia- ajuda do pesquisador para “traduzir” seus dados (Cavalcanti e Moita
lidade, uma formação social e humanista, como agente de transforma- Lopes, 1991). Além disso, esses resultados não são incorporados
ção da sociedade, e uma competência pedagógica, que muito mais do facilmente ao ensino, de modo que as pesquisas avançam e o ensino
que truques didáticos e postura paternal ou amistosa significa uma permanece repetindo conhecimentos muitas vezes ultrapassados,
compreensão geral da situação em que está seu aluno e uma consciên- questionados ou reformulados. Assim, ao invés de se ter professores
cia dos objetivos gerais e específicos que o professor tem em comum criativos, perspicazes, tem-se repetidores das mesmas aulas, dos

160 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


mesmos exercícios, dos mesmos exemplos e das mesmas leituras. malidade associados a diferentes contextos de uso da oralidade e da
Já a vertente que tenta inovar baseando-se na concepção de escrita.Desconhecem as regras de uso dos pronomes pessoais em
linguagem como interação, dialogia procura enfatizar a língua com português.Apresentam um comportamento lingüístico incoerente,
suas variações e registros e analisar a gramática normativa de uma variando aleatoriamente no uso de “nós” e de “a gente”.Insistem no
forma crítica, proporcionando ao futuro professor condições de de- ensino de formas em desuso na língua, embora usem, eles mesmos,
senvolver uma prática profissional que contribua para alterar o status formas inovadoras.Têm dúvidas quanto à maneira correta de se ex-
quo da sociedade. Se essa vertente acredita que deve contribuir para pressar diante de seus alunos, pois não tiveram uma boa formação
que o aluno do nível fundamental e médio tenha desenvolvido seu pedagógica.(Provão, 2000)
senso crítico e ampliado seus conhecimentos, vai investir na observa-
ção e análise da língua e de seus usos. Consequentemente, o conteúdo Em relação ao fato, mencionado na carta, de professores ensina-
programático não será ensinado como algo pronto, acabado, mas como rem a forma “nós” e usarem “a gente”, é correto afirmar, de
algo que se modifica, se altera. E a pesquisa associada ao ensino sub- uma perspectiva sociolingüística, que eles
sidiará esse trabalho. (a) distinguem adequadamente os graus de formalidade associados a
Entretanto os avanços teóricos parecem não estar influencian- diferentes contextos de uso da oralidade e da escrita.
do a tradição escolar. Assim, estabelece-se um conflito para os profes- (b) Desconhecem as regras d uso dos pronomes pessoais em portu-
sores formados nessa perspectiva: a formação que recebe entra em guês.
choque com o que a escola espera de um professor de língua, aquele (c) Apresentam um comportamento ligüístico incoerente, variando aleatori-
que domina bem as regras normativas e que por isso vai ensinar bem, amente no uso de “nós” e de “a gente”.
fazendo seus alunos aprenderem a ler e escrever. Segundo Almeida (d) Insistem no ensino de formas em desuso n língua, embora usem,
Filho (2000:42), é comum encontrarmos no cotidiano profissional o eles memos, formas inovadoras.
desapontamento para com soluções dos teóricos, ante os poucos re- (e) Têm dúvidas quanto à maneira correta de se expressar diante de
sultados na melhoria da qualidade do ensino. O resultado é a afirmação sues alunos, pois não tiveram uma boa formação pedagógica.
por parte do professor de que o que aprendeu na graduação não serve (Provão, 2000)
para o exercício da profissão. O que importa é a sua experiência e
prática, como demonstra Andrade (1997:20). O que está em jogo aqui não é a classificação ou identificação
_ Você fez licenciatura? pura e simples dos pronomes “nós” e “a gente”, mas é a relação
_ É, eu fiz licenciatura, sim. Você vai tendo pra embasar entre o uso desses pronomes e a variação/mudança lingüística., que
as suas aulas...Mas o que requer conhecimentos gramaticais e sociolingüísticos ao mesmo tem-
te ensina mesmo é a vivência em sala de aula. A po. Esse exemplo indica que o estudante de Letras, formando-se
realidade teórica é uma coisa, a pela perspectiva predominante da gramática normativa, provavel-
realidade da faculdade é uma coisa, agora a sala de mente terá dificuldade em se posicionar sobre esse fato lingüístico.
aula é outra. (...) Além disso vai demonstrando um descompasso entre curso de gra-
Esse depoimento reforça a idéia de que teoria e prática estão duação e exame nacional de curso, distanciando-se assim do perfil
dissociadas e de que a formação do professor dá-se acima de tudo no proposto pelo Exame:
exercício mesmo de sua profissão. Ele ainda nos faz refletir sobre a O perfil do graduando pressupõe capacidade de uti-
aproximação, quase inexistente, do curso de graduação em Letras lizar os recursos da língua
com a escola fundamental e média. Parece-nos que esse curso não oral e escrita, de articular a expressão lingüística e
reconhece que é preciso ouvir os professores em atuação, para ten- literária com os sistemas
tar-se chegar a pontos comuns, de modo que o fosso diminua. Além em relação aos quais os recursos expressivos da
disso, é comum entre muitos professores formadores, da vertente de linguagem se tornam
estudos descritivos, apresentarem críticas, análises, avaliações do significativos.
ensino fundamental e médio, sem no entanto considerar nessas suas A tradição escolar de expor um ensino prescritivo é tão forte-
reflexões a participação dos professores que estão sendo objeto de mente difundida que, quando alguns princípios da lingüística se incor-
análise. poram aos conteúdos didáticos, são abordados também numa visão
prescritiva, como encontramos em Rafael (2001):
2.2. Embate entre tradição escolar e diretrizes oficiais (para o) texto ser bem formado ele precisa ter
Estamos chamando, aqui, diretrizes oficiais aquelas que ema- intencionalidade ter informatividade... e porque ele
nam dos órgãos reguladores da educação: MEC e Secretarias de Edu- todo texto tem informatividade será?...lembre-se da-
cação. Considerando os princípios teóricos em que se baseiam para quele caso que a gente colocou (...)
indicarem que tipo de formação escolar e profissional esperam, os A citação acima foi retirada de gravações de aulas de uma pro-
documentos oficiais (Parâmetros Curriculares Nacionais, Diretrizes fessora do ensino fundamental, analisadas por Rafael (op.cit.) em sua
Curriculares e os exames de avaliação) sinalizam para o desenvolvi- tese de doutorado. Notamos que princípios da lingüística textual (cri-
mento de competências, habilidades e atitudes que demonstrem refle- térios de textualidade) são apresentados de forma categórica, com o
xão, comparação, posicionamento e outras características de quem mesmo tom impositivo das normas gramaticais: “precisa ter”. Perde-
passa por um estudo produtivo, não repetitivo. Prova disso são, por se então a característica da descrição, típica de estudos lingüísticos,
exemplo, o exame nacional do ensino médio e o exame nacional de em benefício da prescrição. Assim a tradição escolar é reforçada.
cursos. Não estamos querendo defender que esses exames são perfei- Retomando o título deste artigo, em que aparece a pergunta “o
tos e acima de toda discussão e avaliação, apenas dizer que esperam provão interfere nesse quadro?”, certamente ainda é cedo para se dar
dos estudantes postura reflexiva, como podemos ilustrar com a ques- uma resposta conclusiva, pois o exame nacional de Letras se realiza há
tão 4, retirada do Exame Nacional de Letras do ano 2000.Em relação apenas 3 anos (1998, 1999 e 2000). No entanto, considerando o relató-
ao fato, mencionado na carta, de professores ensinarem a forma “nós” rio-síntese 2000 do INEP, com as informações dos cursos de Letras do
e usarem “a gente”, é correto afirmar, de uma perspectiva Brasil, podemos talvez dizer que a interferência vai ser tardia. Dos
sociolingüística, que elesdistinguem adequadamente os graus de for- 22.997 participantes do provão de Letras/2000,de Letras/2000,de Le-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 161


tras/2000,de Letras/2000, de Letras/2000, distribuídos em 406 cursos, 3. Considerações finais
a maioria está em cursos noturnos de instituições municipais ou parti- Os Cursos de Letras, responsáveis majoritários pela formação
culares, fez estudos anteriores em escolas públicas se manter, não tem de professores de língua no Brasil, se vêem questionados atualmente
oportunidade de participar de atividades acadêmicas além das aulas e tanto em relação à continuidade do sistema (antigo) de ensino/forma-
não recebeu nenhum tipo de bolsa de estudos. Sabendo que a maioria ção de professor quanto ao desafio de mudar, de pensar o novo. Como
dos conceitos D e E foram atribuídos a instituições municipais e parti- são um elo na cadeia da educação formal brasileira, estão intrinseca-
culares, que não têm um corpo docente tão qualificado e não dispõem de mente relacionados à escola fundamental e média, para onde vai quase
bibliotecas atualizadas (embora este ponto não seja exclusivo dessas a totalidade dos profissionais formados, e aos órgãos definidores des-
instituições), podemos vislumbrar um encadeamento entre a formação sa educação. Esse entrelaçamento se caracteriza pela tensão entre
do professor e a tradição escolar, repetindo-se, principalmente, o estu- teorias, às vezes incompatíveis, às vezes conciliáveis, e práticas con-
do normativo da língua, não refletindo o avanço das pesquisas em lin- servadoras e inovadoras , voltadas para a formação de um profissional
guagem nem as diretrizes apontadas pelos documentos oficiais. Há um que, desde as últimas décadas do século XX, ocupa um lugar de pouco
descompasso entre formação e diretrizes oficiais. prestígio, principalmente se atua na escola fundamental e média. E
Levando em conta os cursos com conceitos A e B, predomi- esse é um fator complicador de muita força que intensifica mais ainda
nantemente no Sudeste e Sul, vemos nos dados do relatório-síntese o embate entre teoria, prática, desempenho e avaliação, na busca de
que, embora sejam vários, esses cursos não correspondem à maioria. uma formação adequada para o professor de língua.
Assim podemos fazer algumas associações: os conceitos A e B são
os mais elevados e a minoria dos cursos os receberam, então é pro-
vável que esses atenderam de alguma forma à expectativa do exame 4. Referências bibliográficas
de cursos e devem ter uma formação mais descritiva, reflexiva do que
prescritiva. Dessa maneira, essa formação não é compatível com a ALMEIDA Filho, J.C. Crise, transições e mudança no currículo de
tradição escolar, o que poderá interferir no desempenho dos profes- formação de professores de línguas. In FORTKAMP, M.B.M.
sores, se for exigido deles que trabalhem, predominantemente, com & TOMITCH, L.M.B. (orgs.) Aspectos da lingüística aplicada.
a gramática normativa tal qual ela se apresenta. Aqui outro Florianópolis: Insular, 2000, p.33-47.
descompasso se evidencia e mais uma vez a presença do livro didá- ANDRADE, L.T. Procura-se um formador - a produção universitária
tico poderá ser decisiva na atuação desse professor, que vai procurar sobre ensino de português: uma ação reflexiva. Leitura: Teoria &
nesse manual fórmulas para seu trabalho em sala de aula. Não estamos Prática, Campinas, n.29, p. 16-29, jun/1997.
querendo dizer com isso que o livro didático seja o vilão dessa teia CAVALCANTI, M. & MOITA LOPES, L.P. Implementação de pes-
educacional e como conseqüência tenha de ser abolido da escola; mas quisa na sala de aula de línguas no contexto brasileiro. Trabalhos
estamos alertando que seu uso indiscriminado, sem uma avaliação, em Lingüística Aplicada, Campinas, n.17, p.133-144, jan/jun 1991.
pode transformá-lo em definidor do ensino e o professor, em um RAFAEL, E.L. Construção dos conceitos de ‘texto’ e de ‘coesão tex-
simples porta-voz. tual’: da lingüística à sala de aula. Campinas: UNICAMP, tese
de doutorado, 2001.

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Teoria e prática na formação do professor
Maria Augusta Gonçalves de Macedo Reinaldo
Universidade Federal da Paraíba/Campina Grande

RÉSUMÉ: Ce texte a le but de vérifier comment l’ENC-Lettres considère l’articulation du contenu spécifique avec la pratique dans la formation du
professeur de langue. La discussion est orientée par les contribuitions sur la formation reflexive du professionnel de l’enseigment.
PALAVRAS-CHAVE: Formação de professor - Ensino - Reflexão

1. Introdução linguagem, e seja capaz de produzir reflexões que revelem relativo


Iniciamos esta intervenção referindo-nos ao hiato que tem se amadurecimento em um campo de conhecimento capaz de dar suporte
instaurado entre a teoria produzida na universidade e a recepção dos às exigências relativas ao estágio atual dos estudos da linguagem. Sob
professores em serviço das leituras sobre o ensino de língua. De ma- este aspecto, faz-se necessário o estímulo ao exercício da capacidade
neiras variadas, os docentes egressos dos cursos de Letras traduzem crítica, colocando em evidência os fatos lingüísticos do português e/ou
a mesma representação de distância entre teoria e prática, entre da língua estrangeira em questão. O que pode ser feito por meio de
formação inicial e experiência profissional, ao afirmarem, como bem atividades que levam o aluno a conhecer os modelos que procuram
mostram os dados de Andrade (1997), que o conhecimento teórico é explicar a fluidez das formas do dizer em função de contextos especí-
importante apenas para o momento de sua formação acadêmica, pois ficos, considerando os espaços sócio-históricos ou culturais implica-
não está relacionado à sua prática pedagógica cotidiana. Uma das dos nesse uso; e atividades que procuram exercitar os modelos que
explicações para esse sentimento de rejeição apontada neste estudo trabalham as regularidades do dizer, que permitem a construção de um
da autora, como em outros estudos, é a posição de insulamento que a corpo de conhecimentos configurado, através das gramáticas, de dife-
prática de ensino tem ocupado, sob a forma de disciplina no final do rentes enfoques, ou através dos estudos que exploram a dimensão
curso ( apesar das atuais diretrizes oficiais), sem a necessária articu- estruturante da linguagem, em seus diversos níveis.
lação com os conteúdos específicos ministrados em outras discipli- O segundo componente envolve o desenvolvimento da habili-
nas: de um lado, o enfoque da prática tende a ser orientado pela dade de ensino e o conhecimento de pesquisa sobre ensino-aprendi-
Didática Geral, e não pelo conhecimento já produzido pela pesquisa zagem na área da linguagem. Aqui estão as contribuições de estudos
sobre o ensino-aprendizagem de língua. De outro, as disciplinas de autônomos em aquisição/aprendizagem de língua ainda raras nas disci-
conteúdo específico têm como preocupação central a descrição lin- plinas de Lingüística oferecidas nos cursos de Letras, sobretudo pelas
güística, desvinculada de suas implicações para o ensino. interfaces que tais estudos possuem com outras áreas do conheci-
Nosso objetivo, nos limites desta mesa-redonda, é verificar mento. Nesse sentido, são relevantes, hoje, entre outras, reflexões
em que medida o ENC-Letras, enquanto instrumento de avaliação que como: as concepções sobre o que vem a ser adquirir e/ou aprender uma
reúne as indicações acerca do perfil dos professores de língua, está língua; a discussão sobre as capacidades e os fatores individuais ou
considerando a articulação do conteúdo específico com a prática, na coletivos – de ordem cognitiva, afetiva ou social - que interferem no
formação dos profissionais em questão. Em outras palavras, de que processo de aprendizagem de uma língua; a evolução da linguagem
forma está sendo contemplada a relação dos conhecimentos adquiri- durante a fase de aquisição/aprendizagem; o papel do que se
dos nas teorias lingüísticas que são cobradas ao aluno professor com convencionou chamar de erro e das correções nesse processo evolutivo
a virtual prática pedagógica desse aluno professor? do aprendiz; o efeito que determinados procedimentos de ensino
A discussão está orientada pelas contribuições sobre formação formal no tratamento de certas questões podem provocar na apren-
reflexiva do professor. Nesse sentido, o texto está organizado em dizagem e no desenvolvimento do educando.
duas partes. Na primeira, são focalizados aspectos norteadores da Este componente pretende, pois, envolver o futuro professor
formação do professor de língua; na segunda, atemo-nos a considera- numa reflexão crítica sobre seu próprio trabalho, tendo em vista o
ções sobre as três versões já aplicadas do instrumento de avaliação desenvolvimento de uma atitude de pesquisa em relação a sua prática
propriamente dito (provão) e às respectivas planilhas de avaliação, docente, que o levará a ver a sala de aula não como o lugar da certeza,
restringindo-nos às questões de múltipla escolha e às questões ou de aplicação de um conhecimento acabado, mas como um espaço
discursivas de Língua Portuguesa e Lingüística. Discutimos suas im- de busca do conhecimento. A nosso ver, a pouca freqüência (quando
plicações para o modelo de formação esboçado no ENC-Letras. não ausência) deste tipo de conhecimento nos nossos cursos de Letras
constitui uma das razões que levam os professores egressos a não
2. Componentes da formação do professor de língua estabelecerem relação, ou a não encontrarem saídas para sua prática
Alinhando-nos ao grande número de trabalhos publicados na cotidiana, com base no conhecimento teórico que vêem na universida-
última década sobre formação de professores, entendemos que o con- de, como bem atestam os dados de Andrade (1997), a quem tomamos
ceito atual de formação de professor de língua está centrado na emprestado o seguinte depoimento de uma professora em serviço, ao
articulação de dois componentes curriculares: conhecimento teórico e referir-se ao conhecimento adquirido nesta instituição formadora: “
conhecimento de ensino e de pesquisa sobre ensino. Para mim aquilo não acrescentou nada. Absolutamente. Porque nor-
Falar do conhecimento teórico que deve ser apresentado ao malmente as pessoas que falam, elas são... elas só teorizam. Elas não
aluno de Letras significa determinar o domínio de conhecimento do vivem a sala de aula. Isso é uma coisa que professor fala e é uma
objeto linguagem que envolve um saber relativo à língua, enquanto verdade”
fato lingüístico, visto nas dimensões estrutural, semântica, histórica, A crescente defesa da inserção de ensino reflexivo durante a
interacional e discursiva. Impõe-se aqui oferecer ao graduando os meios formação inicial se deve ao reconhecimento da necessidade de se dar
para que ele possa se situar no pluralismo do campo de estudos da atenção aos modos como o conhecimento adquirido é ativado e usado

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 163


pelos alunos-professores e as circunstâncias que afetam sua aquisição e descritor de língua, traduzida na habilidade descrever e justificar as
desenvolvimento. Por essa razão, a compreensão dos seus conceitos de peculiaridades fonéticas, fonológicas, morfológicas, sintáticas semân-
ensino-aprendizagem de língua, de suas crenças, pensamentos e toma- ticas e pragmáticas do português brasileiro, em diferentes contextos,
das de decisão pode-nos ajudar a compreender melhor a natureza da contemplada com 17 e 16 ocorrências, nas versões de 1999 e 2000,
formação do professor de língua e, com efeito, a melhor preparar-nos respectivamente.
para nossos papéis como formadores de professores.
Esses achados da pesquisa sobre formação de professores apon-
tam para a aula como a instância das próprias teorias dos alunos-
professores e para a necessidade de encorajá-los à exploração siste-
mática dessas teorias, pois entende-se como ensino reflexivo uma
forma sistemática de olhar para nossas próprias ações em sala de aula,
identificando quais os efeitos que estas ações estão trazendo em ter-
mos de aprendizagem de língua (Gimenez, 1999).
Trata-se de desenvolver o que se tem denominado de competên-
cia aplicada, capacidade de viver profissionalmente o que se sabe teo-
ricamente ( Almeida Filho, 2000). As alternativas para a construção
desse tipo de conhecimento são oferecidas pela Lingüística Aplicada,
entendida como corpo de conhecimentos teóricos produzido a partir
de problemas relacionados com a linguagem identificados na vida real (e
não apenas no seu sentido limitado de aplicação de teoria lingüística),
em que o envolvimento em reflexão é mais importante do que a própria
solução do problema que está sendo estudado.
Portanto, um enfoque de formação de professor de língua que
contemple o componente conhecimento sobre produção de conheci-
mento do licenciando sobre si mesmo e sobre sua prática pode desen-
volver neste a habilidade de articular o próprio conhecimento teórico
com a realidade de ensino. Para isso, pelo menos duas práticas de
condução sistemática da reflexão com foco no processo de ensino-
aprendizagem de língua devem ser implementadas durante a gradua-
ção: mais ênfase em abordagens centradas na descoberta (em lugar da Uma ressalva pode ser feita, notadamente nas versões de 1999
prescrição e da reprodução de conhecimento), a partir da organização e 2000, ao caráter redundante da formulação de alguns aspectos do
de experiências de ensino exploratório no interior das disciplinas (e conteúdo, para contemplar a distinção entre o caráter teórico da Lin-
não apenas no âmbito dos projetos oficiais de iniciação científica, güística e o caráter prático (ou aplicado) da Língua Portuguesa, como
como os do programa PIBIC, que contemplam apenas uma fração por exemplo, Aspectos sintáticos, semânticos e discursivos da lin-
insignificante do alunado), com tentativas de integrar as teorias lin- guagem (Lingüística) e Morfologia, sintaxe e semântica (Língua Por-
güísticas às teorias de ensino de língua como disciplinas-fonte da tuguesa). Consideramos que, no atual estágio de estudos da lingua-
reflexão); e uso de procedimentos que envolvam alunos-professores gem, não se concebe a descrição da Língua Portuguesa senão através
na coleta e análise de dados sobre ensino de língua. Com essas práti- da Lingüística.
cas, os licenciandos serão conduzidos a pensar novamente sobre o que Com efeito, o conhecimento do fato lingüístico, em suas diver-
já experienciaram e a projetar novas situações, procedimentos que sas dimensões, tem-se configurado como o único conhecimento indis-
sugerem que os professores em formação passam a fazer mais siste- pensável à formação do professor de língua. Em contrapartida, quase
maticamente o que já fizeram de forma aleatória. nenhum espaço tem sido dedicado ao componente relativo ao conhe-
cimento de ensino e pesquisa sobre ensino. O que contradiz alguns
3. O modelo de formação esboçado no ENC-Letras: ver- dos traços do perfil do professor esboçado na portaria ministerial 55/
sões 1998, 1999 e 2000 98. Nesse sentido, tem sido reduzido o número de questões que ilus-
A observação das três versões do ENC–Letras, com base nas tram situações que podem fomentar o processo reflexivo de formação
reflexões apresentadas no item anterior, permite-nos afirmar que o do professor, como as sugeridas nos enunciados dos itens 4 ( aplicar
modelo de formação esboçado na prova e na planilha de avaliação diferentes teorias a problemas de ensino e aprendizagem de língua),
apresenta o conhecimento teórico e descritivo como o principal com- 8(operar como professor), 10 (atitude investigativa que favoreça o
ponente da formação do professor de língua. Centrado apenas na processo contínuo de construção do conhecimento e utilização de
aquisição do conteúdo especifico, este modelo está orientado para o novas tecnologias) da referida portaria. Na versão de 1998, dentre as
domínio dos principais paradigmas que deram suporte ao saber sobre a 20 questões de múltipla escolha, duas (5 e 6) estão relacionadas com
linguagem, com ênfase nos modelos teóricos mais recentes da história as questões de aquisição de linguagem e ensino; na versão 1999, do
da Lingüística, que têm como objeto de interesse a relação que se total de 20 questões, registram-se também duas questões (1 e 3) que
estabelece entre a língua, o papel do indivíduo na sociedade e as circuns- focalizam a relação aquisição de escrita e ensino. Na versão 2000,
tâncias em que ele exerce a sua língua. dentre as 22 questões, as quatro primeiras, que estão centradas em
Nesse sentido, o quadro I atesta a ênfase que tem sido dada à um dado escrito de aluno, sugerem reflexões sobre as questões
formação do especialista em linguagem, sobressaindo-se a figura do sociolingüísticas e o ensino.
intérprete de textos, especialmente na primeira versão, em que se regis- No âmbito das questões discursivas, as mais adequadas para a
tra a ocorrência em 16 questões de múltipla escolha, da habilidade in- avaliação da construção de significados dos alunos-professores sobre
terpretar adequadamente textos de diferentes gêneros e registros a relação entre o conhecimento teórico sobre fato lingüístico e o
lingüísticos e explicar os processos ou argumentos utilizados para conhecimento sobre ensino, tem sido reduzida a preocupação do ENC-
justificar sua interpretação. Trm-se enfatizado igualmente a figura do Letras com o componente produção de conhecimento sobre ensino de

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língua. Na versão de 1998, foi enfatizado apenas o conhecimento dores deste instrumento de avaliação, em relação às práticas pedagó-
metalingüístico, focalizando a análise do tipo de organização textual gicas realizadas nos cursos de formação de língua. Nesse sentido,
(questão1) e diferenças entre língua falada e língua escrita (questão 2), parece-nos que as três versões já realizadas ilustram mais conceitos
embora os dados desta questão fossem bastante adequados para a atuais no tocante à abordagem da descrição de língua - deslocamento
reflexão sobre os problemas de aquisição de escrita e a conseqüente do foco da prescrição de inspiração gramatical e filológica para a
intervenção do professor. Na versão de 1999, houve uma evolução, ao descrição de inspiração estrutural, semântica, histórica, interacional e
se solicitar a reflexão do aluno-professor sobre a orientação para o discursiva - do que o conceito atual de formação do professor de
ensino de gramática presente nos PCN (questão 1), e sobre as repre- língua, uma vez que tem predominado o controle sobre o conteúdo
sentações de língua por professores de Português. Na versão de específico, em detrimento da produção de conhecimento sobre as
2000, a questão 1 ilustra uma situação em que o licenciando é solicita- questões de ensino-aprendizagem desse mesmo conteúdo. Colocamo-
do a operar como professor , ao ter que explicar para o aluno as nos ainda de acordo com a autora, quando, citando Aplle (1997),
questões sociolingüísticas presentes na carta por este escrita. Na ques- lembra que a desqualificação do professor pode estar associada tam-
tão 2, no entanto, o licenciando é solicitado a refletir apenas como bém à ausência de planejamento ou controle de seu trabalho, e em
especialista. conseqüencia, das habilidades para realizá-los de forma qualificada e
Por fim, gostaríamos de salientar a ausência, nas três versões do refletida.
ENC-Letras, de questões que envolvam dados de interação em sala
de aula de língua portuguesa. A nosso ver, a análise desse tipo de 5. Referências bibliográficas
situação constitui uma das formas mais produtivas de se promover a
tão defendida, mas não excercitada integração da teoria estudada na ALMEIDA FILHO, José C. P. Crise, transições e mudanças no cur-
academia e a realidade do ensino a ser dominada pelos futuros profis- rículo de formação professores de língua. Aspectos da lingüística
sionais de ensino. aplicada. Florianópolis: Insular,2000; p.33-47.
AMARANTE, Mª de Fátima Silva. O exame nacional dos cursos de
4. Conclusão: letras de 1998 e o perfil do professor de língua materna. Revista
Levando em conta a articulação entre o conhecimento teórico e Letras 18 (1/2) 125-162. Campinas: PUC, 1999.
o conhecimento de produção de conhecimento sobre ensino como um ANDRADE, Ludmila Thomé. Procura-se um formador - a produção
dos eixos centrais a ser observado na formação do perfil profissional universitária sobre ensino de português: uma ação reflexiva. Lei-
do professor reflexivo, e considerando o lugar que o ENC –Letras tura: teoria e prática nº 24 (16 – 29), 1997.
passou a ocupar na orientação para a formação dos professores de GIMENEZ, Telma. Reflective teaching and teacher education:
língua, consideramos, seguindo a posição de Amarante (1999), ser contribuitions from teacher training. Linguagem & ensino, vol.2,
imprescindível refletir sobre os efeitos mantenedores e transforma- Nº 2 (7-10), 1999.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 165


Relações dialógicas, vozes, instauração do outro
e o ensino da produção textual
Maria Bernadete Fernandes de Oliveira
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

ABSTRACT: This paper discusses the contribution of Bakhtin’s dialogism to the written language teaching and learning. Our point of depart was
his concept of uterance, the instauration of alterity, the dialogical relations, the voices, as means to a discoursive approach of text production in
school.
PALAVRAS-CHAVE: Dialogia, língua escrita,ensino e aprendizagem

A reflexão, a ser apresentada neste trabalho, sobre o ensino da mensão. Isso significa pensar a língua escrita como espaço de mani-
produção textual escrita realizada no âmbito da instituição escolar, festação de práticas discursivas inter e intra subjetivas, que se inscre-
decorre de resultados anteriores de pesquisas ( Oliveira, 1998(a); vem nas esferas do público e do privado, do institucional e do cotidi-
1998(b), 2000), e assenta-se em três pressupostos básicos. O primei- ano, percorrendo vários gêneros discursivos (Bakhtin, 1992).
ro deles, sem desconhecer a anterioridade filogenética da língua oral, Pensando o ato de escrever, nestas duas dimensões, ancoramo-
remete à necessidade de que seja ultrapassada uma concepção de lín- nos nos ensinamentos de Bakhtin(1969,1992) que insere o estudo
gua escrita enquanto um código substitutivo. Para tanto, apoiamo-nos do sistema de signos verbais no universo dos bens simbólicos, no
nos comentários de Vygotsky (1984) sobre o ensino desta modalida- “mundo da cultura”, ou seja, o mundo onde circulam valores,
de de língua e sua compreensão de que este ensino deva orientar-se na construídos socialmente, formulando uma concepção de linguagem
direção de torná-la autônoma, isto é, fazê-la funcionar como mediado- para além das relações que se estabelecem nos limites da língua,
ra nas interações entre o homem e o mundo sem a necessidade do condensando a idéia básica de que todo fato de significação é resul-
auxílio de outros sistemas de signos, sejam aqueles de natureza pictó- tado de um trabalho social, realizado por sujeitos ativos no proces-
rica, seja o próprio signo verbal, manifestado em sua face oralizada. so de interação/troca/comunicação verbal. Desta forma, é que as
Tal entendimento encontra eco nas palavras de Auroux(1998) para práticas discursivas e os enunciados, orais e escritos, através dos
quem a língua escrita é um dos mais importantes “transpostos” com quais estas se manifestam, não estão dissociadas das regras e valo-
a finalidade de comunicação à distância, não apenas por utilizar a res que regem o funcionamento da sociedade e da produção social
bidimensionalidade do espaço plano, mas porque permite à linguagem em seu conjunto.
humana subsistir sem a presença de som emissor. Admitir este pressu- Por outro lado, é necessário ter claro que não se trata de esta-
posto significa atribuir importância igual para as materialidades sonora belecer correlações mecânicas ou externas entre os fatos da linguagem
e gráfica do significante, diferentemente daquilo que preconiza F. De e a vida social, ou dito de outro modo, entre enunciados produzidos e
Saussure, ao afirmar que “língua e escrita são dois sistemas distintos de contexto da enunciação. Pelo contrário, o objetivo consiste em com-
signos; a única razão de ser do segundo é representar o primeiro” preender que as propriedades e traços de cada enunciado particular
(Saussure, 1952:34). constituem formas de materialização dos conflitos, acordos, consen-
Um segundo pressuposto diz respeito a considerar as ativida- sos, verdades e mentiras resultantes das ações produzidas nas diver-
des de produção textual escrita enquanto uma atividade discursiva sas formas de atividade humana, o que em síntese significa dizer que
reveladora de uma prática social, e portanto portadora de valores, as formas lingüísticas, não são , formas vazias, nem expressam apenas
inserindo-se nos marcos de uma pedagogia que vise à formação do relações entre elementos internos da língua, são, isto sim, expressões
cidadão crítico, consciente e participante, como resultante das ativi- constitutivas e construídas a partir de relações sociais entre pessoas,
dades que se realizam no espaço da própria escola, e não como uma grupos, ou classes, participantes de uma dada situação de interação
abstração, a ser atingida apenas a partir de mudanças estruturais verbal.
(McLaren, 2000). Isto é , com base em um ideário pedagógico que A linguagem assim concebida apenas apresenta-se para o outro
objetive superar a inoperância da instituição escolar e a formação de sob a forma de “texto”, que nas ciências humanas, diferentemente das
pensamentos mutilantes, aqueles que, no dizer de Morin ( 1986), não ciências exatas, não se propõe como um objeto neutro, posto que não é
são capazes de ordenar informações, saberes, por operar, possível nele, eliminar a consciência de seu interlocutor, virtual ou real,
prioritariamente, pela fragmentação. nem a presença das vozes alheias, pois o texto não é um “dueto” e sim
E, por último, decorrente deste segundo, que o professor seja um “trio”, vez que compartilham-no o “eu”, o “tu” e as “vozes dos
considerado, em sua prática docente, como um mediador no processo outros”. Além disso, pressupõe uma língua, podendo sua análise cami-
de construção e apropriação do conhecimento, e não apenas um ava- nhar no sentido de buscar os elementos reproduzíveis, idênticos em
liador, que “corrige” os desacertos presentes na organização estrutu- todos os textos, como em geral faz a escola, ou, para o “acontecimento”,
ral do texto produzido pelos alunos. sua face irreproduzível, com sua constituição enquanto enunciado,
Parece-nos, pois, colocar-se como necessário, uma concepção evento único, elo na cadeia da comunicação verbal, dotado de autoria.
de língua escrita que possibilite um processo ensino/aprendizagem Nosso objeto de interesse, neste trabalho, dirige-se para o texto
orientado não apenas para atividades de reconhecimento, identifica- em seu funcionamento enquanto enunciado, vez que em nosso entendi-
ção e organização das unidades estruturais do sistema lingüístico, mas mento, esta a direção a ser seguida ao se pretender considerar o proces-
que incorpore atividades que considerando o modo semântico de fun- so ensino/aprendizagem da produção textual escrita enquanto uma ati-
cionamento da língua, conceba o ensino como uma atividade que vidade discursiva, uma prática social, e este funcionamento do texto
remete aos processos de significação e construção/interpretação de implica em levar em conta a concepção de dialogia (Bakhtin,
sentidos, atribuindo às atividades de produção textual uma nova di- 1962,1981,1992), em seus dois momentos. O primeiro, aquele que

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instaura o outro no processo discursivo, implicando em que toda escri- plesmente na presença de uma pluralidade de vozes no enunciado,
tura deve levar em conta um interlocutor, ainda que este seja uma não se trata de uma síntese de múltiplos pontos de vista, mas sim na
representação, uma imagem, ou o auditor médio do grupo social a quem presença de vozes livres para trocar seus acordos ou desacordos, e
o enunciado é dirigido; o segundo, assentado no fato de que qualquer que não são silenciadas por outras.
enunciado é permeado por vozes alheias, entre as quais se processam Em outras palavras isto significa entender que para Bakhtin, a
relações dialógicas. multiplicidade de consciências, manifestadas em vozes que dialogam é
A instauração do outro no processo discursivo remete a duas uma característica necessária mas não suficiente para uma verdadeira
características básicas do enunciado, conforme concebidas por polifonia. Há polifonia quando o sujeito é sujeito e não objeto de seu
Bakhtin(1992): alternância de interlocutores e acabamento do enuncia- dizer, nas relações dialógicas de natureza polifônica, o sujeito é um
do. A alternância torna-se responsável pela explicação de que o ato de sujeito que fala, e não aquele que é falado.
escritura é sempre dirigido para um outro, cuja resposta raramente é Bakhtin(1981, 1992) fala ainda de outros dois tipos de rela-
imediata1 enquanto que, o acabamento é responsável por todas as ções dialógicas, uma delas, portadora de um grau zero de dialogia, ou
operações do “querer-dizer” do locutor, pelas relações deste mesmo sejam aquelas relações que não possibilitam a réplica, porque ou,
enunciado com seu tema, com seu próprio enunciador, com seu destina- falta-lhe acessibilidade à materialidade significante do signo, hipote-
tário, e com o contexto de produção do enunciado. É o colocar em ticamente, aquelas que ocorreriam em uma situação de interação
funcionamento o princípio de que o signo verbal emerge, varia, e, verbal entre usuários de sistemas lingüisticos desconhecidos, ou
dirige-se para o outro, determinando assim a escolha das estratégias ainda, por realizarem-se em uma situação cuja temática seja comple-
enunciativas. Em outras palavras, estes movimentos de “alternância de tamente desconhecida para um dos interlocutores, isto é quando o
interlocutores e acabamento do enunciado” clarificam a noção de que a significado não é compartilhado, dificultando ou mesmo impossibi-
relação estabelecida entre os interlocutores, com o tema do enunciado, e litando a compreensão.
sua instância de enunciação, independente de sua natureza formal ou Um terceiro tipo, manifestariam-se em enunciados
informal, institucional ou coloquial, é constitutiva da forma do enunci- monológicos, aqueles que conduzem a práticas discursivas, subordi-
ado, tornando-se condição necessária à organização textual e a constru- nadas à manifestação de uma única consciência ou perspectiva, negan-
ção e produção de sentidos. Este momento da dialogia vem sendo bas- do a existência da consciência do outro, reduzido, então, à condição
tante pesquisado e tem inspirado procedimentos metodológicos para o de objeto e não de sujeito, no processo da interação verbal. Este tipo
ensino da produção textual escrita (Goes, 1993; Cabral 1994; Abaurre e de relações pode ocorrer, por exemplo, quando o “eu” anula o “tu”,
outros, 1997; Silveira, 1998; Garcez, 1998) segunda pessoa do enunciado, induzindo a uma situação de
O segundo momento da dialogia, aquele que remete para a pre- silenciamento e negação do outro; quando o “eu”, por uma opção
sença do outro - vozes alheias- nos enunciados, constitui-se, a nosso pessoal deixa de manifestar sua posição de sujeito; ou ainda, quando
ver , a instância da dialogia que vai possibilitar ir além na concepção de um dos interlocutores, por injunções institucionais é levado a omitir
ensino da produção textual, enquanto prática discursiva, portadora de sua posição de sujeito.
valores. Isto porque, as vozes são concebidas como manifestações de Levar em consideração, no ensino da produção textual, o con-
consciências que dialogam, debatem, confrontam-se concordam, si- ceito de texto enquanto enunciado, e portanto atendendo aos dois
lenciam a voz do outro ou a si próprio, expressando seus valores, momentos da dialogia, presentes na concepção de linguagem formula-
plurais ou não, hegemônicas, em uma dada época, em uma dada da por M.Bakhtin, implica em uma revisão nas abordagens conceituais
situação, em um dado grupo social ( Bakhtin, 1981). Sua incorpora- e metodológicas subjacentes a este processo de ensino/aprendizagem.
ção, em nossos enunciados, podendo assumir formas diversas, “...sua De um lado, o primeiro momento da dialogia, a instauração do
própria expressividade, seu tom valorativo, que assimilamos, outro no processo discursivo, permite ao professor, no exercício de
reestruturamos, modificamos (Bakhtin, 1992 . p.314) , em graus va- sua prática docente, orientar o aluno no sentido de que escreve-se para
riáveis, a partir de um emprego consciente, ou não. alguém, a quem se diz alguma coisa, a partir de palavras de outros,
O funcionamento destes dois momentos da dialogia bakhtiniana possibilitando ainda ao docente, perceber que, mesmo em sua organi-
não se processa no abstrato, mas no conjunto das relações dialógicas, zação estrutural, cada texto é diferente um do outro, ainda que de um
que no dizer de Bakhtin impregnam “toda a vida da linguagem, seja mesmo aluno, exatamente, porque através do querer-dizer, manifes-
qual for o seu campo de emprego...” ( Bakhtin, 1981 :183), contudo, ta-se um sujeito do dizer, cuja voz cabe à escola dar vez. Enquanto que
para serem reconhecidas, estas relações devem personificar-se na o segundo momento, a presença das vozes alheias, possibilita ao
linguagem, ou seja, assumir vozes, tornar-se enunciados, converter-se professor reconhecer e identificar nos textos dos alunos e em quais-
em diferentes posições de sujeitos, “...para que entre eles possam quer dos textos fontes utilizados em sala de aula quais as “visões de
surgir relações dialógicas( Bakhtin, 1981: 183). São pois relações mundo” ali presentes, os diversos tipos de manifestação das vozes,
marcadas por uma profunda originalidade, relações de sentido por trás que tipo de relações dialógicas se presentificam, possiblitando, desta
das quais existem sujeitos /autores (virtuais/reais), e que em seu modo forma, conceber a produção textual dos alunos como lugar de contri-
de operar , podem ser entendidas como constitutivas de tipos diver- buição ao processo de construção deste cidadão reflexivo e crítico, tão
sos, em função da relação que se estabeleça entre o “trio” presente no buscado e desejado pelos modelos pedagógicos. Pois, como diz Moita
texto, ou sejam, o “eu” e o “tu” , seja este “tu “o interlocutor imediato Lopes (1998), é através das vozes que se pode reconhecer os valores
ou as vozes alheias. dos quais o discurso pedagógico é portador, ao mesmo tempo que
Bakhtin(1981) discorre mais especificamente sobre um tipo de permite aos alunos, e acrescentaríamos também ao professor, exami-
relações dialógicas, aquela de natureza polifônica, cujo exemplo mais
claro pode ser encontrado no discurso de Dostoievsky, para ele, o
“grande polifonista”, aquele que realiza o verdadeiro diálogo e sua
natureza inacabada. Este tipo de relações dialógicas pressupõem a 1
Referimo-nos, no momento, ao ato de escrever para um outro sujeito,
existência de uma pluralidade de consciências, manifestadas em vozes embora, isto não signifique desconhecer que o ato de escrever pode ter
válidas, independentes de seu criador/autor, constituindo sujeitos li- como destinatário o próprio sujeito, que, como diz Schneuwly(1991),
vres e capazes de rebelar-se, discordar, ou mesmo concordar. O cerne seria a realização da escrita em sua face representacional, aquela que
das relações dialógicas polifônicas, diz Ponzio (1997), não reside sim- funciona como auxiliar no processo de memorização, resolução de pro-
blemas e no próprio planejamento da produção textual.

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nar suas produções discursivas, assumindo uma visão crítica, tornan- CABRAL, M. Avaliação e escrita: um processo integrado. In F.I,.
do-os conscientes das posições de sujeito presentes no discurso, re- Fonseca (org) Pedagogia da Escrita: Perspectivas. Porto.Porto
conhecendo ainda seus processos identitários. Ainda mais porque, Editora. 1994.
como diz Bakhtin (1992), cada texto é único e sua reprodução é GARCEZ, L. A escrita e o outro. . Brasília. UNB, 1998
sempre um novo acontecimento, é um novo elo na cadeia da comuni- GERALDI, J.W. Portos de Passagem. São Paulo.Martins Fontes.
cação verbal. 1991
Desta forma, o ato de escrever, a se realizar no espaço esco- GOES, M.C.R. A criança e a escrita: explorando a dimensão reflexiva
lar, poderá assumir uma outra dimensão, constituindo-se instru- do ato de escrever. In A .L.B.Smolka e M.C.R. de Goes (orgs) A
mento de manifestação de valores morais e éticos, recuperando desta Linguagem e o Outro no espaço escolar. Papirus,Campinas, 1993.
forma, no dizer de Geraldi(1991), o prazer de escrever “na” escola MCLAREN. P. Multiculturalismo Revolucionário. Porto Alegre.
e não apenas “para “ a escola. E, ao mesmo tempo, pensamos que Artmed. 2000
assim conduzido, o ensino da produção textual escrita poderá con- MOITA LOPES, L.P. Discursos de identidade em sala de aula de
tribuir, como sugere McLaren(2000), para que as escolas sejam vis- leitura de L1: a construção da diferença. In. I.Signorini (org) Lin-
tas como espaços de produção e legitimação de formas de subjetivi- guagem e Identidade.Campinas. Mercado de Letras.1998
dade, de modos de vida, permitindo aos alunos, construir e apropri- OLIVEIRA, M.B.F. de. A construção do sentido em textos de esco-
ar-se de conhecimentos e valores dos quais vão precisar para articu- lares. Vivência, v.12.n.1 jan/jun, 1998. Pp77-86.Natal, Edufrn.
lar suas próprias vozes e entender as vozes do outro, caminhando na ISSN 0104-3869, 1998(a).
direção de tornarem-se agentes sociais coletivos, cidadãos críticos e ________. As vozes e os efeitos de sentido da “prática” no discurso
reflexivos. de professoras sobre sua formação. Linguagem e Ensino ,2.
Pelotas, Editora da Universidade, 1998(b).
Referências bibliográficas ________. O ensino da produção textual : o saber e o fazer das profes-
soras. In L.S. Passeggi e M.S.Oliveira (orgs). Lingüística e Edu-
ABAURRE, M.B.M e outras. Cenas de aquisição da escrita. Campi- cação. Natal. Edufrn.2000
nas. Mercado de Letras 1997. PONZIO.A; Calefato.P.; Petrilli. S. Fondamenti di filosofia del
AUROUX, S. A Filosofia da Linguagem. Campinas. Editora da linguaggio. Roma-Bari. Editori Laterza. 1994.
Unicamp. SAUSSURE, F. de. Curso de Lingüística Geral. Sâo Paulo,
BAHKTIN,M. Marxismo e Filosofia da Linguagem.São Paulo, Cultrix.1952.
Hucitec, 1969. SCHNEUWLY, B. Diversification et progression en DFLM: l’apport
________. Estética da Criação Verbal. São Paulo, Martins Fontes, des typologies. Études de Linguistique Appliquée. Nouvelle Sé-
1992. rie, 83. Paris, Didier-Érudition, 1991
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Forense Universitária. 1981 tando o “passar a limpo”. Linguagem e Ensino, vol 1. N.2, julho
BRANDÃO, M.H.N. Texto, gêneros do discurso e ensino. In 1998. Pelotas 39-58
L.Chiappini(org) Gêneros do Discurso na Escola.São VYGOTSKY, L. A Pré-História da Escrita. IN L.S. Vygotsky, A For-
Paulo.Cortez, 2000. mação Social da Mente.São Paulo.Martins Fontes. 1984.

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Conceitos bakhtinianos na pesquisa em sala de aula
Rita Maria Diniz Zozzoli
Universidade Federal de Alagoas

RÉSUMÉ: Ce texte analyse certains concepts bakhtiniens utilisés dans une recherche sur la lecture et production de textes en salle de classe. Ces
concepts sont mis en relation avec d’autres conceptions qui en constituent les bases théoriques. Ensuite, il expose l’utilité de ces concepts dans
l’observation en salle de classe
PALAVRAS-CHAVE: dialógica, compreensão, produção.

Introdução de fenômenos da pesquisa


Este trabalho tem o objetivo de examinar alguns conceitos As noções bakhtinianas se enquadram nesses princípios de
bakhtinianos que já utilizo na pesquisa Leitura e produção de textos base, mesmo naqueles que não têm origem no pensamento desse au-
na sala de aula de língua: a constituição de uma gramática do aluno, tor. O conceito de complexidade de Morin, por exemplo, perpassa
todas elas, uma vez que Bakhtin questiona as dicotomias clássicas da
desenvolvida em grupo na Universidade Federal de Alagoas. Mais
lingüística e das Ciências Humanas de modo geral, em afirmações
especificamente, trata-se de refletir sobre as definições desses concei-
como aquela de que o “signo ideológico é o território comum, tanto do
tos, relacionando-os a outros conceitos teóricos compatíveis e de psiquismo quanto da ideologia” (Bakhtin, 1981: 57).
expor como se dá sua contribuição para a compreensão dos fenôme-
nos estudados na pesquisa já citada. Noção de língua
Antes de tudo, é necessário esclarecer que meu ponto de vista Assim, em concordância com essa ótica, a língua não é nem o
não é a retomada em bloco dos conceitos e da teoria em questão para resultado de um processo criativo individual nem um sistema estável,
supostamente “comprovar” sua utilidade na pesquisa em sala de aula. imutável e peremptório à consciência individual, mas “uma corrente
A perspectiva em que me situo privilegia o fenômeno estudado e procu- evolutiva ininterrupta” (op. cit.: 90) e, portanto, “inseparável do flu-
ra recursos teóricos em conformidade com as linhas básicas do paradigma xo de comunicação verbal” (op. cit.: 108). Dessa maneira, “as formas
geral da investigação, tentando trabalhar dentro da ótica da inter-relação que constituem uma enunciação completa só podem ser percebidas e
compreendidas quando relacionadas com outras enunciações comple-
entre teoria e prática.
tas pertencentes a um único e mesmo domínio ideológico”.2
O paradigma geral da investigação situa-se na pesquisa em sala
Tal definição abre espaço para a noção de processo também
de aula de cunho antropológico, aliada a uma base teórica qualificada inserida nas definições de outros conceitos bakhtinianos e contrapõe-
de “dialógica” por Dosse (1991: 33-35 e 1994: 493-497). Retomando se, portanto, à análise de textos como produto acabado e à análise de
o que afirma esse autor, percebe-se que a “dialógica”, apesar de inici- fenômenos lingüísticos a partir de um sistema abstrato.
almente, pelo menos no caso de alguns autores, como Kristeva e No plano da pesquisa em sala de aula, isso se traduz na neces-
Todorov, ter sido fundamentalmente introduzida a partir da obra de sidade de se examinar não apenas produções isoladas dos alunos,
Bakhtin, tornou-se um novo paradigma : “essa noção de dialógica, ainda que elas façam parte de uma mesma situação de aprendizagem,
nascida no domínio literário, será fecunda em muitos outros domínios mas que se considere igualmente a evolução das produções desses
e, em primeiro lugar na lingüística”. 1 alunos, determinados em quantidade e qualidade pela metodologia da
Nesse campo é citado o lingüista Claude Hagège (1985: 396- pesquisa, em comparação com as de outros alunos na mesma situação
e, eventualmente, em situações semelhantes.
397), que define o homem dialogal da seguinte forma: produto sempre
Não sendo a escrita desvinculada da oralidade, seguindo o prin-
renovado de uma dialética de coações, cujas formas futuras se igno-
cípio da complexidade, é ainda desejável que as produções escritas
ram, e de liberdades, cuja medida dependerá de sua resposta aos desa- não sejam isoladas totalmente do que se passa no conjunto das
fios em seu horizonte [..]. Mostrarei mais adiante que essa compreen- interações que acontecem na sala de aula.
são do homem coincide com uma visão de sujeito também defendida Do ponto de vista da ciência positiva, muitos me dirão que essa
em outros domínios das Ciências Humanas e que constitui também a proposta constitui uma tarefa difícil, quase impossível, porque, diriam
concepção adotada em meus trabalhos e na pesquisa que coordeno. eles, essa conduta envolveria variáveis em excesso. Morin (2000 a: 176)
Para Dosse (op. cit.: 496), “o sujeito e a história estão decidi- nos responde que a complexidade não luta contra a incompletude, mas
damente de volta, e a dialógica oferece, com efeito, a perspectiva de contra a mutilação. “A ambição da complexidade é prestar contas das
um paradigma em ruptura com o movimento estruturalista, mesmo articulações despedaçadas pelos cortes entre disciplinas, entre categori-
que permita situar-se mais numa perspectiva de ultrapassagem deste as e entre tipos de conhecimento”, nos esclarece esse autor. Assim, não
se procura “dar todas as informações sobre o fenômeno estudado, mas
último do que na de um movimento de rejeição radical”.
Além do exposto, acrescente-se, como princípio norteador da
investigação já citada, a noção de complexidade de Morin (1994, 2000a,
2000b), segundo o qual é possível distinguir, separar, opor e, portan- 1
Dosse (1994: 493) nos informa que Kristeva e Todorov adotaram, no
to, dividir relativamente os domínios científicos, promovendo ao mesmo domínio da crítica literária a concepção de Bakhtin, “segundo a qual o
tempo uma comunicação entre eles, sem operar redução (2000 a: objeto privilegiado deve ser a intertextualidade e uma abordagem dialógica
138). da literatura”.
Noções bakhtinianas e sua contribuição na compreensão
2
Eu acrescentaria audaciosamente: e confrontadas com outras enunciações
de outros domínios.

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respeitar suas diversas dimensões”. minado socialmente, considero que Bakhtin nos fornece a concepção
No caso das produções citado antes, não se trata, portanto, de de compreensão responsiva ativa que permite deslocar esse sujeito da
esgotar todos aspectos analisáveis, mas ao escolher perspectivas para passividade, e, conseqüentemente, da simples submissão à repetição
focalizar determinados fenômenos, procurar fazê-lo sem reduzi-los a do que já está determinado.
um só plano. Mesmo que se privilegie determinado plano, como é o Defendo a idéia de que tal noção é compatível com a concepção
caso da escrita, não se deve esquecer, por exemplo, de que se está contemporânea de sujeito ativo que nos é fornecida por autores como
tratando com a linguagem de modo mais geral e que isso implica não Galissot (1991: 14-15). Esse autor defende a idéia de constituição de
um sujeito que passa pela tomada da palavra, o que significa também
desconsiderar as inter-relações entre oralidade e escrita, entre o verbal
agir e entrar na história. Essa concepção propõe um sujeito que se
e o não verbal, entre outras.
funda a partir das relações. Esse fundamento relacional tem duas ver-
tentes: uma da estruturação da sociedade e outra da estruturação pes-
Noções de interação e de subjetividade soal 5.
Quanto à interação do ponto de vista de Bakhtin, diferente- No mesmo sentido de um sujeito complexo, Lantz (1991) nos
mente da forma como é considerada em várias análises discursivas de discorre sobre as deficiências de uma visão de sujeito dominado pela sua
diferentes origens, desvencilha-se de um dualismo entre o que é con- capacidade racional, segundo a tradição do século das Luzes, como tam-
teúdo a exprimir na enunciação e sua objetivação exterior para outrem, bém as inadequações de uma concepção de sujeito apenas “como porta-
como também entre o que é situação imediata e situação social mais dor individuado da sacralidade da sociedade” (op. cit.: 52).
ampla. Essas concepções coincidem em suas idéias básicas de comple-
Mas, na minha leitura de Bakhtin, há algumas interrogações xidade com a visão de homem dialogal de Dosse (op. cit.) já apresen-
provocadas por determinados trechos que envolvem a questão da tada no início deste trabalho e também com a de sujeito ator de
determinação e do assujeitamento, as quais não posso deixar de lado Touraine (1984), e com as reflexões de Elias (1987).
em uma leitura crítica. No plano da pesquisa, escapando, por um lado, das visões
Sobre a relação entre o conteúdo e a expressão, em Marxismo e redutoras do individualismo e, por outro lado, do determinismo, essas
Filosofia da Linguagem (Capítulo 6 – A Interação verbal), fica claro concepções permitem pensar na possibilidade de constituição de um
que estes “são criados a partir de único e mesmo material, pois não sujeito leitor/produtor de textos (mas também, paralelamente locutor/
ouvinte) que não esteja fatalmente apenas submetido nem as suas
existe atividade mental sem expressão semiótica”(op. cit.: 112).
vontades pessoais, nem às determinações estruturais ou
Mesmo concebendo tal relação, Bakhtin dá primazia ao exteri-
superestruturais de qualquer ordem. Só assim é possível pensar em
or nessa passagem do livro, pois afirma: “é a expressão que organiza práticas transformadoras para a sala de aula, que conduzam à com-
a atividade mental”3 (op. cit.: 112). E, mais adiante, acrescenta: “A preensão responsiva ativa que Bakhtin nos propõe, e que nos permi-
situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam tam objetivar uma autonomia relativa para o aluno em diferentes situ-
completamente e, por assim dizer, a partir de seu próprio interior, a ações de utilização da linguagem..
estrutura da enunciação”4. O “determinam completamente” está em
consonância com as reflexões que se seguem a respeito da atividade Noção de compreensão responsiva ativa e a proposta de
mental: “mesmo sob a forma original confusa do pensamento que uma autonomia relativa do leitor/produtor de textos
acaba de nascer, pode-se já falar de fato social e não de ato individual No capítulo 5 de Marxismo e Filosofia da Linguagem (Língua,
interior” (op. cit.: 118). Tais afirmações, ao tempo em que dão prima- Fala e Enunciação), a noção de compreensão ativa aparece na primeira
zia à intersubjetividade e não à subjetividade, como observa Barros referência como “compreensão ideológica ativa” (op. cit.: 98) que se
(1999: 28), e assim como também apontam para o permanente diálo- opõe ao que o ator chama de uma “falsa concepção da compreensão
go entre indivíduo e sociedade, como afirma Brait (1999: 77), na mi- como ato passivo”. Na compreensão passiva, é o reconhecimento que
nha compreensão, também remetem a uma determinação completa predomina sobre a compreensão, enquanto que na compreensão ativa
dos sujeitos interlocutores pelo social. existe necessariamente a inclusão de uma réplica.
Percebo, em minhas leituras, que a imanência da determinação Mas é no Capítulo 7 (Tema e Significação na Língua) do mesmo
livro que o autor vai tratar mais longamente do que denomina “o proble-
social é explícita em determinados trechos de Marxismo e Filosofia da
ma da compreensão” Essa questão é retomada de forma ainda mais
Linguagem, ao passo em que essa insistência não está presente em
aprofundada no livro Estética da Criação Verbal (1992: 220):
Estética da Criação Verbal. Nesse livro (1992: 44), as reflexões sobre
as relações entre eu e o outro não parecem focalizar a determinação A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é
social da mesma forma peremptória que no primeiro livro, como, por sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa 6 (con-
exemplo na passagem: quanto o grau dessa atividade seja muito variável) toda a
Da mesma forma, uma emoção interior e o todo da vida interi- compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra
or podem ser vivenciados concretamente – percebidos interna- , forçosamente a produz; o ouvinte torna-se locutor.
mente – seja na categoria do eu-para-mim, seja na categoria
do outro-para-mim; em outras palavras, seja como vivência No contexto da pesquisa, considero que é através da criação de
própria, seja como vivência desse outro único e determinado. oportunidades concretas em termos de atividades na sala de aula que
Não é possível afirmar até que ponto a questão da autoria do
primeiro livro e/ou as pressões sofridas na época sobre os autores
russos - questões que são mencionadas no prefácio de Marxismo e 3
O itálico é do autor.
Filosofia da Linguagem - são responsáveis por essa diferença ou se ela 4
Id.
é causa de uma evolução do pensamento do autor. De qualquer forma, 5
Ainda segundo Galissot (op. cit.: 7), “cada uma dessas estruturações tem
não é o objetivo deste trabalho aprofundar essa questão que demanda- sua história em temporalidades distintas que se reencontram por gera-
ria toda uma incursão nos escritos atribuídos a Bakhtin, como também ções e num único tempo real que é o da existência, e se perdem na
necessitaria de mais tempo e espaço para ser desenvolvida, mesmo duração e no movimento de transformação das sociedades. Nessa inter-
que não se pretenda dar respostas definitivas. ferência relacional, o sujeito não pode ser compreendido fora da socieda-
de; muito ao contrário, é a exclusão do social que contradiz as
Apesar de constatar esse reforço, ainda que indireto em certas
potencialidades de tornar-se sujeito[...]”.
passagens do primeiro livro, à posição do sujeito apenas como deter- 6
Em itálico no original.

170 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


possibilitem o máximo de respostas ativas, não apenas na escrita e compreensão responsiva ativa, bem como os de sujeito e de autono-
mas na oralidade, que se chega a patamares de uma autonomia relati- mia relativa estabelecidos a partir de outros autores concernem a lin-
va do aluno. guagem como um todo. Assim, muitos outros estudos podem ser
No trabalho que apresentei no simpósio Ensino da língua portu- efetuados com base nas reflexões aqui apresentadas, aprofundando-as
guesa: intervenções na prática da sala de aula, neste mesmo Congresso, em função de outras perspectivas de análise.
forneci exemplos com produções de alunos, visando a mostrar como
evoluem ou não evoluem alguns alunos dentro de uma situação de inter- Referências bibliográficas
venção da pesquisa já mencionada no início deste texto.
É interessante perceber que há possibilidades de evolução atra- BAKHTIN, Mikail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo:
vés de indícios de uma compreensão responsiva ativa em um dos Hucitec, 1981.
exemplos expostos: o aluno identificado por C, que se limitou a para- ______. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
frasear um determinado texto dado em sala de aula no início do curso, BARROS, Diana Luz Pessoa de. Contribuições de Bakhtin às teorias
demonstrou uma evolução bastante visível no plano discursivo: con- do texto e do discurso.In: FARACO, C. A. et al. (orgs.). Diálo-
seguiu se distanciar do texto lido imediatamente antes da produção gos com Bakhtin. Curitiba: Ed. da UFPR, 1999. p. 21-42.
para recorrer a outros textos e a outras vozes. Ao fazê-lo, constato BRAIT, Beth. A natureza dialógica da linguagem: formas e graus de
que não mais se restringiu à paráfrase, mas, na medida em que conse- representação dessa dimensão constitutiva. In: FARACO, C. A.
guiu relacionar novos textos e novos argumentos para formar um novo et al. (orgs.). Diálogos com Bakhtin. Curitiba: Ed. da UFPR,
texto, tornou-se ativo em sua compreensão/produção, mesmo que 1999. p. 69-92.
ainda de forma incipiente. CERTEAU, Michel de. A Invenção do Quotidiano: artes de fazer.
Mas é indispensável ponderar que a constatação da necessida- Petrópolis: Vozes, 1996.
de de se trabalhar em sala de aula com a perspectiva de criação de DOSSE, François. Le sujet captif: entre existentialisme et
patamares de autonomia através das respostas ativas não é suficiente structuralisme. L’Homme et la Société. Paris: l’Harmattan, n.
para que tudo se transforme, como por encanto na sala de aula. 101, p. 17-39, 1991.
É necessário que se invista em pesquisas que envolvam ao _____.História do Estruturalismo: o canto do cisne, de 1967 a nossos
mesmo tempo a formação do professor e a reformulação do fazer
dias. São Paulo: Ensaio, 1994.
pedagógico, além da observação dos fenômenos lingüísticos, pois,
ELIAS, Norbert. La société des individus. Paris : Fayard, 1991.
quando o objetivo é contribuir para o ensino e a aprendizagem, um
GALISSOT, Robert. Au-delà du sujet philosophique et
trabalho isolado de cada coisa resulta em redução e fragmentação,
psychanalytique, au-delà du sujet historique: sujet, sujet collectif
muito freqüentemente responsáveis pelas receitas prontas e pelas
et théorie sociale. L’Homme et la Société. Paris: l’Harmattan, n.
reproduções de conhecimentos.
101, p. 5-16, 1991.
HAGÈGE, Claude. L’homme de Paroles: contribution linguistique
Conclusão
aux sciences humaines. Paris: Fayard, 1985.
Como foi salientado inicialmente, este trabalho procurou rela-
LANTZ, Pierre. Sujet de la connaissance et de la subjectivité. L’Homme
cionar conceitos bakhtinianos a outros que lhes são compatíveis, ex-
pondo, ao mesmo tempo como se efetiva suas contribuições para os et la Société. Paris: l’Harmattan, n. 101, p. 49-55, 1991.
fenômenos da sala de aula de língua. Ressalte-se que o fato de se MORIN, Edgar. La Complexité Humaine. Paris: Flammarion, 1994.
focalizar mais de perto questões de leitura e produção de textos escri- _____. Ciência com Consciência.Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000a.
tos nos comentários sobre a pesquisa não significa pretender que seja _____. Uma Cabeça bem Feita. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000b.
possível isolar tais atividades do trabalho geral executado com a lin- TOURAINE, Alain. Le retour de l’acteur. Paris : Fayard, 1984.
guagem na sala de aula. Os conceitos bakhtinianos de língua, interação

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 171


Leitura: relação entre aprendizagem
e desenvolvimento
Abuêndia Padilha Pinto
Universidade Federal de Pernambuco

ABSTRACT: This paper presents an overview of some approaches related to the learning process such as the behaviourism, the cognitive psychology
and Vygotsky’s conceptions of learning and development. It also discusses how these different approaches have influenced language teaching and
points out the advantages of the social interactionism to the teaching of reading-writing.
PALAVRAS-CHAVE: reading-writing, mediation, learning, development.

Introdução como elabora, a partir da observação direta, e de sua própria experiên-


A relação entre aprendizagem e desenvolvimento está presente cia, uma série de considerações sobre o mundo e a realidade, o que
nas diversas teorias psicológicas que se ocupam em estudar o com- contraria a visão comportamentalista.
portamento e o pensamento humanos. A maioria dos psicólogos Para Piaget (1976) linguagem e pensamento são processos dife-
cognitivos concorda com o fato de que as mudanças no desenvolvi- rentes que têm origens distintas, de modo que a linguagem não contri-
mento ocorrem em conseqüência da interação entre maturação e apren- bui, decisivamente, para a construção da inteligência. A criança constrói
dizagem. Alguns deles, por exemplo, atribuem uma ênfase maior à o conhecimento com as coisas e as pessoas do seu meio ambiente. À
maturação, que se refere às mudanças relativamente permanentes no medida que a linguagem está envolvida, essas interações podem ampliar
pensamento ou no comportamento e que ocorrem como resultado do ou facilitar o desenvolvimento, mas a linguagem, por si só, não produz
amadurecimento. Outros, por sua vez, enfatizam a importância da crescimento cognitivo Seu modelo do sistema cognitivo humano enfatiza
aprendizagem, cujas mudanças são resultantes da experiência. a interação e a colaboração constantes do interno-cognitivo com o exter-
O desenvolvimento do sistema cognitivo humano já percorreu, no-ambiental. Ambos os fatores facilitam a construção e a utilização do
desde os meados do século vinte até os nossos dias, um caminho bas- conhecimento.
tante extenso: da abordagem comportamentalista ao sociointeracionismo, A abordagem sociointeracionista, por sua vez, evidencia algumas
sem perder de vista a abordagem piagetiana. Está além dos limites do concepções distintas das idéias de Piaget. Enquanto esse psicólogo
presente texto oferecer uma exposição satisfatória de tais abordagens. enfatiza o aspecto biológico e portanto, maturativo do desenvolvimen-
Ainda assim, ao longo de nossa exposição, que visa a apresentar as to, Vygotsky (1996) adota uma outra concepção ao se preocupar com a
contribuições de Vygotsky para a aprendizagem e o desenvolvimento interação social. Há, portanto, duas posições distintas nas duas aborda-
da leitura, ofereceremos algumas noções das visões mais gerais que gens. De um lado encontram-se os defensores da abordagem piagetiana.
norteiam a abordagem comportamentalista, a piagetiana, a Na opinião destes teóricos os ciclos do desenvolvimento antecedem os
sociointeracionista e suas propostas sobre aprendizagem e desenvolvi- da aprendizagem, o que faz com que a instrução siga o crescimento
mento. mental. Os sociointeracionistas, por outro lado, argumentam que os
dois processos são coincidentes, ocorrendo simultaneamente e de modo
1. Conhecimento do Sistema Cognitivo Humano : algu sincronizado. Por conseguinte, em contraste com a abordagem dentro-
mas abordagens fora de Piaget, Vygotsky enfatiza o papel do ambiente no desenvolvi-
Os defensores da abordagem comportamentalista representa- mento intelectual. Postula que o desenvolvimento procede de fora para
da, principalmente, por Skinner (1957), igualam pensamento e lingua- dentro pela internalização – a absorção do conhecimento pelo contexto.
gem e são a favor da idéia de que a aprendizagem da língua é obtida de Assim, as influências sociais, em vez de biológicas, são fundamentais na
maneira mecânica, reduzindo-se a uma mera questão de formação de sua teoria, como apresentaremos nos itens que se seguem.
hábitos. Segundo esta proposta, a criança inicialmente considerada
como uma “tábula rasa,” desenvolveria o conhecimento lingüístico 2. Aprendizagem e Desenvolvimento no Contexto Social
por meio de estímulo-resposta, imitação e reforço. Ao contrário de Piaget que defende a idéia da fala egocêntrica,
Quase na mesma época, Chomsky (1959) criticou a visão Vygotsky considera que a fala tem como função primordial a comuni-
comportamentalista da aprendizagem de línguas por meio da perspec- cação, o contato social. À medida que a criança interage e dialoga com
tiva de estímulo-resposta e defendeu a capacidade inata dos seres os membros mais maduros de sua cultura, aprende a usar a linguagem
humanos que os predispunha a buscar os padrões básicos da língua. como instrumento do pensamento e como meio de comunicação. En-
Ao enfocar a competência lingüística, Chomsky referiu-se à compe- tendida como instrumento ou signo, a fala tem um papel fundamental
tência gramatical ao nível da sentença, restringindo o domínio da lin- como organizadora da atividade prática e das funções psicológicas.
güística ao estudo da língua separada do contexto social em que ocor- Mota (1990 : 68) distingue, a partir das idéias de Vygotsky,
ria a interação. A língua, no entanto, não pode ser estudada sem duas perspectivas relevantes na fala infantil. Primeiro, iguala a impor-
vinculações com suas funções sociais. Trata-se de um sistema que tância da fala da criança à ação para atingir um objeto; fala e ação se
vive e evolui na comunicação verbal concreta e o desenvolvimento do integram numa função cognitiva complexa, dirigida para a solução do
ser humano se dá a partir das constantes interações no ambiente social problema em questão. Segundo, afirma que quanto mais complexa a
em que vive, já que as formas psicológicas mais sofisticadas emergem ação exigida pela situação e menos direta a solução, maior importância
da vida social. Antes de chegar à escola, portanto, a criança não só a fala adquire na operação como um todo. Desse modo, ao se defron-
interage e dialoga com os pais e demais membros do seu grupo social, tarem com um problema complexo, as crianças apresentam uma vari-

172 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


edade de respostas que incluem : tentativas diretas de atingir um 3. Leitura e Escrita : algumas reflexões
objetivo, o uso de instrumentos, a fala dirigida à pessoa que conduz o Cagliari (1988) lembra que o processo de produção da leitura
experimento, a fala acompanhando a ação, entre outras. Isto possibi- depende, essencialmente, do processo de produção da fala. Ler é uma
lita o desenvolvimento de novas relações entre as funções psíquicas. atividade lingüística mais complexa do que falar, pois só se realiza
Como se deduz do exposto, a fala social utilizada de início para plenamente ao passar por todos os mecanismos de produção da fala.
dirigir-se a outra pessoa, vai sendo gradativamente internalizada, o Ao decifrar a escrita, a criança precisa recuperar a linguagem oral que
que faz com que a criança regule seu comportamento através da fala a escrita representa e processá-la como se fosse dizer aquilo que
interior. Com isto, a linguagem adquire uma função intrapessoal, além descobriu no texto. Aliada à decifração há a reflexão , em que a criança
de ser o principal instrumento nas relações interpessoais. Vygotsky troca, acrescenta ou omite palavras à medida em que lê, evitando a
conseguiu grandes avanços na compreensão desta questão, especial- mera reprodução fonética.
mente no que diz respeito ao seu papel como central na formação das A aprendizagem da leitura pela criança tem sua origem na
funções psíquicas superiores. Assim, o verdadeiro curso de desenvol- interação entre ela e os pais ou um adulto leitor. Não se restringe,
vimento do pensamento, incluindo a comunicação lingüística, não ocorre portanto, às etapas iniciais da escolaridade nem é centrada apenas na
do individual para o social, mas do social para o individual, ou seja, decifração do código gráfico. Trata-se, como lembra Colomer (2001),
nas trocas que se efetuam no meio ambiente. de um processo contínuo, iniciado antes da fase escolar e que perdura
Verifica-se, por conseguinte, que a linguagem desempenha, na por toda a escolaridade, indo além dela, se entendermos a leitura como
concepção de Vygotsky, um papel central no desenvolvimento infantil, habilidade interpretativa. Devido à mediação com os pais ou um adul-
por estar relacionada à comunicação e à formação da consciência. É por to experiente, ao chegar à escola as crianças sabem, que o escrito não
meio da apreensão e da internalização da linguagem que a criança se está presente na sua realidade, conhecem algumas formas do código
desenvolve, uma vez que a aquisição de um sistema lingüístico organiza gráfico e têm experiência histórico-social partilhada, adquirida a partir
todos os processos mentais, dando forma ao pensamento. Assim, en- das interações que se estabelecem entre ela e outros indivíduos.
quanto, por um lado, a linguagem possibilita o intercâmbio social entre Com o intuito de melhor explicitar as principais fases de de-
indivíduos que compartilham do sistema de signos representativos da senvolvimento da leitura expostas por Azevedo (1992), faremos uma
realidade, por outro influencia a estruturação da cognição. Esses dois comparação entre suas idéias e o modo pelo qual Frawley e Lantolf
aspectos, ou seja, o papel da linguagem na comunicação e na formação (1985) recorrem à teoria vygotskyana para explicar a mudança das
da consciência exerceram influência decisiva na investigação de Vygotsky, funções interpsicológicas para as intrapsicológicas.
que deixa transparecer a relevância das interações sociais em sua pro- Para Frawley e Lantolf a origem dos processos estratégicos
posta teórica, sobretudo ao analisar a função da linguagem no processo individuais se encontra na interação social, desenvolvida por intermé-
de desenvolvimento. dio de três tipos de regulação: o controle-pelo-objeto (object-
Com o intuito de explicar a importância das interações sociais regulated), onde a atenção da criança é fixada num objeto (um livro de
no desenvolvimento cognitivo, Vygotsky criou o conceito de zona de estórias, por exemplo, um texto, ou um exercício) que domina a cognição
desenvolvimento proximal, ao distinguir dois níveis de desenvolvi- naquele momento; Nesta primeira fase da leitura Azevedo afirma que
mento : O real ou efetivo e o potencial. O primeiro, composto pelo a criança repete as sentenças do mesmo modo que as ouve, uma vez
conjunto de informações já alcançadas pela criança e o segundo, defi- que cabe ao adulto leitor pronunciar as palavras, dar-lhes sentido,
nido pelos problemas que a criança consegue resolver com o auxílio de atribuir conotações aos conhecimentos e às idéias presentes na histó-
um mediador. Há, por conseguinte, uma zona de desenvolvimento ria. As emoções suscitadas no decorrer da leitura são provenientes da
proximal, que se refere à distância entre o nível de desenvolvimen- leitura do adulto. Na segunda fase, denominada por Frawley e Lantolf
to real – determinado pela solução individual de problemas e o nível de controle-pelo-outro (other-regulated), a criança busca apoio nos
de desenvolvimento potencial, caracterizado pela solução de pro- pais, no professor ou no colega. Não satisfeita com seu desempenho,
blemas sob a orientação de adultos ou colegas mais capazes. lembra Azevedo, a criança começa a assumir, gradativamente, sua
A aprendizagem cria essa zona de desenvolvimento proximal. função de leitora imitando literalmente o adulto ao fazer suas primei-
Isto porque à medida que ativa os processos de desenvolvimento, a ras tentativas de decifração. Ocorre, então, a terceira fase da aprendi-
aprendizagem induz a criança a interagir com pessoas em seu ambi- zagem denominada por Frawley e Lantolf como a do auto-controle-
ente e a internalizar o conhecimento (valores, significados, regras) estratégico (self-regulated) . Nesta fase, a criança controla a si pró-
disponível em seu contexto social. pria e aos outros, ou seja, recupera e utiliza as estratégias conhecidas
O ensino sistemático, contudo, não seria o único a ampliar os anteriormente. Trata-se, neste caso, da transição das funções
horizontes da zona de desenvolvimento proximal. Segundo interpsicológicas para as intrapsicológicas, que ocorre na zona de
Vygotsky, o brinquedo também exerce influência no desenvolvimento desenvolvimento proximal através da mediação com os pais, o pro-
infantil. Isto porque ao brincar, a criança faz uso de um comportamen- fessor ou um colega. Nesta etapa final, segundo Azevedo, a criança
to que está muito além de sua idade, como assumir o papel dos pais, liberta-se do adulto-leitor e passa a recitar a história contada pelo
por exemplo, ou de uma pessoa mais experiente. Ao se projetar nas livro. À medida que deixa de repetir por imitação, a criança passa a
atividades dos adultos mediante a criação de um mundo imaginário, a realizar a atividade conscientemente. Tenta interpretar, atribuir seu
criança termina por atuar num nível superior ao que na verdade se próprio sentido às palavras lidas e, através do tom de voz, das pausas
encontra. As interações requeridas pelo brinquedo possibilitam a e das palavras inventadas, recria a história recitada. À proporção que
internalização das regras de conduta, valores, modos de agir e de pen- recita, a criança assimila seus esquemas até o momento em que desco-
sar de seu grupo social, promovendo o desenvolvimento cognitivo. bre a necessidade de decifração do código gráfico. É necessário, a
Segundo Rego (1997), o brinquedo não só possibilita o desenvolvi- partir daí, a presença de um mediador para que ela aprenda a decifrar
mento de processos psíquicos por parte da criança, como também os sinais gráficos a fim de atribuir sentido à história que lê. Como
serve de instrumento para o conhecimento do mundo físico e seus conseqüência dessa interação a criança constrói sua habilidade de ler.
fenômenos; dos objetos e seus usos sociais, aliados aos diferentes Estas três fases da leitura, válidas para a aprendizagem de ou-
modos de comportamento humano, representados pelos papéis que tras habilidades lingüísticas, são suficientes para que se possa com-
desempenham, seus relacionamentos e hábitos culturais. preender a proposta de Vygotsky ao dizer que a aprendizagem de um
instrumento cultural ocorre, a princípio, no plano social entre um

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 173


adulto e uma criança e só depois no plano psicológico, no interior da autores, não consiste na mera transmissão de informações, mas na
criança como indivíduo. Desse modo, a atividade que antes precisou tentativa de proporcionar as condições e o ambiente para que os
ser mediada, passa a constituir-se num processo voluntário e inde- alunos aprendam autonomamente, sem que haja a reprodução mecâni-
pendente. ca de modelos externos. Isto passa necessariamente pela revisão de
sua concepção mecanicista e pela adoção de uma postura que enfatize
4. Ensino-Aprendizagem: a busca pela autonomia as dimensões cognitiva, social e, sobretudo, afetiva dos aprendizes
O conceito de mediação levou à busca pela autonomia no de- não só na sala de aula como fora do ambiente escolar.
sempenho, que poderia ser obtida a partir da interação com outros
indivíduos de um determinado grupo cultural. Essa preocupação com
a auto-regulação do aprendiz ocasionou uma série de modificações no Referências bibliográficas
aprendizado das várias habilidades lingüísticas no contexto de ensino.
No âmbito da leitura-escrita, por exemplo, poderíamos dizer que AZEVEDO, Olívia. 1992 “A história da aprendizagem de leitura pela
vários fatores contribuíram para as mudanças nas práticas educacio- criança e o que a escola tem a ver com essa história.” In : Leitura:
nais. Dentre eles podemos citar a influência do conhecimento prévio, Teoria e Prática. Ano 11 n0 19 junhoUNICAMP : Mercado Aberto
o uso de estratégias cognitivas e afetivas, além da capacidade de enten- CAGLIARI, Luiz Carlos 1988 “A Leitura nas Séries Iniciais.” In:
der globalmente o texto e de interpretá-lo. Leitura : Teoria e Prática. Ano 7 n0 12 dezembro UNICAMP:
Com o intuito de implementar práticas pedagógicas que aten- Mercado Aberto
dam a essas mudanças é necessário uma maior organização e controle CHOMSKY, Noam. 1959 Review of Skinner, Verbal Behavior.
das atividades de ensino-aprendizagem e a atribuição de um certo grau Language 35. 26-58
de responsabilidade à criança na resolução de tarefas. COLOMER, Teresa. 2001. “O Ensino e a Aprendizagem da Compre-
A realização de atividades fundamentadas em tarefas pode ser ensão Leitora.” In:
vista como uma tentativa de aquisição do auto-controle estratégico. PEREZ, Francisco Carvajal e Joaquin Ramos Garcia (orgs.) Ensinar
Isto porque, ao deparar-se com situações difíceis, a criança retorna ao ou Aprender a Ler e a Escrever? Porto Alegre : ARTMED.
comportamento estratégico do controle-pelo-objeto e do controle- FRAWLEY, William and James Lantolf 1985 A Second Language
pelo-outro, a fim de obter o controle-regulatório exigido pela tarefa. Discourse : A Vygotskyan Perspective. Applied Linguistics. 6/1
Tais atividades proporcionam o desenvolvimento dos processos de : 19 - 44.
aprendizagem, o que poderá contribuir para ampliar os níveis de auto- MOTA, Sônia B. V. da 1990 “O lugar da linguagem segundo Vygotsky.”
nomia, representado pelo controle consciente e voluntário dos pró- In : Leitura: Teoria e Prática. Ano 9 n0 16 dezembro UNICAMP
prios processos intelectuais. : Mercado Aberto
PERES, Francisco Carvajal e Joaquin R. Garcia 2001 “Ensinar ou
Considerações finais Aprender a Ler e a Escrever?” In : PEREZ, Francisco Carvajal e
Em nossas considerações finais gostaríamos de lembrar que o Joaquin Ramos Garcia (orgs.) Ensinar ou Aprender a Ler e a
ensino de leitura-escrita é uma prática que deve ser urgentemente Escrever? Porto Alegre: ARTMED.
repensada pela escola. Embora a aprendizagem de leitura-escrita seja PIAGET, Jean. 1976 The Origins of Intelligence in Children. New
um processo cognitivo, Peres e Garcia (2001) lembram que também York : International Universities Press.
se trata de uma atividade cultural e social, que contribui para criar REGO, Teresa Cristina. (1997) Vygotsky. Uma Perspectiva Históri-
vínculos entre a cultura e o conhecimento. Partindo dessa assertiva e co-Cultural da Educação. Petrópolis: Vozes.
tendo em vista a perspectiva de que as crianças devem aprender a usar SKINNER, B.F. 1957. Verbal Behaviour. New York : Appleton.
a linguagem nas suas várias habilidades, em inúmeros contextos, com VYGOTSKY,L. S. 1998. A Formação Social da Mente. São Paulo:
intenções distintas e destinatários diversificados, a fim de adquirirem Martins Fontes.
um maior domínio desse meio de comunicação, deduz-se que o ensino VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. 1996. São Paulo:
de leitura-escrita não deve ficar restrito à aprendizagem de conteúdos Martins Fontes.
educativos nas mais diversas áreas. A tarefa da escola afirmam aqueles

174 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Mediação semiótica - linguagem - e processos
de construção do conhecimento
Profª. Drª. Rosângela Francischini
Depto. de Psicologia / UFRN

ABSTRACT: This paper aims to examine the concept of semiotic mediation in Vigosky and its implications in Wertsch, Smolka e Goés, presenting the
status of this concept and focusing the results of the particular reading that those authors suggest. Special emphasis will be given to the following
relation: language activity - subject - knowledge, as a dynamic movement of reciprocal constitution of language, subject and knowledge.
PALAVRAS-CHAVE: mediação semiótica - interação - linguagem

Introdução utilização de meios originais sem os quais o trabalho não teria apare-
Minhas reflexões, as que venho realizando e das quais a proposta cido. Da mesma forma, a questão central para explicar as formas
dessa minha intervenção é uma conseqüência, têm gerado muito mais superiores de comportamento é a dos meios que permitem ao homem
perguntas e questionamentos a serem pesquisados, do que propriamen- dominar os processos de seu próprio comportamento.” (p. 199, grifo
te respostas conclusivas. No entanto, vou ensaiar/arriscar-me a expor nosso)
alguns aspectos sobre o tema proposto. Ainda (...) “Todas as funções psíquicas superiores são unidas
A estruturação que vou perseguir é a seguinte: a partir da obra por uma característica comum, a de serem processos mediados, quer
de Vygotsky, mais especificamente, (1987, 1996, 1997) procurarei dizer, de incluírem em sua estrutura, enquanto parte central e essenci-
caracterizar o conceito mediação semiótica; 2º.) a proposta de exame al desse processo em seu conjunto, o emprego do signo como meio
das implicações do emprego desse conceito nas leituras vygotskyanas fundamental de orientação e de domínio de processos
empreendidas por Wertsch e Smolka/Góes seguirá a essa primeira psíquicos.”(idem:199, tradução e grifo nossos).
parte. Assim, temos: o domínio da natureza, por um lado, pela utili-
zação de instrumentos criados pelo homem e, por outro, o domínio de
Mediação Semiótica – em Vygotsky
seu próprio comportamento, de seus processos psíquicos, decorrente
Inicio por uma afirmação do autor: “O fato central de nossa
da utilização do signo enquanto mediador. Ambos, formas que carac-
Psicologia é o fato da ação mediada.” (Vygotsky, 1996:188)
terizam e diferenciam a espécie/ação humanas.
Conceito chave que perpassa todo o sistema teórico construído
Considerando o signo enquanto instrumento psicológico o au-
por Vygotsky e articula seus elementos, o conceito de mediação
tor destaca, dentre os diversos sistemas de signos existentes, os sig-
semiótica não poderia ser compreendido isoladamente. Assim sendo,
nos lingüísticos, atribuindo-lhes um papel fundamental na constitui-
é preciso contextualizá-lo no interior desse sistema.
ção dos processos psíquicos superiores, sobretudo da consciência.
Com esse propósito e, seguindo Baquera(1998), aponto para
Duas funções principais são atribuídas ao signo lingüístico:
três postulados básicos da abordagem estritamente vinculados entre si:
comunicação e representação, - funções estas interligadas, embora
1º.) Os processos psicológicos superiores têm uma origem histórica e
funcionalmente diferentes.
social; 2º.) Na sua relação com o outro e com a natureza, os seres
“A primeira função da linguagem é a função de comunicação. A
humanos fazem uso de instrumentos de mediação (ferramentas e sig-
linguagem é, antes de tudo, um meio de comunicação social, um meio
nos). Esses instrumentos são fundamentais na constituição dos PPS, na
de expressão e de compreensão” (idem: 56).
internalização, pelo homem, das práticas sociais de seu cotidiano, de
Referindo-se, ainda, a essa função e à importância da lingua-
sua cultura. 3º) os PPS devem ser estudados a partir de uma perspectiva
gem, o autor afirma: “Sabemos, também, que a comunicação não me-
genética. Esse postulado não será desenvolvido aqui.
diada pela linguagem ou outro sistema de signos, como se observa no
O 1º postulado - a origem social dos processos psíquicos supe-
mundo animal, não pode ser senão a mais primitiva e limitada. A
riores ou funções psicológicas superiores - “aquelas que caracterizam
comunicação, fundada sobre a compreensão racional e sobre a trans-
o funcionamento psicológico tipicamente humano” - como postulado
missão intencional do pensamento e das experiências vividas, exige
central da perspectiva sócio-histórica têm, como referencial básico, a
um certo sistema de meios, em que o prototípico era, e permanecerá
teoria marxista. Concebido como um ato que se passa entre o homem
sempre, a linguagem humana, nascida da necessidade de se comunicar
e a natureza, o trabalho é uma atividade em que, “o homem (...) põe em
no processo de trabalho.”(idem: 57; grifo e tradução nossos)
movimento as forças de que seu corpo está dotado, braços e pernas,
No entanto, essa função não está desvinculada da função repre-
cabeça e mãos, a fim de assemelhar-se aos materiais e conferir-lhes
sentativa: “assim como a comunicação é impossível sem os signos, ela
uma forma útil para a sua vida” (Marx, 1977, In: Pino, 1991:35)
é impossível, também, sem a significação” (idem:57); “a comunicação
Através do trabalho o homem, agindo sobre a natureza externa a mo-
supõe necessariamente a generalização e o desenvolvimento da signi-
difica ao mesmo tempo em que modifica sua própria natureza e “de-
ficação da palavra.” (idem: 58). Expressa-se aqui a função representa-
senvolve as faculdades adormecidas nela.”
tiva/intelectual da linguagem, isto é, o desenvolvimento de condições
Em Vygotsky (1997) o autor traça um paralelo entre a atividade
diferenciadas de ação e ordenação do real, dos objetos, dos eventos e
de trabalho e as formas superiores de comportamento, no que se
situações proporcionadas pelo desenvolvimento da linguagem, ativi-
refere à intermediação de algo, na realização dessas atividades. Aqui,
dades essas, presentes no nosso cotidiano mas, privilegiadas pela
já estamos no domínio do segundo postulado. Assim, temos: “para
instituição escolar.
explicar de maneira satisfatória o trabalho enquanto atividade do ho-
Falando sobre os processos de formação de conceitos, portan-
mem ... nós devemos explicá-lo pelo emprego de instrumentos, pela
to, de construção do conhecimento e do emprego de signo nesses

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 175


processos o autor afirma: “o elemento central ... é a utilização funcio- servações que não é possível conceber o indivíduo isoladamente, mas,
nal do signo, ou da palavra, como meio que permite ao adolescente sim, “um indivíduo em uma situação concreta” agindo por meio de
submeter a seu poder as próprias operações psíquicas e de orientar instrumentos específicos. Da mesma forma, é um equívoco conceber
sua atividade na resolução do problema com o qual ele se defronta.”. os instrumentos mediadores isolados da ação. “A ação mediada é uma
(Idem: 207) unidade de análise irredutível e a(s) pessoa(s) que atua(m) com instru-
Ainda sobre os processos de formação de conceitos, como de mentos mediadores é (são) o(s) agente(s)
todas as formas superiores de atividade intelectual, criticando a abor- irredutível(irredutíveis).”(idem:142) Essa tendência em centrar-se no
dagem associativa de Thorndike, Vygotsky assinala que o que as indivíduo isolado é uma constante na Psicologia, assim como a ten-
diferencia essencialmente das demais é “a passagem dos processos dência em centrar-se em sistemas de signos isolados está presente em
intelectuais imediatos às operações mediadas pelos signos.” uma parcela considerável de estudos lingüísticos.
(idem:209-210) A partir dessas considerações o autor apresenta e analisa algu-
Retomando, para sintetizar: as ações do ser humano são ações mas situações de aprendizagem em sala de aula, com base nos discur-
essencialmente mediadas. Essa capacidade de construir e operar (em) sos produzidos tanto pelo professor quanto pelos alunos.
um universo simbólico é o que caracteriza a especificidade da natureza Observa, inicialmente que o espaço da sala de aulas representa
humana, diferenciando-a, portanto, de outras espécies animais. um conjunto circunscrito de objetos, experiências e temas nos quais a
Inicio, agora, a segunda parte da estruturação que propus per- linguagem social adquire características específicas. Isso porque, nas
seguir neste trabalho, abordando, portanto, os desdobramentos des- atividades de educação formal predomina determinado gênero discursivo
ses (sucintos) apontamentos nas leituras de Wertsch, Smolka e de – o discurso da educação formal ou “gênero discursivo da ‘ciência ofici-
Góes. al’” – importante, segundo Vygotsky, para o domínio dos conceitos
As implicações do conceito mediação semiótica a partir das científicos. São raras as ocorrências em que o professor acolhe expres-
leituras deWERTSCH sões de experiências e conhecimentos individuais dos alunos, ou seja,
Um dos principais expoentes/pesquisadores da obra de raramente ocorre uma incorporação, ao discurso da sala de aulas, de
Vygotsky, na atualidade, possui uma vasta produção bibliográfica, da linguagens sociais e gêneros discursivos diferenciados daqueles que pre-
qual destacamos Wertsch : 1985, 1985a, 1993, 1995 (com Del Rio e dominam no espaço educativo, mas que são do domínio dos alunos.
Alvarez), 1998. Ex. 1.
Estarei centralizando minhas reflexões, principalmente, em 1. M: Bien. Pasemos a otra cosa ... Esto es divertido. Hay un
Wertsch 1993,1995,1998. dibujo en cada hilera que no pertenece a ella. Cuál es el que no pertenece
Wertsch propõe, como objetivo de uma análise sócio-cultural, en la primera? John, cuál no pertenece?
“explicar as relações entre ação humana, por um lado, e os contextos 2. N: Llave. / 3. M: Llave. Pon una X en la llave. Por qué no
cultural, institucional e histórico nos quais essas ações ocorrem” pertenece, Mikey?
(1998:24) 4. N: Humm ... No pueden abrir puertas. / 5. M: Oh ... Esa no
Procurando estabelecer uma ponte entre a Psicologia e a es una buena respuesta. Por qué la llave no va con el jamón, y el tomate,
Semiótica, elege, como unidade de análise, a ação mediada. No entan- y la banana, Mikey? / 6. N: Porque la llave no es una fruta. / 7. M:
to, o percurso teórico do autor revela-nos algumas transformações. Bueno, un jamón no es una fruta. Qué son todas esas cosas? Cosas que
Assim, temos: tú puedes ... / 8. N: Comer. / 9. M: Comer. Cosas que puedes comer.
Em Vygotski y la formación social de la mente Wertsch busca, Puedes comer jamón. Puedes comer un tomate. Puedes comer una bana-
conforme apontado por Garrido (In: Wertsch,1993) explicar as trans- na. Puedes comer una llave?
formações das FPS, decorrentes do uso de intrumentos de mediação 10. N: No / 11. M: No. Entonces táchala.
semiótica. O enfoque sócio-cultural proposto naquela obra recebe, em Nos turnos 4 e 5 observamos que a criança identificou o ele-
Voces de la mente, a incorporação do dialogismo bakthiniano, o que mento que deveria ser eliminado. No entanto, a justificativa apre-
permite, “alcançar uma melhor compreensão da relação entre mente, sentada reflete a apropriação de um gênero que “supõe que a função
cultura e sociedade, visto que nos fornece instrumentos para analisar dos desenhos é representar objetos não lingüísticos. A professora
o diálogo como nexo entre elas.” (idem:14) estava operando em um gênero discursivo que supõe que os dese-
Retomando o conceito de ação mediada, iniciamos por nhos servem para indicar termos semânticos descontextualizados,
desmembrá-lo em seus segmentos. uma classe de objeto lingüístico.” (idem: 156) No turno 6, entretan-
Porque ação? Aqui, a influência da psicologia sócio-cultural to, Mikey parece ter identificado a necessidade de responder com
soviética desenvolvida por Leontiev e Rubenstein é evidente. Não se base no gênero verbal que a professora considera correto naquele
trata de analisar o sujeito isoladamente. Tampouco o ambiente, inclu- contexto. Na verdade, é isso o que a escola e os discursos do profes-
indo aí o (s) objeto(s), independente do sujeito. A tradição psicológi- sor esperam do aluno: identificar e dominar gêneros discursivos con-
ca, influenciada ora por Locke, ora por Descartes, têm oscilado entre siderados apropriados no âmbito sócio-cultural da educação formal.
valorização excessiva, quase exclusiva do indivíduo e Nesse sentido, os gêneros discursivos são considerados, por Wertsch,
superdeterminação do meio ambiente. instrumentos mediadores.
No entanto, como apontado por Wertsch, tomar a ação humana
como categoria básica de análise não é algo novo tanto na Filosofia As implicações do conceito mediação semiótica a partir das
quanto na Psicologia; a pragmática norte-americana e a epistemologia leituras de SMOLKA e de GÓES.
genética piagetiana atestam essa afirmação. Nessas tradições, isolar seja Dessas autoras, estarei relevando os seguintes trabalhos:
o indivíduo seja o ambiente, não resulta em uma compreensão adequada Smolka, 1991, 2000; Smolka e Cruz, 1995; Smolka, de Góes e
das funções mentais superiores. Ação e interação são, portanto, catego- Pino, 1997.
rias analíticas básicas. Em uma das referências acima citadas (Smolka, 2000) a autora
Como entender o adjetivo mediada, no conceito? se propõe a discutir/problematizar a questão da apropriação das prá-
Seguindo Vygotsky, Wertsch afirma que “a ação tipicamente ticas sociais (portanto, de construção do conhecimento), relacionan-
humana emprega ‘instrumentos mediadores’, tais como ferramentas do-a à questão da significação, ancorada na concepção de mediação do
ou a linguagem, e que esses instrumentos mediadores dão forma à ação signo na construção do sujeito.
de maneira essencial.” (Wertsch, 1993: 29). Depreende-se dessas ob- Partindo da afirmação vygotskyana de que “qualquer função

176 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


psicológica superior foi externa; ... foi social; antes de se tornar uma Apontamentos finais
função, foi primeiro uma relação social entre duas pessoas.” (Vygotsky, Neste trabalho, conforme apontado no resumo, nos propuse-
1929/1989: 56 – citado em Smolka, 2000), a autora propõe enfocar mos a apresentar o conceito de mediação semiótica em Vygotsky e
“não as ações mediadas como tais, (...) mas (...) enfocar as significações as possíveis implicações do emprego desse conceito a partir de uma
da ação humana, os sentidos das práticas, considerando que todas as revisão das perspectivas assumidas por Wertsch e Smolka. O contex-
ações adquirem múltiplos significados, múltiplos sentidos, e tornam-se to e o tempo dessa intervenção não permitem dar conta da abrangência
práticas significativas, dependendo das posições e dos modos de parti- que o tema mereceria. No entanto, procurei assinalar, a partir dos
cipação dos sujeitos nas relações.” (Smolka; 2000:31) trabalhos que julgo representativos em cada autor, as idéias centrais
Analisa, com esse propósito, dois eventos ocorridos em situa- por eles assumidas.
ção de aprendizagem: um, de uma criança que “não responde” às Ambos, Wertsch e Smolka apontam para a possibilidade/ne-
intervenções da pesquisadora e, outro, de uma pessoa com deficiência cessidade de se aliar, aos pressupostos vygotskyanos, as elaborações
e que, respondendo as intervenções da pesquisadora o faz deixando teóricas de Bakhtin. Assim, ao postulado básico do primeiro - as
transparecer, em seu discurso, o quanto algumas práticas educativas origens sócio-culturais das funções psicológicas superiores - e à tese
restringem, ao invés de ampliarem, a participação do sujeito em sua da mediação semiótica - incorpora-se o princípio dialógico bakhtiniano.
aprendizagem. No entanto, Wertsch propõe, como unidade de análise, a ação
Nas relações estabelecidas nessas condições - as práticas soci- mediada; Smolka, as significações da ação humana e não as ações
ais assumidas pelo adulto, caracterizadas por serem práticas de ensi- como tais. Diferentes leituras que fazem emergir possibilidades múl-
no, revelam a posição do outro, a atribuição, pelo outro, de significa- tiplas de construção de ações/significações (portanto, de continuidade
ções às ações daquele que está na posição de aprendiz. Este, por sua das reflexões aqui apresentadas), o que reafirma a relevância dos
vez, como pertencente e participante dessas práticas sociais, “ - ele referenciais teóricos vygotskyano e bakhtiniano e as possíveis articu-
próprio um signo, interpretado e interpretante em relação ao outro - lações entre eles.
não existe antes ou independente do outro, do signo, mas se faz, se Movendo-me no interior dessas possibilidades, gostaria de fina-
constitui nas relações significativas.” (idem: 37) lizar com a seguinte afirmação: o discurso do outro gera e transforma
Assim, a autora propõe deslocar o foco das análises das ações significados. Meu percurso, no desenvolvimento desse trabalho, reflete
mediadas enquanto tais, para a significação das ações no jogo das essa condição.
relações. (idem: 35)
Aqui, caberia refletir, esse deslocamento, que sugere uma sepa-
ração entre ação mediada e significação. Ação mediada implica em Referências bibliográficas
participação em práticas sociais através da e pela linguagem, princi-
palmente. Conforme apontado logo no início dessa minha interven- BAQUERA, R. (1998) Vygotsky e a aprendizagem escolar. Porto
ção, seguindo Vygotsky, “a comunicação é impossível sem a Alegre: Artes Médicas.
significação”.O processo de apropriação das práticas sociais, incluin- PINO, A. (1991) “O conceito de mediação semiótica em Vygotsky e
do as práticas sociais específicas do ambiente escolar formal que mais seu papel na explicação do psiquismo humano.”Cadernos CE-
de perto nos interessa, é permeado por signos, dos quais a linguagem DES, Campinas, n. 24, p.32-43, mar.
é o mais relevante. As múltiplas possibilidades de significações que os SMOLKA, A.L.B. (1991) “A prática discursiva em sala de aula: Uma
sujeitos (interpretantes e interpretados) podem construir nesse espa- perspectiva teórica e um esboço de análise.” Cadernos CEDES,
ço ocorrem na e a partir das ações mediadas. Não há, portanto, possi- Campinas, n. 24, pp. 51-65, março.
bilidade de pensar significações à parte da ação e, tampouco ação ____ (2000) “O (im)próprio e o (im)pertinente na apropriação das
mediada desvinculada de processos de significação. práticas sociais.” Cadernos Cedes, Campinas, n. 50, pp. 26-40,
A dinâmica dos processos de produção de significações e sen- abril.
tidos nas interações que são estabelecidas entre os sujeitos é, também, SMOLKA, A.L.B.; de GÓES, M.C.; PINO, A. (1997) “La constitución
enfatizada em Smolka e Cruz, 1997. O objeto, no entanto, aqui, é a del sujeto: una cuestión persistente.” In: WERSTCH, J.V; del
ontogênese da linguagem na criança em situação de creche, a partir da RIO, P.; ALVAREZ, A. La mente sociocultural. Aproximaciones
observação de gestos, palavras e objetos presentes nas interações teóricas y aplicadas. Fundación Infancia y Aprendizaje, Madrid,
adulto-criança. pp. 129-142.
O conceito vygotskyano de mediação semiótica e o princí- SMOLKA, A.L.B. e CRUZ, M.N. da (1995) “Gestos, palabras, ob-
pio dialógico bakhtiniano direcionam as análises dos processos de jetos: uma análise de possíveis configurações na dinâmica
produção de significação nas condições acima especificadas. São ana- interativa.” In: OLIVEIRA, Z. de M. R. de. A criança e seu
lisados os movimentos interativos na relação adulto-criança em três desenvolvimento – perspectivas para se discutir a educação in-
episódios, dos quais aponto as principais observações: fantil. São Paulo: Cortez, 2ª. Ed., pp. 67-83.
1.) nos movimentos interativos entre os sujeitos gestos e pala- VYGOTSKI, Lev. (1984) A Formação Social da Mente. São Paulo,
vras ganham significações; Martins Fontes.
2.) nesses movimentos, “constitui-se um núcleo de estabiliza- ____ (1987) The Collected Works of L.S. Vygotsky – Vol. 1 – Problems
ção das significações, um movimento de apreensão pela criança dos of General Psychology. New York and London: Plenum Press.
significados convencionais, à medida que ela ‘torna próprio’ (apro- ____ (1996) Teoria e Método em Psicologia. São Paulo, Martins Fontes.
pria-se de) algo que é ‘pertinente / apropriado’ do ponto de vista de ____ (1997) Pensée & Langage. Paris, La Dispute.
seu grupo social.” (Smolka, 1997:74) WERTSCH, J.V. (1985) Vygotsky and the social formation of mind.
3.) retomando o pressuposto vygotskyano de que os proces- Cambridge, Harvard University Press.
sos de construção do conhecimento envolvem a mediação pelo outro ____ (1993) Voces de la Mente – um enfoque sociocultural para el
e pela linguagem, Smolka assinala que “a fala do adulto sustenta/ estudio de la Acción Mediada. Madrid: Visor
condensa sentidos, configurando núcleos de estabilização das signifi- ____ (1998) Mind as Action. New York / Oxford: Osford University Press.
cações; ao mesmo tempo, tanto o fluxo verbal da fala do adulto quanto WERTSCH, J.V. (Ed.) (1985a) Cultura, Communication and cognition:
às múltiplas dimensões dos objetos são recortados, num movimento Vygotskian perspectives. New York: Cambridge University Press.
simultâneo de constituição da palavra e de (trans)formação do obje- WERTSCH, J.V.; del RIO, P.& ALVAREZ, A. (1995). Sociocultural
to.” (idem: 81) studies of mind. New York: Cambridge University Press.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 177


Obras consultadas: MORATO, E. (1996) Linguagem e cognição: as reflexões de L.S. Vygotsky
BAKHTIN, M. (1992) Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins sobre a ação reguladora da linguagem. São Paulo: Plexus.
Fontes. TRYPHON, A. and VONÈCHE, J. (eds.) (1996) Piaget – Vygotsky –
EDUCAÇÃO & SOCIEDADE (2000) “Vigotski – o manuscrito de the social genesis of thought. UK: Psychology Press.
1929 – temas sobre a constituição cultural do homem. Revista Van der VEER, R. & VALSINER, J. (1996) Vygotsky – uma síntese.
quadrimestral de ciência da educação. Ano XXI, julho, nº. 71. São Paulo: Edições Loyola.

178 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Por que (não) controlar a qualidade
do ensino massificado?
José Lemos Monteiro
Universidade de Fortaleza – UNIFOR/Professor Titular

ABSTRACT: In order to discuss the subject of the educational quality control, this paper presents some reflections on what seems to exist behind the
plans or government strategies for the Brazilian education. We suggest, starting from the analysis of true facts and the situation of the public
education, that perhaps the essential concern is not to guarantee an excellence level to the instruction, but to keep the socio-economic inequality
in the country, in consonance with the purpose of globalization.
PALAVRAS-CHAVES: Ensino, Avaliação, Educação Brasileira, Escola pública.

Para darmos uma interpretação sobre o que está ocorrendo no favorecimento começaram a ser postos em prática, o que tornou a
ensino dito superior, talvez seja útil relembrar, a título de compara- educação privada um dos negócios altamente rendosos. E, à medida
ção, algumas possíveis táticas utilizadas pelos órgãos governamen- que as escolas particulares enobreciam, as públicas se degradavam de
tais na época da ditadura militar, no sentido de desqualificar ou prati- modo assombroso.
camente destruir o ensino de nível secundário das redes públicas. Foram, para esse objetivo, utilizadas as mais cínicas estraté-
gias. Basta lembrar que os vencimentos dos professores do Estado
Vamos tomar como exemplo ilustrativo o caso do Ceará. do Ceará, além de se tornarem aviltantes, chegavam a atrasar vários
meses consecutivos, o que naturalmente provocava insatisfação,
Antes da década de 1960, havia poucos estabelecimentos de desânimo e mesmo descaso. É possível hoje até interpretar que os
educação mantidos pelo governo. Mas, em geral, eram colégios que movimentos grevistas, tão comuns em várias fases desse processo
causavam um sentimento de orgulho aos cearenses, tais como o Liceu de desqualificação, fossem algo desejado pelos próprios governantes
do Ceará e o Instituto de Educação. Grandes vultos da literatura e do que se mantinham impassíveis, observando a falência geral do ensi-
saber científico, a exemplo de Gustavo Barroso, foram alunos do no público.
Liceu, onde atuaram professores do renome, que se projetaram até Tudo isto nos leva a crer na existência de um plano elaborado
nacionalmente, como foi o caso do filólogo Martinz de Aguiar. Mas com a finalidade de não permitir que as classes desfavorecidas tives-
era uma educação elitizada, de que se beneficiavam preferencialmente sem uma escola de boa qualidade, ensejando que o saber não fosse
os filhos de pessoas abastadas. Enquanto isso, as escolas particulares democratizado. Em suma, o que mais interessava era manter um esta-
em grande parte eram de qualidade duvidosa, não tinham boa infra- do de alienação geral, para que o sistema político-econômico não
estrutura, funcionavam em salas improvisadas de prédios antigos e pudesse ser ameaçado. E tal plano esteve respaldado pela Lei 5692,
algumas delas se caracterizavam pelo lema “pagou, passou”. pelo famigerado Acordo MEC-USAID e por uma série de propostas
Com a expansão do setor industrial, a demanda por mão-de- metodológicas que levaram os professores a fingir que ensinavam e os
obra barata aumentou enormemente e, com isso, não houve outra alunos a fingir que estavam aprendendo alguma coisa.
alternativa a não ser exigir-se do governo que facilitasse um pouco Nesse sentido, embora os teóricos pregassem o envolvimento
mais o ingresso ao ensino secundário às camadas pobres da popula- do sujeito no processo ensino-aprendizagem, nunca se deixou o estu-
ção, em razão de que essa oferta de mão-de-obra não iria interessar dante tão calado na sala de aula, jamais se exigiu tão pouco que ele
evidentemente aos filhos de pais ricos. A escola, antes quase um manifestasse o seu pensamento, já que o importante para a concepção
privilégio de poucos, teve que ser democratizada. E essa democrati- da aprendizagem era conduzi-lo à habilidade de saber escolher entre
zação tem sido desde então objeto de muitos estudos, entre os quais diversas alternativas absurdas a que fosse obviamente menos absurda.
o de Libâneo (1987), que definem bem a necessidade de novas políti- Em conseqüência, de forma paradoxal, quando tanto se enfatizou o
cas governamentais. ideal de integrar o homem pela comunicação, mais e mais o jovem foi
No caso específico do Ceará, o início da chamada proletarização acurralado a um mutismo constrangedor.
do ensino representou um impacto no quadro estável de nosso siste- Aliás, conforme enfatizamos em outro estudo (Monteiro, 1981),
ma educacional. Em 1964, o então governador Virgílio Távora inaugu- não foi apenas o aluno que passou a sofrer em conseqüência dessa
rou dezenas de colégios, alguns deles rotulados de “anexos do Liceu”, castração mental. O próprio professor se tornou um alienado e perdeu
e milhares de vagas foram ofertadas. De repente, em todos os bairros a importância que antes possuía. Iludido pelos livros ilustrados, chei-
de Fortaleza, foram construídos prédios escolares, cujas salas logo os de desenhos coloridos, já feitos para lhe tirar a obrigação de prepa-
ficaram lotadas. Uma verdadeira maravilha! Finalmente, era o que se rar a aula, ele passou a limitar-se a ler as respostas certas, muitas
afirmava, todos teriam direito à educação. vezes sem saber fundamentá-las. Antes, como os livros apresentavam
Contudo, parece-nos que, tal como se verifica hoje em dia, os os textos puros, o professor tinha que estudar, consultar dicionários,
órgãos governamentais se preocuparam apenas em elevar a quantida- refletir sobre as idéias do autor para poder expressá-las, elaborar
de de alunos, permitindo que o padrão de qualidade do ensino des- exercícios, escolher os textos que mais afinassem com sua sensibilida-
pencasse. A lógica foi e continua a ser a de que os pobres devem de. Isso tudo era de qualquer modo uma atividade criativa, que exerci-
contentar-se com o lixo e o luxo deve ser reservado aos ricos. A tava sua mente para o diálogo com as turmas. Com os livros moder-
solução para que estes não fossem prejudicados seria, pois, possibi- nos, ele se tornou um mero repetidor das lições planejadas, talvez sem
litar que as escolas particulares, a curto e médio prazo, atingissem um nem mesmo imaginar que lhe usurparam o direito de refletir e o trans-
grau de excelência, o que implicaria que nelas ingressassem todos formaram também num agente da opressão, forçando-o a manter o
aqueles que pudessem pagar. E assim aconteceu: vários tipos de aluno no estado de total passividade e alienação.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 179


Entendemos, pois, que tudo pode ter sido parte de um jogo de que as universidades públicas fiquem desacreditadas até o limite em
interesses políticos e econômicos, em que a preocupação com a qua- que não haja mais nenhum interesse em se lutar por elas. Muitos de
lidade perdeu a vez para os objetivos da massificação. Não seria nada seus professores já começaram a sentir o desânimo ou já tiveram que
interessante para a estrutura do poder que as escolas cumprissem emigrar para outras instituições, em busca de melhores condições de
com a função de desalienar o homem, de levá-lo a refletir e expressar trabalho e salários menos aviltantes. As tentativas de resistência,
o que pensa ou sente. Por isso, alguns métodos modernos, como a como os movimentos grevistas, parecem agradar a atitude impassível
instrução programada ou os recursos audiovisuais que propiciem a do governo, em função dos inevitáveis efeitos da desorganização e da
pura repetição, afinavam bem com o plano de não se permitir ao povo desqualificação do ensino.
uma educação de bom nível. Diante de tudo isso, não temos uma resposta para a questão do
O pior, contudo, é que a proposta demagógica de escola para controle de qualidade. Em princípio, se a instrução fosse de bom
todos chegou ao ponto de não mais esconder o total descaso pela nível, essa questão até careceria de sentido. Se se pretende exercer
qualidade do ensino, passando a defender ostensivamente o pressu- algum controle, é porque se percebe que o nível não está satisfatório.
posto de que a quantidade é o que interessa. Como se não bastasse a Mas, se a interpretação que demos para o quadro atual for correta,
tentativa de substituir o professor pelos aparelhos de televisão, o não será uma atitude quixotesca tentar reverter a situação?
governo do Ceará agora lhe oferece uma propina de vinte reais por
aluno aprovado. Está-se gerando uma situação deprimente, até difícil Referências bibliográficas
de conceber: o professor indo à procura dos alunos faltosos para
aprová-los de qualquer maneira, talvez até prometendo dividir com LIBÂNEO, José Carlos. Democratização da escola pública. São Paulo:
eles a propina a que tem direito. Loyola, 1987.
Com o ensino universitário público, a queda do nível de quali- MONTEIRO, José Lemos. O ensino do português após a Lei 5692.
dade sem dúvida deve fazer parte de estratégias idênticas, com objeti- In: SOUSA, Marcondes Rosa (org.). Em busca de uma ‘sintaxe’
vos não menos espúrios, o principal deles sendo a idéia obsessiva da perdida (Col. Documentos Universitários). Fortaleza: Edições
privatização. Enquanto se beneficia a iniciativa particular, permite-se UFC, 1981, v. 9.

180 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


O verbo: fator determinante da especificidade
do termo no texto especializado
Anna Maria Becker Maciel
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

ABSTRACT: This paper stresses the importance of the verb as a determining factor in the construction of the specificity of terminological units in
specialized texts. Under the light of speeech act theory concepts, it is shown how law terms are likely to occur as arguments of performative verbs in
legal texts.
PALAVRAS-CHAVE: textos especializados, verbos perfomativos, terminologia jurídica

O objetivo deste trabalho é propor uma reflexão sobre o papel cionalmente associados a uma só categoria gramatical básica, que é a
desempenhado pela forma verbal na configuração de uma terminolo- nominal, quando aparecem no discurso podem assumir a feição de
gia. Parto de considerações sobre a posição dos verbos nos estudos outras categorias. Em La Terminología, Cabré (1993: 180), afirma que
terminológicos em geral. Enfatizo a sua importância na comunicação funcionalmente os termos participam das mesmas categorias que o
jurídica e demonstro como, na linguagem do Direito, os verbos reali- léxico comum. Em que pese tal afirmação e o objetivo de propor uma
zam ações, constituindo-se em verbos performativos, cujos argumen- concepção lingüístico-comunicativa da Terminologia, a forma nominal
tos são agentes e objetos jurídicos, referenciados por termos jurídicos. continua gozando de preferência por parte dos pesquisadores que
Destaco o texto legislativo, dentre as diferentes categorias de textos empreendem uma releitura da TGT.
jurídicos, para contextualizar minha exposição. Nos instrumentos de referência, glossários, dicionários e nos
Até agora, as formas nominais têm sido privilegiadas nos estu- bancos de dados, a presença dos verbos é rara. Com efeito, pouco
dos terminológicos e na coleta de termos destinados a repertórios freqüentes são os registros de termos em outra categoria gramatical
terminográficos. O objetivo de denominar conceitos explica essa pri- que não substantivos. Observa-se mesmo que, na prática
mazia concedida à categoria nominal. É por esse motivo que também terminográfica, a entrada de verbos em uma nomenclatura é, de tal
Rey enfatiza o papel dos nomes na construção do conhecimento. maneira, considerada excepcional, que o dicionarista costuma usar o
Ensina Rey (1992: 48-49) que é necessário nomear os objetos para expediente de substituir a forma verbal encontrada no corpus de cole-
distinguí-los, reconhecê-los e por fim conhecê-los e, sublinhando a ta pela a forma nominal, para mais tranqüilamente incluí-la em um
estreita relação que existe entre termos, nomes e conceitos, intitula repertório. Com efeito, no inventário de termos de inúmeros campos
seu livro Terminologie: noms et notions. de conhecimento ou de atividade profissional, os verbos se constitu-
A Escola de Viena é geralmente responsabilizada por essa pre- em em minoria ou simplesmente não aparecem.
ferência, que se acredita tenha sido ditada pela Teoria Geral da Termi- No Direito, no entanto, a relevância dos verbos é tal que são
nologia, TGT. No entanto, não se encontra nenhuma afirmação nesse publicados dicionários, glossários, vocabulários e manuais de referên-
sentido nos textos publicados, quer pelo pioneiro da Escola, Wüster, cia que tratam exclusivamente deles. Como exemplos, podem ser cita-
quer por seus discípulos, quer nas normas e recomendações da dos o “Dicionário de Verbos Jurídicos” de Henriques e Andrade (1996)
INFOTERM e da ISO. Na verdade, tais recomendações não excluem e “O Verbo na Linguagem Jurídica” de Kaspary (1996). Afirma
os verbos, quando falam de categorias gramaticais de termos. Kaspary: “Dentre as diversas classes de palavras, o verbo ocupa lugar
Nesse sentido, dois fieis seguidores dos ensinamentos de especial relevo na linguagem jurídica, em face de seu substrato
wüsterianos, Felber e Budin, (1989; p. 69. apud Sager; Kageura, 1995), semântico básico, que se caracteriza pela função específica de indica-
mencionam os verbos, quando definem os conceitos como representa- ção de processos, quer se trate de ações, de estado ou da passagem de
ções mentais de seres, propriedades, ações, lugares, situações e rela- um estado a outro” (Kaspary, id. p. 17).
ções. Esclarecem eles que as entidades são expressas por substanti- Ora, o Direito contempla o universo com o propósito de orga-
vos, as propriedades por adjetivos ou também substantivos, enquan- nizar e regulamentar as relações humanas, assim, é parte de sua natu-
to as ações podem ser expressas por meio de verbos ou substantivos reza ordenar, tanto no sentido de dar ordens, como no de colocar as
e os lugares, situações e relações, por advérbios, preposições e con- coisas em ordem. Para tanto, a realidade é examinada e codificada em
junções. um sistema de leis. Na comunicação dessas leis, a categoria gramatical
A Escola Canadense também não se opõe à classificação de do verbo desempenha um papel relevante.
verbos como termos. De acordo com sua metodologia de pesquisa Realmente, no mundo da lei, a enunciação de um verbo liga e
(Auger et alii, 1990), os termos podem pertencer à categoria de subs- desliga pessoas, faz nascer e desaparecer instituições, concede e tira a
tantivos, adjetivos e verbos. Abordagem semelhante é proposta em liberdade, absolve e condena o réu, celebra a paz e declara a guerra. Os
Barcelona pelo Centro de Terminologia, conforme divulgada no manu- verbos, quando proferidos, causam alterações da realidade jurídica,
al de trabalho terminológico (TERMCAT, 1990). fazendo com que algo aconteça: um novo compromisso é assumido,
Paradoxalmente, reforçando a preferência pelos nomes, pes- um órgão estatal surge, um procedimento legal é estatuído, um Estado
quisas feitas em textos especializados afirmam que a categoria lexical é criado, algo diferente acontece e muda a configuração de um determi-
do verbo tem um papel secundário, enquanto a dos substantivos de- nado segmento do universo, que se encontra sujeito aos ditames da lei.
sempenha um papel importante. Hoffmann (1985: 105, apud Arntz; Enfim, tais verbos não descrevem coisas, eles fazem coisas.
Picht, 1995: 43), que investigou textos especializados em quatro lín- Nesse contexto, valho-me da teoria dos atos de fala de Austin
guas, alemão, francês, inglês e russo, apresenta dados estatísticos para (1978) e Searle (1981), que sempre interessou aos juristas, porque
demonstrar que o verbo tem função secundária na transmissão do proferir palavras que realizam ações é bem próprio do universo jurídico.
conhecimento científico e do conhecimento técnico. Conforme a concepção de base de Austin e Searle, quando usamos a
Cabré (1999: 135) admite que os termos, embora estejam tradi- língua, não só descrevemos um estado de coisas, mas realizamos ações,

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 181


os chamados atos de fala. Essa noção é fundamental para o entendimen- vistas da lei. Por exemplo, o casamento civil diante do juiz comprome-
to do papel dos verbos na atribuição do caráter específico do termo na te as duas partes, marido e mulher, perante a comunidade. Da mesma
linguagem jurídica. maneira nasce um vínculo jurídico entre comprador e vendedor, no
A feição específica do termo não pode ser procurada somente momento em que uma promessa de compra e venda é feita e registrada
nos traços de natureza semântica que caracterizam a realidade do em cartório, diante de testemunhas.
campo temático. Como em todos os domínios especializados, no Di- A esse respeito, ensina Warat (1984: 66) que os atos de fala
reito, há princípios e valores que lhe estão intimamente vinculados. jurídicos pressupõem a existência de um órgão dotado de autoridade
Dito de outra forma, trata-se de elementos característicos que se refe- para significar e de um corpo normativo, que habilita o emprego dos
rem à perspectiva em que a área é concebida pelos seus especialistas termos, com a função de constituir situações fáticas. No exemplo da
e que devem ser identificados na dimensão conceitual da área. promessa de compra e venda, tais condições são representadas pelo
Assim sendo, a temática transcende à especialização material cartório, o tabelião, as normas do Código Civil, a fórmula de redação do
do assunto, facilmente percebida pela significado semântico. Por exem- contrato. Satisfeitas tais condições, a enunciação do verbo resulta no
plo, o verbo julgar, usado na língua comum como avaliar, decidir como compromisso em que um vendedor e comprador se obrigam, um a
juiz ou como árbitro, comporta traços sêmicos semelhantes àqueles transferir o domínio de um objeto, o outro a fazer um pagamento prede-
traços que caracterizam ações próprias de um contexto judicial. Toda- terminado. Desse modo, a instância performativa cria situações que são
via, seu significado descontextualizado, fora do universo jurídico, não verdadeiros fatos, que vinculam juridicamente os interlocutores do evento
lhe dá o estatuto de termo jurídico. Ao passo que, na linguagem jurídi- comunicativo.
ca, o mesmo verbo, como é o caso de julgar, assume o estatuto Conseqüentemente, são performativos os enunciados
terminológico e atualiza a especificidade dos itens lexicais em seu legislativos que decretam, promulgam, definem, atribuem compe-
entorno. tências, criam, nomeiam, demitem, exoneram, autorizam, proíbem
Com efeito, a especificidade do termo jurídico reside, primordi- ou permitem, bem como os enunciados judiciais que absolvem, con-
almente, nas condições de produção e de uso do texto da lei. Essas denam ou dão quitação. Da mesma maneira, são performativos os
condições determinam que alguns verbos adquiram a capacidade de verbos das fórmulas pronunciadas oralmente ou por escrito pelos
catalisar as características semânticas e pragmáticas de palavras que cidadãos, quando proferidas nas formas e nas circunstâncias deter-
assumem o estatuto de termo. Desse modo, tais verbos determinam minadas por lei na presença da autoridade, tais como a procuração
os traços específicos do termo na comunicação especializada. notarial, a adoção, o casamento, o divórcio, o contrato comercial e o
Compreende-se assim que a análise morfológica e a análise se- testamento.
Tais enunciados, centrados em verbos performativos, quando
mântica realizadas fora de um texto se mostram insuficientes, porque
emitidos nas condições legais previstas, são a causa do surgimento de
não detectam a presença de itens que, no evento comunicacional, são
fatos. Com efeito, esses enunciados determinam mudanças no espaço
responsáveis por condicionamentos temáticos e pragmáticos diferen-
jurídico, seja porque criam ou anulam entidades, seja porque alteram
ciados. Por essa razão, é importante unir a análise dos elementos que
as relações entre pessoas, ou ainda quando transformam as pessoas,
compõem o conteúdo e a expressão da mensagem com a intenção do
conferindo-lhes poderes, direitos ou obrigações que não possuíam.
destinador e do destinatário, ambos vistos na perspectiva específica
Entretanto, cumpre reiterar que, para que tenham condições
da área. Dessa forma, as circunstâncias do processo de comunicação,
efetivas de realização, os atos de fala jurídicos devem satisfazer exi-
“quem diz o que, para quem, para que, como e onde” determinam a
gências de adequação pragmática, tanto quanto às circunstâncias do
especificidade de uma unidade lexical. destinador e do destinatário, como quanto àquelas relativas à própria
Nessa perspectiva, a linguagem jurídica se realiza em atos de fala, realização do ato. Preenchendo tais condições, os atos de fala enunci-
cujo núcleo é constituído por um verbo performativo explícito, como no ados são atos jurídicos eficazes, isto é, produzem o efeito que expres-
casamento civil, na fórmula da promulgação de uma lei, no juramento sam. Por isso, afirmo, repetindo as palavras de Elena Ferrán (1999:
prestado pelos membros do júri, ou de maneira implícita, na sentença 58). que o verbo é de tal maneira o núcleo da eficácia jurídica que, sem
pronunciada pelo tribunal. Assim, quando proferidos pelo oficiante o verbo, não há Direito.
credenciado da cerimônia, pelo juiz, pelos jurados ou escritos na legisla- Daí se infere que há verbos na realização da linguagem jurídica
ção, esses verbos integram textos cuja enunciação coincide com a realiza- que têm um papel determinado e determinante. É determinado pelas
ção de seu próprio conteúdo e se constituem em atos de fala. Tais atos de circunstâncias da situação particular previstas em lei, pelas condi-
fala têm conseqüências legais, causando mudanças no universo jurídico, ções, expectativas e propósitos dos participantes da interação; ao
são, portanto, atos de fala jurídicos. mesmo tempo, é determinante, porque determina a criação de fatos
Cumpre, no entanto, ponderar que não se verifica uma identidade jurídicos. Esses fatos se referem a objetos e agentes jurídicos. É, por-
total entre os atos de fala da linguagem comum e aqueles da linguagem tanto, nesse sentido, que destaco o papel que os verbos performativos
jurídica, não obstante ser essa uma realização da linguagem natural em desempenham ao ativar o valor jurídico das unidades lexicais de signi-
situação especializada. Realmente, quando se trata de atos de fala jurídi- ficação especializada que ocorrem em seu entorno.
cos, os procedimentos convencionais, cuja observância determina o su- Assim, quando o Poder Legislativo ou o Poder Executivo pro-
cesso ou o fracasso do ato, são rigidamente preestabelecidos e, além disso, mulga, sanciona, aprova, autoriza, cria, define alguma coisa, entida-
o efeito da enunciação em cada uma das linguagens é de natureza distinta. des, disposições, princípios, normas de conduta começam a ter exis-
Na linguagem natural, as condições necessárias e suficientes tência legal, isto é, acontece um fato novo no universo jurídico. Da
para que um ato de fala seja bem sucedido são simples. Basta que mesma forma, quando revoga ou anula, faz cessar os efeitos legais
interlocutores credenciados pelo conjunto de circunstâncias da situa- anteriormente criados, por conseguinte, um acontecimento novo alte-
ção tenham a intenção de realizar o que estão dizendo. Daí resulta um ra um fato existente. Igualmente, quando o Poder Judiciário absolve
ato simples, um compromisso moral entre dois indivíduos, como uma ou condena, os verbos pronunciados coincidem com a efetiva realiza-
promessa de casamento. ção do ato que sua forma lexical exprime, o réu se transforma em
Na linguagem jurídica, a enunciação do verbo performativo deve inocente ou condenado.
ser feita conforme as condições regulamentares preestabelecidas. Ori-
gina-se, então, em ato jurídico, isto é, a criação de um fato novo, não Nesse sentido, diz Greimas: “A enunciação inicial ‘O Presiden-
apenas entre dois indivíduos, mas no seio de uma comunidade sob as te da República promulga a lei cujo teor é o seguinte’ não é somente a

182 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


expressão de um querer coletivo delegado; mas, enquanto enunciação, Aurélio apresenta como a qualidade de ser punido, é na terminologia
ela instaura, à maneira do fiat divino, o conjunto dos enunciados jurí- do Direito Processual Penal,a possibilidade de o Estado fazer uso do
dicos que só existirão em virtude desse ato performador original “(1976, direito de punir.
p. 88). Vale lembrar que a situação comunicativa pode estar localizada
Como se pode deduzir da observação de Greimas, alguns ver- no ambiente de um procedimento judiciário, de um negócio jurídico ou
bos desempenham um papel mais abrangente que os outros, constitu- no texto de um diploma legal. Em todas essas circunstâncias, as con-
indo-se em verdadeiros macroatos de fala que geram o conjunto dos dições são sistematicamente determinadas com o propósito da reali-
enunciados performativos que ocorrem no documento legal. Por exem- zação de um ato jurídico e compreendidas e aceitas como tais pelo
plo, em um texto legislativo, os verbos promulgar, decretar, sancionar, destinador e pelo destinatário. Por conseguinte, a finalidade e as cir-
em uma procuração, os verbos nomear e instituir. cunstâncias da realização lingüística, além de seu conteúdo e expres-
Na legislação, o ato de fala se realiza usualmente no caput das são, condicionam e determinam o caráter jurídico do termo utilizado
leis, através de fórmulas ritualizadas que asseveram a autoridade do no contexto da comunicação.
destinador no exercício do poder. Essas formas confirmam a legitimi- Em suma, as condições específicas de produção e de uso carac-
dade da matéria e, conseqüentemente, vinculam o destinatário à obser- terísticas dos textos jurídicos determinam que os verbos, quando as-
vância do que é ordenado. Como se pode observar no exemplo a sumem um papel performativo, tenham a capacidade de ativar
seguir, retirado do Decreto n. 750, de 10 de fevereiro de 1993. especificidades semânticas e pragmáticas das palavras que funcionam
como seus argumentos. Tais palavras, então, adquirem o estatuto de
O Presidente da República termo. Desse modo, no campo jurídico, verbo atualiza o termo em um
evento comunicativo que utiliza a língua natural com propósitos
no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, e tendo especializados.
em vista o disposto no art. 225, § 4, da Constituição, e de acordo com
o disposto no art. 14, alíneas “a” e “b”, da Lei n. 4771, de 15 de
setembro de 1965, no Decreto-Lei n. 289, de 28 de fevereiro de 1967, Referências bibliográficas
e na Lei n. 6938, de 31 de agosto de 1981, DECRETA:
Como se nota, a enunciação do verbo decretar realiza o ato ARTNZ, Reiner & PICHT Heribert Introducción a la terminología.
jurídico que significa, isto é, cria uma norma jurídica, promovendo, trad. Madrid: Pirámide, 1995. (Biblioteca del Libro, 64).
portanto, uma mudança no espaço jurídico. Ao mesmo tempo, declara
AUGER, Pierre et alii. Méthodologie de la recherche terminologique.
a autenticidade da lei e ordena seu cumprimento, expressando a
Québec: Office de la langue française, 1990.
intencionalidade do texto. De um lado, a referência à atribuição conferida
AUSTIN, J. L. How to do things with words. Cambridge, Mass.:
pelo art. 84 confirma a autoridade para promulgar a lei, enquanto,
Harvard University Press, 1978. 3 ed.
remontando ao art. 225 e aos outros textos legais, o texto garante o
CABRÉ, M. T. La Terminologia. Barcelona: Antardida/Empuries,
direito de determinar o ordenamento da matéria sobre a qual versa a
1993.
lei. De outro lado, as referências pontuais a outras leis asseguram não
CABRÉ, M.T. La terminología: representación y comunicación:
só as condições de coesão e coerência, como as de intertextualidade e
elementos para una teoria de base comunicativa e otros artículos.
a informatividade. Assim, o texto se conforma às condições requeridas
Barcelona, IULA, 1999.
para que o ato de fala jurídico se realize com sucesso, na acepção de
FELBER, Helmut; BUDIN, Gerhard. Terminologie in Theorie und
Austin e Searle.
Além disso, a enunciação do verbo decretar, conforme tão Praxis. Tübingen: Narr, 1989.
bem expressa Greimas, instaura um conjunto de enunciados jurídi- FERRÁN, ELENA. Las porciones de eficacia en el discurso jurídico
cos. Tais enunciados são proferidos por verbos, usualmente não de un contrato son ya términos? Una forma de secccionar el
considerados performativos, mas que, no entanto, pela força discurso jurídico. IITF Journal, v. 10, n.1, 1999, p.51-62 [Equi-
ilocucionária emanada do verbo inicial, no caso decretar, se compor- vocadamente atribuído a J.C. Gémar, pelo editor da publicação].
tam como verdadeiros performativos. Desse modo, os agentes e GREIMAS, Algirdas Julien. Analyse sémiotique d´un discours
objetos jurídicos que ocorrem como seus argumentos são juridique: la loi commerciale sur les sociétés et les groupes de
referenciados por termos jurídicos. sociétés. In: Sémiotique et sciences sociales. Paris: Seuil, 1976.
De maneira semelhante, por força do verbo decretar enunciado p. 79-128.
no caput do Decreto-Lei n.º 3.689, de 3 de Outubro de 1941, abaixo HENRIQUES, A; ANDRADE, M. M. Dicionário de verbos jurídi-
transcrito, as palavras, perdão, juiz, julgar, punibilidade, simples vo- cos. São Paulo : Atlas, 1996.
cábulos da linguagem comum, assumem o estatuto de termos do Direi- HOFFMANN, L. Kommunikationsmittel Fachsprache. Eine
to Processual Penal. Einführung. Tübingen: Narr,1985.
“O Presidente da República, usando da atribuição que lhe con- KASPARY, Adalberto J. O verbo na linguagem jurídica. Porto Ale-
fere o art. 189 da Constituição, decreta a seguinte Lei: Código de gre: Livraria do Advogado, 1996.
Processo Penal.[...] REY, Alain. La terminologie. Noms et notions. Paris: Presses
Art. 58 [...] Parágrafo único. Aceito o perdão, o juiz julgará Universitaires de France. 1992. (Que sais-je?).
extinta a punibilidade. [...]”. SAGER, J.C.; KAKEURA, K Concept classes and conceptual
No texto acima, o verbo julgar, significa avaliar como autorida- structures: their role and necessity in terminology. In: Terminology
de competente, decidir e pronunciar a sentença. Portanto, esse verbo and LSP linguistics, studies in specialised vocabularies and texts.
não só é um termo, como confere juridicidade a seus argumentos, que ALPHA 7/8, 1994-1995, p. 191-216.
são: um agente jurídico, o juiz, objetos jurídicos, a saber, o perdão e a TERMCAT. Metodología del treball terminològic. Barcelona:
puniblidade. Assim, perdão, que significa desculpa ou indulto na lin- Departament de Cultura de la Generatlitat de Catalunya, 1990.
guagem comum, neste artigo do Código, é a desistência da queixa crime WARAT, Luiz Alberto. O direito e sua linguagem. Porto Alegre:
pelo ofendido. Paralelamente, juiz, de simples árbitro, passa a ser o Sérgio Antonio Fabris, 1984.
Membro do Poder Judiciário, enquanto punibilidade, que o dicionário

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 183


Sobre o enfoque lingüístico-terminológico de
manuais acadêmicos de Química Geral
Maria José Bocorny Finatto
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS /
Instituto de Letras, Projeto TERMISUL

RESUMO: Os estudos terminológicos de orientação lingüística, aos quais nos filiamos, passaram a vivenciar o problema do enfrentamento de
estruturas textuais complexas e a deparar-se com os problemas do texto, do seu acesso e da comunicação no interior de uma área de conhecimento.
Com este ensaio descritivo, dispomo-nos a contribuir para o desenvolvimento do estudo do chamado texto técnico-científico, temático ou
especializado, representado pelo manual acadêmico de Química Geral. O manual de Química, instrumento didático e porta-voz de uma
determinada linguagem especializada, desempenha um papel importante e, por isso, integra nosso ponto referencial de observação e de discussão
sobre possíveis metodologias analítico-descritivas. Para que se possa alcançar uma descrição da organização e estrutura do texto especializado
do tipo manual acadêmico, é fundamental percebê-lo além da mera junção de parágrafos, frases, sujeitos ou regências gramaticais. É importante
que ele seja visto também como uma totalidade de significação que se particulariza como um objeto social e culturalmente construído em
diferentes dimensões e níveis.
PALAVRAS-CHAVE: terminologia, textos especializados, manuais de química.

Referenciais para uma metodologia analítico-descritiva Entre essas dimensões, encontramos duas em especial mencionadas
do manual de química no trabalho de Selov e Mjasnikov (1993:38), autores que apontam
O texto especializado é fruto da ação perceptiva e dois grandes planos das terminologias, extensíveis aos textos
transformadora de um sujeito enunciador, individual e múltiplo, sobre especializados: a esfera do lexis e a do logos, ou a dimensão da língua
um conjunto de conhecimentos e textos com os quais se relaciona. e a dimensão do conhecimento.
Essa ação, que pode ser vista como um redizer algo ou o recontar a Partindo dessa primeira dupla articulação do texto e também
estruturação de um conhecimento tornado-o acessível ao outro, está inspirados nas idéias de Hoffmann (1998), criamos uma proposta de
materializada e sobremodalizada (ou particularizada) no amplo con- abordagem também fundada em dois planos de observação. Detemo-
junto de enunciados que estabelece o texto e também envolve relações nos, entretanto, apenas no plano estrutural e conteudístico do “lexis
de intertextualidade. Isto é, o texto do Manual de Química, nosso textual” do livro, de modo que nos interessaram os aspectos macro
objeto de observação particular, é construído pelo enunciador e é, e microestruturais o texto. Como há, naturalmente, a inclusão de
igualmente, uma síntese de diversos outros textos: os que o precedem elementos intertextuais e também a influência de condições históri-
e o acompanham, compartilhando com ele a constituição sócio-histó- co-sociais e epistemológicas da Química como área de conhecimento
rica da área e do continuum de conhecimentos que é a Química. sobre os textos dos manuais, ficaram as considerações sobre os as-
Ainda que não reconheça isso de um modo tão explícito, no pectos atinentes ao logos químico a cargo dos colegas da AEQ/
desenvolvimento de uma teoria terminológica que leva em considera- UFRGS 1 .
ção o texto, um trabalho que se destaca, é o de Kocourek (1991), autor O manual de Química, então, na parte que nos coube observar,
que trata da relação entre termos e textos por uma perspectiva léxico- passou a ser compreendido, no plano desse lexis, pelo entrecruzamento
textual. Segundo sua visão, o texto representa, num primeiro eixo, o de dois grandes eixos estruturais. Cada um dos eixos situa um nível de
emprego de recursos da língua numa seqüência sintagmática. Em se- composição do manual. O primeiro corresponde à estrutura global da
guida, constitui um eixo “fonte de dados” porque permite a observa- obra; o segundo a cada uma da suas estruturas mais nucleares. Numa
ção de todos os planos da língua. E, numa terceira dimensão postulada analogia com o eixos saussureanos de sintagmas e paradigmas, imagi-
pelo autor, o texto é um plano suprafrásico de análise lingüística, no namos um eixo vertical e outro horizontal para a representação da
qual a coesão gramatical e a coerência semântica são fundadas sobre estrutura interna do manual de Química. O primeiro corresponde às
planos inferiores, no qual há uma rede complexa de relações semânti- relações de encadeamento entre os elementos que integram seu siste-
cas e formais interfrásicas. O texto-plano opõe-se, assim, ao de outros ma estrutural, enquanto que o segundo eixo diz respeito às relações de
planos da língua, sobretudo ao plano lexical e gramatical. semelhança e de substituição entre esses mesmos elementos.
Ora, como sabemos, os termos são as unidades semânticas No primeiro nível, que corresponde à macroestrutura2 , vemos
dominantes nos textos de especialidade. Não obstante, o termo é uma o texto como um signo-livro com determinada seleção e ordenação de
unidade lexical e sua acepção está definida no texto, integrando a assuntos ou temas, apresentados em uma determinada seqüência em
totalidade da tecitura textual . Nessas condições aparecem em discus- sumários, capítulos, índices e anexos. O modo de organização da obra,
são duas dimensões: a da “palavra técnico-científica” que se busca portador de valores de significação, mostra o modo pelo qual seu(s)
isolar por meio de uma marcação sintático-semântica ou morfossintática autor/autores concebem a própria arquitetura desses conhecimentos,
e a dimensão mais ampla do texto, na qual uma série de fatores estão num arranjo capaz de espelhar também uma determinada opção teóri-
envolvidos. Nesse processo de reconhecimento, o texto e o sistema da co-metodológica e didática.
língua são complementares; e, como explica Kocoureck (op.cit.), os
termos não são somente elementos do sistema, mas também ocorrên-
cias no interior dos textos. A complementaridade da abordagem textu-
al e sistêmica, assim, parece-lhe essencial. 1 Como sabemos, a pesquisa terminológica envolve necessariamente
Acreditando nessa idéia, pareceu-nos produtivo importante interdisciplariedade. Nossa pesquisa sobre o texto especializado de Quí-
enfocar o texto técnico-científico além da junção e relação entre pará- mica situa-se em uma cooperação com a Área de educação Química da
grafos, frases, sujeitos ou regências gramaticais. Afinal, trata-se de UFRGS. Maiores informações, aeq@iq.ufrgs.br
uma totalidade de significação que se particulariza como um objeto 2 Na constituição da metodologia analítico-descritiva do manual de Quí-
mica, tomamos como referência as idéias de Hoffmann (1998) sobre
social e culturalmente construído em diferentes dimensões e níveis.
macro e microestrutura do texto especializado.

184 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


No segundo nível, o plano da microestrutura, consideramos o Resultados da nossa aproximação inicial ao texto tipo manual
manual de Química Geral em termos do modo de apresentação e A amplitude do conjunto de características textuais reconheci-
qualificação de seus núcleos temáticos por tópicos centrais no inte- das foi significativa. Por uma questão de espaço, limitamo-nos aqui a
rior de cada um dos capítulos e sub-capítulos. Por tópicos designa- comentar apenas duas, uma para cada plano de descrição. Entre vários
mos os núcleos ou palavras irradiadoras de enunciados, que elementos a destacar, chama atenção, por exemplo, a variabilidade de
correspondem a um assunto, tema central e que corresponde ao apresentação e de ocorrências do tópico na macroestrutura do manu-
sujeito das predicações de cada capítulo. O tópico é, enfim, sobre o al. Entre diferentes pontos do texto, também é desigual a quantidade
que o sujeito-autor fala em cada uma das unidades seqüenciais do de capítulos nos quais o tópico selecionado ocorre. Salientamos, por
manual, constituindo um elemento de convergência desses segmen- exemplo, a sua apresentação na titulação de capítulos a ele dedicados:
tos de texto.
Do ponto de vista lingüístico-terminológico, o tópico é pa-
lavra, o termo ou sintagma terminológico que integra o título do
capítulo, o que, via de regra, corresponde a um dos conceitos-
chave do manual. Em ambos os níveis, macro e microestrutural,
estão localizados tópicos que podem ser apreciados em sentido Nesse aspecto em particular, a composição do título instaura,
horizontal ou vertical. Desse modo, dito de um modo resumido3 , o para o leitor, expectativas de enfoque ou de encaminhamento de um
autor ou autores desses textos são vistos como sujeitos de tema implicado pelo tópico: o manual B anuncia que apresentará
enunciação. Portanto, são tomados como sujeitos-interferentes e todas as propriedades dos gases; o manual C, presumidamente mais
representados. Nessa condição, o sujeito-autor adota uma formu- específico, tratará apenas do seu comportamento físico e não de ou-
lação particular do texto do manual. tros comportamentos.
Outras peculiaridades da formulação macroestrutural dos ma-
Da metodologia inicial de descrição dos manuais nuais foram, por exemplo:
Começamos a descrição de quatro manuais (identificados na Manual A: organizado em dois volumes, nas laterais do texto,
há pequenas notas que são comentários/ “curiosidades” ou informa-
bibliografia) pela localização, no sumário das obras, do primeiro título
ções importantes; essas apresentam o formato de anotações do autor
comum, com maior coincidência ou semelhança no que se refere à ou “dicas” para o leitor; Manual B: apresentado em volume único,
organização e à seleção lexical (o que corresponde, grosso modo, a não traz comentários fora do corpo do texto; Manual C: em único
uma certa homogeneidade na escolha de palavras). Esse título contém volume, traz notas com valor explicativo nas laterais do texto; entre-
o tópico que organiza reste primeiro exercício de descrição. tanto, essas notas não têm caráter de “recado” ou “dica”; Manual D:
O primeiro elemento comum às obras, nas condições antes em dois volumes, organiza os comentários adicionais em quadros
genericamente apontadas, foi o tópico GASES/(GÁS). Passamos, en- destacados no próprio corpo do texto.
tão, a observar sua apresentação/qualificação/especificação/ em cada No plano da microestrutura do manual, observamos, entre
manual, nos seus diferentes pontos de macroestrura, isto é, em títu- outras características, a formulação do primeiro parágrafo de texto de
los, capítulos e sínteses. A idéia, nesse plano, era: mostrar como um um capítulo. Um exemplo de parágrafo é:
tópico pode atravessr o manual de Química Geral e como se particu-
larizaria ao longo da macroestrutura. Manual A
Em segundo lugar, procuramos observar, no plano da
“Estamos familiarizados com muitas das propriedades dos ga-
microestrutura, o modo de inserção do tópico GASES/(GÁS) na cons-
ses porque estamos constantemente cercados por uma mistura gaso-
tituição dos enunciados que formam um determinado capítulo e as sa chamada atmosfera. Vemos aqui um homem-pássaro utilizando-se
suas potencialidades de significação, enfocando principalmente o com- de uma das propriedades dos gases: eles se expandem quando aque-
portamento qualificativo e a possibilidades de substituição anafórica cidos. As correntes ascendentes de ar quente mantêm este nosso
indicadas relação ao tópico. Mais especificamente, averiguamos a amigo nas alturas. Neste capítulo estudaremos esta e outra proprieda-
adjetivação referida a GASES(GÁS) e as indicações de palavra ou de dos gases [propriedades do gases].”
conjunto de palavras que podem substituir o tópico. Nesse plano, A partir desse parágrafo, que, no caso específico, funciona
examinamos apenas a inserção do tópico no primeiro parágrafo que como uma legenda de uma figura que “abre” o capítulo do manual,
aparece no capítulo a ele referido, entendendo que o primeiro parágra- observamos, entre outras coisas, que:
fo, além de ser um dos pontos de condensação da temática do capítulo • no manual A aparece a repetição de propriedade dos gases
– pois em geral tem a função de uma apresentação inicial do texto para como um equivalente do tópico que aparece no título, o que nos dá a
o leitor – serve como um indicador de dificuldades e de necessidades relação anafórica gases = propriedade dos gases .O parágrafo seguinte
do texto do manual A altera a relação acima estabelecida para gases =
de ajuste na continuidade da descrição em outros segmentos do texto.
estado gasoso;
A seguir, na continuidade da análise, salientamos a distribuição Ainda na aproximação de parágrafos iniciais, um outro aspecto
do tópico citado ao longo de diferentes pontos da macro e observado foi a freqüência das palavras/sintagmas mais recorrentes e
microestrutura nos quatro manuais utilizados. Em cada plano, detemo- que vinculam os quatro manuais:
nos da observação de alguns itens de texto. Foram enfocados, por
exemplo, no primeiro plano:
1) a apresentação do tópico por capítulos e títulos; 2) apresen-
tação em índices analítico-remissivos; 3) ocorrência em glossário de
termos anexo à obra e 3) aspectos gerais e peculiaridades de apresen-
tação macroestrutural;
no segundo plano:
1) inserção do tópico no primeiro parágrafo oferecido; 2)
estruturação interna do capítulo referido ao tópico GÁS/GASES; 3)
formato de conclusão do capítulo referido ao tópico.
3 Para uma versão mais detalhada deste trabalho, contacte
mfinatto@terra.com.br.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 185


Considerações e perspectivas para qualificação de uma prévia, por parte do especialista em Química, de um conjunto de termos
proposta analítico descritiva para o texto especializado previamente apontados como “chave” ou mais importantes.
O enfoque de textos especializados tem servido aos estudos Além disso, reconhecemos que a descrição lingüístico-
terminológicos principalmente para que se estabeleçam critérios para terminológica pode ser bem mais refinada, incorporando-se à descri-
a identificação de termos, mais recentemente chamados unidades de ção, por exemplo, a observação de marcas de enunciação. Entre essas,
significação especializada. Por mais paradoxal que pareça, teorica- a avaliação ou qualificação que os autores dos manuais podem fazer
mente, em Terminologia, não há uma distinção muito clara entre pala- sobre o discurso/saber de outrem ou mesmo sua avaliação particular
vras comuns e termos, pois os valores semânticos e conceituais que sobre determinado assunto, o que poderíamos identificar em seqüên-
envolvem algumas unidades como, por exemplo, ácido, acetona, cias como as seguintes: a) “estas variáveis são extremamente im-
transgênico, semântica, amálgama ou neoliberalismo são tanto instá- portantes”; b)“[a teoria cinética dos gases é] um exemplo notá-
veis quanto dependem de sua inserção em contextos, co-textos e áreas vel de explicação bem sucedida”. De outro lado, segmentos de texto
de conhecimentos. como “conseqüências matemáticas de o fato” e “pode nos levar a
Entretanto, se é claro que um termo é um valor ativado no alguns dos conceitos... da ciência física” podem ser o indício
discurso (que, para nós, não é exatamente um sinônimo de texto), lingüístico de que o autor de determinado manual se preocupa em
reconhecer uma terminologia passa a ser uma tarefa que envolve tam- apontar um relacionamento, encadeamento e extensão do tópico em
bém reconhecer o texto em uma linguagem. Desse modo, no nosso outra ciência ou campo de conhecimento.
caso em especial, identificar os termos do Manual de Química não Finalmente, vale dizer que a condução do nosso pequeno exer-
representa apenas o reconhecimento de um conjunto de palavras de cício descritivo do Manual acadêmico de Química, apresentado aqui
Química Geral. O termo, como sabemos, corresponde a um conceito, de um modo bastante resumido, reforça que as teorias de texto são,
que é uma porção de conhecimento. E, como as palavras comuns, cada vez mais, recursos importantes para a compreensão das diferen-
também os termos morrem, nascem ou caem em desuso e sua utiliza- tes possibilidades de estruturação do texto e da linguagem científicas.
ção até pode identificar determinados grupos socais e correntes de Não há como desvincular termos e textos, mesmo que se escolha
pensamento de uma ciência ou especialidade. privilegiar os aspectos lexicais mais pontuais de uma terminologia.
No cenário da pesquisa sobre o texto técnico-científico, sabe- São, assim, esses referenciais elementos muito importantes e que cer-
mos, destacam-se hoje os softwares especialmente desenhados ou tamente podem contribuir para os novos desenvolvimentos de uma
adaptados para a localização semi-automática de terminologias, cons- teoria Terminológica de base comunicativa.
truções, sintagmas e de palavras que seriam potencialmente termos.
Já contamos com o recurso de leituras digitalizadas desses textos, Referências bibliográficas
mais ou menos científicos, dirigidos a públicos distintos. Todavia, o
contato subjetivo com o texto, com seu ambiente e contextos de BRADY, James E.; HUMISTON, Gerard E. Química Geral 2ª edi-
significação ou a percepção da articulação entre referentes textuais e ção, Rio de Janeiro: LTC Livros Técnicos e Científicos, 1996. 2
situacionais ainda permanecem sendo os elementos mais produtivos volumes (410 p. e.2 661 p.)
e seguros para embasar o tratamento e a caracterização das terminolo- HOFFMANN, Lothar. BRUMME, Jenny (dir.) Llenguatges d’
gias e linguagens técnico-científicas. especialitat. Selecció de de textos. Barcelona: IULA/UPF,
Nesse sentido, se nos fosse pedido um levantamento prévio das 1998.284p.
unidades candidatas a constituir a terminologia relativa ao tópico GÁS/ KOCOUREK, Rostilav. Textes et Termes. In: Meta, vol. 36, n.1,
GASES nos segmentos de texto em que mais nos detivemos, poderiam, mars, Numéro Spécial. La Terminologie dans le monde: orientations
por exemplo, ser selecionados previamente todos os nomes qualifica- et recherches 1991, p.71-76. 322p.
dos que aparecem nos subtítulos. Comporiam, assim, uma terminolo- MAHAN, Bruce M.; MYERES, Rollie S. Química um curso univer-
gia dos manuais de Química Geral sintagmas como Lei de Boyle, Lei de sitário tradução da 4ªed. americana, 3ªreimpressão, São Paulo:
Dalton, cálculos combinados, análise de modelos, volume molar, etc. Edgard Blüche,1998. 582 p.
Mas, quais são realmente termos? A resposta saberá qualquer Quími- MASTERTON, Willian L.;SLOWINSKI, Emil; STANITSKI, Conrad
co? Identificar o que é, exatamente, um termo ainda é algo importante L. Princípios de Química. 6ªed, Rio de Janeiro:LTC Livros Téc-
para a Terminologia de perspectiva lingüística? nicos e Científicos, 1990. 681p.
À parte da amplitude dessas considerações e questões, numa di- RUSSEL, John B. Química Geral .2ªed, São Paulo: Makron
mensão bem mais pontual, avaliamos que, por exemplo, o exame dos Books,1994. 2 volumes. 1.268p.
capítulos que organizam esses manuais em função de tópicos, tal como SELOV, S.D; MJASNIKOV, A.G. (1993). Logical-Semantic
fizemos, pode ser estendido, com um bom índice de desempenho do Structure of a Terminology and its Formal Properties. Selected
instrumental descritivo inicialmente por nós modelado, à descrição do readings in Russian Terminology Research. IITF-Series, vol. 3,
todo do manual. Entretanto, observamos que a restrição ao tópico co- p.38-55.
mum aos títulos de capítulos poderia ser aperfeiçoada pela indicação

186 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Sobre a instabilidade de gêneros
Kanavillil Rajagopalan
Universidade de Campinas

To live in the “borderlands” is very exciting; it is living in the midst of


a culture in the making. It is a very creative space to be in, one where
innovative art and theory on the cutting edge is being constructed.
Border discourse, whether it be in geography, language or literatures, is
a very rich field.
— Gloria Anazaldúa

ABSTRACT: Discursive genres are categories that are unstable and in constant transformation. This is part of a wider and farther-reaching tendency
that affects a number of categories viewed up until very recently as fixed and unchanging but revealed themselves to be sensitive to decentering and
dispersion—categories that have become the trade mark of so-called postmodern condition.
PALAVRAS-CHAVE: gêneros discursivos – instabilidade – hibridização – pós-modernidade

Uma tarde de verão em Paris, mais precisamente um restauran- Acredito que as reflexões de Barthes são de enorme valia para
te badalado situado à margem da avenida mais famosa daquela cidade, todos aqueles que se interessam no fenômeno de gêneros discursivos.
a Champs Elysées. Quando a câmera faz um “close up”, vê-se um O cerne das teorias contemporâneas sobre o gênero está na idéia de
casal de jovens se divertindo numa mesa ao ar livre na calçada, “jogan- que os gêneros são na verdade estratégias padronizadas socialmente.
do conversa fora” e degustando um bife mal passado—ou “sangran- Os gêneros se materializam em formas típicas do discurso que evolu-
do”, como preferem dizer os franceses—devidamente regado por um em em resposta às situações e exigências retóricas recorrentes. Ao
copo de vinho tinto, como manda o figurino da gastronomia gaulesa. contrário das teorias clássicas que identificavam os gêneros discursivos
Ainda, para acompanhar o bife, uma porção de batata frita à moda formalmente—ou seja, mediante as marcas formais como a voz (ativa
local. Alias, uma cena comum em qualquer cidade européia e, se pen- vs. passiva), o tempo verbal (presente do indicativo vs. presente
sarmos bem, em várias outras partes do mundo, guardadas as devidas histórico), a construção sintática (parataxis vs. hipotaxis) etc.—as
proporções. Uma descrição mais prosaica do acontecimento seria di- teorias mais recentes optam por uma abordagem eminentemente fun-
zer que estava em curso um encontro de namorados que também cional, onde a ênfase recai sobre as estratégias retóricas específicas
aproveitavam o momento para saciar sua fome e adicionar uma bela que são utilizadas bem como os tipos de efeitos desejados.
dose de descontração com o auxílio indispensável de Baco. Em outras palavras, os gêneros não se constituem em categori-
Ledo engano. Quem nos assegura isso é Roland Barthes. Para as estanques. Eles estão em um processo constante de transformação,
Barthes, uma leitura mais acurada do que está acontecendo terá que ora se aproximando, ora se distanciando uns dos outros—e, às vezes,
levar em conta uma série de fatores adicionais. Por exemplo, o mo- até se sobrepondo entre si. Quem os molda, os vigia constantemente,
mento histórico em questão. No caso, a cena tem como pano de e garante sua sobrevida é a sociedade ou a “comunidade interpretativa”,
fundo a malfadada aventura francesa na Argélia e as constantes notí- para lembrar um termo popularizado por Stanley Fish (1980). Segun-
cias do revés após revés das tropas francesas em serviço naquele do Carolyn Miller (1984), “a quantidade de gêneros em qualquer
país estrangeiro. Em conseqüência da repercussão negativa na im- sociedade [...] depende da complexidade e diversidade daquela socie-
prensa mundial como também por motivo da percepção por parte dade”. Bazerman (1988) argumenta que os gêneros nascem das metas,
dos próprios franceses de que se tratava de uma batalha pressupostos epistemológicos, e as práticas da produção de conheci-
irrecuperavelmente perdida e moralmente injustificável, o orgulho mento que distinguem cada comunidade discursiva e, em troca, nu-
nacional francês se encontra seriamente abalado. Contra um pano de trem-nos o tempo todo.
fundo como esse, diz Barthes, o acontecimento deve ser compreen- E é a mesma comunidade que desencadeia qualquer eventual
dido, não como um simples encontro de namorados ou divertimento mudança na forma como são traçados os contornos conceituais dos
gastronômico, mas como um ato de auto-afirmação por parte do diferentes gêneros. Como diz Williams (1981), qualquer passo em
jovem casal, uma forma de “vestir a camisa” do patriotismo, de direção a uma inovação na constituição de um determinado gênero
mostrar através do seu gesto algo que em palavras poderia ser dito— sempre se dá na forma de uma “articulação, mediante descoberta téc-
de forma muito menos contundente, é claro—como “Somos cida- nica, das mudanças a nível de consciência, que são, elas mesmas,
dãos franceses e temos orgulho disso”. formas de consciência de mudança” (citado em Fairclough, 1995: 31).
Para Barthes, no entanto, a passagem da gastronomia para pa- Nesse respeito, os gêneros compartilham com os “mitos” o seu mais
triotismo na leitura daquilo que se passa naquela tarde de verão na importante traço distintivo na concepção de Barthes. Para Barthes,
calçada da Champs Elysées só se dá desde que esteja ao alcance de um mito é uma “forma de comunicação” ou um “modo de significa-
quem observa a cena uma série de outros conhecimentos. Por exem- ção”. Jamais pode ser tomado como “um objeto, um conceito, ou uma
plo, é preciso que o observador saiba o valor simbólico que o vinho e idéia”. A cena vislumbrada no começo deste trabalho e sua interpreta-
a batata têm no imaginário francês. Como diz o autor em sua obra ção proposta passam pelo processo daquilo que Barthes chama de
Mitologias: “O vinho é sentido pela nação francesa como um bem que “naturalização”: “O mito transforma a história em natureza” (Barthes,
lhe pertence com exclusividade, tal como as suas trezentas e sessenta 1982: 150). Barthes chama a nossa atenção para a forma como nasce
espécies de queijo e a sua cultura” (Barthes, 1982: 51). Em relação ao o (macro)gênero chamado a ‘Literatura”:
prato principal, o bife com batatas, eis o comentário do mesmo autor:
“O bife participa da mesma mitologia sangüínea do vinho” (Barthes, O aquiescer voluntariamente ao mito pode aliás definir toda a
1982: 55). nossa Literatura tradicional: normativamente esta Literatura é um sis-

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tema mítico caracterizado: existe um sentido, o do discurso; um metade do século XVIII. O próprio Bakhtin explica o por quê:
significante, que é esse mesmo discurso como forma ou escrita; um O romance estabelece contato direto com a espontaneidade do
significado, que é o conceito de Literatura; uma significação, que é o presente inconcluso; é isso que faz com que esse gênero jamais se
discurso literário. (Barthes (1982: 155). solidifique” (Bakhtin, 1981: 27). O romance, para Bakhtin, é, nesse
sentido, o antídoto à poesia—tradicionalmente vista como o supra-
O bife e o vinho são verdadeiros totens da cultura francesa, e as sumo da monoglossia. “Poliglossia sempre existiu (é mais antiga do
conotações de patriotismo que se acham associadas a eles têm suas que a monoglossia pura e canônica, mas nunca foi um fator na cria-
origens na mitologia coletiva, uma espécie de “langue” cultural, para ção literária (Bakhtin, 1981: 12).
lembrar o termo empregado por Saussure para chamar a atenção para Em contrapartida, as teorias clássicas sobre o gênero—o estu-
a linguagem enquanto um “fato social”. Da mesma forma que a “langue” do do gênero conta com uma história que remonta à Grécia antiga—
se manifesta em “parole”, isto é, o comportamento lingüístico—e procuram achar no gênero “formas naturais” ou “arquétipos”, justifi-
diretamente observável—de cada um dos membros pertencente a uma cando-os como formas platônicas, constantes antropológicas etc. Eis
determinada comunidade de fala, o comportamento cultural de cada as palavras com as quais Aristóteles, em sua obra Poética, dá início às
membro de uma determinada comunidade evoca e, ao mesmo tempo, suas ponderações acerca dos gêneros literários;
ajuda a reforçar a mitologia coletiva e a emprestar-lhe uma certa “esta-
bilidade aparente”. A impressão de estabilidade é apenas aparente Falemos da poesia—dela mesma e das suas espécies, da
porque é resultado do processo de naturalização. Afinal, como diz efetividade de cada uma delas, da composição que se deve dar
Bourdieu (1977: 164), “Toda ordem estabelecida tende a produzir [...] aos mitos, se quisermos que o poema resulte perfeito, e, ainda,
a naturalização da sua arbitrariedade”. Em última análise, como diria de quantos e quais os elementos de cada espécie e,
Barthes, o que define uma comunidade—tanto as chamadas comuni- semelhantemente, de tudo quanto pertence a esta indagação—
dades “primitivas” como as supostas “civilizadas” —são os totens começando, como é natural, pelas coisas primeiras (Aristóteles,
que são venerados pelos seus membros (A partir de Durkheim, já não 1987: 201).
restava mais dúvida de que os totens não são um monopólio das tribos
ditas “primitivas”). Para o mestre estagirita, uma classificação dos gêneros literári-
Em sua análise magistral de como funciona a publicidade em os deveria se proceder nos mesmos moldes da classificação das espé-
sociedades capitalistas marcadas pelo consumismo, Barthes nos mos- cies botânicas ou zoológicas. Como observa Allen (1989: 44),
tra com clareza o processo de totemização dos produtos como parte
da estratégia de marketing dos mesmos. No anúncio das massas da [...] durante a maior parte da sua história de 2000 anos, o
marca Panzani que ele analisa, o efeito é alcançado pela tática de estudo dos gêneros tem sido eminentemente nomológico e
associação: uma cesta cheia de tomates, cebolas, cogumelos etc. todos tipológico em suas pretensões. Ou seja, ele adotou como sua
frescos e diretamente de lavoura e, em meio a todos os objetos “natu- meta principal a divisão da literatura mundial em tipos e a
rais” e inconfundivelmente associados à “italianidade” está “discreta- nomenclatura daqueles tipos—da mesma forma que o botâni-
mente” posto um pacote de Panzani. O anuncio consegue, dessa ma- co divide a mundo da flora em variedades de plantas.
neira, “naturalizar” os produtos Panzani e, ao fazer isso, transformá-
los—por mais incrível que pareça num primeiro instante—em itens Ou seja, através da identificação de genus e differentiae—um
culturalmente significantes para o público italiano e para todos aque- procedimento essencialista, que procura discernir nos gêneros uma
les que se associam àquela cultura de uma forma ou de outra. ontologia fundamental. Por sua vez, o crítico literário norte-america-
A questão central que Barthes coloca em discussão é que o no, de orientação formalista, se empenha na busca de universais de
que sobressai no funcionamento de publicidade nas sociedades mo- gêneros literários em sua obra The Anatomy of Criticism (Frye, 1957).
dernas é o aspecto eminente e inconfundivelmente social da maneira O método utilizado é o da abstração, que nivela tudo, que se despren-
como ela age sobre as pessoas—o seu púbico-alvo, criando novos de do concreto, do particular, para fazer generalizações de durabilida-
patamares de bem-estar e, com isso, novos desejos. Desta forma, a de trans-histórica. O jogo de poder implícito nessa empreitada é de-
abordagem barthesiana se contrasta com a concepção tipicamente anglo- nunciado com ironia e indignação por Horkheimer e Adorno (1947
saxã do funcionamento da publicidade enquanto meio de comunicação [1989]: 11-2) nas seguintes palavras:
e persuasão. Esta assume uma postura humanística e individualista
(Harland, 1987) e prevê que os anúncios funcionam ao despertar A abstração, a ferramenta do iluminismo, comporta-se face a
desejos ocultos e reprimidos na mente de cada um dos usuários em seus objetos como o destino, cujo conceito é por ela mesmo
potencial. Para Barthes, os objetos se tornam atraentes enquanto eliminado: como liquidação. Sob a dominação nivelante do
objetos dos desejos dos outros, como diria Lacan. Ou seja, o desejo abstrato, que faz com que tudo na natureza se possa repetir, e
não é de origem individual, mas eminentemente social. Nem tampouco sob a da industria, para a qual isso é aprontado, os próprios
os objetos desejados são objetos em sua pura materialidade; os obje- liberados convertem-se finalmente naquela “tropa” que Hegel
tos dos desejos são, eles mesmos, objetos cobiçados por outros—ou assinalou como o resultado do iluminismo. [....] A generalida-
seja, objetos já mitificados pela sociedade consumista. de dos pensamentos, tal como a lógica discursiva a desenvol-
Gêneros são categorias sociais, como mitos. Também como ve, a dominação na esfera do conceito, erige-se sobre o funda-
mitos, se acham fincados na história. “O mito possui um caráter mento da dominação na esfera da realidade. Na substituição
imperativo, interpelatório: tendo surgido de um conceito histórico, da herança mágica, das antigas representações difusas, pela
vindo diretamente da contingência [....]” (Barthes, 1982: 145). É unidade conceitual, exprime-se a constituição da vida articula-
interessante lembrar, a esse respeito, a observação de Bakhtin (1981: da pelo mando e determinada pelos homens livres.
5) de que, à medida que ocorre o processo que ele chama da
“romancização” (em inglês, “novelization”) dos demais gêneros literá- É também contra o efeito “rolo-compressor” da abstração e
rios, “a literatura como um todo se acha envolta num processo de vir da homogeneização que se insurge Bakhtin, que vê com bons olhos a
a ser”. Para Bakhtin, tal processo ocorreu diversas vezes ao longo da hibridização que o romance provoca, contaminando todos os gêne-
história—no período helênico, durante o fim da Idade Média e no ros literários, tornando-os dinâmicos. Em oposição direta às teorias
período renascentista, e com toda força e clareza, a partir da segunda clássicas estão, por tanto, as propostas de Bakhtin e Barthes. Tra-

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balhando a nível empírico, O’Sulliavan et. alii. (1994), entre outros, Holquist. Austin: University of Texas Press.
defendem a tese de que cada vez mais se verifica a tendência de um BARTHES, Roland (1982). Mitologias. 5ª edição. Trad. de Rita
mesmo texto evidenciar ao mesmo tempo características de múlti- Buongermino e Pedro de Souza. São Paulo: Difusão Editorial
plos gêneros. Fora do mundo idealizado por alguns teóricos, os S.A.
gêneros híbridos são apontados como a regra e não mais uma exceção BAZERMAN, C. (1988). Shaping Written Knowledge: The Genre
(Van Leeuwen, 1993; Fairclough, 1995). Para estes e um número and Activity of the Experimental Article in Science. Madison:
considerável de outros estudiosos contemporâneos, os gêneros são University of Wisconsin Press.
grupos de “textos” (no sentido em que esse termo é utilizado por
BOURDIEU, P. (1977). Outline of a Theory of Practice. Trad. Richard
pensadores pós-estruturalistas como Derrida) historicamente con-
Nice. Cambridge, Reino Unido: Cambridge University Press.
dicionados, constituindo-se em sistemas evolutivos inter-relaciona-
FAIRCLOUGH, N. (1995). Media Discourse. Londres: Edward
dos (e não invariantes trans-históricos, como queriam os teóricos
das épocas anteriores). Daí a importância da observação da Gloria Arnold.
Anzaldúa (Anzaldúa e Harnández 1995-6: 96), citada na epigrafe FISH, S. (1980). Is There a Text in This Class? The Authority of
deste trabalho. Interpretive Communities. Cambridge, Mass.: Harvard University
Press.
E-mail do autor: rajan@panini.iel.unicamp.br FRYE, Northrop (1957): The Anatomy of Criticism. Princeton, NJ :
Princeton University Press.
NOTA HARLAND, R. (1947 [1989]). Superstructuralism. Londres: Methuen
Sou grato ao CNPq pela concessão da bolsa de produtividade & Co. Ltd.
em pesquisa – processo n.º 306151/88-0. HORKHEIMER, M. e Adorno, T. W. (1989). ‘Conceito de iluminismo’
(extraído do livro Dialética do Iluminismo). Em Horkheimer e
Adorno — Textos Escolhidos. Trad. de Zelijko Loparic e Andréa
Referências bibliográficas Loparic. Série Pensadores. São Paulo: Nova Cultural.
MILLER, C. R. (1984): ‘Genre as social action’, Quarterly Journal of
ALLEN, Robert (1989): ‘Bursting bubbles: “Soap opera” audiences
Speech nº. 70. pp. 151-67.
and the limits of genre’. Em Seiter, E. et. alii. (Orgs..): Remote
O’SULLIVAN, T. et alii. (1994): Key Concepts in Communication
Control: Television, Audiences and Cultural Power. Londres:
Routledge, pp. 44-55 and Cultural Studies. Londres: Routledge.
ANZALDÚA, G. e Hernández, E. (1995-6). ‘Re-thinking margins and VAN LEEUWEN, T. (1993). ‘Genre and field in critical discourse
borders: an interview’. Discourse. Vol. 18. nºs. 1 & 2. pp. 7-16. analysis’. Discourse and Society. Vol. 4. nº. 2. pp. 193-223.
ARISTÓTELES (1987). Poética. Em Aristóteles. Vol. 2. Trad. de WILLIAMS, R. (1981). Marxism and Literature. Oxford: Oxford
Eudoro de Souza. Serie Pensadores. São Paulo: Nova Cultural. Universty Press.
BAKHTIN, M.M. (1981). The Dialogic Imagination. Org. Michael

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O discurso científico e a questão da identidade:
entre a modernidade e a pós-modernidade1
Maria José R. Faria Coracini
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
Universidade Estadual de Londrina - IEL/DLA

RÉSUMÉ: Ayant pour objectif de discuter la construction identitaire du sujet-chercheur em sciences humaines en particulier, nous avons analyseé
deux collections de revues spécialisées em Linguistique (Appliquée). Cela nous a permis de conclure que les deux perspectives – moderne et post-
moderne - apparemment opposées se chevauchent pour aider à bâtir chez le chercheur actuel une identité conflictuelle qui glisse entre la certitude
et l’incertitude, le vrai et le faux, le même et le différent.
PALAVRAS-CHAVE: pós-modernidade, subjetividade, identidade, ciência

Quase todo o mundo - acadêmico ou não – fala, hoje, de identi- Babel. Com base nesse pressuposto, defendemos a hipótese de que é
dade, na busca de resposta para uma pergunta existencial: quem sou impossível separá-las e dicotomizá-las: uma penetra na outra de modo
eu?, quem somos nós?, em um mundo cada vez mais fragmentado, a ser difícil senão impossível determinar onde cada uma se encontra a
apesar das pretensões globalizantes que assediam tanto a economia não ser quando se apresentam de forma radical numa obra de arte, num
quanto os setores educacionais, seja em nível mundial, seja em nível fenômeno qualquer.
local. Ora, a identidade só se torna um problema quando está em crise, Dentro dessa visão, como fica a questão da identidade e do
quando algo que se supõe fixo, coerente e estável é deslocado pela sujeito? Várias questões se colocam: podemos falar de verdade ou
experiência da dúvida e da incerteza (Mercier, 1990:4, apud Woodward, apenas de efeitos de verdade? Como ficam os mitos de toda sorte que
2000:19). O mesmo se pode dizer da pós-modernidade ou da nos constituem a todos? É possível vislumbrar a heterogeneidade se
modernidade tardia que tem, aliás, como uma de suas características entrecruzando num emaranhado de fios para formar uma verdadeira
básicas a crise da identidade teia, num universo em que, culturalmente, se busca e valoriza a
A pós-modernidade tem recebido várias definições e tem sido homogeneidade? Afinal, nessa teia, a heterogeneidade se confunde
alvo de inúmeras críticas por parte daqueles que ora a consideram uma com a homogeneidade, deixando que esta conserve a ilusão da unidade,
excrescência de alguns intelectuais, que se colocam em patamares aci- da totalidade, da completude. Como ficam os estudos da linguagem
ma das realidades sociais, ora a consideram simplesmente inexistente nesse contexto?
porque o que dela se diz não passa de um prolongamento da Antes de mais nada, parece-nos importante situar a ciência nas
modernidade, visão bastante expandida segundo Robertson, 1992:193). visões da modernidade e da pós-modernidade para, buscarmos ele-
Giddens (1990), por exemplo, considera que a pós-modernidade é mentos que confirmem ou desconfirmem nossa hipótese e nos ajudem
uma extensão do “projeto” da modernidade, basicamente inerente a a encontrar respostas para as questões acima colocadas. Sabemos que
ele. O autor vê na modernidade um grande impacto. Segundo ele, o a visão clássica de ciência se insere no projeto da modernidade, visão
prenúncio da pós-modernidade é completamente enganoso: seus pro- essa que tem sido criticada pelos defensores da pós-modernidade e,
ponentes não conseguiram cooptar a natureza da própria modernidade em particular pelo pós-estruturalismo - que assumimos como um
e por isso vislumbraram o mundo num outro momento. Se a desdobramento da pós-modernidade - pela recusa da ciência em acei-
modernidade funde tendências tanto restritivas (vigilância, contro- tar que ela constitui uma prática humana, social, mais do que uma
le...) quanto libertadoras (capitalismo, conforto, independência...), a atividade transcendental exterior à história, à cultura, aos valores, à
pós-modernidade seria, para Giddens, “uma versão radicalizada da subjetividade e ao poder (Heelan, 1990: 214, apud Usher & Edwards:
modernidade”, ou seja, ela não existiria como fim das grandes narrati- 1996: 33).
vas. Poder-se-ia opor a este argumento o fato de que, como se sabe, O discurso da ciência coloca-a firmemente fora de todo contex-
hoje, a perspectiva da pós-modernidade não anula a existência dessas to social e, sobretudo político (e, portanto, ideológico), afirmando que
narrativas, mas as insere na identidade de um povo ou grupo social... uma característica do conhecimento legitimado é justamente o fato de
Na modernidade radicalizada, como quer Giddens (1990:150), o eu é estar fora ou à parte do sujeito pesquisador ou cientista e da atividade
tratado como algo “mais do que apenas um lugar de forças de conhecer. Foucault e Deleuze seguindo Nietzsche questionam essa
entrecruzadas”, enquanto que, segundo ele, na perspectiva da pós- exterioridade defendendo a impossibilidade de um conhecimento fora
modernidade, o ser é visto como “desintegrado ou desmembrado pela do sujeito conhecedor. Muitos pós-modernos questionam ainda: a) a
fragmentação da experiência” (ver também LATOUR); aliás, se pu- construção discursiva da ciência como um projeto transcendental e a
déssemos ousar encontrar alguma característica comum a todas as conseqüente projeção de uma cientificidade apoiada em universais
visões pós-modernas, diríamos que é a fragmentação, desintegração (lingüísticos, por exemplo); b) a validade universal das ciências natu-
de tudo: do sujeito, do discurso, dos fenômenos... rais, em cujas fontes foram beber as ciências sociais e todas as ciências
Outra visão que servirá como ponto de partida para nossas humanas, como comentam Usher & Edwards (1996:34).
considerações vê a modernidade e pós-modernidade como duas pers-
pectivas que coexistem no tempo e no espaço, mas que são à primeira “O modo como a ciência compreende a si própria, o modo
vista antagônicas e irredutíveis (Usher & Edwards, 1994): se uma se como ela se projeta e o modo como ela é vista enquanto modelo
concentra na busca da verdade, da essência dos fenômenos, no pro-
gresso linear (Torre de Marfim onde impera a segurança, a coerência
ainda que ilusórias...), a outra, enfatiza a descontinuidade, a relativida- 1 Este trabalho se insere no Projeto Integrado CNPq “Interdiscursividade
de de tudo, a inexistência de uma verdade absoluta e universal, o e Identidade no Discurso Didático-Pedagógico (LM e LE)”, sob minha
ecletismo, trazendo, portanto, a dúvida, a insegurança, a Torre de coordenação geral.

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e padrão, para outras atividades, de gerar conhecimento, pode de língua que continua, ainda, mais preocupada com o como funciona
apenas ser compreendida como parte de um discurso filosófico das coisas do que com qual o agente ou qual o fim das coisas”,
modernista sobre a natureza do conhecimento, verdade e reali- constatação que Sousa Santos (op.cit.:16) faz a respeito da ciência
dade.” (trad. minha) moderna e que transferimos para a Lingüística Aplicada para afirmar
que grande parte dos lingüistas aplicados parecem dar menos impor-
Os autores argumentam que se a ciência se situa num contexto tância ao estudo das causas e conseqüências do que está sendo obser-
cultural, ela deve ser uma prática social e, portanto, deve estar locali- vado e, portanto, ao questionamento de atitudes e comportamentos
zada e compreendida dentro desse contexto; afinal, a forma como naturalizados pelo hábito (por exemplo, qual a razão e quais as conse-
vivenciamos a ciência é mediada por significados culturais sobre a qüências de um ensino que, apesar de se dizer centrado no aluno,
ciência, produzidos por meio de sistemas dominantes de representa- continua centrado no professor), para privilegiar a busca de soluções
ção. Nessa medida, caberia aqui a grande questão: se a verdade nada aos problemas encontrados: uns, então, buscam solução exclusiva-
mais é do que produto de uma construção social, como fica a verdade mente nas teorias lingüísticas buscando meios de aplicá-las, enquanto
científica? outros recorrem a várias áreas do conhecimento, mas uns e outros
Gadamer (1975) lança uma forte crítica ao cientismo, à noção colocam a teoria como a única saída para uma formação de professores
de que as ciências naturais são supra-históricas, empreendimento neu- capaz de resolver os problemas de ensino. Aliás, sabemos que o
tro e modo único de adquirir o verdadeiro conhecimento, modelo da paradigma dominante da psicologia, uma das disciplinas a que recor-
racionalidade metódica aplicável universalmente. Ora, sabemos que rem muitos estudiosos/pesquisadores da área para dar conta dos pro-
toda pesquisa ou toda prática científica se apoia numa compreensão blemas encontrados em sala de aula, é o paradigma científico, que
prévia, por parte dos sujeitos, dos objetos de investigação. Com base toma as ciências naturais como modelo e padrão. Ora, se, como afir-
nisso, é possível afirmar que, para as ciências humanas e, portanto, mam Usher & Edwards, a psicologia se encontra localizada no discur-
so da ciência, um discurso que fala da descoberta de leis gerais através
para as ciências da linguagem (incluindo-se aí a Lingüística Aplicada),
do uso do método científico, na busca de regras universais para chegar
não basta questionar o uso do método utilizado pelas ciências natu-
ao conhecimento verdadeiro do psíquico humano (comportamento,
rais, ou sugerir outro método; mas é a própria noção de método como
funcionamento cognitivo), então, podemos afirmar que os estudos
garantia de verdade que deve ser questionada.
sobre o ensino-aprendizagem de língua, ainda que tomando o cuidado
Isso tem implicações para a noção moderna do sujeito sobera-
para não generalizar as conclusões a partir da observação do processo
no, centrado, uno, sujeito que é implicitamente assumido pelo discur-
não pode evitar um mergulho no mar dos paradigmas científicos onde
so moderno da ciência. se busca captar a consciência (intenções), as percepções, atitudes,
Na pós-modernidade, então, o cientista e o que ele conhece é bem como as estruturas institucionais de todos os níveis. O que se
sempre influenciado por sua temporalidade e sua participação numa deseja provocar está também localizado nesse mesmo paradigma: a
comunidade de sentidos – em outras palavras, por sua história e sua consciência de si, por uma espécie de reflexão conduzida (por especi-
cultura (pessoal e social) - e a ciência é o seu método, isto é, os alistas portadores de uma competência reconhecida para tal), a cons-
resultados que se obtêm de qualquer investigação são exatamente pro- ciência do processo de ensino-aprendizagem (monitoração), a autono-
porcionais aos procedimentos metodológicos utilizados; é apenas nessa mia do professor e dos alunos como se fosse possível não sofrer o
medida que é possível falar de verdade e de verdade científica, sempre peso de múltiplas influências que tornam todo indivíduo sujeito com-
provisória, não por ser incompleta visando a uma completude futura, plexo, inefável, incontrolável...
mas por estar atrelada ao momento histórico-social que a constitui e Como então resolver o paradoxo: o lingüista aplicado sabe-se
institui suas verdades. intérprete dos dados (que não são dados, mas buscados, construídos)
Como estariam os estudos da linguagem, mais especificamente e, como tal, se encontra imerso em águas subjetivas, mas parece que
aqueles que se voltam para questões ligadas ao ensino-aprendizagem sente a necessidade de descrevê-los ou buscar alguma solução para
de língua entre a modernidade e a pós-modernidade? Tentação seme- aquilo que ele julga serem problemas práticos (metodologia de sala de
lhante àquela sofrida pelas ciências sociais, no passado, de se pauta- aula, relação professor-alunos etc.). Não é à toa que a solução que
rem nas ciências naturais parece ocorrer, ainda hoje, com a lingüística encontra, com base em estudos antropológicos, é a triangulação: três
(aplicada): observadores, três olhares... E por que três, por que um triângulo?
Primeiramente, sabemos que Certamente, porque o triângulo representa, não apenas na cultura
ocidental, a sabedoria, a totalidade, a completude, o infinito – tal como
a matemática fornece à ciência moderna não só o instrumento a Santíssima Trindade.
privilegiado de análise, como também a lógica da investigação, Nota-se, então, nos periódicos analisados, a insistência de au-
como ainda o modelo de representação da própria estrutura da tores-pesquisadores em manter a confiabilidade, isto é, garantir o re-
matéria /.../ Do lugar central da matemática as ciências moder- conhecimento da pesquisa através de provas empíricas, de dados es-
nas derivam duas conseqüências principais. Em primeiro lugar, tatísticos, que, acredita-se, são a garantia da objetividade, do afasta-
conhecer significa quantificar. O rigor científico afere-se pelo mento do cientista para fazer o objeto falar, revelar-se ao pesquisador.
rigor das medições. As qualidades intrínsecas do objeto são, Esse esforço em busca de confiabilidade tem encontrado obstáculos
por assim dizer, desqualificadas e em seu lugar passam a impe- que esses pesquisadores, na última década, apoiados nos estudos
rar as quantidades em que eventualmente se podem traduzir. / antropológicos, procuram contornar afirmando que suas pesquisas
.../ Em segundo lugar, o método científico assenta na redução da são sempre localizadas e nunca podem ser generalizadas, que eles têm
complexidade. O mundo é complicado e a mente humana não o consciência do caráter interpretativo de suas análises. Mas, sempre
que podem, procuram, em seus textos, garantir sua legitimidade res-
pode compreender completamente. Conhecer significa dividir e
peitando critérios de objetividade – dados empíricos, dados estatísti-
classificar para depois determinar relações sistemáticas entre o
cos...; afinal, todo fenômeno social é de natureza subjetiva e como tal
que se separou. (Sousa Santos 1987:14-15)
não se deixa captar pela objetividade do comportamento, daí a impos-
Talvez isso explique a grande quantidade de pesquisas que re-
sibilidade de produzir previsões fiáveis já que os seres humanos mo-
correm a dados estatísticos nas ciências da linguagem e, particular-
dificam o seu comportamento em função do conhecimento que sobre
mente, na Lingüística Aplicada, voltada para o ensino-aprendizagem
ele adquirem os cientistas.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 191


E, assim, imerso num conflito constitutivo – embate entre a moderna do bem), o cientista/pesquisador se depara com situações
necessidade da busca do rigor científico (tão caro aos modernos) e a caóticas, que levam ao próprio extermínio (remédio e veneno da Far-
consciência da subjetividade perpassando toda e qualquer interpreta- mácia de Platão, conforme Derrida, 1972). Assim, o cientista aplica-
ção -, ao qual não consegue escapar, o lingüista aplicado prossegue sua do, talvez até mais do que todo cientista, se constitui de regiões de
pesquisa fazendo de conta que o conflito não existe, que a verdade o discursos em conflito, tensão entre certezas e incertezas, entre o um
espera no final do túnel. e o múltiplo, entre o desejo de controle e o inefável, o incontornável
Não se percebe ou se apaga, dada a naturalidade que o fazer que assolam o seu saber-fazer, conflito esse (tensão essa) que não
científico assume, que toda e qualquer pesquisa - assim como todo temos, ou raramente temos, a coragem de assumir, talvez por medo de
discurso e todo sujeito - esconde a multiplicidade, a heterogeneidade e não encontrarmos um lugar reconhecido dentro do discurso da ciência,
o caráter convencional e arbitrário que a constituem. lugar que desejamos ardentemente ocupar. Conseqüência da naturali-
Desse modo, é possível dizer que as vozes das perspectivas zação da visão mítica do cientista que representa a nobreza humana?
moderna e pós-moderna da ciência atravessam, de forma conflituosa e Gostaria de terminar lembrando um trecho de A Gaia Ciência
dissonante, a constituição identitária dos estudiosos da linguagem e, de Nietzsche a respeito do cientista em geral que parece sintetizar o
portanto, do lingüista aplicado. que dissemos:
Outro aspecto que nos interessa abordar, ainda que superficial-
mente, diz respeito à relação, inexistente para os modernos e constitutiva
Inventaram o sábio como o homem da inalterabilidade,
para os pós-modernos, entre ciência e política, entendendo política
impessoalidade, universalidade da intuição, como um e tudo ao
como lugar das relações sociais, da ideologia, dos interesses de toda
mesmo tempo, com uma faculdade própria para aquele conhe-
ordem, e ciência, como lugar da neutralidade, da isenção, da objetivida-
cimento invertido; eram da crença de que seu conhecimento é ao
de desinteressada:
mesmo tempo o princípio da vida. Mas, para poderem afirmar
A ciência e a tecnologia têm vindo a revelar-se as duas faces de tudo isso, tinham de enganar-se sobre seu próprio estado: ti-
um processo histórico em que os interesses militares e os inte- nham de se atribuir ficticiamente impessoalidade e duração sem
resses econômicos vão convergindo até quase à indistinção. mudança, desconhecer a essência daquele que conhece, negar a
(Sousa Santos: 35) tirania dos impulsos no conhecer e em geral captar a razão
como atividade plenamente livre, originada de si mesma; manti-
Ainda que não falemos da industrialização da ciência que pro- nham os olhos fechados para o fato de que também eles haviam
vocou, de um lado, relações mais autoritárias e desiguais entre os chegado às suas proposições contradizendo o vigente ou dese-
cientistas e, por outro, aprofundou ainda mais o fosso entre países jando tranqüilidade ou posse exclusiva ou domínio /.../ também
centrais e países periféricos – , sabemos, e não é novidade para nin- seu viver e julgar resultavam como dependentes dos
guém, que, para ser financiada uma pesquisa ou para que ela tenha antiquíssimos impulsos e erros fundamentais de toda existên-
prestígio no meio acadêmico-científico de nosso país, ela precisa ver- cia sensível. (§ 110, p.156)
sar sobre temas que preocupam outros países, facilitando o intercâm-
bio em nível internacional. Essa política da pesquisa afeta,
indubitavelmente, o pesquisador, complicando ainda mais sua tarefa: Referências bibliográficas
além de especialista (e, hoje, é preciso ser – considera-se um absurdo
que alguém entenda de subáreas afins como primeira, segunda língua e BHABHA, H. (1994) Locais da Cultura. Trad. Bras. Editora da UFMG,
tradução, por exemplo...), deve conhecer as novidades em termos de 1998.
pesquisa internacional e a elas aderir. Claro está, então, que toda pes- CORACINI, M. J. (1991) Um Fazer Persuasivo o discurso subjetivo
quisa carrega uma certa dose de interesses pessoais e grupais. da ciência. Campinas: Pontes Editores.
Finalizando, DERRIDA, J. (1972) La Pharmacie de Platon. Paris: Editions du
Seuil. Trad. Bras. A Farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras,
O “além” [pós-moderno, pós-colonialismo, pós-feminismo] não 1991.
é nem um novo horizonte, nem um abandono do passado. Iní- FOUCAULT, M. (1979) Microfísica do Poder. R.J.: Graal.
cios e fins podem ser os mitos de sustentação dos anos no meio GADAMER, H.-G. (1975) Truth and Method. London: Sheed &
do século, mas neste fin de siècle [ou neste início de século], Ward.
encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e tem- GIDDENS, A . (1991) As Conseqüências da Modernidade. SP: Edi-
po se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e tora da UNESP.
identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e LYOTARD, J-F. (1988).O Pós-moderno. R.J.: José Olympio Edito-
exclusão. (Bhabha: 1994:1; 1998:19) ra.
NIETZSCHE, F. (1987) Obras Incompletas. SP: Nova Cultural.
Daí, talvez, o sentimento de desorientação, de desestabilização, ROBERTSON, R. (1992) Globalização – Teoria Social e Cultura Glo-
de falta de direção que é sinalizado pelo prefixo pós (para além de) –
bal. Trad. Bras.: João R. Barroso. SP: Editora Vozes.
aqui e lá, de todos os lados... Incompletude, incerteza, insegurança
SOUSA SANTOS, B. de (1997) Um Discurso sobre as Ciências.
que é difícil confessar por sermos constituídos pela vontade de verda-
Porto: Edições Afrontamento. (9ª edição).
de que é ainda o que motiva e o que mantém a pesquisa e a construção
USHER,R. & Edwards, R. (1994) Postmodernism and Education.
do conhecimento.
London, New York: Routledge.
Apesar de o cientista se alimentar de certezas, de uma fé naqui-
lo que ele faz (fé moral), na capacidade de “melhorar” o mundo (visão

192 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A (des)ordem do sentido: da língua ao discurso
Maria Virgínia Borges Amaral
Universidade Federal de Alagoas

ABSTRACT: This work analyses the process of the sense production in the discourse, trying to demonstrate that the signification happens in some
conditions that the relation between the subjetivity and the objetivity operates. It proposes a relecture of the notin of reference, redefining this theoric
category from a perspective discoursive, considering that the objct and its designation are dialectly constituted by the social-historic basis, that is
really the basis of the process of the sense production.
PALAVRAS-CHAVE: Sentido, referência, objetividade, subjetividade.

1 – O histórico-concreto como base da significação interpretação de superfícies discursivas [para nós, seqüências
discursivas a partir de Courtine, 1981] dadas, tal ou tal regra particu-
Embora as categorias de análise da língua sirvam à AD (Análise lar intervém; a única coisa que se pode dizer é que tais regras necessa-
do Discurso), não é possível ‘aplicá-las’ tal qual são concebidas por riamente intervêm (12)”4. Então, para a AD, a linha fronteiriça que
uma teoria de natureza lógico/formalista. Isso significa que a AD revi- separa uma análise da língua e uma análise do discurso estará sempre
sa essas categorias e as re-significa dentro de uma outra concepção por ser definida. As hipóteses dessa demarcação, necessárias à prática
teórica, a do materialismo-histórico, na qual apóia o seu referencial da análise dos processos discursivos, conforme sugere Henry, contri-
teórico-metodológico. A noção de ‘expressão referencial’,1 por exem- buem para o procedimento da análise lingüística e da análise discursiva.
plo, poderá servir como um recurso lingüístico usado pelo locutor Entretanto, é bom lembrar o que já dissemos no início deste trabalho:
para se referir (ou não referir explicitamente, como ocorre no processo o objeto sobre o qual a análise é feita não é um objeto lingüístico stritcu
de ‘silenciamento’) a um sujeito, uma coisa, ou a um acontecimento. É senso, é um objeto sócio-histórico, onde o lingüístico intervém como
nesse sentido que o termo expressão referencial poderá responder aos pressuposto. (cf. Pêcheux, 1988).
nossos propósitos, se compreendido como uma ocorrência lingüística Isso posto, podemos avançar nessa reflexão verificando-se que
que se dá em um acontecimento discursivo, marcado pelo interdiscurso na AD se distinguem marcas lingüísticas – aquelas que dizem respeito
de uma formação ideológica. Assim é que consideramos, a partir de à propriedade do discurso - e propriedades do discurso – que estão
Bakhtin (1992:37), a não neutralidade da palavra ou da expressão na relacionadas ao contexto sócio-histórico, à cultura, à ideologia (cf.
constituição do discurso. Orlandi, 1988:25). Dessa forma, convenhamos, as marcas sozinhas
Assim, também, o sentido não se define unicamente como ‘sig- não são suficientes para produzir sentidos, para fazer funcionar os
nificado’ da palavra, nem como uma questão de ‘denotação’; o sentido efeitos do discurso. O funcionamento discursivo deve ser observado
é efeito do processo de relação de uma palavra com outras palavras em relação às suas condições de produção, que permitem remetê-lo
dentro de uma formação discursiva,2 “as palavras mudam de sentido à(s) formação(ões) discursiva(s) e, consequentemente, à(s)
segundo as posições daqueles que as empregam” (Orlandi, 1988:58). formação(ões) ideológica(s). É por isso que a AD procura pensar a
Trata-se das posições enunciativas, definidas nas formações questão do sentido e da referência em termos de processos constitutivos
discursivas, enquanto representantes das formações ideológicas. Em de significação, o que implica considerar a relação entre língua, histó-
outras palavras, ao enunciar algo o sujeito estará, sempre, falando de
algum lugar discursivo; representará um saber discursivo com o qual
estará concordando ou discordando, apoiado em um saber oposto,
1 Estamo-nos referindo à noção de expressão referencial na forma como é
mas sempre será uma posição que se efetiva em relação com um saber. definida por Lyons (1980:147), para quem a referência implica “uma
Por isso, as posições enunciativas são efeitos das posições do sujeito relação existente entre uma expressão e aquilo que essa expressão desig-
no mundo, porque o sujeito que enuncia o faz em condições específi- na ou representa em ocasiões particulares da sua enunciação”.
cas, constituídas por um complexo de dizeres que se sustentam em 2 As formações discursivas são o espaço onde os sentidos já dados,
formações ideológicas. Os dizeres, memória discursiva ou sedimentados em uma memória discursiva, se encontram e se constituem
interdiscurso, já existentes formam a memória do dizer do sujeito que em sentidos diferentes, os efeitos de sentido. As formações discursivas
enuncia. As posições do sujeito que enuncia no mundo são, pois, são, por isso, os sítios de significação, “espaço no qual se constituem os
sentidos” (Pêcheux, 1988:177). Nas formações discursivas se estabele-
afetadas pelo interdiscurso. É por isso que se reconhece, na AD, o
cem relações de formulações/reformulações, implicando os processos
primado do interdiscurso no processo de significação, “de tal modo discursivos: relações de significação que funcionam entre elementos
que os sentidos são sempre referidos a outros sentidos e é daí que eles lingüísticos.
tiram sua identidade”(Orlandi, 1996:30-1), da memória do dizer (do 3 Onde o sentido adquiriu um caráter material. Para a lógica formal, o
interdiscurso). sentido seria resultado de uma justaposição entre a língua que representa
O sentido na AD, pois, ganha um estatuto diferente do da o pensamento e a pessoa ou coisas referidas pela língua. Nessa linha de
perspectiva da lógica formal,3 para a qual o sentido estaria diretamen- pensamento teórico, o sentido de um enunciado seria o que ele represen-
te ligado àquilo que uma expressão traz para uma sentença; formaria ta do mundo, dos objetos, de um estado de coisas (cf. Guimarães, 1995:
23). Representação, sentido e referência teriam, todos juntos, confluência
uma unidade constituída pelos elementos que atribuem à sentença
na sentença submetida à condição de verdade ou falsidade.
relações sintagmáticas: o objeto referido e o que ele representa no 4 Na nota 12, Henry acrescenta que “sempre há língua, como base mate-
mundo, a sua predicação. Definir e delimitar o que é da língua e o que rial do discurso [...]. A linha de demarcação que separa efetivamente em
é do discurso não é uma atitude que antecede à análise. A língua - em todo processo discursivo concreto língua e discurso está, em princípio,
suas seqüências sintagmáticas - é o lugar material de realização dos sempre por ser definida”. A nosso ver, a base da linha de demarcação
efeitos de sentido. Mas segundo explicita Henry (1990: 59), “de um pode ser as seqüências discursivas que constituem o corpus da pesquisa. A
ponto de vista teórico, não se pode decidir a priori se na produção e na partir delas pode-se passar do funcionamento lingüístico para o funciona-
mento discursivo.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 193


ria e ideologia. A intervenção da história na língua se dá através das movimento de renovação nacional. Este movimento irá liberar o país da
relações que se estabelecem por ocasião do acontecimento do discur- fome, da miséria e da ignorância, criando condições de uma vida feliz e
so, entre memória discursiva (saber discursivo, memória do dizer, plena para o povo. (SEBRAE, 1994, fasc. 8, fl. 2).
interdiscurso) e efeitos de memória. Estamo-nos apoiando em Pêcheux A expressão toda essa revolução tem como referente os pro-
& Fuchs (1993:169), quando afirmam que “o ‘sentido’ de uma se- gramas de qualidade total, considerados “uma revolução no mundo
qüência só é materialmente concebível, na medida em que se concebe dos negócios” e, por isso, “uma arma para os pequenos na guerra da
esta seqüência como pertencente necessariamente a esta ou àquela competitividade”. O sentido de revolução é reproduzido no discurso
formação discursiva (o que explica de passagem que ela possa ter dos empresários a partir de outros enunciados que circulam, que con-
vários sentidos)”. vivem e fazem sentido no espaço de significação próprio desse discur-
Então, se o discurso é constituído dialeticamente pela relação so, a Formação Discursiva do Mercado. É desse espaço que Ishikawa
entre língua e história, a construção discursiva do “referente” está (1993: 38) manifesta o sentido de Qualidade Total (Círculo de Quali-
relacionada ao processo de formação imaginária, que se constitui na dade - CQ, como é conhecida e referida uma das modalidades do
relação do sujeito com o mundo, relação esta definida e orientada processo, no Japão):
pelas formações discursivas que se sustentam em uma dada formação 2 - O Controle de Qualidade é uma revolução no pensamento adminis-
ideológica. O sentido de uma expressão, também, não pode ser redu- trativo, portanto os processos de pensamento de todos os emprega-
zido ao que diz um sujeito ou a uma diversidade de dizeres dos precisam ser modificados.
sobre o mesmo referente. O ‘aqui’ e ‘agora’ do enunciado não signi- Enquanto Ishikawa atribui à revolução um caráter de conheci-
ficam por si mesmos, eles produzem sentido porque, ao serem ditos, mento, por se dar no pensamento administrativo, o locutor dos em-
mobilizam um conjunto complexo de outros dizeres (o pré-construído) presários, o SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio aos Pequenos e
instalados, produzidos e reproduzidos pela memória discursiva (o Micro Empresários), atribui a essa “revolução” um caráter político-
interdiscusso). social, ao considerá-la “um movimento de renovação nacional”. Nesse
O efeito de sentido, pois, é constituído a partir de uma sentido, o referente, o “objeto” referido, da expressão “revolução” é
relação parafrástica (cf. Henry,1990), considerando-se a noção de constituído na relação com o interdiscurso, isto porque não pode ser
paráfrase discursiva: uma noção “contextual”, visto que depende das considerado como um objeto dado no mundo; ele é “uma exterioridade
formações discursivas às quais o discurso está relacionado para nelas produzida pela linguagem”.5 Entretanto, este “objeto” não se reduz ao
produzir sentido. Assim, na questão da referência e do sentido, do que se fala dele, a sua objetividade é constituída pelo confronto de
ponto de vista discursivo, “não se trata de uma característica da vários discursos. O discurso empresarial, onde funciona a expressão
unidade, mas de suas possibilidades de funcionamento determinado revolução, é resultado de um processo de objetivação da subjetivida-
por tal ou tal formação discursiva, ligada a condições precisas de de, de concreção de um imaginário sócio-histórico, da relação entre
produção e interpretação do discurso” (Henry,1990: 52). discursos outros já existentes que, ao incorporarem sentidos já dados,
Quando, no processo de elaboração do discurso, um sujeito produzem novos. É essa relação entre discursos, essa relação de con-
falante ‘escolher’ uma palavra, nas possibilidades oferecidas pelo fronto entre discursos, que constitui a materialidade do referente. É,
sistema lexical da língua, estará sendo orientado por um saber pois, a partir do interdiscurso, apreendido no processo discursivo,
discursivo já sedimentado que faz parte de uma dada formação que podemos identificar o referente da expressão essa revolução.
discursiva, na qual toma uma posição e responde às exigências do Observe-se que, juntamente com o processo de referenciação,
objeto do discurso (ou tema, conforme Bakthin, 1992). Essas esco- temos tratado do sentido como sendo um efeito da relação entre sub-
lhas se realizam em função do seu querer-dizer, ou intuito discursivo, jetividade e objetividade, uma relação que só é apreendida se conside-
inscrito em uma dada formação discursiva, o que demarca a posição radas as condições sócio-históricas do dito - a relação entre o discurso,
do sujeito do discurso. Podemos, então, dentro de nossa linha teórica, história e ideologia. Não estamos falando de um ou qualquer sentido
dizer que é nas formações discursivas que os discursos recebem for- que poderia ser atribuído pelo sujeito interlocutor, de acordo com a
mas típicas de formulação, concretizadas como seqüências sua vontade, o que seria reconhecível em uma vertente “subjetivista”.
discursivas. Podemos dizer, também, que as palavras do discurso É nesse sentido que a referenciação (referência e referente) do funcio-
comportam ‘certos sentidos’, mas produzem efeitos de sentido nos namento discursivo é a sua objetividade - as condições sócio-históri-
processos discursivos, autorizadas pela formação discursiva à qual o cas em que foi produzido, e que, por ser assim, não pode ser apreen-
discurso que integra está aliado. dida diretamente, sem as mediações que o interdiscurso possibilita,
O fato de o campo lingüístico e o campo discursivo estarem tão por ser a memória discursiva, por ser história. Então, se o referente é
imbricados é mais uma constatação de que o discurso é uma particu- constituído pela relação entre o já dito, pelo interdiscurso, a expressão
laridade, um espaço do encontro entre língua, história e ideologia. A “essa revolução” refere-se à realidade objetiva das empresas (e em-
referencialidade discursiva, compreendida como efeito de sentido, presários) modernas que entenderam os “sinais do tempo”, que aderi-
um processo constitutivo de significação, reforça nossa compreensão ram à Qualidade Total e a partir da qual se reconhecem como capazes
de que o discurso é ação, é práxis, que produz e reproduz as relações de obter a fidelidade dos seus empregados e de operar mudanças na
entre os homens, na sua existência real. qualidade de vida do “povo”.
Observemos que ocorre um processo parafrástico entre as se-
2 – O sentido de revolução: uma análise do discurso empresarial qüências discursivas 1 e 2. A seqüência discursiva 1 - Toda essa
revolução conduzida a partir da mente e do coração das pessoas,
As formações ideológicas que sustentam um discurso de mu- dentro das empresas para fora,... - está articulada com a seqüência 2
dança de comportamento dos indivíduos nas relações de trabalho, - O CQ é uma revolução no pensamento administrativo - a partir do
chegam a sugerir que essas mudanças atingirão toda a sociedade e
resolverão os problemas sociais como a miséria e a ignorância, o que
representaria uma revolução da sociedade atual. No discurso empre- 5 A concepção de objeto do mundo estaria apoiada em uma posição formal
sarial essa questão é assim expressa: (que concebe a referência como uma relação da linguagem com um
objeto) ou psicológica (que concebe a referência como ato de um sujeito
1 - Toda essa revolução conduzida a partir da mente e do coração das
de particularizar um objeto no mundo) sobre a referência. Cf. Guimarães,
pessoas, de dentro das empresas para fora, caracteriza um verdadeiro 1995: 73 – 5.

194 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


referente que têm em comum: os programas de Qualidade Total. Esse que trabalham para um mesmo fim, ganhos produtivos e competiti-
referente é indicado na seqüência 1, especificamente no segmento vos (a lucratividade da empresa).
“Toda essa revolução”, a partir do funcionamento do dêitico essa e na
seqüência 2 pela expressão “O CQ (Controle de Qualidade)”. Tanto Conclusão
em uma seqüência como na outra, o referente é predicado como “re-
volução” - uma revolução (2) e essa revolução (1). Ao longo da análise que apresentamos, pudemos observar que
Esta articulação entre as duas seqüências nos autoriza a reco- não só o “objeto” referido – o programa de qualidade total - determina
nhecer que ambas também têm um espaço de significação comum: a o sentido da expressão revolução, que implicaria o entendimento de
Formação Discursiva do Mercado. Entretanto, é a seqüência 1 que que o significado estaria no próprio objeto, nem só o sujeito que se
explicita uma dimensão política, deliberando, para a Qualidade Total, refere, usando uma dada expressão para designar um acontecimento
um poder de “movimento nacional”, que irá “liberar o país da fome, no mundo empresarial, imprime sentido (onde o significado seria de
da miséria e da ignorância.” O sentido produzido pela expressão responsabilidade unicamente do sujeito). Compreendemos que o dis-
revolução nos dois enunciados remete para a esfera subjetiva; a revo- curso se constitui a partir dessa relação indissociável entre o sujeito,
lução é configurada no processo discursivo do discurso empresarial posicionado discursivamente, falando de um lugar discursivo, ocu-
como um movimento do pensamento, da mente e do coração no pando uma posição de sujeito num campo de significação, que nesse
mundo dos negócios. Esse efeito de sentido é autorizado na seqüência caso específico do discurso empresarial, é a formação discursiva
1 pelo segmento a partir da mente e do coração das pessoas [...] dentro mercadológica, e o objeto referido, constituído pelo acontecimento
da empresa e, na 2, pela expressão no pensamento administrativo. sócio-histórico que marca as mudanças no mundo dos negócios e nas
Mas esse efeito de sentido, produzido no funcionamento dos dois relações de trabalho regidas pelas leis do mercado. A “expressão
enunciados, tanto os aproxima como os distancia: para o enunciado 2, referencial” e o “referente” formam uma unidade dialética constitutiva
a revolução ocorre no pensamento administrativo, enquanto que para do processo de referenciação em que o sentido se desloca de um
o 1, a revolução parte do espaço administrativo (a empresa ) para fora, ambiente meramente lingüístico para um acontecimento discursivo.
o que caracteriza o movimento nacional referido, que irá criar condi-
ções de uma vida feliz e plena para o “povo”. Referências bibliográficas
A dimensão política que o sujeito do discurso imprime à pala-
vra revolução, especificamente na seqüência 2, não se confunde com AMARAL, M. Virgínia Borges. A (des)razão do mercado: efeitos de
o sentido de rompimento com as bases sociais e econômicas da soci- mudança no discurso da qualidade total. Tese de doutorado,
edade capitalista. Os limites da revolução, referida no discurso em- UFAL, Maceió, 1999.
presarial, estão dados no próprio discurso quando explicita a dimen- BAKHTIN, Mikail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:
são desse “acontecimento” - o pensamento, a mente e o coração das Hucitec, 1992.
pessoas. Há nesse enunciado um processo de cruzamento dos discur- COURTINE, Jean-jacques. Quelques problèmes theóriques et
sos religioso, gerencial e político; o discurso religioso se revela pela méthodologiques en analyse du discours: à propos du dicours
apropriação dos sentidos que as palavras mente e coração produzem
comuniste adressá aux chrétiens. In: Langages, N.62, Paris:
no discurso; o gerencial é representado pela palavra empresa, que é
Larousse, 1981, p. 9 - 127.
constituída por pessoas que têm mente e coração; dessa empresa (de
SEBRAE/FOLHA DE SÃO PAULO. Suplemento Qualidade Total.
dentro) sairia o movimento de renovação nacional, expressão que
8 fascículos, 13 de março de 1994/1º de maio de 1994.
tem um caráter político, sendo, portanto, própria de um discurso
GUIMARÃES, Eduardo. Os limites do sentido, um estudo histórico
político. Cruzando os discursos da religiosidade, do gerenciamento e
enunciativo da linguagem. Campinas: Pontes, 1995.
da política, o discurso empresarial leva seus interlocutores – micro e
pequenos empresários - a concluírem que a revolução, à qual se refe- HENRY, Paul. Construções relativas e articulações discursivas. Ca-
re, é um movimento que irá libertar o país [...] criando condições de dernos de estudos lingüísticos, 19. Org. Eni Orlandi e João
uma vida feliz e plena para o povo. Wanderley Geraldi. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1990.
Então, quando o discurso empresarial trata de revolução, atu- ISHIKAWA, Kaoru. Controle de Qualidade Total à maneira japone-
aliza uma rede de formulações já existentes acerca deste tema, mas sa. Rio de Janeiro: Editora Campus,1993.
essa atualização não implica uma legitimação dos sentidos político e ORLANDI, Eni. Interpretação, autoria, leitura e efeitos do trabalho
econômico atribuídos à palavra revolução, quando inscrita em uma simbólico. Petrópolis: Vozes, 1996.
formação ideológica oposta à ideologia dominante da sociedade bur- ____. A leitura proposta e os leitores possíveis. In: Eni orlandi (org.)
guesa; ao contrário, o repetível é atualizado para que se processe um A leitura e os leitores. Campinas: Pontes, 1998.
efeito de deslocamento de sentido, os traços políticos que estão na PÊCHEUX M. & FUCHS,C. A propósito da análise automática do
base de significação - um processo sócio-histórico que deverá alterar, discurso: atualização e perspectivas. In: F.Gadet; T. Hak (orgs.)
radicalmente, o modo de produção capitalista - do termo revolução Por uma análise automática do discurso. Uma introdução à
são dissolvidos no discurso empresarial. Um sentido de luta de clas- obra de Michel Pêcheux. Campinas: Editora da Unicamp, 1993.
ses, para o qual a expressão aponta, é deslocado para o sentido do PÊCHEUX, Michel, (1975). Semântica e Discurso, uma Crítica a
consenso, da responsabilidade, para o sentido de grupo ou equipe Afirmação do Óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1988.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 195


Revisitando o sujeito em análise do discurso.
Belmira Magalhães
Universidade Federal de Alagoas

ABSTRACT: The work has the objective of reput the subject dicussion in discuss analisys (DA), instigating the debate about the authory possibility
in the discusses. For that we recorate to the theoric referential of DA, pricipally that one expressed by Pêcheux and Courtine; the Bakhtin position
about the intencionality of wanting to say and we propose a rescue of Marx’s formulations about the relations between subjetivity and objetivity.
PALAVRAS-CHAVES: discurso, sujeito, autora

Com este texto nos propomos recolocar a discussão acerca dos de gestão da produção, que se instala, principalmente na França, uma
limites e possibilidades da autoria. discussão propondo uma nova forma de compreensão da linguagem
A partir dos anos sessenta a discussão da relação subjetividade/ que discute com a lingüística e dialoga com as ciências sociais e a
objetividade ganha nova dimensão, tanto no discurso filosófico como psicanálise, que se denominou Análise do Discurso -AD.
no científico e, principalmente, no político. Há um deslocamento da Na verdade, todo o debate que a AD suscita tem por fundamen-
classe como única identidade coletiva, o sujeito de classe, e uma incor- to a reflexão do processo de apreensão do mundo e dos diversos níveis
poração de outras particularidades ao cenário que estuda o sujeito. A em que isso pode efetuar-se. A apreensão cognitiva desse real só é
possibilidade de interferência do sujeito na lógica da objetividade é possível através de categorias intelectivas que tornem possível a cap-
questionada a partir de duas posições aparentemente contraditórias tação da relação entre singular e universal. Temos, portanto, duas
mas que levam ao mesmo lugar epistemológico. Uma delas decreta a ordens de fenômenos: uma, que diz respeito à coisa em si, e outra, que
morte da teoria do sujeito coletivo atrelado à noção de classe, na se refere à possibilidade de apreensão efetiva da lógica das coisas.1 A
medida em que as contradições que mantinham esses sujeitos estari- primeira faz parte do objeto; a segunda, do sujeito cognoscente. O
am sendo substituídas por contradições entre grupos de identidade, processo do conhecimento exige dois tipos de categorias: as ontológicas
não necessariamente antagônicos. A outra desloca o conflito de gru- – que embora recriadas pela razão, pelo sujeito, buscam retratar fiel-
pos para conflitos interpessoais resolvidos pelas identidades, a partir mente o movimento do objeto e as categorias reflexivas, criadas pela
de uma identificação societária baseada em parâmetros que negam a razão, que partem do conhecimento do real e criam estruturas lógicas,
noção de classes sociais. As duas posições, ao mesmo tempo que representações que surgem na mente humana, são reflexos do real
exaltam os sujeitos, matam a possibilidade de interferência substanci- captados como representações da consciência. Não possuem estas
al na realidade, pois a subjetividade ou tem apenas o papel de propor uma existência autônoma em si mesmas. (Pontes,1995:59).
rearranjos da objetividade ou pode tudo, mas apenas no campo das Toda práxis humana pressupõe a existência de duas categorias
individualidades e dos relacionamentos individuais. ontológicas – subjetividade e objetividade2 , que possuem autonomia,
Para a crítica dessas concepções sobre a subjetividade segui- mas que não podem ser pensadas separadamente. O mundo real e o
mos com Marx, quando este elabora a crítica ao idealismo e ao mate- sujeito cognoscente não se confundem, embora estejam essencialmen-
rialismo vulgar, incapazes de uma compreensão correta da realidade. te imbricados.
O materialismo – vulgar – anula o autor ao não compreendê-lo en- A materialidade discursiva traz a marca da subjetividade que a
quanto sujeito sensível, capaz de interferir na objetividade, através de produziu, não no sentido de ser a expressão da individualidade do
uma teleologia que tem implícita a compreensão da lógica dessa obje- autor, pois o que está ali expresso é a relação entre uma individualida-
tividade; na verdade, há um “assujeitamento” do sujeito à lógica do de, posta em um tempo e espaço definidos historicamente, e uma
real, sendo anulada qualquer possibilidade de transformação a partir realidade que está sendo representada por essa individualidade, com
da subjetividade. consciência do que está fazendo, mas sem o domínio de todas as
Por outro lado, o idealismo, procurando dar vida ao sujeito, faz alternativas postas por essa mesma realidade. Marx sintetiza a relação
isso de forma abstrata, permitindo ao sujeito apreender o real prescin- entre subjetividade e objetividade:
dindo do efetivo conhecimento do mesmo, retirando do real sua lógica A produção de idéias, de representações, da consciência está,
própria, e imputando ao sujeito a capacidade de imprimir lógica ao desde o início, diretamente entrelaçada com a atividade mate-
real, tornando o sujeito autor absoluto da objetividade, fonte de senti- rial dos homens, como a linguagem da vida real. O represen-
do que acaba por imobilizá-lo na medida em que admite tantos discur- tar, o pensar, o intercâmbio espiritual, dos homens, aparecem
sos quanto são os indivíduos, impossibilitando a comunicação, o que aqui como emanação direta do seu comportamento material.
fragmenta a relação social em geral. (Marx,1965:21).
Marx, ao refutar essas duas vertentes de possibilidades do co- A teleologia3 que cada sujeito imprime ao discurso só é possí-
nhecimento, dá um passo decisivo para estabelecer o papel da subje- vel porque essa individualidade foi capaz de antever aspectos do
tividade na construção do ir-sendo do ser social, ou seja, é a subjetivi- movimento da realidade. No entanto, após esse ato, não há condições
dade que instaura a possibilidade de um mundo humano/social, mas de prever a forma como o discurso será absorvido socialmente, nem o
não uma subjetividade autônoma que se impõe idealmente à realidade.
Na verdade, tem-se uma subjetividade objetivada, isto é, um sujeito
que possui história, e por isso, limites na construção ideal e efetiva de
suas realizações. O fato de não absolutizar a capacidade do sujeito de
criar o que quiser, a partir única e exclusivamente de sua vontade, não
1 Coisa aqui não significa apenas objetos, mas também idéias, ciência,
retira da subjetividade a capacidade criadora nem a importância crucial produção artística.
de sua ação para a reprodução do ser social. 2 Para melhor desenvolver esse tema, veja Marx, 1978.
É no bojo dessa crise do pensamento contemporâneo, refletin- 3 Teleologia aqui significa o pensar, a partir das necessidades práticas, com
do as mudanças ocorridas nas formas de produzir e, consequentemente, o objetivo de imprimir marcas na objetividade.

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limite dessa absorção. O uso ideológico/prático de qualquer Pêcheux (1988) e Courtine (1981), são fundamentais para que se
criação humana, inclusive o discurso, não está sob o controle do cria- ponha a possibilidade da autoria e estão diretamente ligadas à consti-
dor, após a inserção no meio social. Por mais previsível que seja a tuição da individualidade que realiza o discurso.
forma de utilização da criação humana, nunca há certeza de quais serão Pode-se afirmar, então, que a voz do mundo é a voz do sujeito,
os resultados da objetivação. que é o único ser capaz de falar do mundo e de si; sendo o mundo o
Considerando o discurso uma práxis humana que permeia to- limite, é levado a falar apenas o que deste consegue apreender, de vez
das as relações sociais e que se encontra no âmago da relação entre que só pode falar de si enquanto ser no mundo, isto é, histórico.
subjetividade/objetividade, pode-se afirmar que o ser social tem como Assim é que não há uma individualidade, nem produção individual,
condição ontológica de ser sujeito, capacidade que significa a possibi- que não seja essencialmente social e histórica.
lidade de imprimir de forma consciente4 marcas na objetividade, um Como parte do ser social, a subjetividade pode ter diversos
meio de suprir antigas e novas necessidades. graus de conscientização sobre o seu estar no mundo e, em conseqüên-
Essa característica do sujeito o torna aparentemente dotado de cia, ter maior ou menor possibilidade de compreendê-lo, o que coloca
poder absoluto para transformar o real, no entanto, ele se depara com inúmeras possibilidades de autoria, mas, a explicação para sua ativida-
um limite intransponível, pois colocado fora de si – pertencente ao de no mundo não será dada por nenhuma condição que não possua
locus da objetividade – que detém o limite da ação da subjetividade. A elucidação na própria sociabilidade, mesmo que a subjetividade con-
subjetividade que percebe carências precisa conhecer a legalidade da temporânea ao sujeito que faz determinada leitura do mundo não
objetividade para nela interferir, mas apenas dentro das possibilida- possa alcançá-la, tendendo a buscar soluções transcendentais, igno-
des permitidas por essa mesma objetividade e, efetivamente, com o rando as inovações.
nível de conhecimento que essa subjetividade, que é individual e histó- Entende-se, pois, a afirmação da concepção marxiana de que a
rica, possui. vida individual e a genérica não constituem entidades autônomas que
Nos atos singulares de criação ou de recepção, de aprovação ou se relacionam mas, ao contrário, são parte de um todo impossível de
de recusa, os indivíduos podem ter desde uma participação mínima ser dissociado. Na verdade, não há individualidade sem gênero huma-
até uma interferência decisiva no processo geral, sendo, nesse sentido, no, como não há generidade sem indivíduos capazes de se reconhece-
a linguagem entendida como medium capaz de possibilitar, ao mesmo rem como tais e por isso conscientes de seu estar-no-mundo Nas
tempo, a fixação e a transformação do código. palavras de Marx,
Quanto mais a subjetividade tender para o descobrimento e
revelação do novo, através da criação de discursos que tomem uma A vida individual e a vida-espécie não são coisas diferentes,
posição a favor das novas possibilidades surgidas, tanto mais terá conquanto o modo de existência da vida individual seja um
condições de promover o movimento dialético necessário a uma inter- modo mais específico ou mais geral da vida-espécie, ou da
ferência efetiva no real. vida-espécie seja modo mais específico ou mais geral da vida
Sem a interferência da subjetividade é impossível qualquer es- individual. (Marx,1964:125).
colha entre as alternativas existentes na objetividade, que funcionaria
apenas com sua lógica interna ou ao sabor do acaso.5 Na verdade, é o Como vimos, a subjetividade elucidará (ou não) os problemas
surgimento da subjetividade que instaura o ser social; e a história do advindos das relações sociais; essa intervenção da subjetividade é o
gênero humano é a história da intervenção da subjetividade na objeti- espaço fundador da liberdade humana, na medida em que o processo
vidade. É nessa relação que se consubstancia a força do sujeito como de auto-construção do ser social implica sempre possibilidade de
criador de discursos. escolha.7
No entanto, o limite da subjetividade dado pela objetividade O discurso pressupõe sempre um ato consciente, o sujeito que
não permite qualquer tipo de intervenção, mas apenas aquelas que o realiza tem consciência do que quer realizar, embora não tenha con-
condizem com a legalidade desta. Nesse sentido é que uma subjetivi- trole total sobre a capacidade de dar forma ao seu objetivo, nem da
dade necessita do conhecimento mais apurado possível da lógica do totalidade de interpretações que poderão advir de sua intencionalidade8
objeto a sofrer sua interferência, para que as práticas possuam possi- expressa na obra. Essa intencionalidade é reafirmada por Bakhtin
bilidades de inovação. (1992), através do conceito de intuito discursivo, que pressupõe o
A condição de autor é diretamente proporcional ao domínio de querer dizer do autor de um texto:
um conjunto formado pelo conhecimento do código da linguagem, da Em qualquer enunciado, desde a réplica cotidiana
lógica da objetividade e pela possibilidade dada pela objetividade de monoleximática até as grandes obras complexas científicas ou
intervenção na realidade. A partir da perspectiva que estamos discu- literárias, captamos, compreendemos, sentimos o intuito
tindo, todo discurso tem um sujeito ligado intrinsecamente às condi- discursivo ou querer dizer do locutor que determina o todo do
ções de produção expressas pelas formações ideológicas e formações enunciado: sua amplitude, suas fronteiras. [...] O intuito, o
discursivas, que o afetam enquanto posicionamento social, isto é, elemento subjetivo do enunciado, entra em combinação com o
lugar social de onde parte para a elaboração do discurso, mas também objeto do sentido – objetivo – para formar uma unidade
há um autor, que é a expressão da relação entre uma individualidade indissolúvel, que ele limita, vincula à situação concreta (única)
(histórico-social) e a posição de sujeito (forma-sujeito), definido
anteriomente. Dependendo da relação entre estas partes , que implica
no conjunto acima explicitado, pode-se estabelecer um caminho que
4 Consciente, aqui, não significa o domínio racional de todo o processo,
vai desde o discurso do porta-voz, onde o papel do autor fica mas apenas a intencionalidade do sujeito de pensar uma ação. Para desen-
subsumido, quase inteiramente à força do sujeito, até, por exemplo, o volvimento do tema, ver Lukács (1979), e Bakhtin (1990).
discurso da arte que estabelece uma relação igualitária média entre 5 Na sociedade contemporânea esta capacidade está ligada ao
sujeito e autor.6 posicionamento de classe. Ver Marx, 1978
As noçãos de “esquecimento um”, que preconiza a ilusão do 6 Para desenvolvimento da autoria na arte, ver Magalhães,1999.
indivíduo sobre a possibilidade de ser criador exemplar de um discur- 7 Para o estudo da liberdade do ponto de vista marxiano, ver Tonet
so e a de “esquecimento dois”, que permite à individualidade imagi- (1997).
8 Intencionalidade que significa o pôr do sujeito no mundo, o agir com
nar-se com o domínio total sobre seu discurso, desenvolvida por
objetivo, a partir de uma reflexão prévia sobre o ato.

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da comunicação verbal, marcada pelas circunstâncias indivi- foram revisitados a partir da relação entre as determinações sociais da
duais, pelos parceiros individualizados e suas intervenções objetividade e da liberdade de escolha oferecida por esta objetividade
anteriores: seus enunciados. (p.300). ao sujeito, discutida na concepção ontológica do pensamento de Marx.
Pela conceituação foucaultiana de formação discursiva apropri-
A relação conteúdo e forma está sempre indissociada: a inten- ada e ressignificada pela AD, o sujeito é, ao mesmo tempo, interpela-
ção do autor é objetivada no discurso sob determinada forma, que não do pela ideologia e determinado pelo Outro do inconsciente, ficando
poderia ser outra, para aquela autoria naquele momento, constituindo dessa forma assujeitado por essas determinações que não lhe permi-
o momento da elaboração do discurso, isto é, o resultado do refletir de tem, ou cerceiam, a expressão de autoria. Para Marx, as relações entre
uma individualidade historicamente dada sobre algum aspecto da rea- objetividade e subjetividade são determinadas pela primeira, mas a
lidade, a marca da individualidade no real. subjetividade possui um espaço de liberdade que pode ou não ser
Na verdade estamos trabalhando no interior dos conceitos de exercido inteiramente pelo sujeito.
inter e intra discurso. O conteúdo, a temática do discurso, relaciona-se A ideologia, do ponto de vista marxiano, não funciona unica-
a outras temáticas que podem concordar, discordar, complementar, mente como falsa consciência, mas traz também, contraditoriamente,
etc. com a posição do autor , isto é, há uma série de interdiscursos que a possibilidade, para a posição dominada da sociedade, de rever todos
dialogam de diferentes maneiras, com o discurso em elaboração, nem os liames dessas contradições e propor alternativas inteiramente ino-
sempre com a consciência do autor. Por outro lado, através do esque- vadoras, marcando a face da autoria. Nesse sentido, quanto maior for
cimento dois, que possibilita ao autor pensar que domina inteiramente a submissão do sujeito à ideologia dominante, maior será seu
os signos e símbolos lingüísticos que usará no discurso, este elaborará “assujeitameto”; no entanto, há possibilidades de rompimento desse
a materialidade discursiva que, como vimos, trará necessariamente as mesmo “assujeitamento”, possibilidades que estão presentes na pró-
marcas do sujeito e do autor. pria realidade/objetividade.
É com essa concepção que estamos tratando das marcas de
autoria, o que não requer, sob essa perspectiva, nenhuma incursão Referências bibliográficas
sobre as características psicológicas do autor, como forma explicativa
de sua composição autoral. Bakhtin, ao discutir a relação entre objeti- BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 5. ed. Tra-
vidade e consciência, sintetiza a questão da seguinte forma: dução de
Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1990.
Tudo que dissemos acima conduz ao seguinte princípio _______________ Estética da criação verbal. Tradução de Maria
metodológico: o estudo das ideologias não depende em nada Ermantina Galvão Gomes Pereira. São Paulo: Martins Fontes,
da psicologia e não tem nenhuma necessidade dela. Como ve- 1992.
remos, é antes o contrário que é verdadeiro: a psicologia obje- COURTINE, JJ. Analyse du discours politique. Paris: Larouse, 1981
tiva deve se apoiar no estudo das ideologias. (Bakhtin,1990:36). FOUCAULT, M. L’Ordre du discours. Paris: Gallimard, 1971.
LUKÁCS, Georg. Os princípios ontológicos fundamentais de Marx.
Na realidade, está-se afirmando que existe sempre um projeto Tradução
consciente de autoria, trazendo implícita uma visão sobre a realidade de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.
refletida, que pode ser expresso de formas as mais diversificadas, MARX, Karl. A ideologia Alemã. Tradução de Waltensir Dutra e
formas estas sempre relacionadas aos respectivos conteúdos e con- Florestan Fernandes.Rio de Janeiro: Zahar, 1965.
dicionadas pelas contradições sociais que afetam tanto o sujeito ___________ Elementos fundamentales para la crítica de la econo-
como o autor. mia politica. (GRUNDISSE) 1857-1858. México: Siglo XXI, 1978
MAGALHÃES, Belmira. Os desejos de sinha Vitória e a construção
Se o conteúdo do psiquismo é tão social quanto a ideologia, por autoral de Graciliano Ramos em Vidas Secas. Tese de
outro lado, as manifestações ideológicas são tão individuais doutoramento. Maceió,UFAL,1999.
(no sentido ideológico deste termo), como psíquicas. Todo pro- PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica a afirmação do
duto da ideologia leva consigo o selo da individualidade do seu óbvio.
ou dos seus criadores, mas esse próprio selo é tão social quan- Trad. Eni Orlandi et alii. Campinas: Unicamp, 1988.
to todas as outras particularidades e signos distintos das ma- PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni
nifestações ideológicas. Assim, todo signo, inclusive o da indi- Orlandi.
vidualidade, é social. (Bakhtin, 1990:59). Campinas: Pontes, 1990.
PONTES, R.N. Mediação e serviço social. São Paulo: Cortez, 1995.
Sintetizando nossa incursão sobre a questão do sujeito em AD, TONÉ, I. Mercado e Liberdade. Maceió: EDUFAL, 1997.
vimos que os conceitos de formação discursiva e de forma-sujeito

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Lugares de enunciação e discurso
Mônica G. Zoppi Fontana
Universidade de Campinas - UNICAMP

RÉSUMÉ: Cet article développe une réflexion sur l’efficace idéologique, dans le cadre théorique de l’Analyse de Discours, en particulier dans
l’espace ouvert par la figure de l’interpellation idéologique du sujet du discours. On présente un essai de délimitation du concept de lieux
d’énonciation par rapport à ceux de forme-sujet et des positions-sujet qu’y se définent.
PALAVRAS-CHAVE: enunciação, ideologia, subjetivação, poder

Gostaria de começar esse trabalho fazendo uma referência au- que esse lugares estão representados nos processos discursivos
tobiográfica. O título de um trabalho publicado na Argentina (1992), em que são colocados em jogo. Entretanto, seria ingênuo su-
incluía como subtítulo: EL PODER DE ENUNCIAR. Observando à por que o lugar como feixe de traços objetivos funciona como
distância (temporal e teórica) esse subtítulo, percebo e faço trabalhar tal no interior do processo discursivo; ele se encontra aí re-
a ambigüidade do sintagma O poder de enunciar, na sua dupla leitura presentado, i.e., presente, mas transformado [...] Se assim ocor-
como possibilidade de dizer/eficácia do dizer. Em um texto mais re, existem nos mecanismos de qualquer formação social re-
recente (o livro Cidadãos modernos. Discurso e representação polí- gras de projeção, que estabelecem as relações entre as situa-
tica, 1997), volto a encontrar essa antiga inquietação, agora já nomea- ções (objetivamente definíveis) e as posições (representações
da como lugar de enunciação na análise que desenvolvo sobre o dessas situações). (Pêcheux, 1969: 82)
discurso da transição na Argentina e mais especificamente sobre o Algumas páginas antes dessa citação, no mesmo texto, ainda
funcionamento da figura do porta-voz. Nesse texto, cujo objetivo é descrevendo as condições de produção do discurso, Pêcheux ilustra
trabalhar o fundamento discursivo da representação política, conside- com o exemplo de um discurso pronunciado por um diputado e afirma:
ro a figura do porta-voz como um lugar de enunciação e enquanto tal, O que diz, o que anuncia, promete ou denuncia não tem o
como uma das formas históricas do sujeito de enunciação (Guilhaumou, mesmo estatuto conforme o lugar que ele ocupa; a mesma
1989). Na análise apresentada nesse meu livro gostaria de destacar, declaração pode ser uma arma temível ou uma comédia ridí-
em primeiro lugar, a relação estabelecida entre certos funcionamentos cula segundo a posição do orador e do que ele representa, em
enunciativos e o processo de configuração (e de legitimação) das rela- relação ao que diz [...] Podemos citar aqui o conceito de “enun-
ções de representação política em um espaço institucional ( no caso, ciado performativo” introduzido por J.L. Austin, para subli-
a presidência da Nação). Em segundo lugar, a afirmação teórica da nhar a relação necessária entre um discurso e seu lugar em
determinação dos funcionamentos enunciativos pelo interdiscurso, o um mecanismo institucional extralingüístico. (Pêcheux, 1969:77)
que leva a estabelecer uma relação necessária de um lugar de enunciação Queremos destacar nessas citações, por uma lado, a considera-
(a figura do porta-voz, p.e.) com as posições de sujeito que o definem ção dos efeitos produzidos por uma enunciação em relação ao lugar a
e das quais é uma dimensão constitutiva. Em terceiro lugar, a decisão partir do qual ela é proferida, por outro lado, a relação desse lugar com
metodológica de descrever um lugar de enunciação a partir de funcio- um mecanismo institucional do qual retira sua eficácia.
namentos discursivos tais como metáfora, metonímia e dêixis discursiva, Essas formulações, que foram revisadas criticamente pelo pró-
o que supõe não reduzir essa descrição ao jogo polifônico das figuras prio autor em textos posteriores (Pêcheux, 1975, 1983) encontravam
enunciativas (locutor, enunciador). seu fundamento nos procedimentos de construção do corpus adotados
Retomando essas questões, e especificamente as elaborações na AAD69, que privilegiavam condições de produção estáveis e um
sobre a noção de lugar de enunciação, neste trabalho gostaria de desen- conceito de formação discursiva homogênea, fechada sobre si mesma
volver algumas considerações que são fruto de um trabalho de reflexão e fortemente ancorada em uma inscrição institucional. Porém, vale a
desenvolvido em conjunto com alunos e orientandos1 . A problemáti- pena destacar que no mesmo texto já se encontram os elementos que
ca que abordamos através da noção de lugar de enunciação poderia bloqueiam uma interpretação pragmática, retórica ou sociológica das
resumir-se como uma reflexão sobre a divisão social do direito de CP, ao definí-las como sedimentação de discursos anteriores. Assim,
enunciar e a eficácia dessa divisão e da linguagem em termos da já é possível descobrir nesse texto inicial o germe da noção de
produção de efeitos de legitimidade, verdade, credibilidade, autoria, interdiscurso, que será o carro-chefe da teoria no seu desenvolvimen-
circulação, identificação, na sociedade. Posto dessa maneira, o tema já to posterior.
foi objeto de numerosos estudos, principalmente de orientação soci- Por oposição à tese fenomenológica que colocaria a apreen-
ológica, etnográfica e pragmática. Minha reflexão se inscreve em uma são perceptiva do referente, do outro e de si mesmo como
posição teórica que se define em relação à Teoria da Análise do Dis- condição pré-discursiva do discurso, supomos que a percep-
curso (doravante AD), filiada a M. Pêcheux. Gostaria também de ção é sempre atravessada pelo “já ouvido” e o “já dito”,
frisar que as colocações que se seguem apresentam o estado atual de através dos quais se constitui a substância das formações
uma reflexão que está em andamento, o que justifica o caráter incom- imaginárias enunciadas [...] um estado dado das CP deveria
pleto e provisório de algumas afirmações. ser compreendido como resultado de processos discursivos
Em seu texto Análise automática do discurso de 1969 (doravante sedimentados: vê-se que é pois impossível definir uma origem
AAD69), Pêcheux, ao explicitar os elementos que constituem as con- das CP (p. 85-87)
dições de produção do discurso afirma:
A e B designam lugares determinados na estrutura de uma
formação social, lugares dos quais a sociologia pode descre-
ver o feixe de traços objetivos característicos: assim, p.e., no 1
Por isso, quero fazer pública minha dívida e citar seu nomes como
interior da esfera da produção econômica, os lugares do “pa- interdiscurso dessa minha prática de escrita. Sou grata a: Neuza Zattar,
trão” (diretor, chefe de empresa, etc.), do funcionário de re- Ana Josefina Ferrari, Vera Regina Martins e Silva, José Guillermo Milán
partição, do contramestre, do operário, são marcados por Ramos, Águeda Cruz Borges, Lucimar Ferreira, Gislaine Pinto Ferreira,
propriedades diferenciais determináveis. Nossa hipótese é a de Lúcia Insarraulde, Josefa Gomes Farias, Mônica Oliveira Santos, Carmen
Agustini e M. Virgínia Borges Amaral.

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Ancorados nessas afirmações, e desconhecendo a ênfase do definição que a considera como unidade dividida, heterogênea em rela-
autor em apontar para o fato de que os lugares se encontram presen- ção a si mesma, constitutivamente afetada pela contradição, delimita-
tes mas transformados por regras de projeção que permitem da por fronteiras instáveis e em contínuo processo de reconfiguração.
passar de situações objetivas para posições representadas, alguns A partir dessa caracterização da FD, Indursky conclui no seu trabalho
autores filiados a AD, trabalham a questão dos lugares de enunciação que a forma-sujeito que organiza uma FD, é portanto, necessariamen-
e da eficácia do discurso, pressupondo uma tipologia poucas vezes te heterogênea. Citando à autora:
explicitada de lugares sociais, gêneros discursivos, instituições, comu- “estamos diante de um conjunto de diferentes posições de su-
nidades. Tal parece ser o caso de Maingueneau (1990:32), que afirma jeito, que evidenciam diferentes formas de se relacionar com a
que a AD prefere formular as instâncias de enunciação em termos de ideologia e é esse elenco de posições-sujeito que vai dar conta
“lugares”, visando a enfatizar a preeminência e a preexistência da da forma-sujeito” (Indursky, 2000:76)
topografia social sobre os falantes que aí vêm se inscrever. Embora o Para continuar com nossa reflexão, é preciso lembrar que
autor relativize essa sua afirmação citando a J.P. Faye que observa que Courtine (1981), que propôs (através da noção de enunciado dividi-
os lugares sociais só podem existir através de uma rede de lugares do) considerar as FD como divididas, instáveis e heterogêneas, define
discursivos, os quais se apoiam em uma economia distinta, poucas (inspirado em Foucault) a FD como domínio de saber e caracteriza a
páginas adiante volta a aparecer a questão de uma topografia social forma-sujeito de uma FD como sujeito universal de saber. O autor
pela noção de comunidade discursiva daqueles que produzem, que descreve “o conjunto das diferentes posições de sujeito em uma FD
fazem com que o discurso circule, que se reúnem em seu nome e nele como modalidades particulares de identificação do sujeito da
se reconhecem (idem:54). Assim, Maingueneau pode concluir susten- enunciação ao sujeito do saber” (Courtine, apud Indursky, 2000:76).
tando que as formações discursivas [...] também se opõem pelo modo Neste ponto interessa trazer para o debate algumas críticas e
de funcionamento dos grupos que lhes estão associados (idem:55, revisões elaboradas por Courtine &Marandin(1983). Os autores de-
grifos meus). Essa oscilação definicional e um certo ecletismo nas fendem:
filiações teóricas (em um mesmo capítulo recorre a Ducrot, Parret, 1- o primado do interdiscurso, isto é, e aqui recorro à citação
Flahaut, Foucault, Guilhaumou, Faye, Bourdieu), são efeito, na nossa desse texto: o interdiscurso não é uma “ordem do discurso”,
opinião, da ausência (presente nos seus efeitos) de conceitos trabalha- uma articulação de FD que compartimenta, canalizando a pro-
dos no quadro do materialismo histórico, principalmente o de interpe- dução incessante de discurso, mas é aquilo que determina a
lação ideológica e forma-sujeito, evitados cuidadosamente ou descar- reconfiguração das FD onde se constróem os enunciados. Desta
tados com pressa. maneira, a interpelação/identificação do sujeito do discurso so-
O meu esforço de teorização neste trabalho (ainda que inicial) fre os efeitos da contradição ideológica que inequaliza as regiões
se caracteriza como uma tentativa de pensar o conjunto de questões heterogêneas do interdiscurso (1983:31);
levantadas até aqui através da noção de lugar de enunciação (e sua 2- a determinação pela instância ideológica dos enunciados e
eficácia ideológica) no quadro teórico da figura da interpelação ideoló- da forma-sujeito, ou seja, conceber a instância ideológica como
gica e considerando o processo de constituição do sujeito do discurso aquilo que determina o interdiscurso, que determina nele a
nas relações de identificação estabelecidas com a forma-sujeito e as circulação, os deslocamentos, os retornos, as coagulações dos
posições de sujeito definidas nas FD que o afetam. Neste sentido, enunciados (ibidem), o que permite questionar a noção de Apa-
retomo a crítica que o próprio Pêcheux (1983) realizou a apresentação relhos Ideológicos de Estado entendidos como ilhotes de inscri-
das condições de produção em AAD69, apontando por um lado à ção das práticas discursivas (e dos rituais enunciativos que as
perigosa aproximação que esse texto permitia, apesar das ressalvas já conformam), enquanto discurso autônomo de cada aparelho.
citadas, entre condições de produção e situação concreta de enunciação Desta maneira, se desautomatiza a eficácia ideológica das práti-
de um sujeito falante; e por outro lado, aos pressupostos que susten- cas discursivas, já não mais amarrada a uma inscrição
tavam a prática analítica, que estabeleciam na construção do corpus institucional;
uma relação quase imediata entre condições de produção estáveis, 3- o fato de que um FD e sua forma-sujeito além de se definirem
formações discursivas homogêneas e discursos identificados a priori como domínio de saber, incluem funcionamentos que Marandin
pelas suas inscrições institucionais e/ou ideológicas. caracteriza como modalidades enunciativas. Uma FD impõe
Porém, como apontado por Pêcheux na sua análise do desen- regras intra-discursivas e modalidades enunciativas que in-
volvimento da teoria do discurso, a emergência de novos procedi- formam o discurso de um sujeito interpelado por essa FD.
mentos da AD, através da desconstrução das maquinárias discursivas Assim como o discurso não é um puro espaço de produção de
(1983:315) afastou, pelo desenvolvimento do conceito de interdiscurso sentido, do mesmo modo, o indivíduo não é interpelado no
e a descrição dos mecanismos de interpelação ideológica contraditória, discurso como sujeito sob a forma universal do sujeito de
a teoria dessa primeira versão que, como já demonstramos, abria espa- enunciação, mas dentro de um certo número de lugares
ço para que outros autores definissem o sujeito do discurso a partir de enunciativos que fazem que uma seqüência discursiva seja uma
uma “topografia social” de lugares. arenga, um sermão, ou melhor, uma certa forma de arenga, de
Em textos posteriores, Pêcheux (1975) afirma que “os indiví- sermão, etc. (Marandin, 1979:41)
duos são interpelados me sujeitos falantes (em sujeitos dos seus dis- 4- a relevância de trabalhar a seqüência discursiva nos efeitos
curso) pelas FD que representam ‘na linguagem’ as formações ideo- produzidos pela sua linearidade, i.e., trabalhar os funcionamen-
lógicas”, e acrescenta “a interpelação do indivíduo em sujeito do seu tos enunciativos nos efeitos de sintaxe. Isto aponta para um
discurso se efetua pela identificação (do sujeito) com a FD que o trabalho fino de análise que leva em consideração as operações
domina (I.E. na qual ele é constituído como sujeito)”. Mas adiante, o de formulação que organizam um conjunto de enunciados co-
autor acrescenta que tal identificação ocorre pelo viés da forma-sujei- possíveis em um efeito-subjetividade (Marandin, 1979:46), isto
to. Assim, podemos afirmar, junto com Indursky (2000), de cujo é, a organização dos lugares enunciativos no fio do discurso e as
texto nos valemos para fazer esse percurso sumário sobre os processo rupturas, desdobramentos, encaixes sintáticos que produzem a
de constituição do sujeito do discurso, que este “identifica-se com a linearidade das formulações, enquanto intradiscurso.
forma-sujeito, vale dizer, com a FD cujo dizer é por ela organizado”. A questão que trazemos hoje para a reflexão é como pensar a
O trabalho de Indurky nos é precioso no sentido em que de- “eficácia ideológica” (possibilidade de dizer, eficácia do dizer) de um
monstra o trajeto percorrido pela teoria da AD de uma conceituação discurso sem cair nas armadilhas de reduzi-la a um puro efeito de
de FD como unidade homogênea e fechada sobre si mesma, a uma linguagem, no seu funcionamento genêrico-retórico-enunciativo (apa-

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gamento da história) nem descrevê-la como projeção (imediata ou sições de sujeito, definidas não só em relação ao domínio de
mediada) de uma topografia de lugares sociais institucionalmente de- saber de uma FD mas também em relação a determinados luga-
finidos (apagamento da língua). O conceito de lugar de enunciação, res de enunciação, que por presença ou ausência, configuram
cuja delimitação inicio com esse trabalho, pretende fornecer elemen- um modo de dizer (sua circulação, sua legitimidade, sua organi-
tos para responder a essa questão. Nesse sentido, sem condições zação enunciativa);
ainda de apresentar uma teorização acabada, posso apontar alguns 2- os lugares de enunciação devem ser considerados, dessa ma-
caminhos para a reflexão. neira, como uma das dimensões das posições de sujeito (cons-
Seguindo parcialmente Courtine & Marandin (1983: 31) vou tituídas no dois movimentos descritos por Orlandi), sendo sua
definir eficácia ideológica como um processo de repetições mais ou definição, portanto, subordinada logica, teorica e analiticamen-
menos regrado – polimorfo nos discursos cotidianos, ritualizados te a esse conceito;
nos discurso de aparelho – no qual as palavras são pegas na trama 3- o funcionamento do silêncio afeta os processos de constitui-
das reformulações: repetição sob o modo do reconhecimento dos ção do sentido e do sujeito(Orlandi, 1992), o que implica con-
enunciados (ou seja, o efeito de reconhecimento/identificação produ- siderar a maneira pela qual as posições de sujeito são afetadas
zido pelo funcionamento do pré-construído sobre o sujeito de pelo silêncio. A interdição ou ausência de um lugar de enunciação
enunciação na sua atividade de formulação) e sob o modo do desco- definido em relação a uma determinada posição de sujeito, pode
nhecimento do interdiscurso (ou seja, o desconhecimento –esqueci- ser explicada pelo funcionamento do silêncio sobre essa posi-
mento- necessário da determinação do dizer e do sujeito pela instância ção, produzindo o esvaziamento, a dessignificação (Orlandi,
ideológica). Assim, explicitar/trabalhar a eficácia ideológica de deter- 1999b) ou mesmo a interdição dos sentidos produzidos a partir
minado corpus em análise implica descrever as operações de formula- dela;
ção que constituem as seqüências discursivas como reformulações 4- nesse sentido, os lugares de enunciação se definem em rela-
presas na rede de enunciados (domínio de saber) e na rede de lugares ção ao funcionamento do Estado e de suas instituições, porém
enunciativos (modos de dizer/modalidades enunciativas) que inscre- consideradas as regras de projeção pelas quais as posições de
vem o sujeito no fio do discurso (ibidem). Retomamos dessa maneira sujeito, das quais esses lugares são parte integrante, se delimi-
os funcionamentos descritos por Pêcheux (1969) como formações tam no interdiscurso, no processo contínuo de sedimentação
imaginárias, porém integrados agora no quadro teórico que define a das condições de produção.
constituição do sujeito do discurso a partir da determinação do
interdiscurso sobre os processos de interpelação/identificação ideoló- Referências bibliográficas
gica que delimitam as posições de sujeito nas FD. O que implica
trabalhar as diversas modalidades de identificação/interpelação do su- COURTINE,J.J. (1981) “Quelques problèmes théoriques et
jeito à forma-sujeito da FD na qual se constitui (Pêcheux, 1975; méthodologiques en analyse du discours, à propos du discours
Indursky,2000), não só em relação aos elementos de saber reformulados communiste adressé aux crétiens”. Langages, 62. Paris, Larousse.
mas também aos modos em que essa reformulação se seqüencializa, COURTINE,J.J. & MARANDIN, J.M. (1983) “Quel objet pour
configurando diferentes lugares enunciativos. lánalyse du discour?” M. Pêcheux (org.) Materialités discursives.
Em um trabalho recente, Orlandi (1999a:23) afirma que a ideo- Lille, Presse Universitaire de Lille.
logia funciona pelo equívoco e se estrutura sob o modo da contradi- GADET, F. & T. HAK, org. (1990) Por uma Análise Automática do
ção [...] não é no conteúdo que a ideologia afeta o sujeito, é na estru- Discurso. Uma Introdução à Obra de Michel Pêcheux. Campi-
tura mesma pela qual o sujeito (e o sentido) funciona. A partir dessa nas: Editora da UNICAMP.
colocação, a autora reflete sobre o funcionamento da figura da interpe- INDURSKY, F. (2000) “A fragmentação do sujeito em análise do
lação ideológica no processo de constituição do sujeito do discurso, discurso”. INDURSKY, F. & M.C. CAMPO,orgs. (2000) Dis-
desenvolvendo uma explicitação original desse funcionamento. Orlandi curso, memória, identidade. Porto Alegre, Sagra-Luzzatto, p.70-
reconhece dois movimentos nesse processo: 81.
Em um primeiro momento temos a interpelação do indivíduo MAINGUENEAU, D.(1990) Novas tendências da Análise do Dis-
em sujeito pela Ideologia. Essa é a forma de assujeitamento que, em curso. Campinas, Pontes
qualquer época, mesmo que modulada de maneiras diferentes, é o MARANDIN, J.M. (1979) “Problemes d’analyse du discour. Essai
passo para que o indivíduo afetado pelo simbólico, na história, seja de description du discour français sur la Chine”. Langages, 55.
sujeito, se subjetive. Ou seja se é sujeito pelo assujeitamento à língua, Paris, Larousse, p.17-88.
na história.[...] ORLANDI, E. (1992) As formas do Silêncio. No movimento dos
Em um segundo momento teórico, o estabelecimento (e a trans- Sentidos. Campinas: Editora da UNICAMP.
formação) do estatuto do sujeito corresponde ao estabelecimento (e à ————————. (1999a) “Do sentido na história e no simbóli-
transformação) das formas de individualização do sujeito em relação co”. Escritos, 4. Campinas, Laboratório de Estudos Urbanos,
ao Estado. Em um novo movimento em relação aos processo p.17-27.
identitários e de subjetivação, é agora o Estado, com suas instituições ————————. (1999b) “Maio 1968: os silêncios da memória”.
e as relações materializadas pela formação social que lhe corresponde, ACHARD, P. org. Papel da memória. Campinas, Pontes. p.59-
que individualiza a forma sujeito histórica, produzindo diferentes 71.
efeitos nos processos de identificação. [...] Uma vez interpelado pela PÊCHEUX, Michel. (1969) “Análise Automática do Discurso”. F.
ideologia em sujeito, em um processo simbólico, o indivíduo, agora GADET & T. HAK, orgs. (1990) p.61-161.
enquanto sujeito, determina-se pelo modo como, na história, terá sua ————————. (1975) Semântica e Discurso. Uma Crítica à
forma individual(izada) concreta.(p.24-25) Afirmação do Óbvio. Trad. Eni P. de Orlandi et alii. Campinas:
É justamente em relação a esse segundo movimento no proces- Editora da UNICAMP, 1988.
so de interpelação/identificação do sujeito do discurso que definimos ————————. (1983) “A Análise do discurso: três épocas”.
os lugares de enunciação. Daí sua relação com os mecanismos F.GADET & T.HAK, (1990) p. 311-318.
institucionais de individuação/controle do sujeito e do dizer. Dessa ZOPPI-FONTANA, M.. (1992) Análisis lingüístico del discurso po-
maneira, colocamos que: lítico. El poder de enunciar. Buenos Aires, CEAL.
1- o processo de constituição do sujeito se dá pelas relações de ———————.(1997). Cidadãos modernos. Discurso e represen-
identificação/interpelação ideológica estabelecidas com as po- tação política. Campinas, Editora da UNICAMP.

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Perspectivas no ensino da língua materna:
o laboratório de produção textual1
Dieli Vesaro Palma
Pontifícia Universidade Católica - PUC/SP

ABSTRACT: The paper discusses learning and teaching problems, pointing the faillures in teacher’s formation.
PALAVRAS-CHAVE: N-Gen, ensino, aprendizagem, formação de profissionais

No século XXI, rapidamente caminhamos da sociedade da constantes nos cursos da Universidade Católica: a) alunos que, já ao
informação para a sociedade do conhecimento, o que implica o predo- ingressar na Universidade, revelam uma capacidade de reflexão, de
mínio da Robótica e da Informática. O abandono de atividades manu- análise e de crítica bastante desenvolvida, mas que apresentam um
ais, repetitivas e monótonas, e mesmo de parte do trabalho intelectu- baixo desempenho de língua escrita, chegando a graduar-se, uma vez
al, decorrentes do grande desenvolvimento da tecnologia, caracteriza o que os processos de avaliação dão destaque à capacidade reflexiva e
novo mundo digital. É importante considerar-se o impacto da Internet crítica; b) alunos que, por serem falantes bilingües, normalmente ori-
na vida moderna, determinando profundas alterações na vida diária entais, acabam por concluir a graduação depois de várias retenções,
dos cidadãos comuns. Assim, relações pessoais e interpessoais preci- mas não se transformam em escritores competentes, embora seu de-
sam ser repensadas bem como a Educação necessita ser revista, sempenho final, se comparado ao inicial, revele grandes progressos.
objetivando preparar o homem para o mundo digital. Esses dois grupos têm preocupado os professores, pois tra-
Nessa perspectiva, já se ouve falar da geração Net (Tapscott, ta-se de alunos que, apesar de acompanharem as aulas de língua,
1999:3), composta de jovens entre 02 e 22 anos de idade, criada em ainda continuam apresentando um conjunto de dificuldades na orga-
meio à mídia digital e altamente familiarizada com ela. Valoriza a nização e compreensão de textos. Foi esse cenário que incentivou
interatividade propiciada, principalmente pela Internet, embora, em professores da PUCSP a criarem um espaço na Universidade onde
sua totalidade, esses jovens não tenham ainda acesso à grande rede. fosse possível discutir-se a produção textual tanto no âmbito da
Para Tapscott, a N-Gen utiliza o computador para tudo desde leitura quanto no da escritura. Assim, surgiu o Laboratório de Pro-
divertir-se, fazer “ciberamizades”, buscar informações até participar dução Textual: Redação e/ou Leitura (LPTRL), objetivando desen-
de movimentos sociais, só para citar algumas das atividades nas quais volver habilidades de produção textual tanto na dimensão cognitiva
os jovens de uma sociedade altamente tecnologizada estão envolvi- quanto na dimensão comunicativa, buscando diagnosticar as dificul-
dos. A maioria dos alunos dos cursos de graduação pode ser incluído dades de aprendizagem e propor atividades que possibilitem a
na N-Gen, mas, certamente, não desfruta desses avanços científicos. aquisição de estratégias cognitivas, culturais, interacionais, pragmá-
Contrapondo-se a esse cenário, é muito freqüente defrontarmo- ticas, lingüísticas e textuais.
nos com universitários que não dominam nem a leitura nem a escritu- O LPTRL recebe alunos dos diferentes cursos da PUCSP,
ra, e mais ainda, nem são capazes de aplicar em atividades acadêmicas principalmente aqueles encaminhados por professores que detectam
as operações superiores de raciocínio2 . Não apresentam as condições falhas na produção textual, lendo ou escrevendo. Foi esse o caso de
mínimas para acompanhar o curso de formação de sua escolha. Repre- Joana3 , aluna do curso de Pedagogia.
sentam fortes rupturas em face do quadro acima delineado. Quando da apresentação dos alunos e da explicitação de suas
Nossa prática como professora de Língua Portuguesa tem- expectativas, Joana disse ao grupo-classe, em uma variante não culta
nos mostrado que alguns pressupostos, nem sempre fundamentados, do Português, ter muitos problemas no uso da língua escrita. Acres-
estão presentes na atuação dos professores dos cursos de graduação. centou ainda que esperava que o LPTRL resolvessem essas falhas,
Podemos citar entre eles a crença de que o simples fato de o aluno ter além de melhorar a sua compreensão, principalmente de textos teóri-
passado pelo vestibular seja condição suficiente para que ele não só cos. Verificamos, posteriormente, a precisão dessa caracterização .
tenha autonomia frente ao processo de ensino e aprendizagem como Nesse semestre, como forma de desinibir os alunos, optamos
também não mais apresente problemas de aprendizagem. Assim, es- por iniciar enfatizando o aspecto lúdico que pode estar presente no
pera-se que o aluno seja capaz de relacionar todas as informações que uso da língua. Começamos fazendo poemas, para depois passarmos
recebe bem como seja também capaz de encontrar os caminhos ade- para o texto não poético, principalmente o expositivo-argumentativo.
quados para solucionar os problemas com que, por ventura, venha a A primeira atividade foi a criação de um pequeno poema, em que as
defrontar-se na construção de novos conhecimentos. letras do nome do autor deveriam estar presentes nos vários versos.
Os professores, por sua vez, apontam como causas do fracas- Escolhemos essa prática para os alunos pensarem em si próprios a
so a falta de base decorrente da escolarização anterior, a ausência de partir de seu nome e para reforçar a auto-estima, que, em geral ,nesses
empenho dos estudantes, a aceitação de resultados medíocres por alunos, é muito baixa. Joana produziu um texto com muitas falhas
parte dos jovens e muitos outros fatores que tangenciam as dificulda- microestruturais, tendo ele sido bastante discutido pelo grupo-classe
des de aprendizagem, mas que não são o cerne da questão. Tal postura
leva à retenção de muitos alunos, numa mesma disciplina, por vários
semestres letivos, sem que a maioria dos docentes se questione sobre 1 ) Texto apresentado na mesa redonda “Estudos Gramaticais: História e
as causas reais que geram essa situação. Contraditoriamente, é a per- Ensino”
tinácia desses estudantes que os impede de desistir, conseguindo, 2 ) Vygotsky denomina operações superiores de raciocínio aquelas, que,
por não serem respostas automáticas do organismo, são passíveis de o
muitas vezes, a aprovação desejada, mas sem a garantia da qualidade
indivíduo refletir sobre elas, como descrever, resumir, interpretar, classi-
necessária. ficar, inferir e criticar, entre muitas outras.
Podemos acrescentar a esses pressupostos, duas situações 3 ) Informamos que o nome da estudante é fictício.

202 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


antes da reelaboração. A discussão pelo grupo foi a maneira que tico, uma entrevista com vistas a recuperar a história de vida do
encontramos de desfocar a avaliação da figura do professor, que deixa sujeito. Por ela, ficamos sabendo que Joana havia nascido em uma
de ser o único alocutário, tendo a colaboração de outros leitores, obri- pequena cidade do interior da Bahia. Vendera doces, feitos por sua
gando, assim, o aluno a assumir-se como autor, enfrentando todas as mãe, na estação de ferro até a adolescência, quando, então, viera para
responsabilidades dessa função enunciativa (Orlandi, 1998:79-80). São Paulo, onde trabalhara como doméstica, tendo-se relacionado
A segunda atividade, ainda baseada na linguagem poética, con- afetivamente com um descendente de japoneses . Depois de mais de
sistiu na produção de um abecedário do amor moderno. Percorremos quinze anos em São Paulo, Joana cursara a suplência da escola funda-
as seguintes etapas: a) leitura de um capítulo do livro ABC de Castro mental e da média, prestando, então, o vestibular .
Alves, de Jorge Amado, objetivando construir o conceito de ABC, Assim, verificamos que, ao chegar a São Paulo Joana já havia
seguida de discussão em classe; b) leitura de Os Abecedários do Amor, internalizado as regras de funcionamento da língua de acordo com a
de Lope Vega, autor espanhol do século XVII. Esses abecedários, norma da comunidade onde vivia. Na grande metrópole dada a sua
utilizando todas as letras do alfabeto, mostram o que um homem atividade profissional, aliada a um relacionamento afetivo com um
espera da mulher no amor, bem como o que uma mulher, pela voz de descendente de estrangeiros, ela não encontrara um ambiente lingüístico
um homem, espera de seu amado; c) essa leitura foi seguida de intensa propício à mudança. A breve passagem pela suplência também não
discussão sendo sua tônica as diferenças entre o homem e a mulher, lhe oferecera os instrumentos necessários para a aquisição da norma
quando amam, assim como as mudanças ocorridas ao longo do tempo culta ou de qualquer outra, mantendo, assim, a variante trazida de sua
na concepção do próprio amor. Vemos, assim, que as etapas prepara- terra natal. A dificuldade, entretanto, só se fizera presente na Univer-
tórias da atividade propiciam a ampliação da rede cognitiva dos alu- sidade, que tem como expectativa, embora irreal, que seus alunos
nos; d)após essas três fases, passamos à quarta: a redação de um ABC dominem a norma culta tanto na fala quanto na escrita. Dar esse salto
de amor atualizado, no qual o autor deveria destacar as qualidade que era o grande desafio proposto para Joana.
mais aprecia no homem ou na mulher, enumerando-as ou explicando- Apesar das grandes barreiras lingüísticas que precisava su-
as como fizera Lope de Vega. perar, Joana era uma cidadã consciente e altamente politizada. Par-
Joana produziu um texto no qual, além de falhas de concor- ticipava intensamente do MST, além de trabalhar na alfabetização
dância e de pontuação — erros se considerarmos do ponto de vista da de adultos, apesar de suas dificuldades. Aqui se apresenta a segunda
gramática normativa — e de falta de nexo lógico em algumas partes do questão que gostaríamos de focalizar: a formação de profissionais da
trabalho e até mesmo da não observação da seqüência alfabética (de F Educação.
ela passa para M), destacam-se as seguintes construções: Dou graça Não é possível os cursos de formação de educadores prepara-
a vida que não mim deu tanto/ Se mim deixares, ficaremos juntos nem rem profissionais que não sejam usuários competentes da língua oral
que seja so em pensamentos / Viverei outras paixões que a vida mim e da escrita, além de dominarem sólidos conhecimentos específicos de
dará. Chamou nossa atenção o uso do pronome oblíquo tônico “mim” suas área de atuação. Assim, o ensino de língua deve abandonar o
em lugar do clítico “me”. Não parecia ser distração na digitação do
caráter geral, freqüentemente repetição das regras da gramática tradici-
texto, já que, por três vezes, a aluna fazia o mesmo uso. Observamos
onal já vistas à exaustão pelos alunos, e adquirir um enfoque instru-
o mesmo com o pronome “te” em uma única ocorrência (Fico dias e
mental, num primeiro momento, para, em seguida, tomar um caráter
meses a ti esperar). Como explicar a forma “mim” tal como fora
específico, uma vez que todo professor deve ser capaz de transmitir
empregada?
aos seus alunos conhecimentos sobre a escritura e a leitura. Mudanças
Parecia-nos muito simples considerá-la erro, tomando por
nos cursos de formação são urgentes e necessárias. São essas algumas
parâmetro a norma padrão. Tomá-la como marca de uma norma
perspectivas que vemos no campo da Educação. Que Joana nos sirva
desprestigiada, típica da fala e inadequada à escrita poderia ser uma
de alerta!
posição descritiva, embora o pronome “me” esteja presente nessas
normas sociais. Seria, talvez, esse uso um caso de agramaticalidade?
Teria a aluna empregado uma forma pronominal que não encontra Referências bibliográficas
registro em nenhuma variante da língua, revelando uma dificuldade
pessoal? Para responder a essas questões seria preciso conhecermos ORLANDI, E. P. “Nem escritor, nem sujeito: apenas autor” in Dis-
melhor quem era nossa aluna. curso & Leitura, São Paulo, Cortez; Campinas: Editora da
Nessa tarefa, foi preciso contarmos com a ajuda de alunos de UNICAMP, 1988.
Psicopedagogia que estagiam no LPTRL, interessados em acompa- PERRENOUD, P. Pedagogia Diferenciada - das intenções à ação,
nhar dificuldades de aprendizagem no terceiro grau. Utilizam como Porto Alegre, Artes Médicas, 2000.
instrumento de coleta de dados, para posterior elaboração de diagnós- TAPSCOTT, D. Geração Digital, São Paulo, MAKRON, 1999.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 203


Gramática e texto: abordagem pedagógica
Elisa Pinto Guimarães
Universidade de São Paulo - USP

RÉSUMÉ:Cette étude a pour but une réflexion de nature pédagogique sur des questions liées à l’enseignement de la Grammaire. On ajoutera à cet
aspect des considérations concernant l’ensemble Grammaire / Texte, tout en évoquant la possibilité d’une intégration entre les études grammaticales
et l’interprétation / production textuelle.
PALAVRAS – CHAVE: Gramática – Texto – Articulação – Linguagem

A amplitude do assunto de que se vai tratar requer o cuidado da Gramática (conforme se procedeu na referida pesquisa), grau exa-
de restringi-lo a alguns eixos que possam disciplinar-lhe o desenvolvi- gerado de insistência sobre os exercícios de análise sintática – o que
mento e a análise – eixos que passamos a apresentar como: seria louvável numa perspectiva de integração da análise sintática com
1 – Problemas do ensino da Gramática na Escola. exercícios que levam à clareza e à lógica da expressão. Não é, contudo,
2 – Gramática e Texto: implicações. o que geralmente se faz em sala de aula, onde se reduz o ensino da
3 – Propostas para uma possível solução dos problemas refe- análise sintática seja à memorização de fastidiosa nomenclatura seja à
rentes ao ensino da Gramática. distinção de funções.
4 – Propostas para o trabalho de integração Gramática / Texto. Perde-se, assim, o verdadeiro sentido de qualquer estudo gra-
matical: justificar o significado desse ou daquele aspecto no âmbito
1 – Problemas do ensino da Gramática na Escola. geral da linguagem.
Não se nega o fato de que, não obstante a enfatização da
Gramática no ensino da Língua Portuguesa, vem sendo notório, nas 2 – Gramática e Texto: implicações
escolas, o rendimento insatisfatório, senão nulo, dessa questão. A procura de uma definição satisfatória para texto torna pos-
De recente pesquisa realizada no Departamento de Letras sível uma reflexão sobre sua bidimensionalidade: enquanto processo
Clássicas e Vernáculas da USP, na área de Filologia e Língua Portugue- discursivo, enquanto trajetória estrutural, um texto é acabado; en-
sa, em torno do tema “Fases do ensino de Língua Portuguesa, nas quanto campo semântico, dada a expansão desse campo, um texto é
décadas de 60, 70 e 80”, pudemos aferir largo percentual de ocorrência inesgotável.
de estudos gramaticais sobrepujando de muito as demais atividades Tem-se, pois, a um só tempo, um processo linear com encer-
efetivadas em sala de aula. ramento e um processo de folheamento vertical – aberto, conseqüen-
Estudos que, no entanto, parecem fugir ao objetivo que deve temente, – o que deve ser levado em conta no exercício de abordagem
nortear o professor na tarefa do ensino da Gramática, ou seja, levar o de textos.
aluno a apreender a Gramática como o sistema de regras da Língua em A noção de abordagem vem implicando a concepção de texto
funcionamento. apenas como dado, como algo que é trazido para a sala de aula. O que
Limita-se o ensino, conforme observações da referida pesqui- nos parece mais correto, no entanto, é ver o texto como algo que
sa, a dois pólos: à apresentação da Gramática normativa como o também se produz na própria aula.
repositório de regras de bom uso da Língua; à exploração da Gramática Já se vem tornando tradição a utilização do texto na simples
descritiva que apresenta a descrição das entidades da Língua e suas função valorativa de exemplo, como se vem atribuindo ao texto fun-
diferentes funções. ção quase só ilustrativa como forma de preencher uma determinada
Ora, essa visão distancia-se enormemente da possibilidade de unidade temática.
se mostrar ao aluno a situação do uso da Língua ou a Língua em Ambas as restrições representam visão redutora da função do
funcionamento – o que parece ser a proposta mais adequada para o texto enquanto instrumento de estudo da Gramática.
estudo eficaz da Gramática. Como se operará, então, a conexão exata entre Gramática e
É verdade, por outro lado, que os professores de Língua Por- Texto?
tuguesa vêm sendo despertados para uma crítica e um posicionamento É no exercício da operação sobre a linguagem que se apreende,
em relação aos valores tradicionais, o que os leva a alimentar a inten- por exemplo, a articulação das estruturas sintáticas, bem como as
ção de dar aulas de gramática não normativa – intenção que, todavia, diversas funções exercidas pelos termos que constituem tais estrutu-
não se concretiza. Mantêm-se aulas sistemáticas de gramática ras. Assim também se apreende o papel da morfologia nos processos
normativa. sintáticos e o valor das diversas classes de palavras na construção do
O que se torna patente, então, é a presença de um embate texto.
entre a convicção daquilo que seria um exercício eficiente com a gramá- Mais importante do que dividir e classificar orações é captar
tica e os resultados díspares em relação a essa consciência. Trava-se os nexos que as integram umas nas outras, por procedimentos diver-
um conflito, uma vez que se institui na prática escolar uma atividade sificados: relações de causa e efeito, por exemplo, traços de caracteri-
lingüística artificial. zação apontados pela oração adjetiva, processos circunstanciais ex-
Não se discute o fato de que, enquanto sistema nacional des- pressos na oração adverbial, etc.
critivo, a gramática tem sob sua guarda dados importantes sobre a Só assim será possível recuperar no estudo de aspectos gra-
linguagem. Estes, contudo, mantêm-se à sombra de dadas definições maticais a dimensão da Língua em funcionamento.
que estão longe de explicar fatos reais da Língua em funcionamento. O ponto-eixo desse exercício é o texto nas suas diferentes
À luz de definições e classificações, reduz-se o ensino da modalidades, nas diversas possibilidades de ser produzido e interpre-
Gramática a técnicas insatisfatórias de descoberta e tipificação de tado.
termos, segmentos e orações. Só o texto aponta para a descoberta paulatina de noções,
Constata-se, quando se procura conhecer os rumos do ensino relações, conceitos com os quais se opera na teoria do texto e na teoria

204 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


gramatical para – nessa sintonização necessária – pesquisar a 4 - Propostas para um trabalho de integração Gramática /
linguagem como objeto de estudo e reflexão. Texto.
Mais do que sobre a linguagem, o trabalho com a linguagem Já se enfatizou a importância de recuperar no estudo gramati-
deve preencher a aula de Língua Portuguesa. A elucidação e a análise cal a dimensão do uso da linguagem, o sentido da Língua em funciona-
a serem aí efetivadas não podem circunscrever-se à reflexão gramatical mento.
ou a ela conceder predomínio. Trata-se, antes, de adquirir capacidade É o que se propõe, em primeiro plano, para uma integração
de expressão, isto é, de desenvolver plenamente a competência comu- entre os ditames da Gramática e a realidade do texto.
nicativa do aluno. O objetivo é levá-lo a usar melhor a Língua, não Na perspectiva pedagógica, cumpre orientar o aluno no senti-
apenas como aperfeiçoamento de tipo estrutural, como correção de do de operar, não tanto sobre a linguagem, mas com a linguagem, por
meio de textos produzidos por ele próprio.
estruturas, como aquisição de estruturas novas, mas para alcance em
O exercício de produção de texto oferece margem para a cap-
plenitude de adequação do ato verbal à situação de comunicação.
tação da multiplicidade de recursos existentes na Língua, bem como
para a possibilidade de selecionar adequadamente esse ou aquele para
3 – Propostas para uma possível solução dos problemas tal e tal situação de comunicação.
referentes ao ensino da Gramática A Língua viva, como o jovem, realiza-se no equilíbrio ou no
Parece-nos básico para o estudo gramatical fazê-lo sempre ten- confronto de duas forças que a dinamizam – a da regra e a da infra-
do em mira os fatos da Língua. Para tanto, torna-se necessária a ção.
adoção de critérios capazes de identificar esses fatos cujo tratamento Reside o ideal no ato de manter as forças em conflito e não
requer um sistema teórico marcado pela coerência. eliminar uma delas – a da tradição ou a da inovação.
Muitas vezes, um aspecto gramatical não se explica com clare- Por meio do “uso do código” e da “subversão ao código”, por
za suficiente por meio de apenas um critério. Tomemos, como exem- uma “sujeição à norma” e por uma “transgressão à norma”, o aluno vai
plo, o critério nacional no trato com o substantivo. Dificilmente, o desenvolvendo as potencialidades.
aluno se convencerá da definição apresentada pela Gramática que diz A Gramática propõe-se como instrumento para o alcance da
ser o substantivo a classe de palavra “que designa pessoas, coisas e forma ideal de expressão. É, por conseguinte, meio e não fim.
animais”. Definição que perde força e sentido diante do exemplo Não pode o professor “ensinar” a Língua no aspecto estrutu-
seguinte: “Todos ouviram com entusiasmo os elogios feitos àquele ral, esperando que naturalmente se siga o uso adequado. É, antes, o
Estabelecimento de Ensino”. uso adequado e eficaz que tem de ser interiorizado.
Note-se que nenhum dos substantivos empregados na frase Em suma: interiorizam-se não apenas as regras de “boa for-
presta-se como exemplo que se encaixa na definição da Gramática. mação” de frases (e, mais do que frase, de discurso / texto), mas
É preciso, pois, chamar a atenção do aluno para a necessidade igualmente as regras de boa execução.
E o ponto-eixo é o texto, nas suas diferentes modalidades –
de se recorrer a vários critérios no tratamento dos fatos gramaticais; é
nas diversas possibilidades de ser interpretado e produzido.
impossível a adoção de um único critério, uma vez que esses fatos se
situam não apenas no âmbito das noções, mas ainda no das formas e
Referências bibliográficas
no das articulações, ou seja, existem critérios também de natureza
morfológica e sintática. FRANCHI, Carlos (1988). Criatividade e Gramática. São Paulo,
Não se trata, portanto, de comungar passivamente com tudo o Secretaria de Estado da Educação / Coordenadoria de Estudos e
que diz a Gramática; antes, cumpre saber criticá-la e inseri-la num Normas Pedagógicas.
sistema aberto que exibe a possibilidade de escolhas múltiplas. SILVA, Rosa Mattos e. (1989). Tradição Gramatical e Gramática
Talvez seja esse um caminho capaz de convencer gramáticos e Tradicional. São Paulo, Editora Contexto.
professores de que os critérios em que se apóiam são heterogêneos e, VOGT, Carlos et alii. (1988). Subsídios à Proposta Curricular de
por isso mesmo, sua aplicação pode levar a resultados classificatórios Língua Portuguesa para O 1º e 2º Graus. São Paulo, Secretaria
diversificados. de Estado da Educação / Coordenadoria de Estudos e Normas
Pedagógicas.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 205


Pejorativos e meliorativos na
construção do enunciador
Paulo Cesar Costa da Rosa
Universidade Federal do Rio de Janeiro

ABSTRACT: The aim of this work is to show how the use of engaged terms (positive and negative vocabulary) interfers in the newspaper image
construction and can confirm that the jourmalistic impartiality is a myth.
PALAVRAS-CHAVE: Enunciador – argumentação – subjetividade

1. O espaço do editorialista rativo ou meliorativo implica, no mínimo, duas discussões: a) o que


significa ser subjetivo; b) como é possível avaliar se sua carga é posi-
O editorialista é um enunciador privilegiado, em virtude de tiva ou negativa.
sua situação de enunciação fortemente legitimada pelas sociedades Segundo Kerbrat-Orecchioni, é natural que toda unidade lexical
ditas democráticas: a imprensa. O editorial é um gênero textual que se seja, em um certo sentido, subjetiva, uma vez que, já em sua gênese, as
desenvolve precipuamente no modo de organização argumentativo, e palavras substituem e interpretam os seres. Portanto, a subjetividade
a argumentação é uma atividade discursiva que participa de uma dupla é intrínseca à língua. Ainda que o termo seja a princípio objetivo, não
busca: a busca da racionalidade e a busca da influência. Ocorre que os o será de um ponto de vista absoluto; participa, sim, de uma classe de
jornais de opinião constroem de si – principalmente por meio dos “contornos relativamente estáveis”, opondo-se a uma classe de ter-
editoriais – uma imagem que se equilibra entre o ponderado e o mos consensualmente subjetivos: é mais fácil remeter a uma classe de
combativo, o que torna o editorial, sob esse aspecto, um gênero essen- professores, celibatários, ex-combatentes do que a uma de objetos
cialmente ambíguo. belos, por exemplo. Conclui-se, pois, que o eixo de oposição objetivo/
Este trabalho terá por objetivo compreender como se constrói subjetivo não é dicotômico, mas gradual. “A taxa de subjetividade
o enunciador dos jornais de opinião, examinando a eficiência do em- varia de um enunciado para outro, na medida em que as unidades desse
prego de termos pejorativos e meliorativos em seus editoriais. A op- ponto de vista pertinentes podem ser mais ou menos numerosas e
ção por estudarmos editoriais se justifica por eles serem textos densas”.1
estruturados prioritariamente no modo de organização argumentativo,
e por serem publicados. Esta última característica é importantíssima, 2.1 Melioratividade
já que o texto será avaliado pelo leitor, que é a razão de ser das
empresas jornalísticas. Sabe-se que uma expressiva fatia do mercado A melioratividade não é a regra em editoriais: é de esperar que
consumidor de jornais quer um periódico que esteja diurturnamente a pejoratividade predomine. O emprego de meliorativos e de pejora-
atento às ações de setores importantes da sociedade e sempre pronto tivos negados parece indicar duas intenções distintas: ora funciona
a emitir opiniões a seu respeito. Isso significa existe uma expectativa como uma estratégia para demonstrar alguma sobriedade na argumen-
de que o jornal conteste ações “equivocadas”. tação; ora funciona como estratégia de persuasão propriamente dita,
Sucede que os jornais vivem uma situação muitas vezes ambí- em que o argumentador tenciona agir sobre o tu-destinatário de forma
gua: por mais independentes que sejam, não podem voltar as costas a conquistar-lhe a simpatia por aquilo que se defende.
para interesses políticos, interesses de marketing, etc. Em meio a Embora os termos meliorativos e os pejorativos negados este-
essa ambigüidade, um jornal – e, portanto, seu editorial – não pode ser jam igualmente orientados no sentido de conferir validade à tese do
omisso: tem de tomar posição; não pode ser ofensivo nem adulador: argumentador, reforçando favoravelmente os conceitos pró-tese, ob-
tem de ser sóbrio. Enfim, o editorialista, a despeito de viver sob o servamos uma diferença marcante.
privilégio de uma situação de enunciação fortemente legitimada, pare- Para examinar com propriedade tal diferença, cumpre repor-
ce deslizar constantemente sobre o fio de uma navalha e, por conse- tar à abordagem feita por Kerbrat-Orecchioni sobre o papel do implí-
guinte, deve usar de estratégias que explícita ou implicitamente expri- cito, que marca a diferença entre a argumentação e a demonstração
mam suas intenções. Uma estratégia bastante eficiente será empregar lógica:
“ termos engajados” – palavras ou expressões que quase sempre só
terão essa interpretação no contexto em que se encontram. Dizemos Os conteúdos implícitos (pressupostos e subentendidos) têm
quase sempre, porque certas expressões são predominantemente em comum a propriedade de não constituir em princípio (...) o
meliorativas (cf. genial, integridade) ou pejorativas (cf. idiota, verdadeiro objeto do dizer, enquanto os conteúdos explícitos
corrupção), mas de modo geral o caráter pejorativo ou meliorativo de correspondem, em princípio sempre, ao objeto essencial da
um texto é adquirido ou, em certos casos, potencializado, no discurso. mensagem a transmitir.2
Sendo o editorialista – entendido aqui como o próprio jornal de opi-
nião – alguém que se apresenta como “objetivo”, “imparcial”, mas que Os meliorativos apresentam, sob esse ponto de vista, conteúdo
conhece as possibilidades de engajamento de um termo ou palavra, explícito; têm significado absoluto: quando se afirma, por exemplo,
terá um poder maior de convencimento. afirma que um político é um “negociador nato”, o que fica para o tu-

2. Melioratividade e pejoratividade
1 KERBRAT-ORECCHIONI, C. 1980., p.73
Afirmar que um certo termo é engajado e além do mais pejo-
2 KERBRAT-ORECCHIONI, C. (1986), p. 22

206 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


interpretante é a idéia de um bom político, sem que necessariamente a) Não existe sentido literal tal que sentido literal seja uma
se pense num mau político. constante semântica.
No emprego do pejorativo negado, percebemos que o argumen- b) Na medida em que a significação não é mais constante, mas
tador sem dúvida opera com a noção de subentendido, subcategorização uma função que comporta parâmetros e variáveis, não poderia mais
do implícito, que Kerbrat-Orecchioni entende como “todas as informa- ser questão de vericondicionalidade. 7
ções que são suscetíveis de ser veiculadas por um enunciado dado, mas
cuja atualização fica dependente de certas particularidades do contexto Essa ausência de sentido literal advém das próprias circuns-
enunciativo.”3 Revela-se então a sutileza do eu-enunciador: quando tâncias da cena argumentativa: é necessário considerar, além do eu-
um jornal de opinião diz, por exemplo, que um partido político não fez comunicante, do eu-enunciador, do tu-interpretante e do tu-destina-
“nada de irregular”, ao agir de maneira questionável, está, ao mesmo tário, outros enunciadores, que são tanto o locutor quanto o alocutário,
tempo, observando que o partido ainda é, por assim dizer, confiável e bem como quaisquer outras fontes geradoras de valores culturais mais
censurando os partidos que não o são, visto que aproveita com habili- ou menos consensuais. A natureza argumentativa da língua tem ori-
dade da condição polifônica do texto argumentativo: não é absurdo ler gem no fato de esses constituintes estarem sempre (ou quase sempre)
nas entrelinhas que se faz crítica a outros partidos. atuando nas enunciações.
Assim, esse tipo de procedimento constrói a imagem de um O tu-interpretante deverá lançar mão de suas competências
enunciador mais equilibrado e “objetivo”, no sentido ou de oferecer (ou pragmática e lingüística, para depreender o sentido que emana de
simular oferecer) ao leitor um fato e não uma opinião; ou de sugerir que fatores lingüísticos e extralingüísticos. O tu-interpretante, como al-
não vê apenas a face má da questão. No entanto seu excesso pode levar guém que, em princípio, compartilha da mesma competência ideológi-
o tu-interpretante à conclusão de que o editorialista não faz senão ca do eu-comunicante, constrói modelos interpretativos: levantam-se
bajular, arranhando a imagem de entidade combativa que é o jornal. os possíveis interpretativos, que são os vários caminhos – diretos
ou indiretos –, indo de um ponto (o argumento) a outro (a conclusão).
2.2 Pejoratividade Quando se dá uma enunciação, o eu-enunciador dá indicações sobre o
caminho que ele escolheu, e o tu-interpretante tenta reconstruir um
Para ter uma idéia daquilo que os jornais de opinião entendem itinerário a partir das indicações fornecidas.
por “jornalismo crítico” vejamos como a Folha de São Paulo, em seu O eu-enunciador procura conduzir o tu-destinatário em direção
Manual de Redação, revela seu parecer de como deve ser um editorial, a uma conclusão que lhe será mais favorável, lançando mão de termos
no que concerne a sua postura diante dos fatos: engajados, o que torna o seu texto uma espécie de “campo minado”,
no sentido de que as minas são tão ocultas e poderosas quanto uma
O editorial é um texto que expressa a opinião de um jornal. Na palavra aparentemente neutra será, no momento da interpretação.
Folha , seu estilo deve ser ao mesmo tempo enfático e equilibra- Ora, se o editorialista se apresenta como “objetivo”, “imparcial”, e
do. Deve evitar a ironia exagerada, a interrogação e a exclamação. opera eficazmente com o caráter não constante do sentido de palavras
Deve apresentar com concisão a questão de que vai tratar, desen- ou enunciados, tenderá a ser mais persuasivo.
volver os argumentos que o jornal defende, refutar as opiniões A imparcialidade jornalística é, portanto, apenas um mito,
opostas e concluir condensando a posição adotada pela Folha4 . quando muito, apenas um ideal recôndito a alcançar, mas que é divul-
gado como permanentemente contemplado. Talvez seja por isso não
constituir raridade que boa parte dos efêmeros momentos de imparci-
Ainda segundo a Folha de São Paulo, deve praticar-se como alidade da imprensa sejam por ela mesma enfatizados, como se a
princípio editorial um “jornalismo crítico”, “pois o jornal não existe exceção implicasse a regra.
para adoçar a realidade, mas para mostrá-la de um ponto de vista críti- Enfim, devemos reconhecer que o caráter, por assim dizer,
co. Mesmo sem opinar, é sempre possível noticiar de forma crítica”5 . fugidio do significado põe em xeque até mesmo a precisão de certas
A pejoratividade, se bem utilizada como estratégia de persuasão, pode afirmações que fizemos neste trabalho. Entretanto reconhecemos tam-
indicar a postura crítica de um jornal, mas seu excesso sinaliza um bém que esse paradoxo não nos poderia dissuadir de realizá-lo, ou
desequilíbrio que põe em xeque a imparcialidade preconizada pela im- porque arriscar-se é um dos desafios de quem estuda, ou porque os
prensa. Em outras palavras, queremos afirmar que, se o eu-comunicante indícios que temos verificado em nossas pesquisas são tão expressivos
visa um tu-destinatário, empregando desenfreadamente termos pejora- que nos dão a segurança de que não estamos sendo tendenciosos.
tivos com relação a determinada entidade, corre o risco de encontrar um
tu-interpretante que tenderá a rechaçar a eficácia de tal estratégia.
Referências bibliográficas
3. O mito da imparcialidade
ANSCOMBRE, J.C. Argumentation et topoï. COLLOQUE D’ALBI,
Como se sabe, Jean-Claude Anscombre e O. Ducrot, defendem a n. 5, Albi, 1984. Anais..., Albi: Ecole Normal d’Albi, 1984. P.
tese de que fundamentalmente a língua é apenas argumentativa, no 46-70.
sentido de que, se há um valor informativo, ele é precisamente derivado ____, Théorie des topoï. Paris: Kimé, 1995.
dessa argumentatividade. Isso significa negar a existência de uma se- ____, DUCROT, O. L’argumentation dans la langue. Bruxelas:
mântica puramente descritiva em favor de uma semântica de natureza Mardaga, 1984.
argumentativa: “falar não é descrever ou informar, mas dirigir um dis- CHARAUDEAU, Patrick. Grammaire du sens et de l’ expression.
curso em uma certa direção, objetivando certas conclusões”6 Assim, o Paris: Hachette, 1992.
sentido de um enunciado não é a descrição que ele dá de sua enunciação,
já que esse sentido é calculado na base de uma significação de natureza
puramente argumentativa (e portanto pragmática): o núcleo do sentido 3
Op.cit., p. 39
será um processo e não uma descrição. Anscombre propõe então que 4
Folha de S. Paulo (1996),verbete editorial
há duas hipóteses fundadoras da teoria da argumentação, a saber: 5
Op.cit, verbete jornalismo
6
ANSCOMBRE, J.C., 1995, p.21.
7
Op.cit.,p. 33.

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——. Langage et discours. Paris: Hachette,1983. OLIVEIRA, Helênio Fonseca de. Contribuição ao estudo do modo
____, DUCROT, O. L’argumentation dans la langue. Bruxelas: argumentativo de organização do discurso: análise de um texto
Mardaga, 1984. jornalístico. In: CARNEIRO, Agostinho Dias (org.) O discurso
FOLHA DE S. PAULO. Manual de Redação. São Paulo: Empresa da mídia. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996. p.135-41.
Folha da Manhã S/A, 1996 (CD-ROM FOLHA ISSN 0104-7779). ——, O papel dos conectores na argumentação em língua por-
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——. L’implicite. Paris: A. Colin,1986. gias argumentativas na construção da credibilidade. In: CAR-
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tes,1989.

208 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A heterogeneidade enunciativa
no editorial jornalístico
Monica Alvarez Gomes das Neves
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

O presente estudo situa-se na linha de pesquisa da Lingüística Textual francesa, tendo como representantes, principalmente, Ducrot
(1981, 1987), Maingueneau (1991) e Charaudeau (1992), e está filiado ao projeto Aplicação Pedagógica da Gramática Textual (UFRJ).
Este trabalho tem como objetivo estudar o problema da “heterogeneidade enunciativa demonstrada”, fazendo divisão entre polifonia e
outras maneiras de pôr sujeitos enunciativos dentro de uma mesma enunciação.
Cada unidade discursiva pode ter, conforme as possibilidades que a língua oferece, inscritas muitas vozes na mesma enunciação. Os
fenômenos estudados são: a citação, as palavras entre aspas, as interferências (resultantes de plurilingüismo) e o metadiscurso do locutor. Tais
fenômenos são pesquisados em corpus de matéria jornalística opinativa, sobre o qual se pretende elucidar como a heterogeneidade enunciativa
está a serviço do éthos do locutor e das manobras argumentativas que visam à adesão do leitor/interlocutor a uma dada tese.

RÉSUMÉ: Cette recherche présente un étude de la répresentation de l’éthos à travers quelques mécanismes de l’hétérogeneitée enonciative
demonstrée, selon les formulations explicitées par Maingueneau (1995, cap. IV), dans quelques textes argumentatifs (éditoriaux).
PALAVRAS-CHAVE: discurso; heterogeneidade; enunciação; editorial.

I – Introdução nha em mente que a instituição jornalística é bem definida e que cada
Nesta pesquisa, composta de 11 textos jornalísticos de opi- empresa dessa natureza veicula um arquivo determinado2 . O mesmo
nião veiculados por JB, O Globo e Folha de São Paulo, procurou-se se dá em relação ao gênero editorial e opinativo.
verificar como se representa o éthos do enunciador e do co-enunciador É através da polarização que o texto opinativo institui a polê-
nos termos de Mainguenau (1995), no estudo dos elementos mica e gera conclusões, posicionamentos, adesões.
lingüísticos da representação da heterogeneidade enunciativa demons- Com todos esses impulsos que a situação enunciativa põe em
trada, segundo o capítulo IV de L’Analyse du discours (1991), em que “cena” é que é possível concluir que há uma cenografia aí inscrita. Essa
o autor, de maneira sintética, expõe os mecanismos, até então estuda- cenografia é responsável pelas condições de enunciação e co-enunciação,
dos, de tal fenômeno. espaço e tempo.
Não foram estudados todos os elementos que comportam tal O gênero discursivo do corpus deste trabalho tem uma cenogra-
fenômeno. Foram considerados somente os menos divulgados por fia aproximada àquela das fábulas, uma vez que há um dialogismo gene-
outras pesquisas e os que apareceram no corpus, a saber: citação, ralizado: há um contador que intervém em sua narrativa e estabelece
aspas, metadiscurso. uma relação de conivência com o leitor, criando uma aproximação entre
Para desenvolver essa pesquisa contou-se com as obras O eles. Interessa assinalar o fato de que “esse contador apresenta-se como
Contexto da obra literária e L’Analyse du discours, ambas de D. um homem de bem, culto, que se dirige a gente honesta, ela própria culta
Maingueneau (1995 e 1991, respectivamente). e submetendo-se às regras da conversação mundana: necessidade de ser
Em relação à organização deste estudo, encontram-se: na se- espiritual, de variar seu discurso, de não ser prolixo demais, de adotar
ção II, o aporte teórico que viabilizou a análise dos fenômenos; na uma distância irônica, de manejar a alusão e o duplo sentido, etc. É
seção III, a análise propriamente dita dos mecanismos de portanto através de uma cenografia vinculada à sociabilidade de uma
heterogeneidade enunciativa demonstrada; na seção IV, as conclusões elite refinada que as Fábulas mostram a crueldade de um mundo de
a que se chegou; na seção V, a bibliografia consultada. predadores. Existe tensão entre o humanismo (nos dois sentidos do
termo) da cenografia e a desumanidade das histórias que esta permite
II – Aporte teórico contar.” (Maingueneau, 1995: 125).
O presente estudo situa-se na linha de pesquisa da Lingüística Deve-se salientar ainda a definição que Maingueneau dá à
Textual francesa, tendo como representantes, principalmente, Ducrot cenografia, segundo a qual ela não se reduz a um procedimento nem a
(1981, 1987), Maingueneau (1991) e Charaudeau (1992), e está filiado um contexto contingente, ela é mesclada com a obra que sustenta e é
ao projeto Aplicação Pedagógica da Gramática Textual (UFRJ). sustentada por ela.
Nesta oportunidade, devem ser consideradas as relações que Esse dado é especialmente relevante para o tipo de
o texto estabelece com o exterior, na medida em que essas relações heterogeneidade enunciativa demonstrada realizado pelo enunciado
compõem sua identidade. Esse foi um dos interesses de Baktine e de
outros autores que desenvolveram estudos a partir dele, como Ducrot,
com a teoria polifônica e J. Authier, no estudo da heterogeneidade
enunciativa demonstrada. 1
É preciso deixar claro que sempre há um interlocutor, real ou imaginário,
Como os mecanismos que engendram a heterogeneidade individual ou coletivo. Somente a partir desse quadro figurativo (com
enunciativa demonstrada estudados são a citação, as aspas e o essas duas figuras – locutor e alocutário) é que é possível apreender a
metadiscurso do locutor, interessa a esta pesquisa o estudo da situa- língua (Benveniste, 1974): para o locutor, a atividade de referir pelo
ção enunciativa. Segundo Maingueneau (1995), ela envolve as cir- discurso, e para o outro, a possibilidade de co-referir, “no consenso
cunstâncias empíricas e, principalmente, os próprios enunciador e co- pragmático que faz de cada locutor um co-locutor” (p. 82).
2
Entende-se por arquivo a definição de Maingueneau (1995) como enunci-
enunciador1 , o espaço e o tempo relacionados.
ados pertencentes a um mesmo posicionamento sócio-histórico,
No caso do corpus escolhido, é muito importante que se te- inseparáveis de memória e instituições.

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irônico, que está fora dos objetivos desta pesquisa por ser tema de um o dado que constitui a prova pode ser um fato objetivo no mundo real.
trabalho à parte devido a sua profundidade e extensão. Quando ela se dá pela citação de um autor, aproxima-se das descritas
Nesse estudo da situação de enunciação e da cenografia que é anteriormente, na medida em que também o enunciado se torna “auto-
evocada, não se pode deixar de abordar a questão do éthos, mas prin- rizado”, porque detém “autoridade”. É o que mostram os exemplos
cipalmente não se pode deixar de abordá-la por ser esta a questão mais abaixo:
importante nesta pesquisa, pois é sobre ela que pousarão as análises (4) (O autor descreve casos de violência praticada por trafican-
dos elementos lingüísticos. tes, que funcionam como citação-prova).
O éthos, segundo Maingueneau (1995), corresponde a um Esses casos, entre os inúmeros que nem chegam aos jornais,
papel social, a uma máscara social: ele “está preso ao exercício da comprovam o que todo mundo já sabe – o tráfico é um poder paralelo
parole, ao papel ao qual corresponde o discurso, e não ao indivíduo com mais poderes do que o próprio Estado. (...)
“real”, apreendido independentemente de sua prestação oratória” (p. Relatório de janeiro do Congresso mostra que alguns trafican-
138), portanto, o que fala não coincide com o autor do texto, há aí uma tes presos têm até 24 advogados. É muito advogado para pouca defesa
representação de um enunciador que objetiva construir o co-enunciador, (Follha de São Paulo, 27.10.00).
a partir de ordens fornecidas pelo texto. Tal representação é o que (5) Mortos, em especial no Brasil, costumam ter sua biografia
Maingueneau chama de fiador, responsável pelo enunciado. Mas ele, revista, sempre para o melhor (FSP, 13. 09. 96).
o fiador, não é tão abstrato: tem caráter (traços psicológicos, estereó-
tipos específicos) e corporalidade (características específicas, modo É interessante notar o caso do slogan, pois do ponto de vista
de se vestir e de se mover no espaço social). pragmático, a citação de autoridade adquire novas propriedades, prin-
O texto resume-se (e não “reduz-se”) a uma enunciação cipalmente por estar ligada à ação: o slogan “fait marcher”, nos dois
direcionada a um co-enunciador para que este se mobilize e se posicione sentidos da palavra. Segundo Maingueneau, o provérbio representa
fisicamente de maneira favorável, em adesão a um universo de sentido um enunciado limite: o locutor que o valida tende a coincidir com o
determinado. conjunto de sujeitos falantes da língua, incluindo ele próprio.
Deve-se atentar para o fato de que, em relação a provérbios e
III – Os fenômenos lingüísticos da heterogeneidade enunciativa ditos populares, eles podem, inclusive, contradizer-se, havendo, por-
demonstrada tanto, uma voz do povo para cada ponto de vista e o enunciador
III.1) A citação lançará mão daquela que mais for ao encontro dos seus interesses,
O autor apresenta basicamente quatro tipos de citação que “quem não arrisca, não petisca x mais vale um pássaro na mão do que
podem ser encontradas nos textos em geral: dois voando no céu”.
• A citação – relíquia: seja pela fala de um santo, pelos gênios
greco-latinos ou simplesmente por uma citação em latim (mesmo sem III.2) As palavras entre aspas:
se ter a fonte) se obtém o “statut textual de encarnar um fragmento de As palavras entre aspas portam uma conotação especial por
discurso verdadeiro, autêntico.” cumularem menção e uso. Elas são atribuídas a um outro espaço
• A citação – epígrafe: função de ligar “o discurso novo ao enunciativo que o locutor não deseja assumir, portanto elas assinalam
conjunto textual mais vasto”, assinalando sua pertinência a um con- um arquivo determinado e marcam seu exterior. É, segundo J. Authier
junto definido de outros discursos. (Apud Maingueneau, 1991), uma operação de “mise à distance”.
• A citação – cultura: funciona como “símbolo de conivência, Elas são divididas segundo o fato de que podem designar:
signos de cultura”. • Distinção (polidez)
• A citação – prova: aparecem para refutar ou ratificar um argu- (6) Temendo o estigma, o partido recusou o rótulo e pensou até
mento, são escolhidas pelo conteúdo ou pelo autor. Nesse último em trocar o “liberal” por “social-liberal”, para assumir ares de “cen-
caso, é chamada de citação por autoridade. tro” (FSP, 27. 10. 00).
• Condescendência
Parece haver uma interessante diferença no que concerne à (7) Nada simboliza melhor a monocultura em que vivemos do
aplicação dessas classificações ao texto opinativo. que a propagação do “Halloween” pelo mundo todo (O Globo, 29. 10.
No corpus selecionado, o tipo citação – epígrafe não aparece. 00).
Parece ser essa uma forma predominante em textos acadêmico-cientí- • Pedagogia (na vulgarização)
ficos e literários. O texto jornalístico de opinião liga-se e dialoga com • Proteção (usada para assinalar que se quer aproximar o sentido)
outros textos através de outros meios. (8) E isso em nada atrapalha o funcionamento do “negócio”,
A citação – relíquia e a citação – cultura funcionam da mesma pois os chefes continuam comandando seus pontos mesmo da prisão
maneira no texto, isto é, têm ambas os mesmos objetivos, qual seja o (FSP, 27. 10. 00).
de construir um argumento de autoridade, seja ele baseado no conhe- • Ênfase
cimento propriamente dito ou no dizer de algum gênio ou de uma
personalidade legitimada pela sociedade; e têm os mesmos efeitos de O que mais importa no estudo das aspas é que elas são a
sentido: o de autorizar o discurso desse enunciador por razões já materialização de uma formação ideológica, de posicionamentos soci-
descritas.Observem-se os exemplos abaixo: ais marcados em todas as designações relacionadas acima. É o que diz
(1) Dizia Confúcio que, se fosse imperador da China, seu pri- Maingueneau (1991, p. 143), a respeito de um fragmento de Le Mon-
meiro decreto seria para definir o sentido das palavras (O Globo, de: “o único fato de multiplicar as aspas é significativo de um público
06.10.96). leitor culto, particularmente sensível à variedade discursiva (...), uma
(2) (...) Benjamim Franklin, já ensinava no século XIX: “tempo fonte de correção extrema que legitima o lugar do escritor e do
é dinheiro”, time is money (Rapidinho, 29.09.96). leitor”.Esse fato pode ser visto no exemplo (8).
(3) Polêmica, de acordo com a etmologia, vem de pólemos (com-
bate, em grego). É uma palavra que pode designar coisas diversas, III. 3) O metadiscurso do locutor
“combates” de distintas espécies(Polêmicas, 22.09.96). Este é um mecanismo interessante de heterogeneidade
A citação – prova tem uma pequena nuança de diferenciação: enunciativa, basicamente, por duas razões. Em primeiro lugar, por

210 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


que não se trata de um sujeito diferente de outro, mas da construção de relacionado a sua imprevisibilidade dentro do texto e o que elas repre-
diferentes níveis de discurso na sua própria enunciação, e em segundo sentam está relacionado ao elo com o implícito, uma vez que, ao pôr as
lugar, porque os pontos sensíveis no modo de definir a identidade de aspas, o enunciador do texto assinala a representação de seu leitor e de
um argumento em relação à língua e ao interdiscurso são marcados.O si próprio. Portanto as palavras aspeadas são responsáveis pela cons-
metadiscurso do locutor é usado para: trução do éthos do enunciador e de seu co-enunciador.
• Construir uma imagem do locutor No exemplo (6), “centro” é algo que não pertence ao partido em
• Marcar uma inadequação de termos questão, portanto é preciso assinalar o fato. O enunciador se põe
• Autocorrigir-se acima de outros, em termos morais e sociais e o anunciado se torna
• Confirmar mais digno. No exemplo (7), há a condescendência com o uso da
• Pedir a permissão para empregar certos termos palavra na sua forma original. Para assinalar a dependência cultural,
• Fazer uma preterição não poderia vir tal nome de outra maneira. No exemplo (8), o enunciador
• Corrigir adiantadamente um possível erro de interpretação marca para seu co-enunciador a necessidade de aproximar o significa-
No corpus selecionado, apareceram usos do tipo: do e a posição de distanciamento em relação ao fato.
(9) 1o parágrafo: o presidente Fernando Henrique Cardoso pode 5) Talvez este seja o tipo mais característico de construção do
estar comprando uma briga desgastante, talvez prolongada e eventual- éthos através de mecanismos de heterogeneidade enunciativa demons-
mente inútil com sua proposta de mudar o Imposto de Renda como trada.
forma de gerar mais recursos para pagar um salário mínimo maior. 6) Através do metadiscurso, o locutor-enunciador orienta o co-
enunciador para o uso de diferentes níveis de discurso no texto, cons-
2o parágrafo: Desgastante porque ...
truindo assim um éthos determinado: o de adiantar-se em relação a um
4o parágrafo: Prolongada porque ...
possível erro de interpretação do co-enunciador. O enunciador é al-
5o parágrafo: Por que também inútil? ...(FSP, 27. 10. 00).
guém que conhece, que sabe, que conduz, que pede desculpas, portan-
(10) Em outras palavras: o PT prega e defende a continuação e
to tem aí sua identidade definida. Mas o co-enunciador também aqui é
o incremento da inflação e do estatismo (JB, 08. 05. 94).
bastante levado em consideração, na medida em que se faz o éthos de
um co-enunciador como alguém que poderia estranhar algumas decla-
Verifica-se, então, que o metadiscurso no tipo de texto estu- rações feitas pelo enunciador e ao mesmo tempo necessitar de orien-
dado ocorre, preferencialmente, no sentido de autocorreção como pro- tações para compreensão do texto.
teção a possíveis críticas e ataques daqueles de quem se fala ou a Esse não é um fenômeno que ocorre muito nos textos opinati-
críticas dos próprios leitores. vos dos jornais escolhidos. Talvez seja característica de textos opina-
Um outro caso vem somar-se a esses: tivos dos jornais mais populares e/ou de uma imprensa de opinião
(11) No meu artigo, afirmei com todas as letras que tortura é mais franca, hipótese essa de uma próxima pesquisa.
crime. Repeti isso três vezes. Acrescentei apenas que maltratar é No exemplo (9), pode-se considerar que boa parte do texto é
menos grave que matar (...) (O Globo, 13. 01. 01). explicação de uma asserção inicial e, no (10), há a explicação sintética
de tudo o que já se disse antes. Em ambos os casos, parece haver a
Nessa ocorrência, o metadiscurso destina-se à construção do preocupação com seu próprio éthos frente ao que se considera o éthos
éthos do locutor como alguém que assume o que diz e o do interlocutor, do outro: o primeiro ataca FHC comedidamente em favor da popula-
como alguém que é sensato. ção, mas mesmo assim faz questão de explicar-se muito bem e o
segundo acaba o texto com palavras bombásticas. Depois de explicar
IV - Conclusão detalhadamente os problemas, pode-se afirmar que o PT defende algo
Entendendo o éthos, basicamente, e grosso modo, como re- que é absurdo. O éthos do enunciador é o de alguém que muito refletiu,
presentação, verificam-se, a partir dos textos analisados, algumas ca- e constrói o do co-enunciador como o de alguém que, por bom senso,
racterísticas desse conceito no enunciador e no co-enunciador, concordará com ele.
construídos pelo autor, a saber: O exemplo (11) é um pouco diferente porque se refere a um
1) No caso das citações, reitera-se a observação feita em relação outro texto, publicado no dia anterior a este. O enunciador retoma seu
aos textos selecionados, segundo a qual não há diferença de efeito de outro discurso para se justificar perante ao co-enunciador e colabora,
sentido entre citação-relíquia e citação-cultura; dessa forma, para seu éthos de pessoa franca, justa, e que assume o
2) A citação-prova que Maingueneau aponta como aquela que que diz. O éthos do co-enunciador é o de alguém que valoriza esse
é baseada em um fato objetivo do mundo real apresenta-se, nesses perfil, embora aqui o objetivo maior seja o de salvar a própria pele do
textos analisados, da seguinte maneira: ou ela representa a opinião ou autor e o de destruir os adversários.
o feito de alguém que é autorizado para servir de exemplo, enfim, é Enfim, é importante estar atento para os caminhos que o
legitimado pela comunidade a que o autor se dirige, ou o enunciador enunciador aponta e para os quais tenta conduzir o co-enunciador. A
usa como prova algo que não é propriamente uma verdade, mas um formação de um leitor crítico depende, também, do reconhecimento de
consenso social, em geral altamente discutível. tais caminhos e dos vestígios da construção do éthos estruturada
3) Esses tipos e modos de empregar as citações constróem o pelos textos.
éthos do enunciador e mostram qual é o éthos do co-enunciador. O
primeiro, principalmente, tem autoridade e o segundo, é alguém que
V – Referências bibliográficas
partilha dos consensos sociais que são apresentados (por exemplo:
as palavras são imprecisas; tempo é dinheiro; polêmica é combate e
BENVENISTE, E. Problèmes de Linguistique Générale 2. Paris,
eu digo isso porque sei que vem de pólemos, combate em grego; o
Gallimard, 1974 (Cap. V).
tráfico é um poder paralelo com mais poderes do que o próprio MAINGUENEAU, D. Genèses du discours. Liège, Mardaga, 1984.
Estado). ———. L’Analyse du Discours. Introduction aux lectures de l’archive.
4) Segundo Maingueneau (1991), o interesse da Análise do Hachette, Paris, 1991.
Discurso pelas aspas reside no seu caráter imprevisível e no elo que ———. O Contexto da Obra Literária. São Paulo, Martins Fontes,
estabelece com o implícito. O que as palavras aspeadas designam está 1995.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 211


O processo da concessão
Lúcia Helena Martins Gouvêa
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
Universidade do Vale do Acaraú - UVA

RÉSUMÉ: A partir de la présentation de quelques approches syntaxiques du proccès de la concession, on montre l’importance d’une vision
discursive, en considérant que cette vision éclaire des aspects pas expliqués par la syntaxe et qu’il demontre le rôle des connecteurs concessifs et celui
des adversatifs.
PALAVRAS-CHAVE: argumento; tese; polifonia; “ topos”.

Este trabalho tem como proposta um estudo do processo da Analisando-se o assunto, então, de uma perspectiva discursiva,
concessão e sua relação com os conectores concessivos e adversativos, em primeiro lugar, destaca-se o fato de que o valor de concessão não
sob uma perspectiva discursiva. é veiculado somente por estruturas com conectores que tradicional-
O valor de concessão costuma ser objeto de referência das mente são chamados de concessivos (embora, apesar de, mesmo, ain-
gramáticas, no capítulo dedicado à sintaxe, mais especificamente na da que, mesmo que).
parte em que elas estudam as orações subordinadas adverbiais. A O processo da concessão teve seu enfoque discursivo em des-
abordagem que se encontra é sobre a oração concessiva – “é uma taque, a princípio, em 1976, por intermédio de Oswald Ducrot e Jean
oração que expressa um fato, real ou suposto, que poderia opor-se à Claude Anscombre (1983: 31). Os autores, ao descreverem, em suas
realização de outro fato, principal, porém não frustrará o cumprimen- pesquisas, enunciados do tipo “p mas q”, registraram o valor
to deste” (Rocha Lima, 1986: 248). É o que se pode observar em “Irei concessivo dessa construção. Isso significa que as estruturas com os
vê-la ainda que chova” em que a hipótese apresentada na segunda conectivos adversativos (mas, porém, todavia, contudo, entretanto,
oração não impedirá o propósito manifestado na oração precedente, etc) também veiculam a idéia de concessão.
embora pudesse constituir obstáculo à sua consumação. Imagine-se uma situação em que uma mãe quer convencer a
Uma abordagem semelhante à das gramáticas é a de Adriano da filha de que esta deve distrair-se, ir à praia, e recebe como resposta
Gama Kury, em Novas lições de análise sintática (1987: 92). No uma negativa. O diálogo é mais ou menos este:
capítulo destinado às orações subordinadas adverbiais, ele diz que
as orações concessivas equivalem a um adjunto adverbial e indicam (1) - O dia está lindo. Você deve ir à praia.
que um obstáculo, real ou suposto, não impedirá ou modificará a - O dia está lindo, mas estou com uma enxaqueca terrível.
declaração da oração principal. Um dos exemplos que ele apresenta é [logo não devo ir à praia]
este: “Apesar de estar doente, saiu para o trabalho”.
José Carlos Azeredo, em sua Iniciação à sintaxe do portugu- O que se observa é que a mãe se utilizou do enunciado “O dia
ês (1990: 103-105), trata do valor concessivo, quando estuda o está lindo” como argumento para convencer a filha a ir à praia. O seu
sintagma adverbial do tipo orações adverbiais. Ele distribui os con- argumento, na verdade, conduziu o raciocínio para a conclusão “Você
teúdos expressos pelas adverbiais em cinco grupos, caracterizados deve ir à praia”. A filha, por seu turno, ao repetir-lhe as palavras,
por um sentido genérico fundamental. Os sintagmas adverbiais reconhece o fato de o dia estar lindo (bom motivo para ir à praia), isto
concessivos estão inseridos no grupo que indica idéia de contraste. é, concede-lhe razão, porém dá continuidade ao seu discurso com um
Sobre eles, o autor diz que há um contraste de sentido entre as propo- outro enunciado, introduzido pelo conector mas. Este enunciado fun-
sições, contraste que é estabelecido por meio de conectores. Dentre ciona como argumento para uma outra conclusão, exatamente contrá-
os casos que apresenta, tem-se “Você não deve ir à festa, embora ria à primeira, ou seja, para a conclusão “Não devo ir à praia”.
tenha sido convidado.” O que se tem aqui é o fenômeno da concessão veiculado por
Em Fundamentos de gramática do português (2000: 237), uma estrutura com o conector mas. Por meio do primeiro enunciado
Azeredo, além de ratificar a relação de contraste já registrada em (a primeira oração), concedeu-se razão ao argumento do outro, argu-
1990, diz que concessão é a relação de sentido em que um fato ou idéia mento que defendia a tese “Você deve ir à praia”, no entanto apresen-
é representado como um dado irrelevante para o conteúdo do restan- tou-se um argumento mais forte (segunda oração) em favor da própria
te do enunciado. Concessiva, para ele, é a oração que expressa o dado tese “Não devo ir à praia”.
irrelevante. Em “O lutador derrubou todos os seus adversários, em- Por intermédio desse tipo de construção, tem-se o seguinte:
bora fosse magrinho”, seria irrelevante a constituição física do atleta.
Abordagens como as apresentadas são as mais freqüentes e, a) o primeiro enunciado constitui o argumento mais fraco e vei
por aparecerem em trabalhos de caráter sintático, seu enfoque semân- cula a idéia de concessão;
tico é mínimo, o que explica a presença de termos como “obstáculo”, b) o segundo enunciado, introduzido pelo conector mas, consti
“contraste”, “dado irrelevante” e a ausência de dados que explicitem a tui o argumento mais forte e veicula a idéia de restrição;
verdadeira relação entre as orações (principal e concessiva) e os ter- c) o argumento mais forte é o que prevalece, portanto a orienta
mos “concessivo” ou “concessão”. ção argumentativa do enunciado “O dia está lindo, mas
Uma abordagem discursiva, ao contrário, além ter um alcance estou com uma enxaqueca terrível” é “Não devo ir à praia”,
maior, na medida em que se estende ao nível macroestrutural, cobre vale dizer, o sentido, a direção para a qual o enunciado aponta
essa falha dos enfoques sintáticos. Por meio do estudo do processo é “Não devo ir à praia”.
da concessão sob o ponto de vista argumentativo, entende-se a razão
pela qual as orações se chamam concessivas, fato que facilita sobre- Este exemplo (1) representa um caso concreto de diálogo em
maneira o trabalho do professor e, conseqüentemente, o aprendizado que se concede razão a outra pessoa. A concessão, entretanto, não se
do aluno. dá somente numa situação de interlocução; ela ocorre, por exemplo,

212 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


quando se está deliberando, isto é, quando se está consultando a si Esses dois enunciados representam pontos de vista de
mesmo sobre o que fazer, ou tentando convencer a si mesmo de seguir enunciadores distintos – E1 e E2. L credita o primeiro argumento, o
determinado caminho; ela ocorre freqüentemente no discurso oral ou mais fraco, ao alocutário, a um terceiro ou à voz pública, constituindo
escrito. O diálogo, por outro lado, mantém-se, se se pode dizer, em a perspectiva de E1. Por outro lado, responsabiliza-se pelo segundo
nível virtual, e, para que se entenda essa questão, deve-se tratar de argumento, o mais forte, da sua perspectiva - a de E2. A direção
dois conceitos importantes: o de locutor e o de enunciador. apontada pelo argumento desta perspectiva é que prevalecerá – “deve-
Segundo Ducrot (1987: 182, 192), locutor é um ser apresenta- se tratar desse assunto”.
do como responsável pelo enunciado; é a ele que se refere o pronome Vale assinalar que poderiam surgir alguns questionamentos
“eu” e as outras marcas de primeira pessoa. De outra parte, no sentido com relação a (2).
do enunciado, podem aparecer vozes que não são a do locutor. Essas Por que usar a estrutura concessiva neste caso? O professor não
vozes são dos enunciadores, seres que se expressam por meio da poderia ter dito simplesmente: “Uma das estratégias mais eficazes para
enunciação; expressam-se não por meio de palavras precisas, mas por argumentar é a concessão” ou “Vamos tratar da concessão porque é uma
intermédio de seu ponto de vista. Se eles falam, é somente no sentido estratégia essencial para quem quer aprender a argumentar”?
em que a enunciação é vista como expressando sua posição, sua atitu- Sim, poderia, mas estaria desperdiçando o momento oportu-
de, mas não, no sentido material do termo, suas palavras. no de justamente utilizar a concessão como uma estratégia
Conhecendo-se o que Ducrot entende por locutor e enunciador, argumentativa, estratégia que permite:
é possível compreender o que significa dizer que a concessão pode
implicar um diálogo em nível virtual. a) demonstrar o conhecimento de que existem outros pontos
Trata-se, na verdade, do fenômeno da polifonia (Ducrot, 1980, de vista na comunidade a que se pertence;
1987). Os enunciados do tipo “p mas q” colocam em cena dois b) antecipar-se a uma possível contra-argumentação, a uma
enunciadores sucessivos – E1 e E2 – que argumentam em sentidos possível crítica que poderia desqualificar tanto a argumen
opostos. O locutor (L), ao proferir seu enunciado como um todo, tação quanto o argumentador; no caso, a objeção ocorreria
apresenta não somente o seu ponto de vista sobre uma determinada por se ter abordado um assunto complexo;
questão, a sua voz, mas também o ponto de vista de outro, a voz de c) preservar a face do outro, mostrando-lhe que sua maneira
outro, que pode ser o alocutário, um terceiro, ou a voz pública (o de ver as coisas não é completamente absurda, mas ...;
senso comum). (Schenedecker, 1992: 84); neste caso, o processo da con
Imagine-se uma situação em que um professor que está escre- cessão seria considerado um ato de preservação de face.
vendo um artigo sobre argumentação coloca o seguinte enunciado no (Goffman, 1967)
seu texto: d) construir-se a personagem de um homem de espírito aber
to, capaz de levar em consideração o ponto de vista dos
(2) A concessão é um assunto complexo, mas se caracteriza por outros (Ducrot, 1987: 216)
ser uma estratégia essencial para quem quer aprender a
argumentar. Se o professor não tivesse utilizado a estrutura concessiva,
teria perdido a oportunidade de argumentar no momento propício,
O que se percebe aqui são dois pontos de vista distintos; um, evitando contratempos posteriores.
de que “a concessão é um assunto complexo”; outro, de que “ela se Ainda no que diz respeito a construção (2), vale acrescentar a
caracteriza por ser uma estratégia essencial para quem quer aprender noção de topos introduzida por Ducrot (1989: 13). Topos é um prin-
a argumentar”. Esses dois pontos de vista, por seu turno, não podem cípio reconhecido por uma coletividade lingüística, é um lugar-comum
pertencer a um único ser, já que servem de argumento para teses argumentativo que fundamenta a utilização de um determinado argu-
opostas. mento para se chegar a uma dada conclusão.
O dono do enunciado – e o enunciado aqui considerado como L só pôde usar, da perspectiva de E1, o argumento “a conces-
um todo - o locutor (L), aquele que se responsabiliza por esse enunci- são é um assunto complexo” para defender a tese “não se deve tratar
ado, reconhece que o assunto é complexo, mas o que interessa para ele desse assunto”, porque existe um topos que diz que “se o assunto é
é que o assunto é importante e indispensável para um determinado complexo, é conveniente não abordá-lo”. De outra parte, L só pôde
fim, logo ele vai abordá-lo. utilizar, da perspectiva de E2, a sua perspectiva, o argumento “a
Verifica-se, então, a presença de dois enunciadores e daquilo concessão se caracteriza por ser uma estratégia essencial para quem
que se chamou de um diálogo virtual. Observe-se: quer aprender a argumentar” a fim de defender a tese “deve-se tratar
desse assunto”, porque existe um topos que diz que “se o assunto é
(3) E1: A concessão é um assunto complexo. [logo não se essencial para se alcançar um determinado conhecimento, é conveni-
deve tratar desse assunto] ente abordá-lo”.
L (E2): A concessão é um assunto complexo (E1), mas se No que se refere à concessão veiculada por estruturas com
caracteriza por ser uma estratégia essencial para
conectores concessivos (embora, mesmo que, apesar de, etc.), estão
quem quer aprender a argumentar (E2). [logo deve-
envolvidos os mesmos elementos.
se tratar desse assunto]
Observe-se o diálogo interior e inconsciente do professor:
Na verdade, o que se pode constatar é o processo da conces-
(4) E1: A concessão é um assunto complexo. [logo não se
são implicando dois fenômenos: o da polifonia e o da orientação
deve tratar desse assunto]
argumentativa.
L (E2): Embora a concessão seja um assunto complexo
Tem-se um locutor (L) apresentando dois enunciados que fun-
(E1), caracteriza-se por ser uma estratégia es
cionam como argumentos para teses opostas: A1 - O processo da
sencial para quem quer aprender a argumentar
concessão é um assunto complexo [logo não se deve tratar desse
(E2). [logo deve-se tratar desse assunto]
assunto]; A2 – O processo da concessão se caracteriza por ser uma
estratégia essencial para quem quer aprender a argumentar [logo
O locutor, ao apresentar o primeiro argumento, da perspecti-
deve-se tratar desse assunto].

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 213


va de E1, concede razão ao adversário, reconhecendo que “a conces- início do recorte. A perspectiva de que se diz embora Y nega a si
são é um fenômeno complexo”, porém introduz um argumento mais mesma como predominante, significando que aquilo que se enuncia,
forte, de sua perspectiva, a de E2, que conduz para a conclusão “logo neste momento, não afeta o que é apresentado no começo da estrutu-
deve-se tratar desse assunto”. ra. O que se tem é a perspectiva de E2 prevalecendo já no acordo
À semelhança do que ocorre com as estruturas com mas, por inicial, e a perspectiva de E1 funcionando como mero contraponto.
meio do enunciado concessivo, o locutor se protege de uma possível No caso em apreço (5), quando o alocutário se depara com o
contra-argumentação. Se ele simplesmente dissesse “A concessão é enunciado “embora seja um fenômeno complexo”, percebe imediata-
uma estratégia essencial para quem quer aprender a argumentar”, pode- mente a fragilidade do argumento, por ser introduzido por “embora” e
ria ouvir uma crítica do tipo “Você não deveria ter abordado o fenôme- por ocupar uma posição de desprestígio – a de final de frase. Isso
no da concessão, pois é um assunto muito complexo”. Antes que isso significa que o assunto será abordado.
ocorresse, ou, para que isso não ocorresse, o locutor se valeu do Para concluir esse enfoque discursivo do processo da conces-
enunciado concessivo. são veiculado por estruturas com conectores concessivos e
Há, por outro lado, algumas diferenças entre as duas constru- adversativos, observe-se o que diz Ducrot sobre o tema:
ções – a com mas e a com embora. Nesta, é o argumento mais fraco
que vem introduzido por conector; naquela, é o mais forte. Isso ocor- Concessão, no sentido retórico do termo, é a aceitação de um
re, porque embora tem valor de concessão, e mas, de restrição. O argumento do adversário, argumento que não se refuta, mas que se
argumento concessivo, por representar o ponto de vista do opositor, faz seguir de outro em sentido inverso, a partir do qual se conclui. É
é obviamente o mais fraco; o argumento restritivo, por representar o um tipo de manobra que não custa caro e um meio persuasivo impor-
ponto de vista do locutor, é o mais forte, o que prevalece. tante. Concordando com o adversário que seu ponto de vista é justo
É conveniente chamar a atenção, ainda, para as implicações da e pertinente, o indivíduo, de um lado, concilia-se com ele, de outro,
opção por estruturas com embora ou com mas. O jogo enunciativo torna-lhe menos penoso admitir os argumentos contrários a ele.
composto da oposição entre os enunciadores, da orientação (Ducrot, 1990).
argumentativa e da articulação entre as duas orações cria vários
caminhos na organização textual (Guimarães, 1987: 121) Referências bibliográficas
Quando o locutor opta por uma estrutura do tipo X mas Y, ele
estabelece com o alocutário um começo a que se opõe imediatamente. ANSCOMBRE, Jean Claude e DUCROT, Oswald. L’argumentation
Trata-se de uma estratégia que frustra a expectativa criada pelo que se dans la langue. Bruxelas: Mardaga, 1983.
deu no começo, o enunciado concessivo. AZEREDO, José Carlos. Iniciação à sintaxe do português. Rio de
No exemplo (2), quando o ouvinte ou o leitor se depara com o Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
enunciado “A concessão é um assunto complexo”, por um instante ______. Fundamentos de gramática do português. Rio de Janeiro:
imagina que ela não será abordada. Essa impressão logo se desfaz ao Jorge Zahar, 2000.
encontrar o conector mas. DUCROT, Oswald. Les mots du discours. Paris: Du Minuit, 1980.
Se a opção for por embora Y, X* , o locutor apresenta como ______. O dizer e o dito. Tradução de Eduardo Guimarães. Campinas:
começo algo que não é predominante, que não é sustentável na organi- Pontes, 1987.
zação argumentativa, e esse caráter não-predominante é antecipado ______. Argumentação e topoi argumentativos. Tradução de Eduardo
em virtude de o recorte vir introduzido pelo conector. A estratégia de Guimarães. In: História e sentido na linguagem. Campinas: Pon-
refutação no acordo inicial e contraponto predominante na segunda tes, 1989.
parte valoriza a representação de não-predominância, porque o locu- ______. Argumentation e persuasion. In: Colloquie d’Anvers
tor se coloca nesse espaço, junto com o alocutário, e afastar-se desse “Enunciation et Part-Pris”, 1990.
lugar resulta em credibilidade argumentativa. GOFFMAN, Erving. Interaction ritual: essays on face-to-face
Em (4), quando o alocutário ouve ou lê o enunciado “Embora a behavior. New York: Garden City, 1967.
concessão seja um assunto complexo”, já sabe que o fenômeno vai ser GUIMARÃES, Eduardo. Texto e argumentação: um estudo de con-
enfocado, pois o conector revela que a orientação do enunciado se- junções do português. Campinas, SP: Pontes, 1987.
guinte prevalecerá. KURY, Adriano da Gama. Novas lições de análise sintática. 3. ed. São
Com a estrutura X embora Y, que pode ser observada em Paulo: Ática, 1987.
ROCHA LIMA, Carlos Henrique da. Gramática normativa da lín-
(5) A concessão caracteriza-se por ser uma estratégia essenci gua portuguesa. 27. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1986.
al para quem quer aprender a argumentar (E2), SCHNEDECKER, Catherine. Quand il faut faire ds concessions.
embora seja um assunto complexo (E1)., Quelques suggestions pour une didactique de la concession. Pra-
tiques. Nº 75. Paris, 1992.
a estratégia argumentativa consiste em manter aquilo que se deu no

*
Segue-se, aqui, a conduta adotada por Guimarães (1987) no que se refere
à utilização das letras X e Y e sua correspondência com os argumentos.
Tem-se: X mas Y; X embora Y; embora Y, X.

214 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


As líquidas não-laterais na aquisição do Português
Brasileiro – estudo comparativo entre o desenvolvimento
fonológico normal e os desvios fonológicos evolutivos
Regina Ritter Lamprecht
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUC/RS

ABSTRACT: Interaction between the segmental and prosodic levels in acquisition of non-lateral consonants of Brazilian Portuguese is discussed.
Evidence is presented for the role of the syllable and of the metric foot in normal and disordered acquisition, as are similarities and differences
between normal and disordered acquisition. Failure to achieve the adequate language-specific constraint ranking is taken as a possible explanation
for phonological delay or disorders.
PALAVRAS-CHAVE: aquisição fonológica; desvios fonológicos evolutivos; líquidas não-laterais; restrições.

Introdução adequada de pelo menos 85% das possibilidades de ocorrência. Veja-


Serão discutidas aqui semelhanças e diferenças no processo de se em (1) a idade de domínio fonético e fonológico.
aquisição das líquidas não-laterais do Português Brasileiro (PB), com-
parando-se resultados de pesquisas sobre a aquisição fonológica nor- Verifica-se uma diferença inter-sujeitos de até 9 meses tanto
mal (daqui em diante DFN), como Lamprecht (1990), Hernandorena no domínio da realização fonética como no do papel fonológico do R-
(1990), Miranda (1996), Rangel (1998), Hernandorena & Lamprecht forte, extensão de tempo que é significativa quando se está falando de
(1999) e Mezzomo (1999), com pesquisas sobre aquela com desvios crianças de, somente, até 3 anos.
fonológicos evolutivos (daqui em diante DFE) como Lamprecht 1.3 A idade nos desvios fonológicos evolutivos
(1986), Hernandorena (1988), e Vidor (2000). A idade é a mais óbvia diferença da aquisição com DFE em
A estrutura deste trabalho é a seguinte: será abordado, primei- relação à aquisição normal. Processos iniciais podem ser encontrados
ramente, um fator extra-lingüístico que influi na aquisição fonológica, tardiamente, como é o caso da não-realização da coda medial com nasal
a idade. A seguir, fala-se sobre fatos do processo de aquisição das (“vento” sendo realizado como [etu]). Essa não-realização já é superada,
líquidas não-laterais e sobre a sílaba e o pé métrico como fatores
lingüísticos influentes. Serão trazidos exemplos retirados dos dados
das crianças, e apontadas semelhanças e diferenças entre o desenvol-
vimento fonológico normal e aquele com desvios evolutivos. Também
é apresentado e discutido o que se pode enxergar, através desses
dados, em relação ao conhecimento que a criança tem sobre o sistema
fonológico. Por fim, será esboçada uma explicação para essas seme-
lhanças e diferenças entre o DFN e os DFE. na aquisição normal, em torno de 1:6, certamente antes dos 2:0, mas
foi encontrada nos DFE em crianças com 6:0 a 8:0 anos.
O que os dados mostram: semelhanças e diferenças
1 Aspecto não-lingüístico: a idade 2 Aspectos lingüísticos na aquisição fonológica
1.1 A idade no desenvolvimento fonológico normal 2.1 Quanto à não-realização e à substituição de segmentos no
Hernandorena & Lamprecht (1997), em estudo sobre 310 cri- desenvolvimento fonológico normal
anças com DFN, usando um critério de 90% de produção adequada, São absolutamente comuns, na aquisição normal, as não-
constatam que o R-forte está adquirido, em ambas as posições de realizações de líquidas em qualquer posição silábica, como
ataque simples, na faixa etária de 3;4 a 3;5; o r-fraco está adquirido, em exemplificado em (2) a seguir:
ataque medial, somente na faixa etária de 4;2 a 4;3, portanto 10 meses (2) R-forte: em ataque inicial “rosa” [‘⊃za]
mais tarde. em ataque medial “cachorro” [ka’sow]
Para a posição de coda silábica, Mezzomo (1999), em estudo r-fraco: em ataque medial “aranha” [a’ãña]
transversal com dados de 68 crianças – 34 meninos e 34 meninas – em ataque complexo “prato” [‘patu]
entre 1;4 e 3;10, refere a aquisição do r-fraco na coda medial na faixa em coda medial “porta” [‘p⊃ta]
etária 3;8 – 3;10. Com isso, esse segmento é o último a ser adquirido em coda final “mar” [ma]
entre aqueles que podem ocorrer nessa posição no PB. Mezzomo
mostra que a coda com nasal está adquirida aos 1;7 – 1;8, a com líquida São, também, extremamente comuns as substituições de uma líquida
lateral na faixa dos 2;6 – 2;8, e a coda com fricativa aos 3;0 – 3;2. Há, por outro segmento, porém não há uma ampla gama de substituições,
portanto, uma diferença de aproximadamente 24 meses entre o domí- as possibilidades delas são até bem restritas. Preferencialmente, ocor-
nio da primeira coda – a com nasal – e a com não-lateral. rerá a substituição por outra líquida, havendo, então, as realizações da
lateral [l] em lugar de r-fraco, da lateral [l] em lugar de R-forte, do r-
1.2 Variabilidade inter-sujeitos quanto à idade fraco em lugar do R-forte. Encontra-se, mas em porcentagem bem
Existe uma variabilidade inter-sujeitos importante entre as cri- mais baixa, a substituição por glides, com a produção do glide palatal
anças quanto à idade de aquisição dos segmentos. Rangel (1998) for- [y] em lugar do r-fraco e do glide [w] em lugar do R-forte. Outras
nece evidências concretas em estudo longitudinal sobre 3 crianças ocorrem mais raramente, como a substituição do R-forte pela plosiva
com idade entre 1;6 e 3;0. O critério de aquisição é da produção velar, com a produção de [g] em lugar do R-forte (Lamprecht, 1990;

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 215


Hernandorena, 1990; Lamprecht, 1995; Miranda, 1996; Hernandorena 2.4 Conhecimento da sílaba complexa
& Lamprecht, 1997; Rangel, 1998; Mezzomo, 1999). A análise detalhada dos dados leva a uma observação importan-
te. O fato de uma consoante não ser realizada em determinada posição
2.2 As substituições nos desvios fonológicos evolutivos na sílaba, de esta posição não ser preenchida, não significa, necessari-
Quanto às substituições nos DFE tem-se o trabalho de Vaucher amente, que a criança desconheça a posição silábica em questão. Isso
(1996), que faz um estudo transversal com dados de 46 crianças com será ilustrado com um fato relatado e discutido primeiramente em
desvios com idade entre 2;7 – 10;8. O que se observa é que as substi- Hernandorena (1988), e mais tarde em Ramos (1996). Nesse último
tuições nos DFE são, na maioria das vezes, as mesmas que na aquisi- trabalho, os 20 sujeitos com DFE apresentavam, todos, quase 100%
ção normal. Vaucher mostra que as líquidas sofrem alterações de tra- de redução de encontros consonantais, ou seja, não tinham o domínio
ços que também ocorrem na aquisição normal, porém nos DFE podem do ataque complexo, realizando “prato” com [‘patu] e “blusa” como
ocorrer com mais intensidade e/ou em direção (valor do traço) diferen- [‘buza]. No caso das palavras “trilho” e “tricô”, a não-realização da
te. Assim, dos 46 sujeitos desse estudo, 15 (33% das crianças) tive- líquida não-lateral resultaria em [‘tiλu] e [ti’ko]. No entanto, como no
ram alterações no traço [contínuo] nas obstruintes; porém nas líqui- dialeto falado em Porto Alegre existe a regra de palatalização do /t/
das o mesmo traço está alterado em 40 dos 46 sujeitos (87% deles), diante de /i/, a realização dessas palavras sem a não-lateral teria que ser
com uma porcentagem média de ocorrência de 24,69% (341/1381 [‘…ilyu] e […i’ko]. Nao é o que se verifica nos dados de 18 dos 20
possibilidades). As pesquisas de Vidor (2000) e de Keske-Soares sujeitos de Ramos (90%), que realizam [‘tilyu] e [ti’ko]. O fato de não
(2001), entre outras, mostram que há poucas substituições realmente ocorrer a palatalização permite inferir que o [t] não está diante de [i]
na representação que esses sujeitos têm dessas duas palavras; e tam-
incomuns.
bém permite inferir que a não-lateral “está lá”, na representação da
Por outro lado, é possível constatar fatos pouco ou nunca en-
sílaba, impedindo a produção da africada. Embora não realizada, a
contrados na aquisição normal. Para citar dois exemplos, em Lamprecht
líquida não-lateral do ataque complexo faz parte do conhecimento
(1986) e Yavas & Lamprecht (1988) encontram-se dados de crianças
desses sujeitos.
com 8;0 de idade em que há a sistemática substituição de toda a classe
A observação dos dados dessas pesquisas sobre a aquisição
das líquidas por nasais, com em: “para” à [pama], “galinhas” à
normal mostra que, no trajeto que medeia entre a inexistência das
[kaminas]. Em Yavas & Hernandorena (1991) e em Keske-Soares & estruturas silábicas marcadas e o seu domínio, existem três possibili-
Lamprecht (2000) há a descrição da fala de sujeitos que apresentam dades diferentes de realização da sílaba, cada uma com um grau maior
preferência por um som, processo realmente destrutivo para o siste- ou menor de adequação e com implicações para o que se pode afirmar
ma fonológico porque causa a substituição de toda uma classe de sons quanto ao conhecimento fonológico da criança. Propõe-se, aqui, que
por um só som. se tem as seguintes situações:
Para saber se esses processos incomuns prevalecem ou não nos Estado inicial - a criança não produz o segmento, mesmo
DFE, pode-se recorrer à tese de Keske-Soares (2001), na qual a quando ele está presente em seu inventário fonético, porque não ad-
autora propõe uma classificação dos sujeitos em quatro diferentes quiriu a estrutura sílábica marcada. Este estado é comum a todas as
categorias conforme tipo de desvio. As categorias são: desvios crianças.
fonológicos com características incomuns; desvios fonológicos com Exemplo: “porta” à [p⊃ta] CVC à CV
características iniciais; desvios fonológicos com características atra- Possibilidade a) a criança não produz o segmento mas há
sadas; e desvios fonológicos com características fonéticas adicionais. evidência indireta de que a estrutura sílábica marcada exista na
Confirma-se, aí, que os fatos incomuns não são freqüentes nos DFE, subjacência, conforme foi exemplificado acima.
porque somente 7 dos 35 sujeitos, portanto 20% deles, estão incluí- Exemplo: “trilho” à [tilyu] CCV à C...V
dos na categoria dos desvios incomuns. Possibilidade b) a criança não produz o segmento de forma
perceptível a ouvido nu mas a análise acústica permite verificar a
2.3 Quanto à sílaba existência de material - por exemplo, um alongamento da vogal prece-
As sílabas canônicas, universais, CV e V, são comuns a todas as dente à coda; ou um vocóide no lugar do segundo elemento do onset
crianças desde o balbucio. À medida que é necessária a produção dos complexo.
segmentos da língua nas posições mais marcadas – CVC e CCV -, fica Exemplo: “porta” à [p⊃:ta] CVC à CV:
clara a importância da estrutura interna da sílaba, evidenciada pelas “brabo” à [b*abu] CCV à C*V
diferenças na época e na maneira como se dá a aquisição dos segmen- Possibilidade c) a criança produz uma metátese, neste caso
tos consonantais dependendo da sua posição na sílaba – ataque ou temos a produção/a preservação do segmento mas continuamos com a
coda - e na palavra – posição medial ou absoluta. não-realização da sílaba-alvo.
Lamprecht (1990), Hernandorena (1990) e Miranda (1996), Exemplo: “porta” à[pr⊃ta] CVC à CCV
entre outras pesquisas, mostram que a posição do segmento não- Estado final - a criança produz o segmento adequadamente, a
lateral na sílaba – se está no ataque, se é membro de ataque complexo, estrutura sílábica marcada está adquirida.
ou se está na coda – é determinante para a época de aquisição e Exemplo: “porta” à [p⊃rta] CVC à CVC
também para o que pode acontecer antes de se verificar a aquisição.
Enquanto não se dá o domínio do segmento, são verificadas probabi- Exemplos dessas etapas possíveis no domínio da estrutura da
sílaba podem ser encontradas tanto no DFN como nos DFE. Porém,
lidades diferentes quanto àquilo que será produzido em lugar da líqui-
é na aquisição da sílaba mais do que na aquisição dos segmentos e
da-alvo conforme a posição na sílaba. Em ataque simples ocorrem
das classes de sons que se constata o distanciamento entre o DFN e
sobretudo substituições – como [latu] para “rato”, embora não-reali-
os DFE.
zações também sejam encontradas, como já foi mostrado no exemplo
2.5 Quanto ao pé métrico
(2), acima; em ataque complexo, a não-realização da não-lateral é cate-
No momento em que se olha os dados da aquisição fonológica
górica, resultando, por exemplo, em [a’bi] para “abrir”, e sendo abso-
sob uma perspectiva que leva em conta o papel do nível prosódico,
lutamente raras as substituições; e, por último, em coda predomina a constata-se o quanto é evidente o papel do pé métrico. Em pesquisa
não-realização – como em [poku] para “porco”, mas também ocorrem sobre as líquidas em posição de ataque (Hernandorena & Lamprecht,
substituições, como em [ta’tol] para “trator”. 1997), a análise estatística comprovou que a produção do R-forte é

216 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


facilitada na sílaba forte do pé; já a do r-fraco é facilitada na sílaba fraca e precisam ser explicadas num enfoque fonológico.
do pé, mas ainda sempre dentro do pé. Creio que se pode pensar em falhas no ordenamento de restri-
Em Lamprecht (1990), estudo longitudinal sobre 12 crianças ções que é adequado à língua-alvo. Existe, nas línguas do mundo e na
com DFN, vê-se que há um papel evidente do pé na produção de aquisição, a concorrência entre restrições de marcação e restrições de
metáteses. Em 64% das ocorrências (18/28 ocorrências), a metátese se fidelidade. O ordenamento mais alto de restrições de marcação evita
dá de uma sílaba com acento secundário para uma sílaba com acento outputs marcados – difíceis, por isso menos freqüentes nas línguas e
principal, e em 78% dessas ocorrências, a metátese leva a líquida da tardios na aquisição – mas resulta em outputs diferentes do input,
sílaba fraca para a sílaba forte do pé. O que se vê aqui é que, ao se portanto inadequados. Por outro lado, o ordenamento mais alto de
depararem com a necessidade da produção da líquida numa sílaba restrições de fidelidade garante a fidelidade ao input, isto é, a produ-
marcada, essas crianças recorrem à sua transposição dentro do pé. ção de outputs idênticos aos inputs, mas resulta em outputs mais
Evitam, dessa maneira, tanto a omissão do segmento como a produção difíceis de produzir, mais tardios a dominar. No início da aquisição
da estrutura silábica que causa dificuldades. O trabalho de Zitzke fonológica prevalecem as restrições de marcação; por isso, o output
(1998) – baseado nos dados de 310 crianças com idade entre 2;0 e 7;1 da criança pequena é o mais simples, o mais fácil possível, porém está
- confirma a influência do pé nas ocorrências de metátese. distante da língua falada em seu grupo social e que é seu alvo. À
É exatamente na aquisição das líquidas não-laterais que pode medida que a criança cresce, ao longo do processo de aquisição
ser visto outro exemplo do papel do pé, encontrado nos dados de uma fonológica, ocorre o reordenamento de restrições e passam a prevale-
menina de 2;6 com DFN que não tinha, ainda, adquirido o r-fraco nem cer as restrições de fidelidade (veja-se Bernhardt & Stemberger, 1998).
o R-forte. No ataque, o r-fraco era sempre substituído pela lateral, Assim, o output da criança passa a ser cada vez mais semelhante ao do
mas quanto ao R-forte havia duas possibilidades: a não-realização do adulto, até que seja atingido o ordenamento de restrições adequado à
R-forte, ou a substituição pela plosiva velar surda, como se vê em (3). língua específica. A aquisição fonológica é vista, assim, como o pro-
(3) “rosa” à [‘⊃za] /R/ à 0 cesso de demoção de restrições violadas na língua-alvo e de promoção
“roca” à [‘⊃ka] /R/ à 0 de restrições não violadas na língua-alvo.
“morrerá”à [moke’la] /R/ à [k] Dentro do exposto, pode-se pensar que as crianças com DFE
“Renato” à [ke’natu] /R/ à [k] só conseguem cumprir isso parcialmente, isto é, não realizam todas as
reordenações de restrições necessárias. Seria por esse motivo que elas
A não-realização do R-forte ou a sua substituição são gover- têm um desenvolvimento que mostra semelhanças com o DFN mas
nados pelo fato de a não-lateral estar na sílaba forte do pé – quando que não atinge totalmente o domínio do sistema fonológico da língua.
não é realizada – ou na fraca - quando é substituída pela plosiva velar. A discrepância na idade sugere que a criança com desvios pára em
A mesma influência é encontrada na fala de uma menina com algum ponto do reordenamento, seja numa parada definitiva, quando
DFE, com 10;0 de idade, que, de modo análogo ao caso da menina de então o sistema não se desenvolve mais e fica com características
2;6, não tinha nem o r-fraco nem o R-forte. Aqui, há variação no iniciais; ou numa parada temporária, que causaria um atraso no de-
tratamento do r-fraco, que não está adquirido, quando se encontra no senvolvimento. As crianças com características incomuns na classifi-
ataque: ocorre a não-realização do r-fraco, ou a sua substituição pelo cação de Keske-Soares (2001), 20% dos seus sujeitos, são, talvez,
glide [y], como se vê em (4): aquelas em cujo sistema há reordenamentos parciais e estranhos à
(4) “jacaré” à [sakaε] /r/ à 0 língua específica (como a preferência por um som), seja em momentos
“nariz” à [a’is] /r/ à 0 diferentes do que no DFN e/ou em seqüência diferente do que no
“adoro” à [a’t⊃yu] /r/ à [y] DFN.
“carteira” à [ka’teya] /r/ à [y] ******
A autora é pesquisadora do CNPq (Processo 301457/91-3)
Novamente, vê-se que a não-realização do r-fraco ou a sua e-mail: relamprecht@pucrs.br
substituição são governados pelo fato de a não-lateral estar na sílaba
forte do pé – quando não é realizada – ou na fraca - quando é substi- Referências bibliográficas
tuída pelo glide [y].
Além da influência do pé métrico, uma observação muito sig- BERNHARDT, Barbara & STEMBERGER, Joseph (1998)
nificativa pode ser feita através dos exemplos em (3) e (4). Ambas as Handbook of Phonological Development. San Diego, Academic
crianças têm lacunas no inventário fonológico, já que não adquiriram Press.
as não-laterais; ambas sabem que a não-lateral existe na forma-alvo e HERNANDORENA, Carmen L.M. (1988) Uma proposta de análise
lidam com as lacunas não realizando ou substituindo essas consoan- de desvios fonológicos através de traços distintivos. Disserta-
tes; ambas são sensíveis ao pé métrico, e essa sensibilidade governa ção de mestrado, PUCRS.
suas produções inadequadas. Verifica-se que tanto a menina com de- ___________.(1990) Aquisição da fonologia do português: estabe-
senvolvimento normal quanto aquela com desvios fonológicos apre- lecimento de padrões com base em traços distintivos. Tese de
sentam, nestes exemplos, exatamente as mesmas características: doutorado, PUCRS.
estamos, portanto, diante de semelhanças entre o DFN e os DFE. A HERNANDORENA, Carmen L.M. & LAMPRECHT, Regina R.
diferença fica por conta da evidente discrepância na idade – uma com (1997) A aquisição das consoantes líquidas do Português. Letras
2;6, a outra com 10;0. de Hoje, 32, 4, 7-22.
(1999) A hierarquia de restrições na aquisição dos padrões silá-
Tentando explicar semelhanças e diferenças bicos do Português. Trabalho apresentado no II Congresso Na-
Através de algumas semelhanças e diferenças no processo de cional da ABRALIN. Florianópolis, SC.
aquisição das líquidas não-laterais do PB, pôde-se discutir semelhan- KESKE-SOARES, Márcia (2001) Terapia fonoaudiológica funda-
ças e diferenças entre o DFN e os DFE. A inadequação mais facilmen- mentada na hierarquia implicacional dos traços distintivos apli-
te detectável está na idade, um fator extra-lingüístico; os fatores cada em crianças com desvios fonológicos. Tese de doutorado,
lingüísticos apresentam, na grande maioria das crianças com DFE, PUCRS.
diferenças não fundamentais. No entanto, as diferenças são inegáveis KESKE-SOARES, Márcia & LAMPRECHT, Regina R. (2000) A

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 217


intervenção fonoaudiológica num caso de desvio fonológico com não-linear. Tese de Doutorado, PUCRS.
processos incomuns. Trabalho apresentado no 5o Encontro Na- RANGEL, Gilsenira de A (1998) Uma análise auto-segmental da
cional sobre Aquisição da Linguagem, Porto Alegre, PUCRS. fonologia normal: estudo longitudinal de 3 crianças de 1:6 a 3:0.
LAMPRECHT, Regina R. (1986) Os processos nos desvios Dissertação de mestrado, PUCRS.
fonológicos evolutivos. Dissertação de mestrado, PUCRS. VAUCHER, Ana Valéria de A. (1996) Descrição das substituições
_____________.(1990) Perfil da aquisição normal da fonologia do consonantais presentes nos desvios fonológicos evolutivos sob
Português - descrição longitudinal de 12 crianças: 2:9 a 5:5. a perspectiva da Geometria de Traços. Dissertação de mestrado,
Tese de doutorado, PUCRS. PUCRS.
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of normal and deviant phonological acquisition. In: FARIA, I.H. por crianças com desvios fonológicos evolutivos: descrição,
& FREITAS, M. J. Studies on the acquisition of Portuguese. análise e comparação com o desenvolvimento normal. Disser-
Lisboa, Colibri, 35-42. tação de mestrado, PUCRS.
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RAMOS, Ana Paula F. (1996) Processos de estrutura silábica em Dissertação de mestrado, PUCRS
crianças com Desvios Fonológicos Evolutivos: uma abordagem

218 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


O ponto de articulação das laterais em ataque
simples na aquisição do Português Europeu
Maria João Freitas
Universidade de Lisboa

ABSTRACT: In this paper, I will address the issue of phonological acquisition by observing portuguese children’s productions when faced with
target structures with alveolar and palatal laterals in non-branching Onset position. The goals of the study are: (i) to identify developmental stages
in the acquisition of place of articulation within this class of segments and (ii) to compare the results obtained for European Portuguese with those
reported for Brasilian Portuguese.
PALAVRAS-CHAVE: Aquisição, Fonologia, Ponto de Articulação, Laterais

1. Introdução e definição do problema. Nos trabalhos sobre a ramificado é o único em que ambas as laterais fonológicas /l, ´/ ocor-
aquisição da estrutura interna dos segmentos que adoptam um modelo rem, centrar-nos-emos no tratamento que as crianças fazem destes
representacional com hierarquização de traços distintivos, como é o dois segmentos nesta posição silábica, no percurso da aquisição.
da Geometria de Traços (Clements 1985, Sagey 1986 e Clements & Segundo Hernandorena 1990 e 1999, a estabilização de /l/ pre-
Hume 1995), as duas questões que se colocam são: (i) qual a estrutura cede a de /´ /, sendo a palatal um dos segmentos de estabilização mais
interna dos segmentos nas diferentes fases de desenvolvimento? (ii) tardia no PB. Hernandorena 1999 define as estratégias de reconstru-
qual a ordem de aquisição dos diferentes traços ou grupos de traços? ção mais frequentes face a alvos com a lateral /´/:
No que diz respeito à aquisição das laterais, sabemos da literatura
que estas não se encontram representadas no inventário segmental
universal, não surgem nas primeiras produções das crianças e, em
conjunto com as vibrantes, são normalmente referidas como um dos
grupos consonânticos mais problemáticos na aquisição. A sua é
aquisição tardia e depende dos constituintes silábicos que as dominam
mas pouco é dito sobre a discriminação de pontos de articulação
dentro da classe, uma vez que muitos inventários segmentais A aparente semelhança entre os alvos em foco no PE e no PB
contemplam apenas a lateral /l/ (cf. Ingram 1992, Rice & Avery 1995). (/l, ´/ em Ataque não ramificado) levar-nos-ia a prever um comporta-
Assumindo que as crianças adquirem uma língua formulando mento semelhante por parte das crianças portuguesas. Tal não se
hipóteses sobre o funcionamento das várias estruturas que a constituem, verifica: nesta posição silábica, a emergência e a estabilização de /l, ´/
à partida, estruturas idênticas nos sistemas-alvo são submetidas aos no PE faz-se em simultâneo. As crianças portuguesas passam por um
mesmos processos. Neste sentido, sabendo que tanto o Português longo período de não diferenciação entre os dois segmentos, após o
Europeu (PE) como o Português do Brasil (PB) possuem as laterais que a discriminação é feita e os segmentos são produzidos em confor-
/l,´/ no seu inventários segmental, esperar-se-ia que as crianças midade com o sistema-alvo:
portuguesas e as brasileiras revelassem o mesmo comportamento face (3) Luís ler ['´e] (1;9.29)
a estas estruturas-alvo. Como se verá, tal não acontece. Assim, o leite ['let®] (1;9.29)
problema que colocamos nesta comunicação é o seguinte: perante um palhaço [pŒ'lasu] (2;0.27)
inventário fonológico aparentemente idêntico (as laterais fonológicas
flores [f®'´oRZ] (2;0.27)
/l, ´/), por que razão a aquisição destes segmentos revela padrões
olho ['´u] (2;11.2)
parcialmente distintos nas crianças brasileiras e nas crianças
lâmpada ['lŒâpŒdŒ] (2;11.2)
portuguesas?
Nesta comunicação, discutiremos este comportamento
verbal diferenciado das crianças portuguesas e brasileiras1 tendo em A tipologia de estratégias de reconstrução apresentada por
conta (i) a interferência de propriedades fonológicas do input na Hernandorena 1999 só parcialmente é usada no PE:
ordem de aquisição das estruturas e (ii) a capacidade que as crianças
demonstram em discriminar diferentes configurações fonológicas de
alvos aparentemente semelhantes.
1
A descrição do PE será feita com base num corpus com produções de 7
crianças portuguesas monolingues, com idades entre os 0;10 e os 3;7. A
2. Descrição dos dados. No Português, os segmentos laterais surgem
recolha dos dados foi de base naturalista, e decorreu em casa da criança,
nas seguintes posições silábicas: em sessões mensais durante 1 ano (o João foi acompanhado durante 2
anos), com durações entre os 30 e os 60 minutos. Estavam presentes, na
gravação, a mãe e a investigadora. Foram usados como estímulos os
objectos do quotidiano da criança (livros, brinquedos e utensílios domés-
ticos), integrados nas situações de brincadeira, de banho e de refeição. A
estrutura da recolha é longitudinal transversal.A base de dados que inte-
gra as produções das crianças foi constituída no formato CHILDPHON,
uma aplicação do 4th Dimension para Macintosh, desenvolvida no Max
Com se verifica em (1), a distribuição das laterais no PE e no PB
Planck Institut for Psycholinguistics, usada em Fikkert (1994) e em Levelt
é idêntica em Ataque; a diferença reside no formato da lateral /l/ na (1994). A referência aos dados do PB terá na base as descrições de
Rima: é [Â] em PE e [w] em PB. Dado que o constituinte Ataque não Hernandorena 1990, 1995 e 1999.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 219


(4) (i) Apagamento /´/ -> Æ coelhinho [kwŒ'iøu]
/l/ -> Æ lobo ['opu]
(ii) Glidização /´/ -> [j] olha ['jŒ]
/l/ -> [j, w] viola ['vjwŒ]
amarelo [mŒ'Eju]
(iii) Alternância /´/ -> [l] colheres [ko'lElŒS]
/l/ -> [´] ler ['´e]

A estratégia de reconstrução (4.i) é muito frequente nos dados


da aquisição do PE: perante estruturas-alvo problemáticas, tanto
segmentais como silábicas, as crianças usam como estrutura default Se assumirmos que estas são as estruturas internas de /l, ´/ no
um Ataque vazio (Freitas 1997; Costa & Freitas 1999). As estratégias PE, então, estamos perante dois segmentos simples e as crianças ape-
(4.ii) e (4.iii) são também muito produtivas nos dados observados. Já nas têm que adquirir a oposição [+/-anterior] para que a distinção se
as estratégias (iv) e (v) registadas por Hernandorena 1999 e apresen- faça. Deste modo, o PB e o PE forneceriam dois inputs distintos, no
tadas em (2) (/´/->[lj]; /´/->[li]) não se verificam nos dados do PE, que diz respeito às laterais em Ataque não ramificado: (i) o PB oporia
facto que, como se verá, é relevante para a discussão sobre a descrição a lateral simples /l/ à lateral complexa /´/, através de um nó Vocálico no
da estrutura-alvo dos segmentos em aquisição. domínio de P de C; (ii) o PE oporia as laterais simples /l/ e /´/ através
do traço terminal binário [+/-anterior]. Retomando o princípio de que
3. A análise que as crianças fazem das laterais em ataque inputs distintos condicionam percursos de aquisição diferentes, esta
não ramificado. No caso do PB, Hernandorena 1999 defen- reanálise das estruturas-alvo em foco justificaria os comportamentos
de que a hierarquia de aquisição das laterais é decorrente das diferen- diferentes das crianças brasileiras e das portuguesas (as crianças brasi-
tes naturezas - simples vs complexa - de /l/ e de /´/: (a) /l/ é um leiras adquirem /l/ antes de /´/; as crianças portuguesas adquirem si-
segmento não complexo, com uma única articulação no nó Cavidade multaneamente /l/ e /´/).
Oral, pelo que a sua aquisição precede a de /´/; (b) /´/ é um segmento Sendo /l, ´/ caracterizados como [coronal] e sendo ambos seg-
complexo, com mais do que uma articulação - uma articulação primá- mentos simples no PE, as crianças portuguesas têm um input pobre
ria de tipo consonântico e uma articulação secundária de tipo vocálico para a distinção entre as duas laterais, passando por um período de
-, pelo que a sua aquisição se dá após a de /l/. As estruturas-alvo para trocas entre os dois segmentos. Pelo contrário, as crianças brasilei-
o PB são, conforme Hernandorena (1999: 83): ras, por terem no input mais informação para diferenciar /l/ e /´/ (a
primeira é [+anterior] e é um segmento simples; a segunda é [-ante-
rior] e é um segmento complexo), adquirem rapidamente o contraste
entre ambas as laterais, começando pela simples, [+anterior], só
depois adquirindo a complexa, [-anterior]. Note-se que este com-
portamento por parte das crianças brasileiras (i) está conforme as
ordens de aquisição registadas na literatura (estruturas simples antes
de complexas; ponto de articulação [+anterior] antes de [-anterior])
e (ii) valida a hipótese do papel promotor da riqueza do input (inputs
com maior diversidade desencadeiam processos de aquisição mais
rápidos (Fikkert & Freitas 1997).
No entanto, fica por explicar a facilidade com que as crianças
levam a efeito a glidização das laterais, mantendo-a até muito tarde. Se,
De acordo com a autora, as estratégias de reconstrução apre-
no PE, estivesse em aquisição apenas a oposição [+/-anterior], a ne-
sentadas pelas crianças brasileiras (cf. (3)) funcionam como argumen-
cessária para discriminar /l, ´/, esperar-se-iam alternâncias /l/~/´/ mas
tos a favor da natureza complexa de /´/: (a) no caso da glidização de
não glidizações. A forte glidização de laterais, tanto no PE como no
/´/ (/´/ -> [j]), as crianças recuperam apenas a articulação secundária,
de tipo vocálico (vermelha [ve’meja]); (b) quando a palatal é produzi- PB, leva-nos a pensar que as crianças processam informação de tipo
da como a sequência [lj], ocorre um processo de difusão da articulação vocálico associada às laterais em fases iniciais de aquisição. Neste
secundária vocálica de /´/ para o nó P de C do segmento adjacente à sentido, seria legítimo postular, num estádio inicial de aquisição das
direita (folha [‘folja]); (c) quando a palatal é produzida como [li], a laterais, a existência de um nó Vocálico subespecificado nestes seg-
sequência deriva da anterior - [lj] -, argumentando a favor de uma mentos, apenas com informação para o nó Altura/Abertura mas sem
articulação secundária em /´/ ( orelha [o’Relia]). A interpretação de informação para o nó P de V, conforme a representação em (7):
[li] e [lj] como manifestações da natureza complexa de /´ /
(Hernandorena 1999) vai ao encontro de Clements 1991: traços 2 No caso do PE, o mesmo comportamento de difusão sobre o Núcleo
vocálicos de uma articulação secundária em consoante complexa po- foi registado para as consoantes complexas /kw, gw/ (Freitas 2001). Os
dem difundir-se sobre o Núcleo do mesmo domínio silábico2 . segmentos complexos /kw, gw/ estabilizam mais tarde do que as oclusivas
No PE, a lateral /´/ é tida como um segmento simples no siste- simples do PE. Esta hierarquia de aquisição suporta a hipótese de
Hernandorena 1999, segundo a qual as naturezas simples vs complexa
ma-alvo (Mateus & Andrade 2000). As duas laterais diferem no valor
das laterais /l, ´/ permitem dar conta da aquisição tardia da lateral
do traço terminal [anterior]:
complexa /´/, por oposição à aquisição prévia da lateral simples /l/.

220 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


(7) raiz (9) Estádios de aquisição das laterais em Português
Estádio 1: as laterais são processadas como exibindo um P de C
[lateral] Cavidade oral
[coronal] e um nó Vocálico subespecificado, apenas com informação
P de C no domínio do nó Altura/Abertura.
Estádio 2: dá-se a distinção entre as duas laterais porque a oposição
[coronal] [+/-anterior] no domínio de P de C [coronal] estabiliza.
Vocálico Estádio 3: é feita a especificação de toda a informação no nó Vocálico
que define a articulação secundária de /´/, com manutenção do nó
Altura Altura/Abertura e especificação o P de V como [coronal].
[+alto]
4. Notas finais. Retomando o problema inicialmente colocado, as
Se as crianças em aquisição do Português tiverem esta repre- crianças brasileiras e as crianças portuguesas revelam comportamentos
sentação comum para as laterais, a alternância /l/~/´/ e as glidizações verbais aparentemente distintos na aquisição das laterais em Ataque
podem ser descritas nos termos de Hernandorena 1999: na alternância não ramificado. No entanto, como tentámos demonstrar, a ordem de
/l/~/´/, não há especificação no domínio de [coronal]; a glidização dá- tratamento das estruturas é idêntica no PE e no PB; as crianças
se com não especificação de [coronal] no domínio de P de C e brasileiras apenas percorrem mais uma etapa na aquisição dos
especificação apenas do nó Vocálico. Note-se que o nó Vocálico não segmentos observados porque o seu sistema-alvo é mais complexo e
está integralmente especificado, pelo que não estaria a ser interpreta- assim o exige. Confirmou-se a tendência para a semelhança de
do como uma articulação secundária, a qual tem que apresentar obriga- comportamentos verbais nos estádios iniciais de aquisição de uma
toriamente informação sobre o nó Altura/Abertura e sobre P de V. estrutura linguística e para uma dissemelhança de comportamentos
A partir deste momento inicial, as crianças teriam dois aspec- nas fases finais, dissemelhança essa decorrente de propriedades
tos a tratar: (i) a especificação no domínio de [coronal] ([+/-anterior]) específicas do input. Tal vai ao encontro do que tem sido relatado na
e (ii) a especificação do P de V no domínio do nó Vocálico. De acordo literatura: o confronto entre percursos de aquisição tem demonstrado
com os dados da aquisição do PE e do PB, as crianças parecem adqui- que os estádios iniciais de desenvolvimento tendem a ser idênticos,
rir, num segundo estádio, a distinção [+/-anterior], no domínio de enquanto os estádios finais reflectem normalmente especificidades
[coronal]. Desta forma, as crianças portuguesas, que têm um input dos sistemas (Fikkert 1994; Fikkert & Freitas 1997).
com duas laterais simples, discrimináveis através da oposição [+/- O estudo comparativo das produções de crianças brasileiras
anterior], terminam em simultâneo a aquisição de /l/ e de /´/, neste e de crianças portuguesas permitiu, ainda, verificar que as crianças são
segundo estádio de aquisição das laterais, perdendo o nó Vocálico da sensíveis a diferenças mínimas nas configurações fonológicas, reagindo
representação inicial das laterais: de forma distinta face a um alvo com laterais fonológicas simples, no
caso do PE, e face a um outro alvo com laterais fonológicas simples e
(8) raiz complexas, no caso do PB. O facto de as crianças brasileiras
discriminarem mais cedo /l/ e /´/ argumenta a favor do papel promotor
[lateral] Cavidade oral da riqueza do input na velocidade de aquisição de uma dada estrutura.
Numa tentativa de resposta às perguntas que são formuladas
P de C em trabalhos sobre a aquisição da estrutura interna dos segmentos -
|| Que estruturas? e Que ordem de aquisição dessas estruturas? -, os
[coronal] dados observados permitem verificar o seguinte: (i) as crianças
Vocálico trabalham primeiro os níveis mais altos da representação da estrutura
[+/-anterior] interna das laterais, começando pelo tratamento da distinção [+/-
Altura anterior] no domínio de P de C [coronal] (estádio II em (9)); (ii) só
mais tarde, no estádio III, as crianças trabalham os níveis mais baixos,
[+alto] neste caso, o traço [coronal] de P de V dominado pelo nó Vocálico de
P de C; (iii) esta ordem de tratamento da informação correspondente
Pelo contrário, as crianças brasileiras têm um input com lateral à estrutura interna das laterais revela uma tendência para uma aquisição
simples /l/ e lateral complexa /´/. Desta forma, e tratando de tipo ‘top-down’, a ser testada com a observação da aquisição de
inicialmente o domínio de [coronal], adquirem a distinção [+/- outras estruturas segmentais no Português.
anterior], pelo que /l/ deixa de ser problemático, estabilizando neste
segundo estádio. A representação de /l/ está completa mas não a de
/´/, uma vez que, neste segundo estádio, as crianças não estão a Referências bibliográficas
trabalhar o nó Vocálico, ao qual falta ainda informação sobre P de V,
fundamental para que a identidade do segmento complexo /´/ do CLEMENTS, G & E. HUME (1995) ‘Internal organization of speech
alvo fique integralmente definida. Daqui resulta a manutenção das sounds’. J. Goldsmith (ed) The Handbook of Phonological Theory.
produções que exibem as estratégias enunciadas em Hernandorena Cambridge: Blackwell.
1999: /´/ -> [j]; /´/ -> [lj] /´/ -> [li]. CLEMENTS, G. (1985) ‘The geometry of phonological features’.
O terceiro estádio não é percorrido pelas crianças Phonology Year Book 2.
portuguesas, uma vez que remete para o tratamento do nó Vocálico, _____________. (1991) ‘Place of articulation in consonants and vowels:
que caracteriza a natureza complexa de /´/. É neste estádio que as a unified theory’. Working Papers of the Cornell Phonetics
crianças brasileiras vão especificar P de V com [coronal], no domínio Laboratory 5.
de Vocálico (Hernandorena 1999) (cf. representação em (5b.)). COSTA, J. & M. J. FREITAS (1999) ‘V e CV como estruturas não
Em conclusão, e de acordo com o que foi observado, são os marcadas: evidência da aquisição do Português Europeu’. Actas do
seguintes os estádios de aquisição das laterais fonológicas /l, ´/ em XIV Encontro Nacional da APL. Braga: APL.
FIKKERT, P (1994) On the Acquisition of Prosodic Structure. Leiden:
Ataque não ramificado, no Português:
HIL.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 221


FIKKERT, P. & M. J. FREITAS (1997) ‘Acquisition of syllable APL/Colibri.
structure constraints: evidence from Dutch and Portuguese’. A. ___________. (1999) ‘Aquisição da fonologia e implicações teóricas:
Sorace, C. Heycock & R. Shillcock (eds) Proceedings of the um estudo sobre as soantes palatais’. R. Lamprecht (ed) Aquisi-
GALA’97 Conference on Language Acquisition. Edinburgh: ção da linguagem. Porto Alegre: EDIPUCRS.
University of Edinburgh. INGRAM, D. (1992) ‘Early phonological acquisition: a cross-linguistic
FREITAS, M. J. (1997) Aquisição da estrutura silábica do Português perspective’. C. Freguson, L. Menn & C. Stoel-Gammon (eds)
Europeu. Dissertação de Doutoramento apresentada à Universi- Phonological Development. Models, Research , Implication.
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segmentos complexos ou grupos segmentais?’. Comunicação MATEUS, M. H. & E. ANDRADE (2000) The Phonology of
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J. Freitas (eds) Studies on the Acquisition of Portuguese.Lisboa: Non-linear Phonology. New York: Garland Press.

222 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Restrições segmentais e prosódicas na aquisição
das líquidas do português brasileiro e
do português europeu
Carmen Lúcia Matzenauer-Hernandorena
Universidade Católica de Pelotas

ABSTRACT: This paper analyses the functioning of liquids in the process of acquisition of Brazilian Portuguese (BP) and of European Portuguese(EP);
it shows a different order of emergency of these consonants in BP and EP, attributed to segmental constraints, but it concludes that all children,
acquiring this class of segments, present identical strategies and stages.
PALAVRAS-CHAVE:aquisição da fonologia, consoantes líquidas, Português Brasileiro e Português Europeu

Como segmentos marcados e de pouca freqüência nas línguas das líquidas em Ataque silábico simples evidenciam a tendência, na
do mundo (Maddieson, 1984), as consoantes líquidas emergem em aquisição do PB, ao ordenamento mostrado em (1) (Hernandorena,
estágios mais avançados do processo de aquisição das línguas – pes- 1990; Lamprecht, 1990; Miranda, 1996; Azambuja, 1997; Rangel,
quisas referentes ao processo de aquisição da fonologia de diferentes 1998).
línguas têm referido tal fato; são exemplos os estudos de Ingram (1989) (1) PB: [l]> [{]> [´] > [r]
sobre o Inglês, de Fikkert (1994) sobre o Holandês, de Freitas (1997) Diferentemente, o estudo sobre a aquisição do PE mostra a ten-
sobre o Português Europeu, de Hernandorena (1990) e de Lamprecht dência a outro ordenamento, como se vê em (2) (Freitas, 1997).
(1990) sobre o Português Brasileiro. Centrado no processo de aquisi- (2) PE: [l] / [´] > [{]> [r]
ção dessa classe de consoantes, o presente trabalho apresenta consi- Cabe questionar-se por que há uma hierarquia na emergência
derações sobre (a) a emergência das líquidas no processo de aquisição dessa classe de consoantes e por que crianças brasileiras e portuguesas
tanto do Português Europeu (PE) como do Português Brasileiro (PB), mostram hierarquias diferentes nesse processo
(b) a relação dessa emergência com a estrutura interna que caracteriza desenvolvimental.Tomando-se as líquidas em um mesmo constituinte
os segmentos dessa classe fonológica, (c) a relação da emergência das silábico – Ataque simples –, a investigação tem de ser direcionada a
líquidas com dois constituintes prosódicos: a sílaba e o pé métrico, (d) unidades fonológicas menores: a traços distintivos que integram a estru-
os estágios de desenvolvimento no processo de aquisição dessas con- tura interna que caracteriza cada segmento. É a organização dos traços
soantes no PB e no PE e (e) algumas semelhanças e diferenças no que constituem os segmentos que também poderá explicar por que
funcionamento das líquidas na aquisição do PB e do PE. determinados sons e não outros são empregados em lugar das consoan-
Para este trabalho foram usados dois corpora: o primeiro foi tes líquidas-alvo, durante as etapas do desenvolvimento fonológico.
formado por dados de 72 crianças em fase de aquisição do PB, com Constituindo Ataque simples na estrutura silábica, as quatro
idade entre 1:3 e 2:5 (anos: meses, dias), constituindo um corpus de líquidas do sistema-alvo das crianças aqui acompanhadas, até a sua
corte transversal, que integra o Banco de Dados AQUIFONO, forma- emergência e estabilização, ou não foram produzidas, ou tiveram outros
do junto aos Cursos de Pós-Graduação em Letras da UCPEL e da segmentos empregados em seu lugar. Na Tabela 1 tem-se o registro
PUCRS, no sul do Rio Grande do Sul, refletindo, portanto, a varieda- desse emprego variável.
de lingüística dessa região do Brasil; o segundo foi constituído
pelo conjunto de dados apresentado na Tese de Doutoramento
de Freitas (1997), que analisa 7 crianças em fase de aquisição
do PE, com idade entre 1:0 e 3:0, aproximadamente, acompa-
nhadas longitudinalmente durante cerca de 10 sessões.
As duas laterais e as duas róticas do Português mos-
tram algumas características semelhantes e outras diferentes
no processo de aquisição do PE e do PB. As semelhanças
podem ser resumidas em dois pontos basilares: (a) apresen-
tam estágios desenvolvimentais e (b) sofrem influência de
constituintes prosódicos, como a sílaba e o pé métrico. O que os dados da Tabela 1 mostram é que, até o seu emprego
Quanto à influência de constituintes prosódicos na aquisição adequado em Ataque simples, as líquidas apresentam comportamento
das líquidas, todos as pesquisas, tanto sobre a aquisição de PB como semelhante em crianças brasileiras e portuguesas em fase de aquisição
de PE, apontam, incontestavelmente, para a influência direta da sílaba da fonologia, respeitadas as diferenças individuais. As semelhanças
no ordenamento no processo de aquisição: dependendo do constituin- verificadas no funcionamento dessa classe de consoantes no processo
te silábico que integram, as líquidas emergem em estágios diferentes – de aquisição podem ser resumidas em generalizações conforme aparece
primeiro na posição de Ataque simples, depois como Coda e, por fim, em (3).
constituindo Ataque complexo. (3)
Também as líquidas são adquiridas em etapas diferenciadas do (a) todas as consoantes líquidas podem deixar de ser produzidas,
desenvolvimento fonológico, tanto em crianças falantes de PB como o que gera, como conseqüência, um Ataque foneticamente vazio;
em crianças falantes de PE; nesse ponto, no entanto, já pode ser (b) todas as consoantes líquidas podem ter o emprego do glide
identificada também uma diferença – os estudos sobre a emergência [j] em seu lugar;

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 223


(c) as consoantes líquidas podem ter o emprego de outra líquida vinculada à generalização (4), que diz que, no PB, a líquida lateral [l]
em seu lugar (com exceção do [l] em PB, já que é a primeira líquida a pode ser empregada em lugar de qualquer outra consoante líquida.
ser adquirida); Esse uso parece levar à conclusão de que, uma vez estabelecido o valor
(d) a líquida lateral palatal pode ter o emprego da lateral alveolar [-vocóide] na raiz do segmento, fica definido o caráter consonântico
[l] em seu lugar; do segmento, e esse traço, em coocorrência com os valores
(e) a consoante rótica r-forte pode ter o emprego do glide [w] [+soante,+aproximante], parece acarretar o traço [+lateral] depen-
em seu lugar; dente do nó de Raiz. A especificação do traço [+lateral] para consoan-
(f) a consoante rótica r-forte pode ter o emprego da plosiva [g] tes soantes ativa o ponto default. [coronal] (as consoantes laterais são
em seu lugar. redundantemente coronais) e o valor [+anterior], como ponto de con-
A referida Tabela mostra também uma especificidade do PB, soante não-marcado.
explicitada em (4). O fato de a coocorrência dos traços de Raiz que caracterizam as
(4) A líquida lateral [l] pode ser empregada em lugar de qualquer outra líquidas implicar o valor [+lateral] pode ser a causa de as duas líquidas
consoante líquida. laterais da língua surgirem antes das líquidas não-laterais no processo
A Tabela ainda evidencia comportamentos das líquidas que de aquisição da fonologia por crianças portuguesas, explicando a hie-
parecem próprios do processo de aquisição do PE, os quais estão rarquia de aquisição das líquidas em Ataque simples apresentada em
expressos em (5). (2). O emprego da líquida [l] em lugar de qualquer outra líquida na
(5) aquisição do PB e no PE (neste com exceção do r-forte) está apontan-
(a) todas as líquidas, com exceção da lateral palatal [´], podem do a constrição [coronal, +anterior], como ponto de consoante não-
ter o emprego do glide [w] em seu lugar; marcado e pode também estar confirmando a subespecificação dessa
(b) a líquida lateral /l/ pode ter o emprego da líquida lateral classe de consoantes para o ponto de articulação, sendo somente
palatal [´] em seu lugar, bem como do glide [w], da plosiva [d] e da preenchido, em fases iniciais da aquisição, pelo valor default.
nasal [n] (estes casos em etapa bem inicial do processo de aquisição); A subespecificação das líquidas para ponto de articulação tem
(c) a consoante rótica r-forte pode ter o emprego da plosiva [k] uma evidência em exemplos de emergência da líquida lateral /l/ nos
em seu lugar, bem como de fricativas dorsais, como a velar sonora [F] dados do PB e do PE: essa consoante parece tender a emergir quando
e a glotal [h]. o Ataque de uma sílaba vizinha é preenchido por uma consoante
A que conclusões esses resultados podem conduzir? As gene- [coronal], especialmente uma obstruinte, cuja aquisição se dá em eta-
ralizações expressas em (3), (4) e (5) – com exceção de (3 a) –, por pas anteriores do desenvolvimento fonológico.São exemplos do PB:
mostrarem o emprego de outros segmentos em lugar das líquidas-alvo, chocolate [‘latSi](1:3,10), Natália [‘talŒ] (1:3,29), bicicleta [bi’lEtŒ]
têm de poder apontar caminhos para o entendimento da construção da (1:5,19); e do PE: bolacha [‘lasŒ] (1:9,29), lenço [‘litu] (1:10,29),
estrutura interna dos segmentos no processo de aquisição da fonologia. estrela [S’tElŒ] (1:11,10).
Com a visão não-linear da fonologia, é possível defender-se que Também os dados mostram a tendência à emergência da líquida
a aquisição dos segmentos de uma língua é um processo gradual, com lateral /l/ no pé do acento, ou na borda esquerda de um pé troqueu,
a sucessiva ligação de tiers que compõem a geometria dos sons, evo- coincidente com a borda da palavra prosódica, ou em sua borda direi-
luindo do não-marcado para o marcado (Hernandorena, 2001), sendo ta. Assim, pelos dados observados, os contextos mais favoráveis à
que alguns tiers devem ser subespecificados na representação fonológica. emergência da líquida lateral /l/, tanto no PB como no PE, parecem ser
A natureza das consoantes líquidas – caracterizada pela coocorrência os que aparecem em (6).
dos traços [+soante]/[+aproximante]/[–vocóide] em seu nó de Raiz – (6)
parece ser determinante das variações que crianças brasileiras e portu- a) domínio: pé do acento
guesas revelam durante o processo de sua aquisição. molde: Clíq.lat. V Ccoronal V
Tecem-se, aqui, considerações sobre alguns desses fenômenos
gerais identificados no processo de aquisição das líquidas, mostrados b) domínio: pé do acento
em (3), (4) e (5). molde: Ccoronal V Clíq.lat. V
A generalização (3 b) – ao apontar que todas as consoantes O pé do acento também se mostrou o domínio favorecedor
líquidas podem ter o emprego do glide [j] em seu lugar – parece mos- para a emergência das outras consoantes líquidas. Uma pesquisa rea-
trar que a combinação de traços [+soante]/ [+aproximante] implica, lizada com crianças brasileiras em fase de aquisição da fonologia
em um estágio inicial de aquisição da fonologia, a coocorrência com o (Hernandorena, 2000) mostrou ser o pé do acento um constituinte
valor [+vocóide]. O fato de a generalização apresentar a realização do prosódico condicionador de todas as consoantes líquidas da língua. O
glide [j] ( e não do glide [w]) pode ser atribuído ao traço [coronal] já trabalho concluiu que as consoantes líquidas são mais vulneráveis a
que é considerado o valor default para ponto de articulação. emprego variável fora do pé do acento, durante o processo de aquisi-
O glide [w], cujo ponto de articulação é [dorsal], só é emprega- ção da linguagem (Exs.: [paja’sadŒ] palhaçada, [metaja’dorŒ] metra-
do, no processo de aquisição do PB, em lugar do r-forte, também lhadora; [me’mEdZju] remédio; [nai’gudu] narigudo).
dorsal na variante aqui estudada. Além de uso mais escasso em lugar O emprego de variantes em lugar das líquidas-alvo, apresenta-
de consoantes líquidas, o emprego do glide [dorsal] parece, na grande do na Tabela 1, deve ser visto como o reflexo de estratégias utilizadas
maioria dos exemplos registrados nos dados do PB e do PE, condici- pelas crianças no processo de aquisição da língua, relacionadas com a
onado pelo contexto, ou seja, pela vizinhança de uma vogal [dorsal]. construção gradual da estrutura interna do segmento, e esse emprego
São exemplos: PB – a roda [a’wdŒ] (1:11,15); PE – olá [’wa]/ variável aponta para estágios caracterizadores do desenvolvimento
[Œ’já] (1:3,11); carroça [ka’wSŒ]/[ka’jSŒ] (2:8,27). Essas obser- fonológico, que podem ser considerados gerais ao processo de aquisi-
vações relativas ao fato de o emprego do glide [w] em lugar das líqui- ção da fonologia. Podem ser identificados os seguintes estágios e es-
das ser predominantemente condicionado pelo contexto vêm, na ver- tratégias no processo de aquisição das líquidas em Ataque simples,
dade, corroborar o traço [coronal] como o valor default para ponto de tanto no PB como no PE:
articulação. Estágio I
A generalização (3 c) – que refere que as consoantes líquidas - a ausência de líquidas no sistema da criança faz com que não
podem ter o emprego de outra líquida em seu lugar – tem de ser seja realizada a consoante, acarretando a ocorrência de um Ataque

224 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


vazio, ou, como as crianças já têm estabelecido o parâmetro do Ata- À luz da Teoria da Otimidade (TO), a variedade de outputs
que simples, em função de uma Estratégia de Reconstrução do cons- registrados para as líquidas durante o processo de aquisição da
tituinte silábico (Freitas, 1997), pode ser seja produzida uma plosiva fonologia pode ser vista como o resultado da organização de forças
em lugar da primeira líquida do ordenamento de emergência, ou seja, conflitantes, representadas, nesse modelo teórico, por restrições que
da líquida lateral /l/; se configuram em exigências relativas a aspectos das formas gramati-
Estágio II cais de outputs. O que neste trabalho se propõe é que restrições de
- a ausência das líquidas no sistema da criança faz com que seja marcação estrutural pertencentes à família de Restrições de
realizado um glide em seu lugar, em uma Estratégia de Reconstrução Coocorrência – as quais, segundo Bernhardt & Stemberger (1998:209),
do constituinte silábico e em uma Estratégia de Construção do seg- são restrições que requerem a coocorrência de traços –, dominando as
mento; ou, por essas mesma estratégias, a(s) primeira(s) líquida(s) a Restrições de Fidelidade, conseguem dar conta dos ordenamentos
emergir ocupa(m) o Ataque simples de outras líquidas-alvo (nessa apresentados em (1) e (2). Além dessa relação mais geral de dominância,
Estratégia de Construção do segmento, algumas crianças brasileiras parece também que na hierarquia entre Restrições de Coocorrência
produzem a líquida [l] em lugar de todos os segmentos da classe); está o fator determinante do emprego de diferentes estratégias, pelas
Estágio III: crianças, até o uso das líquidas-alvo da língua. E o condicionamento de
- estando disponíveis no sistema, todas as líquidas são associ- constituintes prosódicos no funcionamento das líquidas observado
adas a Ataque simples. durante a aquisição do PB e do PE será explicado, então, com base na
Os estágios de aquisição das líquidas em Ataque simples po- interação entre restrições segmentais e restrições prosódicas que ope-
dem ser esquematizados conforme se mostra em (7). ram nesse processo e também no estabelecimento de sua hierarquia,
(7) até o estágio em que se dá o domínio, pelas crianças, do sistema
Estágio I Estágio II Estágio III
fonológico-alvo.
[O]/plosiva ———— glide/ outra líquida ———— líquida-alvo

O tipo de plosiva, ou de glide, ou de outra líquida empregado


Referências bibliográficas
em lugar da líquida-alvo dependerá da estrutura interna dos segmentos
envolvidos, bem como de constituintes prosódicos. Com esse enca-
BERNHARDT,B.H. & STEMBERGER,J.P. Handbook of
minhamento, é possível elucidarem-se todas as generalizações
Phonological Development- from the perspective of constraint
estabelecidas em (3), (4) e (5), relativamente ao processo de aquisição
based nonlinear phonology. San Diego: Academic Press, 1998.
do PB e do PE.
FIKKERT,P. On the Acquisition of Prosodic Structure. Ph.D.
O que os dados parecem mostrar é que os segmentos que com-
Dissertation. University of Leiden, 1994.
põem a classe das líquidas no Português apresentam estágios
FREITAS,M.J. Aquisição da estrutura silábica do Português Euro-
desenvolvimentais, que implicam uma hierarquia de aquisição, e que
peu. Tese de Doutorado. Lisboa: Universidade de Lisboa, 1997.
essa emergência apresenta relação com a estrutura interna que os ca-
HERNANDORENA,C.L.M. Aquisição da fonologia do Português:
racteriza, bem como com os constituintes prosódicos que integram,
estabelecimento de padrões com base em traços distintivos. Tese
particularmente a sílaba e o pé métrico. Retomando-se a grande dife-
de Doutorado. Porto Alegre: PUCRS, 1990.
rença entre o PB e o PE no processo de aquisição das líquidas da língua
_______. A aquisição de segmentos do Português e o pé métrico. V
– que se constitui nos ordenamentos da emergência das líquidas em
Encontro Nacional sobre Aquisição da Linguagem / 1º Encontro
Ataque simples, expressos, respectivamente, em (1) e (2) –, é possí-
Internacional sobre Aquisição da Linguagem. Porto Alegre:
vel concluir-se que essa diferença pode ser atribuída ao fator
PUCRS, 2000.
componencial do segmento que parece ter maior relevância na sua
_______.A construção da fonologia no processo de aquisição da lin-
representação perceptual: ou o modo ou o ponto de articulação – as
guagem. In: HERNANDORENA,C.L.M. (org) Aquisição de Lín-
crianças portuguesas, ao apresentarem a emergência inicial das líqui-
gua Materna e de Língua Estrangeira: aspectos fonético-
das laterais, parecem ter o ponto de articulação com representação
fonológicos. Pelotas: EDUCAT/ALAB, 2001.
mais saliente para essa classe de segmentos, estabelecendo, desde
INGRAM,D. First language acquisition. Cambridge: Cambridge
logo, a oposição entre [coronal, +anterior] e [coronal, –anterior], man-
University Press, 1989.
tendo o mesmo modo de articulação, ou seja, o mesmo valor para o
LAMPRECHT,R.R. Perfil da aquisição normal da fonologia do
traço [lateral]; as crianças brasileiras, diferentemente, ao terem a emer-
Português - descrição longitudinal de 12 crianças: 2:9 a 5:5.
gência inicial da líquida lateral /l/ e da líquida não-lateral realizada
Tese de Doutorado. Porto Alegre: PUCRS, 1990.
como r-forte, parecem ter tanto o ponto como o modo de articulação
MADDIESON,I. Patterns of sounds. Cambridge: Cambridge
com representação saliente, pois logo opõem [+lateral]/[–lateral], como
University Press, 1984.
também opõem [coronal/[dorsal]. Se, conforme propõe Steriade (1995:
MIRANDA,A.R.M. A aquisição do “r”: uma contribuição à discus-
153-54), “as líquidas são distintivamente especificada para a
são sobre seu status fonológico. Dissertação de Mestrado. Porto
lateralidade, uma vez que [l] e [r] diferem apenas por esse traço”, a
Alegre: PUCRS, 1996.
especificação do valor [+lateral] implica, para as crianças brasileiras, a
STERIADE,D. Underspecification and markedness. In:
emergência quase imediata dessa oposição (pouco depois do [l] emer-
GOLDSMITH,J. (ed) The Handbook of Phonological Theory.
ge o [{]), evidenciada pela hierarquia apresentada em (1).
Oxford: Blackwell, 1995.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 225


/kar.ro/ ou /ka.Ro/: evidências da
aquisição da linguagem
Ana Ruth Moresco Miranda
Universidade Federal de Pelotas

ABSTRACT: This paper presents some points of view relating to the phonological representation of rhotic consonants in the Iberian languages,
exposes the results of a research that has investigated the acquisition of these consonants by Brazilian children and brings evidences which can
contribute to the definition of the phonemic status of rhotics in the language system.
PALAVRAS-CHAVE: aquisição de linguagem; fonologia; consoantes róticas

Este estudo recupera a discussão sobre o status fonêmico das Para o autor, o ‘r-fraco’ seria uma variante enfraquecida do ‘r-forte’
consoantes róticas a partir de um olhar sobre as produções infantis de à semelhança do que ocorreu na diacronia quando consoantes simples
crianças brasileiras. Após a apresentação da distribuição dessas con- se tornaram fracas em posição intervocálica.
soantes no sistema da língua, será discutido o problema da sua repre- Wetzels (1995) defende a posição que originalmente foi de
sentação e as principais propostas sobre o assunto encontradas na Câmara Jr.. Segundo ele, seria mais simples para a teoria a afirmação
literatura sobre a fonologia do português e do espanhol. A seguir, os de que no PB há a integração dos ‘r’s na matriz fonológica, sendo que
dados estudados por Miranda (1996)1 fornecerão evidências que con- no léxico está presente o ‘r-forte’. Considerando que o ‘r-forte’ ocor-
tribuem para a definição da representação das róticas no sistema re em todas as posições, menos em ataque complexo, o lingüista
fonológico das crianças. sustenta sua hipótese postulando a necessidade de apenas duas re-
São chamados róticos, todos os sons de ‘r’ que, por terem gras, uma para explicar o ‘r’ de seqüências tautossilábicas e outra para
similaridades acústicas e padrão fonológico comuns com as laterais, dar conta do ‘r-fraco’ intervocálico.
constituem com elas a classe das líquidas. Foneticamente os sons
róticos manifestam-se com grande variedade, tanto no ponto como no
modo de articulação. No português do Brasil, constata-se a mudança
de ponto de articulação que resulta na posteriorização, fazendo com
que o ‘r-forte’ deixe de ser produzido como alveolar e passe a velar. A
posteriorização, conseqüência do enfraquecimento da pronúncia, cau-
sa também mudança de modo de articulação, fazendo com que a vi- A regra 1 diz que ‘r-forte’ passa para ‘r-fraco’ quando for o caso
brante passe a ser produzida como uma fricativa (Malmberg, 1954). de ataque complexo, como em ‘prato’ e ‘cobra’, por exemplo. A regra 2
No caso dos dados de aquisição examinados, a produção esperada de explica a única posição em que há contraste no português; segundo ela, o
‘r-forte’ foi sempre a de uma fricativa velar, pronúncia característica ‘r-forte’ passa para ‘r-fraco’ quando estiver entre vogais. Por essa análi-
da região de coleta dos dados. se, a forma subjacente de ‘caro’ é /kaRo/ e a de ‘carro’ é /kaRRo/, e, pela
regra 2, no primeiro caso, o ‘r’ enfraquece; no segundo, por ser uma
Tanto no português como no espanhol são encontrados con-
geminada, o ‘r’ torna-se [R] na forma fonética.
trastes entre o ‘r-forte’ e o ‘r-fraco’2 . Levando-se em conta a posição
na sílaba, a distribuição no português mostra que:
PROPOSTA 2 - há apenas um ‘r’ na subjacência e esse ‘r’ é
a) em posição de ataque, início de palavra, só encontramos o
um ‘r-fraco’
[R], como em ‘rato’;
b) em posição de coda [r] e [R] são alofones, como na pronún-
Essa posição é defendida por López (1985), Harris (1983),
cia carioca e na gaúcha - ma[R] e ma[r], po[R]ta e po[r]ta, respectiva- Monaretto (1994) e Mateus e Andrade (2000). Para Harris, duas
mente; regras explicam o que acontece com o ‘r’ no sistema:
c) em posição de ataque, dentro da palavra, [r] e [R] são
contrastivos intervocalicamente, como em ‘ca[r]o’ e ‘ca[R]o’;
d) em posição de ataque, seguindo sibilantes /S/ ou soantes /l/ e
/N/, só é possível [R], como em ‘is[R]ael’, ‘en[R]olar’ e ‘guel[R]a’;
e) depois de obstruintes tautossilábicas, só encontramos o [r], A regra 1 é a regra de reforçamento que explica a presença de
como em ‘p[r]ato’e ‘ped[r]a. [R] em início de palavra (‘rosa’). A regra 2 expressa a passagem da
forma subjacente /r/ para a forma fonética [R] dentro da palavra,
Conforme pode-se observar, r-forte’ e ‘r-fraco’ contrastam quando o /r/ do ataque vier seguindo uma sílaba pesada (‘israel’). Nos
unicamente em ambiente intervocálico. A assimetria no comporta- contextos intervocálicos, onde há contraste entre fraco e forte, o autor
mento desses segmentos é o fato gerador da discussão a respeito da afirma que a distintividade deriva de uma geminada heterossilábica
existência fonêmica de uma ou duas róticas no português e também em (‘carro’® /kar-ro/).
outras línguas ibéricas. Dessa controvérsia surgem três propostas
diferentes, atendendo às três possibilidades lógicas:
PROPOSTA 1 - há apenas um ‘r’ na subjacência e esse ‘r’ é
um ‘r-forte’ 1 Trabalho realizado a partir do banco de dados AQUIFONO, criado
pelas pesquisadoras Regina Lamprecht (PUCRS) e Carmen Matzenauer
Hernandorena (UCPel).
Em 1953, Câmara Jr. levantou a tese de que no PB só existe 2 ‘r-forte’(trill) e ‘r-fraco’(tap) estão sendo representados nesse trabalho
um fonema vibrante na subjacência, que seria, segundo ele, o ‘r-forte’. por [R] e [r], respectivamente.

226 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Através da aplicação da regra 2, o segundo /r/ passa para [R] Produção da rótica por posição silábica
e o primeiro é apagado, resultando na forma fonética [kaRo] que
contrasta com [karo], cuja subjacência é /karo/- (‘carro’ - /kar - ro/®
/kar - Ro/ ® /kaÆ - Ro/ ® [kaRo]).

PROPOSTA 3 - há dois ‘r’s na subjacência : ‘r-forte’ e ‘r-


fraco’

Essa é a proposta defendida por Bonet e Mascaró (1996). O


argumento central dos autores constrói-se a partir da adoção de uma
Escala de Soância como a que está abaixo, associada a proposta de
Clements (1990) de um Ciclo de Soância3 :

Escala de Soância
Obstruintes < fricativas e /R/ < nasais < laterais < glides e /r/ <
vogais

Deste modo, o ‘r-fraco’, assim como o glide e a lateral, possui Em relação ao ‘r-fraco’, a posição de coda final, conforme pode-
um maior índice de soância e, por isso, pode ocupar o lugar de segundo se ver no gráfico, é aquela em que primeiro o ‘r’ passa a ser produzido
elemento do ataque, enquanto o ‘r-forte’, assim como as plosivas e as pelas crianças, mantendo-se com o maior índice em praticamente to-
fricativas, ocorre como elemento único do ataque. dos os grupos etários. Já a posição de coda medial é uma das últimas
O Ciclo de Soância, em conjunto com a reformulação da Esca- a serem adquiridas (cf. Hernandorena,1990; Freitas, 1997; Rangel,
la de Soância proposta por Bonet & Mascaró, explicam a distribuição 1998; Mezzomo, 1999).
de ‘r-forte’ em casos de ataque simples de início de palavra (‘rato’ e
A produção de ‘r-fraco’ em ataque simples, posição conside-
‘relógio’) e de ataque de início de sílaba seguindo rima ramificada
rada como das primeiras a serem preenchidas durante a aquisição,
(‘guelra’ e ‘israel’). Explicam, também, a presença de ‘r-fraco’ em
atinge um índice maior do que 80% para a produção de ‘r’ somente no
coda (‘mar’ e ‘porta’) e como segundo elemento do ataque (’preto’ e
GRUPO 4, enquanto a produção de ‘r-forte’ supera esse índice nos
‘cobra’). Segundo essa explicação, falta ainda dar conta dos casos em
dados das crianças do GRUPO 2. A diferença cronológica entre a
que há contraste, ou seja, aqueles casos de posição intervocálica em
produção das róticas na mesma posição silábica é de 1 ano e 4 meses.
que /r/ e /R/ são distintivos (‘muro’ e ‘murro’). Os autores, a partir da
Essa comparação é importante, uma vez que é nessa posição, dentro
falta de unanimidade encontrada na literatura no que diz respeito aos
da palavra, que reside o poder distintivo desses segmentos (‘caro’ v
traços fonológicos caracterizadores das róticas, propõem a existência
de um traço [a] ligado a essas consoantes. Subjacentemente o ‘r-forte’ ‘carro’, ‘foro’ v ‘forro’, ‘era’ v ‘erra’).
possui o valor não marcado para [a], enquanto o ‘r-fraco’ possui o Quanto às substituições encontradas nos dados, vale salientar
valor marcado [+a]. Por essa abordagem existe uma diferença aspectos referentes à natureza dos segmentos que podem ser produ-
representacional entre o ‘r-fraco’ e o ‘r-forte’, que pode ser assim zidos ao invés de ‘r-fraco’ e ‘r-forte’. Onde se produz ‘r-fraco’ na
expressa: fala adulta, encontra-se, basicamente, consoante lateral anterior e, no
lugar de ‘r-forte’, são encontrados vários casos de produção de conso-
antes plosivas.

A representação das róticas e as evidências da aquisição


As propostas de um ‘r’ subjacente propõem que a distinção
Com base nos argumentos acima levantados, Bonet & Mascaró entre ‘caro’ e ‘carro’, ‘muro’ e ‘murro’ seja decorrente da presença
resolvem o problema do ‘r’, postulando a existência de dois fonemas de uma estrutura CV.CV em oposição a uma CVC.CV. Embora apre-
róticos distintos na subjacência, os quais se caracterizam e se distin- sentem essa característica comum, se analisadas separadamente em
guem pela presença de um traço [a]. A ocorrência de um ou outro relação aos dados de aquisição, levam a resultados distintos.
segmento será determinada em decorrência do lugar que estes segmen- Considerando a proposta de um ‘r-forte’ subjacente, pode-se
tos ocupam na sílaba e também de acordo com a atuação do Ciclo de supor que a criança, em um primeiro estágio, caracterizado pela não
Soância. produção de estruturas CCV ou CVC, é capaz de produzir o ‘r-
forte’ em uma palavra como ‘carro’, não como o resultado de uma
Os resultados dos dados de aquisição geminada mas porque não adquiriu ainda a regra que enfraquece a
Em concordância com os estudos do desenvolvimento fonológico consoante (cf. Regra 2 da PROPOSTA 1). No entanto, se isso é o
que apontam a fixação dos parâmetros silábicos como etapa funda- que ocorre, é de se esperar que palavras como ‘caro’ fossem produ-
mental para o processo de aquisição da fonologia, os resultados da zidas com [R], exemplos desse tipo, porém, não são encontrados na
análise de dados revelaram, em detalhe, que a aquisição de ‘r-forte’ e fala das crianças.
‘r-fraco’ apresentam características distintas, não somente por suas
diferenças fonéticas mas também por suas características
distribucionais. As peculiaridades na aquisição de um e outro segmen- 3 O Ciclo de Soância (Clements,1990. p.40) diz que: O perfil de soância
preferido é uma sílaba na qual o grau de soância aumenta maximamente
to ocorrem por ser o ‘r-fraco’ licenciado, pelas regras fonológicas do
no início - do onset para o núcleo - e diminui minimamente no final - do
português, para ocupar várias posições no esqueleto silábico. Ao ‘r- núcleo para a coda.
forte’ cabe, ao menos no dialeto estudado, apenas a posição de ataque 4 Por apresentarem valores numéricos muito semelhantes, as faixas etárias
simples, posição considerada, pelos estudiosos da área, como a mais foram amalgamadas e deram lugar ao que se denominou GRUPO. Assim,
facilmente adquirida. Os resultados apresentados abaixo refletem o o GRUPO 1 contém os dados de crianças com 2:O até 2:7 anos de
comportamento lingüístico de 110 crianças brasileiras com idade entre idade; o GRUPO 2, 2:8 até 3:1; o GRUPO 3, 3:2 a 3:7 e o GRUPO 4,
2 anos e 3 anos e 9 meses4 . 3:8 a 3:9.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 227


Assumir a proposta 2, por outro lado, implica afirmar que o ‘r- Referências bibliográficas
forte’ somente será produzido na fala infantil se a criança dominar o
parâmetro da coda medial5 . Nesse caso, é necessário que se verifique BONET, E. e MASCARÓ, J.(1996) On the representation of
o que mostram os estudos que tratam da fixação desse parâmetro contrasting rhotics. Unpublished ms. Universidade Autônoma
pelas crianças brasileiras. Em relação à produção do ‘r’ na coda medial, de Barcelona.
pode-se observar no gráfico 1 que sua produção é bastante tardia. CÂMARA JR., J.M. (1953) Para o estudo da fonêmica portuguesa.
Quanto à aquisição do parâmetro, é preciso considerar o que acontece Rio de Janeiro : Organizações Simões.
nos casos em que o segmento ocupante da posição de coda no meio da FREITAS, M. J. (1997) A aquisição da estrutura silábica do portu-
palavra não é uma rótica6 . guês europeu. Lisboa, 1997. Tese (Doutorado em Lingüística)
O estudo transversal de Hernandorena (1990), realizado a par- Universidade de Lisboa.
tir dos dados de 134 crianças brasileiras com idades entre 2:0 a 4:3, HARRIS, J. W. (1983) Syllabe structure and stress in spanish: a
mostrou que o ‘r-forte’ é produzido com um índice superior a 75% a nonlinear analysis. Cambridge, Massachusetts: The MIT Press.
partir dos 2:2 e que a coda com fricativa e com rótica é adquirida nas HERNANDORENA, C (1990) Aquisição da fonologia do português:
faixas de 2:10 – 2:11 e 4:0 – 4:1, respectivamente. Isso mostra que, estabelecimento de padrões com base em traços distintivos. Tese
antes de produzir a rótica e a fricativa na coda, as crianças estudadas (Doutorado) PUCRS.
já produzem o ‘r-forte’ há bastante tempo. JAKOBSON, R.(1968) Child language, aphasia and phonol
O trabalho desenvolvido por Mezzomo (1999), também com universals. Hague:Mouton.
base em dados recolhidos transversalmente7 , trata especificamente LÓPEZ, B. S. (1985) The sound pattern of Brazilian Portuguese
da coda medial. A ordem e o período em que a aquisição pode ser (cariocan dialect). Los Angeles. Tese (Doutorado) – University
considerada concluída, com mais que 80% de produção, é, segundo a of California,.
autora: lateral (2:6) > fricativa (3:0) > rótica (3:8). MATEUS, M. H. M. & D’ANDRADE, E. (2000) The Phonology of
Os resultados apresentados são suficientes para que se possa Portuguese. New York: Oxford University Press.
dizer que a criança, quando produz o ‘r-forte’ (2:4 nos resultados de MEZZOMO, C. L. (1999) Aquisição dos fonemas na posição de
Miranda (1996) e 2:2 nos de Hernandorena (1990)), não está produ- coda medial do português brasileiro, em crianças com desenvol-
zindo consistentemente a consoante da coda, mesmo se considerar- vimento fonológico normal. Dissertação (Mestrado em Letras) )
mos como tal, a lateral, semivocalizada categoricamente no dialeto das PUCRS.
crianças em estudo8 . Dessa forma, tal constatação funciona como um MIRANDA, A. R. M. (1996) A aquisição do “r” : uma contribuição
argumento contrário à proposta de apenas um ‘r-fraco’ subjacente. à discussão sobre seu status fonológico. Dissertação (Mestrado
A proposta de Bonet e Mascaró (1996) aplicada aos dados de em Letras) ) PUCRS.
aquisição consegue, além de dar conta da diferença entre a idade das RANGEL, G. de A. (1998) Uma análise auto-segmental da fonologia
crianças para a produção dos ‘r’s, explanar os tipos de substituições normal : estudo longitudinal de 3 crianças de 1:6 a 3:0. Disser-
encontrados nos dados. De modo geral, observa-se que, entre os seg- tação (Mestrado em Letras) PUCRS.
mentos produzidos no lugar da rótica, há semelhança no grau de soância. WETZELS, L. Teoria da Sílaba. Curso ministrado na PUCRS: Ano-
Através da escala proposta por Bonet & Mascaró (1996), pode-se tações de aula. Porto Alegre, abril de 1995.
ver que as substituições de ‘r-fraco’ são feitas ou por segmentos que
compartilham o mesmo grau de soância, ou por aqueles que lhe são
adjacentes na escala ([l] e [y]). No que concerne a fenômenos como a
plosivização, vale salientar que o registro é importante porque de-
monstra que um grupo de informantes está tratando a rótica como
uma plosiva velar, ou seja, como um segmento cujo grau de soância é
zero. A partir da proposta mais tradicional da Escala de Soância, a
qual atribui o mesmo grau para ‘r-fraco’ e ‘r-forte’, não se pode dar
conta de fenômenos desse tipo. Tampouco pode ser explicado o pro-
cedimento dos informantes que, por não terem ainda adquirido o pon-
to de articulação velar para consoantes, produziram, em lugar do ‘ r-
forte’, plosivas coronais (‘relógio’ – [telzju]). Exemplos desse tipo
são indicadores de que a motivação da troca não é simples semelhança
fonética, visto que o ‘r-forte’ é produzido como fricativa velar, mas
algo que tem a ver com a representação fonológica das crianças.
A tendência ao não-marcado é clara durante todo o processo
5 Há evidências nos estudos de aquisição da sílaba do Português brasileiro
de aquisição. Se considerada a proposta de Bonet e Mascaró para a
e do europeu de que há grande diferença no processo de aquisição da
representação das róticas, entende-se o porquê da aquisição precoce coda medial e da coda final (cf. Hernandorena (1990), Miranda (1996) e
do ‘r-forte’, segmento possuidor do valor default do traço [a]. A Freitas (1997), entre outros.
diferença de 14 meses no tempo de aquisição do ataque ocupado pelo 6 Importa saber quando são produzidas as laterais, embora no caso do
‘r-forte’ em comparação com o ataque ocupado pelo ‘r-fraco’, indi- dialeto estudado sejam sempre semivocalizadas, e as fricativas. A nasal
cando a precocidade do primeiro e a aquisição tardia do segundo, serve será deixada de lado, pois assim como Freitas (1997) considero que,
como mais uma evidência de que a criança trata as duas róticas como nesse caso, não se trata de uma coda. (cf. proposta de Mateus e d’Andrade
fonemas distintos. Essa diferença relativa ao tempo revela também a (2000)).
preferência das crianças por estruturas de sílaba que apresentam uma 7 Vale salientar que os dados de Mezzomo (1999) pertencem ao mesmo
banco de dados referido na Nota 1 e , assim como os dados de Miranda
subida mais brusca no grau de soância do ataque em relação ao núcleo,
(1996) receberam tratamento estatístico através da utilização dos Pro-
o que confirma uma tendência à produção mais precoce de estruturas gramas VARBRUL.
possuidoras do contraste máximo, conforme proposto por Jakobson 8 Entende-se que a questão da lateral deve ser melhor analisada, para que
em seu trabalho de 1941/68. se tenha argumentos consistentes para defender sua inclusão na posição
de coda, no sistema das crianças.

228 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Análise de gênero: reflexões sobre
metodologias e práticas
David Shepherd
Universidade Federal Fluminense
Tania M G Shepherd
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

ABSTRACT:This paper focuses on analytical difficulties within Genre Analysis, discussing examples including the semi-academic article, software
ads, letters of complaint and detective story blurbs, in both English and Portuguese, from research at UFF. The need to adapt analytical tools in
order to account for possible rhetorical tensions is highlighted.
PALAVRAS-CHAVE: Análise de Gênero; Tensões Retóricas

I. Introdução
a mapear também elementos externos ao gênero, como por exemplo o
O entendimento textual a partir do conceito de gênero não é
contexto e o co-texto. Em resumo, os enfoques e tratamentos genéricos
algo recente. A maioria dos trabalhos sobre gênero começam,
podem ser resumidos em dois grande blocos, o dos textualistas e o dos
invariavelmente, atribuindo a paternidade do enfoque genérico a
contextualistas (ver Stainton, 1987).
Aristóteles. Este trabalho não é diferente: começamos também citando
A decisão de se fazer Análise de Gênero é uma alternativa
Aristóteles e sua divisão de formas genéricas em épico, lírico e
atraente de pesquisa em comparação às posições metodológicas da
dramático. Citamos, também , Frye (1965), segundo quem todo o
pesquisa lingüística tradicional. De acordo com Potter (1997: 146),
arcabouço de gêneros literários do século 20 foi construído a partir
por exemplo, trabalhar com o conceito de gênero “…é um compromisso
desse tripé.
analítico de estudar o discurso sob forma de texto e a conversa
Distante da abordagem literária, nos últimos 20 anos aconteceu
dentro das práticas sociais…o enfoque não é na língua enquanto
o que se rotula de genre revival, através do ressurgimento do interesse
entidade abstrata, mas enquanto meio de interação e de ação dos
acadêmico sobre os gêneros não ficcionais. Como todo ressurgimento,
participantes”. Através da Análise de Gêneros, garante Titcher (2000:
este vem acompanhado de controvérsias e áreas nevrálgicas, de 05), os textos não são vistos isoladamente, mas como parte de um co-
multiplicidade de termos para um mesmo conceito e vice-versa. texto lingüístico e de um contexto social. As metodologias analíticas,
Quanto à multiplicidade de termos pelos quais o conceito de por sua vez, não são atos isolados de interpretação, mas estão sempre
gênero pode ser conhecido, podemos citar texto, modo, registro, sub- relacionadas a pressupostos teóricos. Segundo o mesmo autor (op.cit:
gênero, discurso, gênero discursivo, gênero textual (cf. Martin, 2000). 6) um procedimento analítico fundamentado em pressuposto teórico
As definições de gênero vão desde gênero como artefato cultural pode, como o fio de Ariadne, garantir ao pesquisador uma viagem de
(Kent, 1985); gênero como processo social com objetivos específicos descoberta e uma volta segura ao ponto de partida.
(Martin 1986) e gênero como forma típica reconhecida pela sociedade1
(Dudley-Evans, 1987). Martin, mais recentemente, diz, de forma II. As pesquisas sobre gênero realizadas na UFF: uma
bem simples: amostragem
A motivação inicial para o desenvolvimento de um grupo de
Em sua forma mais simples Gênero significa uma espécie de pesquisa em gênero na UFF originou-se, indiretamente, em Shepherd
alguma coisa; e todos nós fazemos uso desta noção todas às (1992). O autor necessitava achar um arcabouço teórico abrangente
vezes que vamos a livraria comprar um livro (de crime, fantasia, para melhorar a compreensão de leitura de professores de inglês do
ficção científica…) ou à loja de vídeos e encontramos a setor público no Paraná. Optou por replicar Edge (1986) ao usar os
prateleira com o rótulo que procuramos (drama, ação, macropadrões populares sugeridos por Hoey (1997 e 2001), que são
comédia). Na gramática sistêmica, gêneros são interpretados atrelados a alguns gêneros específicos. Foram analisados 19 artigos da
sob uma perspectiva semântica como conjuntos de significados, revista English Teaching Forum, apontada pela população-alvo da
e as diferentes culturas podem ser interpretadas como sistemas pesquisa como sua única leitura profissional. Três macropadrões deram
de gêneros. Por conseguinte não existe significado fora dos conta, de uma maneira relativamente simples, da organização global
gêneros. (Martin, 2000)2 da informação nesses textos.
Para exemplificar, em Ndoma, abaixo, o título e parágrafos
Todas as definições acima reconhecem o gênero como um refletem as seções canônicas do macropadrão ‘Situação-Problema-
construto social. Há, entretanto, teóricos que consideram gênero Resposta-Avaliação’, formato este que organiza os textos da revista,
como uma abstração psicológica (Olson et al., 1981) e Schmidt (1987). e que não deriva de nenhuma imposição/sugestão editorial.
Quanto à extensão do conceito de gênero, há teóricos que vêm A partir deste trabalho inicial, pesquisas de mestrado por nós
gênero como um conjunto de convenções inerentes ao objeto a ser orientadas nos últimos 5 anos2 , sobre textos contemporâneos
descrito, como por exemplo Hoey (2001: 13). Há outros que vêm publicados em inglês e português, se propuseram a:
gênero como um conjunto de estratégias do escritor em sua tentativa
de atingir um objetivo e uma audiência específica, como Swales
(1990:27). Há outros, ainda, que vêm gênero como elo de ligação 1
Todos as traduções dos originais em língua inglesa são nossas.
entre produtores de texto e consumidores. Para Hodge e Kress (1988:
2
As pesquisas citadas refletem também o interesse de professores de
7), por exemplo, os gêneros são formas típicas que ligam produtores, língua inglesa em analisar gêneros talvez, porque esta alternativa oferece
uma base teórica para a adoção das várias normas do enfoque comunica-
consumidores, tópicos, meios, maneira e ocasião e que controlam o
tivo, ou as palavras pedagógicas em voga, como autenticidade, função
comportamento dos produtores e as expectativas dos consumidores comunicativa, realidade. Meurer (2000) já mostrou a importância do
em potencial. Os teóricos da Escola de Sidney, por outro lado, tendem conhecimento de gêneros para a formação do profissional da linguagem.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 229


1. explicar as escolhas de expressões e padrões específicos em leitores/professores, contendo argumentos apresentados como
gêneros paralelos tanto em português como inglês (o caso de generalizações no tempo presente. Mais adiante no texto, há uma
Sá, 1997); mudança para argumentação, expressa em escolhas lexicais ligadas aos
2. avaliar ferramentas descritivas (o caso de Elias, 1998; Dames, conceitos em ‘voga’ dentro da área da pedagogia ou da lingüística
1998); aplicada.
3. descrever um gênero específico (o caso de Guerra de Andrade, Como exemplo, em Ndoma (1990) (“Filling the gap: A study
1999; Machado da Silva, 2000; e Lee, 2000). skills program for first year students.”, FORUM. P: 26), as primeiras
duas frases são generalizações. Na terceira frase há a palavra only, de
Os macropadrões de Hoey (op.cit.) ajudaram a Sá (1997) a entendimento para os leitores/professores. No primeiro parágrafo,
descrever a organização de artigos sobre AIDS publicados em seções todo escrito no tempo presente, há também noções como student
de ciências de revistas não-especializadas e a Guerra de Andrade (1999) heterogeneity, que têm significados específicos para a comunidade
a examinar a propaganda de software. Ambas as pesquisas tinham discursiva dos professores. A inclusão de self-access learning está em
como objetivo ajudar a leitores de inglês como língua estrangeira. contraste com a realidade do Congo descrita no texto anteriormente.
O modelo CARS de Swales (1990), que traça os movimentos Quando avaliada por leitores brasileiros a expressão é rotulada de
retóricos em artigos acadêmicos, explicou as introduções de artigos problemática e pode ser um sinal de que sua inclusão sinaliza que o
sobre oceanografia (Dames, 1998). Uma tentativa de amalgamar os autor está se dirigindo à comunidade acadêmica de lingüística aplicada.
modelos de Hoey e Swales foi empregada em Lee (2000), ao explicar Em contraste, a frase high attrition rate mostra uma situação claramente
cartas de reclamação em inglês e português. reconhecida por professores brasileiros.
O arcabouço de Bhatia (1993), baseado em movimentos ou
estratégias do escritor, foi utilizado por Elias (1998) analisando a The training of English teachers in multilingual and francophone
propaganda de organizações de caridade e por Machado da Silva (2000), Zaire remains a challenge. Courses at the Institut Pedagogique
mostrando características genéricas consistentes nas contracapas dos National (I.N.P.), the largest teacher-training college in Zaire,
romances policiais. extend over three to five years. By and large, candidates for
English studies are selected according to very lenient criteria.
III. As dificuldades das análises The secondary-school diploma is the only requisite for admission
Apesar dos resultados positivos alcançados, os modelos into the English Department. Since for a number of years now
utilizados, de natureza hierárquica, foram insuficientes para explicar there has been an increasing demand from secondary-school
a presença de tensões retóricas em maior ou menor grau. Andrade graduates to enroll in English, the intake has grown substantially
Guerra não conseguiu dar conta dos anúncios para software de jogos, … student heterogeneity brings about variations in academic
que se utilizam de avaliação negativa para sinalizar seus macropadrões. potential among candidates…The direct consequence of this
Tanto nos movimentos das cartas de reclamação examinadas por Lee situation is high student attrition rate.
e nos textos das contracapas das histórias policiais analisadas por
Machado Silva, as tensões eram de dois tipos. Lee detectou falta de As escolhas lexicais de Ndoma advêm não somente do discurso
determinados movimentos e variação na seqüência de movimentos, da lingüística aplicada, demonstram sua percepção da experiência prévia
sugerindo que o ato de reclamar em português, de face negativa, pode em pesquisa sobre aprendizagem de línguas (SLA), ou da pedagogia
prescindir do ato de mitigar. Nas contracapas examinadas por Machado em voga de procedimentos em sala de aula, além de sua percepção da
Silva, a falta de marcadores claros para os limites entre os vários organização retórica de artigos. Todos esses fatores se justapõem para
movimentos sugere que essas contracapas se assemelham muito mais tecer seu argumento. Entretanto, a análise de protocolos verbais
em sua forma genérica a anúncios do que a resumos das histórias que resultantes dos “think alouds” de professores brasileiros de inglês,
cada livro contem. A propósito, semelhantes tensões genéricas, ou enquanto liam os mesmos artigos sugere que estes professores atribuem
sintomas de “multi-registro”, conforme rotulado por Fairclough: (1998) qualidades e valores pessoais conflitantes com os papéis sociais
foram também identificados por este autor em textos políticos. Esta adotados por Ndoma.
última conclusão sugere que abordar a organização de gêneros através O texto de Ndoma é exemplo daquilo que organiza os artigos da
de modelos hierárquicos ignoram o argumento de Bakhtin (1986) de revista “Forum”, uma mistura de recursos discursivos diferentes.
que gêneros são por natureza, lugares de tensão retórica. Nesta linha Apesar de sua aparente simplicidade, a maioria dos artigos sobre
de pensamento, Coe (1994), Stillar (1998) e Lingard (1998) sugerem metodologia de inglês examinados naquela publicação é composta de
que gêneros são manifestações múltiplas, em que conhecer as vários discursos, de vários papéis assumidos pelo autor, tornando a
convenções genéricas de uma comunidade discursiva gera a aplicação dos modelos citados acima de pouca praticidade.
possibilidade de usar/evitar/manipular as mesmas convenções.
O estudo de Dames (1998) é um bom exemplo desta posição. IV. Conclusões
Analisando as introduções sobre oceanografia dirigidas a uma audiência Scollon, Bhatia & Yung, (1999:22) já apontaram que “…muitos
de não-especialistas, Dames verificou que foram modificadas as normas de nossos conceitos acadêmicos tradicionais sobre gênero e
genéricas e lingüísticas comuns a uma comunidade científica. O gênero comunicação precisam ser revistos…”. De certa forma, ainda que
da oceanografia popular, segundo a autora, ora adere a convenções indireta, a Estrutura Genérica Potencial (EGP) de Hasan (1996: 51-
genéricas e reforça o poder das comunidades discursivas dominantes; 72) tentou descrever os elementos compulsórios, bem como os
ora é locus de mudanças e luta entre o interesse conflitante de atingir acessórios (ou tensionais) de alguns gêneros. O problema da EGP de
uma outra audiência maior e menos acadêmica. Hasan, entretanto, é que as descrições desses elementos compulsórios
Algo semelhante acontece nos artigos sobre metodologia de e acessórios se adaptam bem àqueles gêneros lineares, seqüenciais,
línguas estrangeiras publicados em revistas como “Fórum”. São que significam no tempo (como histórias e encontros de serviços). As
baseados em convenções genéricas da pesquisa científica, da descrições não dão conta nem daqueles gêneros textuais que significam
metodologia de ensino de línguas estrangeiras e também nas convenções no espaço, como os anúncios impressos (o caso de Andrade Guerra),
discursivas do campo da lingüística aplicada. No início de cada artigo, nem daqueles gêneros plurivocais estudados por Lee, Machado da
tenta-se criar um ‘território comum’ (Brazil: 1995), envolvendo os Silva e mesmo por Shepherd, já citados.

230 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Há, portanto, a necessidade de uma teoria que dê conta, de KENT, T. L. “Interpretation and genre perception”. Semiotica. Vol.
forma não abstrata, das tensões genéricas citadas por Bahktin, que 56. Nº. 2. 1985.
incluem a maior ou menor previsibilidade de um gênero por parte do LEE,V. A genre analysis of letters of complaint in English. Dissertação
leitor, e a multiplicidade de papéis adotados pelo autor de um texto. de Mestrado inédita. Universidade Federal Fluminense. 2000.
Talvez, uma visão dinâmica de gêneros, conforme sugerida por Coe LINGARD, L. Genre as initiation: socializing student physicians”.
(1994) e Lingard (1998) pode ser a resposta para nos ajudar a explicar Tese de doutorado inédita (?) Simon Fraser University. 1998.
essas tensões.
MACHADO DA SILVA, S. R. Judging a book by its cover: detective
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Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 231


Um gênero discursivo legalmente constituído?
Maurício B. de Carvalho
Lucia M. A. Ferreira
Evelyn G. D. Orrico
Universidade do Rio de Janeiro

ABSTRACT: In this paper we propose to examine certain aspects of the construction of the discoursive genre of the medical inserts which accompany
medicine sold in Brazilian drugstores. The discoursal hybridity of the genre reflects attempts of interaction with different discoursive communities
and, although legally controlled, the texts are not entirely socially sanctioned.
PALAVRAS-CHAVE: gênero discursivo, bulas de remédios

1- Introdução mações ao paciente caracterize-se pela ausência destes termos.


É importante notar entretanto que, apesar do alto grau de
O objetivo deste trabalho é discutir aspectos do discurso das convencionalização da estrutura textual das bulas, sua inserção no
bulas de remédios, examinadas no projeto de pesquisa A bula e suas quadro teórico recém-explicitado não se faz sem consideráveis difi-
complicações: uma análise lingüístico-informacional1 , que tem como culdades, na medida em que os propósitos comunicativos desse
objetivo identificar algumas das causas das dificuldades de seu enten- instrumento não podem ser facilmente identificados pelos usuários
dimento por parte do consumidor. de medicamentos, supostamente membros da comunidade discursiva
Segundo dados recentemente publicados pela revista Veja2 , o em que o gênero se insere. Em outras palavras, os consumidores que
Brasil é o quinto país do mundo em consumo de medicamentos, com colocam o país no quinto lugar em consumo de medicamentos não
uma farmácia para cada 3000 habitantes, mais que o dobro do reco- interagem com o texto que acompanha o medicamento que ingerem,
mendado pela Organização Mundial de Saúde. O país é também cam- provavelmente devido à complexidade da estrutura textual. Uma
peão em mortes por intoxicação e, segundo dados da Fundação Oswaldo hipótese plausível para tal dificuldade é a de que a complexidade da
Cruz, também citados pela revista, 30% das 80.000 mortes anuais por estrutura tenha a ver com a diversidade de propósitos comunicati-
intoxicação têm como causa o uso indevido de medicamentos. É pro- vos veiculados, e que a bula seja um gênero híbrido que se propõe a
vável que estes (tristes) fatos estejam relacionados a uma criticável atingir a mais de uma comunidade discursiva: profissionais da saúde
tendência à auto-medicação por parte do brasileiro. Desaprovamos a e público consumidor. A análise das representações das bulas
prática da auto-medicação, mas defendemos o argumento de que o depreendidas a partir de entrevistas feitas com vários atores sociais
acesso às informações contidas nas bulas é um direito do cidadão . envolvidos com o que convencionalizamos chamar de ciclo
Neste trabalho, no intuito de identificar pontos relacionados à informacional das bulas ilustra o descompasso entre as interpreta-
dificuldade de compreensão dos textos por parte do consumidor, ini- ções e opiniões e os propósitos comunicativos depreendidos da
cialmente tomamos a bula de medicamentos como um gênero discursivo estrutura textual rígida e convencional.
e, em seguida, analisamos aspectos subjacentes à sua elaboração que
problematizam sua inserção em uma visão de gênero como prática 3- As representações
discursiva socialmente ratificada (Fairclough 1995).
Foram entrevistados agentes sociais associados às diversas eta-
2- O gênero bulas de remédios pas do ciclo informacional das bulas: sua produção (gerente de legis-
lação farmacêutica de um grande laboratório e vereadora que faz parte
Em linhas gerais, a literatura considera o gênero discursivo um da Comissão de Saúde da Câmara Municipal do Rio de Janeiro); sua
evento comunicativo reconhecível, caracterizado por um conjunto de divulgação (editor-chefe do maior instrumento de divulgação de bulas
propósitos comunicativos identificados e mutuamente entendidos pelos para a classe médica; programador visual responsável pela diagramação
membros da comunidade na qual ocorrem. Na maioria das vezes, o das bulas; sua transformação (usuário médico, membro da Academia
gênero é altamente estruturado e convencionalizado, com considerá- Brasileira de Medicina, com larga experiência clínica e pedagógica).
veis restrições em relação a aspectos formais e funcionais. Os princí- Muitos dos entrevistados vêem no médico o leitor-alvo das
pios subjacentes a um gênero estabelecem portanto restrições que bulas, que ali encontraria as informações técnicas necessárias para a
determinam não só a estrutura informacional e discursiva mas tam- prescrição do medicamento. De fato, as bulas são o principal instru-
bém as escolhas lexicais e sintáticas. A metalinguagem utilizada pela mento - documento informacional - utilizado pelos laboratórios para
comunidade discursiva fornece informações a respeito dos princípios informar a comunidade médica acerca das propriedades de seus pro-
que governam o gênero. dutos, lançamentos, etc. Mas as bulas podem também servir, como
Na maioria dos casos, as bulas brasileiras têm uma estrutura documento-testemunhal, à defesa dos laboratórios farmacêuticos, se-
textual bastante rígida, previsível e convencional, facilmente associa- gundo alguns entrevistados. A bula também é vista como um instru-
da a uma construção em estágios ou movimentos retóricos que têm mento de defesa do consumidor e até mesmo um instrumento de auto-
diferentes valores informacionais e comunicativos, como Informa- medicação. Os trechos reproduzidos a seguir exemplificam a varieda-
ções ao paciente, Informações técnicas, etc. Os dois estágios tomados de de representações depreendidas das entrevistas (cf. Orrico et al,
como exemplos são explicitamente nomeados e delimitados na estru- 1999):
tura textual e, embora tenham características comunicativo-
informacionais distintas, em alguns casos pode haver sobreposição
parcial de informações. Do ponto de vista formal, há também diferen- 1 O projeto se desenvolve no âmbito da linha de pesquisa Linguagem,
ças consideráveis, principalmente no nível lexical, pois a principal Informação e Reprodução Cultural do Mestrado em Memória Social e
característica da seção Informações técnicas é a abundância de termos Documento da Universidade do Rio de Janeiro – UNIRIO.
médico-farmacêuticos. Isto não significa, todavia, que a seção Infor- 2 Veja, Editora Abril, 10 de janeiro, 2001, p. 71

232 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


III- Dizeres Legais
§ ... eu acho a bula importantíssima para o profissional, não Aqui são informados número de registro no Ministério da Saú-
tenho dúvida disso não. de, farmacêutico responsável e CRF, nome da empresa titular do re-
§ A informação técnica tem que existir sim, tem que existir e gistro, fabricante e respectivos endereços, CGC, etc
quanto mais completa melhor...
§ ... note bem, a bula é p’ro médico... De modo geral, as bulas examinadas (cf. Santos, 1999) obede-
§ Eu acho que aí já é um instrumento de defesa dos laborató cem à maioria das especificações da legislação, que chega a detalhar
rios. aspectos relacionados ao tamanho da letra, como se observa no decre-
§ É um país de pouca cultura, com muito analfabeto, e eu acho to nº 79.094/77, 94:
que se tirasse a bula, seria pior. Os dizeres da rotulagem, da bulas, etiquetas, prospectos ou
§ No Brasil, como a cultura é baixa, a bula é um mal necessá quaisquer modalidades de impressos referentes aos produtos
rio, tem que ser um mal necessário, evidentemente. de que trata este Regulamento, terão as dimensões necessárias
§ ... porque o brasileiro, geralmente, diz que é um pouco hipo à fácil leitura visual, observado o limite mínimo de um milíme-
condríaco, gosta de tomar remédio por conta própria (…) tro de altura e redigido de modo a facilitar o entendimento do
aí, quer dizer, (…) se auto-medica; todo mundo no Brasil se consumidor.
auto-medica
A análise das especificações da legislação com relação à função
Nas entrevistas, observou-se que, mesmo entre os médicos e ao público-alvo das bulas de remédios deixa claro que, pelo menos
havia discordância com relação à função e ao leitor-alvo das bulas. Há para o legislador, a bula é um documento multifuncional que tanto
quem defenda a idéia de que, como não há médicos em número sufici- informa o paciente/consumidor quanto o profissional médico qualifi-
ente para acompanhar de perto seus pacientes, é imprescindível que cado. Dito de outra maneira, os significados codificados na estrutura
estes tenham um papel ativo em seus tratamentos, leiam as bulas e da bula devem ser entendidos por membros de comunidades discursivas
informem ao médico sobre a evolução de seus sintomas. Outros já diferentes que não partilham do mesmo tipo de conhecimento especi-
acham que o paciente não deveria se preocupar com as informações alizado, razão pela qual o texto é segmentado em partes diferentes, de
técnicas contidas nas bulas, pois, na maioria das vezes, não está capa- modo que os dois tipos de leitores possam ter acesso às informações
citado a compreendê-las. Em resumo, as representações não confir- de que necessitam. As diferenças nas representações que as entrevis-
mam a hipótese de que as bulas sejam uma manifestação discursiva tas revelaram podem ser pelo menos parcialmente explicadas pela
socialmente ratificada, pois esta postulação pressupõe que a interação análise da legislação: os textos das bulas são híbridos, pois servem a
lingüística e as convenções sociais sejam sancionadas por uma comu- diferentes funções e atendem a diferentes tipos de leitores. Mas por
nidade discursiva homogênea. Mas com tanta diversidade, de onde que então tão poucos consumidores conseguem interagir com a lingua-
vem a estrutura rígida, convencional das bulas? gem das bulas? Seria então a bula um gênero legalmente constituído
mas não socialmente ratificado?
4- O controle exercido pelo Estado: o roteiro para a elabo-
ração de bulas 5- A linguagem das bulas: a seção Informações ao paciente

A portaria Nº 110/97 da Vigilância Sanitária é, entre outros, um Eventos discursivos específicos variam em sua determinação
dos principais dispositivos de controle associados à elaboração e estrutural de acordo com o domínio social específico ou infraestrutura
veiculação das bulas em nosso país. Segundo este documento, as bulas institucional nos quais são gerados (Fairclough 1992). Nesta ótica, a
devem conter, na ordem em que se apresentam abaixo, as seguintes análise da seção Informações ao paciente das bulas analisadas revela
informações (cf. Santos, 1999): as contradições entre a prática discursiva legalmente imposta e a es-
trutura sócio-cultural em que está inserida. Conforme indicam as aná-
I- Identificação do Produto lises da estrutura lingüística e da identidade do paciente já realizadas
Este item deve conter: informações sobre o nome do produto, nome (cf. Carvalho et al., 1999, 2000), o modelo de leitor que se depreende
genérico, composição do produto e, em destaque, a indicação se de da estrutura textual desta seção é um brasileiro com alto grau de
uso pediátrico ou adulto. escolarização, com domínio do português formal escrito e conhecedor
de terminologia médico-farmacêutica. Algumas marcas lingüísticas
II- Informação ao Paciente analisadas a seguir ilustram o argumento.
Também obrigatória, esta parte do texto deve ser escrita em
linguagem de fácil compreensão para o consumidor em geral. Devem (1) X não deve ser usado por pacientes hipersensíveis à
estar presentes informações acerca da ação esperada do medicamento, nifedipina ou por aqueles com angina instável ou que tenham tido
cuidados de armazenamento, prazo de validade, cuidados na gravidez infarto do miocárdio recentemente ou choque cardiovascular. Paci-
e amamentação, cuidados na administração do medicamento, reações entes com pressão arterial muito baixa ou com insuficiência cardíaca
adversas, ingestão concomitante com outras substâncias, contra-indi- ou com estenose aórtica grave devem receber cuidados especiais. Em
cações e precauções. Devem também aparecer algumas frases obriga- pacientes com alteração da função hepática, pode ser necessário re-
tórias, tais como: TODO MEDICAMENTO DEVE SER MANTI- duzir-se a dose.
DO FORA DO ALCANCE DAS CRIANÇAS; NÃO TOME RE-
MÉDIO SEM O CONHECIMENTO DO SEU MÉDICO, etc. Observe-se que a complexidade do exemplo acima não se dá
apenas no nível lexical, mas também no nível sintático. Para qualificar
III- Informação Técnica o agente da passiva de X não deve ser usado por ..., o laboratório se
Este item deve conter informações acerca das características utiliza de uma seqüência de orações coordenadas pela conjunção ou,
químicas e farmacológicas, indicações, contra-indicações, precauções recurso que aumenta a dificuldade de processamento do texto. A mes-
e advertências, interações medicamentosas, reações adversas, posologia, ma estratégia é utilizada no segundo período.
superdosagem, conduta nas reações adversas graves, advertências so-
bre o uso do medicamento em pacientes idosos, etc.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 233


(2) Embora não tenha sido estabelecida com clareza a relação recentes em nossa sociedade com a defesa dos consumidores. Em
causal com o astemizol, foram descritos casos isolados de convulsões, outras palavras, a bula, como a vemos hoje, é um documento que surge
parestesias benignas, artralgias, mialgias, edema, distúrbios do hu- entre nós como um gênero híbrido, que pretende atender a comunida-
mor, insônia, pesadelos, elevação das transaminases e hepatite. des discursivas diferentes e a desempenhar múltiplos papéis sociais.
Por um lado, ela atende à comunidade médica, mantendo assim
O exemplo (2) não tem como única dificuldade a menção ao seu papel de veículo de comunicação entre os laboratórios e os profis-
princípio ativo do medicamento. O período, bastante longo, se inicia sionais. Nesta vertente, o gênero é socialmente ratificado e sua estru-
com uma oração subordinada adverbial concessiva introduzida por tura reflete os vários sistemas peritos (Giddens 1991) que o constro-
embora, seguida de subjuntivo negativo, seguido de uma voz passiva em (pesquisa biomédica, desenvolvimento tecnológico, produção de
e de pelo menos quatro palavras da área médica. medicamentos, etc). A evidência de que a bula cumpre o seu papel
Muitas outras estruturas lexicais e sintáticas complexas, de informativo junto à comunidade médica é a existência do DEF (Dicio-
difícil processamento cognitivo, são encontradas na seção Informa- nário de Especialidades Farmacêuticas), uma publicação
ções ao paciente das bulas: freqüentemente consultada pelos médicos durante as consultas, dis-
§ orações parentéticas que obrigam o leitor a processar uma tribuída pelos laboratórios, e que contém um bulário.
oração intermediária e voltar ao pensamento que havia sido No que diz respeito ao paciente, consumidor de medicamentos,
interrompido; todavia, a bula aparece como um gênero sem sanção social, talvez
§ nominalizações que, por serem estruturas muito compactas,
como uma tentativa (ineficaz) de intervenção do Estado de proteger o
exigem maior esforço processual;
consumidor e equilibrar o ímpeto dos laboratórios farmacêuticos ao
§ orações na voz passiva, freqüentemente de modo a permitir
lançar seus produtos no mercado. Na estrutura textual da seção Infor-
que o nome do medicamento apareça em posição de tópico
mações ao paciente são encontradas as evidências das contradições de
da oração, como elemento discursivo mais importante duran
uma sociedade que, embora seja o quinto maior consumidor de medi-
te o processamento;
camentos do planeta, não possibilita o acesso dos consumidores aos
§ construções impessoais, como pode-se não obter alívio ime
significados codificados na bula que obrigatoriamente acompanha es-
diato
tes medicamentos.
§ uso de hiperônimos para referir-se ao medicamento: prepa
rados corticóides tópicos não deveriam ser aplicados...
Referências bibliográficas
Em resumo, a seção Informações ao paciente, com parâmetros
de redação legalmente impostos e fiscalizados pelo Estado, não cum- ARAUJO, E. & MERCANTE, A. As bulas de remédios no contexto
pre sua função precípua - informar e proteger o paciente - porque não do desenvolvimento da indústria farmacêutica no Brasil. In: XIII
é codificada em linguagem partilhada pela maioria dos pacientes/con- SEDEC, UNIRIO, 1999.
sumidores. Dito de outra forma, no que diz respeito a esta comunida- CARVALHO, M. B. de, FERREIRA, L. M. A., ORRICO, E. G. D. &
de discursiva, as bulas não são um gênero discursivo socialmente RIBEIRO, L. B. As bulas e a análise crítica do discurso. In:
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da prática discursiva se manifestam na estrutura textual. CARVALHO, M. B. de, FERREIRA, L. M. A. & ORRICO, E. G. D.
A relação entre as marcas textuais das bulas de medicamentos e a
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O surgimento das bulas de remédios em nosso país coincide FAIRCLOUGH, N. Critical Discourse Analysis: the critical study of
com a vinda dos primeiros laboratórios farmacêuticos estrangeiros, language. Londres: Longman, 1995.
nas décadas de 20 e 30, que vieram a superar o trabalho artesanal ORRICO, E., G. D., RIBEIRO, L. B., FERREIRA, L. M. A. &
realizado pelas farmácias tradicionais, pioneiras no ramo da produção CARVALHO, M. B. de. Documento e representações: a bula e
de medicamentos (cf. Araújo & Mercante, 1999). Dirigidas aos médi- suas leituras. In: XII Congresso Internacional da AHILA – Asso-
cos, essas bulas eram, em princípio, o canal de comunicação entre o ciação de Historiadores Latino-Americanos Europeus, Porto,
laboratório que lançava novos produtos no mercado e o profissional 1999.
médico que os prescrevia. A obrigatoriedade da bula e a rígida legisla- SANTOS, Fabiana H. V. dos. O documento bula e suas normas legais.
ção são posteriores, e é provável que reflitam preocupações mais In: XIII SEDEC, UNIRIO, 1999.

234 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A categoria de gênero em contextos disciplinares:
o caso da prosa sobre a literatura
Anna Elizabeth Balocco
Universidade do Estado do Rio de Janeiro

ABSTRACT: The present article offers a discussion on the analytical category of genre, through the analysis of a sample of twenty articles published
in the field of literary research in English. It draws on studies by Hunston (1989; 1994) and Martin (1992), within the theoretical framework of
systemic functional linguistics.
PALAVRAS-CHAVE: gênero - discurso disciplinar - prosa sobre a literatura

1 - Introdução senso comum, permitem-nos distinguir, por exemplo, um artigo pu-


blicado em página literária de um jornal de grande circulação, de um
A categoria analítica de gênero discursivo, usada na classi- artigo acadêmico, publicado em periódico especializado. Segundo
ficação de diferentes tipos de textos ou discursos, é muitas vezes Marcuschi (1992 apud Paredes da Silva, 1996), que propõe uma dis-
tratada na literatura lingüística como “dada”. No entanto, o concei- tinção entre espécies de textos e tipos de texto, aqui caberia o uso do
to de gênero é muito amplo e não há consenso em relação aos crité- primeiro termo, para referência às “classificações empíricas de textos
rios para uma classificação de diferentes tipos de textos ou discur- encontrados em situações da vida diária”, reservando-se o uso de tipos
sos. Nosso argumento é o de que as diferentes perspectivas teórico/ de texto para um construto baseado em uma teoria.
metodológicas nos estudos de gênero podem ser compreendidas a Acrescentamos que é possível explicitar as diferenças entre
partir de diferentes formas de se conceitualizar o termo função, espécies de textos com base numa teoria cuja perspectiva metodológica
propostas por Nichols (1984). Os diferentes sentidos de função seja social, mais ligada à etnografia da comunicação e que tome como
serão examinados ao longo deste trabalho, à medida que se detalham unidade de análise o evento de fala. Aqui estamos falando da primeira
os procedimentos analíticos adotados no exame de uma amostra de perspectiva metodológica, que se associa ao sentido de função/evento
20 artigos acadêmicos, escritos em inglês, na área da prosa sobre a de Nichols, para quem “as categorias [entendidas como] função/even-
literatura (cf. Balocco, 2000). Com isso, pretende-se ilustrar os dife- to indexicalizam os papéis sociais, status, e assim por diante, dos
rentes critérios e níveis de análise no estudo dos modos de organiza- participantes no evento de fala” (Nichols, 1984:100). De forma su-
ção de textos e argumentar que os mesmos não são válidos em qual- perficial, abordando apenas um aspecto da situação de comunicação
quer situação de pesquisa, mas devem ser pertinentes ao problema em cada caso, os públicos-alvo do artigo acadêmico e do artigo de
que se pretende analisar. No caso da prosa sobre a literatura, argu- divulgação na área da prosa sobre a literatura são diversos: no primei-
menta-se que o exame da estrutura avaliativa dos textos da amostra ro caso, podemos caracterizar este público-alvo como uma comunida-
contribui de forma significativa para a caracterização deste discurso de discursiva (apoiando-nos em critério proposto por Swales (1990),
disciplinar. de compartilhamento de propósitos/interesses entre seus membros);
no segundo caso, no entanto, a noção de comunidade discursiva se-
2 - A prosa sobre a literatura sob uma perspectiva genérica quer pode ser aplicada, tendo em vista a amplitude do público-alvo de
“social” um jornal de grande circulação.

Insiste-se muito no problema da unidade do discurso da crí- 3 - A prosa sobre a literatura sob uma perspectiva genérica
tica literária, que apresenta uma multiplicidade de manifestações. De “formal”
fato, este discurso tem sido pouco estudado sob o ponto de vista
lingüístico/discursivo, freqüentemente sob a alegação de que a prosa Prosseguindo em nosso percurso, passamos à análise
acadêmica nesta área inscreve-se numa tradição de estudos “ensaísticos” empírica dos artigos da amostra e ocupamo-nos dos modos de orga-
que, em princípio, não admitiria aproximação a partir dos modelos nização daqueles textos. Quando nos ocupamos dos modos de orga-
usados no estudo das convenções do discurso acadêmico. Parte do nização dos artigos da amostra, estamos adotando uma outra unida-
argumento aqui apresentado é o de que a categoria de gênero textual de de análise (o texto) e buscando responder às seguintes questões:
permite lidar, em parte, com a heterogeneidade de manifestações como se inicia, se desenvolve e se acaba o artigo? Há marcas
discursivas da prosa sobre a literatura. Esta categoria analítica permite lexicogramaticais que permitem identificar fronteiras entre segmen-
um recorte no discurso da crítica literária, ao viabilizar a identificação tos textuais? Há estruturas discursivas (narrativas, descritivas,
de diferentes formas de intervenção crítica, como o manifesto literá- expositivo/argumentativas) que se associam mais facilmente a este
rio, a resenha literária acadêmica, o ensaio, o artigo acadêmico pu- gênero textual?
blicado em periódicos especializados, o artigo de divulgação publica- As perguntas levantadas remetem a critérios de diferentes
do em páginas literárias de veículos de grande circulação, dentre ou- ordens e a diferentes níveis de análise. A pergunta sobre como se
tros. Uma pergunta que emerge imediatamente aqui é a seguinte: o que inicia, se desenvolve e se conclui o artigo associa-se à noção de função/
significa gênero textual nesta etapa de análise? Que perspectiva relação de Nichols, que diz respeito à “contribuição de um elemento
metodológica é adotada para diferenciar estes diferentes tipos de in- estrutural a uma unidade de nível superior”. Este é o sentido de função
tervenção crítica? implícito em Martin (1992), quando o autor propõe a noção de estru-
Nesta etapa da análise, as diferentes formas de intervenção tura esquemática como instrumento na caracterização de gêneros tex-
crítica são identificadas a partir de uma base funcional tomada a priori. tuais: a estrutura esquemática é uma descrição dos elementos estrutu-
Ou seja, nossas próprias intuições, baseadas em conhecimento de rais de um gênero. Ao relacionarmos a estrutura esquemática de Martin

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 235


ao sentido de função/relação de Nichols, no entanto, não negligencia- Exemplo 1: (S1) In a spare, minimal narrative suggestive of a
mos o forte conteúdo de função/propósito comunicativo implícito na Becket play, Newman, the son, emerges reluctantly every Sunday from
noção de estrutura esquemática. A solução é reconhecer, com Nichols, New York City on the Long Island Railroad to visit his now-widowed
que há duas dimensões sobrepostas aos diferentes sentidos de função: father, an inmate in a mental hospital. (S2) During each of his several
observa-se em muitos casos uma interpretação “instrumental” ou visits through “that spring and dry summer”, as Newman leaves the
“teleológica” de função, em que “[se] usa a linguagem para se alcançar hospital he is confronted by Teddy and, later, Teddy’s father, Ralph,
determinado objetivo” (Nichols, 1984:101). Em outros casos, a inter- both resident patients who importune Newman to mail Teddy’s letter
pretação de função é “menos teleológica”, ou reflete “o efeito não- (later to be revealed as Ralph’s as well) since there are no mailboxes
intencional da escolha de determinada forma gramatical”. Assim, a on the grounds of the hospital except in the doctor’s office. (S3) Because
estrutura esquemática de Martin associa-se ao sentido de função/ Teddy is unwilling to have his letter “read” by the doctor, he persists
relação, interpretada de forma instrumental. in asking Newman to mail the letter - “four sheets of cream paper with
Para Martin, a estrutura esquemática localiza-se no plano nothing written on them.” (S4a) Teddy’s and Ralph’s persistence in
dos construtos teóricos, visto que é uma categoria abstrata, que repre- pressing the letter on Newman, and Newman’s refusal to mail the
senta o “potencial semântico” de um gênero e não uma descrição de letter - because “There’s nothing in it to mail” - provide the never-
um texto particular. No plano da análise empírica de textos, a noção de resolved tension in the story; (S4b) at the end of the story, Newman
estrutura faz referência aos padrões de textualização criados pela once again leaves the hospital still refusing to mail the letter in the face
lexicogramática. Aqui, reconhecem-se três tipos de “estruturas” (cf. of Ralph’s assertion that “There’s a whole letter in there.”
Halliday, 1982): a estrutura genérica, que realiza a estrutura esquemática
de dado gênero; a estrutura periódica, ligada aos sistemas de tema e O locutor inicia o segmento textual com um Comentário, que
fluxo da informação; e a estrutura prosódica, ligada aos sistemas tematiza as propriedades formais do conto (spare, minimal narrative),
lexicogramaticais que se realizam no plano da interpessoalidade. Uma seguido de uma representação da obra literária: o Quadro. Há um
decisão metodológica importante aqui, portanto, é qual estrutura to- Comentário intercalado na oração parentética (later to be revealed as
mar como ponto de partida na análise. Ralph’s as well), que revela a intervenção do locutor na “cronologia
A prosa sobre a literatura caracteriza-se por seu caráter for- interna” do conto. Observa-se ainda um Comentário na oração 3, em
temente valorativo ou apreciativo. Levando em conta esta sua carac- que o locutor apresenta uma expressão “aspeada” (= “read”),
terística, tomamos como ponto de partida em nossa pesquisa o exame indicando tratar-se da fala do autor do conto. Na oração 4, cláusula a),
da estrutura prosódica ou “avaliativa” dos textos que constam da o locutor tece Comentários sobre o conto, atribuindo relevância ao
amostra, com base em arcabouço analítico de Hunston (1994) para o segmento textual anterior e funcionando, portanto, como um fecho
estudo da avaliação no discurso. Assim, estamos entendendo a “es- daquela unidade textual. As marcas lingüísticas de Comentário estão
trutura avaliativa” como fazendo referência às diferentes dimensões representadas pelas nominalizações e predicado verbal característicos
lingüísticas através das quais o locutor monitora a informação que de estruturas discursivas expositivas (cf. Paredes da Silva 1996).
introduz no seu texto, avaliando-a do ponto de vista de seu estatuto Vê-se, portanto, que neste parágrafo Quadro e Comentário
informacional, de seu valor para determinada comunidade discursiva, estão imbricados. Observa-se que o trecho apresenta tempo verbal
e de sua relevância para aquela comunidade e para o argumento sendo característico de estruturas expositivas (o presente simples); no en-
construído no texto. tanto, a ocorrência da 3a. pessoa do discurso no trecho em discussão
representa um traço característico de estruturas narrativas. A solução
4 - O movimento de Quadro a Comentário na prosa sobre aqui seria reconhecer que as estruturas discursivas não se apresentam
a literatura como categorias estanques no discurso, mas na forma de um contínuo
com diferentes valores. No caso do gênero de que nos ocupamos, a
Nesta etapa da investigação, adotamos a frase como unidade mescla de estruturas discursivas (narrativa, exposição) é motivada
de análise (cf. Hunston, 1994) e procedemos à identificação das mar- pelas características específicas da situação de comunicação, que re-
cas lingüísticas de avaliação no discurso, já consagradas na literatura quer que os comentários sobre a obra literária sejam precedidos “por
(léxico valorativo; status informacional do enunciado; tempo e aspec- um rito inicial, [que] transform[e] (...) [o texto literário] em objeto
to verbais; “fonte da informação”, dentre outros). Após levantamen- pintado (emoldurado) (...)” (cf. Barthes, 1970:85).
to destas marcas lingüísticas, passamos à investigação dos padrões de
distribuição desses recursos de avaliação nos textos da amostra. 5 - A estrutura particulada do texto expositivo
O exame da “estrutura avaliativa” de muitos textos da amos-
As observações sobre o movimento de vaivém entre Quadro
tra revela um padrão de organização característico, que poderia ser
e Comentário não deveriam nos levar a imaginar que a prosa sobre a
descrito como um movimento de vaivém entre dois macroatos de fala:
literatura consiste num padrão de organização em que um comentário
um ato de fala “constativo”, que busca representar a obra e o contexto
é acrescentado a uma paráfrase da obra literária, num movimento
que a circunda, aqui chamado de Quadro, e um ato de fala
seriatim, sem um princípio de organização mais abrangente. O prin-
“performativo”, que realiza o Comentário1 .
cípio organizador do artigo acadêmico não é o texto-tutor (texto literá-
Na categoria de Quadro, observa-se a predominância do pre-
rio), mas o texto produzido pelo locutor, cujo fio condutor será o seu
sente descritivo, da 3a. pessoa do discurso (ou não-pessoa) e de ativi-
próprio argumento. A análise empírica da estrutura sintagmática dos
dades retóricas de paráfrase da obra literária, cujo status informacional
textos da amostra sugere que o movimento de Quadro a Comentário é
é sabido ou fato. A segunda categoria, o Comentário, caracteriza-se
subordinado2 à estrutura esquemática proposta por Martin (1992:258)
pela onipresença do locutor, que pode ou não revelar-se como instân-
cia enunciativa. Observam-se, portanto, diferentes graus de asserção
no Comentário, que vão desde o modo impessoal até a asserção assu- 1 Estamos adotando a metáfora da “pintura” proposta por Barthes
mida enfaticamente pelo locutor, o que abre espaço a uma gama de (1970:85) para referência à descrição literária.
atividades retóricas cujo status informacional vai de sabido a certo , 2 O sentido de “subordinado” aqui remete a planos hierárquicos na análise
passando por possível. Destacamos para análise apenas um exemplo, textual, visto que a estrutura avaliativa é estudada no âmbito da frase/
retirado de artigo sobre conto de Bernard Malamud (Lasher, 1994): oração, enquanto a estrutura esquemática pressupõe a noção de unida-
des intermediárias entre texto e frase.

236 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


para o gênero expositivo: TESE ^ARGUMENTO n^CONCLUSÃO. Para finalizar, após enumerar as diferentes etapas
A fórmula indica que o primeiro elemento (Tese) precede o segundo metodológicas em nosso percurso, destacamos que o pressuposto
(Argumento) e que este último é recursivo (n), podendo apresentar básico que informou a análise foi o de que a caracterização genérica
um número indefinido de realizações. dos textos da amostra, aqui entendida em seu sentido restrito, como
Do ponto de vista semântico, a Tese, na pesquisa literária, é estando afeita apenas a aspectos macro-estruturais (cf. o sentido de
reconhecida por seu caráter de especulação teórica sobre como a obra função/relação de Nichols), resultaria pouco informativa. Neste sen-
literária deve ser lida. Do ponto de vista lexicogramatical, e de sua tido, a análise centrou-se no exame da estrutura avaliativa dos textos
estrutura avaliativa, a Tese é reconhecida por seu caráter de Comentá- da amostra.
rio. Isto equivale a dizer que, no segmento funcional em que se intro-
duz a Tese, a fonte da informação é o locutor, com codificação explí- Referências bibliográficas
cita (I claim that.../My argument is...) ou implícita de fonte de atribui-
ção (This paper claims../X should be read as.....). O Argumento carac- BALOCCO, A.E. Padrões de avaliação e de organização textual no
teriza-se por ser uma proposição de nível mais baixo que o da Tese, artigo acadêmico na área da pesquisa literária em inglês. Tese
que introduz uma inferência sobre o significado ou importância de de doutorado. RJ:UFRJ, 2000. 202 p.
determinado elemento retirado da obra em discussão. Do ponto de BARTHES, R. S/Z. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992 (Ed. orig.
vista de sua estrutura interna, e de sua estrutura avaliativa, o Argu- francesa: 1970).
mento parece textualizar-se como um movimento de Quadro a Co- HUNSTON, S. Evaluation and organization in a sample of written
mentário, ou em sentido inverso. O Comentário, retrospectivo ou academic discourse. In: COULTHARD, M. (ed.). Advances in
prospectivo, funciona como um “marcador de relevância”, ao indicar written text analysis. London: Longman, 1994.
para o leitor a relevância da informação introduzida naquele segmento ———. Evaluation in experimental research articles. Tese de douto-
textual, relativamente ao seu Tema ou Tese. rado. Birmingham, Universidade de Birmingham, 1989.
Do ponto de vista de suas características genéricas, portan- LASCHER, L. Plenty of news: Bernard Malamud’s The Letter.
to, o artigo acadêmico na área da prosa sobre a literatura desenvolve- Studies in Short Fiction 31:4, 1994. p. 657-666.
se como uma exposição analítica, em que o locutor apresenta uma MACDONALD, S.P. Professional academic writing in the humanities
proposição em relação à obra em discussão, expressa como um pon- and social sciences. Carbondale: Southern Illinois University,
to de vista ou argumento, e várias asserções de apoio ao ponto de 1994.
vista. Do ponto de vista de sua estrutura avaliativa, motivada por MARCUSCHI, L.A. Sugestões para o desenvolvimento de uma
suas características disciplinares, o locutor faz mais do que apresen- tipologia de texto falado e escrito. (Notas para aula) 34p. mimeo.
tar um argumento sobre determinado texto literário: ele procura re- IN: PAREDES DA SILVA, V.L. Variações tipológicas no gênero
criar uma experiência de leitura daquele texto e compartilhá-la com o textual carta. XI Encontro Nacional da ANPOLL, 1996.
seu leitor. Para tanto, o produtor de um comentário sobre literatura MARTIN, J.R. English text: system and structure. Amsterdam:
precisa re-construir o universo discursivo do texto literário. Esta Benjamins, 1992 .
“reconstrução discursiva”, que motiva o padrão de textualização NICHOLS, J. Functional theories of grammar. Annual Review of
Quadro - Comentário, revela-se como a estratégia de envolvimento Anthropology 13,1984. p. 97-117.
mais importante do artigo3 . PAREDES DA SILVA, V. L. Forma e função nos gêneros de discurso.
s/d, s/l. 17 p.
7 - Conclusão SWALES, J. Genre analysis: English in academic and research settings.
Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
Refazemos aqui o percurso analítico descrito neste trabalho.
Em primeiro lugar, adotamos a categoria de gênero para proceder a um
recorte no discurso da crítica literária. Aqui adotamos a perspectiva
gênero/evento, associada à noção de função/evento comunicativo de
Nichols. Em seguida, passamos à análise empírica dos textos da
amostra, ocupando-nos dos seus modos de organização. Nesta etapa
da análise, nossa perspectiva era gênero/texto, associada à noção de
função/relação (quando tratamos da estrutura genérica dos textos da
amostra) e função/evento (quando tratamos de sua estrutura avaliativa).
Haveria, ainda, um outro nível de análise, segundo Paredes
da Silva (1996:11), que leve em conta a função comunicativa mais
ampla com que determinado gênero textual é empregado. Neste nível,
a função é entendida no seu sentido de funçãopropósito comunicativo,
ou fazendo referência “ao que os falantes pensam ou acreditam que
estão fazendo com a linguagem” (Silverstein in Nichols, 1986:100).
Argumenta McDonald (1994:143) que a prosa sobre a literatura deve-
ria ser caracterizada como “epidêitica”, voltada para a celebração dos
valores de determinada comunidade discursiva, ou das qualidades pes-
soais de um crítico. A proposição da autora parece aplicar-se melhor
a alguns gêneros ou tipos de intervenção crítica, como é o caso de
ensaios publicados por críticos renomados. No caso do artigo acadê-
mico, no entanto, que não se associa automaticamente à produção
textual de críticos renomados, a atitude enunciativa fundamental pare-
ce ser a de envolver o interlocutor numa experiência de leitura de 3 Visto de outra perspectiva, esta “reconstrução discursiva” motivaria a
mescla de “estruturas discursivas” (expositivo/argumentativa e narrativa)
determinado tipo, configurando-se, portanto, como um discurso
observada nos textos da amostra.
argumentativo / persuasivo.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 237


Mesclando vozes: construindo a argumentação
em diferentes trabalhos de face.
Valeria Coelho Chiavegatto1
Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Universidade Gama Filho

ABSTRACT: This paper discusses, from the perspective of the mental spaces theory, the process that subjetcs import voices from other subjetcs, across
cognitive domains and mental spaces in the blending space. The relevant context of interpretation is a persona-bound (face-to-face) interaction
work, embedded space within which the reality is constructed.
PALAVRAS-CHAVE: Mesclagem de vozes, perspectiva, modos de discurso, trabalho de face.

1. Introdução nações de informações que se efetivam no interior dos espaços mes-


A pesquisa que apresentamos trata, sob a perspectiva sócio- clados; 5º- Levantar, sob o ponto de vista cognitivo, a questão sobre o
cognitiva para análise da linguagem (Salomão 1999), do processo de discurso polifônico ( Bakhtin 1979/1997), pois, a rigor, nestas cons-
embutimento de “outras vozes” à voz do sujeito discursivo na cons- truções, a polifonia se apresenta apenas como um mero efeito na
trução da argumentação em língua portuguesa. Estamos conceituando superfície do discurso, recurso de expressão de perspectivas de um
“voz” como expressão lingúística do indivíduo. Como corpus empre- único sujeito que se apropria de outras vozes para construir a própria
gamos os enunciados transcritos de audio-gravações de conversas argumentação.
entre professores que participaram do Projeto Prática Reflexiva do Diante dos objetivos expostos, pretendemos tornar evidente
Programa Pró-Leitura da UFJF e reportagens jornalísticas publicadas como o processo de mesclagem de vozes evidencia como a constru-
em jornais de grande circulação no Rio de Janeiro nas quais observa- ção de significados põe em correlação as estruturas lingüísticas, as
mos o emprego de múltiplas vozes pelo sujeito discursivo. estratégias pragmáticas e as outras bases de conhecimentos que,
Adotamos os pressupostos básicos da teoria dos “espaços inegavelmente, dão à linguagem a proeminência que tem no âmbito
mentais” de Fauconnier (1994) e empregamos, especificamente, o das interações humanas validando a hipótese sócio-cognitiva segun-
conceito de “conceptual blending” - processo cognitivo de mesclagem do a qual gramática, interação e cognição se interdependem na cons-
- conforme descrito por Turner (1996) e com a formalização porposta tituição da linguagem.
por Fauconnier e Swetsser (1997) para explicarmos o fenômeno de
expressão de perspectivas de diferentes sujeitos em interações comu- 2. Um esboço teórico: dos domínios cognitivos à organiza
nicativas orais e escritas em português. ção dos enunciados lingüísticos.
Tomando por ponto de partida o estudo sobre perspectivização As construções lingüísticas têm como objetivo representar pen-
em textos narrativos em inglês efetuado por Redecker e Sanders samentos, transmitir mensagens, estabelecer comunicação entre os
(1996) e importando para análise lingüística conceitos empregados na indivíduos que interagem nos diferentes eventos sociais e ambientes
Teoria da Literatura, especialmente os da moderna narratologia como culturais que constituem as sociedades humanas. Tomando tal afirma-
o de focalização de Genette (1980) e de discurso polifônico de Bakhtin ção como pressuposto básico, podemos afirmar que é a construção de
(1979), buscamos explicar como os falantes interligam processos significados que motiva as escolhas que os falantes processam para
cognitivos, estratégias interacionais e construções lingüísticas ao estruturarem os enunciados com os quais constróem seus discursos.
processarem o embutimento de outras vozes à sua voz na constru- Do ponto de vista da lingüística cognitiva, as formas da língua
ção da própria argumentação. não possuem significados como patrimônios próprios, mas funcio-
Entre os objetivos que norteiam as análises que efetuamos do nam como guias para que os significados se construam na mente dos
processo de mesclagem de vozes que pré-organizam os modos de indivíduos. A comunicação se torna possível porque os membros
discurso em português, resumidamente, destacamos: 1º - Analisar, das comunidades sócio-culturais compartilham do mesmo código e
sob o ponto de vista da Lingüística Cognitiva, o processo que pré- têm armazenadas na mente informações semelhantes, oriundas do
organiza, na mente dos falantes, o embutimento de “outras vozes” à compartilhamento de experiências. Assim, os construções lingüísti-
voz do sujeito discursivo na construção de sua argumentação; 2º - cas funcionam como instruções dadas pelos sujeitos falantes a seus
Tornar evidente que, se há diferentes estruturas discursivas à dispo- interlocutores para a construção mental dos significados: estes são
sição dos falantes para que tal embutimento seja efetuado ( modo de validados nas diferentes situações comunicativas em que se atuali-
discurso direto, indireto ou indireto-livre), a escolha que o sujeito zam e resultados de complexas operações que interligam as formas
discursivo faz de uma forma (e não de outra) não é aleatória, mas
governado pelas relações que tais construções estabelecem com a
situação comunicativa e em função dos “trabalhos de face” (Goffmam 1
Trabalho desenvolvido com a colaboração dos Bolsistas de Iniciação
1967) que empreende; 3º - Descrever, a partir da formalização das Científica : Viviane da Fonseca Moura ( UERJ-PI- CNPq); Vanessa Villarinho
diferentes configurações que pré-organizam na mente dos falantes os Esteves Castro (UERJ/ PIBIC/ CNPq; Janaina Nolasco Gama ( PIBIC/
tipos de discurso em que o processo de mesclagem se projeta na UERJ); Renata de Almeida Lustosa (UGF) e Marcos Chaves Pontes (UGF),
linguagem, como os enunciados decorrentes são resultados de com- apresentando resultados parciais do Projeto CNPq-UERJ (2000-2002)
plexas operações de projeções de entidades entre domínios cognitivos - O processo cognitivo de mesclagem de vozes na interação real em
de diferentes naturezas; 4º- Evidenciar que os significados que emer- português, integrado ao O processo cognitivo de mesclagem na análise
lingüística do discurso em desenvolvimento pelo Grupo de Pes-
gem destas construções são originais, resultantes da combinação dos
quisa Gramática, Interação e Cognição (UFJF, UFRJ, UERJ e UGF),
elementos importados dos domínios cognitivos ativados e das combi- sob a Coordenação Geral da Prof. Drª Margarida Salomão.

238 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


lingüísticas aos conhecimentos que os indivíduos têm armazenados 2. a expressão de pontos de vista dos sujeitos envolvidos acerca
em domínios mentais. Produção e compreensão dos significados dos fatos ou eventos referenciados nos enunciados: as visões
veiculados nas interações comunicativas são governados pelos mes- em foco (iluminadas) a partir do sujeito discursivo (ENQ1) e
mos princípios. do(s) outro(s) sujeito(s) :
Assim, as estruturas lingüísticas funcionam como elementos de ENQ 1 e ENQ 2,3, etc.
acesso a informações de diferentes naturezas (físicas, psíquicas, soci- 3. a combinação de elementos da fala – vozes - que se manifes
ais e culturais) que os indivíduos têm armazenadas e compactados tam em, pelo menos, dois enunciados : o do próprio falante
em estruturas mentais de arquivamento de experiências: são os domí- (ENUNC 1) e o das “outras vozes” (ENUNC2, 3, etc.) .
nios cognitivos. Como estruturas mentais parcialmente configuradas, Do ponto de vista cognitivo, os enunciados manifestos ativam
domínios cognitivos são estruturas de arquivamento de conhecimen- domínios conceptuais sobre os sentidos que veiculam. Dependendo
tos ao mesmo tempo estáveis e dinâmicos, porque são acessíveis a dos conteúdos referidos, múltiplos domínios são ativados e informa-
reajustes à medida que novas experiências vêm remodelar as informa- ções são transferidas dessas estruturas cognitivas para a construção
ções que os compõem. de novos significados na linguagem: tais significados “mesclam” in-
Organizados por áreas de sentidos, permitem transferências formações dos domínios dos quais partiram: um domínio acessado
de informações entre elementos que o integram (intra-domínios) e funciona como Input 1 (ativado por EGO1) e o(s) outro(s) domínio(s),
entre domínios distintos ( transdominiais) e estão organizados com por EGO2 (3,4,etc). Logo, o enunciado resultante dessas combina-
diferentes configurações – ora como esquemas em imagens (Johnson ções é pré-organizado na mente por um “conceptual blending”, ou
1980) , ora como modelos cognitivos idealizados ( Lakoff 1987), ora como escolhemos dizer em português: um processo cognitivo de
como modelos culturalmente localizados ( Holland & Quin 1987). mesclagem de vozes e visões.
As informações armazenadas em domínios cognitivos vêm su- Na “mesclagem”, tal qual no tecido “mescla” que, no Brasil,
prir de significados os significantes que estruturam as construções identifica o tecido com fios de cores e texturas distintas que se
lingüísticas. Se, como afirma Salomão (1999:25), do ponto de vista entrelaçam produzindo uma cor nova, emboras as cores que o cons-
sócio-cognitivo, a gramática é entendida como sistema de representa- tituíram possam ser identificadas, o espaço que emerge para pré-
ção de pensamentos com vistas à comunicação social,”.... a linguagem organizar os enunciados mesclados, podemos perceber as vozes e
é tratada como capacidade de conhecimento do sujeito.” Assim con- visões distintas que se combinaram na sua estruturação. Tal qual no
siderando, os tipos de discurso em que as mesclagens de vozes se tecido, “cor” (= significado) resultante da combinação efetuada é
processam embutem elementos formais que ativam inferências dife- original, embora herdeiro parcial dos significados ativados nos espa-
renciadas para cada uma das estruturas de embutimento de vozes ços do qual partiram.
atualizadas pelos falantes: o grau de comprometimento do sujeito No sistema da língua, três estruturas básicas estão à disposi-
para com os enunciados que importa para os seus é um dos significa- ção do falante para que as diferentes configurações das mesclas se
dos que tais formas instruem seus interlocutores a construírem. Tal projetem nos enunciados. Logo, as escolhas que o falante faz para
competência pragmática dos falantes do português transparece tanto atualizar a mescla em enunciados lingüisticos guiam a construção de
no processo de estruturação lingüística que o falante empreende, um dos significados novos que os interlocutores processam: a natu-
quanto na capacidade que seus interlocutores demonstram para infe- reza do trabalho de face (proteção, ataque, defesa) que o sujeito
rirem aspectos dos trabalhos de face que realiza em função do conteú- empreende ao integrar “outra voz” ao processo de construção da
do das vozes que mescla às suas. própria argumentação.
Quando um falante importa para a sua voz, a voz de outro Outro significado que emerge da correlação entre a construção
sujeito, um espaço transitório emerge em sua mente para a pré- mesclada e o trabalho de face empreendido pelo sujeito discursivo ao
organização das estruturas que constituirão seu enunciado: estamos construí-la. é a percepção do grau de adesão ( ou rejeição) do sujeito
diante de um “espaço mental”, artifício teórico que, para Fauconnier discursivo em relaçào ao conteúdo das vozes que importa para as
(1994) permite que descrevamos os processos de construção das suas. Para cada estrutura manifesta, as mesclas se configuram com
referenciações antes que as estruturas cognitivas se projetem na lin- elementos importados de domínios distintos que são e recombinados
guagem. Para os espaços mentais transferem-se, temporariamente, as e complementados no interior da mescla. É da composição que se
informações que são ativadas nos domínios cognitivos com vistas a processa no interior do espaço mesclado que os significados originais
construção dos significados na linguagem. se instituem. Vejamos, a título de exemplificação, como se configuram
Na formalização proposta por Fauconnier e Sweetser (1996), as relações que se efetivam na pré-organização das mesclagens no
retângulos são empregados para a representação dos domínios modo direto antes de serem projetadas na linguagem:
cognitivos; círculos, para os espaços mentais e linhas (links), as liga-
ções e projeções que operam entre essas estruturas.

3. O processo cognitivo de mesclagem de vozes e os modos


de discurso
Quando um sujeito (EGO 1) embute em sua voz (ENUNC 1)
outra(s) voz(es) (ENUNC 2) para construir sua argumentação, ele o
faz a partir do ponto de vista - seu enquadre (ENQ 1) sobre a situação
que constitui no conteúdo de sua comunicação. Ao embutir a voz
(ENUNC 2) de outro sujeito (EGO2) em sua voz (ENUNC 1), im-
porta, também, a perspectiva (ENQ 2) com que o outro sujeito
enfoca os fatos aos quais se referem. Os enunciados assim constituí-
dos resultam da combinação de formas lingüísticas que expressam:
1. a representação da perspectiva de, pelos menos, dois sujei-
tos: do discursivo (EGO 1 ) e do(s) personagem(ns)
(EGO 2, 3, etc) ;

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 239


Assim, aos três tipos de construções lingüísticas correspondem,
esquematicamente, configurações mescladas específicas . E a partir
do gerenciamento efetuado por EGO1 que os diferentes elementos
que as compõem são focalizados ou desfocados, engendrando as
inferências que processamos sobre o comprometimento do sujeito
para com o conteúdo dos enunciados que emprega para construir sua
argumentação. É essa diferenciação que pré-organiza os diferentes
tipos de discursos , representáveis , no interior da mescla, como
apresentamos a seguir:

1º- Mesclagem no modo direto:

3º Mesclagem no modo indireto-livre:

Ex 4. P1. Da mesma forma que nós trabalhamos com pista né/


eu acho que/ a partir do exemplo/ eles conseguem tirar alguma pista
para poder construir o sentido desse texto/ o sentido desse tipo de
Ex. 1 - P.5 - Eu fiquei tão triste / preocupada com isso/ falei texto.
assim: Meu Deus do céu, que absurdo! Mas onde que tá a mentalida- (.....) (( sete turnos depois sobre outros temas)
de desses meninos....( Ex. 31, p.53) F – A P1 tá sugerindo que os alunos pincem os vários conceitos.
Ex 2 – Jornalista sobre ACM: É assunto vencido! ) (O glo-
bo,2000 ) No modo indireto-livre, o ENUNC 2 é parafraseado por
Como podemos ver, EGO1 - P5 e o Jornalista - se distanciam EGO 1: não há marcas sintáticas do embutimento de outra voz, pois
explicitamente da voz de EGO2 : há o verbo dicendi e a marcação da o enunciado proferido por EGO1 é lexical e gramaticalmente original
pausa (:) introduzindo a outra voz. A responsabilidade da visão embora, semantica e cognitivamente herdeiro dos significados dos
apresentada fica restrita a EGO2 , pois é o seu enquadre que é elementos que compõem os espaços dos quais partiram.
focalizado. Tal modo é empregado como estratégia de proteção da Construído a partir do ponto de vista de EGO1 , visão e voz de
EGO 2 estão como numa penumbra: a focalização recai sobre um
face do sujeito discursivo: ele não se compromete com o conteúdo da
ENUNC1 que reenquadra (sob ENQ1) a partir de sua própria visão
voz que importa para a sua.
tanto o ENUNC2 quanto o ENQ2. O que é focalizado é um discurso
(de EGO1) sobre o discurso manifesto através de outra voz (Ego 2).
Estamos, do ponto de vista do processamento cognitivo, diante da
mesclagem plena de vozes e visões dos dois sujeitos ; do ponto de
vista gramatical, diante da paráfrase. Uma vez que os “fios que com-
põem a mescla se entrelaçam perfeitamente” no modo indireto-livre,
explicam-se porque são as inferências engendradas apontam para o
total comprometimento do sujeito discursivo para com os conteúdos
das vozes que importa para as suas. Na prática, ao parafrasear a voz
ou a visão de outro sujeito, o falante assume totalmente os significa-
2º Mesclagem no modo indireto: dos que a estrutura que produziu permite constuir.

Ex 3 . Como você falou/ daria idéia de homem do futuro que 4. Conclusões


tem coisas.... (p.22/23) Na análise de Redecker e Sanders (1996), a descrição do processo
de embutimento de vozes em narrativas foi feito pela proposição de dois
EGO2 disse efetivamente: “Dá idéia de homem do futuro que espaços-base pré organizando tais enunciados. Nossa análise mostra que
tem coisas...” e podemos observar que sua voz (ENUNC2) vem sin- não são dois espaços-base que se combinam, mas apenas um espaço-base
tática e morfologicamente transformada para ser embutido, sob o (de EGO1) apontando para a emergência de um espaço mesclado.
Os elementos que configuram tais enunciados são importados,
ENQ1 à voz de Ego 1. Portanto, a voz de EGO1 é para Redecker e
governados e recombinados para expressão da voz de um único sujeito:
Sanders (1996) perspectivizada por EGO1: é sob a visão do sujeito
este seleciona, recorta, enquadra e focaliza a voz da qual se apropria para
discursivo que a estrutura da outra voz é integrada à voz de EGO1 ,
construir sua argumentação, sempre em função do trabalho de face que
portanto desfocada. Ao tirar o foco (ENQ 2) do ENUNC 2 no
pretende empreender na interação em que tais construções se atualizam.
espaço mesclado, EGO 1 permite ativar a inferência de Portanto, como falar em polifonia depois de percebermos como
compartilhamento de responsabilidades com EGO2 acerca do conteú- são configuradas as múltiplas vozes nas mesclagens: há “um senhor”
do da voz que embute na sua. Logo, EGO1 se compromete parcial- absoluto governando todo o processo, com poderes, inclusive, para
mente com o conteúdo da voz que importa para a sua. camuflar sua própria subjetividade.

240 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


5. Referências bibliográficas GOFFMAN, Erwin. Frame analysis: an essay on the organization of
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FAUCONNIER, Gilles. Mental spaces: aspects of meaning LAKOFF, George . Women, Fire and Dangerous Things: What
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Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 241


Gramática e discurso em texto
escolar do ensino fundamental
Marísia Teixeira Carneiro
(UERJ)

RÉSUMÉ. Ce travail présente quelques remarques sur le processus de qualification que nous avons analysé sur le corpus constitué de rédactions
scolaires, en y appliquant la semiolinguistique de Patrick Charaudeau (1992). Les résultats indiquent des aspects de l´identité de l’ennonciateur,
aux niveaux gramatical, semantique et pragmatique. Pour cela, nous avons le but d’interpréter les donnés recueillis des analyses de textes narrartifs
produits par des élèves de l’enseignement fondamental
PALAVRAS-CHAVE. Discurso; identidade; gramática; produção de texto.

Em minha apresentação retomo a problemática da aprendiza- estratégicas) que minimizem as dificuldades do ensino-aprendizagem
gem da escrita, citando três testemunhos de pesquisadores que tratam da redação. Sobre a questão: Como tornar os textos mais discursivos?
de aspectos da questão e a seguir mostro alguns resultados – os mais a autora justifica s sua pesquisa: Contrariamente aos avanços
relevantes – da pesquisa sobre qualificação e identidade em que busco tecnológicos que espetacularizam a comunicação humana, ainda nos
a relação entre gramática e discurso, através da interpretação dos dados vemos diante de uma clientela escolar imersa num mar de dificuldades
obtidos na análise do processo de qualificação em textos narrativos, que lhe impede a produção... “( Simões, 1999: 90)
produzidos, em sala de aula, por alunos do ensino fundamental. A O centro do problema é o fazer discursivo. Por isso mesmo,
partir dos dados quantitativos e qualitativos verifico a hipótese de que buscando preservar as condições do direito à fala, que Charaudeau (1996)
a identidade escolar do aluno/autor é marcada por padrões lingüísticos fundamenta no reconhecimento do saber, do poder e do saber fazer, não
que podem estar interferindo na discursividade. A base teórica adotada
podemos deixar de tratar a questão dialógica e a questão da produção
é a semioling|üística de Patrick Charaudeau (1992).
Um aspecto da enunciação que é salientado na teoria é o de que de sentidos que são oriundos das relações de poder observadas nas
para haver intencionalidade (cada parceiro deve ter um propósito para práticas comunicativas dos interlocutores. Estes são atores sociais, su-
que a comunicação se efetive) é condição básica a aceitação mútua, por jeitos marcados pelos modos de controle institucionais.
parte dos sujeitos participantes, dos papéis de parceiros do intercâm- A complexidade do discurso envolve problemas de construção
bio de mensagens. Charaudeau (1992) observa que é necessário que se do sentido no circuito das interferências mútuas e dinâmicas dos ele-
efetive um contrato de discurso: cada um dos sujeitos (comunicante e mentos situacionais e lingüísticos. Estes aspectos combinados coope-
interpretante), externos ao texto, tem o que dizer e quer dizer. Na reda- ram na diversidade de textos em que cada elemento, por menor que seja,
ção escolar esse contrato de discurso apresenta desvios decorrentes de integra-se a um todo sistematizado, orquestrado pelo propósito
um desacordo nessa instância: o aluno recebe a proposta de exercício de discursivo. Esse quadro delimita a problemática das análises de reda-
redação para a qual não tem propósito definido e o professor se investe
ções escolares em nossa pesquisa.
do papel de leitor institucionalizado. A situação de produção de sentido
atribui aos sujeitos comunicante e interpretante papéis não assumidos Estou me referindo a um aspecto minimizado da produção de
espontaneamente o que interfere na discursividade. sentido quando se tratam as questões sobre a discursividade. Em artigo
Outro aspecto do ato de produzir redações escolares que de- intitulado Criatividade e Gramática, Carlos Franchi (1987) critica, entre
corre do próprio ato da interlocução, baseada no contrato de discurso, outros aspectos, a inadequação dos métodos de ensino da gramática;
que pressupõe o postulado da intencionalidade é o fato de que simulta- o fato de que essa gramática não é relacionada a um melhor entendi-
neamente à troca de signos, os sujeitos, externos ao texto, se empenham, mento dos processos de produção e compreensão de textos. Sugere
em graus variados de esforço, em desfazer mal-entendidos na medida algumas práticas de sala de aula para o que ele considera criatividade e
em que um e outro não reconhece seus propósitos comunicativos na assim a define como processo de construção conduzido pelo próprio
fala do interlocutor. Na redação escolar encontram-se diversos sinais
sujeito no domínio da gramática mesmo que esta atividade tenha suas
desse esforço para prevenir o mal-entendido do leitor/professor na
restrições de regras e princípios. Franchi (1987:42) destaca a necessi-
manifestação da identidade do sujeito enunciador no interior do texto.
Dois desses sinais tornaram-se evidentes nas análises feitas: o primeiro dade de se incluir no comportamento criativo a questão central da gra-
é o permanente ajuste da gramática às normas prescritas em sala de aula; mática: as condições lingüísticas da significação. Deixa implícita a no-
o outro, decorrente desse, é a baixa diversidade de uso de recursos que ção de discurso quando reafirma que o falante deve ter sempre em
dêem força ilocucionária ao texto. Enfim, falta às condições de produ- mente a questão fundamental da significação: não somente no sentido de
ção de sentido do texto escolar, portanto à possibilidade da discursividade representação do mundo, mas no sentido também de uma ação pela
e às escolhas linguageiras, o postulado da intencionalidade. linguagem sobre os interlocutores.
Pesquisas nesse âmbito têm buscado e testado soluções. Em Chegamos, afinal, ao ponto de definir as duas idéias que norteiam
trabalho recente, Simões Conceição (2000) expõe sua experiência com esta apresentação:
atividades de reescrita de redações de alunos do terceiro grau (!!!) em
a) a redação escolar permanece uma atividade pouco eficiente
busca da reconstrução da discursividade em textos que , segundo ela
constatou são: pobres de significados, repetitivas e repletas de quanto aos
estereótipos o que as tonam cansativas e chatas de serem lidas. (Simões propósitos de discursividade;
Conceição, 2000: 110). São constatações que se perpetuam em todos b) a consciência dos efeitos discursivos da gramática é tão rele-
os níveis de escolaridade. vante para a eficiência dos exercícios de redação escolar quanto o conhe-
Em trabalho recente, Simões (1999) propõe que se recorra à cimento dos mecanismos discursivos que influenciam na organização
ciência semiótica com vistas a formular propostas metodológicas (ou do texto enquanto manifestação de discurso.

242 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Estas idéias servem de justificativa para a pesquisa1 que acaba- dade do enunciador: lingüisticamente este parece despertar para formas
mos de concluir sobre o processo de qualificação nas redações escolares de qualificação mais diversificadas, recorrendo até a uma metáfora;
e a construção da identidade escolar do sujeito enunciador, no interior discursivamente, o sujeito enunciador expõe sua visão subjetiva do
do texto.Tentamos mostrar o papel da gramática na produção de mundo, ao deixar implícito que a preocupação com a aparência tira a
sentido, no tocante a dois aspectos da identidade do sujeito enunciador: liberdade do indivíduo e até mesmo a sua humanidade. Apesar de ter
1) a identidade lingüística do aluno-autor (sujeito comunicante) que se usado uma metáfora estereotipada, ele mostra sua tentativa de dar força
revela em parte no papel do sujeito enunciador construído no interior do ilocucionária ao seu texto tendo em vista seus propósitos comunicati-
texto e neste manifesto pelas suas opções dos procedimentos formais vos.
do processo de qualificação (Charaudeau, 1992); 2) a identidade O uso das caracterizações requer também consciência dos seus
psicossocial desse sujeito enquanto “eu “comunicante, exterior ao tex- efeitos semânticos, o que fica evidente na escolha de um mesmo adjeti-
to, mas reconhecido neste pelas significações particulares das categori- vo – belo – com significações diferentes no mesmo texto:
as de língua que constituem os procedimentos de qualificação. .. a) O belo casal Julia e Guilherme.
Os resultados aqui apresentados são das análises de um corpus a) Um belo filme de amor.
parcial de 62 redações de alunos da 6ª série (turma 602). Cada aluno b) Um belo tapa na cara.
escreveu duas redações em dois momentos diferentes com intervalo de O adjetivo, assim usado, identifica, no sujeito enunciador, a falta
cerca de duas semanas. No segundo momento, fez-se o exercício de de consciência dos deslizamentos semânticos possíveis ;
narração após a exibição do filme publicitário do refrigerante FANTA, lingüisticamente dotado de poucos recursos anulando, dessa maneira,
em que casais de jovens, de nacionalidades diferentes, voltados para os os efeitos ilocucionários desejados.
telespectadores e sentados em poltronas de cinemas assistem a um Nas análises quantitativas desses tipos de qualificação _ caracte-
filme do qual só se ouve parte da trilha sonora, marcada de ruídos da vida rização e definição - constatamos 11,64 %, de definições e 88,36% de
selvagem: tambores e rugidos. caracterizações de um total de 524 qualificações. Interpretamos esses
Nessa pesquisa julgamos que a contrastividade das análises do primeiros dados como um indício de que o aluno não tem consciência
processo de qualificação, no tocante à inserção de um novo elemento na dos efeitos semânticos e pragmáticos da qualificação, como recurso
situação, poderia nos fornecer algumas influências na identidade do lingüístico para seus propósitos discursivos.
sujeito enunciador quanto à escolha das qualificações. Ainda, quanto aos efeitos semânticos e discursivos, as qualifica-
O quadro que serve de recorte teórico para esta pesquisa, a ções podem indicar, também, três modos de visão do mundo: objetiva,
semiolingüística, propõe uma abordagem do discurso que leva em conta subjetiva e objetiva relativa. Por exemplo, no texto Coincidência, pro-
os efeitos de sentido das categorias de língua e dos modos de organiza- duzido no primeiro momento (sem exibição do filme publicitário), ob-
ção do discurso, o que diz respeito não somente aos aspectos internos, servamos:
lingüísticos, como também aos aspectos externos,
discursivos, da produção de sentido. Para ilustrar, es-
colhemos apresenta, neste trabalho, resultados da aná-
lise do processo de qualificação do ser que consiste em
atribuir uma propriedade (qualificante) a um ser ( qua-
lificado) por meio de categorias da gramática.
Charaudeau (1992) considera dois tipos de qua-
lificação: caracterização e definição. A caracterização
se faz com a escolha de adjetivos, expressões adjetivas,
substantivos, verbos, orações conectadas aos substan-
tivos. Por exemplo: “filme romântico “ , “porta do
cinema”, “estava atrasada”, “o nariz era grande, a boca era torta, os Como mostraram os dados, constatamos, neste texto, a tendên-
olhos eram muito para dentro”, “o homem que se fez de astronauta”. cia à visão objetiva do ser, por parte do sujeito enunciador, o que
A definição diz respeito aos procedimentos em que a forma padrão relacionamos a um traço psicossocial do sujeito comunicante (aluno)
constitui-se do verbo ser seguido de nome e adjetivo., ou apenas, de que projeta a imagem institucional de “alguém que está sempre avalia-
nome: “era uma menina de doze anos”, “é a menina mais feia da do” e não ousa envolver-se no discurso narrativo. .Esta imagem eviden-
turma”., “ela é a escrava da aparência “. Ela tem também a forma do temente funciona, num mecanismo interno de autocontrole
nome com função de aposto . O uso da definição pode ser um recurso Esse fato se encontra também no texto O encontro, da mesma
criativo para se atribuir propriedade ao ser. Nos textos narrativos que autora, produzido no segundo momento, quando não ocorreu a exibição
analisamos ela raramente serve de síntese analógica do retrato que se do filme publicitário; o sujeito comunicante constrói, com a qualifica-
desenha do objeto, como no exemplo, “ Isabely não era tão santa ção, outro sujeito enunciador. Observemos:
assim”. Os procedimentos mais freqüentes usados nas
definições são o do aposto, por exemplo,” “Titanic, um
filme perfeito” , ou o da oração do tipo “o nome dele era
Felipe”, o que parece obedecer a um padrão escolar de
escrita.
As definições podem aumentar o grau de
envolvimento do autor no texto, favorecendo a
criatividade lingüística e a discursividade do sujeito
enunciador. Por exemplo, a definição ela é a escrava da
aparência mostra aspectos que caracterizam a identi-

1 Conto, nesta pesquisa, com a participação de duas Constatamos a tendência à visão objetiva, no texto narrativo, o
Bolsistas de Iniciação Científica da UERJ.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 243


que mostra uma face da identidade do sujeito enunciador: neste texto, los de cerca de duas semanas, são indícios de maneiras diferentes de se
ele é alguém que deseja construir-se através da significação de um mun- construir a identidade do sujeito enunciador pelo sujeito comunicante,
do do qual ele se mostra com certo grau de distanciamento. empírico. Subjetividade se constrói de múltiplas identidades. Em se-
Quanto ao aspecto ideológico notamos as evidências de um pa- gundo lugar, o papel das qualificações de atribuir propriedades aos seres
drão linguageiro , que identifica o sujeito enunciador com o papel de mostra deslizamentos semânticos que preenchem esses indícios, cons-
quem busca uma interpretação de mundo, individual e possível de truindo um sujeito enunciador da narrativa cuja visão de mundo vai da
romper com a significação previamente estipulada. Manifesta-se o equí- objetividade para a subjetividade, e desta para aquela, com envolvimento
voco, um modo particular de se relacionar o simbólico ao ideológico, maior ou menor na maneira de relacionar a realidade ‘a intencionalidade.
com o aumento da visão subjetiva. Assumimos que o sujeito, ao significar, está se significando, está
Comparando-se os dois textos, quanto ao processo de qualifi- usando a língua para construir sua identidade através da organização do
cação, constatamos que no primeiro texto, escrito sem exibição do filme discurso. Portanto esta pesquisa reitera a relevância do tratamento,
publicitário, o sujeito enunciador se identifica com uma visão objetiva; em sala de aula, dos procedimentos formais e dos tipos de qualificação
e no segundo texto ele é identificado com uma visão subjetiva, porém para dar conta da discursividade. Ideologicamente, a manipulação da
ainda permanece a visão objetiva. verdade é clara, porque freqüentemente se sustenta a ilusão de que o
Entendemos que os procedimentos da qualificação contribuem sujeito comunicante ( aluno/leitor) é autor independente das determina-
para a discursividade porque são reveladoras de uma parte da enunciação. ções institucionais, o que os dados não comprovam.
Daquela parte que se constitui no lugar onde o sujeito enunciador O fator contrastivo da situação de produção dos textos, a exibi-
organiza a sua subjetividade, manifestando sua identidade lingüística ção do filme publicitário no segundo momento, teve efeitos diferentes
escolar e psicossocial. Não se trata de entender a linguagem como fato em cada aluno, que construiu sujeitos comunicantes segundo sua per-
determinado pelo uso, nem de entender o social como fato refletido em cepção particular do filme. Mas a tendência geral, em todos os textos, é
sua organização interna. O que se deseja é firmar um compromisso da a construção, de um sujeito enunciador de visão subjetiva no primeiro
linguagem, enquanto atividade dialógica marcada positivamente por momento, e de visão objetiva e subjetiva no segundo momento, quando
procedimentos linguageiros com funções representativa, interpretativa ocorre um significativo aumento da visão objetiva.
e comunicativa. Existe, pois, uma uma, pois, uma intencionalidade Finalmente, uma observação geral: as condições de produção de
múltipla que ocupa todo o espaço do sujeito empírico, comunicante, sentido na sala de aula interferem no que Charaudeau (1996) chama de
cujo recorte (sujeito enunciador ) se realiza internamente no texto, em ”condições que fundamentam o direito à fala”. Parece que é muito fácil
razão do projeto de fala. desfazer os impedimentos internalizados pelos alunos e que envolvem
Na polifonia do discurso psicossocial os sujeitos ( externos e a prática da escrita em sala de aula onde quem escreve não sabe, não
internos) se constroem mutuamente e deixam que os comportamentos pode e não sabe fazer. A identidade do sujeito enunciador observada
linguageiros manifestem suas vozes, com os elementos do nível nos textos analisados mostra a mobilidade do sujeito enunciador em
situacional ( Para que dizer?) , do nível comunicacional ( Como dizer? ) busca de se significar e a obediência deste a padrões gramaticais própri-
e do nível discursivo ( Quem dizer?). Sendo este último, o lugar da os da escrita, o que se relaciona a uma atitude do sujeito comunicante
intervenção do sujeito falante, tornado sujeito enuniciador. diante do fazer em sala de aula, onde a gramática freqüentemente não
( Charaudeau, 1996: 36) atende ao propósito da discursividade.
Nesse sentido o papel do lingüista não se restringe às descri-
ções das formas lingüísticas. O uso oferece-nos problemas que ganham Referências bibliográficas
a dimensão do sociodiscursivo. Como afirma Charaudeau (1996: 22): as
categorias lingüísticas que se apresentam como instruções de sentido CHARAUDEAU, Patrick.. Para uma nova análise do discurso. In:
procedurais, e que são consideradas em contexto e situação particula- Agostinho Dias Carneiro. O discurso da mídia. Rio de Janeiro:
res, tornam-se indícios possíveis de significação psiquicodiscursiva Oficina do Autor, 1996. p. 5-41
numa pertinência ora interna, ora externa ao corpus A análise de fatos ——. Grammaire du sens et de l’expression. Paris: Hachette, 1992.
particulares, como os das qualificações, só tem sentido se pudermos CONCEIÇÃO, Rute Izabel Simões. Da redação escolar ao discurso -
relacioná-los às condições psíquicodiscursiva, externas ao texto e que um caminho a (re)construir. Linguagem & Ensino, Vol. 3, nº 2.
são parte da situação. Pelotas: UCPel, 2000. p. 109-133.
Algumas palavras finais são necessárias para que se compreen- FRANCHI, Carlos. Criatividade e gramática. Trabalhos em Lingüís-
da o objetivo desta pesquisa: tornar relevante a relação entre o simbóli- tica Aplicada. n. 9. Campinas: UNICAMP/IEL, 1987.
co, mais precisamente, os procedimentos formais das qualificações e os SIMÕES, Darcília. Leitura e produção de textos: subsídios semióticos.
elementos psiquicodiscursivos do aluno na produção de redações esco- In: Aulas de Português - Perspectivas inovadoras. André Va-
lares. Primeiramente fica evidente que as diferenças entre os textos, lente ( Org) Petrópolis: Vozes, 1999 p. 89-100
produzidos antes e depois da exibição do filme publicitário, em interva-

244 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Os discursos sobre o discurso
e o campo da Lingüística
Zinda Maria de Vasconcellos
Universidade Estadual do Rio de Janeiro

RESUMÉ: Discussion sur l’ampliation de l’objet de la Linguistique causée par l’ inclusion des phénomènes discursifs dans son champ et sur la
délimitation et la spécificité de celui-ci aujourd’hui.
PALAVRAS-CHAVE: objeto da Lingüística; delimitação e especificidade da Lingüística.

1) Apresentação distribuição da informação (nova, velha, em foco ou não, etc.);


A Lingüística já foi apenas a ciência da língua — ou da lingua- b) — sobre a organização funcional dos discursos (por ex.,
gem, mas reduzida à capacidade inata de aquirir línguas. Tudo o mais relações de figura-fundo, iconicidade, planos narrativos, etc.);
era “a fala” ou “o desempenho”, excluídos do seu domínio. Até a c) — sobre a organização interacional da fala (Análise da Con-
língua era vista de modo restrito, ignorando-se seus recursos que versação) e a estruturação dos textos em geral (Lingüística Textual);
garantem, por ex, a coesão de textos ou a interlocução em situação. d) — estudos tipológicos sobre a estrutura típica e caracterís-
Hoje o discurso é o tema preferencial dos lingüistas. O problema é ticas de diversos gêneros de textos (por ex., de textos narrativos,
que as várias abordagens do discurso tratam de fenômenos diferentes, descritivos ou dissertativos; ou de um editorial, uma reportagem, um
e que a inclusão deles todos na Lingüística levou a uma enorme expan- soneto ou uma receita; etc.);
são do campo desta. Este trabalho levantará perpectivas e problemas e) — sobre as relações entre a estrutura dos enunciados com o
decorrentes disso e refletirá sobre a especificidade da Lingüística atu- processamento cognitivo e a situação de produção de textos orais e
almente. escritos;
f) — sobre as relações dos discursos com as situações concre-
2) A Lingüística Enquanto Ciência da Língua tas da enunciação (propósitos dos falantes, “atos de fala”, etc.), ou
Saussure definiu a Lingüística como ciência da língua exata- com estratégias argumentativas e princípios interacionais gerais, como
mente para delimitar o seu campo e garantir sua especificidade en- os de cooperação e polidez;
quanto ciência: a linguagem seria “a matéria” da Lingüística, mas, por g) — sobre a interação através da linguagem em contextos
ser um fenômeno com aspectos de diversas ordens, poderia ser institucionais específicos (como nos estudos sobre os discursos entre
reinvindicada como objeto por várias disciplinas. E seu caráter médico e paciente);
heteróclito não permitiria o ponto de vista unificador necessário para h) — sobre as relações dos discursos com ideologias sociais, a
constituir uma ciência, possível se a língua fosse tomada como norma história discursiva, ou o seu uso social; por ex., sobre: discursos dos
das suas outras manifestações. Daí sua “divisão” em língua e fala, sem-terra; intertextualidade entre discursos; discursos político, jurí-
com esta excluída do campo da Lingüística, exclusão que abrangia dico, de humor, etc.3 ;
ainda os fenômenos ditos de “Lingüística externa”. Isso não mudou i) — sobre os sistemas “paralingüísticos”: gestos, direção do
no Gerativismo, que, apesar de dizer que seu objeto é a linguagem, na olhar, etc.4
prática o encontra na “competência”, e mais tarde na Gramática Uni- Isso já dá uma idéia qualitativa da ampliação do campo da
versal. Ora, a dicotomia competência/desempenho só fortaleceu a Lingüística. Quanto ao império desses novos temas em detrimento
exclusão do uso da linguagem da Lingüística; quanto à GU, o nome já dos “tradicionais”, vejamos a seguir a mudança da predominância
diz: tal faculdade “de linguagem” é só uma gramática, não abrange a relativa entre eles nos Congressos da ASSEL-RIO5 . Nos Anais do
interação, a cognição geral, ou qualquer fenômeno de Lingüística ex-
terna. Veja-se a esse respeito LOBATO [1986, p.34]: “Considerando
que a linguagem será definida como o que há de comum às diferentes 1 Os mais centrados nas mensagem lingüísticas que em suas determinações
línguas, conclui-se que a Lingüística tem um duplo objeto: o estudo psíquicas, sociais, etc.
da linguagem em geral e o estudo das diferentes línguas (ou, mais 2 Seria preciso incluir, entre os “novos temas” que vão além dos próprios
especificamente ainda, da gramática das diferentes línguas)”. E para à “Microlingüística”, os da Sociolingüística laboviana e da Lingüística
colocar isso no contexto brasileiro, já no ínicio dos anos 90, num Cognitivista, mas estão fora do foco do artigo.
3 Sinal do prestígio desse tipo de estudos hoje: serão tema dos dois
encontro na UFRJ, Sírio Possenti reconheceu a diferença do campo a
próximos números da Revista da ANPOLL, um sobre “Identidade,
que se filiava do da Lingüística, dizendo que os analistas do discurso alteridade e globalização”, outro sobre “Política e linguagem”.
tinham “se refugiado” na cadeira de Lingüística por falta de lugar 4 Coloquei esses estudos no polo extremo da externalidade face às men-
institucional próprio. sagens lingüísticas, mas não são externos no mesmo contínuo dos três
casos anteriores, cuja ênfase vai-se deslocando das mensagens primeiro
3) A “Eclosão” do Discurso
para o falante, depois para o contexto social-histórico. Aqui mantém-se
Isso lembra a história do pássaro que põe ovos no ninho do a atenção na fala, mas saindo da matéria lingüística. Resta salientar que
joão de barro, que acaba expulso daí pelos filhotes do outro. Com apenas vi uma “menção programática” a esse tipo de temas, que não
efeito, a mudança nesse quadro no Brasil foi radical, a ponto dos encontrei nos Anais da ASSEL nem são citados em BARROS [1999].
temas antes predominantes, os do dito “núcleo duro” da Lingüística, 5 Com base nos trabalhos de Lingüística dos Anais impressos, que cobrem
quase desaparecerem. A seguir, com base sobretudo em BARROS [1999], os Congressos de 91 a 98. Tais Anais refletem às vezes condições própri-
listarei tipos de estudos hoje feitos pelos lingüistas, indo dos mais as à região do Rio. Mas têm, sobre veículos nacionais como a Revista
“internos”1 aos mais externos2 : DELTA, a vantagem de serem acessíveis a lingüistas iniciantes, o que dá
uma idéia melhor dos temas que entram “em voga”, e também o fato
a) — sobre a relação da estrutura sintática e gramatical com a
dos artigos serem relativos a um ano específico.

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Congresso de 91, entre 30 trabalhos há 11 de “Microlingüística”: 2 de 4) Uma Discussão Paralela: os Limites Entre Língua e Discurso
Fonologia, 4 de Teoria Lexical, 3 de Sintaxe, 2 de Semântica6 , mais 2 Ao falar da “eclosão do discurso”, talvez me tenha iludido pelos
sobre línguas de sinais, 5 de Lingüística Geral, e 2 de Lingüística limites de Saussure entre língua e discurso. Porque o que caracteriza a
Aplicada ao Ensino: 20 temas “tradicionais” para 10 de sua delimitação do campo da Lingüística tanto pode ser definido por
“Macrolingüística”, e que não tratam do discurso (4 de Psicolingüística exclusão do discurso, como por errônea restrição do campo das lín-
e 6 de Sociolingüística laboviana). O interesse por este só aflora em guas … Por causa da variabilidade das frases, para ele resultante da
estudos de outras rubricas: um de Fonologia trata da correlação de liberdade combinatória da fala, Saussure chega a questionar se fariam
marcas prosódicas com finais de tópico em diálogos assimétricos; um parte da língua … O que o leva a responder sim é a existência de
de Teoria Lexical, da função textual das nominalizações (entre outras padrões pelos quais se guia essa combinação, que para ele, no entanto,
coisas); um de Psicolingüística, do desenvolvimento de habilidades só teriam suporte na língua sob forma de lembranças concretas: “… as
entidades abstratas repousam sempre, em última análise, em entida-
discursivas; e um de Lingüística Aplicada, de peculiaridades de exer-
des concretas” e “… seria errôneo crer que haja uma sintaxe incorporal
cícios de Matemática. No Congresso de 92, a situação começa a mu-
fora das unidades materiais distribuídas no espaço [destaque meu]”.
dar, mas pouco. Dos 22 trabalhos de interesse, só 8 são de Foi mérito dos bloomfieldeanos o início da formulação dos padrões
Microlingüística. Mas os temas macrolingüísticos que imperam são dessa “sintaxe incorporal”, embora ainda os vissem como específicos
os da Sociolingüística laboviana (9 em 11). Já há, no entanto, 2 estu- às línguas. Com isso garantiram a inclusão da Sintaxe na Lingüística. Em
dos sobre a organização dos discursos (um sobre tópicos em narrati- compensação excluíram os fenômenos semânticos, com base não só em
vas, outro sobre os planos discursivos na argumentação espontânea), postulados empiricistas mas também na identificação deles com a tota-
e um sobre a interrelação de questões discursivas com a estrutura lidade dos conhecimentos humanos e dos sentidos passíveis de subjazer
lingüística estrito senso (sobre aspectos prosódicos e sintáticos das às situações de fala — com o que também buscaram delimitar o campo
topicalizações), além de também haver reflexos do interesse pelo dis- da Lingüística. Resta lembrar que foi o uso do conceito de distribuição
curso em dois artigos de outras rubricas. Só que os temas ligados ao para detectar os padrões sintáticos que os levou a ver a frase como
discurso que começam a aflorar são ainda bastante “internos”, centrados maior unidade de análise, o que excluía da língua os fenômenos textuais,
nas próprias mensagens lingüísticas; os artigos em pauta hoje seriam limite mantido pelo Gerativismo. No entanto, Harris já descobrira re-
considerados como estudos funcionais de textos, não como de “Aná- gularidades na distribuição de frases nos textos. E nada obriga a restrin-
lise do Discurso”. Em 93, o discurso já é o foco de 14 dos 34 estudos gir as regularidades combinatórias das línguas ao limite das frases se não
considerados, só “concorrendo” com os temas da Sociolingüística usarmos só critérios distribucionais na sua formulação. Também fenô-
laboviana (de 11). Correlativamente recuam os temas microlingüísticos: menos enunciativos passíveis de generalizações podem integrar o do-
mínio das línguas: não há dúvida de que estas têm categorias, unidades
só 7 estudos. De novo dominam os tópicos discursivos mais internos:
e construções para expressá-los, como a categoria dêitica de tempo, os
6 dos 14 artigos tratam da relação de questões discursivas com a
pronomes pessoais, boa parte dos advérbios, os marcadores” textuais,
escolha de recursos das línguas (por ex., o uso de marcadores em etc.; e só se pode dar conta do significado de várias “palavras plenas”
respostas, ou de conectores em textos jornalísticos argumentativos), e e do uso de certas construções tendo em vista dimensões enunciativas.
5 da organização funcional ou tipológica de textos. Mas 2 enfocam 5) À Guisa de Conclusão
também as condições interacionais da produção textual; e surge pela O alargamento do domínio da Lingüística é vantajoso para a
primeira vez uma artigo propriamente de Análise do Discurso, embo- Lingüística Aplicada: não só se abriram campos de atuação novos
ra sob uma ótica de Lingüística Aplicada (trata de uma intervenção para os lingüistas — como intervenções ergonômicas em institui-
ergonômica nas comunicações de um banco). ções11 — , como o ensino de línguas, seu objeto “tradicional”, ganhou
Seria tedioso continuar analisando os Anais ano após ano. Mas,
para avaliar a evolução percorrida, vejamos ainda os do Congresso de
98, que inclui 112 artigos relevantes, já classificados em 11 sub-áreas,
de títulos reveladores por si mesmos. Só 4 são tópicos “clássicos” da 6 Os trabalhos não estão classificados por temas nos primeiros Anais; esta
Microlingüística: Fonética e Fonologia (sub-área com 5 artigos), Teoria classificação é minha.
7 Não é facil detectar o critério de colocação dos artigos sob uma ou outra
Lexical (5), Teorias Sintáticas do Português e Suas Interfaces (9) e
dessas duas rubricas.
Línguas Minoritárias (5), 24 trabalhos ao todo, dos quais dois tratam de 8 Esses últimos títulos, aliás, mostram que a ampliação do campo da
questões de interface com o discurso. Se compararmos esse número Lingüística se observa ainda mais na Lingüística Aplicada, que não só
com o dos estudos catalogados sob Análise do Discurso e Estudos deixou de tratar apenas do ensino de línguas, como mesmo aí mudou de
Transdisciplinares (23), parece haver “empate”, mas não é verdade: a foco: da estrutura das línguas a ensinar para temas como os dos artigos
esses 23 se somam os 11 de Sociolingüística Interacional e Lingüística “Pesquisa e Ensino em Português Como Segunda Língua: Uma Análise
Aplicada7 , e a maioria dos 12 de Formação do Professor: Metodologias, Sobre os Pontos de Vista do Professor-Pesquisador e dos Aprendizes”
Estudos Literários e Culturais no Ensino de Língua(s).8 É verdade que, ou “Jornal: A Recepção da Mídia na Escola”.
nesse contraste entre temas microlingüísticos e discursivos, não consi- 9 A impressão dada pelo caráter “misto” dos títulos e pelo exame dos
derei duas sub-áreas que podem abranger os primeiros. Porém seus artigos incluídos em cada sub-área — que também poderiam ser incluí-
títulos — Funcionalismo/Cognitivismo/Lingüística Computacional9 (9 dos em outra, ou não se percebe por que estão ali — é de que a dispersão
trabalhos) e Gramática e Enunciação (8) já deixam clara a mudança de dos fenômenos chegou a tal ponto, que os linguistas não sabem mais
quais são as sub-áreas do seu domínio, e quando um fenômeno entra
perspectiva mesmo nos estudos de Microlingüística. A primeira abran-
numa delas.
ge quase só estudos sobre o papel de recursos das línguas no discurso (7 10 Esse último artigo, aliás, é um bom exemplo da amplitude dos temas
em 9), e um dos seus artigos trata diretamente de organização discursiva. que passaram a interessar os lingüistas. Eis outros títulos ilustrativos:
Também a outra, pelo título, parece tratar de fenômenos “Relações Entre Título e Intitulado”; “A Genre Analysis of Article
microlingüísticos, mas seus 8 artigos foram reunidos por advirem de um Introductions on Oceanography”; “O Diálogo Entre o Ombudsman e o
mesmo grupo de trabalho sob a mesma orientação teórica, de Culioli. E, Público”; “O Espetáculo do Instante — Uma Análise das Representações
se alguns realmente enfocam questões gramaticais, embora sob uma Sociais do Discurso Gastronômico Francês Contemporâneo”; “O Salão
ótica própria, não consegui perceber em que outros o fazem. Por ex., um de 1917”; “Silêncio! Ditadura Militar”; “O Tema da Privatização da
versa sobre o funcionamento de perguntas na interação professor-alu- CONERJ numa Análise Semiótica”; “Marcas de Afeto na Construção de
no; outro (“Da Deformabilidade da Noção ‘Paixão’ ”), com base numa Identidade em Interações de Atendimento”.
crônica sobre a paixão, conclui sobre a labialidade da noção de paixão. 11 Mas resta questionar se algumas dessas intervenções ainda são de
Em que a Gramática entra nisso?10 Lingüística Aplicada…

246 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


com a maior compreensão dos fatores em jogo no uso da linguagem. Referências bibliográficas
Mas, para a Lingüística Teórica, a situação atual não me parece boa. O
problema principal é a falta de delimitação e especificidade do campo ASSOCIAÇÃO DOS ESTUDOS DA LINGUAGEM DO RIO DE
da Lingüística, o que tem um correlato sério: uma ciência não pode JANEIRO – ASSEL/RJ. Anais do I Encontro da ASSEL/RJ. Rio
contentar-se em descrever os fenômenos do seu domínio, deve buscar de Janeiro, 1992.
regularidades e explicações para eles, o que fica impossível se seu ASSOCIAÇÃO DOS ESTUDOS DA LINGUAGEM DO RIO DE
campo inclui tanto intenções dos locutores como representações soci- JANEIRO – ASSEL/RJ. Anais do II Encontro da ASSEL/RJ. Rio
ais da paixão ou da gastronomia, a história discursiva passada, rela- de Janeiro, UFRJ, 1993.
ções de poder na sociedade e padrões de polidez, fenômenos que não ASSOCIAÇÃO DOS ESTUDOS DA LINGUAGEM DO RIO DE
remontam a uma só ordem causal, não podem ser subsumidos sob JANEIRO – ASSEL/RJ. Anais do III Encontro da ASSEL/RJ.
nenhum ponto de vista unificador… Afinal, os lingüistas pretendem Rio de Janeiro, UFF, 1993.
que tudo que se manifesta na linguagem — o que inclui quase qualquer ASSOCIAÇÃO DOS ESTUDOS DA LINGUAGEM DO RIO DE
coisa — é explicável por propriedades desta? Se não, por que tais JANEIRO – ASSEL/RJ. Anais do VIII Encontro da ASSEL/RJ.
fenômenos são da conta do lingüista, e não, por ex., de sociólogos que Rio de Janeiro, UFRJ, 1999.
usem dados lingüísticos? Há além disso problemas práticos. Quase BARROS, D. “Estudos do Texto e do Discurso no Brasil”. In DEL-
não há, no Brasil, graduações em Lingüística, a formação nesta ocu- TA, V. 15, Nº Especial 1999. S. Paulo, Educ, 1999.
pando pouco espaço nos cursos de Letras12 . Como tratar de tantos
temas? Devem ser sacrificados os tópicos tradicionais em nome das
novidades?13 Como selecionar professores que dominem tantos con-
teúdos, já que Lingüística é uma matéria só, não divisível para efeito de
concursos e de atribuição de disciplinas? E têm os lingüistas formação
que lhes permita falar de coisas como globalização? Se o fazem, não se
arriscam a dizer coisas de senso comum baseadas só na ideologia
pessoal, e, numa hipótese pior, a dizer bobagens?
Claro que seria injustificável voltar à delimitação do domínio da
Lingüística do Estruturalismo ou do Gerativismo. Mas alguns limites
me parecem que devem ser colocados na expansão ilimitada de temas
que caracteriza o cenário atual, ou a Lingüística virará uma casa da mãe
joana teórica. Uma direção de solução é sugerida pelas considerações
do item 5: podia-se continuar definindo a Lingüística como ciência da
língua, mas ampliando-se os tipos de fenômenos considerados como
partes desta, que passaria a incluir, por ex., princípios gerais regulado-
res da estruturação de textos ou das interações verbais — mas não
coisas como a história discursiva passada, representações político-
ideológicas14 , relações de poder na sociedade que apenas se manifes-
tam também na linguagem, padrões culturais de comportamento, nem
muito menos intenções de locutores específicos em circunstâncias
específicas de fala15 … E, para além da expansão dos limites das lín-
guas, creio que ninguém poderia negar que são “da conta dos lingüis-
tas” os estudos sobre as condições gerais interentes à fala (as que
necessariamente se manifestam em todo e qualquer discurso em qual-
quer língua e cultura, como, por ex., mecanismos do processamento da
fala) ou à própria capacidade de linguagem (como, por ex., a base
cognitiva e perceptual das classes, categorias e construções das lín-
guas).
A esse respeito, a Sociolingüística laboviana nos dá um exem-
plo. Ela foi talvez a primeira das teorias lingüísticas a atravessar o
fosso traçado por Saussure entre o que ele chamou de Lingüística
Interna e Lingüística Externa: com Labov, a Lingüística foi ao externo
à língua e à própria linguagem, defrontou-se com diferenças de classe, 12 Na UERJ os cursos só incluem 4 disciplinas obrigatórias de Lingüística,
sexo, ocupação, nível de escolaridade, idade, valores e preconceitos duas só de 15 créditos; na UFF também são 4 as disciplinas obrigatórias.
sociais, etc. Mas, embora eventualmente alguns estudos E disciplinas eletivas não são quase nunca oferecidas…
sociolingüísticos até pareçam incidir mais sobre os aspectos sociais 13 Na UERJ, das 4 disciplinas obrigatórias uma é de Introdução à Lingüís-
dos fenômenos do que sobre os seus aspectos lingüísticos — como tica e outras duas versam sobre as “interfaces” — Linguagem e Socieda-
sugere o título de um dos artigos incluídos no Congresso da ASSEL de de e Linguagem e Cognição — , restando apenas uma para toda a
Lingüística Descritiva — Fonologia, Morfologia, Sintaxe, Semântica, Tex-
98, “Quem é Mais Sensível à Instrução, os Meninos ou as Meninas?”
to e Enunciação!
— , isso em geral não é o caso. O que a Sociolingüística fez foi buscar 14 Os estudos sobre significados lexicais terão de considerar esses dois
na sociedade fatores que interagem com certos fenômenos inerente- tipos de fenômenos. Mas o léxico é um sistema “de interface” entre a
mente lingüísticos, como a variação e a mudança, e é na verdade desses faculdade de linguagem e a experiência, tanto individual, fruto da cognição
fenômenos que ela se ocupa. geral, como coletiva, donde também histórico-ideológica.
15 Muitas das análises de textos que buscam relacionar as propriedades
destes com as intenções dos locutores e suas estratégias argumentativas
aproximam-se — perigosamente, a meu ver — de análises literárias de
textos comuns, das quais nenhuma generalização é retirável…

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 247


Simpósios
250 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001
Teia discursiva do movimento anarquista
Carme Regina Schons
Universidade de Passo Fundo

RÉSUMÉ: Le présent travail présente une analyse réalisée dans une perspective d’analyse du discours de la ligne française, des formations
discursives propes au mouvement anarchiste international, montrant que la discursivité opére en produi sant des sens propres á l’anarchiste. Cette
recherche met l’accent sur des questions relatives au monde politique e aux relations entre la politique et les mouvements syndicaux, a partir de
concepts tels que la mémoire discursive, la paraphrase et l’hétérogénéité.
PALAVRAS-CHAVE: anarquismo, paráfrase, formações discursivas, heterogeneidade

Introdução dominante marxista; o segundo, o efeito de negação, de ruptura.


Parte deste estudo é resultado de minha dissertação de Vejamos:
mestrado desenvolvida junto ao Programa de Pós-Graduação em Teoria
do Texto e do Discurso do Instituto de Letras da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, sob a orientação de Ana Zandwais.
O tema “anarquismo” nos possibilita “tecer“ uma teia de
saberes em movimento. É o modo que encontramos para representar
um trabalho nunca acabado, já que a noção de acontecimento discursivo
aponta sempre para o novo, desloca sentidos, demarca posições do
sujeito, enfim, aponta sempre para um novo efeito de sentido a cada
instância discursiva.
Como o discurso político pode também ser visto como uma
unidade de significação, como o lugar para se observar o fenômeno da
linguagem, deve ser analisado a partir das condições de produção1 . Todo dizer tem um lugar de interpretação que possibilita
que seus efeitos se estendam a outros lugares, ou seja, o trânsito entre
Saberes que migram: confronto entre duas formações discursivas esses diferentes modos de repetição (conforme o dizer de Orlandi,
O nosso trabalho trata de uma abordagem que nos permite 1998, p.12 –14) cria condições para que se trabalhem filiações de
investigar o modo de produção dos saberes anarquistas a partir dos sentido com a memória do dizer. Não há, portanto, sentidos guardados
acontecimentos histórico-discursivos do Movimento Comunista em lugar algum; as transferências dos dizeres ocorrem natural e
(1848) e das Internacionais Socialista e Anarquista, a heterogeneidade contraditoriamente, dependendo da posição do sujeito e da inscrição
de saberes evidenciados a partir das condições de formação dessas do que ele diz em uma outra formação discursiva.
formações discursivas, os discursos de aliança entre lideranças No que se refere à relação entre as posições anarquista/
socialistas e anarquistas com vistas a dar sustentação a projetos proletário e à posição Estado/instituição, é preciso “penetrar” no
libertários do proletariado europeu. Os saberes anarquistas, ao longo campo teórico das discursividades. A repetição na perspectiva da
dos anos, propagam-se através dos movimentos de classe (operariado, análise do discurso pressupõe a relação entre paráfrase e polissemia,
de trabalhadores rurais, ligas e associações sindicais, militantes de ou seja, há uma questão a ser discutida: os sentidos promovem a
esquerda marxistas, anarquistas e anarcossindicalistas). “diferença” ou o “mesmo”, tanto pelo lado do anarquista quanto da
Ao explorar o anarquismo na perspectiva da análise do instituição.
discurso, procuramos definir uma concepção de linguagem que Em Schons (2000), “as relações de incompatibilidade entre
determine de qual lugar se efetuam as análises das seqüências os anarquistas e Estado se fazem em torno da dissolução das oligarquias
discursivas, ou seja, trabalhamos no sentido de desmitificar a idéia da estatais, das desigualdades econômicas, da propriedade e centralização
transparência da linguagem, porque o sentido não é evidente. dos meios de produção. É por essa vertente, a partir dessas relações,
Na verdade, pelo funcionamento da linguagem é possível que os discursos anarquistas podem ser caracterizados como
construir “sentidos”. Assim, a partir da análise do discurso, analisa-se fundadores de discursos de outras facções, como os do
o funcionamento dos saberes que se reproduzem, mas que, ao se anarcossindicalismo.” Observemos o exemplo a seguir, que toma como
reproduzirem, entram em conflito com saberes de facções, como as referência os domínios de saberes anarquistas para mostrar as relações
correntes dentro das Internacionais (socialista e anarquista), e, em de antagonismo, bem como os domínios de saberes que configuram o
virtude de acontecimentos históricos acabam por desembocar em imaginário simbólico de Estado a partir da formação discursiva
rupturas, quer no campo das práticas sociais quer na representação anarquista.
dessas práticas, que se heterogeneizam e passam a ser representadas
na materialidade discursiva.
Nas seqüências discursivas transcritas a seguir, veremos
1 Reportamo-nos, aqui, aos estudos de Foucault, Pêcheux e Courtine. A
que marxistas e anarquistas produzem um discurso de aliança e noção de “condições de produção” é conceito básico para a análise do
estabelecem como senso comum, a organização das massas para a discurso e traz, para a reflexão sobre a linguagem, a exterioridade como
ação revolucionária, priorizando o desmantelamento das hegemonias processo de identificação e a história como prática social. De um lado,
estatal, oligárquicas, patronal, capitalista. Porém, o que, a princípio, há uma exterioridade permitindo a identificação de lugares e, de outro,
garantiria uma relação sinonímica caracteriza uma relação antinonímica, uma historicidade que assegura a passagem contínua de domínios de
ou seja, o primeiro enunciado produz o efeito de ratificação da ideologia saberes, os quais, à medida que trabalham os sentidos, transformam um
fato em acontecimento.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 251


e a aliança por meio de “uni-vos” representa uma forma de propagar
dogmaticamente os saberes marxistas, ou seja, à medida que se busca
adesão do sujeito-proletário para se engajar na luta contra o capitalismo,
por meio da tomada do poder, estabelecem-se as fronteiras entre os
saberes anarquistas e marxistas, configurando-se, assim, a
heterogeneidade das formações discursiva anarquista e marxista.
Partindo do pressuposto de que o Estado é nocivo e
desnecessário, o anarquismo não só não aceita saberes marxistas, como
também nega essa instituição chamada Estado, como já vimos, dizendo
Como podemos observar no quadro acima, ainda que sejam que ela é a fonte da maior parte dos males da sociedade. Nesse sentido,
muitas as facções anarquistas, todos os anarquistas acreditam que é o anarquismo apresenta inúmeras oportunidades de renovação.
no Estado que se concentram as forças de destruição, as quais têm o Conforme Woodcock (1986), os socialistas não só elaboraram
uma teoria de ditadura do proletariado, como provaram sua invalidade
poder de atuar negativamente sobre o indivíduo e a sociedade. É desse
ao permitir que, nos países comunistas, a ditadura se tornasse uma
Estado, segundo eles, que se originaram inúmeros problemas: sua mesquinha regra partidária. Por isso é que se deu o grande embate
estrutura, de cima para baixo - a ordem imposta -, não permite a entre os comunistas e anarquistas na Primeira Internacional.
organização social e econômica pelo livre-acordo entre os indivíduos; No Brasil, os saberes anárquicos chegaram sob a orientação
o Estado condena a sociedade ao inativismo, distanciando, portanto, geral dos anarcossindicalistas, vigorando especialmente através de
cada vez mais, o homem da liberdade, que, quando decretada, deixa de jornais, constituindo um dos mais fortes “aparelhos” de interpelação
ser liberdade. da classe proletária. Tais domínios de saberes, no país, tendem a ser
Com base nas representações expostas acerca do Estado, absorvidos ou incorporados em discursos sindicalistas “alimentando”
evidencia-se um saber comum entre os anarquistas: a negação do a posição antagônica entre o operariado e as patronais; entre cidadãos
princípio da autoridade nas organizações sociais. Podemos dizer que, e Estado, já que os interesses desse último, especialmente em tempos
com base nas relações de antagonismo apresentadas, são exploradas de ditadura, têm se mostrado totalmente antagônicos aos dos segmentos
dos trabalhadores tanto na Rússia, no Brasil ou em qualquer país. A
as relações liberdade/opressão, lei/direitos humanos. Já que o Estado
citação que segue ilustra os acontecimentos conforme Pacheco (1987)4
é a representação da propriedade, os domínios de saberes anarquistas
se opõem através do combate: a) às oligarquias estatais; b) à conivência A guerra divide os revolucionários. A guerra contra a
com práticas de mais-valia praticadas pelos que detêm os meios de Alemanha trouxe à Rússia um estado de miséria jamais
produção; c) à instituição, que sempre favorece o exercício da coerção; imaginado: faltava tudo, desde pão até material bélico para
d) à participação das massas em esferas governamentais, uma vez que continuar a campanha. Os soldados, sem munição e até
governo seria “sempre governo”, bandido “sempre bandido” e sem botas, morriam como moscas. (...) Lênin aos soldados
ele promete a paz imediata. Aos operários, ele promete o
explorador “sempre explorador”; d) à adesão do proletariado em filiar-
controle das fábricas pelos comitês ( programa anarquista
se a partidos políticos. de revolução). Aos camponeses, ocupação das terras sem se
O movimento anarquista, desse modo, emerge no espaço preocupar com indenização ou com limitações legais. Isto
político sob forma de resistência de seus membros que se revoltam é, paz, autogestão e terra, os maiores anseios russos no
contra leis que não fizeram, combatendo governos que só governam e final de 1917. ( Pacheco, 1987, p.6) – grifo nosso.
sociedades que, na prática, desrespeitam os direitos sociais, obrigando
A seqüência discursiva analisada, portanto, privilegia o
uma maioria a sobreviver de migalhas e de favores; evidencia-se, assim,
slogan da I Internacional Socialista “Trabalhadores de todos os países,
uma contradição já que todos nascem com direitos humanos, como uni-vos! “. Por sua vez, a reformulação desses saberes marxistas na
direito à dignidade, à liberdade, à propriedade, ao trabalho, à educação. formação discursiva anarquista “Trabalhadores de todos os países,
revoltai-vos ! “ incide na prática política e estratégias de ação dos
Da noção de paráfrase movimentos proletários.
Levando-se em consideração que a paráfrase lingüística ocorre
quando duas frases têm o mesmo sentido lógico e ocorre no seu nível
sintático, pressupõe-se uma unidade não-contraditória do sistema da
língua Quando, porém, a configuração do sentido se dá pela noção
“contextual”, ligada às operações de referenciação consideradas pela
AD, diz-se que a paráfrase é discursiva.
A seguir, as duas seqüências discursivas nos remetem,
respectivamente, às formações discursivas marxista e anarquista. Vemos
que a substituição dos itens lexicais uni-vos versus revoltai-vos não
produz um simples efeito de reformulação na repetição, ao contrário,
mobiliza domínios de saberes contraditórios que identificam as 2 O processo revolucionário (uma classe unida jamais será vencida), con-
condições em que se realizam as práticas revolucionárias. forme a seqüência “g”, cristalizou-se em forma de chavão, usado em
períodos de ditadura, de opressão pela classe operária, especialmente
em movimentos de greve.
3 O centralismo, que representa as dissidências em torno da aliança para
superar a ordem capitalista, far-se-ia somente pelo desenvolvimento da
consciência e da organização trabalhadora, que, organizada e disciplinada
em um partido revolucionário, chegaria ao poder reimplantando um
novo Estado. Mas, para isso, é preciso: a construção de uma aliança entre
o proletariado. São, portanto, os pré-construídos da Internacional que
definem a forma-sujeito Centralista.
4 O trecho faz parte do texto: “Os 70 anos de ditadura sobre o proleta-
Esses saberes, apropriados pela “tendência centralista”3
riado”, publicado pelo jornal brasileiro “O Inimigo do Rei”, na Bahia, no
do Manifesto do Partido Comunista durante a I Internacional, sentido de revisar a prática do regime autoritário, como ocorreu na
configuram relações de antagonismo entre os movimentos de esquerda, Rússia, após a revolução de 1917.

252 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


O exemplo trazido na primeira seqüência discursiva A cisão definitiva dos libertários no Congresso da I
“Trabalhadores de todos os países, uni-vos!” comprova que, mesmo Internacional vem da recusa de aceitarem algumas das diretivas do
que Marx tivesse dado importância à liberdade coletiva e negado o congresso, como a extinção do privilégio, do direito à terra para todos,
Estado para vencer, isso não o faz um anarquista, visto que continua a substituição do sentimento de partido, religião e libertação de todas
defendendo o poder e, portanto, a autoridade. as formas de dominação. Na verdade, os trabalhadores só poderiam
Para Serrani (1993, p.47–8), “as paráfrases ressoam“ organizar a sociedade sobre bases livres e igualitárias, mediante a
significativamente na verticalidade do discurso e concretizam-se na revolução, quebrando o ídolo sagrado da propriedade privada.
horizontalidade da cadeia, através de diferentes realizações lingüísticas; As cisões entre as forças proletárias em torno de suas
a paráfrase é produzida por meio de um efeito de vibração semântica condições de emancipação como classe não se constituíram em fatos
mútua. O tratamento da paráfrase é como ressonância-interdiscursiva circunstanciais evidenciados em um dado momento histórico, mas
de significação que tende a construir a realidade simbólica de um sentido. como efeitos da heterogeneidade de saberes constitutivos de FD com
Essa noção de ressonância inclui a existência de um sujeito e de um identidades contraditórias e, simultaneamente, propulsoras dos
momento histórico, tanto na dimensão dos interlocutores empíricos movimentos de institucionalização e de legitimidade da luta proletária.
projetados no discurso (projeção para a qual é fundamental o domínio Contraditoriamente, se os saberes anarquistas parecem
das formações imaginárias) quanto para a dimensão do sujeito. perder-se ao longo da história, essa perda, na realidade, não ocorre. O
Sabemos que os militantes tanto marxistas como de facções que se pode verificar nas diferentes práticas discursivas de movimento
anarquistas concordavam sobre alguns pontos: o combate às oligarquias de esquerda, na realidade atual, é que esses saberes se dispersam e se
estatais ao Estado, à propriedade; sabemos, entretanto, que eles incorporam em distintas formações discursivas.
divergiam não somente quanto a estratégias de luta, mas sobretudo em
relação a domínios de saberes sobre a organização de uma nova Referências bibliográficas
sociedade. Isso não anula dissidências centralistas e federalistas, tais
como a instituição partidária e a condição de representatividade política FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 4.ed., Rio de Janeiro:
delegada à instituição e a centralização do poder, práticas combatidas Forense Universitária, 1995.
pelos federalistas. GADET, F. & HAK, F. Por uma análise automática do discurso: uma
introdução a obra de Michel Pêcheux. São Paulo: Editora da
Considerações finais Unicamp, 1993.
O movimento anarquista tem abrigado tendências, cujas MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. O manifesto do partido comunis-
posições mostram-se contraditórias entre si e sustentam uma correlação ta. São Paulo: Escriba, 1962.
de forças entre as tendências federalista e centralista. Tais tendências ORLANDI. Eni. P.(Org.) Paráfrase e polissemia: a fluidez nos limites
se apresentam contraditórias em relação aos domínios de saberes que do simbólico. Rua. Revista do Núcleo de Desenvolvimento da
cultivam. Enquanto, na tendência federalista, a revolução somente Criatividade da Unicamp – NUDECRI. São Paulo, n.4, mar. 1998.
poderia ser efetuada por adesões e formas pacíficas de transformação PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Campinas: Ed. da
da mentalidade da massa proletária, na tendência centralista, a revolução Unicamp, 1995.
social somente pôde ser entendida na perspectiva da ação coercitiva. SERRANI, S. M. A linguagem na pesquisa sociocultural. Campinas:
Alguns pré-construídos que configuram domínios de saberes Ed. da Unicamp,1993.
da formação discursiva anarquista estão vinculados às contribuições SCHONS, Carme Regina. Saberes anarquistas: reiterações,
de Proudhon, que reformula sentidos, renova e ressignifica a prática heterogeneidades e rupturas. Passo Fundo: UPF, 2000.
do movimento operário como movimento social, constituindo tais WOODCOCK, George. Os grandes escritos anarquistas. Porto Ale-
práticas, assim, num modo de reverter as bases da sociedade. Os gre: L&PM, 1986.
exemplos mostram também que, embora se buscasse uma aliança
entre marxistas, socialistas e anarquistas, os últimos não aderiram aos
saberes marxistas.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 253


Interlocução discursiva - a afirmação
funcionando como negação1
Ercília Ana Cazarin2
Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUI)
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

RÉSUMÉ: Ce texte, qui se fonde sur les préssuposés théoriques de l’Ecole Française d’Analyse du Discours, a pour objectif d’étudier l’interlocution
discursive dans le discours politique de Luís Inácio Lula da Silva, marquée par une forme de fonctionnement discursif dans lequel l’affirmation produit des
effets de sens négatifs.
PALAVRAS-CHAVE: interlocução discursiva, discurso, sentido.

Contextualizando a pesquisa chama a atenção para o fato de que a FD determina uma posição, mas
O presente trabalho analisa a interlocução discursiva, no interi- não a preenche de sentido. As FDs são um princípio de organização
or do discurso político de Luís Inácio Lula da Silva3 entre duas forma- para o analista; não são definidas a priori como evidências ou lugares
ções discursivas politicamente antagônicas e tem como campo estabilizados, mas como regiões de confronto, como sítios de
conceitual da Escola francesa da Análise do Discurso4 , que se cons- significância (correspondentes a gestos de interpretação.
titui entre o espaço de conhecimento da Lingüística, das Ciências Essa autora (1999:42-45) apresenta a noção de FD como sen-
Sociais e daise. Na perspectiva teórica da AD, entende-se que no do uma regionalização do interdiscurso e reafirma que a mesma,
processo discursivo estão da Psicanálise. Na perspectiva teórica da embora seja polêmica, é básica, na AD, pois permite compreender o
AD, entende-se que no processo discursivo estão presentes a língua e processo de produção dos sentidos, a sua relação com a ideologia e
a história em suas materialidades e o sujeito descentrado5 e interpe- também dá ao analista a possibilidade de estabelecer regularidades
lado pela ideologia. A língua, como base material do discurso, é tra- no funcionamento do discurso.
balhada enquanto processo discursivo inscrito na história - a
historicidade e a ideologia são constitutivas do discurso. Este é en- Sobre a historicidade, a ideologia e a interlocução discursiva
tendido como efeito de sentido entre locutores, sem um sujeito fonte
do dizer. O funcionamento lingüístico (ordem interna da língua) e as A história, para o analista de discurso, liga-se à prática e não
condições extralingüísticas em que o discurso se realiza estão de tal ao tempo em si. Organiza-se, de acordo com o pensamento de Orlandi
forma imbricados que são considerados simultânea e integradamente
e os efeitos de sentido do discurso se remetem e são apreendidos no
horizonte de sua historicidade e da dimensão ideológica que os cons- 1 Este trabalho insere-se no âmbito da pesquisa sobre o funcionamento do
titui. A teoria do discurso apresenta-se como uma semântica discursiva discurso político de L. I. Lula da Silva, a qual venho realizando desde 1994,
que, como afirma Orlandi (1999:15-18), tem como objetivo compre- cobrindo, no seu espaço discursivo, o período de 1978 até os dias atuais.
ender6 , através da atividade de um sujeito social e historicamente Uma primeira versão deste texto foi apresentada no II SENALE - Seminá-
rio Nacional sobre Linguagem e Ensino, Pelotas, RS, 1999.
situado, a linguagem a partir do discurso.
2 Doutoranda na área das Teorias do Texto e do Discurso / UFGRS e profes-
Em um primeiro movimento textual, entendo importante, para sora do Departamento de Estudos de Linguagem, Arte e Comunicação da
sustentar o trabalho de análise, precisar como é concebida as noção UNIJUÍ, RS.
de formação discursiva7 e como a historicidade e a ideologia se fa- 3 Luís Inácio Lula da Silva também será tratado, neste texto, por L. I. Lula da
zem presentes na constituição do discurso e como é entendida, na Silva ou, simplesmente, por Lula.
AD, a noção de interlocução discursiva. Por último, apresento a aná- 4 Escola francesa da Análise do Discurso será também tratada, neste texto,
lise de um recorte discursivo8 , procurando evidenciar a regularidade por AD.
do funcionamento discursivo em pauta. 5 Segundo Orlandi (1999:20) o sujeito da linguagem é descentrado, pois é
afetado pelo real da língua e também pelo real da história, não tendo o
Formação Discursiva é um conceito básico para os estudos da
controle sobre o modo como elas o afetam. Isso redunda em dizer que o
AD, fundamental na determinação dos processos de significação. sujeito discursivo funciona pelo inconsciente e pela ideologia.
Segundo Pêcheux & Fuchs (1990:166- 168), uma formação discursiva 6 Orlandi (1999:26) estabelece a distinção entre inteligibilidade, interpreta-
é aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma ção e compreensão: a inteligibilidade refere o sentido à língua - ‘ele disse
posição dada, numa conjuntura dada, determinada pelo estado da luta isso’ é inteligível; a interpretação é o sentido pensando-se o co-texto (as
de classes, determina o que pode e deve ser dito. Uma FD existe outras frases do texto) e o contexto imediato; a compreensão é saber
historicamente no interior de determinadas relações de classe e deri- como um objeto simbólico (enunciado, texto, pintura, música, etc.) pro-
va de condições de produção específicas. Identifica um domínio de duz sentidos - é saber como as interpretações funcionam.
7 Formação discursiva será também tratada, neste trabalho, como FD.
saber e dissimula, pela transparência de sentido que nela se constitui,
8 Segundo Orlandi (1984:14), o recorte é uma unidade discursiva - consti-
sua dependência com respeito ao interdiscurso9 das formações tui-se de fragmentos correlacionados de linguagem e situação. Um re-
discursivas, imbricado no complexo das formações ideológicas. corte é um fragmento de situação discursiva; é fruto de um trabalho de
Segundo Courtine (1982:244-249), uma FD deve ser conside- construção teórica - não é automático, nem pré-determinado. Distin-
rada como uma unidade divizível, uma heterogeneidade em relação a gue-se da segmentação que visa à relação entre unidades dispostas line-
si mesma. Suas fronteiras são fundamentalmente instáveis e, por isto, armente; o analista de discurso não vê o recorte como linear - é fragmen-
uma FD não consiste em um limite traçado uma vez por todas, sepa- to de discurso.
rando um interior de um exterior do saber. Uma FD se inscreve entre 9 Pêcheux (1988:162 e 163) propõe nomear o interdiscurso como “o todo
complexo com dominante de formações discursivas”, imbricado no com-
diversas FDs e suas fronteiras se deslocam em função dos jogos da
plexo das formações ideológicas, que toda a FD dissimula, na ilusão da
luta ideológica. transparência do sentido que nela se forma. O interdiscurso é o lugar onde
Orlandi, filiando-se aos estudos de Pêcheux e de Courtine, se constituem os objetos do saber (os enunciados).

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(1990:35 e 36), tendo como parâmetro as relações de poder e de ciona como resposta para o que está sendo dito fora. Há que se obser-
sentidos, e não a cronologia: não é o tempo cronológico que organiza var também que o discurso que circula na FD antagônica, sob a
a história. A historicidade é a historicidade do texto, que se constitui forma da negação, lá, já se apresenta como negação de uma situação
já na própria tessitura da materialidade lingüística. A relação da AD existente na FD1, ou seja: na FD2, ocorre a negação de uma “preten-
com o texto não é extrair o sentido, mas apreender a sua historicidade, são” presente na FD1. É isto que a FD antagônica procura
o que significa se colocar no interior de um confronto de sentidos. desqualificar.
Quanto à noção de ideologia, a AD a re-significa: a partir da Observe-se, nas sds que compõem o recorte, como acontece
consideração da linguagem, concebe-a não apenas como percepção este tipo de funcionamento discursivo:
do mundo ou representação do real, mas como explicitação do funci-
sd 01
onamento do discurso em suas determinações históricas. Não se par-
...Eu leio jornais e converso muito. Aprendo com o dia a
te da ideologia (como dissimulação ou não do real) para o sentido,
dia, em contato com os problemas que a gente enfrenta... (Entre-
mas se procura compreender os efeitos de sentido a partir do entendi-
vista à Playboy, julho/79, publicada em “Lula - entrevistas e dis-
mento de que é no discurso que se configura a relação da língua com
cursos”, p. 207).
a ideologia - não há separação estanque entre a linguagem e sua
exterioridade constitutiva. sd 02
Por sua vez a interlocução discursiva é concebida enquanto ...O povo brasileiro só vai se preparar para a democracia vi-
espaço de interação social, ação entre interlocutores que se constitu- vendo na democracia. Não é uma ditadura que o vai preparar para a
em na bipolaridade contraditória do discurso - cada um é, ao mesmo democracia, certo? Não é o regime de exceção que vai fazer uma
tempo, o seu “próprio” e o “complemento” do outro. O discurso não escolinha ou mesmo um curso superior para ensinar o trabalhador
é fechado em si mesmo e nem é do domínio exclusivo do locutor: viver em democracia....(Entrevista à Gazeta Mercantil, 05/04/79,
aquilo que se diz significa em relação ao que não se diz, ao lugar publicada em “Lula - entrevistas e discursos”, p. 170).
social do qual se diz, para quem se diz, em relação a outros discursos.
sd 03
Isso - que se articula como formações imaginárias - pode ser analisa-
...Carro de som é extensão do auditório do sindicato. Se não
do na relação existente entre formações discursivas.
cabe mais de 1500 operários lá dentro, o sindicato tem que usar o
No processo de interlocução não há compartimentos estanques
carro de som... (Brasil Agora, ano II, nº 6l, p. 11, 05 a 20/07/94).
que se preencham a cada turno dos interlocutores - não há um limite
que separe o dizer de um e o dizer do outro. Há simultaneidade. O Interessa notar a forma do sujeito do discurso (Lula) fazer as
sentido é intervalar - não está em um interlocutor, não está em outro; afirmações: contrapõe-se ao discurso-outro, procurando
está no espaço discursivo constituído pelos / nos interlocutores - cons- desqualificá-lo. Ao fazer isso, busca reafirmar práticas sociais da
titui-se na interlocução. FD1. Faz isto, predicando afirmativamente o “saber” de sua FD;
de seu lugar social, diz aquilo “que pode, deve ou convém ser dito”13
Sobre o funcionamento discursivo: a afirmação funcionan no seio de sua FD e, assim, estabelece fronteiras entre discursos
do como negação ideologicamente antagônicos.
Em todas as sds do recorte, o sujeito do discurso, ao afirmar,
Tendo presente que o sentido das palavras não está dado, e que produz o efeito de sentido da negação, isto é, contrapõe-se ao discur-
a FD é o espaço de sua constituição, procura-se analisar como, no so que circula na FD2, buscando desqualificá-lo. Trata-se, no entan-
funcionamento do discurso político de Lula, a afirmação pode pro- to, de uma forma distinta de contraposição, já que as marcas da nega-
duzir efeitos de sentido de negação, quando da interlocução entre ção estão inscritas no discurso antagônico. Assim, são as afirmações
formações discursivas antagônicas. A análise, portanto, objetiva
mostrar como esse funcionamento discursivo10 ocorre.
Metodologicamente, trabalho com duas formações discursivas:
10 Funcionamento discursivo entendido como a atividade estruturante de
FD1 (na qual está inscrito o sujeito do discurso) e FD2 (politicamen- um discurso determinado, para um interlocutor determinado, por um fa-
te antagônica àquela do sujeito do discurso), salientando que a preo- lante determinado, com finalidades específicas. Esse “determinado”, não
cupação não é com a exaustividade horizontal do material lingüístico se refere nem ao número, nem à presença física ou à situação objetiva dos
(textos em si). Em AD, tampouco se trabalha com o texto na sua interlocutores (Orlandi,1987). Trata-se de “formações imaginárias”, de re-
totalidade - são os recortes que interessam, os quais colocam em re- presentações, ou seja, da posição do sujeito no discurso (Pêcheux,1969).
lação diferentes textos, capazes de evidenciar propriedades impor- Também, ao se falar em discurso determinado, não se trata de um todo
tantes em relação ao tema da pesquisa, na medida em que indicam fechado em si mesmo, mas de um estado de processo discursivo, logo, de
um fragmento, de um continnum.
características do processo de significação.
11 Recorre-se a Maingueneau (1989:116 e 117) para precisar os conceitos
Neste trabalho, fruto de uma pesquisa mais ampla, “tomo” como de campo e espaço discursivo. Segundo ele, o campo discursivo é definível
campo discursivo de referência11 o discurso político e, a partir desse como um conjunto de FDs que se encontram em relação de concorrência
campo, delimito como espaço discursivo o discurso político de L. I. (aliança, confronto, neutralidade aparente, etc), delimitando-se por uma
Lula da Silva. Tendo presente esse espaço, é que estabeleci o arqui- posição enunciativa em uma dada região do universo discursivo; o espaço
vo, organizado a partir de um trabalho de pesquisa nos mais diversos discursivo delimita um subconjunto do campo discursivo, ligando, pelo
meios e formas de veiculação do discurso político em pauta. A se- menos, duas FDs que se supõe manterem relações privilegiadas para a
guir, apresento um recorte, formado por três seqüências discursivas compreensão dos discursos considerados.
12 A noção de corpus constituído por seqüências discursivas produzidas por
de referência pertencentes a um único locutor12 . O recorte corresponde
um único locutor e de corpus constituído a partir de arquivo (corpus
a momentos discursivos distintos e procura demonstrar a regularida- preexistente) buscou-se em Courtine (1981:26); seqüência discursiva de
de da forma de funcionamento discursivo em análise, no discurso em referência também será tratada, neste texto, por sd.
pauta. 13 Em Pêcheux (1990), uma FD é aquilo que (...) pode e deve ser dito; em
Na análise do discurso de Lula, registram-se passagens em que Courtine (1982), (...) o que pode e deve ser dito, mas também o que não
ele utiliza a afirmação para negar um discurso que circula na FD pode e não deve ser dito; em Indursky (1992), (...) é o que pode e deve ser
antagônica. Embora o dito na FD1 não venha de fora (da FD2), fun- dito, o que não pode e não deve ser dito, mas também o que convém ou
não ser dito.

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que fornecem as pistas lingüísticas que permitem recuperar enuncia- (1975), que a produção de sentido é indissociável da relação de pará-
dos aproximados aos que circulavam na FD2. Estas são as pistas: frase discursiva, pois o sentido não está dado, não preexiste, nem é
estritamente predeterminado por propriedades lingüísticas; é deter-
sd 01 - Eu leio...aprendo... minado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo
sd 02 - ...só vai se preparar para a democracia ...vivendo a sócio-histórico, no interior da formação discursiva. Na forma de
democracia... interlocução discursiva, ora analisada, entre FDs antagônicas, as duas
sd 03 -... carro de som é a extensão... ....tem que usar... FDs buscam, constantemente, desqualificar uma o discurso da outra.

Além das pistas lingüísticas, é indispensável à análise do re- Referências bibliográficas 1


corte, a categoria da memória discursiva14 , bem como a noção de
condições de produção15 do discurso. É a categoria da memória AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Hétérogénéité Montrée et
discursiva que possibilita recuperar as condições de produção dos Hétérogénéité Constitutive: elements pour une approche de
enunciados da FD1 e, a partir disso, reestabelecer (se não fielmente, l’autre dans le discours. DRLAV (26): 91-151, 1982.
pelo menos de forma aproximada) os enunciados que circulavam na COURTINE, Jean Jacques. Quelques problèmes theoriques et
FD2. E, a noção de condições de produção do discurso permite methodologiques en analyse du discours; à propos du discours
reconstituir as condições histórico-sociais presentes nas duas FDs, communiste adressé aux chrétiens. Langages (62): 9-127, juin,
quando das interlocuções. 1981.
O discurso-outro (o da FD antagônica) não está explicitado, ____. Définition d’orientations théoriques et construction de
mas, se as afirmações da FD1 forem transformadas em negações, ter- procédures en analyse du discours. Philosophiques, 9 (2): 239-
se-á, se não os enunciados exatos, pelo menos enunciados próximos 64, oct., 1982.
àqueles que circulavam na FD antagônica. Eis as transformações INDURSKY, Freda. A fala dos quartéis e as outras vozes. Tese de
possíveis: Doutoramento. Campinas, 1992.
sd 01 MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do
Lula não lê, é inculto, incapaz. Não está preparado para ser Discurso. Campinas: Pontes, 1989.
presidente. ORLANDI, Eni Pulcinelli. Segmentar ou recortar? Série Estudos (10):
sd 02 9-26, Faculdades Integradas de Uberaba, 1984.
O povo brasileiro ainda não está preparado para a democracia. ____. A linguagem e o seu funcionamento. Campinas: Pontes, 1987.
sd 03 ____. Terra à Vista! discurso do confronto: velho e novo mundo. São
O sindicato dos Metalúrgicos não pode usar seu carro de som Paulo: Cortez, 1990.
para atos político-partidários. ____ (org). A leitura e os leitores. Campinas, SP: Pontes, 1998.
____. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas,
Observem-se as marcas de negação presentes nas transforma- SP: Pontes, 1999.
ções: sd 01 - não / in; sd 02 - não; sd 03 - não. PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso. Campinas: Ed. da
Unicamp, 1988.
Esse funcionamento discursivo atesta que, ao discurso (da FD2), ____. Análise Automática do Discurso (AAD-69). In: GADET &
subjaz uma prática social existente na FD1. Observe-se: HAK (org). Por uma análise automática do discurso. Campi-
nas: Ed. da Unicamp, 1990a.
sd 01 PÊCHEUX, Michel & FUCHS, Catherine. (1975). A propósito da
Lula apresenta-se como candidato à presidência da Repúbli análise automática do discurso, GADET & HAK (org) In Por
ca - julga-se capaz para o cargo. uma análise automática do discurso. Campinas: Ed. da Unicamp,
Sd 02 1990.
O povo brasileiro sai às ruas exigindo a democracia - sente-se
preparado para vivê-la. Referências bibliográficas 2
Sd 03
O sindicato usa seu carro de som em ato político partidário - GUIZZO, João et alli. LULA - Luís Inácio da Silva - Entrevista e
acredita ter autonomia para isso. Discursos, 2ª ed. São Paulo: O Repórter de Guarulhos, 1981.
Jornal “Brasil Agora”, ano II, nº 61, 05 a 20/07/94.
Esse recorte discursivo fornece evidências de que a interlocução
entre essas duas FDs, põe em confronto distintos “saberes”. Nesse
tipo de funcionamento discursivo, o sujeito do discurso afirma para
contrapor-se ao discurso-outro. Redireciona o discurso no sentido
daquilo que pode, deve ou convém ser dito em sua FD, numa opera-
ção em que a afirmação, na verdade, recalca, no interdiscurso, o dis-
curso da FD antagônica, discurso esse que “não pode, não deve ou
não convém ser dito” na FD do sujeito do discurso (FD1).
Em síntese, a partir do entendimento dessa forma de funciona-
mento discursivo, representativa do discurso em análise, pode-se,
parafraseando Authier (1982:140), dizer que todo o discurso se cons- 14 A noção de memória discursiva, introduzida na AD por Courtine (1981),
titui numa trajetória dialógica, feita de acordos, rejeições, conflitos, é entendida no sentido que toda a produção discursiva acontece numa
compromissos...com outros discursos, num jogo inevitável de fron- conjuntura dada e coloca em movimento formulações anteriores já enunci-
teiras e interferências. adas.
A análise permite, também, reconhecer que, no funcionamen- 15 Conforme Orlandi (1999:30), condições de produção, em um sentido
to do discurso político de Lula, é possível reiterar, conforme Pêcheux estrito, são entendidas como sendo o contexto imediato; no sentido am-
plo, incluem o contexto sócio-histórico, ideológico.

256 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Trair a teoria e inventar a prática
Pedro de Souza
Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC

RÉSUMÉ: Je présente une réflexion au sujet des relations entre théorie et pratique, dans le domaine de l´Analyse du discours. En partant de la
critique que Michel Pêcheux dirige à Michel Foucault, je soutiens l’idée que la pratique concerne les différents positions de ´l´analyste, ce que
l´oblige á changer e trahir la théorie.
PALAVRAS-CHAVE: discurso, prática, ideologia, teoria

Quando se pensa o que, no campo da Análise de Discurso, estudiosos da linguagem, um singular exercício de produção de saber
implica as relações inéditas entre teoria e prática, trata-se antes de lingüístico. A modo de esclarecimento, cito aqui esta outra passagem
articulações a serem quebradas. Desde Michel Pêcheux, ficou esta- da comunicação de Michel Pêcheux:
belecido que na escola francesa de análise do discurso a prática ana-
lítica tem a primazia. Deste modo, fica então posto o problema de “ …basta pensar no que se passa com o trabalho político
como apresentar a Análise de Discurso como domínio teórico, já que sobre os textos (através de sua redação, sua leitura, sua dis-
seu primado consiste em uma prática que põe em questão a teoria. cussão, etc.): vê-se imediatamente aparecer as interrogações
Mais precisamente, quero aqui refletir em torno da seguinte pergun- sobre o sentido do que é dito ou escrito, acarretando proposi-
ta: sob que condições a Análise de Discurso pode se desarticular em ções de retificação clarificação, simplificação, etc., de modo
teoria e prática? que, durante o espaço de uma discussão, os militantes pare-
De saída, evoco o próprio Pêcheux para propor que, em Análi- cem funcionar como especialistas da linguagem: eles fazem
se de Discurso, mesmo quando o foco é teórico, o analista está sem- distinções entre a forma e o fundo, entre a palavra e a coisa,
pre na prática. Em uma comunicação proferida no Simpósio sobre evocam o espírito do texto, falam de contexto, de ressonância
Discurso Político: teoria e , análises, realizado no México, em 1977, e de conotação; a propósito da introdução ou da retratação
Michel Pêcheux, remetendo-se ao tema língua, ideologia e discurso, de tal termo ou expressão, referem-se a intenções, (o que quer
não só denuncia, relativamente à sua época, o estado insolúvel da dizer ´fazer passar”) e a expectativas (as massas “esperam”
questão, como principalmente a localiza no ãmbito de duas práticas: uma tomada de posição sobre tal problema, elas “compreen-
a política e a universitária. Vale a pena citá-lo neste ponto de sua fala: derão” e “não compreenderão” tal formulação, etc.)”

Ora, justamente toda questão se condensa aqui, a meu ver, so- Certamente a preocupação de Pêcheux nesse texto não é tanto
bre a relação entre prática política e prática universitária: é o reinvidicar a quebra do muro que separa teoria e prática, mas sim
momento de se lembrar que o termo “universidade” rima, mui- abrir um espaço teórico no qual há lugar para muitas práticas no que
tas vezes, com o de universalidade, no sentido de generalidade diz respeito ao exercício da análise do discurso. Insisto contudo no
abstrata inutilizável. Coloco a questão, sem, de nenhum modo, principio que baliza a reflexão do autor, a saber, quer se trate de
me excluir daqueles a quem me dirijo: estamos certos de que militantes ou de universitários, a questão não é reinvindicar quem
com a análise do discurso, não estamos uma vez mais em pre- tem maior domínio de especialidade sobre uma matéria, mas sim quais
sença de alguma coisa que, sobre o terreno particular da lin- são os lugares díspares que se toma no interior de dada formação
guagem, se assemelharia a uma dialética universal, tendo a pro- ideológica Dito de outro modo, a distância entre leigos e especia-
priedade, totalmente universitária, de produzir sua própria listas universitários tem um único e mesmo critério medidor: a práti-
matéria? ca política como causa da eleição de um entre vários interesses histo-
ricamente em jogo no horizonte teórico das relações de força . “Não
Antes de tudo, quero chamar atenção para o apagamento da se pode pretender falar de discursos políticos sem tomar imediata-
dicotomia dialética que Pêcheux opera entre teoria e prática, criti- mente posição na luta de classes”, diz Pècheux. Com esta afirma-
cando negativamente o fato de a primeira pretender ter a primazia ção, ele ressalta a importãncia da tomada de posição na determinação
sobre a outra. Em outros termos, minha leitura é de que o autor dos modos pelos quais as idéias adquirem forma material e partici-
revoga o principio universalizante e universitário de que a práti- pam da correlação de forças na história.
ca, e trata-se aqui da linguagem, deve se submeter aos principios Neste ponto, quero desenvolver uma proposição invertendo o
e parãmetros da teoria, e esta, por sua vez, deve estar aberta a ditado popular, re-inventando a premissa na seguinte formulação:
sínteses reformuladoras nos pontos em que a prática resiste aos na teoria a prática é outra. Com este ponto de partida, não propo-
seus postulados. nho, a exemplo de Michel Pêcheux, negar a existencia da cópula
teoria/prática, mas colocar em discussão, notadamente, no campo da
Penso que Pêcheux não invalida a posição de especialistas escola francesa da Análise do Discurso, outro regime de relação
atribuída aos teóricos da linguagem, instiuídos na universidade, mas entre dois termos. Para tornar possível o desenolvimento desta idéia,
atenta para o modo paradoxalmente excludente com que se constitui vou retomar do texto citado de Michel Pêcheux um tema que é recor-
e se exerce tal posição. A exclusão, implicitamente apontada na fala rente nas múltiplas análises de discurso praticada no contexto uni-
do autor, está no lugar normatizante e universalizante e idêntico a si versitário brasileiro. Refiro-me às interpretações que um sujeito pode
mesmo, que promove a divisão irrerversível entre teoria e prática. atribuir a um texto. O que se coloca em causa aqui é o estatuto das
O resultado desta divisão é tornar a prática orfã de especialistas, pos- análises de discurso que se processam no âmbito da prática
to que estes, na prática, perdem o estatuto para ocupar a posição que universiitária em confronto com as que se faz no quadro das práticas
lhes demanda a teoria para falar. Algo de revolucionário aparece em militantes.
sua explanação, quando salta do que chama prática universitária para Desde logo, no âmbito desta reflexão, faz-se necessário, loca-
a prática política, localizando, para incómodo dos mais ortodoxos lizar um problema teórico e nele perseguir as práticas que buscam

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 257


dar para ele uma solução. A questão se coloca no momento em que, uma teoria materialista da ideologia, já anteriormente detectável em
particularmente no quadro da escola francesa de Análise do Discur- Espinosa, Pêcheux faz ao pensamento foucaultiano, desenvolvido em
so, o principio fundamental é de que sentido e sujeito nascem juntos. Arqueologia do saber Quando Pêcheux, utilizando-se das armas da
Se não há sentido sem sujeito, então cabe ao especialista não só des- corrente marxista-leninista, aponta a ausência da contradição como
velar uma interpretação possível, mas também determinar quem é o lugar do “vínculo velado do pensamento de Foucault com o que eu
sujeito discursivo que a produziu. Daí a polêmica armada na vizi- chamo o reformismo teórico”, está, nada mais nada menos que de-
nhança das muitas análises de discurso. nunciando uma traição que se exerce por uma heteróclita tomada de
Os mais ortodoxos, na acepção positivista do termo, objetaria, posição que, à margem da teoria, inventa outra prática.
que o analista, ao se ocupar, por exemplo, da problemática dos movi- Gostaria muito de poder falar mais sobre este ponto, mas isto
mentos sociais, teriam a pretensão de saber, mais do que os envolvi- implicaria, inevitavelmente, em trazer á berlinda, o pensamento
dos, quem são os sujeitos que lêem e produzem os enunciados que foucaultiano por ele mesmo, o que foge aos objetivos da refexão que
circulam no contexto de sua militância politica. Segue daí que o es- quero propor aqui. Para me ater ao principio pecheutiano que venho
pecialista da análise do discurso se arvoraria a prerrogativa teórica tentando esmiuçar até aqui, contento-me em afirmar como que, às
de impor uma ótica normativa diante da qual devem se espelhar os avessas, ao comentar negativamente Foucault, Pêcheux acaba encon-
sujeitos sociais que, a propósito do que dizem, são tornados objetos trando nele o núcleo da contradição que que acredita estar ausente
de saber teórico no contexto universitário. nele.Aliás, a propósito disso, é importante lembrar que Pêcheux teve
É justamente nste ponto que Pêcheux discute Foucault, ao tempo de retificar mais tarde, admintindo ter formulado uma apreci-
compará-lo com Espinosa, problematizando o estatuto do sujeito da ação equivocada.. Em outros termos, a minha leitura dessa crítica, se
interpretação. O problema é desenvolvido por ele em torno de quatro depara com um caminho aberto para pensar uma outra relação entre
pontos a partir dos quais, embora distanciados na história, os dois teoria e prática. Diria que não é que Michel Foucault subverteu a
filósofos podem ser aproximados. Pela exigüidade de espaço, não categoria da contradição, apenas a deslocou praticando um outro exer-
posso expor aqui os detalhes da leitura de Pêcheux. O mais impor- cício analítico, no mesmo quadro universitário em que opera os mar-
tante é ressaltar a primeira conclusão a que chega este autor quando xistas-leninistas.
sugere que, sobre o trabalho de interpretação de textos, Espinosa e Neste ponto, convoco Gilles Deleuze que, em um diálogo com
Foucault procederiam quase da mesma maneira, quer na teminologia, Michel Foucault, compilado em Microfísica do Poder(1984,pp.69-
quer nos meios “técnicos” mobilizados, embora os de Espinosa res- 78), destitui a crença de que a prática possa ser meramente uma apli-
sintam da ingenuidade antropológica de seu tempo. cação da teoria, ou quando muito, a prática deva exercer-se como o
Mas por que esse “quase” pontuado nesta comparação? É foco inspirador da teoria. Não. Os contornos que desenham o víncu-
que, conforme Pêcheux, Espinosa avança ali onde Foucault perma- lo entre teoria e prática, mostram uma relação a modo de casamento
nece hoje um pouco bloqueado. Para além da semelhança de proce- aberto, isto é, duas maneiras relativamente autõnomas de produzir
dimentos teóricos perceptível entre os dois filósofos há que se ob- conhecimento. Diz ele que, antes de ser totalizantes em um sentido e
servar uma diferença de prática induzida pela posição politica. O outro:
que é aplaudido em Espinosa é a forma, mesmo que espontãnea, com “ As relações teoria-prática são muito mais parciais e fragmen-
que este filósofo trabalha a contradição, procedendo a um ataque á tárias. Por um lado uma teoria é sempre local, relativa a um
ideologia religiosa e à religião. através e em nome da ideologia re- pequeno domínio e pode se aplicar a um outro domínio mais ou
ligiosa. É para a dimensão dividida da ideologia que se realiza em menos afastado. A relação de aplicação nunca é de semelhan-
determinado domínio (por exemplo, o religioso) que Pêcheux quer ça. Por outro lado, desde que uma teoria pnetre em seu próprio
aqui chamar atenção. Para ele, a essência da ideologia consiste em domínio encontra obstáculos que tornam necessário que seja
não se compor de “ um bloco homogêneo, idêntico a si mesmo…” revezada por um outro tipo de discurso) este outro discurso que
A lição fundamental que se tira daqui é a de que não se pode permite passar a um outro dominio diferente). A prática é um
praticar análise de discurso sem que o analista adote uma perspectiva conjunto de revezamentos de uma teoria a outra e a teoria um
segundo a qual uma formação de discursos não pode ser catalogada revezamento de uma prática a outra. Nem uma teoria pode se
como uma entre outras. Segundo Pêcheux, “é preciso ao contrário desenvolver sem encontrar uma espécie de muro, e é preciso
definir a relação interna que ela entretém com seu exterior discursivo uma prática para atravessar o muro” .
específico, em resumo determinar as invasões constitutivas pelas
quais uma pluralidade contraditória, desigual e internamente su- Volto aqui ao ponto pelo qual comecei esta minha exposição,
bordinada de formações discursivas se organiza em função de inte- ou seja, mesmo quando o foco é teórico, o analista está sempre na
resses que a luta ideológica de classes coloca em jogo, em um prática. De modo que, ao se ocupar discursivamente de algum movi-
momento dado de seu desenvolvimento em uma formação social mento social, como por exemplo, o sem-terra, adotando um ponto de
dada” . vista teórico, o analista fala e age no interior de uma prática que nada
No que diz respeito a Michel Foucault, o problema de Pêcheux tem a ver com a ação política que envolve os próprios sujeitos ditos
está no principio aglutinador e generalisante com o qual o filófofo sem-terra. Muito pelo contrário. O pontode vista teórico do analista
de As palavras e as coisas faz uso da noção de noção de formação está necessariamente vinculado a uma certa prática através da qual a
discursiva. Sem negar a vocação revolucionária dos trabalhos de teoria pode ser ampliada e desenvolvida relativamente ao domínio de
Foucault, Pêcheux reprova nele a auséncia da categoria da contradi- saber de referência: a análise de discurso.
ção, o que faz sua produção intelectual resvalar para o que chama de Voltando a Michel Foucault, o mesmo se pode verificar.
reformismo teórico. O preço a pagar por este desvio do viés revoluci- Deleuze faz lembrar a diferença de suas práticas. Uma foi a que o
onário fica patenteado naquilo que Pêcheux lê como “o retorno de envolveu no momento em que analisou teoricamente o asilo psiquiá-
noções como estatuto, norma, instituição, estratégia, poder, etc. que trico como um meio de reclusão na sociedade capitalista do século
contornam indefinidaemte a questão do poder do Estado como um XIX. Outra aquela que o levou a fazer falar as pessoas reclusas,
jogo de luta de classes, assim como o faz toda psico-sociologia anglo- quando criou o GIP(Grupo de Informações Prisões).
saxônica da qual essas noções são aliás amplamente provenientes”. Nem a análise teórica pretendeu ser a explicação totalisante do
Não quero discutir as objeções que, em favor do que chama que se passava em uma instituição de reclusão, nem a segunda foi

258 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


pretendida como uma aplicação do que se conseguiu na teoria. Certa- Referências Bibliográficas
mente, se reinvidcasse de Foucault esta postura de transferência da
teoria á prática e de iluminação teórica propiciada pela prática, tería- PÊCHEUX, Michel, “Remontemos de Espinoza a Foucault” comu-
mos aí o que Pêcheux definiu como reformismo teórico, pois tudo nicação no Simpósio do México sobre o Discurso Político: teo-
passaria por um escamoteamento da diferençca e da contradição. Em ria e análises (7-11 novembro, 1977). versão espanhola M.
verdade, mesmo quando o analista está absolutamente convicto da Monteforte Toledo (ed), El discurso politico. México. Nueza
teoria na qual se engaja, ao revezar a prática reveza também a teoria. Imagen, 1980, p. 181-200.
Este é o deslocamento teórico que inventa a prática teórica. Encer- FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro, Foren-
rando minha exposição, quero pontuar, a modo de conclusão se, 1984.
provisõria, a forma da traição que Pêcheux imputaria ao analista que _________________. Microfíca do Poder. Rio de Janeiro, Graal, 1984
nâo assumise a contradição constitutiva de sua prática. Trair aqui
pauta-se pelos lugares teóricos subvertidos por outra prática.

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Educação e instrução para o proletariado:
Atas do II Congresso Operário Brasileiro
Ana Zandwais
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

ABSTRACT: The aim of this study is to show how the registers of the Second Congress of Workers in Brazil(1913) can explain the ideology concerned
to education elected by members of the congress in order to preserve their domains of memory, and at the same time, to accuse the official schools
of effective incapacity and manipulation of workers’ brains.
PALAVRAS-CHAVE: Educação – Proletariado – Ensino racionalista – Congresso operário

Introdução o aumento de perseguições e prisões de operários durante as greves.


Portanto, não somente as correlações de forças desiguais, instaura-
O presente estudo toma como objeto de investigação do- das entre proprietários rurais, industriais, oligarquias e o operariado
mínios de saberes que alicerçam tomadas de posições da classe ope- contribuiram para o enfraquecimento das forças proletárias, mas tam-
rária brasileira e de segmentos sindicalistas revolucionários, em face bém as dissenções instauradas no interior de uma articulação consti-
de questões educacionais no Brasil durante a Primeira Repúbli- tuída por formações discursivas heterogêneas e com posições
ca(1889-1930). conflitantes a respeito de estratégias de emancipação do proletariado
Com o objetivo de caracterizar tais saberes selecionamos, para Em virtude de tais dissenções, portanto, a COB passa a perder, pro-
a realização deste estudo, uma pauta que integra as atas do II Con- gressivamente, tanto a credibilidade diante das lideranças proletári-
gresso Operário, realizado em 1913 na cidade do Rio de Janeiro, e as2 como a força política no cenário nacional.
que, elaborada em virtude de dissenções entre Ligas, Associações e Com os objetivos, pois, de recuperar a credibilidade perdida
Federações operárias, em torno dos requisitos necessários à forma- e de rearticular diferentes facções – anarquistas, socialistas e
ção educacional do proletariado, toma como tema a “Educação e ins- anarcossindicalistas – em favor da causa operária, a COB passa a
trução da classe proletária.”. expedir, às Federações e Associações operárias do país, circulares
Ao considerarmos que é a partir da análise dos domínios de convocando as mesmas a participarem, através de representações
saberes que emergem no processo discursivo ao longo do encami- delegadas, dos debates do II Congresso Operário Brasileiro, realiza-
nhamento do tema, durante o Congresso, que faz-se possível confi- do em 8 de setembro de 1913. Para tanto, solicita a todas as Federa-
gurar as posições assumidas pelo sujeito operário frente à questão ções e Associações que enviem: a) relatórios contendo um histórico
educacional no país, consideramos igualmente que há um espaço, na de suas atividades políticas; b) definições de temas a serem debati-
materialidade da língua, que possibilita caracterizar como os senti- dos durante o Congresso. Assim, em conseqüência de ter sido privi-
dos do texto trabalham a fim de que determinados efeitos sejam pri- legiada como tema para debate, a pauta “Educação e instrução das
vilegiados em detrimento de outros. Através deste estudo, portanto, classes proletárias” passa a compor o 17º tema tratado pelos congres-
pretendemos colocar em destaque o funcionamento das orações rela- sistas, colocando em destaque a necessidade de um estabelecimento
tivas como materialidades discursivas que apontam para determina- de condições objetivas de formação educacional do sujeito operário,
das evidências; isto é, para os domínios de memória da classe prole- a fim de serem preservados domínios de saberes e posições de classe,
tária em relação aos conjuntos de interesses e de práticas que deter- indiferentes3 às posições assumidas pelo sistema de ensino oficial.
minam as condições em que são oferecidas a educação e a instrução Deste modo, a pauta sobre educação e instrução emerge, durante as
no âmbito do ensino oficial brasileiro. Para a consecução deste traba- discussões do Congresso, como um indicador: a) da presença de con-
lho, por fim, faremos um percurso na tentativa de estabelecer rela- trovérsias existentes a respeito de saberes/práticas educacionais no
ções transversas entre os acontecimentos históricos e os lugares a seio do movimento operário ;b)da consciência dos segmentos operá-
partir dos quais tais acontecimentos são interpretados e, portanto, rios sobre a necessidade de deliberar a respeito de sua formação inte-
predicados na materialidade discursiva. lectual; c)de que os movimentos de luta e resistência da classe prole-
tária incluem um projeto de revisão das condições e dos interesses
1. Os acontecimentos histórico-discursivos em que se fundamenta o ensino que lhes é ofertado.
Os inúmeros fracassos resultantes de movimentos operários
urbanos e rurais ao longo de greves realizadas entre 1912 e 1913(greve
geral) enfraqueceram a credibilidade da Confederação Operária Bra-
sileira1 (COB), fundada durante o I Congresso Nacional Operário. 1 O I Congresso Operário Brasileiro(1906) consolida-se a partir de um
Dentre os principais fatores agravantes da perda de credibilidade discurso de aliança entre militâncias socialistas ,anarquistas e
da organização sindical podem ser arrolados os seguintes: a) o eleva- anarcossindicalistas , convocando as lideranças sindicais e operárias do país
com vistas à: a) criação da Confederação Operária Brasileira; b)formação
do número de demissões impostas aos operários militantes de movi- de lideranças nacionais. Deste modo, em 1906 é instituída oficialmente a
mentos sindicais; b) a falta de estabilidade dos operários estrangei- COB, composta por quarenta e três delegados que representam vinte e
ros; c) a inexistência de condições materiais mínimas à sobrevivên- oito organizações sindicais do país.
cia do operariado; d) as divergências acirradas entre militâncias anar- 2 As lideranças sindicais foram acusadas de “destruir o privilégio do patrão
quistas, socialistas e anarcossindicalistas no seio das lutas sindicais, para estabelecer o próprio”, sendo, deste modo a ação sindicalista taxada
sendo os últimos, inclusive, acusados pelos primeiros, de recrudes- como uma negação do anarquismo. (La Barricata, 16.03.1913)
cer as práticas de resistência, através de boicotes, sabotagens e 3 Reportamo-nos, notadamente, às críticas feitas por lideranças anarquistas
enfrentamentos diretos com a polícia, contribuindo, deste modo, para em relação à “lavagem cerebral” produzida nas escolas através de
ensinamentos religiosos e cívicos.

260 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


2 . Investigando uma pauta do II Congresso Operário(1913) tibilidade pode ser identificado, notadamente, através de orações rela-
tivas, que sob a forma reduzida, encaixam-se umas às outras, funcio-
Passamos, a seguir, ao texto que constitui a 17ª pauta do II nando como elos que articulam práticas coercitivas e que, ao mesmo
Congresso Operário Brasileiro. Para fins de análise, este foi dividido tempo, sustentam as relações de antagonismo entre a burguesia, a
em seqüências discursivas(sds)4 , as quais compreendem os movi- instituição religiosa e o proletariado. É, pois, através do funciona-
mentos argumentativos que colocam em destaque, após cada “consi- mento do aposto oracional (AO) que são colocados em evidência
derando”, conjuntos de evidências que caracterizam as posições as- domínios de saberes e práticas que configuram o modo de produção/
sumidas pelo sujeito operário em relação aos saberes que circulam reprodução de relações de dominação vigentes na sociedade brasilei-
no âmbito do ensino oficial. .Por fim, procuraremos dar destaque à ra ,os quais passamos a representar pela estrutura considerando p
sd que corresponde às deliberações da COB frente à formação edu- que x, onde x remete a saberes/práticas antagônicas que se constitu-
cacional dos segmentos operários. .Tema 17 – Educação e instrução em em objetos de avaliação. conforme representamos a seguir:[ Or1]
das classes operárias Considerando que p Ao1[que se inspirou no misticismo, Ao2[que se
inspirou nas doutadas pelas castas aristocráticas de todas as seitas
“ Considerando que a burguesia, inspirada no misticismo, nas Ao3 [que visavam manter o povo na mais absoluta ignorância Ao4
doutadas pelas castas aristocráticas e pelas igrejas de todas as sei- [que está próxima à bestialidade]para melhor explorarem-no e go-
tas, que visavam manter o povo na mais absoluta ignorância, próxi- vernarem-no.
ma à bestialidade, para melhor explorarem-no e governarem-no;
Considerando que a burguesia, inspirada no misticismo, nas Encaixes discursivos → Posições de antagonismo “conside-
doutrinas positivistas e nas teorias materialistas sabiamente inverti- rando p que x”, onde x representa as práticas antagônicas que conso-
das pelos cientistas burgueses, os quais metamorfoseiam a ciência, lidam as posições de p ( fds antagônicas). ¯
segundo os convencionalismos da sociedade atual, e monopolizam Domínios e Funções de X→ → Processo discursivo:1º) remis-
a instrução, tratando de ilustrar o operariado sobre artificiosas con- são aos domínios da memória; 2º) busca de uma consciência coleti-
cepções que enlouquecem os cérebros dos que freqüentam as suas
va. Materialidade Discursiva: representado por proposições
escolas, desequilibrando-os com os deletérios sofismas que consti-
incidentais – orações relativas – que inserem domínios de saberes
tuem o civismo ou a religião do Estado;
antagônicos no discurso proletário.
Considerando que esta instrução é ministrada juntamente com
a educação prática de modalidades que estão em harmonia com a .
instrução aplicada; [Or2] “considerando que a burguesia inspirada no misticismo,
Considerando que esta instrução e educação causam males nas doutrinas positivistas e nas teorias materialistas sabiamente in-
incalculavelmente maiores do que a mais supina ignorância e que vertidas pelos cientistas burgueses, os quais metamorfoseiam a ciên-
consolidam com mais firmeza todas as escravizações, impossibili- cia, segundo os convencionalismos da sociedade atual e monopoli-
tando a emancipação sentimental, intelectual, econômica e social zam a instrução, tratando de ilustrar o operariado sobre artificiosas
do proletariado e da humanidade; concepções que enlouquecem os cérebros dos que freqüentam as suas
Considerando que este ensino baseia-se no sofisma e afirma- escolas, desequilibrando-os com os deletérios sofismas que constitu-
se no misticismo e na resignação; em o civismo ou a religião do Estado.”
O Segundo Congresso Operário Brasileiro aconselha aos sin-
dicatos e às classes trabalhadoras em geral, tomando como princí- Or2 “Considerando p que x”( que se inspirou no misticismo,
pio o método racional e científico, em contraposição ao ensino mís-
nas doutrinas positivistas e nas teorias materialistas, [que foram sabi-
tico e autoritário, promovam a criação e vulgarização de escolas
amente invertidas por cientistas burgueses,] [os quais metamorfoseiam
racionalistas, ateneus, cursos profissionais de educação técnica e
artística, revistas, jornais, promovendo conferências e preleções, or- a ciência,] e[os quais monopolizam a instrução...concepções][que
ganizando certames e excursões de propaganda instrutiva, editando enlouquecem os cérebros ].deletérios sofismas [que constituem o ci-
livros, folhetos,etc.etc..”. vismo ou a religião do Estado].

Sd1[or1] “ considerando que a burguesia, inspirada no misti- As relações de aliança entre a burguesia, as castas aristocráti-
cismo,.. pelas castas aristocráticas e pelas igrejas de todas as seitas, cas e a igreja, deste modo, passam a caracterizar uma primeira evi-
que visavam manter o povo na mais absoluta ignorância, próxima à dência, em termos de orientação argumentativa: I) os ensinamentos
bestialidade para melhor explorarem-no e governarem-no” religiosos não emancipam a classe proletária porque a igreja tem
interesses comuns aos da burguesia e das castas.
Conforme se observa, a or1. institui o movimento argumentativo Se a Or1, instaura relações de antagonismo nos domínios eco-
inicial colocando em destaque as relações de aliança entre classes e nômico e religioso, a Or2 fortifica tais relações através da retomada
instituições, de modo a vincular determinados saberes/práticas a po-
de movimentos argumentativos anteriores, a fim de sustentar outras
sições que se antagonizam aos interesses proletários. Assim, em pri-
posições antagônicas inscritas nos domínios do conhecimento cien-
meiro lugar, a or1 aponta para alianças entre a burguesia, as castas
tífico Em seqüência, portanto os movimentos argumentativos que
aristocráticas e as igrejas em geral, para, a seguir, relacionar tais ali-
anças a práticas de dominação comuns, que emergem, no discurso, constituem a Or2 colocam em destaque a equiparação entre saberes
como evidências que atendem a interesses mútuos; isto é, “manter o burgueses e doutrinas, dando ênfase a outras formas de aliança
povo na ignorância para explorá-lo e governá-lo.”. Deste modo, os estabelecidas pelas classes que detêm o poder econômico, conforme
movimentos argumentativos que abrem a pauta interpelam o sujeito representamos a seguir
proletário a identificar-se como manipulado diante da segmentação
de classes e das práticas coercitivas institucionais religiosas.
No plano das formulações, ou seja , na materialidade discursiva
dos enunciados, o modo de apresentação desses lugares de incompa- 4Cabe observar que as sds em análise compreendem conjuntos de orien-
tações argumentativas que dão sustentação às deliberações finais da COB.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 261


Alianças → cientistas → positivistas→instituições religiosas O encaminhamento conclusivo das posições a serem assumi-
Assim, tais relações de aliança impostas no campo do saber das, pelo sujeito operário, define-se, portanto, como uma síntese de
passam a apontar para uma segunda evidência: II) a ciência não é todos os movimentos argumentativos anteriores; isto é, a afirmação
neutra e está a serviço de interesses classistas.: de que o Congresso Operário aconselha ~x mas y , onde x represen-
ta-se, nas considerações finais, por um ensino “místico e autoritário e
y, por domínios de saberes/práticas capazes de caracterizar a identi-
dade do sujeito proletario. Esse movimento circular produz um efei-
to de negação de princípios e de práticas das instituições educacio-
nais, sustentado por domínios de memória - alianças religiosas, dou-
trinárias e subversão do papel da instituição científica- na medida em
que visa a garantir a assimilação de posições a serem adotadas pelo
movimento proletário, as quais se representam pela criação de um
[e monopolizam a instrução com artificiosas concepções[que
projeto educacional diferençado. Deste modo, se x não legitima as
enlouquecem os cérebros dos que freqüentam suas
condições de emancipação da classe, é preciso instaurar y para alcançá-
escolas]sofismas[que constituem o civismo ou a religião do Estado.]
las e transformar tanto as condições de subsistência materiais como
A Or3 ao retomar o objeto de análise da orientação intelectuais do sujeito operário. Enfim, é através da análise das atas
argumentativa anterior - o saber científico - passa também a vinculá- do II Congresso Operário Brasileiro que se faz possível atestar, pelo
lo ao campo da prática de ensino. E ao demonstrar a não-neutralida- viés da memória discursiva, “ o esquecimento” de que as práticas
de do saber, correlacionando-o aos tipos de praticas pedagógicas que revolucionárias que sustentaram o movimento de emancipação da
vigoram nas escolas, produz uma terceira evidência: III) a escola classe trabalhadora brasileira não deveriam estar alicerçadas em lu-
ensina somente aquilo que atende aos interesses de reprodução tas de ordem puramente econômica, mas estar atadas, sobretudo, a
das relações de produção vigentes. Deste modo, a Or3 não somente um projeto identitário de formação intelectual..
coloca em destaque o risco da transposição de saberes equivocados
para o campo da prática, mas também articula tal evidência à Or4, Algumas considerações conclusivas
cuja função consiste em retomar o tópico instrução, apresentando um
funcionamento igualmente simétrico. Este estudo propôs-se a investigar de que forma o discur-
Sd3[Or3] considerando que esta instrução é ministrada junta- so pode colocar em evidência determinadas materialidades estrutu-
mente com a educação prática de modalidades que estão em harmo- rais da língua e tratar de suas condições de funcionamento em rela-
nia com a instrução aplicada.. Sd4[Or4] considerando que esta ins- ção aos efeitos que produzem, enquanto materialidades que somente
trução e educação causam males incalculavelmente maiores do que a significam nos processos discursivos . Nosso objetivo, aqui, consis-
mais supina ignorãncia.e que consolidam com mais firmeza todas as tiu em demonstrar que as orações relativas, sistematicamente estuda-
escravizações, impossibilitando a emancipação sentimental, intelec- das como orações que funcionam como aposto, não se restringem à
tual, econômica e social do proletariado e da humanidade; função de produzir uma explicação óbvia, em termos semânticos,
Sd5[considerando que este ensino baseia-se no sofisma e afirma-se muito menos podem ser dispensadas ou consideradas como estrutu-
no misticismo e na resignação;].. ras encadeadas ou ainda como proposições incidentais que retomam
simplesmente as orações a que se ligam. Por conseguinte, cabe ob-
servar que a estruturação simétrica do modo de formulação das pau-
tas do II Congresso Operário da COB, fundamentalmente a 17ª pau-
ta, não se produziu como um fato aleatório, mas, ao contrário, como
uma estratégia, entre as múltiplas que o objeto lingüístico faculta,
que possibilitou a inserção, em cada um dos considerandos apresen-
A Or4, estando articulada à Or3, na medida em que aponta para tados, de domínios de saberes que garantiriam uma condição de
os efeitos que tais saberes/práticas produzem, e articulada à Or5, que consensualidade em torno de decisões tomadas a respeito dos princí-
tem por função adjetivar as propriedades específicas do ensino oficial pios que deveriam nortear a instauração de práticas/projetos educaci-
:”sofismático, místico e reprodutor da subserviência”; acaba por pro- onais pela classe operária brasileira, a fim de que a mesma não viesse
duzir a mais forte evidência que caracteriza uma posição a ser adotada a desapropriar-se de sustentáculos que garantiriam suas condições
pela classe proletária: IV) o ensino oficial não oferece condições de de emancipação. Portanto, é com base em um estudo do processo
emancipação à classe proletária. discursivo que logramos identificar que à inserção de cada constru-
É através, pois, de encaixes discursivos produzidos por orações ção relativa nos considerandos, correspondeu, paralelamente, a
substantivas sendo estas representadas pela estrutura considerando p, mobilização de domínios de saberes anarquistas, os quais, ao interdi-
que o sujeito proletário dá seqüência ao processo de adjetivação da ins- tarem saberes antagônicos aos interesses do proletariado, culmina-
trução, caracterizando “as especificidades” do ensino oficial. .Deste modo, ram com a determinação dos rumos que deveriam nortear a questão
os complementos das seqüências(Ors. 3,4 e5) consolidam o efeito de educacional6 no seio do movimento operário.
colocar em evidência as relações de antagonismo entre os interesses do
ensino oficial e os interesses do proletariado, a fim de dar sustentação a
domínios de saberes/práticas que qualifiquem as posições do Congres- 5 As escolas racionalistas, no Brasil, viriam a caracterizar-se, notadamente,
so, representadas pela deliberação final que vem ratificar todos os argu- por privilegiar métodos cartesianos de ensino, em detrimento da aquisição
mentos apresentados anteriormente...(COB) [Sd6] O Segundo Congres- de saberes religiosos e cívicos, os quais constituiram´as bases legitimadoras
so Operário aconselha aos sindicatos e às classes trabalhadoras em geral, do sistema de ensino oficial.desde a Primeira República.
tomando como princípio o método racional 5 e científico , em 6 Conforme Rodrigues(1993) todas as instituições de ensino racionalista,
contraposição ao ensino místico e autoritário, promovam a criação e fundadas e subsidiadas pelo movimento anarquista, foram destruídas por
vulgarização de escolas racionalistas, ateneus, cursos profissionais de autoridades governamentais, tais como a “Colônia Cecília do Paraná, a Ëscola
Eliseu Reclus “de Porto Alegre, a Universidade Popular do Rio de Janeiro e
educação técnica, revistas, jornais, promovendo conferências e prele-
as Escolas Modernas de São Paulo, fechadas após terem sido objeto de
ções, organizando certames e excursões de propaganda instrutiva... processo judicial.

262 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Referências bibliográficas Brasil (1889-1930) São Paulo: Alfa-Ômega, 1979.
Revista A Vida. Ed. Fac-similar do Archivo Storico Del Movimento
COURTINE, Jean J., MARANDIN, M. Quel object pour lànalyse du Operário Brasiliano. Rio de Janeiro: Ed. Ícone, 1987
discours? Materialités discoursives. Lille: Presses Universitaires RODRIGUES, Edgar. Os libertários. Rio de Janeiro: VJR Editores
de Lille,1981. Associados, 1993.
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro Ed. ZANDWAIS, Ana. A confederação operária brasileira: condições de
Forense Universitária, 1969. formação de uma formação discursiva sindical. Ensaios: discur-
PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Cam- so, memória, identidade. (orgs).INDURSKY, Freda, CAMPOS,
pinas: Pontes,1990 Maria do Carmo. Porto Alegre: Ed. Sagra/Luzzatto, v.15. ,2000,
PINHEIRO, Paulo Sérgio, HALL, Michael. A classe operária no p.141-50.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 263


O determinante demonstrativo em sintagmas nominais
Graziela Zamponi*
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP/FRANQUIL/FATEA

ABSTRACT: In this paper we start a reflection about demonstrative noun phrase. From the concept of memory deixis, we infer a associated
“subjectivity” to determiner demonstrative, through wich the speaker calls the addressee’s attention to an object, wich gives a discoursive dimension
to this determiner.
PALAVRAS-CHAVE: determinante demonstrativo, sintagma nominal

No presente trabalho focalizamos a questão do sintagma no- fície do texto, mas ancoram em elementos do discurso, da situação
minal demonstrativo1 (SND), tema que vem ocupando cada vez mais cognitiva ou outros para ativar ou introduzir um referente novo como
a atenção de estudiosos. Não temos a pretensão de formular uma se fosse dado. Mesmo inexistindo um vínculo de retomada direta
hipótese sobre o princípio de funcionamento do demonstrativo que entre uma AI e um cotexto antecedente ou posterior, persiste um vín-
se aplicaria a todos os empregos desse determinante e seu uso em culo coerente na continuidade temática que não compromete a com-
português, nem traçar uma diferenciação entre ele e o definido, que é preensão.” (Marcuschi, texto não publicado)
aqui abordado de forma episódica e a título de comparação, mas ape- Se substituirmos o demonstrativo pelo definido, teremos “as
nas apresentar algumas considerações que servem de ponto de parti- pessoas” ocorrendo aqui um caso de uso genérico do definido. Essa
da para uma reflexão sobre o tema. Para iniciar essa reflexão, tome- substituição alteraria o conjunto em que se deve identificar o referen-
mos como exemplo (1) te: tratar-se-ia de todas as pessoas e não só aquelas que deveriam
receber cestas básicas. Aqui o determinante demonstrativo e defini-
(1) Cestas básicas do não se encontram em variação livre.
Será que enfim resolveram acabar com a síndrome ‘vítima- Em vários trabalhos, a abordagem do demonstrativo limita-
coitado’ que assola a mentalidade deste país? Essa maneira de se à oposição dêixis-anáfora, concebida quanto à localização do refe-
pensar é uma das principais causas da indigência social em rente, respectivamente, na situação de enunciação e no contexto
que vivemos. Acabar com a entrega de cestas básicas gratuitas lingüístico. Mas Gary-Prieur e Noailly (1996) apontam um uso insó-
demonstra que estamos começando a tomar consciência de que lito do demonstrativo em textos literários, caso em que o SND não é
para resolver os problemas sociais, temos de iniciar pela pro- usado nem deiticamente (mesmo porque a situação de enunciação de
moção humana, recuperando a auto-estima e a auto-valoriza- um texto literário se reveste de características muito particulares, es-
ção de cada cidadão. tatuto que não cabe discutir aqui) nem anaforicamente (porque não
Claro que há que se buscar alternativas a esse corte, mas que há antecedente explícito). Isso significa que não há nem a presença
sejam alternativas inteligentes, que proporcionem a essas pes- do denotatum no campo perceptivo dos interlocutores (emprego
soas a possibilidade de participar efetivamente das relações de dêitico in praesentia) nem uma menção do referente no contexto ver-
consumo inerentes a qualquer sociedade. (Santiago Torrente bal (emprego dito anafórico). No uso insólito do demonstrativo, ocor-
Perez , Folha de S.Paulo, 29/11/00 – A-3 ) re uma imposição cognitiva, psicológica ou memorial do referente
nas representações mentais do locutor (situação descrita sob o nome
Interessa-nos em (1) a ocorrência de dois SND2 : “esse cor- de dêixis in absentia ou dêixis memorial, entre outros termos usados
te” e “essas pessoas”. No primeiro caso, temos uma nominalização3 , na literatura). Podemos citar como exemplo “extremo”, por se tratar
cuja informação-suporte é “acabar com a entrega de cestas básicas de um texto poético, o poema Retrato, de Cecília Meireles:
gratuitas”, processo que não exige do leitor uma estratégia inferencial
mais complexa. Apothéloz e Chanet (1997: 165) inclusive afirmam (2) Eu não tinha este rosto de hoje,
que, de modo geral, os SN utilizados nas nominalizações manifestam Assim calmo, assim triste, assim magro
uma clara propensão a uma determinação demonstrativa. E acrescen- Nem estes olhos tão vazios
tam que praticamente é possível sempre substituir uma nominalização Nem o lábio amargo.
definida por um demonstrativo, mas não o contrário. Mas, fazendo o
percurso inverso, podemos perfeitamente substituir “esse corte” por Eu não tinha estas mãos vazias
“o corte”. Isso nos leva a reconhecer que em alguns contextos as Tão paradas e frias e mortas
duas formas de determinante se encontram em variação livre.
Caso mais interessante constitui o SND “essas pessoas”. De
* A autora é doutoranda em Lingüística na UNICAMP, sob a orientação da
que pessoas se trata? O determinante demonstrativo aponta para que
Profª Drª Ingedore V. Koch.
antecedente? O uso desse SN pode ser considerado anafórico? Se 1 Abordamos aqui apenas os casos do demonstrativo adjetivo.
buscarmos no contexto prévio, veremos que não há um antecedente 2 Não abordaremos aqui os SND “este país” (emprego dêitico) e “essa
claro para a descrição demonstrativa. No entanto, a expressão em maneira de pensar”., SND constituído de det. + nome + verbo. Apothéloz
questão não oferece qualquer problema interpretativo. Mas, se reti- (1995: 287) aponta que expressões como “esse tipo de...”, “essa espécie
rarmos o primeiro parágrafo, fica evidente que se cria um problema de... “esse gênero de...” – seguidos de substantivos - são operadores que
de interpretação, pois é ele que estabelece o contexto englobante para permitem construir objetos genéricos a partir de uma referência específica
o emprego do SND: trata-se das pessoas que não mais receberão ces- ou, numa outra interpretação, são expressões que problematizam a
categorização lexical do objeto.
tas básicas, actante implícito de “acabar com a entrega de cestas
3 A nominalização constitui uma operação discursiva que consiste em refe-
básicas.” Poderíamos considerar esse SN como um dos casos das rir, por meio de um sintagma nominal, a um processo ou um estado ex-
anáforas indiretas, que constituem “relações referenciais produzidas presso anteriormente por uma proposição. Ao lexema utilizado como
por sintagmas nominais definidos, verbos, adjetivos, pronomes ou núcleo da expressão que marca essa operação denomina-se substantivo
até mesmo orações que não retomam pontualmente ou explicitamen- predicativo; à proposição a que o substantivo-predicativo remete denomi-
te elementos anteriormente (ou posteriormente) presentes na super- na-se informação-suporte. (cf. Apothéloz e Chanet, 1997).

264 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Eu não tinha este coração tramos: [pronomes demonstrativos] “são os que indicam a posição
Que nem se mostra. dos seres em relação às três pessoas do discurso”. Existe um
antropomorfismo no verbo “indicar”, que dota o demonstrativo de
Eu não dei por esta mudança um poder gestual. Mas, na verdade, quem indica? Podemos respon-
Tão simples, tão certa, tão fácil. der que se o demonstrativo indica, essa indicação é dada pelo locutor
Em que espelho ficou perdida e não pelo próprio demonstrativo. Isso se confirma quando o autor
A minha face? (p. 189), abordando os usos desse pronome, afirma no item demons-
trativos referidos a nossas próprias palavras: No discurso, quan-
Os SND “este rosto de hoje”, “estes olhos tão vazios”, do o falante deseja fazer menção ao que ele acabou de narrar
“estas mãos vazias” e “este coração / que nem se mostra” não (anáfora) ou ao que vai narrar (catáfora), emprega este (e flexões).
exigem uma busca da referência no contexto lingüístico ou na situ- Ele cita o seguinte exemplo de Camilo Castelo Branco: “Entrou
ação extra-lingüística. O leitor não é convidado a procurar, fora da Camilo na sala um pouco mais tarde que o costume, porque fora
descrição demonstrativa, um referente com o qual saturar de qual- vestir-se de calça mas cordata em cor e feitio. Não me acoimem
quer forma o designador, mas esse determinante não está despido de arquivista de insignificâncias. Esse pormenor (isto é: o porme-
inteiramente de uma função indexical: ele leva o leitor a compreen- nor a que fiz referência) das calças prende mui intimamente com o
der que se trata de entidades com as quais o locutor tem uma rela- cataclismo que passa no coração de Barbuda”. A interpolação do
ção experiencial, dentro do que Gary-Prieur e Noailly (1996: 118) comentário do gramático, entre parênteses, mostra a subjetividade
chamam de “memória do locutor-autor”4 . Trata-se de uma situa- que acompanha o determinante demonstrativo: trata-se do pormenor
ção que não comporta um interlocutor: o locutor-autor é, nessas a que o eu (= o locutor) se referiu.
situações de “discurso interno”, seu próprio interlocutor5 . Dito de Assim, esse N = o N que eu mostro, o N de que eu falo. Fica
outra forma, o locutor não tem necessidade fornecer nenhum apoio claro que o “gesto” associado ao demonstrativo é do locutor. Mas
externo a seu próprio universo de enunciação; a identificação do Gary-Prieur (1998) aponta ainda que, além dessa face do demonstra-
referente se faz inteiramente no seu universo mental, ou se se quer, tivo, há outra orientada para o destinatário do enunciado. Se se torna
em seu campo memorial (isso não é surpreendente em textos escri- à imagem do gesto, é preciso ver que o demonstrativo coloca em
tos em primeira pessoa). Já o SND “esta mudança” constitui um jogo três instâncias: aquele que mostra, o que é mostrado e aquele a
caso de nominalização, designando as alterações por que passou o quem se mostra. Esse permite apresentar um objeto como sendo
eu-lírico, marcadas pelo tempo verbal (pretérito imperfeito do ligado às pessoas do discurso, o que lhe dá uma dimensão discursiva.
indicativo) e pelo modificador “de hoje”. A autora propõe a seguinte definição para o demonstrativo:
Quanto aos três usos do demonstrativo (dêitico, anafórico e
dêitico memorial), Béguelin (1998) distingue a perspectiva do lo-
Esse N = um x que é um N8 e sobre o qual eu chama atenção de tu.
cutor e alocutário. Na perspectiva do alocutário, os empregos
situacionais e anafóricos são os mais normais porque mais fáceis de
tratar, na medida em que o referente a se identificar se encontra já Essa definição mostra que o referente do demonstrativo, clas-
validado na imagem da memória discursiva6 que se forma desse sificado como N, é identificado para o locutor e não impõe nenhuma
alocutário, por meio dos conhecimentos que ele tem do contexto condição de identificação prévia para o alocutário. Isso pode expli-
em sentido amplo. No momento da ocorrência do SND, M inclui car a contento o emprego insólito desse determinante. E talvez aí
seja a informação de origem perceptual associada ao denotatum,
seja informação construída por via verbal. Os pressupostos7 asso-
ciados à forma lingüística esse N são assim verificados pelo estado
de M, e a competência inferencial do intérprete é apenas modesta- 4 Gary-Prieur & Noailly (1996) afirmam que, embora os lingüistas conside-
rem hoje que o demonstrativo serve para apresentar um objeto “saliente”,
mente solicitada.
isto é, presente na memória imediata do destinatário, a “saliência” do obje-
Do ponto de vista do locutor, ao contrário, a dêixis memorial to introduzido pelo demonstrativo em seu uso insólito está na memória do
tem o mérito de ser pouco restritiva. De maneira egocêntrica, o locu- “locutor-autor”, sendo um objeto localizado em relação ao universo do
tor poupa-se de adaptar estritamente a forma de seu discurso ao esta- sujeito da enunciação.
do presumido de conhecimentos partilhados, utilizando o SND “uni- 5 Aqui o demonstrativo apresenta duas funções opostas: uma função conativa,
lateralmente”; cabe ao alocutário acomodar M a posteriori. Aqui entra por meio da qual o autor convida o leitor a partilhar seu universo, e uma
em jogo um contrato de comunicação fundamentado não sobre a an- função de distanciamento, que o autor usa para remeter o leitor ao exteri-
tecipação de dificuldades interpretativas, mas sobre o apelo à coope- or do universo de seu texto. A primeira provém do esforço de interpreta-
ção requerido por esses demonstrativos, que aproximam leitor e autor e a
ração do alocutário, que deve “verificar” por si mesmo os pressupos-
segunda resulta da recusa de dar ao leitor os meios necessários para identi-
tos inerentes ao SND. ficar o referente. (Gary-Prieur & Noailly, 1996: 119-20)
Como são mais rotineiros e menos suscetíveis de resultar em 6 A memória discursiva (= M) constitui o conjunto evolutivo de conheci-
um incidente interpretativo, os usos situacionais e anafóricos do SND mentos oficialmente partilhados pelos interlocutores, sendo alimentada pelas
acabam passando por modelos. De um modo um pouco provocador, enunciações, pelos elementos percebidos associados à situação de
Béguelin (1998) afirma que esses dois usos do SND constituem ca- enunciação e pelas inferências que deles decorrem.
sos particulares da dêixis memorial, em que um referente, 7 O SND, assim como o definido, constitui caso de designação, pois remete
cognitivamente imposto pelo locutor e “mostrado” como tal pelo SND, a um objeto; daí a eles estar associada a pressuposição existencial referencial.
Mas a pressuposição de existência do definido e do demonstrativo não é da
se encontra validado em M seja por meio do contexto verbal, seja
mesma ordem. No primeiro caso, o emprego referencial resulta do senti-
pelas evidências ligadas à situação de enunciação. Neste caso, as do pressuposicional de unicidade de existência veiculado pelo artigo; no
entradas perceptivas e contextuais não fazem senão confirmar a vali- segundo, a pressuposição de existência do referente não é senão conseqü-
dade de referentes inferidos. ência: o emprego do demonstrativo veicula por si mesmo uma pressuposi-
A partir daí, podemos inferir uma “subjetividade” associada ção existencial. (cf. Kleiber, 1984). O ato de mostrar engaja a pessoa que
ao demonstrativo, que pode ser vista na própria definição gramatical realiza esse ato a crer na existência daquilo que ela mostra.
desse determinante. Em Bechara (2000: 167), por exemplo, encon- 8 Corblin (1987: 209) afirma que o grupo nominal esse N classifica seu
designatum como X.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 265


repouse a dificuldade para a resolução do demonstrativo em relação a partir da informação posterior à sua ocorrência, que, nos dois casos,
aos outros determinantes (indefinido e definido): a instrução semân- se refere às razões/causas de a escola estar cada vez mais chata. Mas,
tica dada pelo demonstrativo é precisamente colocar o referente do em relação ao nosso principal interesse, que diferença poderíamos
SN introduzido em relação com o par eu/tu constitutivo do discurso. apontar quanto à variação dos dois determinantes? Na designação
O fato de o demonstrativo designar um objeto conhecido do com o demonstrativo, o locutor torna saliente o objeto, entre outros
locutor e não necessariamente conhecido do alocutário permite levar que se encontram na memória discursiva do alocutário (leitor), como
à hipótese de que essa forma tem duas faces superpostas: sempre “os resultados do sistema Nacional de Educação do MEC”, “a
remete a alguma coisa conhecida e apresenta alguma coisa como nova. pesquisa deste ano”, “queda de aproveitamento nas escolas par-
(De Mulder, 1998). O demonstrativo traz o novo seja porque intro- ticulares”. Com essa estratégia, o locutor chama a atenção do alocutário
para esse objeto; com o definido, o que está ausente é justamente essa
duz um referente no discurso, seja porque ele assinala uma mudança
saliência.
de estatuto discursivo (uma mudança de foco), seja porque ele situa
um referente em um novo universo de consciência. Assim, o SND
À guisa de conclusão (provisória)
não serve para marcar a continuidade pura e simples de uma menção
anterior, mas ele leva sempre o novo no sentido de marcar seja a
a) O demonstrativo, em todos os seus empregos, têm um caráter
saliência do referente, seja uma modificação do estatuto temático.
indexical: trata-se de apresentar o referente como “aquele que eu
Entre as funções textuais do demonstrativo, Apothéloz (1995), mostro, aquele de que eu falo”;
aponta uma função em que esse determinante chama a atenção de um b) Esse caráter indexical carrega em si uma subjetividade: o aponta-
objeto entre outros objetos localmente salientes ou designa um obje- mento é da responsabilidade do locutor;
to que deixou de ser o centro do campo de atenção por outro objeto c) O demonstrativo apresenta um referente como novo (para o
promovido a esse estatuto. Mas como já pontuamos neste trabalho, alocutário) – no sentido apontado mais acima - e velho (para o locu-
essa saliência, ou o seu correlato psicológico, a atenção, diz respeito tor), tornando-o saliente.
a um objeto localizado em relação ao universo do sujeito da
enunciação. Resta ainda precisar muitos pontos, como por exemplo, a
A título de ilustração, vejamos dois textos de Gilberto função textual do SND, a possível restrição de sua função sintática, a
Dimenstein, publicados, respectivamente, no caderno A e C da edi- função dos modificadores que porventura o integrem , a sua relação
ção da Folha de S.Paulo de 29/11/2000. com gêneros de discurso, entre outros. Mas isso é motivo para uma
pesquisa mais ampla.
(3) Ao analisar os resultados do sistema Nacional de Educação
do MEC, o ministro Paulo Renato Souza (Educação) afir mou Referências Bibliográficas
que “a escola está cada vez mais chata, e o aluno cada vez
mais dispersivo ou indisciplinado”. APOTHÉLOZ, D. Rôle et fonctionnement de l’anaphore dans la
A pesquisa deste ano mostrou queda de aproveitamento nas dynamique textuelle. Genève: Droz, 1995.
escolas particulares. APOTHÉLOZ, D., CHANET, C. Défini et démonstratif dans les
Para Paulo Renato, esse “efeito chatice” é provocado por nominalisations. In DE MULDER, Walter e Carl Vetters (eds.)
duas razões centrais: a falta de reciclagem das es Relations anaphoriques et (in)cohérence. Amsterdam: Rodopi,
colas e a grande oferta de conhecimento fora da 1997. p. 159-86.
sala de aula, principalmente na Internet. BECHARA, E. Moderna Gramática Portuguesa. 37.ed. revista e
ampliada. Lucerna: Rio de Janeiro, 2000.
(4) “A escola está cada vez mais chata, e o aluno cada vez mais BÉGUELIN, M-J. L‘usage des SN démonstratifs dans les Fables de
dispersivo ou indisciplinado”, disse ontem o ministro da Edu La Fontaine. In Langue Française. Paris: Larousse, 1998, n.
cação, Paulo Renato Souza, ao analisar os resultados do Saeb 120, p. 95-109.
(Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica do CORBLIN, F. Indéfini, défini et démonstratif. Genève: Droz, 1987.
MEC), que mostram queda de aproveitamento nas escolas DE MULDER, W. Du sens des démonstratifs à la construction
particulares, conforme revelou a Folha, na edição de ontem. d’univers. In Langue Française. Paris: Larousse, 1998. n. 120,
O “efeito chatice” é provocado porque, de um lado, a escola p. 21-32.
não se reciclou, o professor interage pouco com os alunos, os GARY-PRIEUR, M-N, NOAILLY, M. Demonstratifs insolites. In
conteúdos devem ser decorados, as matérias estão distantes Poetique. Seuil, 1996, n. 105, p. 111-21.
da realidade. GARY-PRIEUR, M-N., LEONARD, M. Le démonstratif dans les
textes et dans la langue. In Langue Française. Paris: Larousse,
Nesses textos, chama-nos a atenção o uso do demonstrativo 1998. n. 120, p. 5-20.
e do definido no SN “efeito chatice”. Nos dois casos, trata-se de KLEIBER, G. Sur la sémantique des descriptions demonstratives.
uma denominação reportada, fator que, segundo Apothéloz e Chanet In Lingvisticæ Investigationes. Amsterdam, 1984, p. 63-85.
(1997), favoreceria o uso do demonstrativo. Não se trata, é óbvio, de MARCHUSCHI, L.A. Anáfora indireta: o barco textual e suas ân-
uma coerção e o uso do definido atesta isso. Observamos ainda que, coras. (Texto não publicado)
ao contrário de “chatice”, o termo “efeito” ativa um novo referente

266 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A configuração neuronial na compreensão leitora
José Marcelino Poersch
Pontifícia Universidade Católica do Rio grande do Sul

ABSTRACT - Reading comprehension requires the explanation of how to shift from a digital, discrete reality (text) to an analogic, continuous one
(thought). Such transformation cannot be explained by means of a serial processing of abstract and fixed symbols stored in mind, but rather by a
parallel distributed processing of flexible and fine-grained constituents engrammed across neural networks (brain), where mind is nothing but such
neural functioning.
PALAVRAS-CHAVE - Compreensão leitora - Conexionismo - Conhecimento - Sinapses

1 - Introdução 2. Os estímulos externos secundários correspondem a dados sobre


a língua, dados obtidos a partir de fontes secundárias orais ou gráficas,
Entendendo conhecimento lingüístico como todo conhecimento sob a forma de metalinguagem (gramáticas, livros e apresentações orais
acerca da linguagem, ele se refere fundamentalmente aos diversos ou escritas) sobre línguas e linguagem. Esses estímulos distinguem-se
níveis de análise lingüística, aos aspectos que presidem a manipula- dos anteriores por não se referirem à língua como desempenho mas à
ção da língua e às áreas limítrofes da lingüística com outras ciências. língua como objeto de análise (metalinguagem). É aqui que se coloca a
A apropriação desse conhecimento realiza-se através de alterações problemática analisada no presente artigo. Os textos de gramáticas e
na força das sinapses neuroniais, alterações motivadas pelo de outros livros com conteúdo lingüístico, através da leitura, constitu-
processamento de insumos externos – fornecidos pelas experiências em fontes de conhecimento lingüístico. 3. Os estímulos internos pro-
com o mundo circundante e pela informação fornecida via lingua- vêm do processamento interneuronial e constituem as unidades inter-
gem – e de insumos internos – dados previamente engramados nas mediárias. Como respostas internas a estímulos externos podem, por
redes neuroniais. O aprendizado e o uso da leitura pressupõem a alte- sua vez, produzir respostas externas. Tem-se acesso parcial a esses dados
ração de ligações sinápticas específicas. Se de um lado, tem-se a cons- através de atividade introspectiva, através de análise de protocolos ver-
trução de correspondências entre dados gráficos e sua sonorização bais e através da análise da relação entre estímulos externos e respostas
(recodificação), de outro lado, processa-se a correspondência entre externas. Essas atividades nos levam à formulação de hipóteses sobre
as expressões sonoras e seu respectivo conteúdo (decodificação). ‘A esse funcionamento. As respostas que se obtêm através dessas três fontes
construção dessas correspondências devem ser acrescentadas, na de estímulos constituem nosso conhecimento prévio enciclopédico, em
aprendizagem da leitura, capacidades de incluir na texto as devidas geral, e do nosso conhecimento lingüístico, em particular. Uma vez
pressuposicões e de fazer as inferências apropriadas – a partir dos
obtido esse conhecimento, ele é armazenado, sofre constante
dados trazidos pelo texto e pelo conhecimento de mundo – a fim de
processamento e, quando ativado por estímulos apropriados, estará
que o leitor passe a configurar em seu cérebro uma substância de
disponível, será recuperável.
conteúdo semelhante àquela existente no cérebro do escritor ao pro-
Existem diversos paradigmas que podem explicar a apropria-
duzir o texto. No ato de leitura, o processo de compreensão inclui,
ção do conhecimento, isto é, sua percepção, seu armazenamento e
obrigatoriamente, a passagem do digital, do discreto (texto) ao
sua recuperação. Comparamos esses paradigmas às maneiras diver-
analógico (configuração cerebral). Essa passagem não pode ser
sas com que um observador pode analisar uma indústria de
explicada mediante um processamento serial de símbolos abstratos e
processamento – metáfora da indústria de processamento. O ana-
fixos, armazenados e prontos na mente, mas privilegia um
lista 1, posicionando externamente à indústria, observa o material
processamento de distribuição em paralelo de dados flexíveis
engramados na rede neuronial (cérebro), onde a mente nada mais é que entra (insumos) e o material que sai (produto); nada sabe sobre
do que esse funcionamento. Embora esse processamento seja serial, os processos de transformação a que eles estão sujeitos no interior
isto é, se processe à medida que o texto é lido, cada etapa desse da fábrica. Esta constitui uma caixa preta. Através de um estudo
processamento constitui a resposta de um cem número de estímulos minucioso de confrontação e de comparação entre os insumos e os
que atuam em paralelo. No final da leitura, o leitor tem o conteúdo produtos, o analista consegue descobrir como os produtos variam
presente como se fosse uma fotografia “ad hoc” de todas as conexões segundo os tipos de insumos: sua origem, suas qualidades, sua quan-
estabelecidas, sendo que, na recordação, aparece em primeiro lugar tidade, sua estrutura. Descobre também que o processamento sofre
aquele conteúdo mais fortemente gravado. Se alguém for resumir um a influência de outras variáveis, em forma de outros insumos, que
texto ele percorrerá um caminho inverso: tomará discreto o conteúdo alteram o produto; constitui uma questão secundária a maneira como
correspondente ao essencial do texto original, conteúdo presente na isso acontece. O analista 2, embora também posicionado fora do
memória de forma analógica. complexo industrial, ao analisar o produto, verifica que este nem
sempre varia de acordo com as alterações dos insumos. Movido
2 - A Metáfora da Indústria de Processamento pela curiosidade, tenta desvendar o que acontece dentro da caixa
preta: levanta hipóteses sobre o processamento interno da fábrica.
A apropriação do saber lingüístico se realiza através de res- Acredita que os -insumos sejam submetidos a diversos tratamentos
postas fornecidas a três tipos de estímulos: estímulos externos pri- mecânicos e químicos que constituem variáveis internas, estímulos
mários, estímulos externos secundários e estímulos internos. 1. Os intermediários. Nada sabe com absoluta certeza, são somente
estímulos externos primários correspondem aos dados que o apren- conjecturas que permitem explicações plausíveis. O analista 3, di-
diz coleta na comunidade lingüística na qual ele se insere. Esses da- ante de explicações insatisfatórias, resolve entrar na fábrica. Aí
dos são oferecidos pelos falantes e engramados no cérebro (altera- verifica a existência de dispositivos (mecanismos) diversos causa-
ções de sinapses) segundo condicionamentos probabilísticos dores de processamentos mecânicos e químicos. A partir desse
(Seidenberg & MacDonald, 1999) por um lado, e de outro, por cons- processamento, examina em maior profundidade as diferenças ob-
trangimentos motivacionais, afetivos, emocionais (Schumann, 1994). servadas no produto e chega a explicações melhor fundamentadas.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 267


3 - Paradigmas que explicam a obtenção do conhecimento a seus tamanhos, suas formas, suas funções e suas relações; o que
lhes é comum é sua estrutura triádica: corpo celular (núcleo), axônio
O conhecimento que se tem de certa realidade depende do ponto e dendritos. O axônio é o meio pelo qual um neurônio se comunica
de vista de sua análise. Quando se trata da apropriação de qualquer com outros. Os dendritos são ramificações do corpo celular que
saber, em geral, e de saber lingüístico, em particular, existem três funcionam como receptores da informação provinda de outros
paradigmas; que correspondem aos três analistas acima citados. O neurônios através dos axônios. O ponto de encontro de um neurônio
primeiro corresponde ao paradigma comportamentista; o segundo e um dendrito – onde ocorre a conexão interneuronial – é denomi-
exemplifica o simbólico; o paradigma conexionista é instanciado pelo nado sinapse.
terceiro. O problema não reside na fato de taxar este ou aquele Afirma-se que o cérebro altera sinapses para adquirir conhe-
paradigma de certo ou errado; trata-se de encontrar aquele com mai- cimento novo; a aprendizagem, além de reforçar sinapses também
or força explicativa. provoca reajustes nas redes neuroniais já existentes. Os neurônios
O comportamentista (behaviorista) fundamenta a aquisição ajustam a força de suas sinapses durante o processamento da infor-
na experiência. Segue a cartilha de Aristóteles: “Nihil est in intellecto mação. Assim, a aquisição de conhecimento está relacionado a mu-
quod prius non fuerit in sensibus”. Corresponde à metáfora da “tabu- danças sutis nas conexões neuroniais (sinapses).
la rasa”, segundo a qual todo ser, ao nascer, possui nenhum conheci- Todo dado de entrada constitui um estímulo. Se esse dado
mento; este é adquirido pela experiência, através dos sentidos. O ana- encontrar uma resposta – isto é, um caminho interneuronial previa-
lista observa o cérebro humano e vê que este recebe estímulos aos mente marcado, dizemos que houve uma ativação, uma recordação;
quais são dadas determinadas respostas. Qualquer alteração no pri- isso não constitui aprendizagem, não constitui conhecimento novo.
meiro provoca alterações no segundo. Tudo acontece no cérebro, no Se não for encontrado um caminho marcado, será necessário que
orgânico; negam a existência da mente. O cérebro, constituído de esse dado (novo) seja integrado a algum conhecimento existente. Para
milhares de células nervosas, os neurônios, serve de mediador entre isso, é preciso traçar um novo caminho, estabelecer uma nova cone-
um estímulo e uma resposta. O processamento no cérebro não é xão interneuronial. Adquirimos conhecimento, aprendemos.
prioritário, constitui uma caixa preta. Aprender significa saber dar
a devida resposta a determinado estímulo. 5 - Ler é compreender; compreender é recordar e aprender
O simbolista pleiteia a existência da mente como realidade
distinta, embora não separada, do cérebro. A fala, em sua realidade A leitura consiste na configuração cerebral de um conteúdo a
física, serve para expressar o pensamento, realidade mental. Preten- partir de um texto (expressão). Consiste em transformar, para fins de
de desvendar os processos cognitivos da linguagem: formula hipóte- comunicação (linguagem) uma seqüência discreta (de letras, de pa-
ses sobre o funcionamento da “caixa preta”, isto é, o que acontece no lavras, de frases), apresentada serialmente – uma unidade após outra
espaço que separa o estímulo de sua respectiva resposta. A idéia bá- –, para uma realidade analógica, “fotografada” (pensamento). Essa
sica dos simbolistas é a de que a cognição humana depende central- realidade pode representar um contínuo (mapa, fotografia, desenho,
mente da manipulação de representações simbólicas (signos, concei- esquema) de um conjunto de quadros, de fatos, de idéias ou de argu-
tos) processados em série segundo regras fixas, os algoritmos. Exem- mentos).
plo característico desse paradigma é o signo lingüístico (Saussure) e Dessa maneira, o processo de compreensão insere-se, funda-
a teoria dos esquemas mentais (Schank e Minsky). Grande parte dos mentalmente, na relação pensamento/linguagem. Tanto a leitura quan-
simbolistas defende o inatismo lingüístico (regras inatas). Aprender to a escritura revestem-se dessa relação, embora seguindo orienta-
significa representar na mente a realidade existente. ções opostas: do pensamento (conteúdo) ao texto (expressão) – es-
Baseado na falta (ou pobreza) de explicações relacionadas aos critura – ou do texto ao pensamento – leitura.
problemas oriundos da distinção mente/cérebro, do arquivamento de A compreensão da compreensão inclui, obrigatoriamente, a
conceitos (ou esquemas), da serialidade do processamento mental, explicação de como passar do digital, do discreto (texto) ao
da passagem do pensamento à fala, o conexionista tenta penetrar no analógico, a uma unidade contínua (pensamento). Essa passagem
cérebro através dos achados da neurociência e das avarias cerebrais. não pode ser explicada mediante um processamento serial de sím-
Com esses dados, as hipóteses levantadas para desvendar os mistéri- bolos abstratos e fixos armazenados na mente mas através de um
os da cognição são, seguramente, melhor fundamentadas e mais na- processamento de distribuição em paralelo de dados flexíveis
turais. O paradigma conexionista baseia-se na estrutura eletro-quí- engramados na rede neuronial (cérebro) onde a mente nada mais é
mica das conexões estabelecidas entre os sem-número de neurônios do que esse funcionamento.
que captam o conhecimento, não em forma de símbolos prontos, como A construção do sentido se processa da seguinte maneira. O
um todo, mas de traços disseminados e engramados nesses neurônios, texto fornece dados que são percebidos, captados pelos olhos; o
tridimensionalmente conectados. O conexionista procura explicar os nervo ótico conduz essa percepção ao cérebro. É no cérebro que se
processos mentais com base em configurações desenhadas “ad hoc”, inicia o processamento desses dados com aqueles previamente arma-
em forma fotográfica, nas redes neuroniais. Contrapões, ao inatismo, zenados. Como conhecimento significa conexão sináptica, se deter-
o culturalismo: todo saber é adquirido através da experiência. O cé- minado dado (input) encontrar caminho (conexão) para outro dado
rebro é a sede desse saber; a mente, que não tem existência própria, armazenado, esse dado é ativado. Houve recordação e, automatica-
nada mais é do que o seu funcionamento. Aprender significa, essen- mente, a sinapse será reforçada. Se essa ativação não for possível,
cialmente, alterar a força das sinapses neuroniais. não encontrar caminho previamente traçado, o dado de entrada deve
ser integrado a algum dado já armazenado. Essa integração consiste
4 - Aprender é alterar sinapses neuroniais em estabelecer uma nova conexão; isso significa aprender. Esse novo
conhecimento passa a constituir conhecimento prévio para o
A unidade básica do cérebro é constituída pelo neurônio. processamento do resto do texto.
O funcionamento do cérebro humano caracteriza-se por uma extre- Embora esse processamento seja serial, isto é, se processe à
ma plasticidade, uma ampla flexibilidade e uma impressionante rapi- medida que o texto é lido, cada etapa desse processamento constitui
dez, além da capacidade de operar com vários estímulos ao mesmo a resposta de um cem número de estímulos que atuam em paralelo.
tempo – processamento de distribuição em paralelo (Rumelhart & No final da leitura, o leitor tem o conteúdo presente como se fosse a
McClelland, 1986). Os neurônios variam substancialmente quanto fotografia “ad hoc” de todas as conexões estabelecidas sendo que, na

268 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


recordação, aparece em primeiro lugar aquele conteúdo mais forte- Referências bibliográficas
mente gravado. Se alguém for resumir um texto (produção) ele per-
MINSKY, Marvin. (1981). A framework for representing knowledge.
correrá um caminho inverso. Tornará discreto aquele conteúdo cor-
In: J. Haugeland (ed), Mind Design. Cambridge: MIT Press.
respondente ao essencial do texto primitivo, conteúdo presente de págs. 95-128;
forma analógica, no seu todo. RUMELHART, D.E. & MCCLELLAND, J.L. On learning the past
tense of English verbs. In: J.L. Mcclelland, D.E. Rumelhart, and
6 - Conclusão the PDC Research group (eds.), Parallel distributed precessing:
explorations in the microstructure of cognition, vol 2. Cambridge:
Ao longo desta comunicação analisamos a proposta de The MIT PRESS, 1986. págs.216-271;
que o conhecimento lingüístico consiste, além do conhecimento de SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo:
um determinado idioma (competência e desempenho), no conheci- Cultrix, 1971;
mento sobre a língua (descrição, metalinguagem) e sobre aspectos SCHANK, Roger C. Reminding and memory organization. In: Paul
de uso (aquisição, ensino/aprendizagem, pragmática). Segundo a R. Clyne, William F. Hanks and Carol L. Hofbauer (eds.). Papers
visão conexionista, aprender significa alterar a força das sinapses from the Fifteenth Regional Meeting, Chicago Linguistic Society.
entre os neurônios. Ler representa uma atividade de recordação e Chicago: University of Chicago, 1979. págs.455-49);
de aprendizagem. A apropriação do saber lingüístico através da for- SCHUMANN, John H. Where is cognition? Emotion and cognition
ma gráfica (código escrito) diz respeito aos aspectos de in second language acquisition. Studies on Second Language
metalinguagem e de uso do código. Essas proposições nos levam a Acquisition (Cambridge University Press), 16, págs.231-242,
afirmar que ler é compreender e que compreender é recordar e apren- 1994;
der. O conhecimento lingüístico armazenado na forma escrita está SEIDENBERG, Mark S. and MacDONALD, Maryellen C. A
disponível via leitura. É nesse sentido que afirmamos que a leitura probabilistic constraints approach to language acquisition and
constitui fonte de saber lingüístico. processing. Cognitive Science, vol 23 (4), págs.569-588, 1999.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 269


Vygotsky e o conexionismo:
aproximações e diferenças
Heloísa Stefan
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

ABSTRACT - Connectionism can be considered a new alternative to explain how linguistic knowledge is acquired. However, this new approach
appears to have emerged already with Vygotsky. So, in spite of some differences, both Vygotsky and connectionism share some ideas: concepts are
unstable entities, subject to changes provided by new experiences.
PALAVRAS-CHAVE - Formação de Conceitos, Vygotsky, conexionismo

Introdução ência pessoal. Mas os conceitos continuam a se desenvolver e tor-


O paradigma conexionista apresenta-se como uma abordagem nam-se diferentes quando inicia o aprendizado escolar. Nessa fase, o
alternativa para explicar a obtenção do conhecimento lingüístico. professor intervém na formação dos conceitos das crianças, e as trans-
Trata-se de um paradigma relativamente novo, mas que parece ter formações de significado não ocorrem mais apenas a partir da expe-
suas origens já no início do século XX, com Vygotsky, que pode ser riência vivida (conceitos espontâneos), mas a partir de definições
considerado, de certa forma, um precursor de algumas idéias do estabelecidas pela cultura (conceitos científicos). Dessa forma, a cri-
conexionismo (como também é conhecido o paradigma conexionista), ança, que por si própria diferenciou lua de qualquer outro foco de
em especial no que tange à formação de conceitos. luz, aprende na escola que lua é também um satélite da terra, e assim
Assim, são feitas algumas aproximações entre a abordagem de por diante.
Vygotsky e a do conexionismo, sem, no entanto, deixar de apontar Apesar de diferentes, os dois tipos de conceitos estão muito
diferenças básicas e sinalizar os avanços teóricos do conexionismo relacionados e se influenciam mutuamente; frente a um conceito sis-
em relação à abordagem de Vygotsky. tematizado desconhecido, a criança busca significá-lo por meio de
sua aproximação com outros já conhecidos, elaborados e
O processo de formação de conceitos segundo Vygotsky internalizados. Ela busca enraizá-lo na experiência concreta. Da mes-
ma forma, um conceito espontâneo nebuloso aproximado de um con-
Ao preocupar-se com a relação entre pensamento e linguagem, ceito sistematizado coloca-se em um quadro de generalização.
com a cultura como mediadora do processo de funcionamento psico- Assim, a formação de conceitos é o processo pelo qual a crian-
lógico do indivíduo, Vygotsky preocupou-se também com a maneira ça aprende a linguagem de seu meio, utilizando-a, cada vez melhor,
como os conhecimentos e significados são internalizados e elabora- para ordenar, classificar, especificar objetos e situações do mundo
dos socialmente (Rego, 1996). real em conceitos, chegando então ao desempenho adulto, quando
Para Vygotsky, os conceitos são vistos como um sistema de pode comunicar suas idéias de modo mais simplificado e generaliza-
relações e generalizações contidas nas palavras e determinado por do, além de pensar sobre sua própria linguagem e sobre seu próprio
um processo histórico cultural. É o grupo cultural onde o indivíduo pensamento.
se desenvolve que vai lhe fornecer o universo de significados que São três as fases descritas por Vygotsky em seu experimento
ordena o real em conceitos nomeados por palavras da língua desse para o estudo da formação de conceitos. Na primeira fase, a criança
grupo (Oliveira, 1997). Por exemplo, ao se falar em “mesa”, enun- agrupa ao acaso objetos percebidos isoladamente em um amontoado.
cia-se uma palavra que tem um determinado significado. Esse signi- Nessa fase, são formados conjuntos sincréticos de objetos, que têm
ficado, além de possibilitar a comunicação entre os falantes, também como base nexos vagos instáveis e subjetivos, não-relacionados aos
define um modo de organizar o mundo real de forma que essa pala- atributos relevantes dos objetos.
vra se aplica a alguns objetos e não a outros. Na segunda fase, ocorrem algumas mudanças, quando os ob-
A utilização da linguagem favorece processos de abstração e jetos isolados são associados pela criança devido às suas impressões
generalização, pois os atributos relevantes de determinado objeto têm subjetivas e às relações que de fato existem entre esses objetos. As
de ser abstraídos da totalidade da experiência, para depois serem ge- ligações entre os objetos são concretas e factuais, sendo descobertas
neralizados sob um mesmo conceito. Cada palavra se refere a uma por meio da experiência direta.
classe de objetos, consistindo em um signo, em uma forma de repre- Na terceira fase, por fim, a criança começa a agrupar objetos
sentação de um conceito. com base em um único atributo, sendo capaz de abstrair característi-
Segundo Vygotsky (Vygotsky, 1995), os conceitos estão em cas isoladas da totalidade da experiência concreta. Aqui, a criança
constante transformação, pois as línguas acompanham a evolução precisa abstrair e isolar elementos e também examiná-los separada-
dos grupos humanos. Os significados não são estáticos; eles sofrem mente da experiência concreta da qual fazem parte.
modificações, refinamentos e acréscimos. Da mesma forma que acon- Conforme Vygotsky (Vygotsky, 1995), esse processo que re-
tece com as línguas, a transformação dos significados também ocorre sulta na formação de conceitos começa na fase mais precoce da in-
no processo de aquisição da linguagem pela criança. As generaliza- fância, mas as funções intelectuais que formam a base psicológica
ções contidas em uma palavra mudam ao longo de seu desenvolvi- desse processo amadurecem, configuram-se e se desenvolvem so-
mento. Um exemplo conhecido é a aprendizagem da palavra “lua”, mente na puberdade. No entanto, se o meio não desafiar, exigir e
que no início pode designar não só a lua, mas também qualquer foco estimular o intelecto do adolescente, esse processo poderá se atrasar
de luz visível à noite. ou mesmo não se completar, isto é, poderá não atingir estágios mais
Esse processo de formação de conceitos pode ser visto nas elevados de raciocínio. A escola tem grande influência nesse proces-
fases iniciais de aquisição da linguagem, quando o vocabulário e o so porque possibilita que o indivíduo tenha acesso ao conhecimento
conhecimento da criança sobre o mundo crescem a partir da experi- científico construído e acumulado pela humanidade.

270 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Os conceitos segundo o conexionismo tura interdisciplinar. Vygotsky escreveu sobre diversos temas: arte,
literatura, lingüística, filosofia, neurologia, estudo das deficiências,
O objetivo do paradigma conexionista é estudar como se dá a
educação, psicologia, todos com um enfoque comum que não separa
aquisição de conhecimento pelo cérebro humano, e, mais precisa-
os indivíduos da situação cultural em que se desenvolvem. Da mes-
mente, na área da Lingüística, como se dá a apropriação do saber
ma forma, o paradigma conexionista também se apresenta como uma
lingüístico em um cérebro que trata informação graças a um sistema
ciência interdisciplinar: na lingüística, por exemplo, o objeto de es-
composto por milhões de neurônios interconectados, os quais, medi-
tudo é a língua, mas suas contribuições para o estudo de como se dá
ante um determinado input, reforçam ou enfraquecem certas cone-
a apropriação do saber lingüístico vêm dos conhecimentos de áreas
xões, produzindo, então, um output.
como a neurobiologia, a computação (com suas simulações), a mate-
Seu ponto principal, então, é a questão da aprendizagem, que
mática, a estatística. Além disso, no conexionismo, o ambiente exter-
ocorre mediante a estimulação freqüente de certos conjuntos de
no, como a cultura para Vygotsky, exerce muita influência sobre o
neurônios. O processo de aprendizagem de um conhecimento ocorre
ambiente interno, o cérebro.
de acordo com as alterações de força que acontecem nas sinapses. Se
Outra aproximação é esta: para ambas as posições, o conceito,
determinada rede neuronial se torna bastante reforçada, ocorre apren-
que é uma forma de organizar a informação e o conhecimento que
dizagem. Então, aprender, para o conexionismo, é reforçar sinapses.
provêm do mundo real, não é adquirido pronto, mas é algo construído
Segundo o conexionismo, os conceitos são armazenados em
gradativamente por meio da aprendizagem da linguagem falada ao
redes de células nervosas (redes neuroniais) de forma fragmentada,
redor da criança, da observação direta, da manipulação de objetos e
distribuída e difusa no cérebro, e não de forma inteira, como um todo
de sua vivência em um grupo cultural. Novamente surge a importân-
e em um lugar fixo, como em bloco ou um módulo. Assim, os con-
cia dos estímulos do meio sobre o cérebro.
ceitos estão distribuídos nos neurônios, sendo que um só neurônio
Além disso, outra aproximação refere-se ao fato de que um
não possui todas as informações que compõem um conceito, e sim
conceito não é armazenado em um bloco ou módulo específico e fixo
apenas traços dessas informações.
no cérebro. Vygotsky já afirmava que as funções mentais não se loca-
É por isso que é difícil que redes neuroniais e cérebros percam
lizavam em pontos específicos do cérebro. Por sua vez, conforme o
informações inteiras. É assim que se explica como um conceito pode
conexionismo, os traços que contêm as informações que formam um
ser ativado ou recuperado por diferentes estímulos sensoriais exter-
conceito são engramados nas células nervosas do cérebro, de forma
nos, sejam visuais, auditivos, olfativos, táteis. Determinado conceito
difusa, fragmentada e distribuída.
se torna acessível por meio de diversas rotas, e não uma só, visto que
Mais uma aproximação: os conceitos são, para Vygotsky, cons-
se encontra distribuído nas redes neuroniais que o armazenam de
truções culturais internalizadas pelos indivíduos ao longo do seu de-
acordo sua via de entrada, que pode ter sido olfativa, visual, ou outra
senvolvimento, que fazem parte ativa do processo intelectual, e não
(Teixeira, 1998).
formações isoladas e imutáveis. O conexionismo, como já foi discu-
Então, os conceitos, sob a perspectiva do conexionismo, não
tido, considera os conceitos como configurações ad hoc que surgem
são entidades estáticas, mas sim que mudam de acordo com a experi-
a partir de uma necessidade interna ou externa, não sendo constru-
ência com o meio.
ções estáveis porque mudam a cada nova experiência relacionada do
A formação de conceitos no conexionismo baseia-se na apren-
indivíduo. Ambas as posições sustentam, portanto, que um conceito
dizagem, o que implica que esse processo envolve reforço das cone-
não é uma entidade estável e fixa, localizada em um determinado
xões entre os neurônios. Ocorrem alterações em sinapses específi-
lugar do cérebro, pronta para ser acionada e utilizada. O conceito é
cas, sendo que algumas são mais reforçadas do que outras, o que
uma entidade instável, flexível, sujeita a mudanças e reformulações
propicia o estabelecimento da aprendizagem. Essas sinapses mais
de acordo com as novas conexões que vão sendo feitas, conforme a
reforçadas sempre se ligam às já existentes e têm poder de transformá-
aprendizagem se efetiva no desenvolvimento do indivíduo, seja du-
las, assim como as já existentes também têm o poder de facilitar o
rante a vida pré-escolar (período dos conceitos espontâneos) ou na
reforço de novas sinapses. Assim, todo novo conceito construído vai
escolar em diante (conceitos científicos).
produzindo mudanças nos já existentes, enquanto os já engramados
Outra aproximação entre as duas abordagens diz respeito ao
podem facilitar ou não a aprendizagem desses novos conceitos.
fato de que todo conhecimento novo conecta-se ao conhecimento já
Resumindo, um conceito pode ser visto como um recorte da
existente, alterando-o e a si próprio. Na primeira fase da formação de
realidade em um determinado momento. Se um conceito é uma enti-
conceitos segundo Vygotsky, os objetos são agrupados em amontoa-
dade instável e dinâmica, enfim, uma configuração ad hoc, então ele
dos, conforme a percepção da criança, com nexos vagos. Com o au-
está representando a realidade naquele momento: com os dados en-
mento da interação e da aprendizagem, a criança vai construindo novos
tão disponíveis engramados na memória é que o sujeito constrói um
conceitos e, portanto, vai conectando-os com aqueles já existentes.
conceito, e este é um retrato da realidade cerebral daquele instante.
Rapidamente ela chega à fase dos complexos, quando então agrupa
Em um outro momento, entretanto, ainda que os estímulos sejam os
objetos sob um mesmo conceito, segundo impressões subjetivas e
mesmos, o conceito construído será diferente porque a experiência
ligações concretas existentes entre os objetos. À medida que adquire
do sujeito se modificou: novos dados foram acrescentados aos já exis-
mais experiência, altera aqueles conceitos que já possuía, chegando
tentes e reorganizações conceituais ocorreram a partir deles. Assim,
à fase em que agrupa objetos segundo um único atributo. No
o conceito será diferente em momentos distintos: poderá estar mais
conexionismo, um conceito novo constitui um reforço de determina-
evoluído, se a experiência por que passou o sujeito acrescentou da-
das sinapses que já possuem outros conceitos engramados. O novo
dos novos e importantes que modificaram a informação já existente;
conceito que é aprendido, depois disso, tem o poder de alterar pesos
por outro lado, o conceito poderá estar empobrecido se a experiência
de outras sinapses, que são responsáveis por outros conceitos, modi-
do sujeito não tiver acrescentado dados novos fundamentais ou se
ficando, assim, as futuras configurações e influindo na aprendiza-
tiver acrescentado dados equivocados.
gem de novos conceitos.
Sendo assim, a formação de conceitos de Vygotsky pode ser
Aproximações entre Vygotsky e o conexionismo
considerada como precursora de algumas idéias conexionistas por
Em primeiro lugar, uma aproximação a ser feita, esta entre o mostrar que existe uma evolução, um crescimento, uma alteração dos
próprio Vygotsky e o paradigma conexionista, relaciona-se à sua pos- conhecimentos dados a partir de conhecimentos novos. Com o au-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 271


mento da experiência, do desafio, da atividade, da interação, a criança mento cognitivo, o que parece fazer crer que ele estaria usando apenas
constrói, formula e reformula conceitos, até atingir seu grau mais abs- conceitos abstratos a partir de então.
trato, isto é, até compreender também o significado das palavras que Segundo o conexionismo, os conceitos estão em constante
não possuem apenas referentes concretos na sua experiência. reformulação até o final das nossas vidas, visto que estamos sempre
Continuando, o conceito é formado a partir de conhecimentos aprendendo, isto é, sempre novos dados estão sendo processados pelo
individuais e experiências particulares. A criança inicia a organiza- nosso cérebro. Ainda conforme o conexionismo, o fato de se chegar
ção de sua experiência separando o que é particular do que é compar- a compreender e usar conceitos abstratos não indica que depois deste
tilhado pela cultura. Outra forma de aproximação entre Vygotsky e nível se pare de fazer uso de conceitos concretos, pois muitas vezes
esse aspecto do conexionismo é quanto aos conceitos espontâneos e há mais necessidade de um conceito com referente concreto do que
científicos. O conceito espontâneo também é construído com base na abstrato nas interações do dia-a-dia. Assim, o conexionismo aponta
experiência pessoal concreta e cotidiana, por meio da observação, para uma flexibilidade cognitiva maior, segundo a qual se pode utili-
manipulação e vivência direta, enquanto o conceito científico é ad- zar conceitos abstratos e concretos independentemente de se estar na
quirido por meio da instrução escolar, não sendo acessível à observa- infância, na adolescência ou na idade adulta. Há um constante fluxo
ção direta. A criança, primeiramente, constrói seus conceitos espon- de informações que estão sempre à disposição, e há uma imensa pos-
tâneos a partir de suas experiências. Mais tarde, quando inicia o apren- sibilidade de combinação entre elas, o que permite que novos con-
dizado escolar, começa a adquirir os conceitos científicos, que são ceitos, concretos ou abstratos, se formem ad hoc, dependendo da
compartilhados pela cultura. necessidade.
Portanto, a formação de conceitos baseia-se na aprendizagem. Outra diferença básica diz respeito ao fato de Vygotsky consi-
A entrada na escola produz várias mudanças nas atividades das cri- derar que um conceito é armazenado como um signo na mente das
anças: novos conhecimentos e informações são construídos e adqui- pessoas. No conexionismo, supõe-se que um conceito seja engramado
ridos – novas sinapses, ou conexões, vão sendo reforçadas no cére- nas células do cérebro em forma de traços, e não como uma entidade
bro, alterando o peso daquelas já existentes, resultando, dessa forma, abstrata, como é o conceito para Vygotsky. As configurações ad hoc
na formação de novos conceitos ad hoc. que surgem a partir dos dados de que dispõe o cérebro é que podem
O conhecimento dado, que corresponde ao nível de desenvol- ser classificadas como abstratas ou não (como, por exemplo, o con-
vimento real de Vygotsky, está ligado aos conceitos espontâneos de ceito de Liberdade), mas não os traços em si. Dessa forma, percebe-
uma criança – aqueles conceitos que a criança constrói a partir de sua se que Vygotsky, ao tratar o conceito como um signo, inclui-se no
experiência concreta. paradigma simbólico.
O conhecimento novo, por sua vez, corresponde ao nível de
desenvolvimento proximal de Vygotsky, isto é, às funções que estão Conclusão
em vias de serem efetivadas e que podem ser construídas com o auxí-
Para concluir, pode-se dizer que, apesar dessas diferenças bá-
lio de outras pessoas. Esse nível está relacionado aos conceitos cien-
sicas apontadas, Vygotsky é de alguma forma um precursor de certas
tíficos, pois é a aprendizagem escolar que os introduz. Neste mo-
idéias do conexionismo: ele serve como um ponto de partida para
mento, a criança começa a adquiri-los a partir de sua definição e não
amplas discussões sobre os conceitos, e os novos recursos tecnológicos
mais pela observação e manipulação direta, fase em que começa a
do conexionismo, aliados à sua capacidade explanatória, têm muito a
haver alterações nos conceitos espontâneos já existentes da criança,
oferecer para que tais discussões avancem ainda mais.
isto é, no seu conhecimento dado.
Referências bibliográficas
Diferenças entre Vygotsky e o conexionismo
Da mesma forma como se pôde fazer aproximações entre as OLIVEIRA, Marta Kohl. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento
duas abordagens, há que se mostrar algumas diferenças básicas entre – um processo sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 1997.
a concepção de Vygotsky e a do conexionismo no que tange aos con- REGO, Teresa Cristina. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultu-
ceitos. ral da educação. Petrópolis: Vozes, 1996.
Uma diferença importante é o fato de Vygotsky afirmar que o TEIXEIRA, João de Fernandes. Mentes e máquinas: uma introdu-
processo de formação de conceitos estaria pronto ao final da adoles- ção à ciência cognitiva. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998
cência. Esta suposição implica o seguinte: se o meio tiver sido VYGOTSKY, Lev Semenovich. Pensamento e linguagem. São Pau-
estimulador, o adolescente já atingiu um nível abstrato de funciona- lo: Martins Fontes, 1995.

272 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Simulando a aquisição de passivas
Rosângela Gabriel
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

ABSTRACT - In order to study the acquisition of passive constructions, two techniques have been used: analysis of empirical data and computer
simulation. The empirical data come from two studies testing English and Portuguese monolingual speakers in a language production task. The
crosslinguistic results provided evidence for modelling the acquisition and processing of passives in a computer neural network
PALAVRAS-CHAVE - aquisição da linguagem - conexionismo – regras sintáticas - redes neuroniais artificiais

1 – Introdução discursivo? Talvez as crianças nasçam equipadas com algum tipo de


A fim de investigar como as crianças aprendem as construções regra ou princípio que indique que o tópico discursivo deve ser man-
passivas e, mais especificamente, por que as crianças aprendem as tido. Ou talvez as crianças identifiquem um determinado padrão no
construções passivas, ou ainda, que fatores contribuem para a aquisi- input lingüístico a que estão expostas e passem a apresentar um com-
ção das construções passivas, foram empregadas duas técnicas de portamento condizente com esse padrão. A fim de testar essas hipó-
investigação: análise de dados empíricos e simulação dos dados teses, usamos uma técnica de investigação indireta, baseada na simu-
empíricos em redes neuroniais conexionistas. Inserida nos estudos lação de aprendizagem em redes neuroniais conexionistas. Será pos-
de aquisição da linguagem, esta investigação objetiva contribuir para sível desenvolver um modelo conexionista que aprenda a preservar o
a compreensão da natureza da linguagem e do cérebro através do tópico discursivo, sem lançar mão de nenhuma regra explícita que o
estudo de um único fenômeno lingüístico: a aquisição de passivas. instrua a assim proceder?
O texto que segue apresenta inicialmente a metodologia de
coleta e análise dos dados empíricos fornecidos por falantes 3 – Simulando o processamento de passivas
monolíngües de inglês britânico e português brasileiro em uma tarefa A tarefa desta rede neuronial conexionista é processar uma cena
de produção de linguagem. Num segundo momento, são descritos e e descrevê-la em uma estrutura ativa ou passiva, de acordo com o
discutidos o procedimento empregado para a construção da simula- personagem topicalizado. O objetivo é desenvolver um modelo que
ção computacional dos dados translingüísticos e os resultados obti- seja capaz de aprender a preservar o tópico discursivo e usar uma
dos. estrutura frasal que permita sua manutenção na primeira posição da
sentença. Mais especificamente, estamos interessados na troca entre
2 – Evidências empíricas estruturas ativas e passivas motivada pela topicalização de um deter-
Os dados empíricos foram colhidos com crianças e adultos fa- minado papel semântico (agente ou não-agente). Obviamente, a tro-
lantes monolíngües de inglês britânico e português brasileiro. Os ca entre duas estruturas frasais pressupõe sua disponibilidade para o
sujeitos do estudo Produção em Inglês foram 46 crianças, divididas falante, isto é, elas precisam ter sido previamente adquiridas e preci-
em 4 grupos (3-4 anos de idade, 5-6 anos, 7-8 e 9-10 anos), e 10 sam ser facilmente acessáveis. Vários problemas tornam esse proces-
adultos. Já os sujeitos do estudo Produção em Português foram 80 so difícil para o jovem falante. Em primeiro lugar, nas duas línguas
crianças e 20 adultos. O design do experimento envolveu 12 cenas investigadas, isto é, inglês e português, a estrutura ativa é mais fre-
nas quais 12 vezes um agente foi topicalizado e 12 vezes um não- qüente do que a passiva no input lingüístico, causando a consolida-
agente foi topicalizado. As cenas foram mostradas aos sujeitos atra- ção de uma ordem semântica default2 : agente ð ação ð paciente. O
vés de um desenho animado em um monitor de vídeo. Após cada uso da estrutura passiva requer a habilidade de inverter essa seqüên-
cena, o investigador pediu ao participante ‘Me fala sobre o (agente)’ cia de palavras e de reorganizar os papéis semânticos: paciente ð
e ‘Me fala sobre o (não-agente)’ As respostas dos sujeitos foram en- ação ð agente. Portanto, a fim de entender e produzir frases passivas,
tão classificadas como (1) ativas, (2) passivas, (3) não-passivas e (4) a criança tem que abrir mão de uma primeira (e falsa) generalização
não-evento, como ilustrado pelos exemplos: baseada na amostra de frases ativas, que poderia ser assim verbalizada
(1) O gato assustou o rato. “o primeiro elemento em uma frase é aquele que faz algo”.
(2) O rato foi assustado pelo gato. Em segundo lugar, a passiva em ambas as línguas, português
(3) O rato ganhou um susto do gato e inglês, é uma estrutura sintática complexa envolvendo o uso do
(4) O rato tá com medo. particípio passado e eventualmente a preposição “por” (em inglês
Os resultados demonstraram que as respostas dos sujeitos são by). Lidar com esses elementos não é uma tarefa trivial, uma vez que
fortemente influenciadas pelo tópico dado pelo interlocutor. A ma- o particípio em ambas as línguas apresenta formas regulares e irregu-
nutenção do tópico discursivo no início da frase parece ser o critério lares, cuja aquisição representa um desafio para o jovem aprendiz,
usado pelos sujeitos na escolha dentre as estruturas sintáticas dispo- como demonstrado em vários estudos (entre outros, Rumelhart &
níveis. Essa tendência dos sujeitos pela manutenção do tópico McClelland, 1986; Plunkett & Marchman, 1991; Pinker, 1999). A
discursivo já havia sido documentada por estudos anteriores, entre ambigüidade da preposição “por” é também um desafio, porque o
eles Clark & Begun (1968), Bates & Devescovi (1989), Marchman jovem falante é exposto a frases em que “por” introduz um agente,
et al. (1991), Ferrreira (1994) e Bates et al. (1995). Os dados indi-
cam ainda que, apesar de as crianças serem sensíveis ao tópico
discursivo, elas nem sempre têm disponível ou facilmente acessável1 1 Apesar de a palavra “acessável” não constar nos dicionários de Língua
uma construção que permita a manutenção do tópico no início da Portuguesa, optamos pelo seu uso, uma vez que a palavra acessível carrega
o sentido de “algo de fácil acesso”, ao passo que o sentido que buscamos é
frase. Logo, gostaríamos de sugerir que as crianças aprendem as cons-
“algo que pode ser acessado”.
truções passivas a fim de terem disponível uma construção que per- 2 Optamos pela manutenção da palavra em Inglês default por considerar-
mite que um não-agente ocupe a posição de tópico frasal. mos que palavras como “canônica” ou “não-marcada” alterariam ligeira-
Mas como as crianças descobrem que devem manter o tópico mente o significado de nossa afirmação.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 273


como em “As flores foram plantadas pela vovó”, assim como frases 3.2 – Arquitetura da rede
em que “por” introduz um adjunto adverbial, como em “As flores
Uma rede feedforward de três camadas completamente
foram plantadas pela manhã” (Liversedge et al., 1998). Finalmente,
o jovem falante tem que ser sensível à exigência discursiva de manu- conectadas, com 60 unidades input, 30 unidades hidden e 47 uni-
tenção do tópico. Crianças de apenas 3 anos de idade parecem ter dades output, foi construída para desempenhar a tarefa. Não exis-
desenvolvido essa sensibilidade, como observado em nossos estudos tem conexões entre os nódulos dentro de uma mesma camada nem
de produção lingüística (ver também Bates & Devescovi, 1989; conexões de feedback para os nódulos de camadas anteriores. É
Marchman et al., 1991). De fato, mesmo crianças muito jovens ten- usado um algoritmo de aprendizagem conhecido como
tam manter o tópico discursivo na primeira posição sentencial atra- backpropagation of error6 , cujo objetivo é ajustar o peso das cone-
vés do uso de uma estrutura frasal apropriada. xões durante o treinamento da rede a fim de aprender um único
Nosso modelo conexionista de manutenção do tópico não dá conjunto de pesos, de modo que qualquer padrão de input vá pro-
conta de toda a complexidade envolvida na aquisição de frases ativas duzir o correto padrão de output.
e passivas. Vários aspectos da aquisição e processamento dessas cons-
truções não serão abordados aqui. Em nossa simulação, nenhuma 3.3 – Treinando a rede
tentativa é feita para representar mudanças de tempos verbais e con- O treinamento é composto de etapas em que a rede recebe
cordância entre sujeito-verbo. Todos os verbos foram representados pares de cena/tópico e uma descrição do evento ora na forma ativa,
na forma em inglês do passado simples/particípio (por exemplo, ora na forma passiva. A rede é treinada para produzir uma frase a
licked3 ), sendo que verbos que não apresentam a mesma forma no partir da cena/tópico no input. Existem 160 padrões de input (pares
passado simples e no particípio não foram usados. Uma vez que o cena/tópico) e 160 padrões de output (frases). Portanto são necessá-
inglês é a língua usada nessa simulação, nenhuma alteração na con- rios 160 ciclos para que a rede seja exposta a todo o conjunto de
cordância sujeito-verbo é necessária, já que os verbos estão conjuga- treinamento, o que constitui uma “época”. A rede foi treinada por
dos no pretérito simples4 . A fim de manter a rede tão simples quanto 6000 impulsos ou sweeps, ou seja, aproximadamente 37 épocas. A
possível, o verbo auxiliar (ou seja be ou get – “ser” em português) rede foi treinada randomicamente, sem substituição, a fim de garan-
não foi representado na simulação, nem o foram os artigos (isto é the
tir que todos os padrões do input fossem apresentados à rede em uma
– o(s)/a(s) em português). A simulação imita os dados dos falantes
dada época. A taxa de aprendizagem foi fixada em 0.1 e a taxa
adultos do estudo Produção em Inglês. Quando solicitados a falar
momentum em 0.9.
sobre o agente em uma cena, 100% das respostas dos falantes adultos
de inglês britânico estavam na estrutura ativa. Por outro lado, quan-
3.4 – Testando a rede
do solicitados a falar sobre o não-agente, os mesmos sujeitos forne-
ceram aproximadamente 100% de respostas na estrutura passiva. Testamos a rede com o conjunto de treinamento usando o
Reproduzindo esse padrão, o número de frases ativas e passivas nes- peso das conexões após 6000 impulsos. Todas as 160 frases produzi-
sa simulação é equilibrado, e a estrutura frasal altamente associada das pela rede se igualaram à sentença alvo, isto é, a rede produziu
com o personagem topicalizado. A tarefa da rede é alternar a estrutu- uma frase ativa toda vez que um agente foi topicalizado e uma frase
ra frasal de acordo com qual personagem da cena é topicalizado. passiva quando um não-agente foi topicalizado. Como a rede apren-
de a manter o tópico discursivo dado no input? A fim de analisar a
3.1 – Representação do input e output solução da rede, observamos como a estrutura dos padrões de input
semelhantes é modificada como resultado da passagem da camada de
Um léxico de 5 nomes, 5 verbos e a preposição by foi usado
input para as representações internas. Tomando um subconjunto de
no modelo5 . Assim como com sujeitos humanos, o conhecimento do
32 vetores7 da ativação das unidades hidden, uma cluster analysis ou
significado das palavras não é questionado e se assume que a rede (e
análise por grupos hierárquicos foi desenvolvida após a testagem,
os seres humanos) conhece o nome dos personagens e os verbos que
esboçando um diagrama em forma de árvore das estruturas seme-
descrevem as ações. O input consiste em uma cena constituída de
lhantes. Como pode ser visto na Figura 1, a rede agrupou as frases de
três elementos (dois personagens e uma ação) e um tópico (o agente
acordo com qual palavra se encontra na posição tópico, independen-
ou o não-agente). Uma representação localista simples é usada aqui,
temente de seu papel como agente ou não-agente na cena e da estru-
com apenas uma única unidade de input ativada em uma dada pala-
vra. Cada palavra é representada por um vetor de 15-bit em que ape- tura frasal usada.
nas um bit está ligado (1) e os 14 restantes estão desligados (0). As
palavras estão concatenadas formando um vetor de 60-bit, represen-
tando um par cena/tópico no input. A rede é treinada em 80 cenas, 3 Em Inglês, a maioria dos verbos no pretérito simples (Simple Past Tense) e
cada uma apresentada com um agente e com um não-agente no particípio (Past Participle) são homófonos, por exemplo kiss ð kissed ð
topicalizado, resultando em 160 pares cena/tópico. kissed, mas não break ð broke ð broken.
O output desejado consiste de frases ativas e passivas sim- 4 Em Inglês, os verbos conjugados no Simple Past Tense não sofrem alteração
ples, cada uma com três palavras lexicais (dois nomes e um verbo) e decorrente da mudança de pessoa do discurso, como é o caso em Portu-
guês.
a palavra gramatical by no caso das frases passivas. Cada palavra
5 Um conjunto suplementar de 5 nomes foi dado a rede para uma possível
lexical é representada por um vetor de 15-bit, enquanto a preposição tarefa de generalização.
é representada por um vetor de 2-bit. Portanto a corrente de output 6 O algoritmo de aprendizagem conhecido como backpropagation of error é
representando a frase toda é formada por um vetor de 47-bit. A fim usado em Rumelhart, Hinton & Williams (1986), Plunkett & Elman (1997) e
de manter o comprimento da corrente de output uniforme nas frases inúmeras redes conexionistas.
ativas e passivas, uma palavra ‘vazia’ representada por duas unida- 7 Em uma situação ideal, gostaríamos de visualizar os 160 vetores usados no
des inativas é usada nas frases ativas. A rede é treinada em uma amostra conjunto de treinamento; contudo, restrições no tamanho do papel e da
fonte para impressão exigem uma versão mais modesta do diagrama por
de 80 frases ativas e 80 passivas. A tarefa em cada etapa é descrever
grupos exibido aqui. Portanto, o leitor precisa acreditar que o mesmo pa-
uma dada cena em uma forma ativa ou passiva, dependendo de qual drão apresentado na amostra de 32 vetores é observado no diagrama con-
papel temático (agente ou não-agente) é topicalizado. tendo os 160 vetores.

274 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


computacionais, as redes conexionistas constituam uma ferramenta
útil na busca de respostas e de novas questões.

Referências bibliográficas

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production. In: MACWHINNEY, B., & BATES, E. The
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Functional constraints in the acquisition of the passive: toward
a model of the competence to perform. First Language 11, 65-
4 – Conclusão 92, 1991.
PINKER, S. Words and rules: the ingredients of language. London:
É possível desenvolver um modelo conexionista capaz de
Weidenfeld & Nicolson, 1999.
aprender a preservar o tópico discursivo sem lançar mão de regras PLUNKETT, K., & MARCHMAN, V. U-shaped learning and
explícitas que o instruam a assim proceder. Contudo, é prematuro frequency effects in a multi-layered perceptron: implications for
afirmar que a solução encontrada pelo modelo computacional seja child language acquisition. Cognition 38, 43-102, 1991.
idêntica ou mesmo semelhante à estratégia usada por seres humanos RUMELHART, D. E., & MCCLELLAND, J.L. On learning the past
na aquisição da linguagem. O que é possível dizer com relativa segu- tenses of English verbs. In: MCCLELLAND, J.L.,
rança é que o input lingüístico carrega informações de natureza ex- RUMELHART, D.E. & THE PDP RESEARCH GROUP.
plícita e implícita. Se um modelo computacional é capaz de apreen- Parallel Distributed Processing: explorations in the
der essas informações, por que não o seria também o cérebro huma- miscroestructure of cognition. London: The MIT press, 2, 216-
no? Um aspecto evidenciado em nossa rede conexionista feedforward 271, 1986.
é a capacidade de redes simples descobrirem representações internas RUMELHART, D. E., HINTON, G. E. & WILLIAMS, R. J. Learning
úteis e interessantes para tarefas lingüísticas. Obviamente, modelos internal representations by error propagation. In:
computacionais mais sofisticados são necessários para dar conta das MCCLELLAND, J.L., RUMELHART, D.E. & THE PDP
múltiplas informações envolvidas na aquisição e processamento da RESEARCH GROUP. Parallel Distributed Processing:
linguagem e nas demais tarefas cognitivas. No entanto, acreditamos explorations in the microestructure of cognition. London: The
que, ao congregar dados comportamentais, neuroniais e MIT Press, 1, 318-362, 1986.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 275


Aspectos da modalidade em
três sincronias do Português
Lucia M. A. Ferreira
Fundação Universidade do Ri de Janeiro - UNIRIO

ABSTRACT:This paper examines constructions with the modals poder (can) and dever (should) in modern Brazilian Portuguese, archaic Portuguese
and archaic Latin. The objective of the study is to find evidence of the semantic and syntactic stability of the constructions and support for a
panchronic approach to the development of modal meaning.
PALAVRAS-CHAVE: polissemia; verbos modais; pancronia

1. Introdução e conveniência e chegaram ao sentido epistêmico de probabilidade. O


uso epistêmico é mais abstrato, na medida em que se refere não ao
Do ponto de vista da mudança lingüística, a rica polissemia dos domínio sócio-físico, mas aos processos inferenciais que ocorrem
verbos modais tem sido analisada a partir da hipótese de que os sen- em nossa mente. Esta diferença semântica tem sua contrapartida sin-
tidos mais concretos, relacionados à realidade sócio-física do homem, tática: o uso do verbo no sentido de probabilidade pode ocorrer em
dão origem, no curso do tempo, aos sentidos mais abstratos, construções com sujeitos não-agentivos e em construções impesso-
epistêmicos, relacionados a processos inferenciais. (cf.Traugott, 1989; ais e, por essa razão, é considerado mais gramaticalizado do que os
Sweetser, 1990; Bybee et al., 1994). outros usos.
Mais recentemente, entretanto, pesquisas de orientação A literatura nos mostra que as noções deônticas de necessida-
pancrônica que visam comparar usos de itens lingüísticos em dife- de, obrigação e conveniência e a noção epistêmica de probabilidade
rentes sincronias do português passaram a problematizar a hipótese podem ser expressas por uma mesma forma não apenas nas línguas
de isomorfismo entre o desenvolvimento histórico e as relações indo-européias, mas também em línguas não relacionadas genetica-
sincrônicas entre itens polissêmicos (cf. Votre 1999; Ferreira 2000), mente (cf Bybee et al 1994), o que fortalece o argumento de que a
pois, em muitos casos, o que se observa é a estabilidade das configu- polissemia de dever é cognitivamente motivada.
rações semântico-sintáticas e não a mudança.
O termo pancronia vem sendo usado para designar uma abor- 2.1- Dever no português arcaico
dagem do fenômeno da mudança que observa não as relações Na amostra do século XV, a grande maioria das ocorrências
sincrônicas entre seus elementos ou as mudanças que se observam codifica o sentido deôntico, como em (1), do Livro de Conselhos de
nesses elementos e nas suas relações ao longo do tempo, mas as pres- El Rei D. Duarte.
sões cognitivas e comunicativas que atuam no indivíduo durante a
comunicação e que se manifestam de modo universal, porque refle- (1) Todo boo [sic] homem pola graça de deus deue ter tençom de
tem a capacidade e as limitações da mente humana para armazenar e trazer sempre ante seus olhos os bens e mercês que reçebe dele (p.7)
transmitir informações. O olhar pancrônico pressupõe a adoção ex-
plícita do princípio do uniformitarismo como hipótese de trabalho É possível que a grande incidência deste sentido de dever pos-
(cf. Furtado da Cunha, Oliveira e Votre , 1999). sa ser atribuído aos tipos de textos que compõem a amostra, obras de
A comparação de enunciados representativos de diferentes caráter pedagógico/pastoral que visavam a educação moral e religio-
sincronias do português e do latim indica que, ao lado de mudanças sa do povo português. Com relação à sintaxe, o complemento de de-
de ordem fonológica, morfológica, sintática e semântica, a língua ver pode ser precedido da preposição de, independentemente do tipo
apresenta também uma estabilidade que se manifesta em todos os de predicador, como no exemplo a seguir, também do Livro de Con-
níveis da sua estrutura. No presente trabalho, visando ampliar as evi- selhos de El Rei D. Duarte.
dências para uma abordagem pancrônica da estabilidade sintático-
semântica, realizou-se uma análise comparativa das ocorrências dos (2) Parece me senhor que deueis de ter maneyra como em uossa ter-
verbos poder e posse e dever e debere em amostras representativas ra... (p. 28)
de diferentes sincronias do português e do latim: o português brasi-
leiro contemporâneo (corpora de língua oral em uso), o português Na amostra do português arcaico do século XVI são também encon-
arcaico dos séculos XV e XVI e o latim arcaico, do século II a.C tradas ocorrências de dever deôntico:
(textos de teatro).
(3) E em tal maneira he graciosa que querendoa aproueitar darsea
2- Os usos de dever e debere neela tudo per bem das agoas que tem./ pero omjlhor fruito que neela
Na amostra do português brasileiro contemporâneo são obser- se pode fazer me parece que sera saluar esta gente e esta deue seer
vados os seguintes usos de dever: (a) em construções intransitivas ou aprincipal semente que vosa alteza em ela deue lamçar. (carta de
seguido de objeto direto, significando “dever alguma coisa a alguém”; Caminha, p. 56)
(b) seguido de complemento infinitivo, com o sentido deôntico de
necessidade, obrigação, conveniência; (c) seguido de complemento Enunciados epistêmicos com dever no português arcaico tam-
infinitivo, com o sentido epistêmico de probabilidade. bém podem ser parafraseados por construções com É provável que...
No que diz respeito às hipóteses evolucionistas correntes acerca ou provavelmente:
do desenvolvimento do sentido modal, os diversos sentidos de dever
são considerados pontos em um continuum de desenvolvimento que (4) Manifesto está e visto
recapitula as mudanças que teriam se iniciado no uso lexical ser de- Que o bento Jesu Cristo
vedor de, passaram pelo sentido deôntico de necessidade, obrigação deve ser homem de gala. (Auto da Barca do Purgatório, p. 177)

276 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


[É provável que Jesus Cristo seja homem de gala] direcionalidade concreto > abstrato na mudança lingüística não é cro-
nologicamente verificável. A estabilidade dos usos de poder/posse
2.2- O verbo debere no latim arcaico manifesta-se não apenas no fato de que nas três sincronias ilustradas
Na amostra analisada, observou-se o sentido deôntico de obri- acima o modal co-ocorre com verbo no infinitivo e que o sentido
gação, como na fala de Mercúrio à platéia, no prólogo do Amphritrvo: codificado é o da possibilidade epistêmica. Observe-se que nos três
exemplos o modal epistêmico veicula um julgamento subjetivo do
(5) Mercvrivs: Debetis uelle quae uelimus: meruimus falante acerca do conteúdo proposicional, e este fato é iconicamente
Et ego et pater de uobis et re publica. (Amphitrvo 39-40) representado na gramática pelo escopo mais amplo, como indicam as
Deveis querer as coisas que queremos; merecemos isso eu e paráfrases em cada um dos exemplos e a incidência da negativa sobre
meu pai de vocês e de todos. a predicação principal e não sobre o modal em (6).
A estabilidade dos usos mais abstratos de poder e posse em
Embora não tenham sido encontradas ocorrências de uso se- diferentes sincronias manifesta-se também em usos mais voltados
melhante a dever epistêmico com o sentido de probabilidade na para a interação:
amostra latina, isto não significa que o verbo não tivesse usos bastan-
te abstratos também no latim. Segundo Ernout e Meillet (1994: 165), (9) Velha: E dar-vos-ei ua escrava
o verbo debere, além dos sentidos “dever dinheiro ou qualquer outro que trabalha como zeina: (égua)
objeto”, “ser devedor” e “ter obrigação”, apresentava no baixo latim amassa e esfrega e lava.
um “desbotamento” do sentido de obrigação, codificando um futuro Pero: E essa não se pode ver? Auto das Regateiras 787
perifrástico e em alguns casos uma hipótese, uma possibilidade. Velha: Sim, Jesu, logo ness’hora.
Com relação ao verbo dever, pode-se dizer portanto que o sen- Cadela, aí ca fora!
tido mais lexical de “dever alguma coisa”, o sentido modal deôntico (Pero Vaz pedindo para ver a escrava, parte do dote de Beatriz)
de obrigação conveniência ou necessidade, e alguns usos mais abs-
tratos, epistêmicos, manifestam-se a cada momento da concretização (10) Mercvrivs: Possum scire, quo profectus, cuius sis, aut quid
da fala, desde o latim. Não há evidência a favor do concreto para o ueneris? Amphitrvo 346
abstrato no curso do tempo e sim para a permanência da semântica e, Sosia: Huc eo, eri sum seruus.
na maioria das vezes, da sintaxe do verbo no curso dos séculos. Mercúrio: Posso saber onde vais, a quem pertences ou por que vieste?
Sósia: Vou para lá. Sou servo de meu amo.
3- Os usos de poder e posse
(Mercúrio pede informação a Sósia fingindo não conhecê-lo)
Com relação ao verbo poder, também verifica-se que as no-
ções contextualizadas pelo verbo no português brasileiro contempo- (11) Ivppiter: Nimis iracunda es.
râneo já estavam disponíveis no verbo posse, que deu origem a potere Alcvmena: Potin ut abstineas manum? Amphitrvo 903
e posteriormente a poder, desde a fase arcaica da língua latina. Os Júpiter: Estás muito irritada.
três exemplos a seguir ilustram o uso do modal para codificar a pos- Alcmena: Podes tirar a mão de mim?
sibilidade epistêmica, ou seja, uma noção mais abstrata do que a de (Alcmena pede/ordena ao marido que se afaste dela)
capacidade ou mesmo da possibilidade mais factual, também codifi-
cadas pelo verbo nas três sincronias (cf. Ferreira 2000). Observe-se que os enunciados acima são ambíguos e sua inter-
pretação como atos de fala manipulativos depende fundamentalmen-
(6) I: nunca...pra falar a verdade...nunca digo que eu sei fazer alguma te de parâmetros externos, pragmáticos, provavelmente acionados por
coisa...eu sempre parto do princípio que alguém sabe fazer melhor um mecanismo inferencial associado a uma implicatura
do que eu...posso não conhecer mas...alguém algum dia vai aparecer conversacional.
sabendo fazer melhor do que eu... A análise desses exemplos evidencia que basicamente as mes-
=É possível [ eu não conhecer ] mas estratégias comunicativas e as mesmas inferências relacionadas
ao uso de poder e posse vêm sendo usadas pelos falantes há mais de
(7) Pero: E esta de qu’anos será? (referindo-se à idade da escrava) 22 séculos, o que significa que as pressões funcionais e comunicati-
[...] vas que motivam sua ocorrência e cristalização são contínuas e regu-
Velha: Não queira Deos que vos menta: lares e permanecem inalteradas.
houve-a no tremos da terra;
pode agora ser essa perra Auto das Regateiras 806
môça d’alguns cincoenta, 4- Observações sobre as implicações teóricas da análise
salvante s’a conta erra. O fato de que tanto sentidos mais concretos, orientados para o
= Pode ser que ela tenha uns cinqüenta anos/ É possível que tenha... agente, quanto mais subjetivos, centrados no falante, estavam dispo-
níveis nas sincronias mais distantes sugere que as relações entre os
(8)Demaenetvs: Non esse seruus peior hoc sentidos tenham a ver com leis gerais, de caráter pancrônico,
quisquam potest Asinaria 118 atemporais, relacionadas ao caráter imaginativo do pensamento hu-
Nec magis uersutus nec quo mano e a pressões de ordem cognitiva e comunicativa que fazem
ab caueas aegrius. com que estejamos continuamente estendendo nossas polissemias e
aplicando-as a situações que vemos como análogas às que já
Ninguém pode ser um escravo pior do que esse vivenciamos.
Nem tão astuto nem tão difícil de quem você tenha que se precaver A maioria das formas e sentidos examinados, mesmo os mais
abstratos, já estavam disponíveis nas sincronias mais distantes do
= Não é possível que alguém seja um escravo pior... português e no latim. Não foram encontradas evidências de que os
sentidos mais abstratos e genéricos são derivados dos mais concretos
A análise indica portanto que, no caso de poder, a e específicos no curso do tempo. Mesmo nos casos em que não foram

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 277


identificados usos mais abstratos em uma sincronia mais distante, não de & VOTRE, Sebastião. A interação sincronia/diacronia no es-
se pode ter certeza de que não circulavam na língua ou, como prefere tudo da sintaxe. IN: D.E.L.T.A. vol. 5, nº 1. São Paulo: PUC/SP
Votre (1999), “se estavam disponíveis, potenciais, e não aparecem – UNICAMP, 1999.
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FURTADO da CUNHA, M. Angélica, OLIVEIRA, Mariângela R. Rio de Janeiro, UFF, 2000.

278 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Fundamentos teóricos para um estudo da
argumentação em Semiótica
Lúcia Teixeira
Universidade Federal Fluminense

ABSTRACT: this paper aims to discuss some semiotics foundations. It particularly focuses argumentation, suggesting that not only the syntactic
devices that stablish connections between enunciator and enunciatee – as person, time and space projection – should be taken into consideration:
semantic choices also play an important hole in supporting the commitment of the enunciatee to the ideas of the enunciator.
PALAVRAS-CHAVE: semiótica; argumentação; práxis enunciativa; paixão discursiva

Há cerca de 10 anos venho examinando, sob a perspectiva sofrer uma transformação que o leva a um estado final de conjunção
teórica da semiótica, o discurso da crítica de arte brasileira publicada com este valor.
em jornais e revistas, do pré-modernismo ao período contemporâ- Há ainda um primeiro nível do percurso, mais abstrato que o
neo. Ao longo dessa pesquisa, apoiada pelo CNPq, concentro mi- narrativo, o nível fundamental, em que estão em jogo as oposições
nhas reflexões em torno de dois pólos: de um lado, examino as semânticas fundamentais geradoras do sentido do texto. A análise do
relações de produção de sentido estabelecidas entre o verbal e o percurso, considerando didaticamente a existência dos três níveis,
não-verbal representado pela pintura, baseando-me nos conceitos cada um com uma sintaxe e uma semântica próprias, é o caminho
de figuratividade e plasticidade; de outro, dedico-me ao estudo da mais interessante para observar a construção do sentido como um
argumentação, considerando a natureza formadora de opinião do mecanismo de reiterações e transbordamentos, marcado por
texto crítico. previsibilidade e surpresa. É também por meio da análise de cada
É sobre argumentação que desejo aqui falar, procurando sis- nível que se pode perceber a operacionalidade da utilização de cate-
tematizar algumas formulações teóricas fundamentais para o estudo gorias de um nível de análise para compreender procedimentos de
desse tema, em bases semióticas. As expositoras que me sucederão, outro nível.
que vêm trabalhando comigo nos projetos de pesquisa a que me refe- É essa possibilidade de articulação entre os níveis do percur-
ri, apresentarão exemplos de análise de textos críticos. so que permite o tratamento da argumentação, que é um mecanismo
As bases para o estudo da argumentação como um programa discursivo, como um programa de manipulação.
de manipulação foram sistematizadas por Diana Luz Pessoa de Bar- Um programa de manipulação, tal como o concebe a
ros, em seu fundamental Teoria do discurso. Já ali, a autora mostrava semiótica, não se reduz ao sentido corrente da palavra manipulação,
que a argumentação precisava ser revista e considerada como uma muito gasta em tempos de juízos simplificados, concretizados, por
estrutura de “programas narrativos de busca ou de construção do sa- exemplo, em pesquisas de opinião ligeiras, do tipo “a televisão mani-
ber ou de procura de adesão e de confiança” (BARROS, 1988: 111) pula o comportamento das pessoas?”, “a propaganda eleitoral conse-
e considerava três procedimentos utilizados pelo enunciador para gue manipular a vontade do eleitor?” etc. Não é esta a manipulação
influenciar o enunciatário: a implicitação ou explicitação de conteú- de que fala a semiótica, não um mero ato mecânico comunicacional
dos, a prática de atos ilocucionais para atingir fins perlocucionais e a de imposição de vontade de um locutor sobre um ouvinte apático e
argumentação em sentido restrito. Os três procedimentos se apresen- amorfo.
tam confundidos no fazer persuasivo do enunciador e constituem a A relevância da abordagem semiótica da narrativa prende-se
argumentação em sentido lato (BARROS, 1988: 98-113). à sua articulação com o espetáculo do homem no mundo, querendo
É justamente essa idéia de “confusão”, a idéia de que vários isso dizer que a semiótica pretende, ao analisar os textos, analisar o
procedimentos e mecanismos sintáticos e semânticos estão envolvi- modo de o homem existir no mundo. Compreendendo a existência
dos na argumentação, que me leva a considerar a relação entre os humana na linguagem, não mediada pela linguagem, não possível
níveis narrativo e discursivo do percurso de sentido como uma outra através da linguagem, mas na linguagem, a semiótica recupera, na
“confusão” a ser levada em conta, também esta assinalada por Bar- metodologia de análise, as coerções, as impossibilidades, as
ros, que vai mostrar, com exemplos, o modo como esquemas obrigatoriedades, bem como a possibilidade da rebeldia e da recusa
argumentativos explicam-se narrativamente. que caracterizam a vida social. Impulsionados por tentações e provo-
Estão em jogo, portanto, dois níveis do percurso gerativo de cações, seduções e intimidações, vamos aceitando ou recusando os
sentido: o narrativo e o discursivo. O primeiro é mais abstrato que o contratos que definem nosso caminho e nossas ações, moldam nos-
segundo; nele se articulam relações entre sujeitos e objetos, num ní- sas vontades e dirigem nossos gostos, ainda que precisemos da ilu-
vel esquemático, que se manifesta em estados e transformações são de que mantemos a vida sob controle. Quase nunca somos capa-
redutíveis a operações de conjunção ou de disjunção entre sujeitos e zes de perceber a inclusão de nossa rebeldia em um sistema de valo-
objetos. O segundo nível, o discursivo, recobre o anterior, por meio res aceitos, em que o rebelde perde a causa, porque ali a rebeldia é a
da intervenção de um sujeito da enunciação que projeta as categorias regra e por isso mesmo já não é mais contestação, nem coragem, nem
de tempo, espaço e pessoa, além de selecionar temas e figuras. As- desafio, é a normalidade de um outro sistema de valores. Oscilamos
sim, por exemplo, a narrativa da trajetória profissional de um pintor, entre manipulações de diferentes ordens, e nossa luta não é entre o
redutível a um esquema de passagem de um estado inicial disjunto bem e o mal, o certo e o errado como escolhas possíveis e objetivas,
para um estado final conjunto, considerando como os dois pólos da mas é a luta de estar imerso em linguagem e viver no entrechoque de
operação de junção um sujeito /pintor/ e um objeto-valor /sucesso/, redes discursivas.
pode ser discursivizada num verbete de dicionário, num texto crítico, É esta mesma aventura humana que se realiza nos textos e
numa louvação, num poema, numa pintura. Cada uma dessas mani- que a semiótica formula como um programa de manipulação. Origi-
festações discursivas dá forma textual a uma narrativa em que um nalmente a primeira etapa da seqüência canônica da narrativa, a ma-
pintor, em estado inicial de disjunção com o sucesso, termina por nipulação argumentativa realiza-se no discurso, mediante a ação de

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 279


um enunciador que pretende conquistar a adesão de um enunciatário. enunciador e enunciatário nos atores /crítico/ e /leitor/. Pois se a rela-
Para analisar esse programa, marcado não só pela relação entre dois ção entre ambos se estabelece sintaticamente, por conexões e rela-
sujeitos em torno de valores, mas também pelas modalizações das ções sintagmáticas propostas no discurso, por um jogo de vozes que
ações persuasiva e interpretativa, será necessário observar esses dois põe em contato um e outro, a transformação desse contato, desse
sujeitos envolvidos e seu modo de constituição narrativo-discursiva. enlace, em troca, intercâmbio, confronto ou acordo se dá nas esco-
Para isso, a metodologia de análise não poderá fixar-se em distinções lhas temáticas e figurativas que preenchem os papéis de um e de
canônicas nem entre níveis nem entre componentes. Quero dizer que outro e que produzem sua ancoragem num determinado espaço e num
só se pode dar conta dos mecanismos argumentativos considerando- determinado tempo.
se, ao lado das projeções de pessoa, tempo e espaço, relativas ao Saímos, então, de um esquema geral de previsibilidade (esse
componente sintático, as coberturas figurativas que as transformam de um enunciador/destinador que manipula um enunciatário/destina-
em atores, locais e marcos temporais, relativas ao componente se- tário, levando-o a aderir ao que afirma ser verdadeiro), para entrar
mântico. E para tratar a argumentação como programa de manipula- numa espécie de deriva, que é o território das especificidades. Parece
ção, será necessário narrativizar o percurso do sujeito que enuncia. que quando se entra no campo semântico tudo é variabilidade e par-
A metodologia que proponho, sistematizando contribuições ticularidade. Porém, também aqui é possível mapear regularidades
de vários semioticistas, é a de, tomando como núcleo da análise a que vão, por exemplo, marcar a diferença entre a crítica de Gonzaga
observação das projeções de pessoa, tempo e espaço (e para isso será Duque, a de Monteiro Lobato e a de Mário Pedrosa. Ou constituir
fundamental a contribuição de Fiorin, 1996), analisar essas três cate- quadros de recorrências argumentativas em gêneros textuais ou mes-
gorias considerando que a relação entre enunciador e enunciatário, mo em meios materiais específicos: de que modo, por exemplo, a
vale dizer, a argumentação, constrói-se nas relações sintático-semân- pintura de Portinari argumenta em favor da nacionalidade, no con-
ticas que, historicizando o discurso, nele inscrevem os modos de texto em que foi produzida? Não, certamente, do mesmo modo que
persuadir e convencer. Lobato argumenta, nem do mesmo modo como a poesia de Mario de
Criando ora os efeitos de enunciação enunciada, ora os de Andrade propõe.
enunciado enunciado, a estratégia argumentativa pode tanto aproxi- E mesmo considerando as diferenças, é possível estabelecer,
mar os dois actantes do discurso quanto simular o distanciamento no caso dos textos de crítica de arte, por exemplo, um modelo
deles em relação ao que se diz. Teoricamente, temos, no primeiro esquemático geral, em que o enunciador, projetado em 3ª pessoa,
caso, o efeito de aproximação entre enunciador e enunciatário, obti- recorrendo ao tempo passado e ao espaço do lá, deixa no discurso as
do pela projeção da primeira pessoa, do tempo do agora e do espaço pistas de seu percurso e constrói sua autoridade por meio dos preen-
do aqui, e no segundo, o efeito de distanciamento do enunciado enun- chimentos figurativos que o transfiguram em crítico. Tais preenchi-
ciado, por meio da projeção da terceira pessoa, do tempo do então, mentos referem-se tanto às suas competências (olhar, acompanhar,
do espaço do lá. A aproximação cria efeito de subjetividade, o afasta- examinar, contemplar), quanto aos espaços concretos em que o dis-
mento, de objetividade. No entanto, entre um pólo e outro, há uma curso está ancorado (ateliês, museus, salas de exposição, escolas de
gradação que não é mensurável, mas que pode ser identificada nas arte) e às referências a fatos da história da arte, que inscrevem o
escolhas figurativas e temáticas, e uma dispersão de vozes. acontecimento no tempo. Do mesmo modo, é possível identificar um
A projeção de pessoa não se refere apenas à escolha básica leitor, potencial espectador de obras de arte, valorizado como inte-
do discurso, entre assumir a narrativa em 1ª ou em 3ª pessoa, proje- grante de um mundo especial e refinado, freqüentador de museus e
tando concretamente um eu ou um ele. Trata-se de examinar o jogo galerias, leitor de biografias e conhecedor da história da arte, homem
de vozes presente na cena discursiva, observando as marcas da de seu tempo, aberto às inovações e às rebeldias estéticas. Tem-se
heterogeneidade que criam efeitos de verdade, de autoridade, de aqui o preenchimento figurativo e temático que transforma actantes
consenso, etc. Afirmar a qualidade da obra de um artista e trazer para em atores, garantindo a possibilidade de descrição de um programa
o texto o julgamento de um marchand, de um outro artista, de um de narrativização da enunciação, produzido no discurso.
colecionador, com isso reforçando o juízo do enunciador e constru- Ao lado do preenchimento dos actantes com seus papéis
indo sua autoridade, é uma forma de fazer com que o enunciatário temáticos e figurativos, completa-se a análise com a observação da
reconheça e aceite a verdade do discurso. Dessa forma, dissimula-se construção sintática e figurativa do tempo e do espaço, obtendo-se
a subjetividade do julgamento, criando-se o efeito de imparcialidade, uma espécie de cenário integrador da relação entre enunciador e
garantido pela projeção, no discurso, de outras vozes autorizadas. enunciatário.
Constituem também recursos que esgarçam as fronteiras en- A relação entre esse enunciador/crítico e esse enunciatário/
tre objetividade e subjetividade alguns procedimentos que inscre- leitor tanto transita por um universo discursivo previsível, uma práxis
vem, em textos escritos geralmente em 3ª pessoa, excessos e arreba- enunciativa, quanto por um excesso passional que, em princípio,
tamentos do enunciador, tais como a inserção de lexemas que desestabiliza a previsibilidade.
condensam juízos de valor (“Beatriz Milhazes é um dos expoentes da Para explicar o conceito de práxis enunciativa, Schulz (1995)
nova geração de pintores”), as retomadas anafóricas por meio de recorre a Denis Bertrand e fala em formas discursivas que o uso das
sintagmas que recuperam tais juízos (“Beatriz Milhazes expõe na comunidades sócio-culturais fixa sob a forma de tipos, de estereóti-
Galeria Camargo Vilaça. A jovem e talentosa pintora, uma das mais pos ou de esquemas. Retomando o que chama de “orientação recente
prestigiadas artistas brasileiras no circuito internacional, apresenta da semiótica greimasiana”, o autor propõe uma concepção da
obras em grande formato...”), as referências que cortejam o potencial enunciação que articule as formas discursivas resultantes do ato indi-
espectador (“O público mais antenado com a modernidade estará hoje vidual de enunciação com as organizações culturais, mais ou menos
presente à inauguração da exposição de Beatriz Milhazes”). Tais re- congeladas, da significação que, situadas acima da iniciativa do su-
cursos atraem o leitor/espectador, já então pronto a crer na verdade jeito enunciador, dependem da práxis enunciativa e constituem o que
do crítico. chama de “o impessoal da enunciação”. Para Schulz, o discurso é
Mas por que ele aceita ou por que pode recusar essa verda- tanto uma criação como o resultado de uma bricolage que reutiliza os
de? De que modo se produz a crença que leva à adesão? Parece-me materiais de criações anteriores. A originalidade do discurso vai de-
que só se pode responder a essas questões observando os procedi- pender dos modos como reage ou responde à exploração dos resídu-
mentos semânticos que transformam as posições actanciais de os discursivos que acolhe. Propõe-se, em conseqüência, uma con-

280 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


cepção de enunciação que articule as formas discursivas resultantes de obtido pode ser muito mais produtivo para validar a palavra do
do ato enunciativo individual com o que o autor chama de “organiza- crítico do que a objetividade de uma descrição ou mesmo a admira-
ções culturais, mais ou menos congeladas, da significação”, que ção testemunhada em depoimentos inscritos no discurso.
independem da iniciativa particular do sujeito enunciador, mas que o Eu vou correr o risco de afirmar que a manifestação estética
incluem numa práxis enunciativa. merece uma leitura amorosa. E chamo de amorosa a leitura que cede
A práxis enunciativa, portanto, garantindo a previsibilidade, ao “contágio” inicial da obra, para usar a expressão de Landowski.
atua como força coesiva do discurso e assegura sua força Será preciso, para ler a obra de arte, deixar que primeiro “advenha a
argumentativa pela naturalização que confere a determinados materi- graça do sentido para que só depois se revele por efeito de quê, de
ais discursivos. Segundo Fontanille (1993), tal práxis caracteriza o que presença (...) se produziu esse ‘milagre’ que faz com que exista
modo de constituição semiótica de culturas. Assim, por exemplo, sentido para o sujeito. (...) O que o mundo quer dizer precede pois ao
espera-se, num texto de crítica de arte, a debreagem de vozes que reconhecimento (ou ao menos à busca) daquilo que faz com que sig-
confirmem a palavra do enunciador/crítico; espera-se a referência a nifique” (LANDOWSKI, 1999).
recursos técnicos da obra de arte analisada, como demonstração da Se o crítico não é capaz de colocar-se diante da obra, inicial-
competência do crítico; esperam-se, enfim, recursos discursivos que mente, como um sujeito em estado de espera, um sujeito pronto a ser
falem do conhecimento e instalem a autoridade do crítico. É a práxis preenchido de sentidos, se o crítico não compreende a necessidade
enunciativa que assegura a expectativa e garante a adesão inicial ao de, em primeira instância, deixar-se dominar pela obra, para só de-
contrato discursivo proposto. pois buscar compreender os mecanismos de produção de sentido,
Mas esse contrato não se firma se a crítica não acolher uma então a crítica estará fadada a preencher previamente a obra dos sig-
certa sensibilização do discurso, imposta pela obra de arte que a nificados que já estão dados pela experiência anterior, pelos frag-
provoca. Garantindo ao senso comum a manutenção da arte na esfera mentos de discursos incorporados, pela necessidade de adequar-se a
das coisas superiores do espírito, mesmo a crítica mais antenada com determinados padrões de gosto e de julgamento em voga.
o mercado permite que certas escolhas lexicais, certos índices de sub- A análise da argumentação, portanto, para além de mapear as
jetividade, certas opiniões citadas introduzam no discurso ondula- projeções de pessoa, tempo e espaço, com seus preenchimentos figu-
ções passionais. Seria pouco produtivo, em termos argumentativos, rativos e suas relações temáticas, deverá estar atenta tanto à práxis
dissimular inteiramente a subjetividade que permite a irupção, no enunciativa que marca a previsibilidade dos discursos, quanto às pai-
discurso, da paixão. Efeito de sentido de arranjos modais, a paixão
xões que desestabilizam as expectativas. De todo modo, sujeitos
permite a entrada, na cena discursiva, das desestabilizações,
veleidosos e sujeitos pragmáticos estarão sempre a querer convencer
deslizamentos e ondulações que, teoricamente, tensionam a
uns aos outros das verdades que afirmam e viverão uns e outros,
previsibilidade. Pensando de forma oposta, diríamos que também a
desconfiados e ariscos, ingênuos e disponíveis, contestadores e arre-
paixão é previsível, também se pode falar numa práxis passional que,
dios, a expor suas diferenças e seus acordos no vasto e indomado
por exemplo, no caso da crítica de arte, concentra-se no entusiasmo
território da linguagem.
ou na rejeição.
Entre um e outra, entretanto, há uma gradação que dispersa o
Referências bibliográficas:
discurso da sua previsibilidade. Há, ainda, a possibilidade de paixões
diversas e mesmo conflitantes aparecerem, seja nas vozes em con-
fronto, seja na estrutura polêmica de uma manipulação que passa por BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso: fundamentos
desacordos, rompimentos e novos acordos, tudo isso a provocar as semióticos. São Paulo: Atual, 1988.
ondulações da narrativa e do discurso. FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as projeções de pes-
E que força argumentativa tem a paixão no discurso? A for- soa, tempo e espaço no discurso. São Paulo: Ática, 1996.
ça de sensibilizar o outro, a força de estabelecer comunhão com o GREIMAS, A. J., FONTANILLE, J. Semiótica das paixões. São Pau-
leitor. Mas é diferente a força da paixão nos discursos. Num edito- lo: Ática, 1993.
rial de jornal, por exemplo, o efeito de verdade causado pela cita- LANDOWSKI, Eric. Sobre el contagio. In: LANDOWSKI, E.,
ção de fatos, dados numéricos, nomes de pessoas e lugares é mais DORRA, R., OLIVEIRA, A.C. Semiótica, estesis, estética. São
eficaz do que, por exemplo, a desqualificação dos opositores e o Paulo, Puebla: EDUC, UAP, 1999.
engrandecimento dos adeptos. O mal da argumentação apaixonada, PERELMAN, Chaïm, OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da
já alertou Perelman (1996), não é a falta de argumentos, mas a má argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
seleção de argumentos, e desse mal procuram fugir os que preten- SCHULZ, Michael. Enonciation et discours esthétique. Analyser le
dem criar o efeito de imparcialidade e objetividade em seus discur- Serial Project Nº 1 (Set A) de Sol LeWitt. Nouveaux actes
sos. Já na crítica de arte, a paixão é bem-vinda em textos do pré- sémiotiques, 41-42, Limoges: Université de Limoges, 1995.
modernismo e do modernismo brasileiro, mas é dissimulada nas TEIXEIRA, Lucia. As cores do discurso: análise do discurso da crí-
críticas contemporâneas. tica de arte. Niterói: EdUFF, 1996.
Há uma crítica antológica de Sérgio Milliet, escrita em 1ª __________. Um rinoceronte, uma cidade: relações de produção de
pessoa, a respeito de Tarsila do Amaral, em que ele narra suas dife- sentido entre o verbal e o não-verbal. Gragoatá, 4: Literatura,
rentes reações em relação à obra da artista. Num primeiro momento, outras artes e indústria cultural. Niterói: EdUFF, 1998, p.47-56
vê a pintura e não gosta. Num segundo momento, levado por Oswald e 109-11.
de Andrade ao ateliê da artista em Paris, compreende e admira a obra __________. Pintura y crítica de arte: un caso de pasión. In:
de Tarsila, depois de ouvi-la falar. À paixão da rejeição sucede-se a MACCHIAVELLO, O. Fronteras de la semiótica. Lima: Fondo
do entusiasmo, num percurso narrado ao leitor. O efeito de sincerida- de Cultura Económica, 1999.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 281


Argumentação na crítica de Oswald de Andrade
Daniele Santana Sally
Universidade Federal Fluminense (UFF)

ABSTRACT: This paper makes the analyses of Oswald de Andrade´s art critiques, in order to understand the construction of the argumentation, in
the light of Discoursive Semiotics. Direct discourse and indirect discourse are examined like a sort of influence over the enunciatee by the enunciator.
PALAVRAS-CHAVE: Semiótica; Argumentação; Modernismo; Oswald de Andrade

Este trabalho é uma amostra do projeto que vem sendo desen- agir sobre o outro — e para que este outro realize um fazer
volvido como dissertação de mestrado, “Oswald de Andrade crítico interpretativo sobre aquilo que foi dito, sendo levado a fazer o que
de arte”, sob a orientação da profª. Drª. Lucia Teixeira. Constituí para foi proposto. Para tanto, é fundamental que o discurso construído
análise um corpus com 17 críticas de artes plásticas (T1 a T17), assi- seja credível, isto é, passível de crença, confiança, o que só é possí-
nadas por Oswald e publicadas em jornais e revistas da época em que vel quando o enunciador, construindo um simulacro de verdade, faz
atuou (1909 – 1954). Desse total, apenas 4 encontram-se reeditadas parecer verdadeiro o seu discurso e o enunciatário assim o reconhe-
em livro. Os textos do corpus abrangem um período que vai de 1915 ce. Entende-se, portanto, a argumentação como um programa de
a 1952, com algumas lacunas, evidentemente, já que o escritor atuou manipulação em que o enunciador (destinador-manipulador) age so-
nas mais diversas áreas, possuindo, assim, uma extensa produção bre o enunciatário (destinatário), levando-o a crer ou a fazer, ou seja,
intelectual entre ensaios, crônicas, romance, teatro, poesia e crítica a reconhecer a “verdade” do discurso.
literária, teatral, de música, além da de arte. Sem falar no seu Incorporando as contribuições de Perelman e Olbrechts-Tyteca,
engajamento político, nas diversas viagens e no longo período de podemos dizer que
moradia na Europa, coincidentes com o maior hiato registrado no
corpus, entre 1922 e 1934. Esse contrato entre orador e seu auditório não concerne unica-
O início da atividade crítica de Oswald de Andrade se dá em mente às condições prévias da argumentação: é essencial também
um momento histórico de construção dos valores basilares do movi- para todo o desenvolvimento dela. Com efeito, como a argumenta-
mento modernista no Brasil. Ainda que os anos antecedentes à Se- ção visa obter a adesão daqueles a quem se dirige, ela é, por inteiro,
mana de Arte Moderna tenham sido de alguma maneira marcados relativa ao auditório que procura influenciar. (1996: 21)
por uma “lerdeza de comentários”, como quis fazer crer Oswald em
um dos textos a serem analisados neste trabalho, foi nesse período Dessa forma, percebemos, com Fiorin, que “o enunciatário,
das primeiras décadas do século XX que começou a surgir um debate como filtro e instância pressuposta no ato de enunciar, é também
caloroso em torno da arte nacional. Digo caloroso reportando-me ao sujeito produtor do discurso” (1996: 65), na medida em que o fazer
texto de Oswald, “A exposição Malfatti” (T5), que é uma amostra do enunciador é manipulado pelo crer do enunciatário, ambas posi-
bastante clara da polêmica rede discursiva que se tecia então. Escrito ções actanciais projetadas pelo sujeito da enunciação.
no dia do encerramento da exposição da pintora Anita Malfatti, mar- Para analisar essa relação entre enunciador e enunciatário, ob-
ca a atuação do escritor como o único intelectual a sair em defesa da servarei alguns procedimentos sintáticos do discurso, mais especifi-
artista após a publicação da famosa crítica “A propósito da exposi- camente a debreagem actancial, responsável pela delegação de vo-
ção Malfatti”, da autoria de seu colega Monteiro Lobato. Não é des- zes, que demonstra a “heterogeneidade mostrada” no discurso
conhecido o impacto causado tanto pela exposição de Anita quanto (Authier-Revuz, 1990). Evidenciarei a utilização da voz do outro,
pela crítica contundente de Lobato. Tão contundente que a única res- através das formas direta e indireta de discurso reportado, como re-
posta obtida em um órgão de imprensa, a crítica de Oswald, não teve cursos de argumentação, uma vez que “quando se produzem enunci-
fôlego suficiente para aplacar, nas palavras de Chiarelli, “o inegável ados, podem-se incorporar contratual ou polemicamente enunciados
mal-estar que o artigo de Lobato provocara em Malfatti e no grupo de outrem” (Fiorin, 1996: 69).
nascente dos modernistas” (1995: 24-25). É de fundamental impor- Todos os textos do corpus possuem um enunciador que delega
tância o fato de a exposição da pintora ter sido um dos fatores e instala no enunciado um narrador e um observador1 — que se en-
aglutinadores do grupo, como aponta Mario de Andrade, em célebre contram por vezes sincretizados em um único ator. O narrador, en-
artigo sobre o movimento (1972). Para Mario, só foi possível a reali- tendido como aquele que relata fatos, assume a narrativa invariante
zação da Semana de Arte Moderna, em 1922, porque houve um perí- nos textos, a da circulação de uma pintura nacional e moderna entre
odo anterior marcado pelo início de uma discussão sobre o que era sujeitos manipulados por diferentes sistemas de valores, que se en-
arte e o que significava fazer arte brasileira. É também o próprio contra subjacente no nível do discurso. É nesse nível, no entanto,
Oswald quem destaca, no texto intitulado “Do Modernismo”, de 1952, que essa narrativa de base recebe um preenchimento semântico e
o papel central das artes plásticas: concretiza-se de maneiras diferentes em cada texto.
A delegação de voz pelo narrador a uma actante do enunciado,
1. O Sr. Mário Pedrosa acentuou muito bem a influência das decorrente de uma debreagem interna, caracteriza o discurso direto,
artes plásticas no nosso movimento. Sem a presença de Anita, de Di, que cria um efeito de sentido de realidade e, com isso, um vínculo
de Brecheret, qual teria sido o nosso caminho? (T17)

Para a análise, então, desse corpus, a semiótica discursiva for-


1 Estou considerando narrador como “o destinador do discurso explicita-
nece-nos o instrumental teórico necessário, a partir da concepção da
mente instalado no enunciado” (GREIMAS e COURTÈS, 1989: p. 294) e
comunicação como um processo intersubjetivo que se baseia tanto observador como “o sujeito cognitivo delegado pelo enunciador e por ele
em um fazer-saber quanto em um fazer-fazer. Levando-se em conta instalado, graças aos procedimentos de debreagem, no discurso-enunciado,
que existe uma polêmica ou um conflito subjacente a toda forma de onde é encarregado de exercer o fazer receptivo, e eventualmente o fazer
relação humana (v. KRIEGER: 1996, p. 31), faz-se necessário um interpretativo (isto é que recai sobre outros actantes e programas narrativos
acordo mínimo, uma base comum para que alguém possa dizer — e não sobre ele mesmo ou sobre seu próprio programa)” (id., p. 314).

282 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


pressuposto com o enunciatário, que teria como “verdade” o que foi 7. — Oh! Isto não é paisagem! Que horror, olhe aquele maço de
contado. O discurso direto vai exercer funções argumentativas dife- coqueiros quebrando a linha do conjunto! (T1)
rentes nos textos. Uma delas é a de rejeitar e descredibilizar posições
contrárias, gerando um efeito de sentido de falsidade sobre o discur- 8. Onde está a realidade, perguntarão, nos trabalhos de extra-
so do outro no interior de seu próprio, o que reafirma a validade das vagante expressão que ela expõe? (T5)
idéias do enunciador:
Já em T2, narrador e interlocutor aparecem sincretizados num
2. Chegam diversos imbecis a crer que Brecheret não sabe que mesmo ator discursivo, o crítico, quando da citação de um texto an-
os cavalos e os homens que andam pelas ruas são diferentes dos que terior (T1, “Em prol de uma pintura nacional”), o que, para além de
ele plasma. E dizem: Mas onde já se viu uma perna desse tamanho, aumentar o efeito de sentido de realidade, de “verdade” do discurso,
um pescoço desmedido assim, aquele pé está violento demais! ... (T6) ao se utilizar de “um simulacro da enunciação construído por inter-
médio do discurso do narrador” (Fiorin, 1996: 72), cria uma relação
3. Mas isso que faz o critério julgador das nossas populações intertextual, que, enquanto um dos contratos de veridicção possíveis,
(frases assim: como está parecido! Que beleza! É como se fosse ...) é constrói a autoridade de Oswald de Andrade como um crítico com-
a maior vergonheira de uma cultura. (...) (T6) petente que sabe e pode apreciar e julgar o objeto artístico.
Em outros momentos, a heterogeneidade constitutiva do dis-
4. Que pretende o cubismo? Indagarão os bem-intecionados, curso, isto é, o “fato de que sob as palavras de alguém ressoa a voz de
depois de saber que não se trata de uma blague perversa ou de uma outrem” (BAKHTIN: 1970, p. 238-64 apud FIORIN: 1996, p. 61-2),
crise de loucura parisiense que atingiu a Alemanha, a Itália, os esta- embora não estando marcada lingüisticamente através da utilização
dos unidos e outros países cultos. do discurso direto, como nos exemplos acima, é passível de ser per-
E as interrogações formarão procissão de pasmo. Por que es- cebida no discurso do narrador, por exemplo, emT1, ou do observa-
ses eternos violinos espedaçados, essas metades de arlequim, a de- dor (T5), que estabelecem, implicitamente, um diálogo com um
composição calculada dos objetos, para um estranho arranjo geomé- interlocutor público (T1), ou críticos (T5):
trico? (T8)
9. Não seria, pois, de todo fora de hora conversar-se um boca-
É interessante observar que nas passagens acima, de n. 3 e 5, dinho sobre a nossa pintura, sobre o pensionato que o Estado tem
os verbos introdutores do discurso citado (dizem e indagarão) veicu- mantido e sobre os proveitos que podem dele derivar. (T1)
lam informações descritivas (v. Fiorin, 1996: 79) sobre o que vai ser
enunciado. Há, por parte do narrador, uma avaliação muito clara do 10. Diante disso, surgem desencontrados comentários e críti-
que vai ser dito pela voz do outro, mas esse julgamento é realizado e cas exacerbadas. No entanto, um pouco de reflexão desfaria, sem
percebido pelo uso de expressões que configuram semanticamente dúvida, as mais severas atitudes. (...) (T5)
os temas da ignorância (imbecis, bem-intencionados) e da estupefa-
ção diante do novo (procissão de pasmo). Enquanto, no fragmento de T1, cria-se, através do tom de con-
Na passagem seguinte, de T8, existe mesmo um sentido de versa, uma aproximação com o enunciatário, pois este é quase convi-
ridicularização do não saber do outro ao compará-lo com quem pou- dado a ouvir o que o enunciador tem a dizer, o que funciona como
co ou nada sabe de seu ofício, representado pela figura do tabaréu. O mais um recurso para tentar seduzi-lo, em T5, o procedimento utili-
discurso direto aí reforça e amplia esse sentido, ao gerar o efeito de zado pelo destinador-manipulador para persuadir o enunciatário (des-
realidade, isto é, de que tal seria a enunciação no discurso citado: tinatário) foi o da provocação, pois este “deve escolher entre aceitar
a imagem desfavorável que dele foi apresentada [vejam-se os adjeti-
5. E a irritação que causam os quadros cubistas é a mesma que vos “desencontrados”, “exacerbadas”, “severas”] ou fazer o que o
deve ocasionar a um tabaréu a vista da planta de uma casa. Este ex- manipulador pretende”, isto é, “ouvir a voz da razão”, e concordar
clamará — onde é que está a casa aí? E terá o mesmo risinho superior com a opinião do crítico a respeito de Anita.
que vemos nos Taine de confeitaria, ante as diabruras de Picasso e O recurso ao discurso indireto, na seguinte passagem de T7,
Braque. cria um interessante efeito de sentido ao estabelecer como pressu-
Cubismo é escola? Ou se confunde e se envolve no totalismo posto exatamente o contrário do que aparece com a negativa seguida
de Lhote, no purismo de Jeanneret, no cezannismo? de verbo no futuro do presente:
E, no segundo parágrafo do exemplo acima, é exatamente a 11. Já não se dirá, depois do veredicto de Graça Aranha, que a
resposta dada pelo narrador à pergunta feita na enunciação enuncia- poesia de Mário de Andrade, a pintura de Di Cavalcanti, a escul-
da que ajuda a construir o enunciador como figura de autoridade, que tura de Brecheret e a música de Villa-Lobos são casos de
sabe e pode falar dos movimentos modernos: excepcionabilidade mórbida ou reclamista.
6. Para nós, num século de síntese como o atual, o cubismo é
Ou seja, o que o outro inscrito nessa seqüência do discurso diz
movimento. E como é a mais forte palavra achada para dizer o movi-
de fato, segundo o que o narrador deixa entrever pelo não-dito, é que
mento existente, escapa como o futurismo à pequenez vaidosa de
a poesia, a pintura, a escultura e a música dos modernistas são “casos
grupos ortodoxos. Cubismo não é só o que faz Fernand Léger para os
de excepcionabilidade mórbida ou reclamista”.
salons. Cubismo é a reação construtiva de toda a pintura moderna.
Como já havia sido dito anteriormente, a incorporação do dis-
(...) (T8)
curso de outrem, tenha ela uma relação polêmica — como no caso do
diálogo que se estabelece na crítica oswaldiana com os adversários
Em T1 e em T5, o recurso ao discurso citado constrói
da arte moderna — ou contratual — como no exemplo em que o
interlocutores figurativizados distintamente, seja o artista que retorna
enunciador cita seu próprio texto para validar seu percurso e confi-
da Europa e “choca-se” diante da paisagem daqui (T1), sejam os crí-
gurar seu saber —, funciona como recurso eficaz de convencimento
ticos que assumiram uma postura de reprovação diante da exposição
do enunciatário do texto crítico. Esse enunciatário é levado a reco-
de Anita Malfatti (T5):

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 283


nhecer as marcas que constroem a “verdade” do discurso e criam ________. A construção discursiva do modernismo no Brasil: o caso
efeitos de sentido de realidade, além de reconhecer o crítico como da crítica de arte. Corpus – revistas, 1911 – 1920. mimeo.
figura de autoridade que sabe e pode apreciar o objeto estético. AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s).
Pretendo, em minha dissertação, desenvolver a análise, a fim Cad. Est. Ling., Campinas, (19): 25-42, jul./dez. 1990.
de demonstrar outros recursos argumentativos utilizados na crítica CHIARELLI, Tadeu. Um jeca nos vernissages: Monteiro Lobato e o
de arte de Oswald de Andrade e, principalmente, desvelar o processo desejo de uma arte nacional no Brasil. São Paulo: EDUSP, 1995.
discursivo ali instaurado. FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação: as categorias de pes-
soa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 1996.
Referências bibliográficas GREIMAS, A.J., COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo:
Cultrix, 1989.
ANDRADE, Mario de. O movimento modernista. Aspectos da lite- KRIEGER, Maria da Graça. Persuasão e discurso em Semiótica.
ratura brasileira. São Paulo, Brasília: Martins, INL, 1972. LIMA, Marília dos Santos, GUEDES, Paulo Coimbra. Estudos
ARAUJO, Karla Cristina, SALLY, Daniele S. (orgs.). A construção de linguagem. Porto Alegre: Saga – DC Luzzato, 1996.
discursiva do modernismo no Brasil: o caso da crítica de arte. PERELMAN, Chaïm, OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da
Corpus – jornais, 1911 – 1920. mimeo. argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

284 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Discurso e argumentação na crítica aos salões de arte
Karla Cristina de Araújo Faria
Universidade Federal Fluminense - UFF

ABSTRACT: In this article, in the light of Discursive Semiotics, themes and figures are analysed like resources to construct the argumentation. We
investigate art critiques about the “salons” in the early 20th century in Brazil.
PALAVRAS-CHAVE: Semiótica, Arte, Salões, Crítica de arte.

No mundo colorido das artes que descobri durante minha par- sintaxe e uma semântica próprias. Vou me deter na qualidade
ticipação nos projetos de pesquisa sobre crítica de arte no Brasil, no argumentativa das escolhas da semântica discursiva que concretiza o
pré-modernismo e no Modernismo, sob orientação da professora dra. sentido dos valores disseminados nos níveis fundamental e narrati-
Lucia Teixeira, os Salões de Belas Artes me interessaram desde o vo, por meio de temas e figuras. A tematização é um processo de
início e por isso pretendo, em minha dissertação, analisar as críticas organização lexemática de natureza conceitual, vinculada a categori-
aos Salões de Belas Artes. Para tanto, utilizarei a teoria semiótica, as abstratas, enquanto a figurativização representa o mundo natural,
concentrando-me no seu último patamar de geração de sentido, o o mundo concreto e sensível, criando os efeitos de sentido de reali-
nível discursivo. Para a análise, trabalharei com os textos críticos do dade. Pretendo observar de que modo os percursos temáticos e figu-
período de 1894 a 1933. A maioria dos textos já foi encontrada e rativos representam elementos de persuasão do leitor.
fazem parte dos três corpora constituídos nos projetos de pesquisa Picasso, certa vez, indagado sobre os efeitos que sua tela
pioneiro da professora Lucia Teixeira. Estou formando o corpus para Guernica produzia nas pessoas, afirmou que: “todos sabemos que el
minha dissertação, acrescentando outros textos de críticos sobre o arte no es la verdad, por lo menos la verdad que no es dada a
tema. Através dessas críticas, pode-se perceber a importância dos comprender. El artista debe encontrar el modo de convencer a los
Salões como representação da arte produzida no Brasil. O demás de la verdad de sus mentiras.” Assim também se compreende
academicismo era preponderante na Academia de Belas Artes, sendo a argumentação como o conjunto dos mecanismos utilizados pelo
a estética neoclássica consagrada: enunciador para convencer o enunciatário das suas verdades. A
Os padrões neoclássicos obedecem a uma hierarquia de temas semiótica entende a argumentação como um programa de manipula-
e de gêneros. A prioridade fica com a pintura histórica e a retratística ção construído pelo enunciador, considerado destinador/manipulador,
em geral, sendo a representação da figura humana mais valorizada para agir sobre o enunciatário/ destinatário. Ao fazer cognitivo do
que a pintura de paisagens. Retratos e cenas históricas são tratados destinador corresponde o fazer interpretativo do destinatário mani-
de forma hierática, através de um desenho rígido, contornado. O co- pulado no sentido de entrar em conjunção com o objeto valor /opi-
lorido baseia-se na luminosidade e nos tons europeus trazidos pela nião/ . A análise deverá descrever esse programa de manipulação
experiência dos mestres da Academia. A construção pictórica obede- invariante nos dois textos, buscando a especificidade dos investi-
ce às regras do Renascimento, devendo a pintura ser cópia do real, mentos semânticos de cada um. O estudo da argumentação está rela-
representação das figuras e coisas do mundo, tal como acreditavam cionado à sintaxe discursiva, que se caracteriza pela investigação não
que o olho podia percebe-las, isto é, dentro de um espaço em pers- só das projeções da instância da enunciação no enunciado por meio
pectiva, com ilusão de profundidade. (FUNARTE, 1986:25) das categorias de pessoa, tempo e espaço, mas também das relações
Evento marcante e esperado durante todo o ano pelos artistas, entre enunciador e enunciatário, desdobramentos do sujeito da
o Salão era o momento de consagração dos artistas e estudantes da enunciação. Penso, porém, com Barros, que “todas as opções feitas
Escola Nacional de Belas Artes. Era também o momento em que o pela enunciação na produção do discurso são argumentativas” (1988,
público tinha a oportunidade de apreciar a arte produzida no período. p.110) e, por isso, investigarei os efeitos de sentido produzidos pelos
Criado em 1894, reunia os melhores artistas da época que buscavam procedimentos semânticos, para analisar sua eficácia argumentativa
o reconhecimento e as premiações, sendo a maior delas, o prêmio de nos dois textos críticos. Vou me fixar no texto de Lobato, mais vigo-
viagem à Europa. Pouco a pouco, os artistas procuraram a inovação, roso e opinativo que o texto do Jornal do Commercio.
principalmente aqueles que viviam em São Paulo, distante da oficia- O enunciador de T1, figurativizado como Monteiro Lobato,
lidade da Academia. As obras realizadas nos Salões já não eram no- começa sua crítica discorrendo sobre a indiferença popular em rela-
vidade e sim passadismo, sobretudo após a Semana de Arte Moder- ção ao meio artístico e louvando os artistas que, mesmo sem estímu-
na, pois artistas como Anita Malfatti e Tarsila do Amaral mostraram lo, escolhem seguir esse caminho. Assim, o enunciador constrói a
os novos padrões de arte realizados na Europa. A análise dos textos imagem de uma “exposição às moscas”, em que penetram os “mur-
deverá mostrar os valores artísticos em choque na sociedade: de um múrios da rua, a poeira do asfalto, fonfonadas”, enquanto “a goma
lado, os acadêmicos, e de outro, os modernistas. Cabe ressaltar que alta do Rio disputa a chuçadas de cotovelo cadeiras de cinema para
só em 1931 torna-se permitido que os artistas “modernos” exponham emparvecer o olho”. Contribuem para obnubilar esse ambiente os
no Salão oficial. “gases asfixiantes da indiferença pública” e a “estupidez” “duns
Farei aqui a análise dos recursos argumentativos de dois textos Mecenas de 160 réis”. Essas expressões arroladas constroem uma
do corpus por mim constituído. O primeiro, de autoria de Monteiro idéia de turvação, diluição, indefinição, termos que podem ser
Lobato, foi publicado em outubro de 1917 (T1), no número 22 da subsumidos por embaçamento, revelando uma incapacidade de olhar
Revista do Brasil. O segundo compõe-se de três partes, publicadas e apreciar a arte com nitidez. Para Lobato, produzir arte em “terra
nos dias 12, 19 e 21 do mesmo mês e ano, no Jornal do Commercio, assim” só poderia mesmo ser um sintoma de heroísmo ou loucura,
na coluna “Notas de Arte” (T2). Ambos os textos fazem a crítica à melhor dizendo, em suas próprias palavras, “heroísmo tangencial à
Exposição Geral de Belas Artes, ou o Salão de 1917. loucura”. Ainda nessa introdução, há uma construção de figuras e
Para a análise dos dois textos, utilizarei o instrumental teórico temas recorrentes que opõem um “bem-querer às artes”, ligado ao
da semiótica de base greimasiana, que considera a produção de sen- tempo do “insubstituível Pedro II”, a uma “falência da arte”, relacio-
tido de um texto como um percurso gerativo que se desdobra nos nada a um “vácuo democrático duns imperantes de chinelas”, deixa-
níveis fundamental, narrativo e discursivo, cada um composto de uma do pela instauração da República. Mostra-se, assim, uma visão con-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 285


servadora por parte do enunciador, que elabora um discurso saudo- de Petit que “prende a atenção e solta o riso”, pois o “temperamento”
sista dos tempos da monarquia, em que havia uma “compreensiva do artista é “armado de prismas que arredondam árvores, envernizam
inteligência” que defendia os artistas das “asperezas da vida”, tendo águas, esmaltam carnes”.
as manifestações artísticas e culturais alçado tal “grau de esplendor Em T2, o enunciador fala muito pouco sobre os novos, citando
que envergonharia a atualidade”. apenas dois deles e não faz, em nenhum momento, apreciação de
Em T2, o crítico do Jornal do Commercio começa o seu texto seus trabalhos. A preocupação do crítico de T2 é com os mestres.
com uma rápida descrição da cerimônia do vernissage, mostrando-se Discorre em vários parágrafos sobre eles, destacando João Baptista
muito satisfeito com a exposição, “numerosa e interessante”. Aqui da Costa, não por acaso diretor da Escola Nacional de Belas Artes.
não há divagações nem proselitismo, reduzindo-se os três parágrafos Segundo o crítico, Baptista da Costa “é o paisagista por excelência”,
iniciais a uma espécie de crônica social. pois traduz “com maior impressão de verdade os diversos e variados
Voltando a T1, depois da introdução, o crítico começa a falar aspectos da nossa natureza”, tendo paisagens de “bom quilate” que
dos expositores do Salão, dividindo-os nas seguintes categorias: no- “empolgam” o visitante.
vos, mestres e mulheres. Seguindo as mesmas categorias, T2 apre- O estudo das figuras e temas recorrentes nos textos mostra que
o enunciador de T1 busca a adesão do enunciatário pela provocação,
senta uma ordem inversa: mestres, novos e mulheres. Os críticos con-
criando polêmica em torno do tema da “indiferença pública” em rela-
ferem uma atenção diferenciada a cada uma, havendo em T1 mais
ção às artes, concretizada em expressões como “vastidão das galeri-
espaço para os novos, enquanto em T2 isso se dá em relação aos
as” e “exposição às moscas”. Esse enunciatário ao qual Lobato se
mestres. Ambos, porém, concordam que “mulheres” não se enqua- dirige é particular, o qual segundo Teixeira é correspondente ao audi-
dram nem em meio aos novos, nem em meio aos mestres, fornecen- tório particular da nova retórica, constituído pelo sujeito específico
do-nos uma pista do papel que as mulheres exerciam no mundo da ao qual o discurso se dirige” e, no caso dos textos de crítica de arte
arte. Em T2, chega-se a afirmar que “deve ser função de uma artista “uma constituição discursiva que representa o iniciado no mundo
mulher saber exprimir as qualidades de graça e de elegância das ou- das artes.” (TEIXEIRA, 1996:163)
tras mulheres, e principalmente tornar bem enfática a sua beleza ex- Por isso o crítico propõe uma discussão mais específica, como
terna”. Uma “artista mulher” deve restringir-se, então, aos assuntos foi visto tanto no caso das considerações políticas sobre o ambiente
que giram em torno do que era considerado o universo feminino. Por artístico, quanto no caso da análise irônica das obras do pintor Petit.
isso, o enunciador de T1 ressalta que estava “D. Georgina de Dessa forma, o discurso de insatisfação de Lobato desestabiliza a
Albuquerque, já muito senhora de sua arte, amiga de pintar interiores situação, busca a “moderna concepção de arte” nos novos artistas e
aos quais dá notável equilíbrio de ambiente e onde figuras bem tra- ataca os mestres. A crítica do Jornal do Commercio é destinada a um
balhadas pousam à vontade como chez soi”. Pintar era um passatem- público mais geral, que freqüenta a exposição socialmente e não está
po tanto quanto costurar e aprender piano. Em T2 o crítico afirma preocupado com os novos rumos da arte. O enunciador de T2 não
que a Sra. Sylvia Meier “talentosa discípula de Henrique Bernardelli” cria nenhuma polêmica, preocupando-se em mostrar ao enunciatário
“representa muito bem o seu mestre”, ou seja, as mulheres não são o valor da arte através dos mestres.
“senhoras da sua arte”, contrariando o que Lobato afirma em T1, O confronto dos dois textos que criticam o mesmo Salão, ao
quando se refere a Georgina de Albuquerque. Enquanto, em T2, as mostrar a inscrição dos dois enunciadores em formações discursivas1
pintoras são valorizadas por apenas representarem os seus mestres, diferentes, revela um momento de indefinição estética e de
estando à sombra do seu talento, em T1, o crítico é capaz de reconhe- amadorismo da crítica. No texto de Lobato, o embaçamento que en-
cer um traço de superação do mestre pela discípula Julieta Bicalho, cobre a produção artística,deixando-a entregue às moscas, à poeira, a
que “apresenta uma paisagem joãobaptistina onde aliás vê o público fonfonadas, encobre também a própria visão “embaçada” do
mais sentimento que nas do seu mestre, convizinhas”. enunciador, que vê a arte de modo turvo, obscuro, quando não anali-
Em T1 o enunciador busca nos “novos” traços de individuali- sa concretamente, com critérios estéticos precisos ou fundamenta-
dos, aquilo que observa. No texto do Jornal do Commercio, a repeti-
dade, procurando em suas telas a expressão de uma “singular verda-
ção de elogios aos mestres e a adjetivação excessiva não vão além do
de”, de “um estado d’alma” e de “paixão”. O crítico faz uma análise
reconhecimento de obras “atraentes”, “interessantes”, da admiração
passional das obras da “corte dos novos”, sempre ressaltando nas
por um certo “colorido distinto” ou por uma “encantadora composi-
pinturas algo de inovador e interessante. Se o artista não agrada na ção”. Fica-se aqui numa espécie de panorama geral, que também não
técnica, o enunciador elogia a escolha do assunto. Se este não o esti- chega a desembaçar os olhos do espectador.
mula, a valorização do artista se dá pela técnica. Vejamos um exem- Argumentam, ambos os enunciadores, por meio de escolhas
plo: O pintor Raymundo Cela com a “mania de mergulhar em mundo temáticas e figurativas do campo semântico da indefinição, da im-
dos mortos”, retrata uma “cena do século de Péricles”, fazendo precisão; embora obtenham efeitos distintos, que caracterizam dife-
“artificialismo puro” e dando à figura principal “cara de Elixir de rentes tipos de manipulação. Lobato, através da provocação2 , instiga
Nogueira”. Porém, o artista possui “boas qualidades de arranjador” e o leitor despertando a sua curiosidade ao utilizar-se de um tom agressi-
“boa técnica”. O discurso do enunciador de T1 é bastante impreciso vo e polêmico. O enunciador de T2 manipula o leitor através da se-
nos critérios de interpretação, na descrição da técnica, na apreciação, dução3 chamando a atenção para a beleza dos quadros dos mestres e
enfim, daquilo que seria específico da atividade pictórica. No entan-
to a crítica é complacente, estimulando artistas que seriam o futuro
da arte brasileira. Passemos adiante, já que, para repetir as palavras
do crítico, “não há mais tempo de falar dos novos” porque “os mes- 1 Segundo Fiorin “formação discursiva é um conjunto de temas e figuras
tres já estão superciliosos”. que materializam uma dada formação ideológica presente numa determi-
nada formação social. ( FIORIN, 1988:81)
Em sua apreciação aos mestres, Lobato reconhece o valor das
2 De acordo com Diana Luz Pessoa de Barros “há quatro tipos de figuras
obras dos pintores renomados, mas sempre afirma que não produzem da manipulação: a provocação, a sedução, a tentação e a intimidação.(...)
nada de novo que superasse as suas telas anteriores. Assim, Amoedo Na provocação e na sedução o destinador diz ao destinatário, de forma
“dentre os mestres é o que dá o melhor trabalho”, “embora não pos- clara ou implícita, o que sabe de sua competência, colocando-o em posi-
sua o encanto indefinível das suas telas anteriores” e Parreiras “ex- ção de escolha forçada. (...) na provocação, deve escolher entre aceitar
põe uma grande paisagem a sua maneira, mas que não destroniza desfavorável que dele foi apresentada ou fazer o que o manipulador pre-
nenhuma das suas boas paisagens de outrora”. Sua crítica aos mes- tende”. (BARROS, 1988:38)
tres é bastante rigorosa, chegando a censurar ferozmente uma pintura 3 Ainda segundo Barros “na sedução [o enunciatário] precisa recusar a re-
presentação lisonjeira que dele foi feita ou deixar-se manipular.”

286 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


silenciando sobre qualquer espécie de polêmica. Os dois textos são, BRITO, Mário da Silva. História do modernismo brasileiro. Rio de
portanto, modelos não só das diferentes reações provocadas pelo Janeiro: Civiliação Brasileira, 1997.
Salão, mas também das possibilidades discursivas de produção da CHIARELLI, Tadeu. Um jeca nos vernissages. São Paulo: EDUSP,
crítica de arte brasileira do período. 1995.
FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. São Paulo:
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Corpus – jornais,1911 – 1920. mimeo. LIMA, Marília dos Santos, GUEDES, Paulo Coimbra. Estudos
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ARAUJO, Karla Cristina, SANTANA, Hiller Soares. (orgs.). A cons- argumentação:a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
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BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do discurso. São Paulo: Atual,
TEIXEIRA, Lucia. As cores do discurso. Niterói: EDUFF, 1996.
1988.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 287


Gramática & Parser
Marcus Maia
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

ABSTRACT:This paper intends to review issues in Sentence Processing, comparing aspects of its main models, namely, the DTC (Fodor, Bever and
Garrett, 1974), Garden-Pathy (Frazier & Rayner, 1982), Construal (Frazier & Clifton, 1996), Incremental-interactive (Altmann & Steedman,1988),
constraint satisfaction(MacDonald, Perlmutter & Seidenberg, 1994 ) and a minimalist model (Weinberg, 1999).
PALAVRAS-CHAVE: Processamento sintático, ambiüidade estrutural, parsing

I – Introdução referência particularmente, nesta última seção, a investigações em


curso sobre o compreensão de frases em língua portuguesa, que vêm
A existência de um analisador sintático ou parser distinto da se desenvolvendo no âmbito da linha de pesquisa sobre processamento
representação da gramática na mente tem sido um pressuposto da sintático, no programa de pós-graduação em lingüística da UFRJ.
Psicolingüística cuja origem costuma ser atribuída à famosa dicotomia
competência x desempenho proposta por Chomsky (1965). Esta dis- II– Modelos de Processamento de frases
tinção é ilustrada, por exemplo, com orações relativas de encaixe cen-
tral, aparentemente bem formadas gramaticalmente, mas de difícil
compreensão:
(1) ? A atriz que o novo diretor que o produtor contratou demi-
tiu decidiu processar a emissora.
Por outro lado, os estudos de produção psicolingüística têm
investigado os “slips of the tongue” ou escorregadas de língua, que
parecem indicar um problema no acesso à representação e não na
representação em si mesma, já que, geralmente, o erro é corrigido 2.1. DTC - A teoria da complexidade derivacional
imediatamente:
(2) Tipos de Erros: Esta é a primeira grande teoria em Psicolingüística. A partir de
a. Antecipações: bake my bike por take my byke 1950, G.A. Miller e associados demonstraram através de diferentes
b. Perseveração: painted the poor por painted the door/ tentou paradigmas experimentais, tais como técnicas de reportagem parcial
a torte por tentou a sorte e total, locação de clicks, identificação de palavras em background
c. Reversão: Katz e Fodor -> Fatz e Kodor / bortou o colo de ruído, etc., a realidade psicológica de estruturas sintáticas. Na
por cortou o bolo década de 60, com o advento do primeiro modelo transformacional
d. Blending: grave erro -> grerro (kernel & tags), diferentes investigações experimentais procuraram
As diversas teorias psicolingüísticas têm, de uma forma ou de demonstrar a identidade entre a história derivacional das frases e a
outra, sido balizadas por essa dicotomia, especialmente na subárea
sua complexidade perceptual. A hipótese forte propunha a transpa-
conhecida como Processamento de frases. Ainda recentemente, quando
rência entre a gramática e o parser, isto é, frases com maior número
de sua vinda ao Brasil, em 1996, Noam Chomsky, instado a posicionar-
de transformações seriam mais difícil de processar do que frases com
se sobre a relevância do binômio, afirmou sua naturalidade conceitual,
lembrando que “as pessoas sabem coisas e as pessoas fazem coisas”, menos transformações. Segundo Miller, ao ouvirmos uma frase, com-
havendo, pois que se distingüir os dois processos, até no que se refere putamos o marcador frasal superficial e a partir daí as estruturas
aos aspectos não estritamente lingüísticos da cognição. Não obstante, subjacentes são recuperadas, revertendo-se as transformações que se
a dicotomia apresenta tensão variável ao longo da história da aplicam na derivação da frase. Os primeiros experimentos, por exem-
Psicolingüística, sendo particularmente interessante observar-se sua plo, McMahon (1963) pareceram indicar que o julgamento do valor
reformulação no âmbito do programa minimalista, etapa mais recente de verdade de orações como as exemplificadas abaixo revelava grau
da teoria gerativa. Nosso objetivo nessa comunicação é o de colocar de dificuldade variável, requerendo as negativas e passivas mais tempo
em perspectiva a relação Gramática/Parser, resenhando, ainda que de avaliação do que as afirmativas ativas. Aparentemente, haveira
esquematicamente, as questões básicas aí envolvidas, bem como sua menos operações gramaticais envolvidas na derivação das frases ati-
caracterização divergente em alguns dos principais modelos de vas afirmativas do que nas outras. Entretanto, diversos outros experi-
processamento de frases da psicolingüística moderna. Entre essas mentos subseqüentes (cf. Fodor, Bever & Garrett (1974)), vieram
questões, destaca-se a investigação sobre os aspectos particulares e demonstrar que a teoria da complexidade derivacional, ao menos em
universais da representação e do acesso. As teorias universalistas, sua versão mais forte, era falsa. Por exemplo, Bever, Fodor, Garrett
tais como a teoria do Garden-Path tendem a assumir a existência de & Mehler (1966) descobriram que uma transformação de movimen-
um conjunto uniforme de princípios de parsing aplicáveis a todas as to de partícula não era mais difícil de processar do que a frase
línguas. No outro extremo do espectro encontram-se teorias como
correspndente sem omovimento. Vários outros estudos, utilizando
alguns modelos conexionistas que propõe os chamados “totally data
diferentes técnicas experimentais, estabeleceram conclusivamente
shaped parsers”, isto é, parsers totalmente customizados pelo corpus
que não havia diferenças significativas entre passivas e ativas, apa-
a que se aplicam. No meio termo, há modelos que procuram concili-
ar princípios universais e parâmetros particulares. Nas seções abai- gamento de elementos, etc. As diferenças inicialmente encontradas,
xo, revisamos brevemente alguns conceitos fundamentais de parsing prinicpalmente entre afirmativas e negativas vieram a ser atribuídas a
e discutimos modelos teóricos que implementam esses conceitos de fatores semânticos, não sintáticos. Como conseqüência da falência
forma diversa e até adversa. Assim procedendo, queremos desenhar da DTC, registrou-se um afastamento entre a a Lingüística e a
um quadro geral onde se poderá compreender melhor ao menos algu- Psicolingüística que se aproximou gradualmente da Psicologia
mas das pesquisas reportadas nesse simpósio. Além disso, faremos Cognitiva, durante a década de 70.

288 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


2.2. A Teoria do Garden-Path fato, um caso especial de um princípio mais geral, o Princípio de
Parsimônia: Uma interpretação com menos pressuposições não-apoi-
Ao compreendermos uma frase precisamos integrar um con- adas é favorecido sobre outra que tenha mais. Um SN modificado
junto complexo de informações, envolvendo desde a análise sintáti- tem mais pressuposições do que um SN não modificado. Por isso um
ca da frase que nos permite determinar e relacionar constituintes for- SN nu (bare) será preferido a um que tenha modificadores como
mados por itens lexicais que nos são apresentados em certas ordens. um SP, uma relativa, etc.
A informação contida nesses itens lexicais, tais como propriedades
categoriais, grade de subcategorização, grade temática, propriedades 2.4. Teorias paramétricas
morfológicas, prosódicas, ortográficas tem que ser acessada em al-
gum ponto do processo – e a questão de que ponto é esse é objeto de Esta classe de modelos assume que há uma prioridade atribu-
ída a certas operações no portfolio de estratégias do parser. Como
controvérsia acirrada entre os modelos, como veremos. É uma das
conseqüência do processo de fixação de parâmetros na aquisição, há
questões, inclusive, abordada pela pesquisa de Melo, a ser reportada
mudanças não apenas nos princípios gramaticais, mas também nas
nesse simpósio. O fato é, no entanto, que somos muito bons e rápi-
estratégias de parsing.
dos nesse processo, que ocorre em milésimos de segundos, aparente-
2.4.1. Competição entre princípios universais e estratégias lo-
mente mais como ato reflexo, automático, do que como ato de refle-
cais (Cuetos e Mitchell, 1988; Mitchell e Cuetos, 1991a). Proprieda-
xão consciente. Geralmente só nos damos conta do processo quando
des paramétricas das línguas específicas determinam a existência de
ele falha, como ocorre quando nos deparamos com frases ambíguas.
estratégias locais que competem com princípios universais de parsing.
A afirmação fundamental da Teoria do Garden Path é que: (1) o parser
Por exemplo, Cuetos e Mitchell sugerem que a ambiguidade de
usa uma porção do seu conhecimento gramatical isolado do conheci-
aposição de relativas altas/baixas é resolvida em termos altos por
mento de mundo e outras informações para a identificação inicial das
línguas com modificadores pós-nominais em que, por exemplo, o
relações sintagmáticas; (2) o parser confronta-se com sintagmas de
adjetivo geralmente se segue ao substantivo. Neste caso há uma pres-
aposição ambígua e compromete-se com uma estrutura única; (3)
são local para apor o modificador ao primeiro N que compete e ven-
Pressionado pela arquitetura do sistema de memória de curto prazo,
ce a estratégia de recência (late closure).
que tem um limite estreito de processamento e armazenamento, o
2.4.2. Construal
parser segue um princípio psicológico na escolha desta estrutura: use
Frazier e Clifton (1996) propõem que as estratégias universais
o menor número possível de nós (M.A.) e, se duas aposições míni-
da TGP só se aplicariam a um subconjunto de ambiguidades: as rela-
mas existem, aponha cada nova palavra ao sintagma corrente (LC).
ções primárias, argumentais; as relações secundárias (adjuntos) não
Embora haja evidências substanciais em favor de MA e LC , há são estruturadas de forma fixa, mas “construed” em posição
também questionamentos à sua existência, tal como Cuetos e Mitchell descomprometida (buffer), ficando a decisão final para o processador
(1988), que demonstram que tal não ocorre em Espanhol. Em Portu- temático.
guês, estudos como o de Ribeiro (2000) e Maia & Maia (2000) de- 2.4.3. Competição Predicado/Recência (Gibson et alii, 1995).
monstram a preferência pela aposição alta da relativa. Estes experi- Modelo de competição parametrizada mais elaborado que propõe
mentos colocam em cheque a afirmação de Frazier (1987) de que é que o que está em jogo é uma preferência mais geral em apor
possível remover a gramática da língua inglesa da teoria universal modificadores mais altos (proximidade do predicado) ou mais bai-
do processamento de frases, plugar a gramática de qualquer outra xos (recência). Haveria variação entre as línguas a esse respeito.
língua, e obter a teoria de processamento adequada para aquela lín- Analisar-se-iam aqui não somente a aposição de relativas, mas tam-
gua. A TGP será alvo também de outro tipo de questionamento, bém a aposição de SP’s.
como, por exemplo, aqueles levantados pela Teoria Incrementacional-
Interativa. 2.5. A teoria de “satisfação de condições”

2.3. O Modelo Incrementacional-Interativo Os modelos desse tipo propõem que não há limites
arquiteturais aos tipos de informação que podem ser assessados pelo
O objetivo principal das teorias atuais em Compreensão de parser, sendo que algumas condições podem influenciar o
Frases é identificar os tipos de informação que as pessoas utilizam ao processamento mais cedo do que outros, em função de uma estraté-
ler ou ouvir frases e determinar os princípios seguidos ao usar a in- gia de competição de pesos. A influência da informação lexical é
formação disponível. A hipótese de que o conhecimento lingüístico é um dos fatores preponderantes na análise sintática, bem como fato-
usado de forma modular tem levado a avanços substanciais na com- res pragmáticos e discursivos. Assim, por exemplo, esse modelo
preensão destes princípios. Obviamente, todas as informações rele- explicaria o garden path que se obtém na frase abaixo em termos do
vantes podem ser usadas em algum momento da compreensão. As- maior peso dado ao acesso da forma de pretérito imperfeito do ver-
sim, uma teoria modular deve especificar a natureza e o como/quan- bo entrar do que à forma de presente do verbo entravar, muito me-
do dos módulos. A teoria “interativa-incrementacional” de Altmann nos freqüente: (3) Um navio brasileiro entrava na baía um navio
& Steedman (1988) é uma teoria modular que permite interação mais japonês. Além de conceber o mecanismo de processamento como
elaborada entre os módulos sintático e semântico/referencial. Altmann sensível à freqüência de ocorrência dos itens lexicais, os proponen-
& Steedman (1988) escolheram um subconjunto dos fenômenos ex- tes desse modelo têm procurado demonstrar a importância das con-
plicados pela TGP (construções com modificadores pós-nominais) dições de natureza pragmática na resolução das ambigüidades es-
para explicá-lo em termos de processos referenciais. Nestes exem- truturais. Por exemplo, Thornton, MacDonald & Gil (1997) desen-
plos, a modificação do SN é a alternativa não preferida. A&S suge- volvem experimentos de leitura auto-monitorada que indicam a in-
rem que tal ocorre não por causa de fatores estruturais, mas em virtu- fluência do fator modificabilidade na aposição de SPs ao SN mais
de de fatos referenciais: a modificação do SN não é licenciada pelo alto ou mais baixo. Segundo esses autores, um SN mais modificado
contexto discursivo. É o Princípio de Suporte Referencial: Uma aná- é identificado de maneira mais inequívoca no discurso, sendo me-
lise de SN que seja referencialmente apoiada é preferível a uma que nos provável que receba modificação adicional. Assim, para esses
não o seja. Em “o livro” pressupõe-se a existência de um único livro autores, a aposição mais alta da relativa seria menos favorecida
no modelo de discurso; já em “o livro que eu comprei” pressupõe-se em (4) do que em (5): (4) A filha do coronel que sofreu o acidente.
um conjunto de entidades. O Princípio de Suporte Referencial é, de (5) A filha mais velha à direita do coronel que sofreu o acidente.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 289


2.6. Os Modelos Conexionistas rização da faculdade da linguagem é a sua abordagem contrastante em
Chomsky (1995) e Chomsky (1998). Conforme apontamos em Maia
Trata-se de modelos baseados em experiência. Amaquinaria
(2000), enquanto Chomsky (1995) assume a hipótese de que o
computacional é montada a base de exposição ao corpus. O Modelo
processamento, ao contrário do sistema da competência gramatical, é
PDP de McClelland, St. John & Taraban (1989), por exemplo, nega
invariável, Chomsky (1998) propõe, à base de evidências
de início a necessidade de representação estrutural, propondo que o
psicolingüísticas recentes, que os sistemas de processamento podem
único requisito necessário é que a representação forneça base sufici-
variar de língua para língua, sendo modulados pela gramática de
ente para o desempenho adequado de tarefas. Quais são as tarefas,
cada língua específica. No processamento minimalista, ao contrário
ou demandas impostas? Os autores propõe a seguinte concepção da
da TGP, as restrições características da memória de curto-prazo não
tarefa de compreensão de frases: uma seqüência de palavras é apre-
são invocadas para explicar as decisões do parser. Ao contrário, ar-
sentada e o compreendedor deve formar uma representação que lhe
gumenta-se que o processamento é função da satisfação
permita responder corretamente quando testado de vários modos. Em
incrementacional rápida das condições gramaticais em jogo na deri-
geral, os testes podem tomar uma ampla gama de formas, requeren-
vação da frase na gramática, tais como, a satisfação do critério
do ações, respostas verbais, como, por exemplo, responder pergun-
temático. Assim, por exemplo, Weinberg ilustra a preferência pelo
tas usando a representação. Assim, ao ouvir “O homem mexeu o café”,
objeto direto na ambiguidade abaixo entre SN objeto direto / oração
espera-se que a representação - qualquer que seja - (mas, aqui não
objetiva direta, como função da computação sintática em si que
estamos no modelo estímulo -resposta, com a mente como caixa pre-
optimiza a checagem de traços na derivação em termos de condições
ta!?) permita responder: Quem mexeu? O que mexeu? Com quê?
de economia. A aposição como objeto direto permitiria a checagem
Uma vez que o modelo não estipula exatamente que forma a repre-
de traços theta do argumento pelo núcleo verbal, de forma mais ime-
sentação assume, é a performance do modelo que determina se as
diata e econômica do que a aposição como oração objetiva direta, em
representações são adequadas. A seqüência de palavras é instanciada
que o SN “his sister” só poderia ter seus traços theta checados após a
como uma série de padrões de ativação sobre um conjunto de unida-
computação do verbo da encaixada. Assim a estrutura em (7) é a
des de processamento. Cada nova palavra é vista como uma atualiza-
preferida, pois permite a satisfação de condições gramaticais mais
ção deste padrão de ativação da representação da frase. O conheci-
rapidamente e de forma mais econômica, envolvendo menos opera-
mento de como esta atualização é desempenhada está armazenado
ções gramaticais.
nas conexões que permitem que estes inputs atualizem a representa-
ção da frase.

2.7. O Processamento Minimalista


Referimo-nos fundamentalmente a teorias recentes sobre o
processamento de frases, tais como os modelos de Weinberg (99) e
Frampton e Guttmann (99). A idéia central é a de que a faculdade de
linguagem é extremamente bem desenhada, de modo que os mesmos
princípios que governam a faculdade de linguagem também contri-
buem para a teoria de processamento de frases. Em outras palavras,
como afirmam Frampton e Guttman, as computações da teoria sintá-
tica são psicologicamente reais, isto é, correspondem às computa-
ções mentais. Este passo nos remete à hipótese de transparência en-
tre a gramática e o parser da DTC. Agora, não se fala de gramática
e parser, como no título desta palestra, e sim que a gramática é o
parser. É o mais mínimo, em vez de dois, um. Este passo se tornou
possível pela mudança na concepção de processamento que se obser-
va de Chomsky 95 para Chomsky 98. Nos termos propostos em “The
Minimalist Program” (Chomsky , 1995, p. 1-11), a faculdade huma-
na de linguagem teria dois subcomponentes - um sistema cognitivo
de representação do conhecimento lingüístico e um sistema de aces- Referências bibliograficas
so a este conhecimento para utilizá-lo de diferentes maneiras. O sis-
tema cognitivo pode ser concebido como um sistema de princípios ALTMANN, G & Steedman, M. (1988). Interaction with context
gramaticais universais e parâmetros específicos às diferentes lín- during human sentence processing. Cognition, 30, 191-238.
guas. O que dizer, no entanto, do segundo componente da faculdade CHOMSKY, N. (1965). Aspects of the Theory of Syntax. Cambridge,
de linguagem, o sistema de acesso ou de processamento? Seria líci- MA: MIT Press.
to também pensá-lo em termos de princípios universais e parâmetros ________. (1995).The Minimalist Program. Cambridge: The MIT
de desempenho particulares? Em outras palavras, a variação lingüís- Press.
tica seria restrita ao sistema cognitivo ou poderia também ser esten- ________. (1996). New Horizons in the Study of Language. In:
dida ao sistema de processamento? Segundo Chomsky (1995), a pre- DELTA, vol. 13, nº especial.
sunção mais simples é a de que o sistema de processamento seria ________. (1998).Minimalist Inquiries: the Framework. MIT,
invariável, não admitindo parâmetros específicos às línguas particu- manuscript.
lares. Muito embora esta seja uma questão aberta à verificação CUETOS , F., e D.C. Mitchell. Crosslinguistic differences in Parsing:
empírica, se a hipótese mais simples for a correta, como pensar um Restrictions on the use of the Late Closure strategy in Spanish.
sistema de competência gramatical variável e um sistema de Cognition, 30, 73-105, 1988.
processamento invariável se postulamos que se trata essencialmente FODOR, J.A., Bever, T. and M. Garrett. (1974). The Psychology of
de um mesmo e único objeto? Uma medida que permite aferir o im- Language. New York: McGraw-Hill.
pacto recente dos estudos psicolingüísticos sobre a própria caracte- FRAZIER, L. (1978) On comprehending sentences: Syntactic parsing

290 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


strategies. Doctoral dissertation, University of Connecticut. MACDONALD, M.C., Pearlmutter, N.J., and Seidenberg, M.S.
Distributed by Indiana Linguistics Club. (1994). The lexical nature of syntactic ambiguity resolution.
FRAZIER, L. & C. Clifton Jr. Construal. Cambridge: The MIT Psychological Review, 101, 676-703.
Press, 1995. MAIA, M. 2000. A Compreensão de relações espaciais em Karajá. A
FRAZIER, L. & K. Rayner. (1982). Making and correcting errors aparecer na Revista Palavra.
during sentence comprehension: eye movements in the analysis MAIA, M. & Maia, Juliana.(2000) A aposição de orações relativas
of structurally ambiguous sentences. Cognitive Psychology, 14. por falantes bilíngües de Português e de Inglês. Ms, UFRJ.
GIBSON,E., & Loomis, J. (1995). A corpus analysis of recency RIBEIRO, A.J.C. (2000). O Processamento de Orações Relativas no
preference and predicate proximity. Proceedings of the Sixteenth Português do Brasil. Trabalho apresentado no GT de
Annual Conference of the Cognitive Science Society, 351-362. Psicolingüística da XV ANPOLL, UFF, Niterói.
MCLELLAND, J.L., St. John, M. & Taraban, R.(1989). Sentence THORNTON,R. MacDonald, M.C. and Gil, M.(1997). Pragmatics
Comprehension: A Parallel Distributed Processing Approach. Constrain the initial interpretation complex noun phrases in
Language and Cognitive Processes, 1989, 287-335 English and Spanish. Unpublished manuscript, USC.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 291


Palavras derivadas no léxico mental:
abordagens gerativas e psicolingüísticas
Antonio Sérgio Cavalcante da Cunha

ABSTRACT: This work proposes that a productive dialogue is viable between Generative Morphology and Experimental Psycholinguistics. We argue
that the results of psycholinguistic experiments might be useful in the evaluation of different theoretical proposals of lexical representations.
PALAVRAS-CHAVE: representação lexical, léxico mental.

Nosso trabalho coloca-se na interseção das linhas de pesquisa sos fatores lingüísticos no acesso lexical, tais como produtividade,
sobre a regularidade na constituição do léxico e sobre a relação aqui- transparência semântica, natureza do radical (livre ou preso), tipo de
sição/processamento da linguagem. Temos, por diretiva geral, a crença afixo (prefixo ou sufixo).
na viabilidade de um diálogo produtivo entre as discussões da teoria Porém, tendo em vista a limitação de tempo de que dispuse-
morfológica de base gerativa sobre a representação das palavras de- mos, nosso objetivo específico foi mais modesto, pois o presente
rivadas no léxico e, por outro lado, as questões relativas à representa- trabalho, a partir dos experimentos de Tyler, Waksler e Marslen-Wil-
ção e ao acesso lexical desenvolvidas em torno de resultados forneci- son (1993) e Marslen-Wilson e Zhou (1999), mas tendo como base
dos pela psicolingüística experimental. as propostas de Basílio (1980, 1987, 1990) para estruturas lexicais
Durante muito tempo, a investigação psicolingüística sobre do português, pretende ser um primeiro passo para fornecer resulta-
processamento lexical e a discussão teórica em abordagens gerativas dos psicolingüísticos em língua portuguesa que possam servir como
sobre o léxico seguiram caminhos diferenciados, definindo espaços subsídios para propostas teóricas de constituição e organização do
virtualmente incomunicáveis, principalmente nas décadas de 1970 e léxico.
1980. Dentro desse quadro, devemos lembrar que os primeiros mo- Do lado da teoria psicolingüística na área voltada para a repre-
delos de estruturação do léxico numa abordagem gerativa, a saber sentação lexical, podemos dizer que tem sido aceita a distinção entre
Halle (1973), Jackendoff (1975) e Aronoff (1976), datam do período representações de acesso e representações centrais, criando-se, as-
de afastamento entre ambas as áreas, o que explica por que a teoria sim, mais de um léxico: o léxico central e os léxicos de acesso (visu-
psicolingüística, ao tratar da questão do reconhecimento lexical, não al/gráfico e auditivo/fonológico). Tal distinção tem aparecido em
leva em conta problemas relativos à estruturação morfológica em uma uma série de modelos psicolingüísticos, tais como o modelo serial de
abordagem gerativa. Forster, o AAM, de Caramazza, Laudanna e Romani e o MRM, de
Ilustra esse afastamento o grande interesse desenvolvido pela Schreuder e Baayen.
teoria psicolingüística, nas décadas de 70 e 80, nos processos envol- Segundo Tyler, Waksler e Marslen-Wilson (1993), pistas para
vidos no acesso à representação das palavras derivadas, deixando de a estrutura morfológica que apareçam em uma modalidade (visual ou
lado questões sobre o conhecimento do falante nativo acerca do léxi- auditiva), mas não em outra, como o caso da diferença de pronúncia
co de sua língua e sobre como compatibilizar mecanismos de acesso do prefixo re- em return, com /i/, e rebuild, com /i:/ são argumentos
com o subjacente conhecimento estruturado desse falante nativo, as- importantes para a aceitação de um nível de processamento inicial
sim como as relações que ele é capaz de fazer entre os itens lexicais, que leve em conta aspectos ortográficos e/ou fonológicos. Assim, as
questões centrais para a Morfologia Gerativa. representações de acesso são específicas da modalidade por meio da
Pretendemos, portanto, explorar essa possibilidade de diálogo qual o estímulo é percebido. Já as representações centrais são inde-
e sugerir que resultados de experimentos em psicolingüística podem pendentes da modalidade e constituem-se na representação dos atri-
ser usados como subsídios na avaliação de hipóteses sobre a repre- butos sintáticos e semânticos dos itens lexicais, bem como de suas
sentação de palavras derivadas no léxico. Embora não esquecendo propriedades fonológicas abstratas. Tal distinção já havia sido feita
que o léxico, definido em uma teoria formal gerativa, e o léxico psi- por Taft (1988). O sistema de entrada compreende as representações
cológico, definido em teorias psicolingüísticas, constituem espaços que são usadas para encontrar correspondência com os estímulos re-
teóricos distintos, de modo que uma ligação entre quaisquer resulta- cebidos. Há dois sistemas de entrada: um para os estímulos recebi-
dos não pode ser transferida sem alguma cautela de uma área para a dos visualmente e outro para os estímulos recebidos auditivamente.
outra, não podemos deixar de observar, no entanto, que, tendo como Depois que se obtém uma correspondência satisfatória entre a pala-
horizonte o ideal de uma integração entre representação e vra apresentada e a representação do sistema de entrada, a informa-
processamento, na avaliação de propostas teóricas em Morfologia, ção acerca da palavra torna-se acessível em um sistema central, inde-
sendo equivalente outros fatores, poderá ser considerada mais ade- pendente de modalidade, que contém informação acerca da pronún-
quada aquela que for mais compatível com resultados em experimen- cia e ortografia da palavra, assim como de seu significado e caracte-
tos psicolingüísticos. rísticas sintáticas.
A idéia não é nova. Já em 1989, por exemplo, Badecker e Em 1993, embora ainda aceitando a distinção entre represen-
Caramazza, a partir de evidências encontradas em pacientes afásicos, tações de acesso e representações centrais, Tyler, Waksler e Marslen-
colocaram questões a serem respondidas pelos teóricos em Morfologia Wilson (1993), por meio da realização de 3 experimentos de priming
preconizadores de uma não-separação entre flexão e derivação. E, morfológico bimodal, investigaram questões a respeito da configura-
por outro lado, na direção contrária, não há como negar que algum ção do léxico central (entradas lexicais). Este trabalho, segundo seus
tipo de estruturação morfológica tem que ser tomada como pressu- autores, constitui-se no início de uma pesquisa visando dar explica-
posto na base de qualquer experimento psicolingüístico que lide com ções para a representação das palavras complexas em inglês. A justi-
as questões de representações de formas derivadas e com o acesso a ficativa para o uso de experimentos bimodais está no fato de que,
essas representações. Podemos citar, como exemplo, a preocupação neste tipo de tarefa, em que são utilizados pares de palavras, como
de Bergman, Hudson e Eling (1988) em investigar o papel de diver- uma palavra do par é apresentada em uma modalidade e a outra, em

292 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


outra modalidade (a primeira, oralmente e a segunda, por escrito), significativos entre base e derivado semanticamente transparentes sem
a tarefa não é sensível a coincidências puramente ortográficas ou alomorfia e com alomorfia, tais resultados, segundo os autores, seri-
fonológicas entre as palavras do par, como ocorreria nos níveis de am um forte argumento a favor de um modelo de acesso direto ao
acesso. léxico central, pois, no nível inicial de processamento, espera-se que
Na condição teste, a primeira palavra do par (antecessora ou não haja efeito de facilitação quando houver alomorfia, pois em tal
prime) e a segunda (alvo) mantêm algum tipo de relação (morfológica, nível, as questões puramente fonológicas ou ortográficas envolvidas
fonológica, semântica, conforme o que se queira testar), enquanto, na alomorfia são relevantes. Os resultados confirmam as previsões
na condição controle, a mesma segunda palavra (alvo) é precedida feitas pelos autores de modo que o efeito de facilitação entre base e
por outra que não mantém a mesma relação. derivado como em dance/dancer, no qual não há alomorfia, é tão
Os resultados demonstram que há significativo efeito de fa- significativo quanto em sane/sanity, no qual a base sofre alteração
cilitação no reconhecimento da palavra-alvo quando está é precedi- fonológica no processo derivacional (/ey/ em sane Õ /æ/ em sanity)
da por palavra morfológica e semanticamente relacionada a ela. No Do lado da teoria morfológica de base gerativa no tocante à
entanto, semelhanças apenas fonológicas não produzem efeito de derivação, podemos dizer que existem duas posições diametralmente
facilitação no reconhecimento da palavra-alvo. Portanto, derivados opostas de pensar o léxico. De um lado, estão as propostas de
semanticamente transparentes, mesmo que fonologicamente opa- Chomsky (1965) e Di Sciullo e Williams (1987), para quem o léxi-
cos, facilitam o reconhecimento de sua base e vice-versa. Contudo, co é uma lista não-ordenada de formas sem interesse para a gramá-
derivados semanticamente opacos não produzem efeito de facilita- tica. Com a diferença de que, para Di Sciullo e Williams, há itens
ção no reconhecimento da base, pois o falante não relacionaria mais lexicais que, pela sua regularidade total, tanto semântica quanto
os dois elementos. O resultado mais discutido, no entanto, é a falta fonológica, não estão no léxico; fazem parte da gramática. A pro-
de efeito de facilitação entre derivados semanticamente transparen- posta de Di Sciullo e Williams é ainda uma das de maior influência
tes da mesma base. dentro da Morfologia Gerativa. Por outro lado, Halle (1973),
Os resultados levam os autores a propor uma configuração Jackendoff (1975), Aronoff (1976), Basílio (1980, 1987, 1990),
do léxico central em que somente as bases seriam representadas. Anderson (1992) vêem, cada um a seu modo, o léxico como tendo
Derivados semanticamente transparentes não precisariam ter repre- algum tipo de estrutura e, por isso, entendem que a gramática deve
sentação, mesmo que não houvesse transparência fonológica total; ocupar-se do estudo da estrutura do léxico.
apenas seus sufixos estariam ligados à base; mas os semanticamen- Basílio apresenta a proposta que mais nos interessa dentro da
te opacos, por não terem mais a relação semântica com sua base, Morfologia Gerativa por muitos motivos entre eles porque toma como
teriam sua própria representação. A explicação para a falta de efei- base dados do português. Para a autora, a competência lingüística do
to de facilitação entre derivados semanticamente transparentes da falante nativo no léxico de sua língua compõe-se de vários elemen-
mesma base é dada em termos da existência da ligação da base com tos: uma lista de entradas lexicais; um conjunto de regras que permi-
cada sufixo com o qual ela se combina, pois a ativação de uma te ao falante relacionar itens de sua língua, interpretar itens lexicais
ligação inibiria a outra, explicando a falta de efeito de facilitação existentes ou novos, assim como produzir novos itens; e finalmente,
verificada no experimento. pertence à competência lexical do falante nativo um conjunto de res-
Os resultados são interessantes, porém a proposta de interpre- trições à aplicação das regras. Uma das grandes contribuições de
tação não é a única possível. Em primeiro lugar, os autores trabalha- Basílio está na separação entre Regras de Formação de Palavras
ram com derivados com um único sufixo e bases não sufixadas. Ad- (RFPs), que são regras produtivas que permitem ao falante formar
mitindo-se uma cadeia derivacional como “fim/final/finalizar/ novos itens lexicais, e Regras de Análise Estrutural (RAEs), regras
finalização”, em que cada elemento é derivado semanticamente trans- interpretativas de formas existentes ou de novas formas que o falante
parente do anterior por sufixação, se, por exemplo, for encontrado encontra. A autora assinala que cada RFP terá agregada a si uma
efeito de facilitação para “finalizar”, quando o referido item é apre- RAE, mas a recíproca não é verdadeira. O falante pode ser capaz de
sentado depois de “final”, poderíamos dizer que este tem de estar interpretar formas derivadas de sua língua, mas não utilizar a relação
representado no léxico, ainda que “final” seja derivado semantica- base/afixo na produção de novos itens. Por outro lado, se o falante
mente transparente em relação à sua base (primitiva) “fim”. Além utiliza produtivamente a relação base/afixo é porque foi capaz de
disso, considerando-se os possíveis resultados acima, a explicação interpretar essa relação por meio de uma RAE. Com essa distinção,
para a falta de efeito de facilitação entre derivados semanticamente Basílio resolve o problema pendente nas propostas de Aronoff e
transparentes da mesma base pode ser dada, assumindo-se modelo Jackendoff, nas quais um único tipo de regra – RFP em Aronoff e
em que todas as palavras estariam representadas no léxico central. Regras de Redundância em Jackendoff – era responsável pela produ-
Porém, cada derivado estaria ligado estruturalmente à sua base, sem ção e interpretação de itens lexicais derivados.
uma ligação direta entre si, de modo que a apresentação de um dos Dentro da proposta de nosso trabalho, já exposta, realizamos
derivados ativa diretamente a base, mas o nível de ativação que passa um experimento de priming morfológico em duas modalidades:
desta para o outro derivado é pequena, o que explicaria o efeito pou- monomodal, visual e bimodal. A tarefa bimodal se justifica pelo fato
co significativo. de desejarmos investigar questões relativas às representações cen-
Além disso, mais recentemente, o trabalho de Marslen-Wil- trais; já a tarefa monomodal é justificada pelo fato de que, aceitando-
son e Zhou (1999) com alomorfes, com dados do inglês, vai mais se, a princípio a distinção entre representações de acesso e represen-
adiante, questionando, a partir dos resultados de dois experimentos tações centrais, pretende-se verificar se, ocorrendo alterações
de priming morfológico monomodal, o acesso via léxico de entrada, fonológicas/ortográficas significativas no derivado, apresentado como
propondo o acesso direto ao léxico central, o que representa uma alvo, essas alterações afetariam ou não o reconhecimento do deriva-
aproximação com a teoria gerativa, para quem só há um único léxico. do, independente de haver relação semântica entre base e derivado,
A justificativa para o uso de experimento monomodal, ao in- pois, nos níveis iniciais de processamento, as questões semânticas
vés de bimodal como fora feito em 1993, está no fato de que, apre- não deveriam atuar. A tarefa de priming foi mesclada com tarefa de
sentando-se os itens lexicais na mesma modalidade (no caso, oral), decisão lexical, de modo que os participantes tivessem que decidir se
os resultados refletiriam aspectos relativos a um possível léxico de o item alvo pertence ou não português.
acesso na modalidade. Se houver efeitos de facilitação igualmente Foram criados 24 pares de itens lexicais experimentais, todos

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 293


pertencentes à língua e divididos em 4 condições decorrentes da variável relação morfo-semântica (F(16,02) = p<0,05 (p=0,0003), o
manipulação das variáveis relação morfológica (e semântica) (+M, - que demonstra que o fator relevante no reconhecimento das formas
M), em que palavra antecessora e alvo mantêm ou não uma relação nominalizadas, na tarefa monomodal, foi a relação morfo-semântica.
morfo-semântica com a antecessora, e transparência fonológica, em A média dos tempos das condições +M (1 e 3) foi de 809,58 mseg e
que o elemento-alvo é o não fonologicamente relacionado ao das –M (2 e 4), 944,45 mseg, diferença significativa de 134,87 mseg,
antecessor. Obtiveram-se, assim, as seguintes condições experimen- o que sustenta nossa hipótese. A transparência fonológica não apre-
tais: condição 1 (+F/+M) (ex.: ensinar/ensinamento); condição 2 (+F/ sentou efeito significativo (F(0,16)=p>0,05 (p=0,2835)). A diferen-
-M) (ex.: sola/solidez); condição 3 (-F/+M) (ex.: móvel/mobilida- ça entre as condições +F (1 e 2) e –F (3 e 4) foi de apenas 16,88
de); condição 4 (-F/-M) (ex.: leigo/sinceridade). mseg. Contudo, os resultados relativos à transparência fonológica
Nas 4 condições experimentais, os itens lexicais alvo eram for- podem ter ocorrido por se tratar de uma tarefa exclusivamente visual.
mas nominalizadas deverbais ou deadjetivais, uma vez que a Na tarefa bimodal, tivemos, em mseg, as seguintes médias de
nominalização é um processo derivacional de produtividade próxi- tempo por condição: condição 1 (773,51), condição 2 (926,24), con-
ma à da flexão. Evitou-se, com isso, o uso de relações lexicais de dição 3 (847,35), condição 4 (966,24). Novamente os dados foram
diversas naturezas, problema que verificamos nos experimentos de submetidos a uma análise da variância com medidas repetidas, que
Tyler et alii (1993) e Marslen-Wilson e Zhou (1999). revelou efeito significativo da relação morfo-semântica (F
Nas 4 condições experimentais, os itens lexicais alvo tinham o (39,94)=p<0,05 (p=0,0000)). Nas condições +M (1 e 3), o tempo
mesmo tamanho médio e a mesma freqüência acumulada média, en- médio foi de 810,43 mseg, e, nas –M (2 e 4), 946,24 mseg, diferença
tendendo-se como freqüência acumulada a freqüência da forma usa- significativa de 135,81 mseg. Aqui, no entanto, talvez pelo fato de o
da e de suas flexões regulares. O procedimento por nós adotado se- item antecessor ser apresentado oralmente, notou-se, também, efeito
gue o dos autores em quem nos inspiramos para a criação dos expe- da variável transparência fonológica (F (7,36)=p<0,05 (p=0,0115)).
rimentos. Nas condições +F (1 e 2), o tempo médio foi de 849,88 mseg e, nas –
Para caracterizar a tarefa como de decisão lexical, foram cria- F (3 e 4), de 906,80 mseg, diferença de 56,92 mseg.
dos, 48 pares de enchimento, nos quais o elemento alvo poderia ser Os dados das duas tarefas constituíram dois grupos e foram
uma palavra do português ou não. O tempo de reconhecimento des- submetidos a uma análise da variância 2 (relação morfológica) x 2
ses elementos alvo de enchimento não era considerado. Antes do (transparência fonológica) x 2 (tarefa), em que os dois primeiros fa-
experimento, foi realizado treinamento com 12 pares elementos. tores são medidas repetidas e tarefa é um fator grupal. A análise reve-
A medição de freqüência dos itens lexicais alvo experimentais lou mais uma vez efeito significativo da relação morfológica (F (40,09)
foi feita a partir de um banco de dados por nós construído (aproxima- = p<0,05 (p=0,0000). O tempo médio das condições +M (1 e 3) foi
damente 400.000 palavras) e dividido em duas partes. A primeira de 809,95 mseg e, da –M (2 e 4), 945,23 mseg, diferença de 135,28
parte (língua oral) era composta de todos os textos dos 3 volumes do mseg. Mas também foi detectado efeito do fator transparência
Projeto NURC-RJ. A segunda parte (banco de dados de língua escri- fonológica (F (8,44) = p<0,05 (p= 0,0051)). A diferença dos tempos
ta) foi construída a partir da escolha aleatória de textos das revistas médios das condições + F (1 e 2) (860,39 mseg) e –F (3 e 4) (894,79
Isto É e Veja e dos jornais do Brasil e O Globo, coletados todos no mseg) foi de 34,40 mseg.
período de fevereiro/1997 a agosto/1998. Os resultados obtidos no experimento psicolingüístico que fi-
Na tarefa monomodal, após a apresentação de um item zemos mostram a significativa importância do fator relação morfo-
(antecessor) na tela do computador por 1000 mseg, em letras verme- semântica no reconhecimento de formas nominalizadas. Os tempos
lhas, um novo item em letras brancas (alvo) era apresentado também médios para as condições 1 e 3 (com relação morfo-semântica) fo-
na tela, e o participante teria que decidir se pertencia ou não ao por- ram significativamente menores, nas duas tarefas, do que os tempos
tuguês. Na tarefa bimodal, o primeiro elemento (antecessor) era apre- médios das condições –M (2 e 4), o que dificulta a acomodação de
sentado oralmente nos fones de ouvido e o segundo (alvo), ao qual o propostas como as de Di Sciullo e Williams, para quem formas deri-
participante teria que dar a resposta, era apresentado na tela do com- vadas com algum tipo de irregularidade fonológica ou semântica não
putador. são de interesse para a gramática; fariam parte do léxico, que, segun-
A hipótese de nosso experimento é que a estruturação morfo- do os autores em questão, não tem qualquer estrutura.
semântica é um fator relevante na organização do léxico mental e, Esses resultados constituem apenas uma instância preliminar.
considerando-se que a organização lexical tem implicações para o Os próximos passos serão a testagem de condições com ruptura mais
acesso. Se o acesso a uma determinada representação no léxico per- radical na transparência fonológica de itens morfológica e semanti-
mite a ativação de representações a ela morfológica e semanticamen- camente relacionados a suas bases; condições com correspondência
te relacionadas, isso faz prever que o tempo de decisão para as condi- semântica, mas não morfológica; e a testagem de condições em que
ções +M deverá ser menor do que o das condições –M, atentando-se tenhamos formações com duas camadas de derivação, o que buscaria
para o fato de que é necessário investigar se a ausência de transpa- uma resposta para o problema da representação de base vocabular ou
rência fonológica obtida no inglês repete-se no português, dadas as morfêmica, esta última proposta por Tyler, Waksler e Marslen-Wil-
diferenças entre as duas línguas. son (1993), questão que se constitui em antiga controvérsia na teoria
As médias dos tempos em mseg da tarefa monomodal visual morfológica e nem sempre levada em conta em experimentos
foram: condição 1 (798,01), condição 2 (939,13), condição 3 (821,14), psicolingüísticos.
condição 4 (949,77). Os dados foram submetidos a uma análise da Assim, apesar do caráter inicial de nosso trabalho, esperamos
variância, usando-se o programa estatístico BMDP Classic, em que ter demonstrado a relevância e caráter promissor do diálogo entre
Relação Morfológica e Transparência Fonológica foram tomadas propostas gerativas e abordagens psicolingüísticas sobre o papel das
como medidas repetidas. Os resultados revelaram efeito principal da estruturas morfológicas na organização do léxico.

294 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Memória de uma prática discursiva:
pronunciamentos presidenciais aos trabalhadores
Profª Drª Maria del Carmen F. González Daher
Universidade Estadual do Rio de Janeiro / Instituto de Letras / UERJ

RÉSUMÉ: A partir d’un corpus constitué de discours présidentiels du 1er mai, cette étude a pour macrocatégorie d’analyse la scénographie
discursive. On conclut sur la présence d’images d’énonciateur et co-énonciateur qui articulent des caractéristiques et des comportements imputés
aux acteurs de l’interlocution, organisées autour d’une topographie et une scénographie de l’ordre.
PALAVRAS-CHAVE: linguagem/trabalho, memória, interação governo/trabalhador, locução discursiva

1. Introdução Nosso trabalho prevê vários passos de pesquisa. O primeiro


Em nossas lembranças já um passado deles cuidou da montagem do arquivo e teve como objetivos: (a)
fictício ocupa o lugar de outro, do localizar, copilar, reunir e padronizar num único arquivo os pronun-
qual nada mais sabemos com certeza – ciamentos presidenciais de 1º de maio; (b) reunir informações relati-
nem, ao menos, que é falso. vas ao contexto de produção e da circulação desses textos; e (c) pro-
Jorge Luis Borges 1961:4 2-3 duzir CD-rom que permitisse disponibilizar os discursos e as infor-
mações encontradas sobre os mesmos.
As recentes colaborações entre as ciências do trabalho e as da O segundo passo deu início à análise discursiva. Foram obje-
linguagem vêm delineando um novo campo pluridisciplinar de análi- tivos desta etapa (d) identificar traços comuns aos pronunciamentos;
ses. A presente pesquisa situa-se no âmbito dos estudos da lingua- (e) identificar imagens de governo / trabalhador que se inscrevem
gem e das relações de trabalho, desenvolvidos pelo grupo Atelier1 , por meio da enunciação nesses discursos; (f) compreender como, do
que podem ser organizados, de forma sucinta, em torno de dois gran- ponto de vista enunciativo, se estabelece a interação entre esses
des eixos de pesquisa: o primeiro relaciona as práticas de linguagem interlocutores.
à atividade de trabalho e o segundo, ao tema trabalho. Neste artigo, voltaremos nosso foco, de forma sucinta, para as
Inscrito nas propostas desenvolvidas no segundo eixo, nosso considerações relativas ao objetivos (e) e (f) do segundo passo da
estudo aborda uma situação de interlocução sui generis dentro das pesquisa.
relações governo-trabalhador, no Brasil: no 1º de maio, dia originari-
amente destinado a manifestações de protesto, lutas e reivindicações 2. Imagens de governo e trabalhador
dos trabalhadores, promove-se uma transformação que institui a re- O arquivo de pronunciamentos presidenciais de 1º de maio
ferida data como dia de comemorações festivas, onde passa a ter des- contém 46 discursos, proferidos entre 1938 e 1994, por diferentes
taque um novo ator social – o Presidente da República. Ao aconteci- presidentes da República. Durante este período, apenas três
mento de 1º de maio de 1886, conhecido como Massacre de Chica- governantes deixaram de dirigir-se à nação nessa data - Café Filho,
go, sobrepõe-se outro instituído, em 1938, por Getúlio Vargas, que Jânio Quadros e Fernando Henrique Cardoso-, os demais deram con-
se instaura como prática discursiva, em nosso país, ao longo de apro- tinuidade à prática.
ximadamente 60 anos. Com o propósito de garantir uma visão longitudinal e, ao mes-
Nossa proposta considera a relevância da recuperação desses mo tempo, contemplar o estudo discursivo de pelo menos um pro-
enunciados, haja vista que os mesmos não só caracterizam nunciamento por presidente, estabeleceu-se como critério para orga-
posicionamentos sócio-históricos, mas também resgatam uma me- nização do corpus de nossas análises selecionar o primeiro pronun-
mória discursiva inseparável da instituição que lhes confere autori- ciamento de cada governante, chegando à seguinte constituição: 1938
dade e que os legitima. A substituição do trabalhador (enunciador (G. Vargas), 1947 (G. Dutra), 1951 (G. Vargas), 1956 (J. Kubitschek),
original desses discursos) por esse novo ator social cria um desloca- 1962 (J. Goulart), 1964 (C. Branco), 1967 (C. e Silva), 1970 (G.
mento no processo histórico das relações do mundo do trabalho, no Médici), 1974 (E. Geisel), 1979 (J. Figueiredo), 1985 (J. Sarney),
qual a voz oficial é a que passa a apresentar, nessa data, sua visão de 1990 (F. Collor) e 1994 (I. Franco).
trabalhador ao próprio trabalhador. Há de se ter em mente o entendi- Ressaltamos que nosso corpus conta com textos que se inscre-
mento de que esses pronunciamentos caracterizam uma estratégia vem no campo discursivo da política, que se atualizam, aparente-
política de apropriação do discurso de outro e que instituem uma mente, em diferentes formações discursivas em relação de co-ocor-
nova situação sócio-histórico-discursiva. rência ou não. Além disso, a situação empírica de produção desses
O historiador francês René Rémond afirma que “existe uma discursos remete a atores sociais - governo e trabalhador -, que no
história da história que carrega o rastro das transformações da socie- plano discursivo são instituídos como seres interlocutivos –
dade e reflete as grandes oscilações do movimento das idéias” enunciador e co-enunciador. De acordo com a Análise do Discurso,
(1996:13). A nosso ver, cabe à linguagem o registro de muitas des- um texto se caracteriza não por ser um conglomerado de signos iner-
sas transformações. Entendê-la como processo é entender que os tes, mas sim um todo do qual enuncia sentido a partir da(s)
sentidos só se criam nas diferentes situações. posição(ões) nas quais o enunciador interage com o co-enunciador,
Considerar que as produções discursivas estão historicamente
constituídas nos leva a opções teórico-metodológicas que permitem o
entendimento de que a produção humana tem um sujeito responsável
por ela, situado num tempo e num espaço, e está direcionada a um 1 O grupo foi formado em 1995, sob a coordenação da Profª Drª Maria
outro, aproximando-se desta forma discurso e história. É esta a con- Cecília Pérez de Souza-e-Silva (LAEL-PUC/SP), e está composto por pro-
cepção discursiva que caracteriza nossa compreensão de linguagem. fissionais de diferentes instituições e formações profissionais.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 295


numa determinada situação de comunicação. Maingueneau (1998) afir- • entre 1964 e 1985, concentra-se uma imagem de enunciador
ma que o texto carrega as opções de encenação da palavra do rigoroso;
enunciador e que nesta colocação estão consideradas questões de dis- • entre 1938 e 1964 e, posteriormente, 1979, verifica-se a in-
tintas naturezas interativas, tais como a finalidade organizacional do terpelação do co-enunciador pelo uso da marca lingüística VÓS. Em
discurso e o gênero. 1979 J.Figueiredo, esse uso restringe-se ao possessivo;
Tendo em vista os objetivos expostos nos itens (e) e (f), anteri- • a partir de 1964, desaparece a imagem de co-enunciador elei-
ormente explicitados, estabelecemos como macrocategoria de análi- tor, não deixando, no entanto, de ser citada como referência, como
se o conceito de cenografia discursiva de Maingueneau (1987, 1993), tema do discurso, em narrações relativas a um tempo caótico anteri-
enfocando mais detalhadamente a categoria da locução discursiva. or;
Como procedimento de análise, efetuamos o levantamento e estudo • entre 1967 e 1985, também desaparece a imagem de co-
das marcas dêiticas de pessoa, incluindo-se tanto o uso da pessoa enunciador reivindicador;
restrita, quanto da ampliada, em: (1) diferentes funções sintáticas – • todos os enunciadores inscrevem para si a imagem de um go-
como sujeito e como complemento; (2) marcas morfológicas das for- verno atuante e para seu co-enunciador a do trabalhador sacrificado;
mas verbais – desinências número-pessoais; (3) possessivos. • o uso dos referentes “governo” e “trabalhador”, assim como
As análises apontaram a identificação de diversas imagens que de seus respectivos co-referentes, fundem-se neste gênero discursivo
articulam, numa relação de correspondência, características (quali- ao EU e ao VÓS, respectivamente;
dades / crenças) e comportamentos (papel na interação / ações) atri- • o uso do NÓS, em alguns casos, funciona como uma estraté-
buídos ao enunciador / governo e ao co-enunciador / trabalhador. gia que inscreve no discurso uma certa ambigüidade, quanto à atri-
Foram mapeadas dezessete imagens de enunciador e cinco de buição de uma compreensão definida de a quem cabe a responsabili-
co-enunciador com variados índices de preponderância. As imagens dade por determinadas questões;
recuperadas nos pronunciamentos a partir da incidência de marcas • o uso do NÓS constitui uma base de aproximação entre o
de EU e de NÓS associam-no à figura de alguém que se apresenta a enunciador e o co-enunciador a partir do elo do “ser brasileiro”;
partir das seguintes propriedades: amigo, leal, sincero, emotivo, de- • o elevado número de referências ao próprio discurso aponta
voto, esperançoso, rígido, demandante, defensor, conselheiro, para uma função estratégica que permite ao enunciador reforçar uma
ouvidor, porta-voz, messiânico, atuante, candidato, trabalhador e imagem de governo que “sempre fala” ao trabalhador, além de per-
governo2 . mitir-lhe realizar diversos ajustes na busca de uma maior precisão do
Para o levantamento das imagens de co-enunciador, também sentido que deseja atribuir ao seu dito.
foram considerados, além da marca VÓS, o vocativo e as referências As constatações apresentadas de forma topicalizada caracteri-
zam recursos presentes nos pronunciamentos e procuram rever algu-
mas das múltiplas posições que o sujeito assume na unidade discursiva.
Cabe ressaltar aqui que esses elementos acima apresentados
encontram-se enlaçados de variadas formas na dinâmica do enuncia-
do, corroborando situações interativas diferenciadas. Por exemplo,
a interação que se estabelece entre amigos – parceiros – recorre à
forma interpelativa do uso do VÓS como marca de apoio que simula
uma situação face a face, de aproximação. Por sua vez, o “poder
falar” e o “saber ouvir” demonstram coerência entre as imagens e o
comportamento dos interlocutores5 . Da mesma forma que ser devo-
to considera a crença em doutrinas que inserem regras de conduta e
prevê a possibilidade da sanção e do controle.
Podemos dizer que os pronunciamentos formalizam uma
interação legitimada a partir da indissociabilidade de lugares
enunciativos atribuídos ao par da interlocução. O governo deve mos-
a trabalhador e a seus reformulantes. Identificamos as seguintes ima- trar seu empenho, seu compromisso em manter as relações de amiza-
gens: amigo, capaz, sacrificado e reivindicador. de e/ou de fidelidade ao outro e/ou a determinada doutrina. Por sua
Visando obter maior visibilidade dos dados encontrados, apre- vez, o co-enunciador como “bom” brasileiro deve aceitar/reconhe-
sentamos, a seguir, num quadro as imagens de enunciador e co-enunciador cer/apoiar esse esforço do governo por encontrar formas de mudar
organizadas de acordo com os respectivos pronunciamentos: sua condição de “necessitado”. Dentro de um quadro interativo or-
denado se estabelece a concessão de conquistas ao co-enunciador;
O quadro acima permite-nos detalhar alguns comentários3 re-
lativos à observação da presença dessas imagens ao longo do tempo
que aparecem nos tópicos abaixo: 2 Estas imagens são as de maior incidência e possuem diferentes possibili-
• entre 1938 e 1962, caracteriza-se uma interlocução em que dades de atualização de acordo com cada pronunciamento.
os parceiros estão discursivamente inscritos como amigos; 3 Maiores informações podem ser obtidas em Daher (2000) e Daher et Junger
• nesse mesmo período, o enunciador posiciona-se4 como de- (2000).
fensor, conselheiro e ouvidor do co-enunciador-trabalhador; 4 D. Maingueneau (1998a:110-11) descreve o termo “posicionamento” afir-
• entre 1964 a 1985, predomina um enunciador que se diz de- mando que o mesmo é empregado com dois valores: “Ato pelo qual uma
formação discursiva posiociona-se em um campo discursivo, ... marcando
voto;
sua identidade com relação a outras; a própria formação discursiva, consi-
• nesse mesmo período, se associamos a essa última imagem a derada como identidade num interdiscurso. Esses dois valores são
de esperançoso, ganha relevância uma posição enunciativa na qual o inseparáveis, na medida em que a primazia do interdiscurso implica que a
enunciador se inscreve como aquele que segue a crença de determi- identidade de uma formação discursiva seja um processo de constante
nadas idéias, religiosas ou não, e é a partir delas que se constrói a redefinição de suas relações com as outras formações discursivas”.
relação interativa com o co-enunciador; 5 O discurso de 1964 de C.Branco estaria situado numa espécie de fronteira
entre dois tipos de situação interativa.

296 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


fora dele, o governo fica respaldado para agir de forma a coibir os UNICAMP, 1995
OUTROS que estão fora da interação, os “anarquistas”, os “sabota- BORGES, L. “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”. In: Labyrinths. Penquin,
dores”, os “maus brasileiros”, “os comunistas” ... os que não são 19970, p. 27-43.
amigos nem do governo, nem do trabalhador. DAHER, M. del C. F.G. et alii. “Representações de trabalho: um
Vários desses elementos enlaçam-se, fundem-se no discurso, estudo da fala de trabalhadores da linha de produção”. In: The
dando autoridade ao enunciador para falar, legitimam-no ante seu ESPecilist, volume 19, Especial, São Paulo: EDUC, p. 349-
co-enunciador. As opções que o enunciador deixa inscritas em seu 361,1998.
enunciado ao estabelecer essa mediação marcam posicionamentos DAHER, M. del C. F.G. Discursos presidenciais de 1º de maio: a
discursivos sustentados numa lógica organizacional presente entre o trajetória de uma prática discursiva. Tese de Doutorado, LAEL
modo de discursivamente articular um “mundo em discurso” e os - PUC/SP, 2000
“sentidos”: enunciação e conteúdo se autolegitimam. DAHER, M. del C. F.G. (organização da pesquisa) et JUNGER, W.
L. (desenvolvimento de software). Discursos presidenciais de
3. Considerações finais 1º de maio: a trajetória de uma prática discursiva, versão 1.0.
RJ, 2000. CD-rom para Windows.
No presente momento, encontram-se em desenvolvimento a
MAINGUENEAU, D. (1987) Novas tendências em análise do dis-
terceira e quarta etapas do estudo, respectivamente: (g) ampliar o
curso. Campinas: Pontes, 1993.
Cd-rom para versão multimídia e, no plano discursivo, tomando como
_____. (1990) Pragmática do discurso literário. São Paulo: Martins
categoria de análise o discurso relatado (Revuz, 1998; Maingueneau,
Fontes, 1996.
1998), (h) buscar responder às seguintes perguntas: que outras vozes
_____. (1996) Os Termos-Chave da Análise do Discurso. Belo Ho-
são trazidas para os discursos? que possíveis efeitos discursivos apon-
rizonte: Ed. UFMG, 1998a.
tam? como esses efeitos participam da construção da
_____. Analyser les textes de communication. Paris: Dunod, 1998b.
multidirecionalidade lingüística?; (i) identificar o aparecimento, a
RÉMOND, R. Por uma história política. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ
recusa e/ou a transformação de formações discursivas que caracteri-
/ Fundação Getúlio Vargas, 1996.
zam uma memória discursiva materializada como enunciado inscrito
ROBIN, R. História e Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1973.
na história. Na verdade, este será um caminho novo a ser trilhado e
ROCHA, D. “Le questionanaire et les discours de l’entreprise: dialo-
pressupõe uma atitude de envolvimento do analista do discurso com
gue ou monologue”. In: RICHARD-ZAPELLA, J. (org) Espa-
questões sociais que vão além dos tradicionais estudos sobre a lín-
ces de travail, espaces de parole. Rouen, 1999.
gua. Caracterizam um embrenhar pela construção do que podemos
SANT’ANNA, Vera Lucia de Albuquerque. “O jornal interno e a
entender como memória discursiva e o que o acesso a esta categoria
construção de imagens”. In: The ESPecilist, volume 19, Especi-
nos permite compreender.
al, São Paulo: EDUC, p. 277-286,1998.
SOUZA-E-SILVA. “Linguagem e trabalho: palavra desempenha fun-
Referências bibliográficas
ção ativa como instrumento de gestão, produção e mobilização
social.” In: O Estado de S. Paulo, 2 de agosto de 1999, p. B2.
AUTHIER-REVUZ, J. Palavras incertas: as não coincidências do
TRABALHOS da Memória. Projeto História nº 17. São Paulo:
dizer. Campinas: UNICAMP, 1998.
EDUC/FAPESP, novembro/1998.
BRANDÃO, H. N. Introdução à análise do discurso. Campinas,

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 297


Construção do Mercosul como espaço discursivo:
um estudo de práticas discursivas da imprensa escrita
Profª Drª Vera Lúcia de Albuquerque Sant’Anna
Universidade Instituto de Letras/UERJ)

RÉSUMÉ: Cette étude est centrée sur la stratégie d’identification du discours rapporté dans des nouvelles publiées dans deux quotidiens (Clarín et
Folha de S. Paulo), dans le but d’établir des relations entre ces discours et une conception d’espace discursif, afin de mieux saisir ce qu’on appelle
monde du travail dans le cadre du Mercosul.
PALAVRAS-CHAVE: práticas discursivas; notícia, Mercosul; trabalho

1. Introdução (a) quanto mais explícita a presença do outro como responsável


pelo citado (itens 1, 2, 5 e certas ocorrências de 3, 4 e 6), menor é a
Os estudos sobre as relações entre linguagem e trabalho, desde responsabilidade do citante pelo conteúdo do citado;
uma perspectiva que observa a linguagem como co-construtora de (b) os verbos introdutores, ou as formas nominalizadas da ação,
conceitos de/sobre o trabalho, vêm sendo desenvolvidos há pouco têm papel relevante na identificação da relação citante / citado, con-
tempo no Brasil. Como integrante do grupo Atelier - LAEL - PUC/ forme nossa análise demonstrou;
SP1 , temos tido a oportunidade de acompanhar e participar de traba- (c) os tipos de ocorrências apresentadas nos itens 4, 5, 6 e 7
lhos que vêm sendo desenvolvidos por grupos franceses e brasilei- têm pontos de aproximação que dificultam o estabelecimento de fron-
ros, que ora se dedicam a esse enfoque, ora às relações entre lingua- teiras muito claras.
gem e situação de trabalho. Neste artigo, então, tratamos mais diretamente dos passos de
Neste texto, aproximamo-nos da primeira perspectiva do gru- pesquisa posteriores a esse primeiro momento, relacionados à identi-
po, pois temos como objetivo estabelecer relações entre as diferentes ficação dos vários processos de ocorrências de DR. Em primeiro
vozes trazidas pelo enunciador-jornalista para a sua enunciação e lugar, estabelecemos uma hierarquia entre as vozes trazidas por cada
uma concepção de espaço discursivo, em busca de uma definição de um dos jornais, a partir dos diversos recursos de DR, identificando
mundo do trabalho. sua origem como primeira marca de ocupação desse espaço discursivo.
Portanto, nosso objeto de estudo são notícias publicadas em A seguir, identificamos verbos dicendi empregados por cada
dois jornais, um brasileiro - Folha de S. Paulo - e um argentino - enunciador-jornalista para introduzir essas vozes, uma vez que esse
Clarín - recolhidas a partir da presença da palavra-chave Mercosul, recurso aponta para citados mais ou menos atuantes nos espaços ins-
ao longo de uma semana (março/1998). tituídos pelas notícias, o que gera uma constituição de um espaço de
Para identificar estratégias de inclusão de vozes trazidas pela embate que se mostra mais complexo que o instituído nos dados da
imprensa, tratamos de estabelecer critérios para estudar o emprego de empiria do Mercosul4 .
diferentes mecanismos do discurso relatado (DR), segundo proposta
de Maingueneau (1998). Uma vez identificadas as ocorrências de DR, 2.2 - Os espaços de onde muitos falam
foi possível estabelecer as bases de uma topografia discursiva2 , a par- Antes, porém, de dar prosseguimento às análises, queremos
tir dos seguintes procedimentos: (a) estabelecimento de uma hierar- fazer uma distinção quanto a dois planos de espaço discursivo. Num
quia entre as vozes trazidas por cada um dos jornais, a partir dos diver- primeiro plano, está o espaço discursivo entendido como o “aqui”
sos recursos de DR, identificando sua origem como primeira marca de instituído pelas marcas embreantes de uma certa enunciação. No caso
ocupação desse espaço discursivo; (b) identificação dos verbos dicendi de uma notícia, corresponderia a referências existentes nos textos
empregados por cada enunciador-jornalista para introduzir essas vo- que localizam sua base - por exemplo, “daqui saiu para o encontro
zes, uma vez que esse recurso aponta para os atores citados mais ou com o ministro”, sendo esse “daqui” o restaurante onde almoçava
menos atuantes nos espaços instituídos pelas notícias. certa pessoa e onde também se encontrava o enunciador-jornalista.
Podemos mapear esses embreantes e estabelecer uma certa constru-
2. Em busca de uma topografia discursiva ção de espaço para as informações contidas na notícia. Trata-se, en-
tão, das características espaciais instituídas pela própria enunciação
2.1- Configurando espaços em relação a sua forma mesma de existir.
Após analisar as várias estratégias discursivas de inclusão de
outras vozes, verificamos que havia a possibilidade de organizar-se
um continuum do conjunto das incidências.3 Portanto, essa escala
funda-se não numa hierarquização das múltiplas formas de introdu- 1
O grupo Atelier (formalizado em 1996) é coordenado pela Profª Drª
ção do DR, mas sim, considera uma progressão de uma enunciação Maria Cecília P. de Souza e Silva.
2
que se mostra mais ou menos claramente como discurso citado que Essa noção é desenvolvida por Maingueneau (1989) ao apresentar sua pro-
pressupõe um citante. Desse modo, com base nas notícias estudadas, posta de cenografia discursiva.
3
O processo completo de estudo que nos fez chegar a esse continuum é
registramos o seguinte continuum:
tema de outro artigo nosso, intitulado “Discurso relatado como estratégia
organizadora da notícia”. In: SOUZA-E-SILVA, M. C. P et BRAIT, B.. The
Specialis, SP: EDUC, nº especial (no prelo).
4
Estudos de base econômica tratam os blocos regionais como um espaço
político-geográfico complexo, intermediário entre o espaço nacional e o
mundial, uma vez que nele coexistem tendências e interesses que ora se
É preciso observar, ainda, que: complementam, ora se contrapõem, dentro de cada um dos espaços e
entre eles.

298 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Ao lado desse plano da dêixis, há também outra possibilidade bate, por outro, não deixa muito claro qual o nível de ação efetivo que
de compor essa topografia de uma cenografia discursiva cada um dos espaços de origem das vozes reportadas pode definir
(Maingueneau, 1989; 1998). Num segundo plano, está o espaço ins- para os seus integrantes, na enunciação dos jornais.
tituído pela enunciação em relação àquilo que ela trata como seu Na busca de respostas a essas dúvidas, decidimos verificar o
objeto de discurso5 . Ou seja, cada notícia analisada mostrou-nos a papel que podemos atribuir aos verbos dicendi, utilizados pelo
existência de espaços marcados por um embate de forças, caracteri- enunciador-jornalista para marcar a entrada do discurso relatado, na
zados a partir da distribuição das vozes trazidas como representati- definição de um certo perfil da ação destinada a cada um dos espa-
vas desses espaços. Explicamos: a enunciação das notícias reelabora ços, em cada uma das enunciações. O levantamento dos verbos nos
uma divisão de poderes existentes nos vários espaços da empiria, faz verificar que os governos do Brasil e da Argentina, na Folha,
inaugurando uma forma peculiar de compreensão do espaço podem ter seus espaços caracterizados como o das ações que se afas-
discursivo. Podemos pensar que a enunciação das notícias, de cada tam do embate, pois são espaços que se definem por agir para acal-
jornal, será responsável por instaurar topografias não coincidentes mar, afastar receios, concordar, dizer, explicar, fazer analogias, fe-
para os vários planos que vêm a compor o Mercosul. char acordo, relativizar problemas. As ações atribuídas a esse espa-
Assim, nosso primeiro passo foi levantar as ocorrências de ço não alimentam o embate.
DR e identificar a quem o enunciador-jornalista dá voz em sua Esses mesmos espaços, no Clarín, têm outro perfil, pois o es-
enunciação, em todas as notícias. A partir desse levantamento inici- paço das ações do governo brasileiro delimita campos em contradi-
al, estabelecemos quem são os que a enunciação traz como voz auto- ção, por exemplo, o das ações que levantam suspeita - faz supor,
rizada. Aprofundando a análise, chegamos a observar uma certa hie- insiste em minimizar, mostra-se surpreso, nega-se a precisar, retruca,
rarquia de espaços, a partir da identificação dessas vozes. transfere responsabilidades -, o das que buscam o acordo - compro-
Verificamos, a partir dessas análises, que as unidades da mete-se, lança definição, promete. E o espaço das ações do governo
integração no marco do Mercosul6 , segundo o ponto de vista da argentino aponta para um jogo entre a dúvida e a clareza do que lhe
enunciação dos dois jornais, estão dividas entre vários níveis hie- compete enquanto espaço de ação: ora admite, crê, deixa claro, diz, e
rárquicos, conforme a distribuição dos espaços da identificação das ora “despotrica”7 o opositor interno (a província de Buenos Aires) e
vozes nos ajuda a constatar. Observamos que, no Clarín, o espaço se une às ações do espaço do governo brasileiro, quando insiste em
das vozes oficiais, que respondem pelas políticas de integração, está minimizar e transferir responsabilidades.
ocupado de maneira desequilibrada: em nome do governo federal Quanto ao espaço do governo da província, só há as ações
argentino são trazidos somente dois nomes, enquanto que em relação previstas de criar subsídios e dizer algo (sobre essa criação), curi-
ao brasileiro, aparecem várias autoridades. Na Folha, esse espaço osamente, na Folha. Enquanto que o espaço do Legislativo só
está distribuído entre vozes em equilíbrio, chegando mesmo a formar tem ação atribuída no Clarín, ação essa que marca a coincidência
pares por área de atuação: Malan / Fernández; Dornelles / Guadagni; entre as opiniões de partidos da situação e da oposição, em rela-
Lampreia / Gambarotta; os governos do Brasil e da Argentina. Quan- ção às queixas dos empresários representantes das montadoras
to ao espaço das vozes oficiais de menor escalão, na hierarquia contra a MP brasileira.
empírica dos poderes constituídos num país federado, só há ocupa- Percebemos que não correspondem, aos espaços dos gover-
ção desse espaço pela voz de uma personalidade argentina, no jornal nos federais, provinciais ou mesmo legislativo, certas ações
brasileiro. Vale observar que esse espaço acaba sendo atacado e de- decisórias caracterizadoras do espaço da empresa: esse será o espa-
fendido em vários outros espaços discursivos, mas o que sobressai é ço da advertência, da ameaça, da decisão, do protesto, da queixa.
que não se garante a seus possíveis porta-vozes um lugar de Esse espaço, na enunciação dos dois jornais, traz somente vozes de
enunciação. empresas argentinas e, em ambos, o espaço é marcado pela decisão.
Uma diferença importante diz respeito à voz atribuída a políti- Não há acordo ou desacordo, mas sim, anuncia-se, confirma-se,
cos com mandato legislativo: só aparece uma vez, no Clarín, quando ratifica-se uma decisão.
remete à reclamação levada à Câmara pelos empresários argentinos, As ações previstas para o espaço das fontes não identificadas
executivos das montadoras, contra a medida brasileira. Esse espaço não poderiam ser outras: é o espaço do dizer, do fazer supor, do ques-
discursivo não está ocupado na Folha. tionar, do perceber. Nada muito categórico, porém capaz de dar ao
Em relação ao espaço discursivo da empresa, ambas as espaço da imprensa um certo movimento de ações, haja vista que no
enunciações trazem a voz de empresários argentinos. Nesse período Clarín, o espaço é o do dizer disfarçado por um não dizer do outro,
de tempo observado, não há ocupação do espaço discursivo das em- enquanto no da Folha tem-se um espaço mais neutralizado: apurou-
presas brasileiras, nem na Folha, nem no Clarín. se algo - forma elegante de apagar a fonte da ação narrada.
Outro espaço discursivo que chama a atenção é o das fontes Quanto ao espaço das ações da legislação, verificamos que,
não identificadas, pois esse é o espaço do rumor, da especulação, do para a enunciação do Clarín, esse é espaço de muita ação, quando a
dito que não se sabe a quem atribuir ou que não se quer atribuir a referência é a leis brasileiras, capazes de arrastar investimentos, criar
alguém em particular. assimetrias, superar as vantagens; quando é aos instrumentos
O espaço discursivo das legislações tem uma distribuição dife-
rente: no Clarín, está ocupado pela citação das vantagens, isenções e
subsídios brasileiros que se distribuem entre uma MP federal e deci-
5
sões nos níveis estaduais, e pela referência a instrumentos Rocha (1997: 200-1) aponta para a necessidade de “superar as evidências
promocionais argentinos; na Folha, pelos incentivos e a MP brasilei- que, por exemplo, nos fazem limitar a investigação da topografia tão-so-
mente a indicações da ordem espacial, isto é, a sintagmas que
ros, pelo decreto provincial argentino e pelo acordo automotivo co-
teriam diretamente alguma afinidade com a idéia de ‘localização no espa-
mum aos dois países, em andamento. ço’”; como resultado disso, encaminha sua análise para mostrar como ele-
Além disso, constatamos que o espaço discursivo construído mentos de uma locução discursiva também são “índices de construção de
para a própria imprensa, enquanto voz a ser reportada, é muito dife- um espaço”.
rente nos dois jornais: na Folha, a indicação é a ela mesma; no Clarín, 6
O conceito de unidades da integração, podendo ser unidades ativas ou
é por meio de um artifício discursivo. unidades passivas, é do economista Perroux (1991).
7
Se, por um lado, essa observação da constituição dos espaços O sentido do verbo “despotricar”, nesse contexto, aproxima-se ao de
deixa entrever alguns sinais importantes para uma topografia do em- “desancar”.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 299


promocionais da província de Buenos Aires, esses são muito mais bemos que levantar esses traços da empiria, na verdade, tem a função
limitados. Na Folha, o espaço da legislação é o da ação brasileira que de mostrar que o espaço discursivo que identificamos na imprensa é
gera mal-estar, mas que inclui a ação argentina de isentar indústrias. ainda mais complexo na sua constituição do que podem prever teori-
Ao lado dessas duas possibilidades, há uma terceira ação comum aos as econômicas e/ou políticas. Assim, podemos verificar que o espaço
brasileiros e argentinos: a ação de fixar um acordo, que, contudo, não Mercosul é uma criação dos discursos. As formas de definição da
chegou, até agora, a bom termo. dinâmica dos espaços não é a mesma, mas apontam para contradi-
A partir dessas reflexões, podemos considerar que a enunciação ções que, em outro período de recolhimento de textos da imprensa,
dos jornais constrói uma topografia do conflito, em planos espaciais poderiam ter outra distribuição: a demarcação de espaços discursivos
diferenciados: o espaço do jornal destinado às notícias desdobra-se participa do movimento de historicidade da produção humana.
em espaço discursivo que institui uma topografia específica: a de um Entretanto, observamos que nesses espaços em embate não
Mercosul atravessado por níveis de conflitos. Como um esforço de há vozes que referenciem o mundo do trabalho: fica patente a sua
resumir as constatações que apontamos ao longo desse item, sem ausência, como se dele não fizesse parte. A inexistência da designa-
caráter conclusivo, mas procurando registrar a dinâmica desse movi- ção não significa a inexistência da referência a mundo do trabalho. É,
mento de espaços, apresentamos o esquema: portanto, necessário constatar que a presença do mundo do trabalho
está silenciada nas notícias observadas. Mas, como só se apaga o que
existe, pois não se pode deixar de mencionar o que não tem existên-
cia, acreditamos que se pode identificar o espaço do embate que
corresponde ao mundo do trabalho: fazer-se visível, sob todos os
aspectos.
Procuramos, ao longo do artigo demonstrar que as pesquisas
voltadas para os discursos sobre o trabalho se aproximam das insti-
tuições atravessadas nesse e por esse ator social. A esse respeito, não
há como negar o lugar privilegiado que ocupam os discursos da mídia
na atualidade: é lugar de práticas discursivas que remetem às alian-
ças e aos embates vividos pelas sociedades.

Referências bibliográficas

MAINGUENEAU, D. (1989). Novas tendências em análise do dis-


curso. Campinas, SP, Pontes/Ed. da Unicamp.
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300 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Argumentação na aquisição de linguagem:
interrogando hipóteses cognitivistas1
Maria Fausta Pereira de Castro
Departamento de Lingüística/IEL/Unicamp

ABSTRACT: The aim of this work is to question cognitivist approaches as well as successful communication as the criterion for describing both the
speaker’s and the addressee’s move. What is suggested, instead, is the possibility of replacing the view on knowledge as mental representations by one
which includes the subject-speaker in language structural functioning.
PALAVRAS-CHAVE: pragmática; teoria da relevância; língua/fala; aquisição de linguagem.

No livro Les mots et les choses Michel Foucault diz que no processos cognitivos que sustentam o uso da linguagem, dissociados
Renascimento “perguntava-se como era possível reconhecer que um do funcionamento da língua e de todas as conseqüências que decor-
signo designava realmente aquilo que ele significava; a partir do sé- reriam da sua inclusão.
culo XVII perguntar-se-á como pode um signo estar ligado àquilo Para Sperber e Wilson toda interpretação de um enunciado é
que ele significa. Questão à qual a idade clássica responderá pela um processo de construção e avaliação de hipóteses, baseado no prin-
análise da representação; e à qual o pensamento moderno responderá cípio da relevância. Este princípio é sustentado por um sistema de
pela análise do sentido e da significação” (Foucault apud Lahud, representações de primeira e segunda ordem, ou seja, de representa-
1977:28. Tradução do segundo autor). ções e metarepresentações que garantem o sucesso da comunicação.
Como já observou Lahud, ao citar a passagem acima, a ques- Palavras e dispositivos lingüísticos transmitem ao mesmo tempo re-
tão configurada por Foucault ao mesmo tempo em que “nos é dada presentações conceituais e informações sobre o seu processamento.
como decorrência da organização específica do saber clássico, pare- Um conectivo, por exemplo, tem o seu papel assegurado na interpre-
ce resistir às transformações ‘arqueológicas’ constitutivas do ‘pensa- tação de um enunciado na medida em que indica para que tipo de
mento moderno’, nele encontrando um espaço igualmente acolhe- comunicação ele contribui.
dor” (Lahud, op cit: 29). A teoria da relevância propõe uma radicalização cognitivo-psi-
Não seria exagero dizer que os estudos pragmáticos atuais ins- cológica de certos princípios da pragmática. Há um diálogo constan-
crevem-se nesta problemática de um modo peculiar. De um lado te com Grice, o reconhecimento do valor de suas hipóteses, mas, por
porque estão centrados na questão do significado e da representação outro lado, críticas a vários pontos fundamentais da teoria. Os auto-
na comunicação, isto é, no eixo da continuidade apontada por Foucault res reconhecem em Grice uma idéia fundamental na pragmática é a
e, de outro, porque há um movimento explícito para a superação de de que o ato comunicativo cria expectativas, podendo-se dele inferir
limites no tratamento da questão. Tomo aqui como referência o pro- implicaturas; estas não são linguisticamente “codificadas”, mas
jeto da teoria da relevância que, segundo Sperber e Wilson, recusa os depreendidas das evidências fornecidas, no próprio ato, sobre as in-
velhos moldes no estudo da comunicação, adotando uma nova abor- tenções do falante.
dagem construída a partir do funcionamento da cognição humana. Contudo, a teoria de Grice seria, para Sperber e Wilson, ape-
Para os autores, desde Aristóteles até a semiótica moderna, nas um ponto de partida. Suas idéias devem ser reelaboradas em ter-
todas as teorias da comunicação basearam-se em um único modelo, mos psicologicamente realistas. Distanciando-se de Grice, para quem
denominado “o modelo do código”. os princípios e máximas devem ser conhecidos por falantes e ouvin-
Nele a comunicação é explicada por “um sistema que põe em tes para se obter sucesso na comunicação, os autores partem da
correspondência mensagens internas com sinais externos, permitin- assunção de que falantes e ouvintes não precisam saber mais sobre
do então que dois dispositivos de processamento de informação (or- o princípio da relevância do que aquilo que necessitam saber sobre
ganismos ou máquinas) se comuniquem” (Sperber and Wilson, 1987: os princípios da genética para reproduzir (Sperber e Wilson,
697. Minha tradução). 1986:162).
O princípio da relevância pretende oferecer, entretanto, um Enquanto para o primeiro autor o sucesso não é dado, para
outro modelo da comunicação, o “modelo inferencial” suficiente, Sperber e Wilson. ele é garantido pelo trabalho de um aparato
segundo Sperber and Wilson, para explicar a “interação entre o sig- cognitivo. Os comunicadores não seguiriam o princípio da relevân-
nificado lingüístico e os fatores contextuais” na desambigüização, na cia, eles simplesmente não poderiam violá-lo mesmo se assim o qui-
atribuição de referência, identificação de implicaturas, interpretação sessem (Sperber and Wilson op cit:162).
de metáforas e ironia e outros tantos aspectos lingüisticamente
indeterminados da interpretação de enunciados (Sperber and Wil-
son, op cit).
1
A problemática configurada por Foucault e comentada por Este artigo é o prolongamento de uma discussão que se iniciou com um
Lahud, que atravessa séculos de reflexão sobre a linguagem, tem aqui primeiro trabalho apresentado como participação no painel intitulado
o papel de chamar a atenção para o fato mencionado acima, isto é, de “Error as an empirical challenge to cognitivist approaches to
language use”, coordenado por Claúdia de Lemos na 7th International
que a teoria da relevância aí se inscreve pela via da dissolução do
Pragmatics Conference em Budapeste, Hungria, em julho de 2000. O títu-
problema, de seus mistérios e equívocos, para em seu lugar oferecer lo do primeiro artigo foi: “ Questioning cognitive approachs to
uma hipótese da “comunicação bem sucedida”. Ao fazê-lo procede a argumentation and communication in language acquisition”. Por outro lado,
uma naturalização da linguagem pelas questões de comunicação e embora tenha mantido no título do presente trabalho a questão da argu-
cognição, como já anuncia o título do livro no qual os autores desen- mentação, devo considerar que ele evoluiu de tal forma que a sua questão
volvem sua teoria: “ Relevance: communication and cognition”. central, o leitor verá, não é mais esta. Entretanto, por fidelidade ao resu-
Operação que se desdobra nas inúmeras questões sobre os diversos mo já publicado, nada tirei nem acrescentei ao que fora anunciado.

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O naturalismo que sustenta uma hipótese como esta anula qual- ( Smith, N in Chomsky, op cit: IX. Tradução e ênfase minhas)2 .
quer desencontro entre a linguagem e o mundo; o erro, a falha, a O episódio configurado congrega alguns dos elementos consi-
heterogeneidade da fala na comunicação, embora possíveis e até derados por Chomsky como enigmáticos: o livre arbítrio ou o fato de
esperados, de tão óbvios e triviais não devem ser considerados nem se supor que o falante escolhe um tipo de reação e não outro e,
como fenômeno a ser explicado em si mesmo, nem como fato que decorrente disso, a própria noção de “consciência” atrelada à de “li-
pode iluminar a opacidade do acerto e menos ainda como ponto par- vre arbítrio”. O que o autor aponta como núcleo do mistério é o fato
tida para a elaboração de um modelo de funcionamento da comuni- da não previsibilidade a que a presença ou ausência das palavras está
cação. Se o conhecimento mútuo não é garantia de acerto, por outro vinculada. O reconhecimento da opacidade do episódio interroga a
lado, dizem os autores, o mistério não está no erro, mas no sucesso; própria noção de intencionalidade do sujeito falante e sua posição
é ele que requer explicação (Sperber e Wilson, 1986:44-45). em um sistema autônomo de funcionamento como é a língua.
Em um modelo essencialmente comunicativo-cognitivo como Note-se que o fato considerado como misterioso por Chomsky
o da relevância, não há lugar para o reconhecimento da língua como não consistiria em um enigma para a teoria da relevância. Por seus
um sistema autônomo que, por essa propriedade, desloca o falante critérios o que se recorta é a informação na comunicação e nesse
da sua posição de sujeito epistêmico e interroga uma hipótese de sentido os enunciados dão lugar ao processo inferencial que permite
comunicação tal como esta da relevância. Como mencionei há pouco ao ouvinte interpretá-los de acordo com os princípios comunicativos
a hipótese da relevância é dissociada do funcionamento da língua, o da relevância. Está fora do escopo da teoria indagar-se, como o faz
que de certo modo explica porque a fala não é problematizada, já que Chomsky, sobre a razão de eles estarem alí, por exemplo, em oposi-
é em função do que caracteriza aquela que esta se constitui como ção ao silêncio ou a “qualquer outra coisa que seja que possa vir a
enigmática, um mistério, nas palavras de Chomsky. Saussure, que nossas mentes quando olhamos para uma pintura” (Chomsky in Fodor,
também reconhece na língua um sistema autômo, atribui à fala um J. & Katz, J. 1964)
papel secundário e mais ou menos acidental. Mas ao mesmo tempo A heterogeneidade da fala da criança acerba as questões levan-
observa que ela mantém com a língua uma relação de tadas por Chomsky. Considere-se o seguinte episódio. Considere-se
interdependência; a língua é tanto o instrumento como o produto da o seguinte episódio.
fala, historicamente o “fait de parole” precede sempre o de língua, o (1) (A., por volta dos 3 anos, vivendo em um ambiente bilingüe
que não as impede de ser duas coisas absolutamente distintas (português- francês), vai com os pais visitar amigos franceses.)
(Saussure, 1966: 37-38). Logo ao chegar, iniciada a conversa, A. diz em francês:
No prefácio que faz Neil Smith ao último livro de Chomsky A. Na minha casa o leite derrama sempre.
(2000) encontramos um comentário que vem ao encontro de nos- O efeito desta fala sobre os adultos foi de chiste: gargalhada e
sas observações sobre a necessidade de se problematizar a fala. também espanto deste enunciado que se faz presente em momento
Diz o autor: tão inesperado; ele é gramatical, promove efeito de referencialidade
“Como sustenta Chomsky o mundo intelectual está dividido e obedece aos critérios de verdade; enunciado declarativo que causa
em ‘problemas’ e ‘mistérios’. O primeiro pode (ou não) sucumbir à risos, dado que nada se dissera até então que estivesse ligado à rotina
nossa teorização; o último nunca sucumbirá.(...) Nossa capacidade matinal de Adriana. A pergunta que se faz Chomsky cabe aqui: por
científica pode permitir-nos alcançar algum conhecimento teórico que este relato? Em outras palavras: como interpretar a “intenção
sobre a visão, linguagem, genética e assim por diante. Disto não de- comunicativa” desta criança?
corre que todos os domínios serão tratáveis, e alguns tópicos – como Mesmo se reconhecemos na fala de A. uma tentativa de inser-
o da livre escolha ou a correta caracterização da consciência - podem ção na conversa entre adultos, de ser como os adultos, permanece a
situar-se além da nossas capacidades intelectuais e permanecem mis- questão sobre o que promove o enunciado.
térios (...). A proposta não é de que não podemos ter insight nestas A heterogeneidade da fala da criança interroga a hipótese do
áreas, mas de que talvez não tenhamos insight científico, e precisa- modelo da comunicação bem sucedida de um modo particular. Con-
remos apoiar-nos no gênio dos escritores o poetas para um entendi- sideremos os erros. Dado que estes são fenomênicamente inseparáveis
mento maior” ( Smith, N. in Chomsky, 2000: IX. Minha tradução). do próprio processo de aquisição, podemos dizer que eles constitu-
É interessante notar que Neil Smith dedica uma parte impor- em um desafio à hipótese da relevância.
tante do seu prefácio às questões intratáveis pela lingüística, ao pes- De fato, os erros da criança promovem efeitos não previsíveis
simismo de Chomsky quanto ao desvendamento de certos proble- no outro: ele pode ser ignorado pelo adulto, pode provocar a ruptura
mas, nos quais sempre se insere a questão do uso da linguagem.Volto do diálogo ou pode ser objeto de uma tentativa de correção. Por ou-
portanto a citar o autor. tro lado, se os erros na produção podem ou não acarretar “falha na
“Uma área em que Chomsky é pessimista sobre o alcance da comunicação”, o que pensar daqueles que incidem sobre a compre-
compreensão científica é a caracterização do nosso uso da lingua- ensão, quando palavras e dispositivos presentes na fala do outro for-
gem, oposto ao nosso conhecimento. Seu trabalho nos últimos necem os elementos necessários para a correta compreensão? Em
cinquenta anos abriu o estudo da nossa competência (...), mas o fato outras palavras, como explicar que o acerto possa, no uso da lingua-
de pôr esta competência em uso pelo nosso desempenho é ainda, de gem, levar ao erro?
um modo geral, um livro fechado, talvez um mistério. Isto não é Questões como estas abalam a meu ver os fundamentos de
para negar que tenhamos feito progressos na compreensão de como uma teoria que só contempla o êxito e reduz o erro a um epifenômeno
os seres humanos processam as sentenças que escutam (...). Tudo o do sucesso.
que segue promoveu alguma compreensão; estudos experimentais e
teóricos sobre a percepção da linguagem e sua produção; insights 2
Neil Smith faz aqui uma interpretação mais ou menos livre das palavras de
sobre a aquisição da linguagem e sobre a mudança; e a análise da Chomsky (1964) em “Review of B.F. Skinner’s Verbal Behaviour” ( cf, entre
função do cérebro nos temas da normalidade e da patologia. Há até outras publicações deste artigo, Fodor, J and Katz , J. (1964) The Structure
um insight preliminar sobre o modo como interpretamos enunciados of Language ). De fato, Chomsky enumera uma série associativa extensa
particulares no contexto, mas estamos tão longe quanto René Des- que, creio, há interesse em reproduzir pelo menos em parte aqui. É esta:
cartes de conhecer a razão por que alguém escolhe reagir a um qua- “não combina com o papel de parede (...) ; eu nunca vi isso antes; está
dro com “que lindo” ou “ isto me lembra Bosh” e não pelo silêncio.” pendurado muito baixo (...); você lembra da nossa viagem acampando no
verão?”

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Trago aqui mais um episódio da fala infantil para, através dele, do acerto não contempla a possibilidade de um funcionamento
ilustrar a questão sobre a relação entre erro e acerto. grosseiro e heterogêneo da linguagem. Funcionamento que não
(2) (Mãe dando banho em V.) impede que a fala produza efeitos sobre o outro, inclusive aquele
V. O xampu é vermelho de uma ilusão do pesquisador, que supõe o controle da língua,
M. Não, é vermelho. isto é, nega-lhe o estatuto de uma sistema autônomo, para tentar
V. É verde porque é escuro superar a grande questão que ecoa desde sempre: “ como é possí-
Meu quarto é verde também porque é escuro vel reconhecer que um signo designa realmente aquilo que ele
O escritório é vermelho porque é claro (V. 3;7.0) significa?” Ou “ como pode um signo estar ligado àquilo que ele
Tem-se aqui uma criança à escuta das relações entre significa?” ( Lahud, op cit).
significantes, mesmo considerando que o ponto de virada foi o Procurei mostrar neste trabalho que a pragmática cognitiva,
significante incorporado da fala do outro. É a partir da correção feita mais especificamente a teoria da relevância, não soluciona o proble-
pelo adulto, e retomada pela criança, que se dá a passagem de uma ma, mas dissolve-o ao ignorar tanto a língua na sua autonomia, quan-
referencialidade externa – dependente da fala do outro – para uma to a opacidade da fala.
referencialidade interna. A oposição entre vermelho e verde, incor-
porada pela criança, dá lugar a uma rede de relações entre significantes Referências bibliográficas
que se distribuem em combinações predicativas, nas quais retorna a
palavra “vermelho” - objeto da correção do adulto. DE LEMOS, C.T. (1992) “Los processos metafóricos y metonímicos
A própria noção de erro deve ser aqui interrogada, ou melhor, como mecanismos de cambio”. Substratum vol 1, nº 1: 121-135
explicada pelo submetimento da fala aos movimentos internos à lín- FODOR,J & Katz (1964) The Structure of Language. New Jersey:
gua. A criança está sob o domínio das “relações associativas” de que Prentice-Hall
fala Saussure e pelas quais qualquer palavra pode evocar tudo “o que LAHUD, M (1977) “Alguns Mistérios da Lingüística”. Almanaque
é suscetível de lhe ser associado de uma maneira ou de outra” nº 5 ( 28-37)
(Saussure op cit: 174); quando um termo, segundo o autor, atua como SMITH, N (2000) Foreword to Chomsky, N New horizons in the
o centro de uma constelação, para o qual converge uma quantidade study of language and mind.. Cambridge: Cambridge University
indefinida de outros termos. Tais movimentos internos à língua fo- Press.
ram explicados por de Lemos (1992, entre outros) como processos SAUSSURE, F ( 1968) Cours de Linguistique Générale. Paris:Payot
metafóricos e metonímicos, que atuariam como mecanismos de mu- SPERBER, D., and Wilson, D. (1986) Relevance: communication
dança na aquisição de linguagem. Processos por que se explica o and cognition. Oxford:Basil Blackwell.
acerto, mas também o erro na sua especificidade e não com um SPERBER, D. and Wilson, D. (1987) Précis of Relevance:
subproduto de um modelo da comunicação bem sucedida. communication and cognition. Behavioral and Brain Sciences
A hipótese de um falante intencional e fruto de um paradigma (1987) 10: 697-754.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 303


O que sustenta a narrativa infantil?
Pascoalina Bailon de Oliveira Saleh
Universidade Estadual de Ponta Grossa

ABSTRACT: The concept of representation is largely present in studies about language, including language acquisition. This paper discusses the
penetration of this concept in works on narrative acquisition and defends that child narratives must be considered a matter of language functioning.
PALAVRAS-CHAVE: narrativas infantis, representação, funcionamento da linguagem

A idéia de representação está presente em grande parte dos Ao que acrescenta: “Posso ainda ver toda a cena e até situá-la
estudos sobre a linguagem. Ela sustenta o dualismo que opõe, por próximo da estação do metrô [...]” (Piaget, op. cit.). À referencialidade
exemplo, mundo extralingüístico e linguagem, pensamento e lingua- da narrativa propriamente dita - ou seja, à configuração de uma se-
gem, no qual, obviamente, a função do segundo membro do par é qüência temporal de eventos, constituindo um fato, isto é, uma reali-
sempre representar o primeiro. Ou seja, a linguagem ora é tomada dade externa ao texto que se apresenta como dizendo respeito a algo
como instrumento utilizado para representação do mundo, ora como efetivamente vivido por alguém – juntam-se os comentários referin-
um meio para representação do pensamento ou da cognição, verten- do-se à clareza da lembrança do ocorrido, tornando o relato ainda
tes de uma mesmo princípio básico: a função da linguagem é, antes mais convincente. Na seqüência do relato uma surpresa:
de tudo, representar algo que lhe é exterior. Esse estado de coisas “Quando eu tinha cerca de 15 anos, meus pais receberam uma
prevalece desde os primórdios da Gramática Tradicional até as teori- carta da minha antiga babá, dizendo que se convertera ao Exército da
as lingüísticas mais modernas, incluindo ainda teorias do âmbito da Salvação. Ela desejava confessar suas faltas passadas e, em particu-
Filosofia da Linguagem e da Lógica. lar, devolver o relógio que tinha recebido como prêmio na ocasião.
Afinados à perspectiva representacionista, muitos estudos so- Ela havia inventado toda a história, simulando arranhões. Eu devo,
bre a aquisição de narrativas assumem que a capacidade referencial portanto, ter ouvido, quando criança, o relato dessa história em que
da linguagem provém da sua correspondência com o mundo, e, nesse meus pais acreditaram e a projetei no passado sob a forma de me-
sentido, relacionam o relato à fidelidade ao vivido e a ficção à imagi- mória visual, que foi uma lembrança de uma lembrança, apesar de
nação, à criação. Esse é, por exemplo, o pressuposto de Rojo (1989): falsa. Muitas lembranças reais são da mesma ordem, sem dúvida al-
“Se, no relato, “eu” narro o acontecido no mundo real e tenho guma” (Piaget, apud Slobin, op. cit.: 223 – nossas ênfases).
por base da estruturação deste relato a estrutura de ação que realmen- Ou seja, um texto narrado é capaz de suscitar em uma pessoa
te se verifica no real, i.e, a fidelidade aos fatos; na estória, a fidelida- lembranças, sensações de um episódio do qual ela jamais participou.
de ao imaginário a ser compartilhado com um leitor virtual obriga à O fato relatado, como se vê, não passou de uma realidade construída,
criação não só de personagens, mas também de uma voz que viabiliza e fixada na memória como vivenciada pelo narrador, pela linguagem.
a ação dos personagens: o narrador” ( op. cit.: 144). O próprio Piaget vê que o efeito de referencialidade, de algo
Essa perspectiva coincide com aquela do modelo proposto por experienciado, vem da fala do outro. Mesmo se o evento não aconte-
Labov e Waletsky (1967) para relatos de experiência pessoal, muitas ceu, as palavras fazem com que ele tenha acontecido. Piaget é sur-
vezes tomado como base descritiva para as narrativas infantis em preendido por um fato lingüístico: a linguagem está no próprio even-
trabalhos com essa concepção. A função referencial está na base da to. A realidade é, para usar as palavras de Riffaterre (1989), um suce-
principal definição de narrativa oferecida pelos autores: “uma técni- dâneo do texto. Trata-se, pois, de ver o relato não a partir do referen-
ca verbal para recompor experiência, em particular, uma técnica de te externo ao texto, nem de um significado que o antecede e que será
construir unidades narrativas que encaixam na seqüência temporal por ele codificado, mas do efeito que as combinações entre os
daquela experiência” (op. cit.: 13), encaixamento que é condição para significantes promove, ou seja, sua capacidade de estabelecer um
“a interpretação semântica original” da narrativa. Ou seja, “a inter- sistema de referências passível de ser imaginariamente identificado
pretação [...] depende da expectativa de que os eventos descritos ocor- com a realidade externa.
reram, de fato, na mesma ordem que eles foram contadas” (op. cit.: Labov e Waletsky reconhecem no relato uma estrutura com-
30). Note-se que o fato de os autores condicionarem essa interpreta- posta de orientação, complicação, avaliação, resolução e coda1 . Van
ção à ordem em que os eventos efetivamente se deram no mundo Dijk e colaboradores (cf., entre outros, Van Dijk e Kintsch, 1983)
exclui qualquer possibilidade de se tomar a temporalidade produzi-
da pela narrativa como efeito do próprio texto. Ou seja, eles atrelam
o produto narrativo ao acontecimento “real” que lhe deu origem.
Sugerem, pois, que o relato de experiência pessoal seria uma repre- 1 A “orientação” desempenha uma função referencial, ou seja, orienta “o
sentação dos eventos narrados. ouvinte com a respeito da pessoa, lugar, tempo, e situação
comportamental” (op. cit.: 32 - ênfase dos autores). No entanto, ela não
Tal concepção mostra-se, de imediato, um tanto quanto pro-
está presente em todas as narrativas e nem mesmo abrange sempre essas
blemática frente à simples consideração de relatos como esse de quatro funções, além de poder aparecer em outras posições da narrativa;
Piaget, cujo objeto são reminiscências de algo que teria ocorrido no a “complicação” diz respeito ao “corpo principal” das orações narrativas,
segundo ano de idade do autor, cena que ele pode “ainda ver, mui o qual, geralmente, engloba uma série de eventos (essa seção termina
claramente”: sempre onde começa o resultado, embora essa distinção nem sempre seja
“Estava sentado no meu carrinho, que a babá ia empurrando clara); a “avaliação” cuja função é revelar “a atitude do narrador em rela-
nos Champs Elysées, quando um homem tentou raptar-me. Fiquei ção à narrativa enfatizando a importância relativa de algumas unidades com-
preso pelo cinto, enquanto minha babá tentava corajosamente colo- paradas a outras” (op. cit.: 37); a “resolução” resulta da “complicação” e é
a parte da seqüência narrativa que segue a “avaliação” (isso significa que,
car-se entre mim e o seqüestrador. Ela sofreu vários arranhões, e eu
se a “avaliação” for a última seção da narrativa, a “resolução” coincide com
posso ainda ver vagamente os do seu rosto. Depois uma multidão se ela); e a “coda” é um dispositivo funcional para fazer voltar a perspectiva
ajuntou, um policial com uma capa curta e um bastão branco apare- verbal para o momento presente. De todas elas somente a “complicação”
ceu, e o homem saiu correndo” (Piaget, apud Slobin, 1980: 222). e a “resolução” são indispensáveis no relato.

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propõem categorias semelhantes, mas na proposta destes a tônica incompletude, como indica o acúmulo dessas expressões fixas, não
está na cognição: a narrativa seria uma atualização de modelos incide sobre a criança na sua relação com seu próprio texto.
cognitivos armazenados - esquemas superestruturais - na mente da- Umberto Eco afirma que, se uma história é iniciada com “era
quele que narra, com o objetivo de atingir fins específicos. Tais es- uma vez”, ela tem grandes chances de ser um conto de fadas e, de
quemas seriam representações cognitivas de formas sócio-cultural- que, portanto, ela evoque e postule como “leitor-modelo” uma crian-
mente determinadas de significar relações entre objetos, pessoas, si- ça e “não um adulto ansioso por reagir com um estado de espírito
tuações (De Lemos, 1995). infantil” (Eco, 1993: 75). Porém, naturalmente, continua ele, pode
Se esses esquemas são convencionais e culturalmente variá- tratar-se de um caso de ironia, o que exige uma leitura mais “sofisti-
veis e, ao mesmo tempo, de natureza cognitiva, a pergunta que se cada” do texto que se segue. E acrescenta: “Mas, mesmo que eu
coloca é: por meio de que processo o falante define essa superestru- possa descobrir no decorrer do texto que este é o caso, foi indispen-
tura? Seria preciso supor um conhecimento tácito que garantisse o sável reconhecer que o texto pretendia começar como uma história
armazenamento de uma mesma estrutura abstrata por todos os falan- de fadas” (op. cit.: 75).
tes de um determinado grupo cultural. Essa perspectiva supõe, por- Eco refere-se obviamente aos textos de escritores/poetas. Tra-
tanto, que a aquisição da narrativa é precedida por um conhecimento ta-se, pois, de uma posição em que o sujeito não só interpreta os seus
de uma ordem que não é a da língua, o qual permite ao sujeito abs- próprios textos como reconhece a “ordem estética enquanto ruptura
trair as categorias narrativas. Dessa forma, se, por um lado, na medi- da linguagem ordinária, enquanto diferença” (De Lemos, 1997: 15).
da em que reconhecem a variação cultural dos esquemas No caso das nossas crianças que abrem o texto com “era uma vez”,
superestruturais, os autores abrem espaço para a singularidade, por elas encontram-se na posição de serem faladas pelos outros textos
outro, a negam, já que atribuem a eles uma natureza cognitiva. Não que leram, escreveram e ouviram, como atestam os casos de incorpo-
se consideram, portanto, os efeitos da linguagem sobre o sujeito, ração; mas também de serem interpretadas pela língua, como indi-
seja na produção ou na interpretação das narrativas. Trata-se de um cam os movimentos de língua que põem os fragmentos incorporados
outro vértice do representacionalismo. em novas cadeias e garantem um novo estatuto a esses elementos. No
Ao tratar de problemas referentes à “coerência superestrutural” caso do texto acima o movimento de retroarticulação conduz a uma
em narrativas escritas infantis, Koch (op. cit.), por exemplo, enfatiza interpretação da expressão “era uma vez” que difere daquela do con-
o que falta, bem como os desvios dessas narrativas quando compara- to maravilhoso. Não se trata aí da remissão a um universo que não
das ao “modelo canônico”. Dessa forma, “falta a categoria ‘compli- tem compromisso com a realidade, que promove uma negação do
cação’ ” (op. cit.: 114), muito embora as crianças tivessem sido enfa- tempo (cf. Weinrich, 1973: 47), mas de um tempo passado, que é o
ticamente alertadas que deveria ocorrer um “problema” em suas das experiências configuradas pelo relato.
narrativas. A “resolução” ocorre “ ‘desvinculada’ da complica- Observemos ainda a relação de referência entre “eles” e “to-
ção” (op. cit.) e aparece coda de contos de fada “em textos que não a dos” no enunciado “So que um dia eles mataram a vaca e viveram
comportam [...] ou cortes abruptos da narrativa, que fica sem a reso- todos feliz para semtre”. “Todos” remete ao mesmo tempo ao “eles”
lução ou com a resolução comprometida” (op. cit.: 115). Uma das que o antecede no texto como ao “eles (personagens)” do conto ma-
explicações apontada pela autora para esses problemas está no “es- ravilhoso, numa relação ao mesmo tempo de substituição e coexis-
tágio de desenvolvimento mental” da criança. tência na expressão quase-cristalizada. Esse cruzamento, conseqüen-
Tal perspectiva costuma, pois, ser adotada por trabalhos temente, produz, um jogo entre referência interna (ao texto) e refe-
centrados na noção de desenvolvimento, os quais julgam a capaci- rência externa. Externa, neste caso, não no sentido de que remete ao
dade de narrar da criança pela presença ou ausência, no texto desta, mundo extralingüístico, mas a outros textos, aos personagens dos
das categorias previstas pelo modelo2 . Mas um outro olhar sobre contos maravilhosos.
as narrativas infantis nos indica uma outra relação da criança com a A entrada desse fragmento do conto maravilhoso contribui
sua experiência e com a linguagem. Vejamos, nesse sentido, o tex- para alterar a perspectiva da 1ª para a 3ª pessoa e também parece
to abaixo: provocar uma descontinuidade em relação ao que vem na seqüência.
O enunciado seguinte é introduzido justamente pela construção “fi-
(1) “A VACA quei muito feliz” que, embora retome elementos da expressão crista-
Era uma vez eu laia na escola naora que eu voltei eu lizada, não se apresenta como tal, compondo um arranjo que produz
imprei debaixo da cerca eu fiquei perto da cerca e o boi derudou fechamento. É interessante notar ainda que esse enunciado recupera
a cerca em cima de im so que eu não maxuquei quase nada. a perspectiva inicial e retoma a linha narrativa interrompida. Ao fi-
So que um dia eles mataram a vaca e viveram todos fe- nal, entretanto, um novo deslizamento metonímico traz de volta a
liz para semtre. expressão cristalizada, promovendo mais um furo no tecido narrati-
Fique muito feliz porque a vaca tinha norido porque eu vo. Tais deslizamentos não impedem, porém, que a narrativa seja
cei torele eu não vou cer nordido muito feliz para sempre.” interpretada como um relato de experiências vividas.
TCS - 7 anos O cruzamento de textos que produzem o efeito de ficção com
aqueles que produzem efeito de relato não deve ser visto como uma
Esse episódio3 foi produzido em ambiente escolar, a partir simples incorporação. Esse processo mostra a rede que se cria, na
de uma instrução que sugere a escrita de um relato: “Conte alguma narrativa infantil, com outros textos e não com os fatos do mundo, ou
coisa interessante que aconteceu com você”. Como se vê, ele é
atravessado por fragmentos das narrativas ficcionais, mais especifi-
camente pelas expressões cristalizadas que abrem e fecham as narra-
2 Em muitas ocasiões, porém, as duas perspectivas - linguagem como
tivas tradicionais. Trata-se de uma composição em que tais fragmen- representação do mundo e como representação da cognição - acabam
tos, não ressignificados ou em processo de ressignificação, e cons- se cruzando. É o caso, por exemplo, do trabalho de Rojo que citamos
truções oriundas do discurso do cotidiano apresentam-se em relação acima e da própria Koch (cf. Saleh, 2000). Constata-se, pois, um deslo-
de contigüidade, ou seja, constituem um arranjo metonímico que, no camento teórico-metodológico que se multiplica em vários trabalhos
entanto, não esconde os buracos em suas amarras, denunciados pela sobre a aquisição da linguagem.
origem tão marcada das expressões cristalizadas. Esse efeito de 3 Assim como os demais que constituem o corpus com que temos trabalha-
do (cf., entre outros, Saleh, 2000).

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 305


seja, a presença desses fragmentos mostra que a configuração da for tomado como “autor”, isso reforça o efeito ficcional da narrativa
realidade a que remete a narrativa resulta de uma rede de relações em questão, porém, não seria diferente se não supuséssemos um erro
entre textos, através dos quais a criança significa as suas experiênci- de escrita, já que, aliados ao universo configurado pela narrativa,
as, o vivido. Processo que uma perspectiva representacionista não ambos - “autor”/ “ator”- remeteriam à idéia de criação, de ficção.
pode captar, e que mostra que só é possível pensar em uma classifica- Independente da interpretação assumida, temos aí mais um exemplo
ção da narrativa infantil em termos dos efeitos - de ficção ou não- da rede estabelecida em um texto, a qual, através de processos meta-
ficção - que ela produz. fóricos e metonímicos, põe em relação elementos oriundos de dife-
Cruzamentos dessa natureza dão visibilidade à heterogeneidade rentes textos.
cujas marcas explícitas vão cedendo lugar a arranjos em que, predo- Fenômenos como os que analisamos em (1) e (2) apontam
minantemente, os fragmentos em contigüidade, ao mesmo tempo em para o fato de que não é possível ver esses processos como resultado
que sofrem substituições metafóricas, produzem fechamento e, em de uma estratégia de construção textual escolhida pelo falante ou
conseqüência, um texto que se apresenta como uno, homogêneo, re- mesmo de uma relação transparente da linguagem com o mundo,
sultando no que se poderia chamar de efeito de autoria. Mas encon- impondo-nos, com isso, a necessidade de pensar o papel do funcio-
tramos também dentre as narrativas infantis textos que não apresen- namento da linguagem – centrados nos processos metafóricos e
tam nenhuma incorporação explícita: metonímicos - na construção da rede de referências na narrativa,
tanto no que se refere à remissão ao mundo extralingüístico como ao
(2) “Um dia na mata textual. Ou seja, a breve análise de dados acima indica que, ao con-
Num dia eu fui na mata eu entrei na mata e eu vi um home la trário do que preconiza a visão representacionista, a narrativa infantil
em sima do morro e meu irmão falo. sustenta-se no funcionamento da linguagem, do qual resultam os seus
Estamo na mata amasonica e um home saio correnda atras de efeitos, e não em uma ordem que lhe é externa, seja o mundo, ou a
nos e a gente Saimo correndo muito e eu cortei o pé e cai no chão e cognição. Isso implica que a linguagem é constitutiva do sujeito e da
na ora que eu levantei ele estava com 2 cachorro. sua relação com o mundo, enfim que o sujeito sofre os seus efeitos.
Ai meu irmão veio me salvar e meus colegas também veio
me salvar. Referências bibliográficas
Meu colega tinha 14 anos e ele distrail o home para não
mepegar. ECO, Humberto. Interpretação e superinterpretação. São Paulo:
E o home tinha soltado os 2 cachorros atras deles e de pois Martins Fontes, 1993.
irmão do meu colega foi taca uma pedra bem na cabeça do home e KOCH, Ingedore V. Aquisição da escrita e oralidade. Cad. Est. Ling.,
nos cachorro e meu irma deu meu sapato para eu vesti para eu corre 29:109-118, 1986.
mas eu fui agudar meu colega se não ele ea ser mordido. LABOV, William. & WALETSKY, Joshua. Narrative analysis: oral
Ator - Danilo” - D - 9,9 anos versions of personal experiences. In: J. Helm (ed), Essays on
the Verbal Arts. Seattle: University of Washington Press, 1967.
Ao contrário de (1), esse texto, parece-nos, apresenta forte 12-24.
efeito de ficcionalidade. O enredo é centrado numa aventura que se DE LEMOS, Cláudia. T. Guimarães. Língua e discurso nos estudos
passou na “mata amazônica”, local que não deixa de suscitar em sobre Aquisição de Linguagem. Letras de Hoje, 30.4 : 9-28,
quem vive em um mundo tão distante, obviamente não só em termos 1995.
geográficos, a idéia do desconhecido, do perigo. Esta referência à ___. “Processos metafóricos e metonímicos: seu estatuto descritivo e
Mata Amazônica bem como a idéia de salvamento remetem-nos ime- explicativo na aquisição da língua materna”. Trabalho apresen-
tado na The Trento Lectures and Workshop on Metaphor and
diatamente aos textos de ficção de aventura que povoam o universo
Analogy organizada pelo Instituto Italiano per la Ricerca
infantil, sejam eles narrativas tradicionais, histórias em quadrinhos
Scientifica e Tecnologica em Povo, 1997.
ou mesmo textos televisivos (desenhos, filmes etc.) em que sempre
RIFFATERRE, Michael. A produção do texto. São Paulo: Martins
aparece um herói para salvar os desamparados.
Fontes, 1989.
Por outro lado, é de se notar que o local dos acontecimentos
ROJO, Roxane. H. Rodrigues. O desenvolvimento da narrativa es-
narrados é, nas referências iniciais do texto, inclusive no título, ape- crita: “fazer pão” e “encaixar”. Tese de Doutorado, PUC/SP,
nas “a mata”: “Um dia na mata”, “Num dia eu fui na mata eu entrei 1989.
na mata...”. Mas o significante “mata” atrai, por assim dizer, o SALEH, Pascoalina. B. de Oliveira. Narrativas infantis sobre expe-
significante “amazônica”, funcionando como uma senha para a en- riências vividas: uma questão de representação? Tese de Dou-
trada no mundo de aventura. Melhor dizendo, a entrada desse torado, IEL/UNICAMP, 2000.
significante na cadeia ressignifica os eventos anteriormente configu- SLOBIN, Dan Isaac. Psicolingüística. São Paulo: Companhia Edito-
rados como parte de uma aventura ficcional. Vemos então o movi- ra Nacional/EDUSP, 1980.
mento metonímico aproximando fragmentos de textos de outro uni- VAN DIJK, Teun. A. & KINTSCH, W. Strategies of discourse
verso com aqueles que fazem referência ao cotidiano da criança. comprehension. Nova York: Academic Press, 1983.
Acrescenta-se a isso outro interessante aspecto: ao final do WEINRICH, Harold. Le temps; le récit et le commentaire. Paris:
texto lemos “Ator - Danilo” (o sublinhado é da criança). Se “Ator” Seuil, 1973.

306 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Sobre a infância da letra
Zelma Regina Bosco
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP

ABSTRACT: This paper proposes some reflection on a possible interrelation between the traces of drawing and the ones of letter. By adopting
the interactive perspective developed in Lemos (1992, 1998, 2000 and others), Pereira de Castro (1998) and Mota (1995) works, we will try
to point out that the reciprocal movement of drawings into letters reveal the constitution of the infant writing as an effect of the work with the
significant (Bosco, 1999).
PALAVRAS-CHAVE: aquisição da linguagem; escrita; desenho; significante.

1. O cognitivismo e a aquisição da linguagem escrita alfabética de linguagem e a hipótese relativa aos esforços infantis para
responder à pergunta: o que é que a escrita representa e de que maneira
Os estudos sobre aquisição da linguagem escrita sustentam representa? No caso particular da linguagem escrita, segundo a autora,
suas reflexões teóricas em um campo interdisciplinar que aproxima a a natureza complexa do signo lingüístico torna difícil a escolha dos
Lingüística da Psicologia. Da primeira, retiram-se os argumentos parâmetros a serem privilegiados na compreensão desse sistema de
necessários à descrição do material lingüístico produzido pela crian- representação pela criança, sem correr o risco de dissociar significante
ça e/ou a definição dos pré-requisitos lingüísticos indispensáveis à sonoro e significado e, assim, destruir o signo lingüístico.
aquisição da linguagem; e da segunda, as noções de sujeito, ausente Na proposta de Ferreiro, encontramos a noção de represen-
das considerações teóricas da Lingüística, e de desenvolvimento, para tação sob dois sentidos: (a) é conceitual e operacional, relacionada
explicitar as transformações que ocorrem na linguagem infantil no aos processos cognitivos em jogo nas conceitualizações da lingua-
decorrer do processo de aquisição. Fundamentadas em princípios da gem escrita pela criança; é construtiva e responsável pela formação
Psicologia, especialmente a Psicologia do desenvolvimento, essas de conceitos e, portanto, determinante do modo como se estruturam
discussões apresentam a linguagem escrita como um objeto de co- os estágios de desenvolvimento. Por outro lado, as operações con-
nhecimento a ser adquirido pela criança, entendida como sujeito cretas da criança necessitariam ter como suporte uma outra repre-
epistêmico, cujas propriedades perceptuais e cognitivas precedem e sentação: a (b) figurativa, que se limita às configurações da realida-
determinam o processo de aquisição da linguagem escrita. de; são imagens, símbolos que evocam o objeto-escrita, sem trans-
A noção de representação, argumento central no campo da formar as estruturas internas do sujeito; representação é, nesse sen-
Psicologia cognitiva, apresenta-se como eixo de convergência em tido, reprodução.
torno do qual se alinham as diversas teorias sobre aquisição da lin- Esses seriam, respectivamente, os aspectos conceituais e os
guagem escrita. Considerada como um fenômeno psíquico consci- aspectos figurativos considerados por Ferreiro. Seguindo a hipótese
ente e intencional, a representação tem no sujeito epistêmico sua piagetiana, a autora vai considerar as atividades de produção escrita
origem. A linguagem escrita, objeto do conhecimento a ser adquiri- da criança como reveladoras dos níveis de conceitualizações sobre o
do, é considerada como representação, seja da linguagem oral, sen- objeto-escrita, a partir das quais, por apresentar uma evolução regu-
do esta entendida como expressão ou veículo de comunicação do lar e ordenada, é possível identificar três grandes períodos: (a) o pe-
pensamento, seja de significados prévios dados (e a serem encon- ríodo pré-silábico, no qual inexistria a correspondência entre som e
trados) no texto. A noção de signo lingüístico, em seu caráter ex- grafia; (b) período silábico, ponto de virada do processo, quando a
pressivo e representativo, alinha-se à de representação e as concep- criança principiaria a correspondência entre som e letra, sustentan-
ções de linguagem e conhecimento identificam-se a um processo do-se numa hipótese híbrida constituída de duas hipóteses, a silábica
de compreensão pelo sujeito da base alfabética da escrita ou dos e a alfabética, com algumas letras representando sílabas, outras
sentidos dados no texto. fonemas; e (c) período alfabético, quando a escrita da criança se or-
Nesse campo de reflexão sobre a linguagem escrita, a cons- ganizaria em termos de correspondência termo a termo, entre grafema
tância da noção de representação sustenta-se na tradição do pensa- e fonema.
mento ocidental que impõe a primazia do oral e a secundariedade/ O período pré-silábico caracteriza-se pela atividade da criança
exterioridade da escrita. Essa tradição, então, não deixa de surtir seus em busca de parâmetros que possibilitem introduzir certas diferenci-
efeitos nas reflexões sobre aquisição da linguagem escrita pela rede ações dentro do universo das marcas gráficas. Em função disso, a
de relações conceituais que põe em cena, pré-determinando outras criança buscaria inicialmente estabelecer uma distinção entre modo
concepções no interior da cadeia discursiva que se instaura, dentre de representação icônico e não-icônico, a fim de realizar a ruptura
elas, as de percepção e memória; ambas, assim como a noção de básica e necessária, no sentido lógico do termo, que sustentaria as
representação, importadas da Psicologia. construções subseqüentes: a distinção entre desenho e escrita.
O campo teórico que se delineia a partir do estabelecimento Segundo Ferreiro, nos primeiros traços infantis, desenho e es-
desses pressupostos não deixa espaço para o reconhecimento dos efei- crita não possuiriam diferenças substanciais. Ambos consistiriam em
tos da língua como um sistema em funcionamento, impedindo a iden- marcas visíveis sobre o papel que iriam paulatinamente se diferenci-
tificação da natureza lingüística do processo de aquisição da lingua- ando em função daquilo que o sujeito pretende representar, com al-
gem escrita e limitando sua descrição aos passos que a criança dá na gumas grafias adquirindo formas figurativas de objetos do mundo e
construção da relação (de representação) entre oralidade e escrita. outras evoluindo em direção à imitação dos caracteres escritos.
Nesse sentido o trabalho de Emília Ferreiro é exemplar. Apoi- Em determinado momento do processo de aquisição, ocorre-
ando-se nos princípios da teoria psicogenética piagetiana, a autora ria uma ruptura definitiva que possibilitaria a constituição de rotas
busca verificar as estruturas lógicas que seriam mobilizadas na aqui- paralelas de evolução e, conseqüentemente, o estabelecimento da
sição da linguagem escrita, centrando sua atenção no processo de especificidade de cada um, permitindo o que a autora chama de pri-
construção conceitual das relações entre oralidade e escrita. Em suas meiro critério organizador de um material composto por várias mar-
considerações teóricas, levará em conta o sistema de representação cas gráficas, resultando na dicotomia entre figurativo e não-figurati-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 307


vo e na separação entre desenho e escrita. Após essa separação, come- Se, conforme propõe Lemos a partir de Saussure, aceitamos
çaria um novo trabalho cognitivo em relação ao conjunto de marcas que na língua só existem diferenças, sem termos positivos, é na
não figurativas, possibilitando a emergência do critério de quantidade cadeia que as realizações gráficas infantis adquirem seu valor. O
mínima de caracteres e, posteriormente, o critério de variedade interna estatuto de unidade dependerá, então, das relações de oposição re-
de caracteres. cíproca entre entidades que a sucedem ou a precedem na cadeia. Os
Ao procurar compreender a representação escrita, a criança processos metafóricos e metonímicos (Lemos, 1992), enquanto me-
enfrentaria problemas de classificação do material gráfico e, por isso, canismos de mudança lingüística, trazem à luz o efeito dessas rela-
segundo Ferreiro, é necessário que ela esteja apta a classificar e seriar ções, possibilitando-nos uma outra interpretação das realizações
um conjunto de objetos em relação a um parâmetro de comparação gráficas infantis.
estável e sistemático. Pela proposta da autora, os elementos do dese-
nho e da escrita apresentam-se como unidades gráficas em si mes- 2. Por uma nova interpretação do processo de aquisição da
mas, com vínculos muito estreitos, mas diferentes em natureza e linguagem escrita
conteúdo. Caberia à criança perceber essa diferença e proceder a se-
paração. A dificuldade que se colocaria a ela é, então, de classifica- Os episódios de desenho e escrita que analisamos (Bosco,
ção entre unidades gráficas, estando aí implícita a crença na 1999) permitiram verificar deslizamentos entre desenhos, letras e
positividade dos elementos do desenho e da escrita. inclusive números que se faziam a partir de traços que, de alguma
Considerar desenho e escrita por essa via é estar no registro do forma, se revelaram heterogêneos em relação à série que eles compu-
signo. Sua separação, enquanto unidades gráficas, em sistemas inde- nham, possibilitando a emergência de um novo processo associativo
pendentes dependeria da capacidade da criança em apreender as rela- com inúmeros pontos de entrecruzamentos, favorecendo diversas
ções de representação: o desenho representa objetos do mundo e a possibilidades de cortes. Essas séries não se constituíam como flu-
escrita representa a fala. Lembramos que, para Ferreiro, os processos xos unificados - de desenhos, de letras ou números - que se encontra-
de estruturação do real têm a ver com a gênese das estruturas lógicas riam, uma vez que se trata de uma trama de traços sem ligações com
e estas constituiriam “ao mesmo tempo as condições da leitura da significados. Os processos que promovem associações estão relacio-
experiência e o resultado de tentativas de estruturação do objeto de nados a uma inscrição psíquica na memória: o traço mnêmico.
conhecimento”( Ferreiro: 1990:40). Todo o material psíquico que compõe a trama de traços
Dessa forma, o argumento piagetiano de que a linguagem pro- registrados simultaneamente em vários estratos da memória procede
cede de uma inteligência parcialmente estruturada, permite à autora, da história da relação da criança com a linguagem, que deixou im-
como fez Piaget, subordinar a linguagem às estruturas cognitivas e pressões sensoriais. Ao se inscreverem na memória como traço, es-
obter a primazia dos processos psicológicos sobre a linguagem. En- sas impressões sofrem um apagamento de sua qualidade sensorial.
tendemos, então, que o processo de construção da linguagem escrita Como traços, vão constituir um texto psíquico que não é feito de
estaria sustentada em um conhecimento construído internamente, da palavras, desenhos, letras ou números, uma vez que não se trata de
ordem de uma representação mental. Por essa perspectiva teórica, um arquivo que armazena reprodução pura e simples, não se consti-
fica impossível reconhecer as mudanças que surgem a partir de acon- tuindo “de uma presença recuperável (por estar localizado), mas de
tecimentos acidentais, contingenciais de escrita como fatos de lín- uma diferença (alteração) de inscrição em vários registros”(Moraes,
gua (a partir de Lemos, 2000). 1999:24).
Baseando em produções gráficas pré-escolares de crianças na A memória como Freud a propõe não soma traços mas
faixa etária entre 3 e 5 anos, em Bosco (1999) questionamos a hipó- (re)edita-os, (re)escreve-os a cada nova inscrição, (re)estruturando-
tese de Ferreiro, privilegiando um momento de sua reflexão: a rela- se a todo instante, recebendo uma nova transcrição em função de
ção entre desenho e escrita. Nos episódios analisados, verificamos novas inscrições, e respondendo como um todo a cada vez que um
deslizamentos entre desenhos e letras quando estes, pela via de um processo associativo se instaura. E “não podemos ter uma sensação
traço qualquer, eram postos em relação, possibilitando sua localiza- sem logo associá-la”, diz Freud (1977:57). A função desse aparelho
ção como significantes sem laços com o sentido e, como tais, passí- psíquico é, pois, associar e a cada nova associação esse aparelho
veis de serem tomados literalmente (Allouch, 1994). responde como um todo, trilhando caminhos já abertos e retomando
Essa tomada do significante “ao pé da letra” faz-se pela via o campo simbólico instaurado.
obrigatória de um apagamento que sustenta, com o significante, a Identificando o aparelho psíquico ao aparelho de linguagem,
passagem de uma escrita para outra. Como significante esvaziados Freud vai propor o traço mnêmico como diferença; “mas diferença
de sentido, desenho e letra superpõem-se e recobrem-se, em um que se escreve em complexos trajetos associativos que constituem as
entretecimento possibilitado pelo processo metafórico que se instau- representações” (Moraes, 1999:31). Tendo isso em vista, Mota traz a
ra. Num movimento metonímico, um deslocamento se dá, forjando interpretação lacaniana da noção de representação em Freud para as
um novo significante, cujo valor - de desenho ou de letra - é constitu- reflexões sobre aquisição da linguagem escrita, definindo-a como
ído a partir de sua inserção em uma cadeia que o sustente, seja a cena “elemento associativo, combinatório, organizado segundo as possi-
de um desenho ou uma seqüência escrita. As semelhanças e diferen- bilidades do significante como tal”. Segundo a mencionada autora,
ças que emergem entre desenhos e letras postos em relação são efei- “a representação para Freud é da ordem da linguagem, supõe
tos dos processos metafóricos e metonímicos (Lemos, 1992). relação com o outro na e pela linguagem” (Mota, 1995:113, grifos
Recorrer aos processos metafóricos e metonímicos como me- da autora), e, nesse sentido, nenhuma percepção faz-se independente
canismos de mudança lingüística permitiu a Lemos mostrar que a da linguagem.
língua, em um movimento que lhe é próprio, aproxima fragmentos Tomar a relação entre desenho e escrita a partir da concepção
oriundos de diferentes cadeias, que se cruzam e se substituem na de memória freudiana implica em considerar qualquer fragmento grá-
mesma posição. No jogo de semelhanças e diferenças que emerge fico da escrita infantil como feixe de relações, que emerge como efeito
dos termos postos em relação, as unidades se constituem e adquirem das múltiplas impressões proporcionadas pelos textos orais ou escri-
estatuto simbólico. Por essa via, entendemos que o desenho em sua tos em que a criança circula inscritas na memória como traços. Re-
relação com a escrita vai revelar um trabalho da língua, possibilitan- presentação, então, não é reprodução de letras ou desenhos que se
do-nos interpretar a articulação que se dá entre desenho e escrita apresentam ao sujeito e o aparelho psíquico não se limita a um apare-
como efeito de língua. lho mental que se revela internamente pronto desde o nascimento da

308 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


criança. Sujeito e objeto encontram-se submetidos à ordem da lingua- numa relação, não de representação de objetos do mundo ou da fala,
gem e, dessa forma, é mítico supor um sujeito diante da linguagem, mas de constituição mútua que vem à luz no jogo da metáfora e
com capacidade de emitir julgamentos sobre ela, em busca de metonímia.
compreendê-la e construir representações.
Em Bosco (1999), como vimos, formulamos uma nova análise 3. Considerações finais
da relação entre desenho e escrita que retomamos a seguir: como
significantes, desenho e letra, sem relação com o sentido, superpõem- O processo de aquisição da linguagem escrita não se reduz à
se e recobrem-se em um processo de entretecimento. A condensação, busca do estabelecimento de correspondência entre escrita e oralidade,
pela superposição e entretecimentos de traços dá lugar à metáfora, representante e representado, uma vez que o que se escreve é da or-
que faz emergir efeitos de semelhanças e diferenças entre eles. Num dem do traço. Desde antes de seu nascimento, a criança é confronta-
movimento metonímico, um deslocamento se dá, possibilitando a in- da a uma massa de excitações perceptivas que seu sistema perceptivo
venção de um novo elemento que traz em si vestígios do desenho e da irá conservar traços. Esses traços são cifrados, recebem sua letra, em
letra. um ciframento que está submetido ao Outro, espaço aberto de
Dessa forma, pudemos identificar a letra “R” (GL 16, seta 1) significantes em que o sujeito se encontra desde seu ingresso no mundo
na escrita do nome de G.L. (4,0). Esse elemento gráfico parece con- (Balbo 1996).
ter traços que o aproxima do desenho da figura humana (GL 41); Allouch dá a essa leitura valor de deciframento, formulando
mas, ao ocupar uma posição vazia na cadeia escrita do nome da cri- sua equivalência ao ciframento: “escrever o escrito é cifrá-lo, e esta
ança - EGUELMHSL*IIU - , sua função será a de preencher o lugar forma de ler com o escrito merece, pois, ser designada deciframento”
da letra “R”, a única que faltava na escrita do nome de GUILHER- (Allouch, 1994:14). Se os traços são cifrados, precisam ser decifra-
ME LUÍS. Inscrevendo-se na seqüência de letras do nome da crian- dos e, ao contrário do que faz imagem e que se pode compreender,
ça, essa figura enigmática, que não é desenho e nem letra, adquire o desenho e escrita apresentam-se como elementos representativos de
estatuto de letra “R” ao articular-se com os outros termos da cadeia, cifragem literal e como enigma devem ser decifrados.
constituindo-se como letra “R” por retroação.
Referências bibliográficas

ALLOUCH, J. ( 1994). Letra a letra. Rio de Janeiro: Companhia de


Freud.
BALBO, G. (1996). “O desenho como originária passagem à escri-
tura”. In: O mundo a gente traça. Col. Psicanálise da criança,
vol. l, n.7, Salvador: Álgama.
BOSCO, Z. R. (1999). No jogo dos significantes, a infância da le-
tra. Dissertação de Mestrado em Lingüística. IEL/UNICAMP.
FERREIRO, E. (1990). “A escrita... antes das letras”. In: SINCLAIR,
H. (org.). A produção de notações na criança - linguagem, nú-
Na escrita do nome de GL, a letra “R” era esperada, mas em seu mero, ritmos e melodias. São Paulo: Cortez Editora.
lugar emerge um significante que evoca tanto a figura humana de seus FREUD, S. (1977). A interpretação das afasias. Lisboa: Edições 70.
desenhos como a letra “R” de seu nome. Para que esse novo elemento LEMOS, C.T.G. (1992). “Os processos metafóricos e metonímicos
pudesse ser lido como letra “R” nessa cadeia, foi preciso que justa- como mecanismos de mudança” In: Substratum, vol. 1, n. 3.
mente sua natureza de imagem, seu caráter figurativo fosse recalcado, Porto Alegre: Artes Médicas.
apagado - é da interdição do visual que emerge sua significação na _____________ (2000). “Questioning the notion of development:
cadeia, possibilitada por uma leitura que privilegia a materialidade the case of language acquisition”. In: Culture & Psychology.
significante. Como significante, sem amarras com o sentido, o Vol. 6(2). London: Thousand Oaks.
deslizamento do desenho para a letra e reciprocamente se faz como MORAES, M.R.S. (1999). Materna/Estrangeira: o que Freud fez
efeito do trabalho do significante, que ultrapassa o sujeito e irrompe da língua. Tese de Doutorado em Lingüística. IEL/UNICAMP.
em sua escrita. MOTA, S.B.V. (1995). O quebra cabeça: a instância da letra na
Dessa forma, desenho e letra não se constituem como unida- aquisição da escrita. Tese de Doutorado em Psicologia da Edu-
des gráficas em si mesmas, uma vez que não há um sentido prévio a cação. PUC-SP.
inserção do significante na cadeia. Seu estatuto simbólico emerge

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 309


As práticas de produção de textos coletivos como
tecnologização do discurso: (re)constituição das
identidades dos alfabetizandos mediante a representação
das diferentes vozes na passagem da oralidade para a escrita
Alexandre Costa
Universidade Federal de Goiás1

ABSTRACT: In this paper we intend to identify adult literacy as a process of social production and control of social change at a discourse level and
in relation to literacy studies. Based on the Social Theory of Discourse, we analyse data related to discursive literacy practice in the Adult Literacy
Course at the Centre for the Development and Culture of Paranoá (CEDEP). Based on the conception of the technologization of discourse, we are
investigating practices of collective text production.
PALAVRAS-CHAVE: discurso; letramento; tecnologização; texto coletivo.

1. Introdução parte do fato de que a linguagem não é apenas uma forma de represen-
tação do mundo, mas também de ação sobre o mundo e sobre o outro.
“Todo sistema de educação é uma maneira política de manter Por outro, supera a caracterização do uso da linguagem como ativida-
ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os de puramente individual ou como reflexo de variáveis sociais, apon-
poderes que eles trazem consigo.” (Foucault, 1996) tando para a relação dialética que existe entre a prática discursiva e a
estrutura social: a estrutura social é, ao mesmo tempo, condição e
Em trabalhos anteriores (Costa, 1999 e 2000), procuramos efeito da prática discursiva (ou, melhor, da prática social)2 .
identificar processos de mudança nos usos da linguagem relativos à Para tratar da relação entre sociedade e evento discursivo,
educação de jovens e adultos, de modo a podermos explicar o cará- Fairclough propõe uma concepção de discurso e um modelo de aná-
ter de tecnologização discursiva desse tipo de prática pedagógica. lise de discurso tridimensionais: todo evento discursivo é considera-
Com base na Teoria Social do Discurso (Fairclough, 1999; 1992) e do, simultaneamente, como texto, como prática discursiva (proces-
nos novos estudos do letramento (Magalhães, 1995; Kleiman, 1995), sos de produção, distribuição e consumo textuais) e como prática
analisamos um conjunto de dados ligados ao fenômeno do analfabe- social (tipos de ação social). Esse modelo permite relacionar o exa-
tismo no Distrito Federal, investigando o relacionamento da capaci- me detalhado dos produtos dos eventos discursivos à orientação da
dade dos cursos de alfabetização para gerar contrapralavras (Bakhtin, prática social, ou seja, a posição dos textos face às estruturas da soci-
1997) com a reversão da desigualdade social nessa área. edade, por meio do exame da prática discursiva.
Nesse artigo, estamos interessados em aprofundar a caracte- Nesse sentido, considera-se que todo evento discursivo é
rização do processo de tecnologização do discurso, mediante a análi- derivado de conjuntos ordenados de práticas discursivas associados
se de práticas específicas, como a produção de textos coletivos, e de a instituições ou domínios sociais particulares, relativos aos diferen-
seu relacionamento com os diferentes gêneros discursivos. Desta- tes contextos de interação. Fairclough usa o termo criado por Foucault,
cam-se, no processo de avaliação das mudanças discursivas produzi- ‘ordem de discurso’, para denominar esses conjuntos, considerados
das por esses programas, as categorias de intertextualidade manifes- em suas relações complexas, variáveis e historicamente determina-
ta e de intertextualidade constitutiva, uma vez que a geração de das. Assim, em cada domínio social, instituição e mesmo em níveis
contrapalavras nessas práticas de linguagem depende de escolhas sociais mais amplos, pode-se especificar a que tipos de texto, gêne-
acerca da representação das diferentes vozes e das possibilidades de ros discursivos e discursos é possível recorrer no exercício das práti-
passagem da oralidade para a escrita, tendo conseqüências diretas cas sociais: tipos de texto são atualizações muito particulares de gê-
sobre as identidades constituídas para professores e alunos, bem como neros discursivos, termo que se refere aos usos da linguagem associ-
para a comunidade em geral. ados a atividades sociais particulares, descritos em termos de suas
propriedades organizacionais; discursos são formas lingüísticas de
2. A Análise de Discurso Crítica representação das práticas sociais que são construídas a partir de um
ponto de vista particular e ganham relevância quando relacionados
A Análise de Discurso Crítica tem-se configurado como um às duas categorias anteriores (p. ex.: ‘aula expositiva’, ‘aula’; ‘dis-
campo de estudos desenvolvido por pesquisadores interessados em curso da pedagogia tradicional’).
descrever e explicar o envolvimento da linguagem no funcionamen- Outra questão importante diz respeito ao uso dessas conven-
to da sociedade contemporânea, também referida como modernidade ções da prática discursiva, que pode ser reprodutor ou inovador e, de
tardia. A abordagem que indicaremos a seguir é uma das formula-
ções dessa linha teórico-metodológica.
Direcionada ao estudo das dimensões discursivas da mudan- 1
Endereço eletrônico: alexandre@letras.ufg.br
ça social, a Teoria Social do Discurso (Fairclough, 1999; 1992) apre- 2
Fairclough (op. cit.: 57) define prática como “exemplos reais de pessoas
senta uma concepção de linguagem e um quadro analítico construídos fazendo ou dizendo ou escrevendo coisas”, ou seja, refere-se a pessoas
a partir do conceito de prática social. Por um lado, essa concepção agindo socialmente, por meio da linguagem.

310 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


acordo com cada situação social, pode ser configurado de diferentes “as práticas discursivas de letramento são matrizes históricas
maneiras. Uma das conseqüências dessa possibilidade é que o que determinam a produção e a interpretação de instâncias
ordenamento das relações discursivas pode ser confirmado ou trans- concretas de textos falados e escritos, com emissores e recep-
formado de acordo com as opções feitas pelos participantes dos even- tores concretos [...] têm caráter institucional ou comunitário,
tos, indicando que as fronteiras entre os discursos e os gêneros constituindo identidades, valores e crenças mediados pelo meio
discursivos de uma ordem específica, e dessa ordem em relação a escrito” (grifo nosso).
outras, não são fixas, sobrepondo-se e alterando-se mutuamente, em
um equilíbrio parcial e temporário. Derivada da Teoria Social do Discurso, essa concepção está
Na dimensão de análise textual, todos os aspectos podem ser ligada ao segundo desdobramento teórico a que nos referimos, o con-
potencialmente significativos. O estudo do vocabulário revela o pro- ceito de tecnologização do discurso: a geração de mudanças nas
cesso de seleção de palavras para expressar um sentido particular e práticas de linguagem como uma forma de orientar a mudança soci-
pode indicar as possíveis alternativas de lexicalização, ou mesmo os al ou mesmo de produzir mudança social, mediante o uso de
processos de ‘relexicalização’ de determinados campos do discurso. tecnologias discursivas como, p. ex., a entrevista, a terapia e o
A avaliação das opções relacionadas às estruturas oracionais também aconselhamento etc., bem como pelo treinamento de pessoas desti-
pode ser relevante para o exame dos efeitos socialmente constitutivos nadas a aplicá-las (Fairclough, op. cit.).
do discurso e características como o uso da voz passiva ou da voz Finalmente, uma vez consideradas as correlações teóricas
ativa, por exemplo, podem indicar as possíveis orientações das práti- apresentadas, temos verificado sistematicamente que as práticas de
cas sociais estudadas. Outras características importantes do estudo educação de jovens e adultos no Brasil são um tipo de manuseio
do texto são a combinação dos grupos de enunciados em esquemas institucional dessas matrizes históricas, isto é, o controle da deter-
retóricos, como descrições, narrações, argumentações etc., e a arqui- minação das práticas discursivas de letramento, intencionalmente
tetura textual global, como aberturas e fechamentos do discurso ou direcionado à geração de mudança discursiva e social. No contexto
ainda a organização as proposições em ‘episódios’ e ‘esquemas’ pesquisado, a produção de textos coletivos é um tipo de tecnologia
No nível da prática discursiva, a disponibilidade dos recur- discursiva, como veremos a seguir
sos lingüísticos e as escolhas feitas pelos participantes são avaliáveis
no exame dos processos de produção, distribuição e consumo textu- 4. A produção de textos coletivos como tecnologização do
ais. A principal categoria de análise é a intertextualidade, ou seja, a discurso nas práticas de alfabetização de jovens e adultos do mo-
propriedade que os textos têm de serem constituídos a partir de ou- vimento popular do Distrito Federal
tros textos. Uma questão é avaliar a que textos se recorre durante os
processos de produção e interpretação; outra, também importante, é Os dois textos que apresentaremos a seguir foram produzi-
descobrir quais são as características distribucionais dos contextos dos por professoras do curso de alfabetização de jovens e adultos do
estudados: que cadeias textuais são formadas e como os textos são Centro de Desenvolvimento e Cultura do Paranoá, entidade do mo-
transformados nessas cadeias. Além disso, o processo de vimento popular da cidade-satélite do Paranoá, no Distrito Federal4 .
intertextualidade pode ser considerado como ‘manifesto’ ou Desenvolvido em parceria com a Universidade de Brasília, o curso
‘constitutivo’. No primeiro caso, tem-se o aparecimento explícito de funciona desde o ano de 1986 e relaciona as demandas de letramento
outros textos dentro de um texto determinado; no segundo, a confor- a outras demandas sociais da população da cidade.
mação ou o amoldamento do texto pelo uso de convenções geradas Ao lado da inserção de temáticas sociais nas práticas de alfa-
pela prática discursiva, sobretudo pelo uso de gêneros discursivos. betização, o curso também parte do princípio de que a geração de
Na dimensão da prática social, importa apontar as caracterís- posições enunciativas mais fortalecedoras para seus participantes é
ticas contextuais, institucionais e societárias do evento discursivo. condição necessária para o resgate da cidadania desses membros da
Essas características vão determinar a prática discursiva, a qual, por comunidade que procuram o programa. Assim, estabelecem-se os
sua vez, determinará o texto. Devido às propriedades constitutivas dois eixos discursivos de sua proposta teórico-metodológica, gera-
do discurso, grande parte do exame desta dimensão é redundante dos, por um lado, em uma orientação intertextual manifesta, pela pro-
com o exame da dimensão da prática discursiva ou, em outras pala- posição de textos relacionados a questões sociais e por sua retomada
vras, são reciprocamente explicativas. nos diversos eventos de letramento do curso, e, por outro, estruturados
em uma cadeia textual que é muito semelhante a do movimento po-
3. Letramento e tecnologização do discurso pular, caracterizada sobretudo pela prática decisória coletiva (toma-
das de posição frente aos problemas da comunidade e sobre as deci-
Os estudos sobre os usos da leitura e da escrita foram, tradi- sões do dia-a-dia de sala de aula - ver Reis, 2000 e Costa 1999).
cionalmente, dominados por uma perspectiva psicológica, centrada Como essa cadeia está estruturada em torno da discussão do
no desenvolvimento individual e no contexto institucional escolar. enfrentamento de situações-problema da comunidade, supera-se, em
Uma nova abordagem do problema, direcionada ao “impacto social” grande medida a proposta de simples “conscientização”, caracterís-
desses usos e gerada pela análise das práticas de leitura e de escrita tica da maioria da propostas de alfabetização de adultos, sobretudo
em sua relação com a estrutura social, tem sido identificada sob o mediante as escolhas apontadas acima. Nesse sentido, uma parte
conceito de letramento (Kleiman, 1995). Nessa perspectiva, a inves- importante do trabalho tem sido, nas práticas do curso, a produção
tigação dos “conjuntos de práticas sociais associadas a sistemas de
de textos coletivos, sempre precedidas por uma discussão oral da
símbolos particulares e suas tecnologias” relaciona-se, normalmen-
temática selecionada, de modo que os alunos são sistematicamente
te, a duas unidades básicas de pesquisa: eventos de letramento, ativi-
dades particulares organizadas em torno da leitura e da escrita, e
práticas de letramento, padrões comuns de leitura e de escrita que as
pessoas aplicam em um evento de letramento (Barton, 1994)3 . 3
Hymes, 1962; Heath, 1984; Scribner e Cole, 1981; apud Barton, op.
Há ainda dois desdobramentos teóricos dessas concepções
cit.
que são úteis à pesquisa sobre a educação de jovens e adultos. O 4
Esses textos nos foram gentilmente cedidos pela pesquisadora Elenita
primeiro diz respeito ao conceito de práticas discursivas de letramento Rodrigues, nossa colega no processo de colaboração e pesquisa junto ao
(Magalhães, 1995): curso de alfabetização.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 311


ouvidos sobre a escolhas dos temas, durante sua discussão e na muito maior complexidade do que as questões ortográficas.
proposição de encaminhamentos, do mesmo modo que são consul- A questão-chave, portanto, não diz respeito a negação da pro-
tados sobre todas os passos que envolvem a produção do texto (de posta de estudo ortográfico, mas à investigação de como as orienta-
questões ortográficas a formas de representação das diferentes con- ções das práticas de letramento escolares tradicionais, hegemônicas
tribuições da cada aluno). no senso comum, orientam, organizam e determinam a participação
Pode-se dizer, então, que o curso, de um modo geral, e as prá- de professoras e, por conseqüência de alunos do projeto de alfabeti-
ticas de produção de textos coletivos, especificamente, pertencem ao zação, face às outras demandas da proposta do programa. Natural-
quadro da tecnologização do discurso, nos termos referidos na seção mente, aqueles aspectos que forem privilegiados serão constitutivos
anterior, e que as práticas de produção de textos coletivos represen- das práticas dos alunos e dos professores e definirão, na materialidade
tam o momento de maior aprofundamento entre a proposta de da linguagem, o alcance dos objetivos emancipatórios.
letramento e a proposta de ativismo social. Por isso mesmo, Nos termos teóricos apontados acima, pode-se dizer que o pro-
condensam-se nesses eventos e nessas práticas as maiores dificulda- grama prevê certos desdobramentos temáticos e pressupõe a apren-
des dos programa como podemos verificar nos relatos transcritos dizagem de gêneros discursivos específicos. Como a ordem de dis-
abaixo. curso do programa está em interação com as outras ordens de que
participam seus integrantes, tem de lidar com práticas discursivas
Texto 1 contraditórias (como as exemplificadas pelo texto) que constituem
A nossa dificuldade se da quando na produção do texto coleti- suas identidades e que se manifestam em momentos mais conflitantes
vo, aparecem palavras como por isso, em cima, as vezes, a fim como o de produção de textos coletivos. O aprofundamento deste
de, a parte, me dou conta, hora escrevo as palavras juntas, ou- estudo, portanto, revelará não apenas o funcionamento do caso espe-
tras vezes separadas, mesmo buscando ajuda, gostaria ser con- cífico estudado, mas também características mais gerais desse tipo
templada nessas horríveis duvidas. de processo.

Texto 2
Produção de texto Referências bibliográficas

Eu diria que este é um momento único, onde o alfabetizando é BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 8 ed. São Paulo:
convidado subtilmente a expressar a sua opinião, ou seja, a Hucitec, 1997.
maneira como ele ver as coisas acontecerem ao seu redor e a COSTA, A. Alfabetização de jovens e adultos e mudança social: uma
forma como as enfrentam, este é um momento delicado para o abordagem discursiva para o fenômeno do alfabetismo. In: MA-
alfabetizando, pelo receio de se expor e a insegurança de não GALHÃES, I. (Org.). Discurso, Gênero e Educação. Brasília,
acertar, e, para o alfabetizador, na condução do processo , por- EdUnB, no prelo.
que é iminente o perigo da indução no momento da elaboração COSTA, A. Alfabetização de jovens e adultos e mudança social: práti-
do texto, é quase impossível manter á imparcialidade. Pelo visto, cas discursivas de letramento em conflito. Dissertação (Mestrado)
terei que me trabalhar muito, para não incorrer na intromissão - Programa de Pós-Graduação em Lingüística, Universidade de
do trabalho criativo do outro. Brasília, Brasília, 1999.
FAIRCLOUGH, N. Discourse and social change. Cambridge: Polity
Como se pode perceber, os “problemas” relativos à produção Press, 1992.
de textos coletivos indicados pelas professoras têm orientações total- FAIRCLOUGH, N. e CHOULIARAKI, L. Discourse in late modernity.
mente opostas. No texto 1, a professora refere-se apenas a dificulda- Edinburgh University Press, 1999.
des ortográficas comuns e desconhece ou despreza outras questões FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola,
importantes que serão colocadas no texto 2. A autora do segundo 1996.
texto, parece ter mais clareza do verdadeiro papel desse tipo de ativi- KLEIMAN, Angela (Org.).Os significados do letramento: uma nova
dade dentro da proposta do programa e relaciona a estratégia de gera- perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas: Mercado
ção de contrapalavras aos riscos de manipulação e de enfraqueci- de Letras, 1995.
mento inerentes a esse tipo de tecnologia. MAGALHÃES, I. “Práticas discursivas de letramento: a construção
Por hipótese, a primeira professora opera com discursos di- da identidade em relatos de mulheres”. In A. Kleiman, (Org.). Os
ferentes da autora do segundo texto no gerenciamento de suas práti- significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática
cas; ou seja, recorre a conjuntos de conhecimentos verbais acerca da social da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 1995.
produção de textos coletivos que privilegiam aspectos diferentes das REIS, R. H. A constituição do sujeito político, epistemológico e amo-
concepções privilegiadas pelo programa. As questões relacionadas a roso na alfabetização de jovens e adultos. (tese de doutorado).
língua padrão evidentemente não podem ser desprezadas, mas não Universidade Estadual de Campinas, 2000.
são de modo algum o item mais importante desse tipo de tecnologia RODRIGUES, Elenita. Escrita, Identidade e Gênero discursivo: A
discursiva. As formas de representação das diferentes vozes dos alu- Análise de Discurso Crítica na formação de alfabetizadores(as)
nos, a operação com os enunciados produzidos na oralidade e suas de jovens e adultos do movimento popular. Universidade de
conseqüências sobre as identidades dos alunos certamente são de Brasília, dissertação de mestrado em andamento.

312 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Identidade, interdiscursividade e educação:
desafios e perspectivas para uma
nova prática de ensino1
Elenita G. Rodrigues
Universidade de Brasília

ABSTRACT: This paper discuss a conception of Education built upon learners’ linguistic experience, focusing the development of a Critical
Language Awareness - CLC (Fairclough, 1992b). Firstly, we analise data from the implementation of the principles of CLC. Secondly, we discuss the
role of local discourse orders in CLC and on the empowerment of social identities.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Identidade; Educação; Fortalecimento.

considerarem as convenções e práticas de linguagem em seu valor


1. Introdução superficial, como objetos a serem descritos, obscurecendo seu inves-
timento político e ideológico.
A escola tem sido, sistematicamente, qualificada como uma Desde Paulo Freire (1980), o desenvolvimento de uma
instituição ideológica reprodutora das relações de dominação e do conscientização crítica sobre o mundo, e sobre as possibilidades para
status quo. Se essas relações funcionam mais e mais por meio da mudá-lo, vem sendo apontado como o objetivo principal de toda a
linguagem, é compreensível que as práticas lingüísticas sejam, cada educação. Nessa perspectiva, deve ser entendida também a educação
vez mais, alvo da intervenção e do controle dentro e fora do ambiente lingüística, cujo foco deve recair não apenas sobre o desenvolvimen-
escolar. Esta é a razão pela qual é necessário enfatizar uma concep- to de um conhecimento descritivo e operacional das práticas lingüís-
ção de ensino de linguagem que integre a experiência pessoal dos(as) ticas dos(as) alunos(as), mas também sobre uma conscientização crí-
alunos(as) e o desenvolvimento de uma consciência lingüística críti- tica de como essas práticas são configuradas por, e configuram, as
ca, no sentido de procurar dotar os(as) estudantes com habilidades relações sociais e as relações de poder (Clark et al., s.d.). Contudo,
práticas que possam capacitá-los(as) a adotar (ou a resistir a) deter- uma consciência lingüística não é por si só emancipatória. É necessá-
minadas práticas lingüísticas. rio considerar o fato de que as identidades podem ser enfraquecidas
A Análise de Discurso Crítica é um modelo teórico e analítico ou fortalecidas socialmente.
desenvolvido exatamente para o estudo das relações entre lingua- O fortalecimento está ligado ao processo de reconhecimento
gem, poder e ideologia (Fairclough, 1995, 1992a). Para uma educa- das práticas opressivas às quais é preciso resistir, aprendendo a falar
ção emancipatória, que deve fortalecer as pessoas mediante uma com- com voz própria, como um indivíduo e/ou um membro de uma cole-
binação de habilidades pedagógicas e de análise crítica (Freire, 1980), tividade; cria, dessa maneira, a possibilidade de atuar no mundo de
tal modelo se apresenta como um recurso importante na luta contra a uma nova forma (Bhavnani, 1990). Na mesma direção, Janks e Ivanic
opressão lingüística, estimulando uma reflexão crítica que não fica (1992) discutem o fortalecimento das identidades sociais com rela-
restrita à esfera dos analistas e que pode contribuir para o debate em ção a construção de um discurso emancipatório:
um campo social mais amplo.
Neste artigo, considerando a problemática social do ensino da “Emancipatory discourse is to do with opposition and
linguagem, apresentarei algumas reflexões desenvolvidas sobre uma resistance: recognising the forces which are leading you to fit in with
concepção de educação lingüística que visa ao efetivo desenvolvi- the status quo and resisting them” (p.309).
mento de uma consciência crítica de linguagem. Em um primeiro
momento, analisarei dados resultantes do processo de implementação A CLC se propõe exatamente a trabalhar, gerando oposição e
de princípios da Consciência Lingüística Crítica2 (CLC) em um cur- resistência, na construção desse discurso emancipatório. Focaliza
so de alfabetização de adultos. Em um outro momento, discutirei o basicamente (Clark et al, s.d.):
papel das configurações interdiscursivas locais nesse processo e na
formação das identidades sociais. A. a conscientização social do discurso: (i) como casos particula-
Iniciemos nossa reflexão situando-nos teoricamente. res de discurso oral e escrito são moldados, e moldam, o seu contexto
social; (ii) como refletem relações de poder contribuindo ao mesmo tem-
2. Consciência Lingüística Crítica (CLC) po para sua reprodução ou transformação; (iii) como escolhas lingüísti-
cas que os sujeitos fazem são significativas nessa questão.
O termo Consciência Lingüística Crítica (CLC), conforme uti- B. a conscientização crítica da diversidade: (i) por que algumas
lizamos, refere-se à proposta de lingüistas da Universidade de variedades lingüísticas são valorizadas mais do que outras e percebidas
Lancaster (U.K.) de considerar a linguagem como constitutiva em como mais legítimas para certos propósitos; (ii) como a avaliação atual
relação à sociedade nos planos ideológico e das relações de poder. de variedades, inclusive a padrão, foi sendo delineada historicamente.
Fairclough (1992:7) afirma que a CLC “não é um ramo de estudo da
linguagem, mas uma orientação em direção à linguagem com impli-
cações em vários ramos”, que “esclarece como as convenções e prá-
ticas lingüísticas são investidas de relações de poder e processos ide- 1 Gostaria de agradecer a profa. Izabel Magalhães (UnB) pela orientação
ológicos dos quais as pessoas são freqüentemente inconscientes”. Tal sempre segura e fortalecedora.
abordagem teórica critica as correntes dominantes na lingüística por 2 A CLC é a contrapartida educacional da Análise de Discurso Crítica (ver
Fairclough, 1992b).

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C. a consciência de, e a prática para, a mudança: (i) como a ras tinham o mesmo objetivo: vender a imagem de determinado produ-
mudança na linguagem é resultado de lutas sociais e de mudanças to ao(a) leitor(a). O que é claramente perceptível contudo é que os
nas relações de poder; (ii) quais as possibilidades existentes para textos servem diferentemente aos propósitos da atividade, apresen-
mudanças nas circunstâncias atuais e quais as limitações; (iii) como tando gêneros discursivos distintos.
as práticas lingüísticas podem ser orientadas para promover a mu- No texto 1, a autora optou por construir uma narrativa e o obje-
dança discursiva. tivo do texto (vender a imagem de determinado produto) não foi alcan-
çado. Apenas o aspecto temático foi mantido, desvencilhado dos pro-
Visa, sobretudo, ao fortalecimento dos(as) estudantes de modo pósitos interacionais do discurso publicitário. Já a autora do texto 2
que possam usar as práticas lingüísticas que lhes foram negadas e demonstra uma noção bem clara das estruturas organizacionais e
contestar as que os (as) enfraquecem. composicionais que o gênero proposto pela atividade sugere. Compre-
endendo que o objetivo de uma ‘propaganda comercial’ é o de persu-
3. O processo de CLC no curso de alfabetização: reflexões e adir o(a) leitor(a) a comprar o produto anunciado, seu texto afeta dire-
perspectivas tamente o(a) leitor(a) pelo uso do imperativo, exigindo dele(a) uma
resposta. Além disso, a percepção que a aluna tem deste gênero a faz
Em 1997, iniciamos um trabalho com os princípios de CLC reconhecer não só que recursos de linguagem verbal deve usar para
em um programa comunitário de alfabetização localizado nos arre- convencer o(a) leitor(a), como também que recursos de linguagem não-
dores de Brasília – DF3 . Procuramos investigar na sala de aula inú- verbal devem ser utilizados. Assim, fazendo uso de seus recursos
meras atividades concernentes a esses princípios (Rodrigues e Ma- intertextuais, a autora do texto 1 opta por construir uma narrativa em
galhães, 1998). Como exemplos, grosso modo, destacam-se: que é a única personagem, ao contrário da autora do texto 2, que opta
por construir um texto argumentativo em que o(a) principal ‘persona-
A. Atividades de letramento visual crítico-funcional (Kress e gem’ é o(a) próprio(a) leitor(a). Note-se que a primeira é assujeitada,
Van Leeuwen, 1996; Baynham, 1995). Como último passo, dá-se no sentido de posicionar-se como leitora ideal das propagandas da Coca-
ênfase aos aspectos formais da escrita. Cola, haja vista a associação de sucesso feita pela alfabetizanda entre
B. Debates sobre as relações de poder nos níveis institucional, sua própria identidade e a venda de Coca-Cola na vizinhança. Já a
social e situacional: geração de contrapalavras (Bakhtin, 1997). segunda alfabetizanda, por poder ler opositivamente textos do gênero
C. Produção de textos orais: letramento como um modelo ide- discursivo ‘propaganda’, é capaz de não só identificar e recusar como
leitora os elementos verbais e não-verbais que são utilizados com pro-
ológico (Street, 1984) que propõe entre outros aspectos a sobreposição
pósito persuasivo, como também de recriá-los como produtora textual
e interação dos modos oral e escrito.
em sua própria propaganda.
D. Análise de anúncios publicitários orientada para: (i) a in-
Nesse sentido, o texto 1 pode ser compreendido, como uma
vestigação do papel da linguagem na produção, manutenção e/ou
situação comunicativa característica do mundo narrado (Weinrich
mudança das relações de poder; (ii) a prática de leitura opositiva4 .
apud Koch, 1996). Trata-se de “um evento relativamente distante
E. Publicação dos textos dos(as) alunos(as), visando fortalecer
que, ao passar pelo filtro do relato, perde muito de sua força”, per-
o uso da linguagem escrita na comunidade, valorizando sua experi-
mitindo que os interlocutores apresentem uma atitude mais relaxa-
ência lingüística e identidade sociocultural.
da. Já o texto 2 pode ser analisado sob um prisma característico do
F. Discussão de textos teóricos com a alfabetizadora e o estagi- mundo comentado (Idem). Trata-se de uma situação comunicativa
ário, buscando fundamentar a realização e avaliação das atividades que apresenta como característica a atitude tensa, pois afeta o (a)
desenvolvidas. leitor(a) diretamente, exigindo dele(a) uma resposta.
G. Produção textual com usos concretos nos domínios Os textos produzidos pelos(as) outros(as) alfabetizandos(as)
institucional e comunitário, considerando as práticas de leitura e es- também seguem produção característica do mundo comentado. Des-
crita a que os(as) alfabetizandos(as) estão expostos(as). se modo, podemos afirmar que, em sua maioria, os(as) alunos(as)
foram capazes de identificar e recusar como leitores(as) os recursos
Nesta seção, faremos algumas considerações sobre as ativida- de linguagem utilizados persuasivamente, bem como de optar ou não,
des do grupo G, procurando ressaltar a importância do foco sobre como produtores(as), pelo uso desses elementos em suas próprias
diferentes gêneros e tipos de discurso na construção da CLC. Os tex- ‘propagandas’.
tos apresentados a seguir foram produzidos a partir de uma atividade Isso demonstra que as atividades de leitura opositiva de textos
de produção textual, orientada em termos do gênero ‘propaganda publicitários, aprofundadas de modo que pudessem resultar em ativi-
comercial’, conduzida após uma seqüência de atividades dos tipos F, dades de produção textual do grupo G, são fortalecedoras, no sentido
A, D e B. de não só retomar tais ‘descobertas’, como também de retrabalhá-las
sob um outro foco, o foco do(a) produtor(a) textual, equipando os(as)
(1) Ana trabalha numa fábrica de vender Coca-cola e todos alunos(as) com habilidades práticas que os(as) possibilitaram optar
os dia Ana sai para vender Coca-cola nas casas vizinhas e Ana con- pela adoção (ou não) práticas lingüísticas específicas.
seguiu vender 5 caixas de Coca-cola esses dias falta vender mais um
Ana 4. A ordem discursiva da comunidade e a Consciência Lin
güística Crítica5
Todo evento discursivo é derivado da ordem de discurso. As-
sim, “em cada domínio social, instituição e mesmo em níveis sociais

3 Projeto de alfabetização de adultos do Centro de Cultura e Desenvolvi-


mento do Paranoá (CEDEP).
4 Consiste em recusar a posição de leitor(a) ideal, que interpreta do texto o
Os textos 1 e 2 resultam de uma atividade de produção textual esperado por seu produtor(a).
concreta no gênero ‘propaganda comercial’. Assim, ambas as auto- 5 Gostaria de agradecer os comentários do prof. Alexandre Costa (UFG) na
elaboração desta seção.

314 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


mais amplos, pode-se especificar a que tipos de texto, gêneros especialistas, não é o fim do emprego, como afirmam alguns profe-
discursivos e discursos é possível recorrer no exercício das práticas tas do apocalipse, mas a sua transformação. Daqui para frente, as
sociais” (Costa, 1999: 32). palavras-chave para o emprego são a educação, a reciclagem, a infor-
Considerando os eventos discursivos como exemplos da práti- mação e a qualificação tecnológica”
ca sociocultural e a ordem discursiva como a contrapartida lingüísti-
ca da ordem social, chamou-me a atenção o fato de, em eventos de Na interpretação do enunciado destacado, à luz do discurso
produção textual na sala de aula, com gênero e tipo discursivo deter- político neo-liberal, podemos identificar claramente um efeito de sen-
minado, os(as) estudantes recorrerem a outros gêneros e tipos de dis- tido irônico. O mesmo não aconteceu com os(as) alunos(as) e a
curso, principalmente relacionados ao discurso religioso, não ideais alfabetizadora na ocasião do evento em questão. Recorrendo ao dis-
para os propósitos da atividade. Se, segundo Fairclough (1992a; curso religioso para dar sentido ao texto, mesmo após amplo debate
1995), consideramos que as ordens de discurso têm primazia sobre sobre as possibilidades de interpretação, os(as) participantes realiza-
tipos discursivos particulares, o aparecimento desses eventos ram uma leitura literal, provocando imediato apagamento do efeito
discursivos na escola leva-nos a refletir sobre a possibilidade efetiva da ironia.
de o discurso religioso constituir essa ordem de discurso local. Ana- Se considerarmos que a coerência está localizada mais no pro-
lisemos alguns dados6. cesso de interpretação que no texto propriamente dito (Fairclough,
1995), perceberemos que a recorrência ao discurso religioso é legíti-
(3) “Meus prezados amigos, boa noite para todos. Vou dar umas ma e está de acordo com a ordem de discurso da comunidade. De
pequenas palavras, para todos ouvirem, sobre a bebida, sobre o álco- fato, a compreensão do aumento do desemprego como um sinal do
ol, que tem muitos que tomam e deixam ela dominar. Seria uma das fim dos tempos ou um evento apocalíptico é possível e, portanto,
coisas que eu sei que ela ficou para o homem tomar, mas não deixar pode ser vinculada aos profetas citados no texto. Não tendo conheci-
dominar. Eu fui uma pessoa que muito bebi, mas reconheci que não mento do discurso neo-liberal, a interpretação do texto com base em
tinha seguimento, não tinha firmeza. Aonde eu me amparei de situa- elementos do discurso religioso é o que faz com que ele faça sentido,
ção, morto quase no meio da rua, nas unhas dos elementos, dois con- é o que faz dele um texto com estrutura coerente.
tra mim, mas com muita fé e confiança que eu tenho em Deus, eu À primeira vista, a configuração interdiscursiva local ligada ao
venci a eles e estou dando este testemunho. Então, seria de exemplo discurso religioso pode ser considerada um obstáculo para a constru-
para vocês ouvirem e sair. Procure um evangelho, procure uma igre- ção da CLC e de um discurso verdadeiramente emancipatório. Con-
ja, se convertam, se entreguem a ele, que é o único caminho que nós tudo, é indicadora da necessidade de um trabalho educacional que
vamos seguir é um Deus vivo que tudo sabe e tudo vê, não precisa seja pautado na ordem discursiva já interiorizada pelos membros da
nós dizê e boa noite para todos.” comunidade, uma vez que “as estruturas interiorizadas são
determinantes para os usuários da linguagem, porque são a base so-
Embora essa atividade de produção textual tivesse gênero cla- bre a qual os indivíduos podem atuar em novas ordens de discurso e
ramente definido, propaganda médica institucional, o autor do tex- apropriar-se delas” (Costa, 1999).
to, fazendo uso de práticas discursivas de letramento locais, recor-
reu, nesse evento específico, a outros gêneros além do definido pre- 5. Considerações finais
viamente. Nessa atividade particular, ao participar de uma ativida-
de textual concreta que pede a produção de uma propaganda Neste artigo, procurou-se, considerando a problemática social
institucional sobre saúde, o aluno advertiu os(as) leitores(as) sobre geral do ensino da linguagem, refletir sobre uma concepção de edu-
o alcoolismo, fazendo uso de uma configuração de diferentes gêne- cação lingüística que vise ao desenvolvimento de uma Consciência
ros e tipos discursivos, entre os quais destacam-se o gênero testemu- Lingüística Crítica. Primeiramente, analisamos dados que apontaram
nho e o discurso religioso. Se consideramos que ordens do discurso a necessidade da construção de um processo de CLC que esteja fun-
têm primazia sobre os discursos particulares, o aparecimento do tes- damentado em atividades de crítica aos discursos hegemônicos, mas
temunho, nesse contexto, pode indicar o discurso religioso como também em atividades que trabalhem com a produção textual em
constituinte da ordem discursiva do projeto do CEDEP. Essa hipóte- diferentes gêneros discursivos a partir de uma perspectiva crítica e
se ganha força, uma vez que esse tipo de discurso aparece socialmente contextualizada. Em seguida, discutimos o papel das
marcadamente em vários outros momentos no curso, como aponta- configurações interdiscursivas locais no processo de formação da CLC
remos adiante; um exemplo claro é a inclusão da seção Religião no e das identidades sociais. Apontamos então que, na tentativa de cons-
próprio jornal comunitário do projeto de alfabetização. truir verdadeiramente esse processo, devemos atentar para a necessi-
Costa considera que há de fato verdadeiras ordens de discur- dade de estudar tais configurações e de fundamentar nosso trabalho
so interiorizadas que, dada a sua natureza interna, só podem ser na ordem de discurso local.
percebidas pelo seu aparecimento na linguagem. Assim, “o papel Gostaríamos de concluir este artigo lembrando que a
dessas ordens na determinação dos processos de produção e inter- “Hegemonia depende do consenso das massas. Ela começa a ser que-
pretação textuais, em nível individual, será tão importante quanto o brada quando as pessoas se recusam à conformidade”. Somente quan-
das ordens de discurso externas que ainda não tenham sido do a consciência lingüística propiciar o fortalecimento das pessoas
interiorizadas” (Costa, op. cit.). de modo que elas possam contestar com sucesso as práticas que as
Isso se confirma ao analisarmos um outro evento discursivo, enfraquecem, que poderemos chamá-la de emancipatória (Janks et
uma atividade de interpretação textual, no qual foi realizado um des- Ivanic, 1992). Trata-se de um imperativo de ordem ética e cultural,
locamento de sentido com base no discurso religioso. Transcreve- imprescindível para o exercício de uma cidadania mais efetiva e mais
mos o texto base a seguir: democrática.

(4) “A maior preocupação dos brasileiros hoje em dia é o de-


semprego. Em cidades como Brasília ou São Paulo, as taxas que in-
dicam o percentual de pessoas que não conseguem arrumar trabalho 6 O texto a seguir é resultante de uma atividade que teve por objetivo a
chega a quase 20% da população. O que está acontecendo, dizem os produção de propagandas médicas institucionais, orais, gravadas em áudio,
para posterior publicação no jornal da comunidade.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 315


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316 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Contribuições de uma teoria lingüística
para o ensino de Língua Portuguesa
Maria Luiza M. S. Coroa
Universidade de Brasília - UnB

ABSTRACT: The aim of this paper is to analyze how different theoretical linguistic approaches constitute productive instruments for the teaching
practice and how the “cursos de letras” can deal with this different approaches. When we emphasize the text as the unit for the teaching-learning
process we do not break off with traditional practices but reorient these practices. Thus, the interactional – or discursive – language approach can
be a productive contribution to the learning of future teachers
PALAVRAS-CHAVE: Língua. Discurso. Texto. Ensino.

Desde que a Lingüistica passou a fazer parte, como discipli- (3) À concepção de língua como interação ou atuação social
na, dos currículos de Letras, uma preocupação, por vezes exagera- corresponde uma ênfase na unidade “texto”.
da, com a sistematicidade tem freqüentemente afastado a prática
escolar do foco que ora se coloca com ênfase no texto. As razões Reconhecemos, em nossa prática pedagógica, ora o privilé-
para isso são várias, desde a dificuldade para tratar o texto com o gio de uma dessas tendências ora de outra, mas a adoção de uma
aparato formal utilizado para outras áreas de estudo da língua até o delas nas nossas escolas não se faz de maneira inocente ou neutra:
comodismo criado pela proliferação de literatura previamente pre- as conseqüências nas atividades didático-pedagógicas são visíveis
parada – descontextualizada e “homogeneizada” – de exercícios e inevitáveis.
estruturais e “interpretações de texto”. Mas talvez a principal des- A partir do crescente prestígio das abordagens discursivas em
sas razões tenha a ver com o objeto que os estudos lingüísticos têm todo mundo, a terceira dessas concepções tem trazido para as práti-
colocado no horizonte de sua análise, de seu trabalho: a língua. cas escolares valores lingüísticos que não constituíam preocupação
Diferentes maneiras de conceber a língua conduzem a diferentes em outras práticas que valorizavam prioritariamente a estrutura. No
escolhas nas estratégias de ensino-aprendizagem. E neste âmbito se atual estádio dos estudos lingüísticos, pode-se acreditar hoje que a
instala a responsabilidade da ciência lingüística, nos cursos de le- ênfase no texto não prescinde de sistematicidade – ou de rigor cien-
tras, ao formar novos professores. tífico. Isso porque compreender e utilizar adequadamente os siste-
Para Ilari (1992:14), “hoje em dia estamos livres dos compro- mas simbólicos que constituem o vernáculo é, além de reconhecer o
missos filosóficos que deram origem à gramática tradicional; nosso valor social da linguagem e o papel que ela representa no estabeleci-
compromisso é preparar o futuro professor para compreender a ativi-
mento das distinções sociais e na legitimação dos saberes escolares,
dade da fala de seus alunos.” No entanto, tem sido difícil para profis-
reconhecer que a tomada de consciência sobre o funcionamento de
sionais formados em “compromissos filosóficos” diferentes dar uma
um objetivo é a maneira mais imediata e natural de se apreender e
feição sistemática e coerente ao objetivo proposto de “compreender
conhecer tal objeto.
a atividade de fala”, seja dos próprios nossos alunos, seja dos alunos
E é pelo caminho dos estudos discursivos da linguagem que a
de nossos alunos. Por isso, ressalta Ilari (1992: 16) o grande potenci-
al formativo da Lingüística para introduzir na formação do professor sistematicidade desses conhecimentos nos é colocada à disposição.
“um elemento de participação ativa na análise da língua, que o habi- Sabe-se hoje – mais do que há algumas décadas – que os “jogos de
litará a agir de maneira crítica às opiniões correntes, e lhe permitirá, linguagem” (cf. Wittgenstein, 1953) são constitutivos da interação
em sua vida profissional, avaliar com independência os recursos di- lingüística. E que os sujeitos se constituem pelo uso do código
dáticos disponíveis e as observações e dificuldades de seus alunos”. lingüístico em específicas formações discursivas. Mas, embora a ên-
Com esse perfil, entende-se um professor pronto a assumir o fase na mensagem também traga para o “jogo lingüístico” a presença
papel de condutor do processo ensino-aprendizagem que se constrói dos interlocutores, é numa abordagem discursiva que eles ganham
na tomada de consciência acerca do funcionamento e das proprieda- sistematicidade. Segundo Orlandi (1999:20-21), “a noção de discur-
des da língua; um condutor que, ao mesmo tempo que reconhece sua so, em sua definição, distancia-se do modo como o esquema elemen-
responsabilidade em dar continuidade a uma tarefa culturalmente tar da comunicação dispõe de seus elementos” porque “não se trata
legada, também é capaz de articular esses fatores históricos com a de transmissão de informação apenas, pois, no funcionamento da lin-
realidade diversificada. Para atender às necessidades de um profes- guagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela língua
sor assim preparado, que contribuições tem uma teoria lingüística a e pela história, temos um complexo processo de constituição desses
dar? Ou seria “teorias lingüísticas”? sujeitos e produção de sentidos.” Não há essa aparente linearidade
Recuperando grosseiramente a história dos estudos lingüísticos na disposição dos elementos da comunicação, como se mensagem
nos cursos de letras, encontramos o objeto língua como o ponto cen- resultasse de um processo serializado. Daí a produtividade do apara-
tral e em comum desses estudos. No entanto, o que tem sido conside- to fornecido por abordagens discursivas para compreender – e traba-
rado, ou definido, como língua tem variado mais do que de imediato lhar – a língua como um objeto simbólico que produz sentidos.
estamos prontos a reconhecer. Já em trabalho anterior destacamos Por isso o que se entende por texto passa a se tornar o
(Coroa, 2000) três grandes tendências que agrupam as teorias mais ponto crucial de um processo de ensino-aprendizagem que se
conhecidas sobre o objeto de estudo língua. insira explicitamente na terceira abordagem acima mencionada.
Com o apoio em autores que sistematizaram o tema (como, por
(1) À concepção de língua como estrutura corresponde uma ên- exemplo, Orlandi, 1988 e 1999, e Brandão, 1995), pode-se con-
fase no código (na unidade morfológica, signo, palavra ou sentença). ceber, então, o texto como:
(2) À concepção de língua como comunicação corresponde
uma ênfase na mensagem, por sua vez constituída estruturalmente (a) o ponto de encontro – e dispersão – das diversas realidades
como sentença. (lingüísticas e sociais) que conduzem a essa construção;

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 317


(b) o entrecruzamento histórico de coersão interna e exterioridade fessores” que, por sua vez, serão responsáveis pela formação de ou-
textual – o que produz uma característica de incompletude; tros sujeitos da linguagem. A educação só pode incorporar as “rota-
(c) o produto não um indivíduo, mas de um sujeito que se ções de eixos” do processo de ensino-aprendizagem propostas – ofi-
coloca em um lugar de origem do texto como ocorrência, mas na cial e institucionalmente – se os sujeitos nela integrados recolocarem
interseção de vários intertextos como produtos de discursos histo- suas prioridades e suas posturas frente ao seu objeto de trabalho:
ricamente construídos. ensino de língua portuguesa.
Ressalte-se que, assim, a relação de autoridade entre as forças
Por essas características, um texto extrapola a linearidade da envolvidas fica totalmente subvertida ao se mudar a liturgia escolar:
estrutura lingüística: constitui-se em uma unidade lingüística de na- o diálogo entre sujeitos estabelece uma (re)construção do conheci-
tureza diferente daquela da palavra ou da sentença. Isso porque um mento, que do domínio do professor passa ao domínio da “coletivi-
texto se caracteriza, predominantemente, por uma “flutuação” advinda dade” da classe e, por isso, se reestrutura em novo conhecimento até
de escolhas abertas, ainda que historicamente motivadas, e pela in- para aquele responsável por trazê-lo para o espaço escolar. E o ver-
serção de marcas caracterizadoras de um sujeito que atua com e so- náculo – além de nosso objeto de trabalho – desempenha também aí
bre a língua Do ponto de vista didático-pedagógico, propomos, en- importante papel, porque, como bem diz Gnerre (1988), mais do que
tão, que uma abordagem que privilegie a unidade texto não está ape- servir como veículo de informações, o uso da língua constrói identi-
nas girando a direção do alvo, ou acrescentando mais um item aos dades e define papéis sociais. A postura do professor passa, então, a
seus “conteúdos” . Está fazendo muito mais que isso: está reorgani- ser elemento integrante da construção desses papéis. Não apenas os
zando todos os níveis do processo ensino-aprendizagem, a começar sujeitos-alunos redimensionam seu saber, também o sujeito-mestre o
pela atribuição de papéis sociais e discursivos na sala da aula. É isso, faz. Assim, a cada fala colocada, a cada questão tratada, abre-se uma
por exemplo, o que propõem os Parâmetros Curriculares Nacionais possibilidade quase infinita de outras falas, outras questões que vêm
(PCNs) quando consideram o aluno como “sujeito da ação de apren- a atualizar os sujeitos das primeiras falas, das primeiras questões.
der, aquele que age sobre o objeto de conhecimento”. Também, quando Sobressai aí a unidade texto como o instrumento lingüístico ideal
os mesmos PCNs afirmam que o conhecimento é uma construção para essa construção
do aprendiz, não estão relegando o aprendizado ao espontaneísmo,
mas re-conceituando o que se entende tanto por “conhecimento” como Para, eficientemente, incorporar as concepções de língua e
por “aprendizado”. ensino-aprendizagem pressupostos em uma abordagem que privile-
Assim, a opção da escola pela terceira daquelas abordagens gia o texto, compete ao professor estender, de forma completa e coe-
acima – a que elege o texto como unidade de ensino-aprendizagem – rente, essa visão a todas atividades de sala de aula. Como o discurso
não significa, repetimos, meramente ampliar a preocupação do pro- é, conforme Poessenti (1988:49), “a colocação em funcionamento
fessor de Língua Portuguesa, estendendo-a da palavra para o texto, de recursos expressivos de uma língua, como uma certa finalidade” e
mas instaurar, em sala de aula, novas relações discursivas e docentes. a atividade do sujeito se dá “em relação aos e sobre os próprios me-
Relações que não se circunscrevem às escolas onde nossos alunos de canismos sintático e semântico”, consideramos aqui que o trabalho
letras atuarão como professores; mas que têm sua origem no próprio pedagógico deve extrapolar do mero ensino de um código mas dele
espaço universitário, onde eles se formam professores. não prescindir. Isso significa trabalhar com estruturas lingüísticas,
mas a elas incorporar as regras que governam a produção apropriada
Para o pedagogo Georges Gusdorf (1995), o princípio da dos atos de linguagem. Significa, para o professor, assumir perspec-
função docente é o diálogo. Mas, a se propor a saída da função tivas teóricas – tanto de língua quanto de ensino – menos formais ou
docente pelo diálogo, pela superação do monólogo, envolvemos estruturalistas, mas não desconhecer que é sobre o formal e estrutu-
sujeitos na interação, envolvemos o sujeito-aluno e o sujeito-mes- ral que operam os mecanismos discursivos. Como conseqüência di-
tre, pois não é à memória ou a inteligência que se dirige o proces- dático-pedagógica, o ensino da gramática, da leitura ou da produção
so escolar, é ao sujeito. Isso porque, segundo Gusdorf (1995), a textual são articulados e recolocados em focos discursivos. Ou seja,
inteligência não se lembra sozinha, porque sozinha a inteligência os tradicionais “conteúdos” – ou objetos do conhecimento – traba-
não existe; é preciso reconhecer que ela se liga à memória, à emo- lhados no ensino da língua não têm referência estática e categorizada
ção, à experiência. A escola não existe para desenvolver ou ativar à priori: são dinâmicos e construídos na interação entre os agentes do
apenas um desses rótulos, uma dessas categorias. É objetivo ex- processo de ensino-aprendizagem, o aluno e o professor. Não se tem,
plícito da escola “construir conhecimentos” e construir um sujei- assim, a gramática como anterior ou exterior ao texto, mas como uma
to crítico. Só numa interação social e discursiva podemos falar de suas condições de funcionamento e significação. O estudo das
em construção de sujeitos. E mais, em sujeitos-críticos. Nem é estruturas lexicais e dos recursos morfossintáticos, por sua vez, obje-
necessário buscar muita fundamentação de caráter pedagógico, tiva ampliar as possibilidades de operar sobre a língua, de ter domí-
lingüistico ou discursivo para mostrar a insensatez da primazia do nio consciente – e crítico – sobre as formas adequadas de discursos e
monólogo no processo de ensino-aprendizagem. Caracteriza-se de interação verbal. Com isso, estamos dizendo, então que, mesmo
este processo dialógico mais pela inserção de sujeitos em um “novo não sendo vista como elemento externo de comunicação, ou como
mundo” do conhecimento do que pelos “ensinamentos transmiti- uma estrutura que se esgota em si mesma, há aspectos codificados,
dos”, passivamente, de indivíduo para indivíduo. objetivos e formais da língua que requerem análise e domínio para
Com esta superação de indivíduos para sujeitos, reconhece- que ela, de fato, venha a ser uma atividade constitutiva de sujeitos.
mos aqui, mais uma vez, conceitos caros às abordagens discursivas. Voltamos, assim ao que inicialmente foi proposto como o com-
Como encontramos aqui também a força do diálogo, da interação na promisso da lingüística nos cursos de letras: preparar o futuro pro-
construção de um saber simbólico. fessor para compreender a atividade de fala dos alunos. E, didatica-
É este “saber” que à escola cabe incorporar em todos os níveis. mente, ampliamos esse compromisso: a preparação do futuro profes-
A nós, professores de cursos de letras e “formadores” de professores sor deve buscar nas diferentes abordagens lingüísticas o fundamento
cabe a responsabilidade de não deixar apenas no nível de pesquisas mais adequado e produtivo para a diversidade do ensino de língua,
acadêmicas tudo que a reflexão lingüística tem nos propiciado: cabe- sem perder de vista que o objetivo de seu trabalho pedagógico será
nos o compromisso de estimular a formação de novos “sujeitos-pro- propiciar o conhecimento, domínio e ampliação das potencialidades

318 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


lingüísticas inerentes a todos os falantes. Ao enfatizar o valor das GUSDORF, G. (1995). Professores para quê? São Paulo: Martins
abordagens mencionadas como (3), no início deste trabalho, recupe- Fontes.
ramos, também, o papel das abordagens classificadas como (1) e (2). ILARI, R. (1992). A Lingüística e o Ensino da Língua Portuguesa.
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Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 319


Análise de discurso e o ensino de leitura infantil
Juliana de Freitas Dias
Universidade de Brasília –UNB

ABSTRACT:In this paper, I want to analyze the discursive and ideological practices in children’s fiction worked in schools. I focus aspects about the
actual situation of the teaching of reading and I contemplate the contributions of the Analysis of Discourse to the more critical and conscious
readers’ formation.
PALAVRAS-CHAVE: leitura, ensino, ideologia, discurso.

Introdução interativo entre eu e o outro, eu e o mundo, processo esse altamente


marcado pelas relações ideológicas de poder (mesmo em nível in-
Nas escolas, e mais especificamente nas aulas de ‘leitura’, é consciente). “A ideologia dominante (como maneira de conceber o
bastante comum verificarmos uma incoerência entre os conhecimen- mundo) não opera apenas enquanto maneira de as pessoas represen-
tos teóricos do(a) professor(a) e a aplicação prática desses em sala de tarem o mundo, mas constitui elemento intrínseco às estruturas da
aula. A leitura é um processo complexo de interação enquanto ativi- personalidade das crianças, ao mesmo tempo que atua como ele-
dade entre sujeito, leitor(a) e autor(a). O(a) professor(a) é o(a) mento estruturador dessa personalidade”. (Deiró. 1978:13 – os
mediador(a) desse processo atuando por meio de um filtro grifos são meus)
interpretativo ao conduzir a exploração de histórias na escola. E, quan- Apesar das críticas acerca da qualidade do ensino, da falta
do se refere a histórias infantis, uma ingenuidade geral – fruto do de uma remuneração compatível com o exercício do magistério e
senso comum1 – paira sobre o texto, sobre o ‘co-texto’ e sobre o de todos os problemas presentes no sistema educacional, a socie-
contexto. Uma leitura é, então, conduzida não como palco de troca e dade precisa dos professores na orientação educacional de suas
construção de sentidos, mas, sobretudo, como quadro referencial se- crianças e jovens (Silva, 1991). Não se pode negar a importância
lecionado que recebe um leitor passivo, primeiramente representado do profissional de educação e, principalmente, não se pode es-
pela figura do professor, e, posteriormente, (e infelizmente) pelo pró- quecer da necessidade (urgente!) de uma formação sólida e con-
prio aluno. sistente para professores.
A leitura é uma prática social que remete a outros textos2 e a É neste ponto que me coloco na posição de pesquisadora e
outras leituras. O momento da leitura é quando “colocamos em ação reafirmo a relevância de haver, efetivamente, uma interação entre as
todo o nosso sistema de valores, crenças, atitudes que refletem o gru- universidades, com suas reflexões críticas, suas pesquisas e seus
po social em que se deu nossa sociabilização primária, isto é, o grupo materiais – humanos e físicos – e a escola, seja de periferia ou não,
social em que fomos criados” (Kleiman, 2000:10). É exatamente no seja urbana ou rural, de ensino fundamental ou médio, pública ou
campo dessa socialização primária que opera a literatura infantil, particular. Essa é uma questão que mobiliza relações cristalizadas e
objeto de investigação desta pesquisa. naturalizadas entre os pesquisadores (e seu pedestal) e o professor
A seleção deste tema de pesquisa originou-se de observações com seu curso de magistério, sem reciclagem, sem universidade.
assistemáticas de algumas práticas escolares com textos de histórias Todavia, se a análise de discurso inquieta sujeitos, meu traba-
infantis, vivenciadas no cotidiano de uma escola classe da Fundação lho, em menor proporção, espero que seja um iniciar dessa inquieta-
Educacional do Distrito Federal (1ª a 4ª série). De um modo geral, ção, seja ela no campo do pensamento ou no da palavra e, quiçá, no
os(as) professores(as) desenvolviam suas aulas de leitura com base campo das ações. A leitura é um instrumento de luta e de
nas fichas literárias enviadas pela própria editora ou por meio de conscientização, que pode ser usado ou não. Não basta a leitura da
modelos de análise textual centrados em listas seqüenciais de ativi- palavra, é preciso que se leia a realidade circundante, ler as imagens
dades: vocabulário, leitura silenciosa e oral, foco narrativo, ocorrên- da mídia, o discurso dos políticos, as conversas e opiniões, enfim, a
cias gramaticais, etc. Além disso, a seleção das histórias trabalhadas leitura do mundo precede a leitura da palavra (Paulo Freire, 1998).
em sala de aula não possuía critérios específicos em decorrência da
própria escassez de livros na biblioteca escolar. Pressupostos teóricos
Diante dessa realidade, constatei as dificuldades dos (as) pro-
fessores (as) cujo trabalho de leitura vem sendo basicamente desen- As bases teóricas em que este trabalho se fundamenta são: as
volvido sobre o livro didático. Assim, os livros de histórias estão contribuições da análise de discurso crítica (Fairclough, 1989,1992,
sendo cada vez mais colocados em segundo plano, ao passo que os 1995) e a teoria sobre a ideologia de Thompson (1995).
livros didáticos, enviados pelo Ministério da Educação, estão adqui- A proposta de Fairclough (1992b:64) para o discurso envolve
rindo um valor central no dia-a-dia escolar. uma visão dialética segundo a qual os discursos não só são moldados
Segundo Deiró (1978:12), em sua dissertação de Mestrado pelas estruturas sociais, mas eles também moldam essa estrutura. “O
acerca das ideologias dos livros didáticos, a transmissão da ideologia discurso é uma prática, não apenas de representação do mundo, mas
dominante por meio dos textos de leitura nas quatro primeiras séries de significação do mundo, constituindo e construindo o mundo em
escolares é “grave e importante levando-se em consideração a postu- significado.”
ra acrítica dos receptores dessas mensagens ideológicas que se en- Assim, o discurso contribui para a constituição das conven-
contram na faixa de 7-10 anos (...) período de intenso desenvolvi-
mento psicológico”.
Esta foi uma das motivações que me levou a selecionar como
campo de análise os livros – especialmente os literários – e o trabalho 1 Senso comum significa uma série de valores e de relações sociais que são
tomados como naturais e permanentes pela maioria das pessoas.
escolar voltado para as primeiras séries do ensino fundamental, fase
2 Considero texto aqui no sentido bakhtiniano (Bakhtin, 1986) como pro-
na qual as estruturas cognitivas e afetivas ainda estão em desenvolvi- duto da criação ideológica e da enunciação, envolvendo todos os proces-
mento. A necessidade de dedicar-se a esse período é, pois, relevante sos de interação, escritos ou falados, nos contextos histórico, social e cul-
tendo em vista que a estruturação da personalidade se dá no processo tural.

320 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


ções que o restringem, sendo socialmente constitutivo em três aspec- dos debates sobre temas públicos contemporâneos ou históricos que
tos fundamentais: o discurso constrói as diversas posições de sujeito, questionam o modo de ser em uma linguagem original e criativa
o discurso constitui também as diferentes relações sociais podendo (Yunes & Pondé, 1988).
mesmo modificar as existentes por meio de novas formas de interação, Assim, atualmente, as obras literárias têm retratado a
e, por fim, o discurso colabora para a construção dos sistemas de heterogeneidade social, lingüística e cultural com mais freqüência, o
conhecimentos e crenças do mundo. que pode ser caracterizado como uma nova tendência literária. Esse
É por meio dessa perspectiva dialética de discurso que se fun- movimento ganhou forças a partir dos anos 70 no Brasil com “o ob-
damenta a subjetividade multifuncional em que o ‘eu’ assume varia- jetivo de aprofundar as questões da identidade cultural e lutar contra
das posições e se desdobra em diversos papéis sociais. Não só as a hegemonia de determinados padrões endossados pelo sistema
identidades sociais como também as relações interpessoais são mo- estabelecido”.(Yunes & Pondé,1988:77-8)
dificadas e inovadas. É importante ressaltar, todavia, que essas novas formas de
Nesta perspectiva, o discurso “é uma prática ideológica que manifestação literária não estão imunes às ideologias dominantes.
constitui, naturaliza, sustenta e transforma significados do mundo a Há muitas obras que sutilmente ainda reforçam e estabelecem valo-
partir de diversas posições nas relações de poder (Fairclough, res da cultura de poder de maneira velada e indireta, de modo que os
1992b:67). professores, muitas vezes, não percebem a operação da ideologia.
A análise da ideologia proposta por Thompson (1995) inte- Recorrentemente, os próprios autores não têm consciência de que
ressa-se pelos modos como as formas simbólicas se relacionam com estão repetindo idéias que são construções sociais, mas que foram
o poder, ou nas palavras do autor, pela “maneira como sentido ser- tomadas pelo senso comum como naturais e inquestionáveis, são as
ve para estabelecer e sustentar relações de dominação” (Thompson, idéias e valores naturalizados.
1995: 76). Os sujeitos, ao assumir os diferentes papéis nas várias
ordens de discurso, estão assumindo determinadas posições que são Análise de trechos do livro “É duro ser criança”
qualificadas no campo social por diversos graus de poder. Assim, de
acordo com os contextos socialmente estruturados, os indivíduos No texto “É duro ser criança” uma leitura coerente implica
mantêm relações de diferentes status e a dominação ocorre quando conhecimento prévios acerca dos seguintes intertextos: aventuras
essas relações são estabelecidas sistematicamente de forma espaciais (itens lexicais: invasão, alienígenas, extraterrestres,
assimétrica. espaçonave, asteróides, arma a laser...); contos de fada (itens lexicais:
Há, pois, inúmeros modos pelos quais o sentido pode estabele- trono, rainha, princesa, execução, sonífero...); expedição em matas e
cer e sustentar relações de dominação. Thompson classificou cinco Floresta Amazônica (itens lexicais: nativos, armadilhas traiçoeiras,
modos (legitimação, dissimulação, unificação, reificação e fragmen- floresta tropical, exploradores, território); navegação (itens lexicais:
tação) e em cada um deles especificou as estratégias típicas de cons- veleiro, recifes, rombo, casco, naufrágio, bote, salva-vidas).
trução simbólica. Neste livro, Paulinho é o protagonista e o narrador focalizador
que apresenta sua mãe de forma a contribuir para uma construção
Literatura infantil materna estereotipada da dona de casa, que tem como ocupação cui-
dar da casa e, segundo seu ponto de vista, interromper as brincadei-
Ao se adjetivar a literatura como infantil, preconiza-se uma ras do filho, mandando ele brincar em outro lugar, tomar banho, etc.
concepção de criança que é determinante para o direcionamento da As ilustrações endossam esse processo de forma peculiar. Os trechos
narrativa, seja no que diz respeito ao perfil dos heróis, à perspectiva selecionados mostram como há marcas lingüísticas que contribuem
do narrador, ao desfecho da história, entre outros aspectos. para essa focalização:
Na Idade Média, não existia uma particularização da infância.
As crianças não tinham trajes específicos, nem diversões diferencia- (1) “Deitei no chão cimentado, onde minha mãe quarava as
das, eram tratadas como pequenos adultos. Aprendiam pela experi- roupas...”
ência, uma vez que não tinham acesso ao saber sistematizado da es- (2) “No quintal, tinha um cantinho onde a minha mãe planta
cola, ambiente restrito aos clérigos, jovens ou velhos. va salsa ...”
Em meados do século XVII, surge um novo interesse pela cri- (os grifos são meus)
ança fundado em preocupações psicológicas e moralizantes. Para os
adultos, a criança passa a ser símbolo da inocência e da pureza, ape- Esse processo ocorre também com relação ao pai estereotipa-
sar de ser ainda ignorante. As crianças eram afastadas da sociedade do, como o responsável pelo sustento da família e chefe do lar, de
adulta considerada perigosa e pecaminosa. Esse período de quem os filhos têm medo e são escudos para mães que fazem chanta-
enclausuramento se deu nas escolas, local que objetivava transfor- gens para serem obedecidas:
mar seres frágeis em adultos íntegros, de acordo com os padrões da (3) “- Quando teu pai descobrir... - Subiu um frio na barriga.
moralidade estipulados pela igreja. Meu pai ia ficar uma fera!”
É interessante observar também como esse primeiro papel da A pressuposição pode ser considerada no âmbito intertextual,
instituição escolar e essa concepção de criança estão ainda presentes como informações tomadas pelo produtor do texto como estabelecidas
no ensino moralizante e em algumas histórias infantis da atualidade. ou dadas, sendo então marcadas no enunciado, ou pode, em um âm-
Os resquícios históricos permeiam a prática escolar tradicional e são bito mais geral, ser parte de uma interpretação fundamentada nas
considerados pelos sujeitos como tradição imutável e inquestionável, condições de enunciação. Na história, gostaria de destacar dois exem-
como uma eternalização de idéias criadas em um dado momento his- plos de pressuposição:
tórico e social particularizado.
A história da literatura infantil no Brasil passou por uma reno- (4) “Mães não entendem nada mesmo de ...”
vação iniciada por Lobato que em 1921, com a publicação “A meni- (5) “...pensando que era mesmo muito duro ser criança.”
na do narizinho arrebitado”, inaugurou uma fase da produção literá- Estes exemplos estão inscritos na tipologia ducrotiana (1978
ria destinada ao público infantil. Sua obra foi um avanço quando in Bastos,1998) como pressuposto de língua do tipo adverbial. O
comparada aos autores que o precederam, ela é permeada do ânimo advérbio “mesmo” funciona como um operador argumentativo que

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 321


constitui indício de uma confirmação por parte do ‘eu’ de uma asserção percepção do personagem focalizador (“o grande explorador”).
que não pertence ao ‘eu’ mas ao ‘outro’. Ou seja, há um cruzamento
polifônico de vozes que se combinam para conferir maior força (6) “Precisei matar...” (...) “e eu liderando...”
ilocucionária ao enunciado, o que contribui para uma identificação (7)“... atravessei um rio infestado de piranhas...”
por parte do leitor, principalmente por parte do leitor criança que já Tanto a natureza como os nativos estão em relação de submis-
vem se identificando a partir de outros níveis da narrativa: ilustra- são e exploração por parte do explorador, pois este último lidera e
ções, empatia, linguagem lúdica, metáforas, etc. supera os “perigos” da natureza. Assim, a relação de poder é endos-
Na análise da narrativa constato também certas estratégias sada e a natureza é retratada como uma ameaça e não como um bem
típicas de construção simbólica que estão a serviço da ideologia, ou necessário à própria sobrevivência da espécie humana.
seja, da manutenção de relações de poder. A primeira relação, no
âmbito familiar, apresenta uma assimetria cujo modo de operação Considerações Finais
ideológica é a dissimulação. Os pais possuem uma autoridade
inquestionável (em nenhum momento, o filho responde à mãe) cuja Tais reflexões são abertas a novas interpretações, como em toda
estratégia de representação discursiva pode ser considerada como
análise crítica que prioriza o diálogo e a interação, ao invés de análi-
parte integrante do mecanismo denominado “tropo” por Thompson
ses fechadas em si mesmas como produtos finais e acabados. O fato
(1995). O tropo é uma estratégia que engloba a sinédoque, a
que me chama particularmente a atenção é que essas relações são
metonímia e a metáfora – todas elas são formas que dissimulam
transmitidas para as crianças, colaborando para a formação de suas
relações de dominação.
identidades e subjetividades que estão em plena constituição e ainda
É por meio da metáfora que visualizo a operação da dissimula-
ção, fortalecendo uma relação distanciada e autoritária dos pais para muito abertas a investimentos alheios, sejam eles ideológicos ou não.
com o filho. O pai é apresentado metaforicamente como uma “fera”, Portanto, insisto na importância do desenvolvimento de leitu-
a bronca da mãe é nomeada por “tempestade” e o seu grito é um ras mais críticas dos professores e dos pais sobre todo o universo
“trovão”. Tais construções metafóricas sugerem uma educação re- literário que chega a criança. Uma vez consciente de processos ideo-
pressiva, calcada em ameaças, ordens e limitações. Essa estratégia lógicos subjacentes que operam tão sutilmente, é possível selecionar
funciona como sustentação de um relacionamento assimétrico de for- melhor a que tipo de texto o leitor-criança terá acesso. Não se trata,
ma dissimulada, pois representa a maneira pela qual a criança repre- todavia, de privar as crianças de leituras ideológicas, mas de saber
senta o mundo do qual é parte e suas relações inerentes. A figura conduzir um trabalho mais crítico em torno de histórias tradicionais
paterna é refletida pelo garoto mediante uma imagem temida e que, que infelizmente estão em circulação no país.
provavelmente, já agiu de forma rude perante outras travessuras an-
teriores do filho.
A ideologia também opera no que concerne aos gêneros sociais Referências bibliográficas:
masculino e feminino. O pai é indiretamente apresentado como o chefe
da família, o homem estereotipado que sustenta a casa e é respeitado BASTOS, Lúcia K. 1998. Coesão e coerência em narrativas escola-
tanto pela esposa, ao chantagear o filho dizendo que o pai não vai gostar res. São Paulo, Martins Fontes.
de saber o que aconteceu, como pelo protagonista ao demonstrar medo DEIRÓ, Maria de L. C. 1978. As belas mentiras. 12ª ed. São Paulo,
utilizando a metáfora já comentada. Este relacionamento é apresentado Moraes.
como natural, permanente, cujo caráter sócio-histórico responsável pela FAIRCLOUGH, N. 1995. Critical discourse analysis. London and
aceitação tácita dos papéis se perde no tempo e nas configurações espa- New York, Longman.
ciais. Dessa maneira, a naturalização é a estratégia que enquadra a rela- ____________. 1992. Discourse and Social Change. Cambridge,
ção social no seio familiar como parte do senso comum, como natural- Polity press.
mente padronizada: o pai é o “homem” da casa, temido pelo filho e ____________. 1989. Language and Power. London, Longman.
respeitado pela mulher, ao passo que a mãe é um estereótipo da senhora
FREIRE, P. 1997. A pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro, São
zelosa que cuida dos serviços de casa e dá ordens constantemente ao
Paulo, Paz e Terra.
filho. As própria gravuras, como comentei, reforçam essa imagem este-
Kleiman, A. 2000. Oficina de leitura: teoria e prática. 7ª ed. São
reotipada de mulher/mãe/dona de casa (avental, vestido, chinelinho de
Paulo/ Campinas, Pontes.
casa, utensílios domésticos – bacia, roupas para estender).
SILVA, Ezequiel T. da 1991. De olhos abertos: reflexões sobre o
Uma última relação de poder da história encontra-se na esfera da
natureza. Trata-se da relação da criança, enquanto exploradora de terras desenvolvimento da leitura no Brasil. São Paulo, Ática.
desconhecidas com a natureza de um modo geral. Os animais e a mata THOMPSON, John B. 1995. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis,
são elementos apresentados como ameaçadores, perigosos, contra os quais Vozes.
o menino “precisa” de lutar para se defender. Os nativos, por outro lado, YUNES & PONDÉ, G. 1988. Leitura e leituras da literatura infan-
parecem não ter problemas em lidar com esses “obstáculos”, segundo a til. São Paulo, FTD.

322 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


O sujeito professor(a) e sua prática social de ensino
Adriana Sidralle Rolim - Silva
Universidade de Brasília - UnB

ABSTRACT: This paper is report to an ethnographic research carried on in public school of Brasília-DF, according to the theorical view of the
Critical Discourse Analysis. Here the teaching-learning process is concieved as a social pratice both constituing reality and constituted by it..

PALAVRAS-CHAVE: ensino – língua portuguesa - prática social.

Refletir sobre o sujeito professor(a) e sua prática social de constituição dos(as) alunos(as) como sujeitos capazes de participa-
ensino envolve várias questões. Para pensar estas questões funda- rem ativamente da vida em sociedade. Acerca da Professora 5, esta
mentadas na realidade concreta da escola, partimos de uma pesquisa concluiu sua formação acadêmica em 1996 em uma universidade do
etnográfica que realizamos com professores(as) de Língua Portuguesa interior do Paraná. Sua formação parece não ter sido tradicionalmen-
(de agora em diante LP), nos últimos ciclos do ensino fundamental, te gramatical, mas, durante a pesquisa, só verificamos eventos de
em uma escola regular da periferia, da rede oficial de ensino de letramento em que a gramática foi a base.
Brasília-DF. Abordemos também o contexto conjuntural e discursivo da
O ponto de vista teórico partiu da consideração de que o ensi- pesquisa. No primeiro momento, os encontros com os(as)
no é uma prática que envolve crenças, valores, sentimentos, atitudes professores(as) se deram apenas com o objetivo de apresentar a idéia
e relações sociais, já que é letramento (Barton e Hamilton, 1998). da pesquisa. Depois, os contatos se realizaram por meio de discus-
Assim, cremos que, de alguma forma, o(a) professor(a), tendo ideo- sões de textos, eventos em que pudemos discutir diversos pontos a
logicamente uma prática intencional nesse sentido ou não, pode pro- respeito da prática docente e da fundamentação teórica da pesquisa.
porcionar condições de os(as) alunos(as) lutarem socialmente para Concomitantemente, também assistimos a algumas aulas. Em termos
serem sujeitos sociais. Pois, além de outras questões que determi- de recursos metodológicos, a pesquisa se realizou por meio de entre-
nam o ensino - sendo o letramento uma prática social -, vista, de discussões, questionário, assistência à aulas registradas em
imbrincadamente, relaciona aluno(a) e professor(a) na prática de notas de campo.
sala de aula, em que ambos se constituem dialeticamente nessa prá- Acerca da análise dos eventos da pesquisa, registramos que as
tica discursiva de letramento. discussões com os(as) professores(as) revelaram uma das primeiras
E partindo disso, procuramos, durante a pesquisa, desenvol- dificuldades visíveis: o embate de ideologias, seja esta ideologia ad-
ver reflexões conjuntamente com os(as) professores(as), com o in- quirida pela formação acadêmica ou profissional dos(as)
tuito de provocar uma consciência lingüística crítica dessa situação, professores(as), ou pela história de vida de cada um(a), ou dos dois
e articularmos, também em conjunto, formas viáveis de sistematiza- fatores em conjunto. Resumindo, podemos dizer que uma grande
ção de suas(nossas) práticas de letramento, objetivando contribuir questão ou é o fato de os(as) professores(as) terem tido uma forma-
para constituição de sujeitos sociais, de cidadãos(ãs) críticos(as). Isto ção, basicamente, gramatical, dissociada de outros eventos de
porque a tomada de consciência dos usos da linguagem e a capacida- letramento de sala de aula, ou uma formação apenas, incipientemente,
de de “usar” essa linguagem, tendo consciência crítica dela, pode discursiva ou interacional, no sentido de propor um trabalho pouco
instrumentalizar e capacitar intelectual e lingüisticamente os sujei- consistente com textos.
tos, para atuarem socialmente como cidadãos(ãs), capazes de agirem Outra questão que se revelou bem explícita é que a história de
criticamente ( Fairclough, 1992b). vida de cada um(a), como também, as condições de trabalho influen-
Agora, como neste trabalho nos propomos, basicamente, a re- ciam, consideravelmente, na prática de cada professor(a). Talvez mais
latar a pesquisa, apresentemos um breve perfil dos(as) professores(as) do que a formação acadêmica, cultural e social de cada um(a).
colaboradores(as). Eles(as) eram em número de cinco, e compunham Partindo disso, e considerando que os sujeitos da pesquisa
o corpo docente na área de linguagem, do ensino fundamental, do constituem a prática pesquisada - pois que cada um(a) é um sujeito
Centro Educacional 03, de Brazlândia, cidade satélite do Distrito particular, que constitui dentro do contexto escolar, a própria prática
Federal. Em termos de formação e de prática, eram caracteristica- nessa prática discursiva social -, conheçamos como os sujeitos da
mente bem diferentes. Tratando de formação, eles(as) podem ser as- pesquisa constituem suas práticas, a partir de como se apresentam
sim delineados: Professor 1 ainda não concluiu sua formação acadê- nela, e do que sobre ela dizem. Como afirmam Chouliaraki e
mica, que está sendo feita em uma universidade federal, mas já se Fairclough (1999), a prática tem seu aspecto reflexivo. Ou seja, o(a)
percebe que ele busca trabalhar próximo a uma abordagem professor(a) também constrói sua prática, a partir do que diz e do que
interacional ou discursiva. A Professora 2 concluiu sua graduação pensa sobre ela, e, assim, constitui uma prática particular, dentro da
na década de 1980, em uma universidade federal no interior de Mi- prática social de letramento como um todo.
nas Gerais, e desde essa época, leciona. Ela teve uma formação Para os fins deste trabalho, selecionamos a análise sobre a prá-
marcadamente gramatical e, apesar de ter participado de vários cur- tica de dois(uas) dos(as) professores(as), para evitar um alongamen-
sos de atualização, sua prática continua seguindo o alinhamento da to não desejado do texto. Tem-se, então, sobre a prática da Professo-
formação acadêmica. O Professor 3 concluiu sua formação em 1995, ra 2, que sua formação foi marcadamente gramatical, e, possivel-
no Distrito Federal, e já leciona há oito anos. Ele teve uma formação mente, por conseqüência disso, mesmo fazendo cursos sobre dife-
que se propôs interacional; e, além disso, ele realiza um trabalho rentes abordagens de ensino de LP, ela mesma considera muito difí-
muito dinâmico e de agrado dos(as) alunos(as). A Professora 4 con- cil pôr em prática o que vê nos cursos. O que nos leva a hipótese de
cluiu sua formação acadêmica em 1995, em uma universidade parti- que os cursos falham por darem pouca – ou nenhuma – orientação
cular no Distrito Federal. Sua formação foi conforme uma aborda- metodológica de aplicação da teoria discutida. Apesar de que com
gem predominantemente gramatical. Ela já participou de vários cur- isso, não queremos dizer que tenha de existir um modelo pronto. Até
sos de atualização e revela preocupação com a questão da transfor- porque, se assim pensássemos, a criatividade e o contexto histórico-
mação social. Reconhece o importante papel do(a) professor(a) na social do(a) professor(a) seriam desconsiderados. No entanto, a ques-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 323


tão parece ser a de que os cursos, em geral, têm muita discussão direcionada para a gramática, não consegue trabalhar os “conteúdos”
teórica. E quando se fala na prática, há exemplos, ou pouco consis- gramaticais, como meio para a aprendizagem da escrita, da variedade
tentes, ou sem sistematicidade, conforme a situação concreta de sala padrão da língua. Foi possível verificar que, mesmo neste último caso,
de aula. Percebemos também, que esta professora se sente limitada os diversos eventos de letramento que ocorrem em sala não se dão de
para mudar sua postura/prática pedagógica, só a partir de discussões forma inter-relacionada. Esta dissociação ocorre, principalmente, nos
teóricas. Ela, em uma das discussões que tivemos a partir de um texto eventos em que se trabalha com a gramática com exclusão do texto.
de Geraldi (1996), disse que precisava mudar sua prática, mas, de- Por outro lado, no entanto, alguns(mas) dos(as) professores(as)
pois, recolocou-se e disse que o ensino de gramática é muito bom, do contexto da pesquisa, em alguns momentos de suas práticas, tra-
pois permite que os(as) alunos(as) desenvolvam o pensamento, o fa- balham discursivamente, e até revelam uma certa consciência lin-
lar e o escrever corretamente, além de permitir que pensem suas vi- güística crítica, mesmo que isso não tenha sistematicidade na prática
das, para tomarem uma posição mais consciente do que querem dela. pedagógica. O que revela que os(as) professores(as), no geral, não
Dado que analisamos como indício de um certo conflito pedagógico são desinformados(as), nem resistentes à mudança. Pois, mesmo com
em que ela vive, já que ora reconhece que precisa mudar sua prática, as dificuldades já apresentadas, encontramos trabalhos de
ora se reserva, afirmando que o ensino de gramática (em que sua professores(as) que tentam desenvolver habilidades lingüísticas que
prática se fundamenta basicamente) é muito bom, por permitir que vão além da simples aprendizagem de regras ou conceituações gra-
os(as) alunos(as) pensem suas vidas. Compreendemos também, que maticais. Apesar disso ocorrer com um número menor de
o fato de ela dizer que o ensino de gramática é muito bom e nele professores(as), e de não haver interligação com o conhecimento gra-
basear sua prática, fundamentalmente, pode ser mera conseqüência matical.
de uma formação mais tradicional; o que não significa exatamente Acerca de uma relação entre os(as) pesquisados(as), percebe-
que sua prática seja uma opção político-ideológica clara e consciente mos uma tênue relação de diálogo sobre a prática pedagógica entre
das implicações sociais de uma abordagem de ensino predominante- eles(as). Observamos que apesar de existir, oficialmente, a coorde-
mente gramatical. Ainda mais, podemos entender que esta professo- nação de área na escola, que deveria ter um papel articulador entre
ra tem um respaldo teórico-metodológico que não lhe permite reali- os(as) professores(as), não há interação efetiva entre eles(as) nesse
zar um trabalho de ensino de língua em abordagem interacional, em sentido. As práticas são isoladas entre si mesmas, e entre eles(as).
que o texto seja a unidade de ensino. Além disso, há ainda a questão dos livros didáticos: por
A partir da prática desta professora, podemos inferir que em- meio deles é naturalizada a idéia, pela listagem de conteúdos dis-
bora tendo acesso aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), posta no sumário destes livros, de que, os conteúdos gramaticais
um(a) professor(a) que teve uma formação essencialmente gramati- devem ser, impreterivelmente, conteúdos de ensino, como se a
cal, conhecendo parâmetros como esses, em que o texto seja a unida- simples assimilação desses conteúdos fosse a meta do processo
de de ensino, nem por isso consegue uma alteração direta e efetiva na ensino-aprendizagem.
prática. Até porque, uma mudança na prática de ensino exige desde Outra questão, que também é naturalizada entre os(as)
mudança de posição ideológica do(a) professor(a), até mudança de professores(as), é que a prova tem de existir como único recurso
rotineiros hábitos em sala de aula. Apesar de que, por outro lado, o avaliativo, para que o(a) professor(a) possa quantificar a aprendiza-
fato de conhecer diretrizes dessa natureza, desestabiliza e causa sen- gem. E assim, a prova não funciona nem como recurso para o(a)
timento de inadequação com o momento atual. próprio(a) se avaliar e avaliar o processo ensino-aprendizagem. O
Surpreendentemente, no entanto, esta professora contou que que implica que, pensando assim, podemos inferir que eles(as) com-
no seu estágio para conclusão do curso de Letras, trabalhou tendo o preendem que devem ser dadas aulas de gramática e, que, depois,
texto como fonte dos principais eventos em sala de aula. O que con- devem ser feitas provas de identificação e aplicação de normas gra-
duz à dedução de que não basta que o final do curso de formação maticais, com uso da terminologia gramatical, como se os(as)
acadêmica, considere metodologicamente o texto como unidade de alunos(as) demonstrando, artificialmente, que “sabem” regras ou ter-
ensino, se até o final, ou quase isso, a formação é basicamente gra- mos gramaticais nas provas, garantissem que estão em processo de
matical. domínio da língua padrão.
Sobre a prática do Professor 3, podemos dizer que ele realiza Ainda mais, é perceptível que o peso do discurso da instituição
um trabalho interacional, procurando resgatar a realidade dos(as) escolar nos(as) professores(as) tem uma relevância considerável nas
alunos(as). Usa uma linguagem próxima a dos(as) alunos(as), na in- suas práticas. E, aliás, não só da instituição, mas também, do discurso
tenção de se aproximar deles(as). Como nas aulas de gramática utili- oficial da educação e ainda da expectativa social em relação ao ensino
za alguns termos da sintaxe gerativa para análise de frases, ele consi- de LP. O que, a grosso modo, pode ser assim explicado: discurso da
dera que instaura um ensino mais moderno. O referido professor tra- instituição escolar, constituído da idéia de que o(a) professor(a) deve
balha com texto, leitura e gramática, mas a interligação dos eventos cumprir seus horários de aula e de coordenação, ter diários correta-
de letramento que proporciona com essas categorias de linguagem mente preenchidos no final do bimestre, e manter os(as) alunos(as)
escrita, ainda não fica clara. Ele demonstra entender que o trabalho em sala, sob controle. Já o Discurso oficial da educação, via PCNs e
que realiza implica um trabalho em abordagem interacional. novo Currículo, registra a importância de se considerar a realidade
Saindo do particular, e considerando o contexto dos(as) do(a) aluno(a), suas necessidades de aprendizagem e seu conhecimen-
pesquisados(as), verificamos que os(as) professores(as) aceitam a to lingüístico para um ensino de LP direcionado para formação de
proposta dos PCNs, mas não têm, no geral, clareza suficiente de como cidadãos(ãs) críticos(as). Sobre a expectativa social em relação ao
pôr em prática as diretrizes teóricas presentes neles. Verificamos que ensino de LP, diz respeito à espera, da sociedade, de que na escola
depende muito da formação acadêmica do(a) professor(a) ter tido os(as) alunos(as) aprendam a variedade padrão da língua – o que
direcionamento teórico semelhante a dos PCNs, ou seja, de ter sido significa, no senso comum, falar e escrever “corretamente”.
baseada em um aparato teórico-metodológico que tenha o texto como Em meio a isso, sendo o discurso um elemento da prática social
unidade de ensino, para que se possa pensar em aplicação de propos- de letramento, então, na rede de práticas em que estão inseridos(as)
tas como essas, que pressupõem uma abordagem discursiva ou os(as) professores(as), podemos dizer que a prática de uma escola, -
interacional de linguagem. Apesar de que, como podemos observar a qual é constituída pelas práticas de cada professor(a) - é um comple-
durante a pesquisa, mesmo quem teve uma formação menos xo de práticas entremeadas pelo discurso oficial da educação, pelo

324 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


discurso institucional e pela expectativa da sociedade em relação à um acompanhamento teórico-metodológico nesse sentido. Ou seja,
escola. uma prática mais direcionada para a interação, para o dialogismo, a
Acerca das conseqüências do novo discurso oficial da educa- partir de um trabalho sistemático com leitura, discussão, escrita e
ção, que chega aos(às) professores(as) textualmente pelos PCNs e reelaboração de textos. Pois a postura que o sujeito-professor(a) tem
pelo novo Currículo, podemos dizer que este, de certo modo, provo- na sua prática, determina relevantemente a sua prática social de ensi-
ca dificuldades de mudança em termos pedagógicos, ao contrário do no. De outra parte, e antes disso, na verdade, é preciso, para que isso
que ocorre em termos tecno-burocráticos, em que as mudanças são chegue a ser realidade, que se tenha formação acadêmica ou forma-
assimiladas com maior rapidez. A complicação ocorre, pedagogica- ção continuada mais consistentes, no sentido de associar teoria e prá-
mente, porque o novo discurso oficial “requer” do(a) professor(a) tica, para que o(a) professor(a) tenha condições de, a partir do conhe-
uma outra prática pedagógica, e portanto, uma outra postura diante cimento adquirido via cursos, “optar” ou não, por uma prática peda-
do ensino. O que, naturalmente, traz dificuldades. O próprio órgão gógica que privilegie a realidade da comunidade escolar, a constitui-
institucional superior reconhece que, para efetivar mudanças, é pre-
ção dos sujeitos-alunos(as), considerando as necessidades desta co-
ciso dar condições para os(as) professores(as) terem uma formação
munidade e da sociedade.
continuada, ou em serviço. E este órgão oferece, via organizações
estatais, cursos para dar a conhecer os PCNs, o novo Currículo. Mas
Referências bibliográficas:
os cursos, em geral, são fragmentados e desvinculados da prática
docente. E em meio às informações e à novidade do discurso oficial
registrado nos referidos documentos, o(a) professor(a) permanece BARTON, D. e Hamilton, M. Local literacies. London and New York:
desestabilizado(a). Por conseqüência, a prática se mantém sem alte- Routledge, 1998.
ração sistemática. Ao mesmo tempo, no entanto, é possível questio- CHOULIARAKI, L. e Fairclough, N. Discourse in late modernity.
nar se os objetivos do órgão superior de Educação, são, realmente, Edinburg: Edinburg University Press, 1999.
que a prática pedagógica mude, ou se a ele interessa só tecnologizar FAIRCLOUGH, N. (ed.) Critical language awareness . London:
o seu discurso, para mantê-lo conforme a tendência internacional de Longman. 1992b.
reelaboração do discurso oficial de educação. GERALDI, J. W. 1996. Linguagem e ensino: exercícios de militância
Por fim, com esta pesquisa, foi possível constatarmos que uma e divulgação. Campinas-SP: Mercado de Letras, 1996.
mudança de postura do(a) professor(a) para a realização de uma prá- Parâmetros Curriculares Nacionais: língua portuguesa (5ª a 8ª série).
tica pedagógica discursiva e crítica só é possível, se na escola houver Secretaria de Educação Fundamental. Brasília-DF. 1998.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 325


Usos discursivos do “onde” em textos acadêmicos1
Janice Helena Chaves Marinho
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

RESUMÉ: J’adopte l’approche modulaire du discours développée à Genève pour traiter des emplois du “onde” dans les textes académiques. Je
présente des structures hierarchiques et relationnelles proposées à partir de l’interprétation que je fais de ses empois et j’analyse son fonctionnement
comme un connecteur qui relie des constituants discursifs et contextuels.
PALAVRAS-CHAVE: discurso; conectores pragmáticos; abordagem modular; pragmática

Os conectores pragmáticos têm despertado o interesse dos sentidos como tal, ou podem servir à intenção do autor de produzir
estudiosos do discurso, desde os anos setenta, devido ao importan- um texto de feição menos formal. Mas, via de regra, quanto mais
te papel a eles atribuído na estruturação do discurso. Eles podem atento está o autor ao gênero do texto que produz, mais ele se em-
ser conjunções, advérbios ou locuções adverbiais, pronomes relati- penha em empregar estratégias que considera próprias a esse gêne-
vos, enfim, cuja função é a de, como assinala Rossari (inéd.:4), ro de texto.
“significar uma relação (donde o termo conector), relação que se Assim, as ocorrências de “onde” nos textos acadêmicos escri-
estabelece entre entidades lingüísticas ou contextuais (donde o ter- tos pelos universitários me levam a perguntar sobre um outro uso
mo pragmático)”. desse item. Levanto, então, a hipótese de que ele atua na organização
Nas diferentes abordagens da análise do discurso, essas mar- do discurso como elemento que encadeia enunciados entre os quais
cas lingüísticas2 que pertencem a categorias gramaticais variadas re- se interpreta a existência de relações argumentativas.
cebem tratamentos diferentes. A Pragmática, que reativou o interesse Colocada a hipótese de que, além de seu funcionamento tradi-
pelo estudo da argumentação, trata com especial atenção dos cional, esse item atua na organização discursiva como um conector
conectores, considerados “um dos mecanismos essenciais da persua- discursivo4 , passo a examinar diversas ocorrências do “onde” en-
são da linguagem” (Maingueneau,1996:63). A Pragmática integrada contradas em textos produzidos por alunos de graduação na UFMG.
de Ducrot concebe os conectores como morfemas que possuem uma Para investigar essas ocorrências, utilizo, como referencial te-
significação instrucional, uma vez que oferecem instruções órico-metodológico, o Modelo de Análise Modular do discurso que
argumentativas para a interpretação dos enunciados. Para a Pragmá- vem sendo desenvolvido por Roulet e sua equipe em Genebra. A
tica conversacional desenvolvida pela equipe liderada por E. Roulet, escolha desse modelo se deve ao fato de que, inspirando-se nos di-
os conectores pragmáticos são definidos como marcadores das rela- versos trabalhos de várias correntes de pesquisa no domínio da prag-
ções existentes entre os diversos tipos de constituintes da estrutura mática (Roulet et al., 1985: 1-7) e influenciado principalmente pela
hierárquica; são eles que oferecem instruções sobre as relações hie- concepção bakhtiniana de discurso como interação verbal, o autor
rárquicas entre constituintes discursivos e/ou relações pragmáticas propõe-se a integrar e a ultrapassar essas diferentes abordagens de-
entre constituintes discursivos e informações estocadas na memória senvolvendo uma concepção de discurso como a combinação de in-
discursiva3 (Roulet, 1995). Para a Pragmática cognitiva, uma cor- formações das dimensões lingüística, textual e situacional e propon-
rente mais recente nos estudos da linguagem, os conectores são vis- do, em versões posteriores do modelo, um instrumento de análise da
tos como guias para a interpretação, e portanto como facilitadores da organização do discurso, que recebe o nome de abordagem modular
compreensão dos enunciados nos quais aparecem. (Roulet, 1991).
Os conectores, então, nas diferentes abordagens, são vistos
como elementos que desempenham funções no discurso, já que são A análise dos usos discursivos do “onde”
marcas que indicam conexões cujo lugar de realização é o discurso
(Reboul e Moeschler, 1998). Seu emprego pode ser de fundamental Segundo Roulet et al.(1985), os conectores articulam as uni-
importância para a interpretação, uma vez que guiam o interlocutor dades discursivas que são o ato (unidade mínima do discurso), a in-
em seu percurso interpretativo, dando-lhe instruções sobre a maneira tervenção (maior unidade monológica) e a troca (menor unidade
de interpretar a relação entre os constituintes discursivos. dialógica). Sendo assim, têm uma função de estruturação do discurso
Um conector cujo emprego pode ser considerado problemáti- e por isso recebem um tratamento que os associa a um papel funda-
co, na medida em que é visto como responsável por problemas de mentalmente organizacional. É principalmente na forma de organi-
estruturação de frases quando usado de forma diferente do previsto zação relacional do discurso que se focalizam os conectores.
pela tradição gramatical, é o item “onde”. Por ser considerado pelas Segundo Roulet (1996, 1999, 1999b), a forma de organização
gramáticas do português padrão como advérbio relativo que “indica relacional é a que trata das relações que existem entre os constituin-
lugar em que se situa a ação verbal”, recomenda-se que seja empre- tes do texto, definidos na estrutura hierárquica, e as informações pre-
gado apenas com referência a lugar, estando seu antecedente expres-
so ou latente. No entanto, trabalhando com textos acadêmicos escri-
1 Este trabalho se insere em minha pesquisa de Doutorado em que objeti-
tos, produzidos por alunos universitários, chama a minha atenção um
vo apresentar uma interpretação lingüístico-discursiva para o item “onde”.
novo uso desse item que parece indicar uma ampliação no seu campo 2 Chamam-se de marcas lingüísticas as “pontes” que asseguram uma ligação
de atuação. entre as formas lingüísticas apresentadas no enunciado e seus dados extra-
O aluno-autor de um texto acadêmico geralmente procura dis- lingüísticos. (Luscher, 1989)
ciplinar o seu texto, tendo em vista o seu destinatário, o professor ou 3 A memória discursiva é entendida como “conjunto de saberes consciente-
a própria academia. Dessa forma, empenha-se em planejá-lo, a fim mente partilhados pelos interlocutores” (Berrendonner, 1983: 230).
de dar-lhe uma feição mais formal (ou menos coloquial). Isso não 4 Como assinala Reboul e Moeschler (1998), a terminologia não é fixa. Fala-
quer dizer, entretanto, que não se possa nele encontrar traços do tex- se em conectores pragmáticos, conectores discursivos (Blakemore),
conectores interativos (Roulet et el.), palavras do discurso (Ducrot et. al.),
to oral, já que esses traços podem não ser, muitas vezes não o são,
marcas de conexão (Luscher), etc.

326 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


sentes na memória discursiva. Essas relações podem ser ilocucionárias (2) A história se desenrola em Nova York,(3)onde um rapaz co-
(que correspondem aos atos performativos apontados por Searle), as nhece uma moça (4)e a convida para sair,(5) iniciando assim a pior noite
que se dão no nível dos constituintes de uma troca, e interativas, as de sua vida,(6)onde conhece uma punk sadomasoquista, (7)uma garço-
que se dão no nível dos constituintes das intervenções. Estas últimas, nete deprimida, (8)e a garota com quem sai se suicida por sua causa.
que podem ser argumentativas, contra-argumentativas, reformulativas,
de comentário ou de topicalização, costumam ser marcadas pelos
conectores, que indicam de maneira convencional a relação, mas
podem também não estar marcadas por formas específicas.
Para investigar a atuação do “onde” como conector
discursivo, conforme a hipótese levantada, utilizo algumas ocor-
rências extraídas dos textos analisados para as quais proponho
estruturas hierárquico-relacionais, que são projeções de minhas
hipóteses quanto às relações interativas que existem entre os cons-
tituintes discursivos bem como quanto ao estatuto de principal ou
subordinado5 de cada um deles. Em sua primeira ocorrência nesse trecho, “onde” é um conector
Nas estruturas hierárquico-relacionais que aqui proponho, in- que liga constituintes entre os quais existe uma relação interativa de
dico, através das formas abreviadas arg, para argumento, c-arg, con- comentário. Ele é um advérbio relativo que faz referência ao antece-
tra-argumento, ref, reformulação, com, comentário e top, dente co-textual “Nova York”. Nesse caso ele é usado como em seu
topicalização, as relações interativas entre os constituintes das inter- funcionamento tradicional.
venções. Nos esquemas, são destacados os conectores cuja função é Já em sua segunda ocorrência, percebe-se que aparece em um
sinalizar essas relações6 . novo funcionamento, visto que atua como conector que, ao mesmo
tempo em que retoma uma informação estocada na memória discursiva
– “noite em Nova York”- liga constituintes entre os quais se percebe
(37)Não é preciso “ensinar” gramática.(38)Deve-se dar ao aluno a existência de uma relação de argumento do tipo “P porque Q”8 : “...
de 1o e 2o grau a oportunidade de crescer linguisticamente, através da iniciando a pior noite de sua vida, porque (nessa noite em NY) co-
prática constante em aulas que sejam um prazer e uma descoberta a nhece uma punk sadomasoquista, uma garçonete deprimida, e a ga-
cada instante, (39)onde tenham oportunidade de manifestação indi- rota com quem sai se suicida por sua causa.” É interessante observar
vidual espontânea, (40)sem ser reprimido nem humilhado por cons- que “onde” poderia ter sido excluído dessa seqüência sem prejudicar
tantes correções de seus erros.7 sua gramaticalidade e sem anular a relação entre os enunciados. Ou
poderia também ter sido substituído por um conector argumentativo
como “porque”, marcando nesse caso a relação de argumento. Mas
nenhuma dessas foi a opção do autor.

(1) As abordagens estruturalista e gerativista tomam a língua


de diferentes pontos. (2)A estruturalista aborda a língua en-
quanto estrutura que se apresenta de forma definida, (3)em que
os morfemas são as “peças” desta estrutura, (4)ou seja, a lín-
gua é estruturalmente definida. (5) Já a abordagem gerativista,
Nessa ocorrência, “onde” funciona como conector, uma vez que
apresenta-se mais aberta em relação a estruturalista, (6) onde
liga dois constituintes discursivos. Interpreta-se, inicialmente, que ele há a apreciação do falante e a língua como competência deste.
tem a função de fazer referência a um antecedente “aulas que sejam um (7)A língua deixa de ser uma estrutura (8)e se transforma em
prazer e uma descoberta a cada instante”, que se encontra no ato ante- um mecanismo em movimento.
rior. Dessa forma, tem-se uma relação interativa de comentário entre
dois constituintes, marcada pelo relativo “onde”: (39) apresenta um
comentário que visa apoiar o ato (38) no qual o autor afirma com vee-
mência o que se deve fazer ao invés de ensinar gramática.
Mas pode-se também interpretar que ele está ainda ligando cons-
tituintes entre os quais se percebe a existência de uma relação
argumentativa, e neste caso seu alcance não se reduz ao ato preceden-
te, mas à intervenção principal, como mostro com a estrutura abaixo:

5 É considerado principal, neste modelo de análise, o constituinte respon-


sável pela definição da função ilocucionária da intervenção, e subordina-
do, o constituinte que pode ser suprimido do texto sem comprometer a
“Deve-se dar ao aluno de 1o e 2o grau a oportunidade de crescer
sua estrutura global.
linguisticamente, através da prática constante em aulas que sejam um 6 Os conectores que aparecem entre parêntese são os que, segundo minha
prazer e uma descoberta a cada instante, de modo que (nessas aulas) interpretação, poderiam ser introduzidos entre os constituintes, possibili-
tenham oportunidade de manifestação individual espontânea”. Inter- tando mais fácil identificação da relação entre eles.
preto que “onde” nessa ocorrência é um elo entre constituintes 7 As ocorrências são aqui apresentadas já numeradas em atos, segundo cri-
discursivos que possibilita a existência de uma relação argumentativa térios de segmentação apresentados em minha tese (em andamento).
entre eles, ao mesmo tempo em que faz referência a um antecedente 8 P e Q são variáveis proposicionais que não coincidem necessariamente
co-textual. com os segmentos lingüísticos de superfície.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 327


Nessa seqüência, o autor contrapõe as abordagens estruturalis-
ta e gerativista, apresentando as características de uma em contraste
com as da outra, sinalizando essa relação contra-argumentativa com o
uso do marcador “já”, que encabeça a intervenção principal formada
pelos atos (5)-(6). Outra relação que se percebe aí presente é a de
argumento. “Onde” introduz um argumento à afirmativa presente no
segmento precedente, em que se comparam as duas abordagens, vi-
sando justificar essa comparação e, dessa forma, a seqüência poderia
ser assim parafraseada : “Digo que a abordagem gerativista apresenta-
se mais aberta em relação à estruturalista, porque (nessa abordagem)
há a apreciação do falante e a língua como competência deste”. “Onde”
nessa ocorrência incide não sobre um antecedente co-textual, mas
sobre a enunciação de (5).

(31)Então, necessário se faz uma verdadeira revolução na


metodologia de ensino da língua pátria, (32)onde os educadores (33)ao
assumirem as rédeas de um movimento renovador do ensino, (34)ba- Nessa ocorrência interpreto, como mostrado através dessa es-
seando-o em intensiva atividade de leitura e prática escrita, (35)esta- trutura hierárquico-relacional, que “onde” atua como um conector
riam direcionando a nação aos caminhos literários pertencentes à uma que introduz uma intervenção principal a qual mantém com o ato que
verdadeira democracia, (36)pois somente um povo conhecedor de a precede uma relação argumentativa do tipo consecutiva: “o gover-
seus direitos é capaz de exercer os princípios legítimos da cidadania. no quer é uma população analfabeta, sem idéias, sem conhecimento
dos direitos, de modo que/de forma que um governante faz o que
quer e o povo não atua, nem tem palavra altiva”.
A análise dessas cinco seqüências extraídas de textos acadê-
micos escritos permite afirmar que o item “onde” caracteriza-se por
pelo menos dois usos diferentes. Em seu uso tradicional, ele atua
como advérbio relativo (na terminologia tradicional) que, ao mesmo
tempo em que faz referência a um antecedente co-textual, liga enun-
ciados entre os quais existe uma relação interativa de comentário,
para o modelo de análise modular. Ele atua ainda como um conector
que faz referência não a um antecedente anteriormente expresso, mas
a uma informação estocada na memória discursiva e, ao mesmo tem-
Num primeiro momento, é possível interpretar que o autor usa po, liga constituintes entre os quais se percebe a existência de uma
o “onde” tencionando afirmar que “com uma revolução na relação argumentativa, tanto do tipo “P porque Q” quanto do tipo “P
metodologia de ensino da língua pátria os educadores estariam de modo que Q”.
direcionando a nação à democracia”. Nesse caso ele estaria introdu-
4. Referências Bibliográficas
zindo um constituinte com estatuto de subordinado o qual mantém
uma relação de comentário com o segmento anterior.
BERRENDONNER, A. Connecteurs pragmatiques et anaphore.
Mas quero defender aqui que ele atua como um conector que Cahiers de Linguistique Française. n.5. 1983. p.215-246.
liga uma intervenção principal ao ato precedente entre os quais inter- ______ . Pour une macro-syntaxe. Travaux de linguistique 21.1990.
preto haver uma relação argumentativa do tipo “P de modo que Q”: p.25-36.
“Então, necessário se faz uma verdadeira revolução na metodologia de LUSCHER, Jean-Marc. Connecteurs et marques de pertinence:
ensino da língua pátria, de modo que/de tal forma que os educadores l’exemple de d’ailleurs. Cahiers de Linguistique Française.n.10.
(...) estariam direcionando a nação aos caminhos literários pertencen- 1989. p. 101-145.
tes à uma verdadeira democracia”. O efeito de uma “verdadeira revo- MAINGUENEAU, Dominique. Pragmática para o discurso literá-
lução na metodologia de ensino da língua pátria” seria os educadores rio. trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
PIRES, M.S. Estratégias discursivas na adolescência. São Paulo :
direcionarem a nação a uma verdadeira democracia, segundo o autor
Arte e Ciência./UNIP, 1997.
do texto. Assim, nessa ocorrência, ele atua como um elemento que,
REBOUL, A. & MOESCHLER, J. Pragmatique du discours. De
embora não marque a relação consecutiva aí presente, a possibilita. E l’interprétation de l’énoncé à l’interprétation du discours. Pa-
talvez porque mantenha o seu caráter anafórico, tenha sido empregado ris: Armand Colin, 1998.
no lugar de um conector que explicitaria essa relação. ROSSARI, Corinne. Les oprérations de reformulation: Analyse du
processus et des marques dans une perspective contrastive
(41)O governo tem interesse em não dar educação ao povo français-italien. Berne: Peter Lang, 1993.
brasileiro, (42)pois uma sociedade culta é uma sociedade ativa, (43)fa- _______ . Du cognitif au lexical. L’éclairage des relations de discours
lante, (44)que sabe se colocar no lugar de cidadão (45)e sabe os seus par les connecteurs. (inédito)
direitos. (46)Pode-se reivindicar por aquilo que se quer (47)e não ROULET, Eddy et al. L’articulation du discours en français
contemporain. Berne: Peter Lang,1985.
deixar tudo como os governantes querem que seja. (48)A sociedade
ROULET, Eddy. Vers une approche modulaire de l’analyse du
participa (49)e atua nas decisões para o seu próprio bem. (50)O go- discours. Cahiers de Linguistique Française. n.12. 1991. p.53-
verno quer é uma população analfabeta, (51)sem idéias, (52)sem co- 81.
nhecimento dos direitos, (53)onde um governante faz o que quer (54)e _______ .Vers une approche modulaire de l’analyse de l’interaction
o povo não atua, (55)nem tem palavra altiva. verbale. In: VÉRONIQUE, Daniel & VION, Robert (ed.).

328 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Modèles de l’interaction verbale. Publications de l’Université _______. Um modelo e um instrumento de análise sobre a organiza-
de Provence, 1995. ção do discurso. trad. Sueli Pires. In: MARI, Hugo et al. (org.).
_______ . Une description modulaire de l’organisation topicale d’un Fundamentos e Dimensões da Análise do Discurso. Belo Hori-
fragment d’entretien. Cahiers de Linguistique Française. n. 18. zonte: Carol Borges, 1999a. p.139-171.
1996. p.11-32. ________ . Une approche modulaire de la complexité d l’organisation
_______. A modular approach to discourse structures. Pragmatics. du discours. In : ADAM & NOLKE (eds). Approches
Vol.7, n.2. jun. 1997. p.125-146. modulaires : de la langue au discours. Lausanne : Delachaux &
_______ . La description de l’organisation du discours: du dialogue Niestlé, 1999b.
au texte. Paris : Didier, 1999.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 329


Questões centrais para uma abordagem
da Teoria da Otimalidade em relação à Sintaxe
Ricardo Joseh Lima
Universidade Federal do Rio de Janeiro

ABSTRACT: The goal of this paper is to present empirical evidence in order to distinguish two approaches for optionality in optimality-theoretic
syntax. The data come from wh-questions in Brazilian-Portuguese. It will be shown that one approach, named ‘global ties’, accounts for the data,
while the other, named neutralization, makes wrong predictions.
PALAVRAS-CHAVE: Teoria da Otimalidade ; sintaxe ; interogativas-Q ; variação.

1. Introdução ótimo de outro input, com a ressalva de que os dois inputs possuem
A Teoria da Otimalidade (OT) define ‘gramaticalidade’ como estruturas minimamente diferentes. Esse caminho é denominado
sendo o resultado ótimo de uma competição de candidatos em rela- “neutralização”, pois as diferenças dos inputs podem ser neutraliza-
ção a um determinado input lingüístico. No caso da sintaxe, tem-se das nos outputs (Müller, 1999).
que do input (geralmente, a estrutura argumental de um verbo Schmid (1999) utilizou três conjuntos de dados que continham
lexicalmente realizada; ver Grimshaw 1997) são gerados todas suas ‘opcionalidade’ (e sua ausência em determinados contextos) para
possíveis análises. Essas, por sua vez, entram em competição de acordo comparar as duas abordagens. Sua análise concluiu que ambas da-
com a hierarquia das restrições violáveis da Gramática e a análise vam conta dos conjuntos de dados. A autora comparou, então, as
que se relacionar de modo mais ‘harmônico’ com essas restrições vantagens e desvantagens conceptuais de cada abordagem: se, por
constituirá o output, a realização do input. um lado, a abordagem do “empate global” possibilitava visualizar
De imediato, dois problemas surgem para essa abordagem. O melhor os conflitos inerentes à Gramática, por outro abria espaço
primeiro vem sendo tratado como o problema da ‘inefabilidade’, ou para que um indivíduo possuísse mais de uma Gramática; se, por um
seja, o caso de um input não possuir um output em uma determinada lado, a abordagem da “neutralização” se utilizava apenas de caracte-
língua (ver Pesetsky 1998 para uma discussão do assunto). O segun- rísticas básicas da Teoria da Otimalidade (eliminado o conceito de
do diz respeito à possibilidade de haver mais de uma análise ótima de “empate”), por outro aumentava em complexidade o input e o con-
um mesmo input, um problema que vem sendo abordado como junto de análises competindo para ser o output ótimo. Schmid optou
‘opcionalidade’. A questão da opcionalidade na sintaxe, do ponto de pela abordagem da “neutralização”, ressalvando, no entanto, que
vista da Teoria da Otimalidade, é o foco deste trabalho. evidência empírica em favor dessa abordagem ainda estava para ser
encontrada.
2. Duas abordagens para a ‘opcionalidade’
Nos estudos de sintaxe baseados na Teoria da Otimalidade, 3. Testando as abordagens: os dados
tem-se considerado como ‘opcionalidade’ a situação de haver duas Nesta seção, será apresentado um novo conjunto de dados a
formas para expressar um mesmo sentido. Um dos exemplos mais fim de testar as duas abordagens: trata-se das interrogativas-Q com
discutidos (Grimshaw 1997, Pesetsky 1998) é o da opcionalidade do elemento-Q argumental no Português do Brasil (PB), tanto a Gramá-
complementizador em sentenças encaixadas do Inglês, conforme os tica do adulto quanto a infantil.
pares abaixo, em (1): Vários estudos (Duarte 1992, Sikansi 1999b, Lima 2000) têm
mostrado que as interrogativas-Q com elemento-Q argumental são
(1) (a) “I think that it will rain”. formadas no PB com a presença de um expletivo “(é) que”. Os dados
(b) “I think it will rain”. de Duarte (1992, p.42) revelam que 94% das interrogativas-Q do ano
de 1989 possuíam algum expletivo; nos dados dos adultos do estudo
Há dois caminhos dentro da Teoria da Otimalidade para dar de Sikansi (1999b), as interrogativas-Q com expletivo são 73,75%;
conta da opcionalidade em sintaxe. e, em um trabalho que coletou dados de três novelas no final do ano
O primeiro é considerar que duas análises do mesmo input 2000, 80% das interrogativas-Q são formadas com expletivo.
podem ser vencedoras em uma competição. Isso é possível se for Nesse mesmo estudo, observou-se que os elementos-Q em
considerada a premissa de que, em algum ponto da hierarquia das função argumental são seguidos do expletivo “que” em 96% dos da-
restrições, existe uma indeterminação que permite mais de uma orde- dos; já os elementos-Q em função de adjunto têm o expletivo “que”
nação das restrições. Assim, em uma ordenação a análise (a) seria o em apenas 1,6% dos dados. A correlação só não é completa porque
output ótimo e na outra ordenação a análise (b) o seria. Esse caminho os elementos-Q “por que” e “para que” são seguidos sempre pelo
é denominado “empate global” (global tie), pois considera que duas expletivo “que”, um resultado semelhante ao encontrado por Sikansi
(ou mais) restrições não possuem uma ordem rígida e que essa (1999a). Esse desvio da correlação, no entanto, não será levado em
indeterminação é resolvida de maneira total (ou seja, observando-se conta.
as duas ordenações possíveis). Com isso, a interrogativa-Q com elemento-Q em função
O segundo caminho tenta desfazer o próprio conceito de argumental a ser considerada como padrão do PB é aquela que con-
opcionalidade. Fazendo uso de uma das características da Teoria da tém o expletivo “que”. Segue-se assim a opinião de Mioto et al. (1999):
Otimalidade, propõe-se que um output pode ser ótimo mesmo vio- “Estamos utilizando sistematicamente a forma interrogativa WH que,
lando a restrição de Fidelidade (Faithfulness) ao input. Assim, análi- por considerarmos esta a forma mais comum em PB coloquial.”
ses que contenham elementos que não estão no input e/ou análises (p.188, n.1).
que não possuem elementos que estão no input também poderiam A estruturação da Gramática infantil do PB está baseada nos
competir. Voltando ao exemplo (1), tem-se a possibilidade de que a dados de Sikansi (1999b): 97,5% dos dados são de interrogativa-Q
forma (a) seja o output ótimo de um input e a forma (b) o output sem expletivo, enquanto que apenas 2,5% (3 dados) contêm expletivo.

330 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Note-se que tal quadro parece constituir um paradoxo em relação à com mais de um elemento-Q, conforme o Quadro 2:
Gramática adulta: se a maioria das interrogativas-Q contêm expletivo,
por que a Gramática infantil ‘opta’ por utilizar interrogativas-Q sem
expletivo?
O conjunto de dados a ser analisado na seção seguinte e que
servirá para comparação entre as duas abordagens está assim consti-
tuído:

Gramática do PB (adulto): “O que que você quer?” Para dar conta das interrogativas-Q na Gramática infantil do
Gramática do PB (infantil): “O que você quer?” PB, altera-se a hierarquia das restrições, conforme o Quadro 3:

Pode-se perceber que esse conjunto de dados não apresenta


uma opcionalidade de formas dentro de uma mesma Gramática. No
entanto, como as duas abordagens foram elaboradas para dar conta
da opcionalidade, pode-se questioná-las do mesmo modo para inves-
tigar se elas dão conta da ausência de opcionalidade ou se são ‘for-
tes’ demais, prevendo duas formas, quando somente uma é possível.

4. Testando as abordagens: as análises Note-se que o output ótimo não tem um CP em sua estrutura.
As restrições em comum para as duas abordagens são aque- Tal fato está de acordo com hipóteses sobre aquisição da linguagem
las elaboradas por Ackema & Neeleman (1998) e utilizadas por que propõem que essa categoria funcional seja a última a ser adquiri-
Schmid (1999): da pela criança. Além disso, ressalte-se o fato de que o input “O que
você quer?” é ambíguo pois permite que seja analisado como uma
• Q-MARK: Em uma interrogativa, designe um traço [+Q] ao estrutura com um elemento-Q movido para o CP ou adjungido ao IP.
constituinte que corresponde à proposição. A Gramática da criança, talvez não por acaso, escolhe a opção mais
• Q-SCOPE: Elementos [+Q] devem c-comandar o constituin- simples.
te que corresponde à proposição. Conclui-se que a abordagem de “empate global” consegue
• SPC (Shortest Path Condition): Minimize os nós cruzados dar conta do conjunto de dados apresentado.
por movimentos. Seguindo o exposto por Schmid (1999), é possível “tradu-
zir” a abordagem do “empate global” para a abordagem da
Além dessas, a abordagem da “neutralização” utiliza a se- “neutralização”: basta que, mais uma vez, a restrição Q-MARK eli-
guinte restrição: mine análises que a violem. Tal fato é visualizado nos Quadros 4 e 5:

• FAITH [Q]: O valor do output de [Q] é o mesmo do que o do


input; [Q] é um traço puramente sintático que pode [+] ou não [-]
estar conectado com um elemento-Q no output.

Com essas restrições, ambas as abordagens deram conta da


opcionalidade nas interrogativas-Q do Francês coloquial (“Qui tu as
vu?” e “Tu as vu qui?”) e sua ausência no Francês padrão (“Qui as tu
vu?”).
No caso da interrogativa-Q do PB (adulto), o output ótimo
não viola Q-MARK (pois o elemento-Q designa ao expletivo o traço
[+Q]; ver Mioto, 1994); viola SPC duas vezes (pois o elemento-Q
cruza o VP e o IP para chegar ao CP; os movimentos do DP sujeito
para [Spec, IP] e do verbo de V para I não são computados aqui, pois
todas as análises do input possuem esses movimentos); e, por fim,
não viola Q-SCOPE (pois o elemento-Q está c-comandando a pro-
posição). Assim, Q-MARK e/ou Q-SCOPE devem estar mais alto na
hierarquia do que SPC (ou uma análise que violasse Q-MARK mas
não violasse SPC seria o output ótimo). A hierarquia proposta está
no Quadro 1:

A hierarquia apresentada (Q-MARK >> FAITH [Q] >> SPC


>> Q-SCOPE) consegue dar conta da Gramática do PB (adulto).
No entanto, a elaboração da restrição FAITH [Q] “criou” aná-
A análise “O que que você quer?” sai vitoriosa porque as outras lises que deixam de violar restrições que eram naturalmente violadas
ou violam Q-MARK ou possuem mais violações de SPC. A hierar- por análises semelhantes. Observe-se o caso da construção com o
quia acima é validada considerando-se os fatos sobre interrogativas-Q elemento-Q in situ quando o input é [-Q]:

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 331


syntax. MIT Press : Cambridge.
DUARTE, M.E.L. (1992). A perda da ordem v(erbo) s(ujeito) em
interrogativas QU- no português do Brasil. Delta 8, n. especial,
37-52.
GRIMSHAW, J. (1997). Projections, Heads, and Optimality. ROA-
068.
Como na segunda análise, o elemento-Q não tem o traço [Q], LIMA, R. (2000). Interrogativas-Q no PB: Variação a caminho da
ele satisfaz a restrição Q-SCOPE, o mesmo não ocorrendo na primei- mudança? Trabalho de final de curso, UFRJ.
ra análise. MIOTO, C. (1994). As interrogativas no Português Brasileiro e o
Tal situação cria uma análise “imbatível”: “Você quer o que? critério-Wh. Letras de Hoje 96, 19-33.
(-)” viola apenas uma restrição enquanto que as demais análises vio- MIOTO, C. et al. (1999). Manual de sintaxe. Insular : Florianópolis.
lam pelo menos duas restrições. Como “empates” estão excluídos MÜLLER, G. (1999). Optionality in Optimality-Theoretic Syntax. Glot
dessa abordagem, segue-se que qualquer ordem das restrições na 4:5, 3-8.
Gramática infantil do PB (que não tem Q-MARK mais alto na hierar-
PESETKSY, D. (1998). Some Optimality Principles of Sentence
quia por causa de “O que você quer?”) produzirá um output ótimo
Pronunciation. In: Barbosa et al. (eds.) Is the best good enough?
com o elemento-Q in situ.
Optimality and competition in syntax. MIT Press : Cambridge.
Entretanto, isso torna a abordagem ‘forte’ demais pois a
SCHMID, T. (1999). OT Accounts of Optionality: A Comparison of
construção com o elemento-Q in situ não faz parte da Gramática
Global and Local Ties. Disponível na Internet em junho de 2000:
infantil do PB (nenhuma ocorrência nos dados de Sikansi 1999b e
de Lopes Rossi 1994 apud Sikansi 1999b). http://merlin.philosophie.uni- stuttgart.de/~vogel/ot_project.
SIKANSI, N. (1999a). A variação nas interrogativas-Q do português
Referências bibliográficas do Brasil. Exame de qualificação, Unicamp.
SIKANSI, N. (1999b). As interrogativas-Q na gramática infantil do
ACKEMA AND NEELEMAN. (1998). WHOT?. In: Barbosa et al. PB. Cadernos de Estudos Lingüísticos 36, 85-105.
(eds.) Is the best good enough? Optimality and competition in

332 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A apropriação do gênero notícia por duas estudantes
do ensino médio: desvendando o processo da escrita
Márcia Helena de Melo
Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP

ABSTRACT: We pretend to reflect about the process of text construction done in scholar environment for two young girls of high school, trying to
appropriate of a discourse gender, to introduce new elements to the discussion of subject-language relationship.
PALAVRAS-CHAVE: gender; process; writting

A produção de textos (orais e escritos) ocupa um lugar privi- microtransformações escriturais têm sido emprestados quase direta-
legiado no processo de ensino/aprendizagem de língua, pois os tex- mente do arsenal conceptual da Lingüística. Evidentemente, quando
tos são resultados diretos da atividade verbal de indivíduos social- nos referimos à busca do arsenal conceptual da Lingüística, não
mente atuantes, visando a alcançar um fim social, em conformida- estamos pensando nas correntes ligadas ao Estruturalismo (conside-
de com as condições sob as quais a atividade verbal se realiza (con- rando o sujeito inexistente), nem à Gramática Gerativa (assumindo
forme Koch, 1997). um sujeito que é senhor absoluto de seus atos e que segue a tradição
Quando o assunto é a análise de um texto, vários são os pontos idealista de que pensamento precede a linguagem). Na verdade, bus-
de vista que se pode adotar: semântico, formal, pragmático etc. Na camos amparo nas correntes de estudo que podem ser reunidas sob o
reflexão aqui empreendida a produção escrita será vista como resul- rótulo de lingüística da enunciação1 . Destas correntes, utilizaremos
tado de um processo de construção, operado em uma dimensão tem- basicamente a Lingüística Textual e a Teoria do Discurso para em-
poral que inclui esboços, plano da obra, elaboração, até chegar às preender a análise dos dados apresentados neste artigo.
correções finais. Dadas as considerações iniciais acima esboçadas, passemos
Acreditamos que uma das maneiras de que o lingüista pode aos objetivos desta reflexão. Duas adolescentes do Ensino Médio de
dispor para entender o processo de escrita seja através de índices, uma escola comunitária-particular da cidade de Valinhos-SP elabo-
pistas, deixados no texto, como os processos de apagamentos, subs- raram um texto, conjuntamente, a fim de que pudéssemos analisar
tituições, acréscimos, novas ordenações, pausas etc. São pistas privi- como se deu a apropriação de um determinado gênero do discurso.
legiadas para a compreensão das hipóteses que o escrevente formula Mais especificamente, pretendemos analisar de que forma as
sobre o texto e da relação que mantém com ele e com o discurso que alunas em questão, sob determinadas condições de produção, mos-
o envolve. Estas pistas de produção de escrita, portanto, podem nos traram ter se apropriado do gênero notícia. Buscamos, ainda, apreen-
ajudar a compreender melhor a relação entre o sujeito e a linguagem. der o que esses sujeitos demonstraram conhecer sobre tal gênero e
O estudo dos índices, das pistas deixadas no texto não nos como a construção social desse gênero apareceu na escrita e fala de-
oferece unicamente uma informação suplementar que venha comple- les. Também foi nosso objetivo apreender o que expressaram sobre a
tar aquela do texto: ele nos comunica um saber diferente. E é justa- configuração textual do gênero e quais recursos lingüísticos utiliza-
mente esse saber diferente que queremos explicitar. A Lingüística ram para realizarem o gênero.
decifra as marcas de um processo de enunciação que ela pode assim Para alcançar os propósitos expressos acima, mostraremos al-
compreender e penetrar na sua própria realidade. Vejamos o que nos guns aspectos do caminho percorrido pelas alunas na elaboração de
informa Levaillant: tal texto, pontuando e interpretando as reflexões e alterações feitas
nesse percurso, pondo em evidência o trabalho constitutivo da lin-
“o rascunho não conta a história ‘certa’ de uma gênese, a guagem através das diversas operações lingüísticas e epilingüísticas
história bem orientada por este fim feliz: o texto; o rascunho que as alunas realizaram, ressaltando sempre que suas escolhas não
não conta, ele mostra: a violência das escolhas, os acaba- tiveram para elas a chancela de definitivas, uma vez que refizeram
mentos impossíveis, a escola, a censura, a perda, a emergên- continuamente seu texto, ora rejeitando palavras/expressões, ora cri-
cia das intensidades, tudo o que o ser inteiro escreve, e tudo o ando, ora reaproveitando, garimpando, pinçando aqui e ali, acres-
que ele não escreve. O rascunho não é apenas a preparação, centando, substituindo, consultando a colega ao lado, enxugando etc.
mas o outro do texto” (apud Biasi, 97:31-32). O grande diferencial deste nosso trabalho em relação à tentati-
va de captar a linguagem em seu status nascend está na metodologia/
Buscamos na Crítica Genética os elementos que nos permiti- coleta de dados que utilizamos. Fizemos uso de um software francês
ram fazer algumas escolhas de natureza conceitual e metodológica. chamado Genèse, desenvolvido pela Association Française pour la
Com uma reconhecida experiência e tradição de tratamento dos ma- Lecture, em 1993, com objetivos pedagógicos. Com ele pudemos
nuscritos essencialmente literários, esta área do conhecimento é a acompanhar todo o processo de produção desse texto. Suas idas e
que melhor conseguiu operacionalizar métodos de investigação de vindas, suas substituições, novas ordenações, pausas, acréscimos etc.
rascunhos e melhor compreender o estatuto das rasuras, no caso dos puderam ser registrados em forma de relatórios impressos com a pre-
manuscritos de grandes escritores da literatura mundial. sença das modificações operadas no texto. Além do software Genèse,
A noção de texto, a partir do aparecimento da Crítica Genéti- todo o momento de elaboração do texto foi filmado em fita de vídeo,
ca, sofre uma reviravolta. Sua realidade mais profunda não se encon-
tra mais no produto (acabado, pronto, definido, separado do prototexto
e do pós-texto, como pensava a teoria estruturalista), mas na sua pro- 1
Travaglia (1998:23) inclui, sob esse rótulo de lingüística da enunciação,
dutividade, no “sem-fim de operações possíveis”. correntes e teorias como a Lingüística Textual, a Teoria do Discurso, a
No entanto, a maioria dos meios de que dispõe o geneticista Análise do Discurso, a Análise da Conversação, a Semântica Argumentativa
para classificar os rascunhos ou para interpretar as e todos os estudos de alguma forma ligados à Pragmática.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 333


com o objetivo de capturarmos o diálogo mantido entre os sujeitos a J.: e não pode ser atentado a gás, atentado a gás é coisa de japonês.
respeito do texto: suas reflexões, suas dúvidas etc. Seguiu-se, ainda, G.: é verdade, a gente não ia fazer um atentado a gás numa casa,
uma entrevista com as próprias alunas, desta vez gravada em fita de não tem...
áudio, questionando os motivos que as levaram a apagar, substituir,
adicionar, a trazer determinado elemento lingüístico etc. Podemos perceber, neste fragmento, que para G. e J. uma notí-
Tal trabalho requer uma linha teórica que responda à reflexão cia deve se ater em relatar fatos de interesse do público e relevantes.
que se pretende empreender: a gênese de um texto escolar. No que se Esta consciência as fez abandonar a idéia de um desmaio da menina
refere a concepção de linguagem, com certeza não nos apoiaremos simplesmente, porque não seria um fato importante para noticiar, não
em concepções que a consideram como expressão do pensamento ou tem nada de mais, como disseram. Ou seja, pessoas comuns desmai-
como instrumento de comunicação. Vemos, por outro lado, a lingua- am todos os dias e estes fatos não dão matérias de jornais.
gem “como trabalho/atividade constitutivos da subjetividade/ Descartaram, também, a possibilidade de um atentado a gás
alteridade e da própria linguagem, que pode ser tomada como um naquele local. Para as alunas, de acordo com o conhecimento de
objeto sobre o qual se pode refletir e falar” (Franchi, 1992). mundo que possuem, atentados a gás ocorrem geralmente em ambi-
Em relação a questão dos gêneros do discurso, adotamos a entes públicos e não em casas particulares (a foto apresentada como
abordagem sócio-interacionista de Bakhtin [1952-3] (1997). Este te- proposta de produção sugeriu a elas uma residência).
órico russo insiste sobre as diversidades dos atos sociais emitidos A própria escolha do assunto: um vazamento de gás domésti-
pelos diversos grupos e conseqüentemente sobre as diversidades das co, esteve atrelada a reportagens que as alunas há haviam lido em
produções de linguagem. Considera o enunciado como o produto da jornais ou assistido na TV sobre o assunto. Vejamos o que disseram
interação social em que cada palavra é definida como produto de sobre a fonte de suas informações, na entrevista:
trocas sociais, estando o enunciado ligado a uma situação material
concreta como “ao contexto mais amplo que constitui o conjunto das Pesquisador: o que motivou vocês a escolherem esse tipo de episó-
condições de vida de uma comunidade lingüística dada” (p.279). dio para noticiar?
Para Bakhtin, embora a diversidade da obra neste universo G.: ah, mas já ouvi bastante caso de problema de gás, já, de fazer
“polilingüístico” seja infinita, é organizada. Cada esfera de utiliza- vítima, inclusive de matar já criança dentro de casa.
ção da língua elabora, segundo o autor, tipos “relativamente estáveis G.: já passou em reportagem
de enunciados”, isto é, gêneros do discurso que se caracterizam pe- J.: É, não só gás, mas acidente doméstico.
los seus conteúdos e pelos meios lingüísticos que eles utilizam. No
quadro da atividade de linguagem, a adoção de um gênero de discur- Koch e Travaglia (1998:60) salientam a importância do co-
so é uma escolha que se determina em função da especificidade de nhecimento de mundo para o estabelecimento da coerência:
uma esfera dada da troca verbal.
Passando à análise, por questões de delimitação, neste artigo “O nosso conhecimento de mundo desempenha um papel deci-
perseguiremos e analisaremos a gênese da manchete e do lead do sivo no estabelecimento da coerência: se o texto falar de coisas
texto. Como o gênero a ser apropriado é uma notícia, os aspectos que absolutamente não conhecemos, será difícil calcularmos o
discutidos estão relacionados com esse gênero do discurso. seu sentido e ele nos parecerá destituído de coerência...
Adquirimos esse conhecimento à medida que vivemos, toman-
do contato com o mundo que nos cerca e experienciando uma
série de fatos”.

Decidido o assunto a ser tratado, G. e J. iniciam a escrita do


texto, pensando, primeiramente, numa manchete ou título para a no-
tícia. Imaginam o seguinte começo para a manchete: Vazamento de
O passo inicial das alunas foi uma tentativa de interpretação da gás... Mas abandonam essa idéia e optam por: O PERIGO DENTRO
foto dada. O diálogo mantido entre as duas pôde ser recuperado atra- DE CASA, em caixa alta. Quando indagadas, na entrevista, do por-
vés da fita de vídeo, como segue: quê de tal abandono, explicaram que:

J.: pode ser várias coisas aqui. G.: ...E se você...é... se você não dizia muito do que se tratava, cha-
G.: a mulher dormindo... ma a atenção
J.: é uma criança. Pesquisador: então vocês queriam alguma coisa que chamasse a
G.: é uma criança? Ah, tá, então a criança e a mãe dormindo e atenção, é isso?
houve um vazamento de gás, aí a casa estava fechada, a mãe acor- J.: é, e que fosse meio curta, porque se a gente colocasse “vazamen-
dou assustada porque não estava conseguindo respirar direito, quan- to de gás ia ter que explicar toda a notícia só na manchete e nin-
do ela se deu conta ela viu que a filha dela estava desacordada por- guém ia ver.
que havia ingerido muito gás, né. Saiu pela vizinhança, pediu socor-
ro pelo telefone e o socorro veio socorrer a filha dela. Para as alunas, a escolha da manchete “O PERIGO DENTRO
J.: porque não tá com cara de que a menina foi baleada ou coisa DE CASA” atendia satisfatoriamente a necessidade de uma manche-
assim, né. te de despertar a curiosidade do leitor para o assunto em questão, daí
G.: por isso que eu pensei logo em gás, ainda mais que tem alguma a mudança. Como salienta J., se optassem por uma manchete come-
coisa assim no rosto dela para a respiração, foi logo o que eu pen- çando por “vazamento de gás” já estariam explicitando, na própria
sei. manchete, o assunto da notícia, não instigando o leitor a lê-la. Em
J.: pode ser... não ia fazer uma notícia. relação à apropriação do gênero em questão, podemos apreender,
G.: também acho que não. nesse momento de produção textual, que o gênero notícia deve con-
J.: porque a menina desmaiou, não tem nada de mais. Acho que tem ter uma manchete (ou título) que deve ser curta, deve chamar a aten-
que ser isto mesmo. ção do leitor para ler a notícia e, portanto, não deve conter todas as
G.: então a gente pensa num título.

334 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


informações acerca do assunto, senão o leitor perde o interesse pela Mas a escrita do lead ainda não é definitiva. Após iniciarem o
leitura do texto completo. corpo da notícia da seguinte maneira: “Na manhã de segunda-feira,
Contentes com a manchete, a dupla põe-se a escrever o lead da 26, um vazamento de gás em uma residência no subúrbio...”, as alu-
notícia. Vejamos, agora, quais foram os passos dados pelas estudan- nas retornam ao lead e o modifica:
tes para a escrita dessa parte da notícia:
1) Escrevem inicialmente: “Menina...” O diálogo mantido en- 3) “Vazamento de gás provoca sérias conseqüências no subúrbio de
tre as duas, neste instante, foi o seguinte: São Paulo”.
Substituem a cidade do Rio por São Paulo. Vejam a justificati-
J.: menina... a mãe acorda... va para essa troca:
G.: não, J.
J.: é, a mãe acorda e vê a filha desacordada. A menina o que? Des- G.: é que a gente pensou, assim, num bairro, num local, a gente não
maia, porque... sabia do Rio. Aí a gente foi pra São Paulo, só que em São Paulo a
G.: sei lá, vazamento de gás provoca causa e transtorno numa... gente também não sabia.
J.: vazamento de gás doméstico...
G.: provoca transtorno num bairro pobre. A gente não pode dá a Nesse momento, a dupla sente a necessidade de especificar
entender o que é. Tem que chamar a atenção. Provoca... para o leitor em qual subúrbio se deu o episódio, afinal subúrbios há
J.: não é transtorno, provoca sérias conseqüências. Tem acento? muitos, principalmente no Rio de Janeiro – a explicação do local
G.: tem. exato do fato é uma exigência do gênero notícia. Porém, vasculham
J.: sérias conseqüências... na memória e não encontram nenhum nome de subúrbio no Rio, op-
G.: numa família pobre? tando, então, por situarem a notícia em um subúrbio de São Paulo.
J.: num subúrbio do Rio de Janeiro. Mas, não tinham conhecimento de nomes de subúrbios em São Pau-
lo também. Ao colocarem novamente a cidade do Rio, substituem a
Podemos perceber que as alunas abandonam a idéia inicial de palavra “subúrbio” pela palavra “periferia”, adquirindo o lead seu
começar a notícia com: “menina...” Questionadas desse abandono formato final:
respondem que o início do lead com “menina...” não atenderia aos
objetivos que queriam alcançar: fazer um breve resumo das idéias 4) “Vazamento de gás provoca sérias conseqüências na periferia do Rio”.
essenciais do texto, procurando chamar a atenção do leitor. Se dis-
sessem que uma menina havia sido asfixiada por um vazamento de Os passos efetuados pelas estudantes durante a escrita de uma
gás, o lead já conteria as informações-chave, não instigando o leitor única frase, a qual compôs o lead da notícia, são um bom exemplo da
a ler o corpo da notícia. Desta forma, optam por: linguagem enquanto trabalho/atividade constitutivos da subjetivida-
de/alteridade e da própria linguagem (Franchi, 1992). Como é pró-
2) “vazamento de gás provoca sérias conseqüências no subúr prio do ato de escrever, as estudantes têm suas hesitações, reescre-
bio do Rio”. vem, fazem modificações, substituem, rasuram, acrescentam pala-
vras, enfim, fazem inúmeras operações a fim de transmitirem sua
Outros detalhes, ainda, nos chamaram a atenção no diálogo mensagem de forma satisfatória para elas.
mantido entre as alunas, conforme transcrito no item 1. Antes de A pesquisa genética, embora não completa, perseguindo os tra-
escreverem efetivamente o lead acima, G. usou por duas vezes o subs- ços deixados pelas alunas na elaboração da manchete e lead, afastou
tantivo “transtorno” no lugar de “sérias conseqüências”, pensando o o texto da concepção romântica da criação, pois desvendou porme-
lead da seguinte maneira: “vazamento de gás doméstico provoca trans- nores do processo de escritura que envolveu acréscimos, supressões,
torno num bairro pobre. comentários etc. O texto final foi o resultado de um trabalho árduo e
Ao escreverem, de fato, o lead, abandonam o substantivo trans- progressivo, realizado por etapas. Um trabalho que teve a duração de
torno. Perguntamos, então, por que tal substantivo não caberia nessa 38 minutos e 24 segundos, com 35 apagamentos e 23 substituições.
situação:

G.: é, transtorno seria só bagunça, né, mas não foi só uma confusão Referências bibliográficas
que aconteceu. A menina passou mal.
J.: Mais sério a menina ter desmaiado, assim, ter ido para o hospi- BAKHTIN, M.M. Estética da criação verbal. São Paulo, Ed. Martins
tal do que simplesmente transtorno. E nem comoveu muita gente, Fontes. 1997.
que seria assim transtorno, dá a idéia de... BIASI, P.M. A crítica genética, in: BERGEZ, Daniel et al. Métodos
G.: de ter apavorado o bairro inteiro, de... que foi mais uma confu- críticos para a análise literária. São Paulo, Ed. Martins Fontes.
são. 1997.
J.: e não ser uma coisa muito séria. FIAD, R.S. (Re) escrita e estilo, in: ABAURRE et al. Cenas de aqui-
sição da escrita. Campinas, Ed. Mercado Mercado Aberto. 1997.
O uso de “transtorno”, para elas, daria uma idéia de bagunça, FRANCHI, C. Linguagem-atividade constitutiva, in: Cadernos de
de confusão, de que o fato havia apavorado muitas pessoas. Como Estudos Lingüísticos. Campinas, IEL- Unicamp, n.22. 1992.
queriam veicular a idéia de um acontecimento sério, afinal a menina GERALDI, F.W. Portos de Passagem. São Paulo, Ed. Martins Fon-
havia desmaiado e estava muito mal, tal palavra foi rejeitada. Essa tes. 1997.
troca é um bom exemplo para mostrar que as estudantes, em seu KOCH, I.V. e TRAVAGLIA, L.C. A coerência textual. São Paulo,
processo de criação verbal, realizam intervenções no sentido de subs- Contexto. 1998.
tituir itens, frases ou até mesmo parágrafos inteiros. Assim fazendo, LEBRAVE, J.L. La critique génétique: une discipline nouvelle ou
ao construir sua própria linguagem, lançam mão dos modos básicos un avatar moderne de la philologie? Geneses n.1, p.33-71. 1982.
de arranjos utilizados no comportamento verbal: os eixos SALLES, C.A A Crítica Genética: uma introdução. São Paulo,
paradigmáticos e sintagmáticos. EDUC. 1992.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 335


Lingua(gem) como prática social: construção de um
universo discursivo/constituição de sujeitos históricos
Paulo Roberto Almeida
Universidade Estadual de Campinas - Unicamp

ABSTRACT: This work investigates, in texts produced by worker students of a technical public high school, (i) the marks, strategies and
expressive means operated by subjects at work with language; (ii) the marks which may point out dialogy with other texts and with other
“sayings” the students might have come across.
PALAVRAS-CHAVE: dialogismo; sujeito; intertextualidade, interdiscursividade

Fundamentando-me numa concepção de linguagem como ativi- Procurar outra terra?


dade constitutiva, coletiva, histórica e social e, considerando: a) que a Mas em outra terra a mesma lua, a mesma
leitura não pode ser compreendida como um ato passivo, mas um foice
trabalho social de construção de sentidos; b) a produção de textos o mesmo coice,
como um processo de transformação e concretude do aluno como a mesma condição de João sem terra
sujeito que constrói, o presente trabalho busca, por meio de um mo- e - paradoxalmente -
delo epistemológico, o “paradigma indiciário” (cf. Ginzburg 1990), João sujo de terra, sub-João.
(i) captar as pistas lingüísticas que evidenciem as marcas, estratégias
e recursos expressivos manipulados pelo aluno-sujeito com e sobre a Enterro e desterro
linguagem; (ii) captar as marcas deixadas pelo aluno-sujeito que apon- palavras que só se escrevem na Terra
tem a dialogia com outros discursos (intertextualidade), com outros com terra.
dizeres com que já teve contato (interdiscursividade), em textos es-
critos por alunos da rede pública de ensino, mais especificamente, Poderia ter nascido em outro planeta,
alunos trabalhadores de 3ª e 4ª séries do período noturno de curso por exemplo:
técnico profissionalizante de Eletrônica e Mecânica, respectivamen- onde não houvesse terra.
te, da Escola Técnica Estadual “Paula Souza”. Onde não vivesse tão sujo de terra.
Na perspectiva de busca de constituição de um futuro cidadão- Mas não;
técnico, de um aluno-leitor na sala de aula, um leitor real (na sala de nasceu na Terra.
aula e fora dela), como professor, possibilitei aos alunos o contato e No fundo do latifúndio os cães latindo.
envolvimento com gêneros variados, explorando vários eixos
temáticos de reflexão sobre a realidade social (Língua, Esporte, Tra- João sem terra mas sujo de terra.
balho, Reforma agrária, Amor, Liberdade), estimulando-os a consi- Corroído pelo pó da terra.
derarem a leitura como reflexão sobre os seus problemas do dia a dia, Vestido de chuva e de sol
suas expectativas e anseios em sua formação profissional, sua visão Girassol que erra de terra em terra.
de mundo e, através das pistas do dizer do outro, procurassem cons- seu suor em flor mas para
truir o seu próprio dizer por escrito. o senhor feudal da terra.
Sem terra mas na Terra.
Dentro de uma perspectiva interacionista discursiva, conside-
Sem terra mas sujo de terra.
ra-se o ato de ler como um processo em que ambos, professor e alu-
Não o João Sem Terra
no, constituem-se como leitores e sujeitos produtores de sentido. Como
da loura Inglaterra.
os sujeitos se apropriam da linguagem socialmente, não é possível
desvinculá-los do contexto sociocultural e conhecimentos
A proposta visava que os alunos considerassem a sua leitura
socioculturalmente partilhados.
como reflexão sobre sua experiência, sua visão de mundo, procuran-
Nesse sentido, como seqüência de um trabalho com leitura e
do interpretar o dizer do outro a partir de sua própria realidade sócio-
produção de texto, enfocando num determinado momento do proces-
histórica, posicionando-se como sujeito da enunciação na constru-
so pedagógico o eixo temático TRABALHO, após a leitura e discus- ção do seu dizer, no processo de construção de seu texto escrito.
são dos textos “1º de maio” (Chico Buarque), “A tecelã” (Mauro Nessa perspectiva, em sua interação com o texto lido e, acio-
Motta), “Tuca” (Lygia Bojunga Nunes), propus aos alunos a leitura nando esquemas cognitivos despertados pela leitura, como “leitor
do poema “João sem terra” (Cassiano Ricardo): [que] trabalha para reconstruir [um] dito baseado também no que se
disse e em suas próprias contrapalavras” (Geraldi, 1993), EMR, um
dos alunos-sujeitos envolvidos no processo, ativando seu conheci-
Viajar para a lua? mento prévio sobre a situação dos “sem terra”, “diz” o seu texto. É o
Complexo de quem gostaria de não ter seu dito. Eis o texto:
nascido
na Terra. O trabalhador que retira seu alimento da terra, está atrás de terra,
Não dele, para quem a lua é rural a qual não lhe pertence mas que consome sua vida. a cada trilha
Tem a forma de uma foice ou de um fruto. que passa, a esperança entrelaçada na erva-daninha do dia. Mas
Não dele, João sem terra de qual dia?
mas sujo de terra. De todo dia, e também à noite que nos gritos das crianças famintas
que talvez não as verão no outro dia

336 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


De acordo com Jolles (1976), todo o trabalho deve possuir um do enunciado seguinte, grafado com letra minúscula). Ao mesmo tem-
sentido que permita ao homem impor-se, sendo que a compreensão po, essa intervenção na escrita demonstra o seu domínio e a sua fami-
desse sentido deve conduzir o trabalho, como tal, à sua plena realiza- liaridade com os recursos da expressão escrita. De acordo com
ção. Para a compreensão do universo é necessário que o homem nele .(Abaurre et alii, 1995:12)
mergulhe, que o sonde, que intervenha nele para realizar uma sele- A contemplação da forma escrita da língua faz com que o
ção, reduzindo a infinita quantidade de seus fenômenos. Assim, ao sujeito passe a refletir sobre a própria linguagem, chegando, muitas
intervir, aprofunda, reduz, congrega, reúne os elementos conexos, vezes, a manipulá-la conscientemente, de uma maneira diferente da
separa, divide, decompõe e repõe o essencial em pequenas pilhas. maneira pela qual manipula a própria fala. A escrita é, assim, um
Como tais elementos não possuem, de início, uma forma própria, o espaço a mais, importantíssimo, de manifestação da singularidade
trabalho do homem consistirá em dar um sentido e uma forma pró- dos sujeitos
pria ao operar-se a reunião durante a decomposição. A progressão textual é encaminhada pelo enunciado (2) a cada
Dessa forma, a esse trabalho de compreensão do universo - do trilha que passa, a esperança entrelaçada na erva-daninha do dia,
caos ao cosmo - , podemos associar o trabalho do aluno-sujeito na que mostra a incansável e cíclica busca do trabalhador pela terra (que
constituição de seu texto escrito: a síntese de um “retrato” histórico, não lhe pertence).
a configuração de um ‘microcosmo’, concretizado através do mergu- Concebendo a linguagem como trabalho, Jolles (1976) diz que,
lho, sondagem e intervenção diante de enunciados difusos no univer- ao mesmo tempo que ela cria, é também uma semente que pode ger-
so poético de “João sem terra” (Cassiano Ricado) e de outros discur- minar e cultivar. Se a linguagem cultiva, ela também fabrica. Assim,
sos em circulação. se uma palavra pode realizar-se, também pode gerar o novo, mudan-
Compõe EMR uma crônica (um painel) de um drama social. do a ordem das coisas. Nesse sentido, para ele, a linguagem fabrica
Dentro de uma perspectiva semântico-discursiva, mobiliza elemen- formas ao realizar o ato poético. Ao enunciar (2), apontando para o
tos intertextuais e interdiscursivos que imprimirão força eterno êxodo do trabalhador da terra em busca de terra, ‘fabrica’
argumentativa diante do dilemático quadro social, representado em E.M.R. uma cena enunciativa, através de uma construção metafórica
seu mundo textual. Assim, ao enunciar O trabalhador que retira elaborada com elementos lexicais semanticamente configurados den-
seu alimento da terra (1), implicitamente, dialoga com o texto po- tro do um contexto social enunciado.
ético “João sem terra”. Trevisan (1992:14) considera que o texto consiste num con-
Maingueneau (1987:160) considera que o argumento da lin- junto de enunciados lingüísticos em que os pressupostos, as inten-
guagem se apóia freqüentemente sobre o implícito: o implícito não é ções, os implícitos, somados a fatores situacionais, criam um uni-
uma lacuna presente em uma alocução que, de direito, deveria ser verso a ser desvelado pelo leitor.
explicitável, mas constitui uma dimensão essencial da atividade Nessa perspectiva, a realização do ato poético, realizado atra-
discursiva. vés do jogo metafórico no enunciado (...) a esperança entrelaçada
O binômio homem-terra é recuperado historicamente, dentro na erva-daninha do dia (a dia), implica um processo interlocutivo
do plano interdiscursivo, numa relação de integração homem-terra: é que conduz o leitor ao desvelamento do universo textual na busca de
o João sem terra que busca um pedaço de terra não como objeto de sentidos possíveis para a (re)construção do mundo textual, através
posse, mas aquele que umbilicalmente ligado à terra, busca-a para da configuração de conceitos e relações subjacentes ao texto.
trabalhar para o sustento e sobrevivência de sua família. É o traba- O trabalhador que precisa de terra para retirar o seu alimento,
lhador que está atrás de terra [a qual não lhe pertence] para plantar mas não a tem, busca-a, numa eterna (des)esperança para plantar e
e retirar seu alimento. Ao binômio, incorpora-se um outro elemento colher seu alimento, em meio à erva-daninha com o qual convive
vital para o processo de integração: homem-terra-alimento. Essa harmoniosamente em seu dia a dia, elemento também constitutivo do
mobilização intertextual implicará um movimento discursivo que processo de integração do trinômio homem/terra/planta. A erva-da-
marcará a posição social do sujeito no processo da enunciação. ninha (assim como o homem da terra) é parte constitutiva da terra. O
Na perspectiva de Maingueneau (1976, apud Koch:1997), um homem e a erva-daninha estão, portanto, entrelaçados à terra. Ensi-
discurso não vem ao mundo numa inocente solicitude, mas constrói- na-nos Bakhtin
se através de um já-dito em relação ao qual toma posição. Assim, ao De fato, a forma lingüística (...) sempre se apresenta aos locu-
“comentar”, compromete-se o aluno-sujeito com o mundo comenta- tores no contexto de enunciações precisas, o que implica sempre um
do, construindo seu enunciado com verbos no presente que, numa contexto ideológico preciso. Na realidade, não são palavras o que
perspectiva discursiva, desvelam um plano atemporal (presente his- pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas
tórico): remete ao sempre presente drama social dos sem terra. ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. A
O texto é constituído por um movimento discursivo, permeado palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido
de um intrincado jogo dialético diante de “retrato” histórico parado- ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e
xal: um trabalhador, visceralmente ligado à terra, está atrás de um somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideo-
pedaço de terra para dela retirar seu alimento; quer trabalhar, mas só lógicas ou concernentes à vida. (1995:95)
pode fazê-lo numa terra que não lhe pertence, mas que consome sua A erva-daninha, dentro desse contexto ideológico preciso, pode
vida. A seleção lexical da expressão nominal (trabalhador que retira conotar o espectro da injustiça social sempre anunciado que se entre-
seu alimento da terra) e do verbo consumir ( mas que consome sua laça, que se arraiga, que desintegra a esperança do trabalhador sem
vida) aponta para a importância da dimensão interdiscursiva no uso terra de conquistar um direito inalienável, e assim... ‘desintegra-o’
do vocabulário. Uma vida consumida / enfraquecida / destruída / de- da terra.
vorada / aniquilada / por/numa terra que não é sua, trabalhador da A interrogação retórica assinalada no enunciado (3) Mas de
terra. Nesse sentido, enunciar certos significantes implica significar qual dia?, constituída a partir de um processo de refeitura textual, ao
(nos dois sentidos da palavra) o lugar de onde enunciamos (...) mesmo tempo que permite flagrar o instante em que o sujeito de-
(Maingueneau, 1987:155). monstra sua preocupação com um aspecto formal relevante para a
A interrupção(pausa), sinalizada pelo ponto final depois de configuração do universo textual, permite também mostrar que a re-
vida, traço perceptível na refeitura textual perpetrada pelo aluno, pa- lação do sujeito com a linguagem é mediada, desde sempre, pela sua
rece apontar para um preocupação do aluno com a própria organiza- relação com um outro interlocutor fisicamente presente ou represen-
ção textual, mais que com a convenção escrita (observe-se o a inicial tado (Abaurre et alii, op.cit.:10). Flagra-se, portanto, no processo de

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 337


interlocução, a preocupação do enunciador em trazer para dentro da com competência para manipular os recursos expressivos de sua lín-
cena o seu interlocutor. gua, sem espantos, bloqueios ou conflitos, buscando estratégias lin-
E eis a ‘erva-daninha’ que se entrelaça, sufoca a esperança de güísticas e textuais para a realização de seu dizer.
conquista, desintegra o homem da terra, que o ‘desintegra’ como
homem todo dia (4). A cada trilha que passa (2) essa erva-daninha Referências bibliográficas
sufoca a sua esperança, sem cessar. A expressão adverbial de todo
dia reforça a ação da injustiça sempre presente onde, ele, trabalha- ABAURRE, FIAD, MAYRINK-SABINSON. (1995). “A relevância
dor, passa, fator de aniquilação de sua esperança. Mas, ao mesmo teórica dos dados singulares na aquisição da linguagem escrita
tempo que a expressão adverbial assinala a ação intensa e incessante (Projeto integrado de pesquisa). In: Trabalhos de Lingüística
imprimida pela erva-daninha, acentua-a dramaticamente, na marca Aplicada, 25, Campinas, UNICAMP, IEL/DLA.
temporal dia/noite. A ação da erva-daninha assume sua dimensão BAKHTIN, M. (1995). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:
trágica, seu clímax, à noite, através dos gritos das crianças famintas Hucitec (original russo de 1929)
que talvez não verão (vivas) no outro dia. (Quem, ou melhor, quais JOLLES, A (1976). Formas simples. São Paulo: Cultrix.
pessoas talvez não as verão no outro dia? - seus pais, trabalhadores MAINGUENEAU, D. (1987). Novas tendências em análise do dis-
da terra-sem terra-sem alimento?) O advérbio talvez constitui um in- curso. Campinas (SP), Editora da Unicamp. 2ª ed. 1993.
FIAD, R.S. (1997). “(Re)escrita e estilo”. In: Cenas de aquisição
dicador de modalidade, e mais que uma expressão de dúvida, incer-
da escrita: o sujeito e o trabalho com o texto (Abaurre et alii).
teza, parece manifestar uma premonição diante da ação nefasta da
Campinas, SP: Mercado das Letras.
erva-daninha: a desintegração humana. Enfatize-se o forte apelo FRANCHI, C. (1988). “Criatividade e gramática” In: SÃO PAULO
emocional imprimido à orientação argumentativa, expresso através (Estado) Secretaria da Educação. Coordenadoria de Estudos e
da expressão nominal gritos das crianças famintas, reforçado pelo Normas Pedagógicas. São Paulo: SE/CENP,1988.
objeto pleonástico as, presente na oração adjetiva que talvez não as GERALDI, J.W. (1993). Portos de passagem. São Paulo: Martins
verão no outro dia Fontes. 2ª ed.
Eis um texto, não uma mera redação escolar. Um texto produ- _______. (1989). “Educação e linguagem”, in: Leitura: teoria e prá-
zido por um processo de apreensão de uma cena dramática em meio tica, nº 14, Ano 8, dez/1989.
a um caos social, configurado num universo textual, por um processo GINZBURG, C. (1987). O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéi-
de transfiguração poética, demonstrando a capacidade do aluno-su- as de um moleiro perseguido pela inquisição. São Paulo: Com-
jeito em utilizar e manipular, criativamente, os recursos expressivos panhia das Letras.
de sua língua. Se as marcas individuais imprimidas no trabalho reali- _______. (1990).”Sinais: raízes de um paradigma indiciário”. In:
zado com a língua na construção do enunciado implicam a constru- Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Companhia das Letras.
ção de um estilo e, se a construção desse estilo implica a construção KOCH, I.G.V.. (1997). O texto e a construção dos sentidos. São Paulo:
de um autor (cf. Fiad, 1997), eis aqui, portanto, um autor constituí- Contexto.
do. Ou ainda conforme Geraldi (1989:39): KOCH I.G.V. & TRAVAGLIA, L.C. (1989) Texto e coerência. São
Trata-se, pois, de um sujeito se completando e se construindo Paulo: Cortez Editora.
nas suas falas. Os conceitos que vai internalizando ( a consciência é POSSENTI, S. (1993). “O sujeito fora do arquivo”, in As múltiplas
sígnica, na expressão de Bakhtin), as significações, negociadas a faces da linguagem. Magalhães, I. (org.). Brasília: Ed. UNB
(1996).
cada passo das interações, vão construindo um interdiscurso de que
TREVISAN, E.M.C. (1992). Leitura: coerência e conhecimento pré-
seu discurso é parte.
vio: uma exemplificação com o frame carnaval. Santa Maria:
Assim... assim como Possenti (1993:1), acredito em sujeitos
Ed. da UFSM.
ativo e que sua ação se dá no interior de semi-sistemas em processo;

338 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A produção escolar da escrita sob
a ótica do conceito de gênero discursivo
Sandoval Nonato Gomes Santos
Universidade Federal do Pará - IEL
Universidade Estadual de Campinas

ABSTRACT: Taking into account that discourse genres are produced in different social activities, this study explains how second grade elementary
school students move through discourse genres - such as “legends” - that emerge in school event “Retelling stories”.
PALAVRAS-CHAVE: ensino-aprendizagem da escrita; gênero discursivo; narrativa infantil.

0. Introdução zar o processo de subjetivação de escreventes-alunos quando da tare-


fa escolar de recontar histórias, uma vez que, segundo o autor:
Com enfoques teóricos distintos, as várias vertentes do que se
convencionou chamar análise do discurso mantêm um pressuposto “(...) um discurso não é somente um certo conteúdo associado
que nos parece consensual: a idéia de ser constitutiva da identidade a uma dêixis e a um estatuto de enunciador e de destinatário,
do sujeito a alteridade. Recusa-se, por meio de um tal pressuposto, é também uma ‘maneira de dizer’ específica, a que nós cha-
tanto a idéia de um sujeito psicológico, romântico, fonte dos sentidos maremos um modo de enunciação. (...) Convencionaremos cha-
que veicula, quanto a de um sujeito que se dilui no espaço da univer- mar de gênero discursivo essa vertente tipológica, formal do
salidade e da estabilidade, onde não mais haveria o individual – o modo de enunciação. É apenas o pingente de um outro, menos
sistema lingüístico, nesse caso, independeria do sujeito falante. freqüentemente apreendido, o tom.”
Charadeau (1988), ao tratar das grandes problemáticas da aná-
lise do discurso, assinala que uma das questões interessantes dos es- 1. A tarefa escolar de recontar histórias: traçando o con
tudos na área, atualmente, diz respeito exatamente à relação entre torno etnográfico do evento
sujeito e estrutura. Por meio de uma remissão a Roland Barthes, mostra
a relação tensa entre o sujeito que é efeito da estrutura – um “ça”, Para caracterizar os modos de circulação de escreventes-alu-
um “eso” – e o que singulariza as condições estruturais – um “yo”. nos por gêneros discursivos escolarizados na ocasião em que recontam
Haveria, assim, um combate constante entre o que nos sobredetermina histórias, não nos parece inútil proceder à breve apresentação do even-
e a possível intervenção do “yo”. Ao se analisar o discurso político, to de produção escolar da escrita em que os textos que analisaremos
por exemplo, haveria interesse tanto em se investigar o “eso” desse foram produzidos. Trata-se do evento “Recontando histórias”, que
discurso quanto a estratégia particular que o constitui, o que implica- traz, como vetor de seu funcionamento, um modo intertextual de cons-
ria perguntar qual a relação que se estabelece entre o “eso” do dis- tituição: recontar pressupõe a remissão necessária a um texto já exis-
curso político e o “yo” do enunciador de tal discurso. tente. Essa retomada intertextual está intrincada em um funciona-
Em outros termos, conviria investigar os modos de mento recorrente nas práticas escolares de ensino da escrita que pode
subjetivação do sujeito quando inserido em práticas discursivas de ser definido globalmente assim: i) o gesto inicial é o do professor,
diversas ordens. É neste sentido que buscaremos, neste estudo, refle- que motiva os alunos para a atividade e apresenta orientações sobre
tir sobre a possibilidade de se caracterizar indícios da constituição de as fases que a compõem, antecipando, de certo modo, o que será
modos de subjetivação de escreventes-alunos quando em situação de solicitado aos alunos posteriormente - a produção escrita de um tex-
produção escolar da escrita, especificamente durante o evento to. Além disso, efetiva a leitura do texto-base, ou seja, “conta a histó-
Recontando histórias, ocasião em que devem recontar por escrito ria”; ii) o gesto seguinte inclui a troca de turnos entre professor e
histórias contadas pelo professor. Admitindo-se que um tal evento alunos no comentário da história lida. Esse comentário busca, em
põe em cena vários gêneros discursivos por meio dos quais os escre- geral, retomar elementos da história, tais como personagens princi-
ventes devem enunciar – no caso deste estudo, os gêneros instruções pais, enredo, cenário etc., além de visar a estimular os alunos para
para a atividade de produção escrita e lenda –, procuraremos: i) que elaborem uma interpretação “própria” do texto lido, isto é, pen-
caracterizar os modos de circulação dos escreventes por esses gêne- sem em outros finais possíveis, na inclusão de outras personagens
ros em sua tentativa de atender à injunção institucional de recontar etc.; iii) em seguida, aparece o gesto do aluno, que deve, por escrito,
uma história e ii) compreender em que sentido essa tentativa informa “recontar a história” lida pelo professor e iv) o gesto final pode in-
sobre o processo de subjetivação desses escreventes, principalmente cluir a leitura, para os colegas, dos textos produzidos e a avaliação,
se levarmos em conta que da prática discursiva ora considerada são feita pelo professor, desses textos.
constitutivos certos modos de enunciar estabilizados pelos gêneros Dentre todos esses gestos enunciativos, os que mais interes-
discursivos postos em cena durante o evento que mencionamos: tra- sam para os objetivos deste estudo é o (i) gesto inicial e o (iii) gesto
ta-se, portanto, de observar em que medida o processo de subjetivação do aluno de recontar. O gesto inicial de “contar a história” parece
do sujeito associa-se aos modos de enunciação que os gêneros constituir o móvel que legitima a atividade, já que “recontar a histó-
discursivos engendram nesse evento particular. ria” supõe que ela “já foi contada”. Assim, o gesto do professor apa-
Uma tal reflexão tem como pressuposto a percepção de
Maingueneau (1984) sobre os “modos de enunciação” de um dis-
curso. Embora constituída em um quadro teórico e metodológico de
1 O autor analisa os discursos humanista devoto e jansenista. A caracteri-
natureza e de dimensão diversas daquelas que propomos neste estu- zação que faz de certas noções remetem ao tipo particular de corpus
do1 , a noção de “modos de enunciação” pode ajudar-nos a caracteri- com que se vê envolvido.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 339


rece como aquele que funda a atividade e veicula um sentido para ela; As instruções relativas a esse texto foram enunciadas do seguinte
o professor, além disso, emerge como a origem de que decorrem as modo:
histórias contadas, a “fonte” que, por um lado, detém um saber sobre Embora não seja tão óbvio caracterizar o texto acima como
as histórias - sabe, por exemplo, como elas foram produzidas, como integrando o gênero instruções, já que a função de instruir não está
circularam, quem são seus autores etc. - e, por outro lado, detém a suficientemente configurada no tecido textual, é exatamente este fun-
autoridade necessária para “contar” e, mais que isso, a legitimidade cionamento – direcionar, orientar – que adquire esse texto quando
necessária para “ser ouvido”. Integra, além disso, a autoridade do considerado a luz do evento de que nos ocupamos. Um tal funciona-
professor “para contar” um certo direcionamento que a atividade deve mento ganha particularidades pelo modo como, inicialmente, a ins-
adquirir para atingir os objetivos previamente estabelecidos por ele (o trução busca circunscrever o texto-base ao gênero “lenda”.
professor) quando do planejamento da atividade. Ao mesmo tempo em que estabelece um pertencimento desse
O outro gesto – que, aliás, dá nome à atividade – refere-se ao texto-base, elege um fragmento do mesmo - a quebra do encanto
ato propriamente dito de “recontar a história”. Um modo possível de investido contra a índia - como enunciado-motivação da atividade.
conceber esse gesto é dizer que ele aponta para uma suposta Podemos supor que o próprio gesto de eleger um fragmento do texto-
reversibilidade de papéis: quem teria a autoridade de “contar”, nesse base para compor a instrução constitui-se como o registro de uma
momento, seriam os alunos e não mais o professor. Estaria garantida, certa leitura do professor – e, conseqüentemente, como indício de
dessa forma, a liberdade do aluno de “contar”, o que aparece como um determinado direcionamento para a atividade, explicitamente
necessário para o funcionamento da atividade e para que ela atinja configurado no trecho “Como você percebeu”. Ao se eleger um frag-
seu objetivo: a produção de um texto pelos alunos. mento da instrução como supostamente o mais proeminente, anu-
O recurso a essas regularidades do evento “Recontando histó- lam-se todas as demais leituras possíveis desse fragmento e, ainda, a
rias” faz-nos postular a idéia de que ele põe em cena um conjunto de possibilidade de outros fragmentos - não exatamente esse - ter-se
gêneros discursivos2 , tanto orais quanto escritos. Há, por exemplo, a configurado como mais relevante para os escreventes-alunos durante
organização dos gestos de instruir, orientar, direcionar a atividade no o gesto do professor de “contar a história”. Assim, pelo enunciado-
que poderíamos designar de gênero “instruções da atividade de pro- resumo, a instrução produz um efeito de evidência: a interpretação
dução escrita”. Esse gênero lineariza os gestos mais ou menos esparsos do texto-base configurada nesse enunciado-resumo aparece como a
do professor e, na ocasião em que os alunos recontam a história, única válida e a que remete mais adequadamente à lenda contada.
configura-se por escrito na folha de papel onde a história deve ser Esse efeito de evidência está indiciado pelo próprio uso do “você”,
recontada. que pode estar remetendo a um uso genérico, nos limites de uma
Já o gesto de recontar a história, constituído pelos alunos, é universalidade que emerge como já-dada, como inquestionável por-
organizado por meio da remissão ao texto-base3 , direcionando-se, que verdadeira: “você” funciona, nesse caso, como “todo mundo” ou
no caso deste nosso estudo, a um texto particular, pertencente ao que “qualquer um”.
poderíamos definir como gênero “lendas”. É interessante perceber que esse uso diferencia-se do que é
feito logo na seqüência seguinte: “E você, que outra solução arru-
2. O discurso didático-pedagógico enunciado pelo gênero “ins- maria para quebrar o encanto da cobra?”. Nesse caso, o “você”
truções para a atividade de produção escrita”
parece marcar a tentativa de estabelecimento de interlocução, poden-
do estar no lugar do “tu”. Não nos parece irrelevante o fato de ele
Admitindo-se que um dos modos de enunciação do discurso
aparecer, nesse caso, no interior de uma pergunta, o que remete a
didático-pedagógico escolar constitui-se no/pelo gênero “instruções”,
uma estratégia de interpelação do outro pelo recurso às perguntas.
vejamos como se configura por escrito as instruções que buscaram
Ainda sobre essa seqüência, é relevante a “estratégia de tematização”
orientar o reconto da lenda “A Cobra Grande”, texto-base apresenta-
(Koch, 1997: 74-86) de que se utiliza a instrução, isto é, opera-se um
do segundo a versão – adaptada a seguir – em que se configurou em
deslocamento à esquerda do sintagma nominal você, sem retomada
um jornal de ampla circulação da cidade de Belém (PA).
pronominal, ou seja, com elipse (categoria vazia) - “E você, que ou-
“Uma índia, chamada Pacoca, desperta, por ser muito bela, tra solução [ ] arrumaria...?”. Com essa estratégia de tematização, a
a atenção de dois índios da taba. Um deles é filho do Pajé, instrução pretende aproximar-se do interlocutor (tal como acontece
mas é pelo outro que a índia se enamora. O filho do Pajé na conversação oral). Vemos, então, que o modo de organização
pede, então, ao pai que faça um feitiço contra a índia. O pajé seqüencial da instrução traz marcas que remetem à narratividade como
acaba por transformar a bela índia numa horripilante cobra princípio enunciativo. É exatamente por meio da remissão à
que, algumas vezes, era vista na forma de um imenso navio
navegando os rios amazônicos ou na forma de uma ilha que
flutuava e que se movimentava para diferentes pontos desses 2 O conceito de gênero discursivo de que nos utilizamos neste estudo
rios (numa das versões, a cobra teria se fixado no subsolo de advêm da reflexão bakhtiniana (Bakhtin [1952-3] 1992) e pode ser enun-
uma igreja). O encanto só seria desfeito se um bravo guerrei- ciado assim: “(...) gêneros discursivos são os diversos modos de organiza-
ro cortasse, com uma faca virgem, a ponta do rabo da cobra. ção do acontecimento enunciativo no qual se localizam as interações
Ao fazer isso, o guerreiro deveria correr sem olhar para trás. verbais entre os indivíduos. Esses modos de organização plasmam, na
Caso contrário, enlouqueceria. Ninguém nunca conseguiu cadeia de enunciados concretos (orais e/ou escritos), eventos enunciativos
que, por definição, são instáveis. Os gêneros são, então, da ordem da
realizar a façanha. E, se algum dia alguém conseguisse, a
sistematicidade flexível de eventos enunciativos prévios, o que aparece
cidade mais próxima de onde o feitiço ocorrera submergiria como necessário para a própria existência e constituição do sentido entre
para sempre nas águas dos rios da Amazônia.” sujeitos sócio-historicamente condicionados. Ao mesmo tempo, eles
permitem a constituição de novos eventos enunciativos - tendo, portan-
to, um caráter também prospectivo -, já que oferecem um horizonte
enunciativo possível - mais ou menos padronizado - em que novas interações
podem acontecer.” (Santos 1999: 45-6).
3 Estamos designando, aqui, de “textos-base” aqueles textos apresentados
aos alunos para que, a partir deles, outros textos pudessem ser produzi-
dos.

340 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


narratividade que se estabelece a tentativa de interpelar o outro-escre- ela em uma cobra muito grande e para desfazer o encanto tinha que
vente como co-participante do gesto de recontar. dar um beijo na cobra e o índio deu um beijo na nele tornou uma
Perpassando essa tentativa mais explícita de estabelecimento bela india denovo e se casaram e viveram felizes para sempre.”
da interlocução, aparece a pretensão de garantir a liberdade do escre- (Texto: A bela índia)
vente para arrumar uma “outra solução para quebrar o encanto da
cobra”. Indício também da tentativa de estabelecer uma espécie de iii) Desconhecimento da circunstância que produz o conflito na lenda
reciprocidade de relações entre professor e alunos é o uso do “Conte- tomada como referência para a atividade - o encanto da cobra e
nos”, tentativa, a nosso ver, só aparente, já que na continuidade do a busca de uma solução para desfazê-lo. O gesto de recontar
enunciado temos “esta história”. Ora, trata-se de contar “esta” e não individua-se, nesse caso, exatamente por levar ao limite o não-
outra história, ou seja, a que o professor elegeu quando optou por um reconhecimento da circunstância narrativa posta em destaque
fragmento particular do texto-base. O discurso didático-pedagógico, pelas instruções. Os escreventes orientam seus textos para outra
na tentativa de modalizar o exercício de instruir, busca – como pode- espécie de conflito, o que acaba por fazer-lhes buscar também
mos perceber – dar ao comando um tom quase espontâneo, como se uma outra solução para o conflito inventado. Esse deslocamento
pretendesse minimizar as relações assimétricas entre quem instrui e produz “subversão” não apenas em relação ao texto-base, como
quem é instruído. Em outras palavras, pela instrução, estabelece-se também no próprio gênero - lenda - em que o mesmo está imbri
um estatuto para o enunciador – aquele que instrui – de que decorre cado. Isso porque o sentido atribuído à cobra em nenhum mo
a constituição de um estatuto também para o destinatário – aquele mento faz referência ao fato - caro ao texto-base - de ela ter sido
que é instruído. índia. Nesse caso, os alunos parecem somente eleger a persona
gem cobra do texto-base, apagando qualquer referência ao pro
3. A réplica do escrevente-aluno: processos de subjetivação em cons- cesso de zoomorfização por que a índia passa ao ser encantada.
tituição
Ao circular pelo gênero “instruções” que, como vimos, cons- 03) “Era uma veis uma cobra gigante gostava come passarinho
titui-se como um dos possíveis modos de enunciação do discurso setor dia a cobra foi cassa passarinho ela viu um ninho de pas
didático-pedagógico, o escrevente “cita” de maneiras diversas o enun- sarinho e o filho estava dentro do ninho o passarinho estava
ciado instrutivo que orienta para o reconto do texto-base. Vejamos domido dentro do ninho de passarinho e o pai aparesseu comdo
três modos de “citação” possíveis de serem detectados nos textos a cobra estava pegando o ninho de passarinho comdo o pai
produzidos: aparesseu a cobra jatinha pegado o ninho de passarinho quan
do o pai aparesseu o ninho de passarinho não estava lá.” (Tex
i) Fixação quase exclusiva no enunciado interrogativo da instru to: O emquato da cobra grande)
ção e, mais especificamente, no início dele - no elemento
topicalizado “você”. Nesse caso, é interessante observar que Cremos que os modos de interpretação dos enunciados
o escrevente se representa como sujeito-locutor, como figura instrucionais pelos escreventes apontam para o registro de um mo-
textual que pode solucionar o problema do encanto da cobra. mento da história de leitura/escrita desses escreventes e, nesse senti-
Por outro lado e conseqüentemente, ao enunciar “eu”, o escre do, para a constituição – como já mencionamos – do processo de
vente supõe estar atendendo à própria solicitação, imposta pelo subjetivação em que se constituem como sujeitos-alunos com a tare-
enunciado interrogativo, de “arrumar” uma solução para fa de recontar histórias na escola.
aquele problema.
Referências bibliográficas
02) “Eu sou um guereiro muito valente e corajoso vou corta o
rabo da cobra e liberta a índia do feitiço e eu Jolbe vou liber ta a BAKHTIN, M. (1997). Os gêneros do discurso. In: ______. Estética
india da noça terra.” (Texto: A cobra grande) da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, pp. 277-326.
CHARAUDEAU, P. (1998). Las grandes problemáticas del análisis
ii) Contextualização da circunstância da quebra do encanto. Dá-se, de discurso. Estudos de Lingüística Aplicada. México: Universidad
nesse caso, a suposição do escrevente de que é necessário não Nacional de México/Centro de Enseñanza de Lenguas Extranjeras.
apenas garantir a relevância do enunciado interrogativo da ins Ano 16, no. 27.
KOCH, I. (1997). O texto e a construção dos sentidos. São Paulo
trução como também integrá-lo a uma configuração narrativa
(SP): Contexto, pp. 59-110.
que lhe atribua coerência. É assim que, ao retomar o texto-base,
MAINGUENEAU, D (1984). Genèses du discours. Liège: Mardaga.
inventa outra solução que não a proposta no mesmo, trazendo
SANTOS, S. N. G. (1999). O gesto de recontar histórias: gêneros
ao texto produzido outras referências intertextuais, tais como as
discursivos e produção escolar da escrita. Dissertação (Mestrado
relativas a textos mais próximos do gênero “contos de fadas”.
em Lingüística Aplicada). Universidade Estadual de Campinas/
Instituto de Estudos da Linguagem.
02) “Era uma vez uma índia muito bela e o Paje trasformou

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 341


Leitura e cidadania: uma prática em construção
Maria do Socorro Aguiar de Oliveira Cavalcante
Universidade Federal de Alagoas - UFAL

RÉSUMÉ: Ce travail s’agit d’une réflexion sur la pratique pédagogique et il propose des alternatives pour faire face aux défis actuels de l’enseignement
du portugais, vers un savoir-faire qui favorise le développement des habilités expressives et interprétative et possibilite une conscientisation des
contingences socio-idéologiques.
PALAVRAS-CHAVE – leitura, cidadania, prática- pedagógica.

1. Introdução A partir dessa perspectiva assumimos a leitura enquanto práti-


ca de produção de sentidos, historicamente determinada, um proces-
Falar em condições para o desenvolvimento da leitura, nos diz so de desvelamento, confronto, construção/desconstrução de senti-
Silva(1983.22): “é, ao mesmo tempo, colocar o problema das condi- dos por um sujeito determinado, que, inscrito em determinada condi-
ções reais para o desenvolvimento do próprio homem, dentro da ção sócio-histórica, diante de uma materialidade discursiva, identifi-
sociedade concreta.”. O acesso à palavra escrita, apresenta-se, pois, cando-se ou não com o sujeito/enunciante, com ele estabelece uma
como possibilidade de inserção do homem na sociedade política; interlocução – ratificando, refutando, re-significando os sentidos aí
possibilidade de construção de espaços públicos de vivência e de existentes.
realização de cada ser humano. Segundo Marshal (1988) é essa con- É a partir desse entendimento que se pode trabalhar a leitura,
quista do espaço político que permite a asserção dos direitos huma- não como um exercício mecânico de decodificação da palavra escri-
nos, a que só se tem acesso por meio da cidadania. Logo, não se pode ta, mas como uma prática social que possibilite a reflexão crítica e a
falar em conquista da cidadania sem a conquista da leitura. Mas o contestação, o que resulta, no dizer de Freire (1981.22), em uma “certa
que entendemos por cidadania? Embora seja tema freqüente na retó- forma de reescrever o mundo, quer dizer, de transformá-lo através
rica política e na legislação educacional brasileira percebemos que de nossa prática consciente.”.
quanto mais se fala em cidadania, mais se torna ambíguo o seu senti- Nessa perspectiva, não há sentidos dados. Eles são produzi-
do e menores são as condições políticas e conjunturais de sua reali- dos pelos sujeitos/leitores que carregam suas diferentes histórias de
zação. vida, diferentes experiências discursivas, diversas formas de lingua-
Conforme diz Lafer (1988.22): “cidadania é o direito a ter gem com as quais convivem em seu cotidiano e com as quais operam
direitos, pois a igualdade em dignidade e direitos dos seres humanos na sua relação com o mundo, pois, como nos diz Freire (1982.22): “a
não é um dado. É um construído de convivência coletiva, que requer leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura
o acesso ao espaço público.”. Como podemos perceber, o processo desta implica a continuidade da leitura daquela.” .
de construção da cidadania só se efetiva através do acesso igualitário Essa posição teórica sobre a leitura resulta, por sua vez, de um
ao espaço público; do acesso igualitário aos bens do desenvolvimen- entendimento de ensino enquanto mediação no processo de apropri-
to tecnológico; do acesso igualitário ao conhecimento científico his- ação do cotidiano e apropriação dos conteúdos escolares que permi-
toricamente produzido. Isso não é possível sem o domínio da leitura. tam a elucidação da realidade, ou seja, que possibilitem uma análise
No discurso oficial sobre os Parâmetros Curriculares Nacio- crítica da realidade, indo além das suas aparências e buscando com-
nais (1998:6-9), o ministro da educação afirma que: “os PCN foram preender os nexos das relações que a explicam e que são invisíveis
num primeiro momento.
elaborados para criar condições nas escolas, que permitam aos nos-
O desenvolvimento de uma ação metodológica nesse sentido,
sos jovens ter acesso ao conjunto de conhecimentos socialmente ela-
tem de levar em conta as experiências de vida do aluno, bem
borados e reconhecidos como necessários ao exercício da cidada-
como suas experiências de leitura. Para tanto, é necessário trazer,
nia. [...] e que possam garantir a todo aluno [...] o direito de ter
para a sala de aula, os problemas reais, do cotidiano, não pseudo
acesso aos conhecimentos indispensáveis para a construção da ci-
problemas e, a partir da problematização dessa realidade, trabalhar
dadania.”
as possibilidades de leitura (do recorte da realidade problematizada e
Como podemos perceber, segundo declarações oficiais, cabe
de textos a ela relacionados).
à escola a responsabilidade de possibilitar a todos que a ela têm aces-
so, “os conhecimentos indispensáveis para a construção da cidada- 2. Da leitura do mundo à leitura da palavra
nia. Entretanto, o que constatamos é que o cotidiano da escola ainda
está longe de se constituir em espaço a serviço da construção do ci- A experiência de ensino/aprendizagem que passaremos a rela-
dadão. Essa constatação nos aponta a necessidade de repensar alguns tar está embasada nas concepções progressistas e busca adotar a ori-
aspectos referentes às práticas adotadas em sala de aula. Fruto dessas entação paulofreiriana de que o ponto de partida para qualquer situ-
reflexões o presente trabalho propõe alternativas pedagógicas para ação pedagógica deverá ser a realidade do aluno. É também uma
fazer frente aos desafios que ora se colocam para a educação de um tentativa de estabelecer uma relação dialógica em sala de aula. Nossa
modo geral, e, de forma específica, para o ensino de Língua Portu- aula acontece em uma escola pública da rede estadual de ensino, em
guesa, no sentido de direcioná-lo rumo a um fazer que promova o uma turma de oitava série do ensino fundamental.
desenvolvimento de habilidades expressivas e interpretativas, bem Chegamos à sala de aula, às treze horas com um planejamento
como uma conscientização das contingências sócio-ideológicas. Essa pronto, que teria como tema gerador de discussões e estudos as rela-
prática possibilitará ao estudante o uso efetivo da língua, entendendo ções familiares. Ao constatar a sala repleta de alunos, fizemos um
suas manifestações e atuando como cidadão consciente, na busca de elogio à sua pontualidade – muito bem! de 45 alunos, apenas dois
sua emancipação. faltaram - ao que eles responderam:

342 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


- “Mas, todo dia não é assim não, professora.” De repente, entra a torcida do CRB que descia para assistir ao
- Por quê? Perguntamos. jogo no Trapichão. Uns dez cantavam músicas indecentes, outros
- “Por causa do ônibus,” disseram eles. ouviam rádio num volume horroroso, outros ficaram no corredor
A partir daí, resolvemos mudar nosso planejamento e elege- apertando e dificultando a passagem propositalmente. De repente,
mos, como tema, o transporte coletivo, na cidade de Maceió. Come- uma senhora começou a passar mal e como não conseguiu chegar à
çamos perguntando quais os problemas que eles enfrentavam, diari- janela, vomitou no colo de um passageiro que estava sentado. Foi
amente, nos transportes coletivos. Oralmente, foram enumerando o meio mundo de confusão.
que consideravam mais grave: Quase no final da viagem, aconteceu o pior. Um soldado à
- “número insuficiente de coletivos para atender à população; paisana e embriagado queria entrar pela dianteira do coletivo. Isso
- ônibus velhos e mal conservados; gerou uma discussão muito grande e o soldado agrediu fisicamente o
- alto preço das passagens; motorista. Este, bastante exaltado arrancou a arma da cintura, atirou
- ausência de dinheiro trocado, para troco; no soldado e fugiu.
- pessoal incompetente (cobradores e motoristas); Os passageiros, além de não terem chegado ao seu destino,
- os motoristas não param nos pontos ou não atendem ao ainda tiveram de servir de testemunha da tragédia.
pedido de parada dos usuários.”
Fizemos uma outra pergunta: na opinião de vocês, por que 2.1. Propostas de intervenção
essas coisas acontecem? Eles responderam:
- por causa da ganância dos empresários que só pensam em Após a apresentação dos textos, lançamos outro desfio: que
ganhar dinheiro; propostas eles teriam para melhorara a situação dos transportes cole-
- porque os poderes constituídos não se preocupam com a po tivos. Após muita discussão, surgiram várias propostas de interven-
pulação; ção que descreveremos a seguir. A primeira proposta foi a elabora-
- porque a SMTU não distribui bem as linhas (há empresas ção de panfletos que deveriam ser distribuídos com todos que os
que não circulam por ruas sem asfalto, enquanto isso, outras
operam os transportes coletivos. Cada grupo ficou encarregado de
ficam com os bairros mais distantes, com ruas esburacadas);
elaborar um panfleto dirigido a um setor que opera com os transpor-
- porque os transportes coletivos estão entregues a empresas
tes coletivos – empresários, motoristas, cobradores e usuários.
particulares;
- porque a população não se organiza e cobra, dos poderes
constituídos, providências para resolver esses problemas; SENHORES EMPRESÁRIOS,
- porque não existe fiscalização. É NECESSÁRIO MELHORAR AS CONDIÇÕES
Que conseqüências sofre a população por causa de todas essas DO TRANSPORTE COLETIVO
questões? Continuamos instigando a problematização e os alunos EM NOSSA CIDADE. PARA ISSO É PRECISO:
atenderam prontamente respondendo: - colocar mais ônibus nas linhas;
“- constantes acidentes, por causa de excesso de velocidade - conforto nos ônibus;
dos motoristas; - diminuir os preços das passagens;
- atraso aos compromissos porque os ônibus não passam no - fiscalizar a limpeza dos ônibus;
horário; - tirar veículos velhos de circulação.
- desentendimento entre cobradores e usuários e entre usuá-
rios e motorista;
- superlotação;
- desconforto; ATENÇÃO MOTORISTAS!
- invasão de transportes alternativos, na maioria, irregulares; - respeitem os usuários;
- discussões e até agressões dentro dos ônibus.”. - recebam a lotação certa;
Em seguida, perguntamos se eles já haviam passado por algu- - não ultrapassem a velocidade média;
ma situação cômica ou constrangedora ocorrida em um transporte - respeitem os sinais de parada;
coletivo. Tivemos de estabelecer uma ordem de relatos, pois, todos - não discutam com os usuários;
queriam contar suas experiências ao mesmo tempo. Em seguida, - não fumem em serviço;
propusemos que eles se organizassem em grupos e escrevessem
- esperem que os usuários se acomodem para dar
coletivamente um dos relatos feitos oralmente. Concluída essa ativi-
partida.
dade, pedimos que cada grupo apresentasse sua produção, registra-
da em uma folha de papel/madeira. Após a apresentação de cada
texto discutíamos com eles questões referentes à pontuação e à
coesão. Em seguida, pedimos que escolhessem o relato que, segun- SENHORES COBRADORES!
do eles, ilustraria melhor o tema problematizado. Transcreveremos, - sejam atenciosos com os passageiros;
a seguir, um dos escolhidos. - evitem confusões com os usuários;
- evitem a superlotação do veículo;
Uma viagem de cão - tenham sempre dinheiro trocado para o troco;
- não digam piadas desagradáveis.
Lúcia e eu estávamos no ponto do ônibus esperando o coletivo
que faz a linha Eustáquio Gomes/Trapiche. Eram aproximadamente
16 horas de uma quarta-feira chuvosa.
Quando o ônibus chegou, antes de Lúcia conseguir subir, o
motorista deu partida e Lúcia foi jogada para trás, caindo no ônibus.
Finalmente sentamos nas últimas cadeiras porque eram as únicas
que estavam vagas. O ônibus continuou seu percurso, pegando pas-
sageiros em cada ponto.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 343


que podem resultar em morte dos usuários.
SENHORES USUÁRIOS!
Em vista do exposto, solicitamos providências imediatas a fim
VOCÊS TAMBÉM SÃO RESPONSÁVEIS PELA
de melhorar o nosso transporte coletivo, ao tempo em que reivindica-
MELHORIA DOS TRANSPORTES COLETIVOS EM NOSSA
mos:
CIDADE. PARA ISSO É PRECISO:
- que as linhas sejam melhor divididas entre as empresas;
- respeitar uns aos outros;
- que os preços das passagens sejam congelados;
- respeitar cobrador e motorista;
- que sejam regularizados os horários de saída dos ônibus;
- não fumar dentro do ônibus;
- que seja concedida uma linha exclusiva para o CEAGB1 ;
- conservar os ônibus, exemplo: não pichando, não
- que seja concedida gratuidade nos transportes coleti-
rasgando os assentos;
vos, para os estudantes freqüentarem as aulas.
- não bater cartão 1 ;
Esperando ser atendidos em nosso pleito, subscrevemo-
- evitar ficar na porta;
nos.
- procurar ir antes para a frente, quando for descer;
Alunos da 8ª série, da Escola Professor Afrânio Lages
- não ‘maiar’2 se não for preciso.
3. Conclusão

Após essa atividade, perguntamos aos alunos se eles achavam Acreditamos que, trabalhando dessa maneira, estaremos trans-
que essa panfletagem seria suficiente para, pelo menos, reduzir os formando as aulas em um espaço impregnado de realidade e de dife-
problemas dos transportes coletivos. Após muita discussão eles re- rentes possibilidades de leitura, trazendo para dentro delas, não con-
solveram que teriam de ir à câmara de vereadores, convidar um vere- teúdos vazios, mas problemas reais, que permitam ao aluno questio-
ador para discutir o problema com eles, em sala de aula. Perguntaram nar a realidade, dissecá-la, enriquecer sua consciência através do con-
se isso era possível. Respondemos que, dependendo do compromis- tato com diferentes concepções de mundo. Estaremos possibilitando
so político do vereador em atender os interesses da população, seria ao aluno uma certa autonomia na produção do conhecimento, através
perfeitamente possível. Elegeram uma comissão que foi à câmara, de uma interação/intervenção consciente. Estaremos possibilitando
fez o convite e uma vereadora aceitou ir à sala de aula, debater o o acesso a um conhecimento que lhe permitirá entender melhor não
assunto com os alunos. só o texto escrito, mas a realidade em que vive, desvelando-a, desco-
Para o debate, que foi riquíssimo, reservamos um dia de duas brindo sua identidade e buscando formas de nela atuar. A prática
horas seguidas de aula. A entrevista foi planejada com antecedência. social será, pois, ponto de partida e ponto de chegada.
Os alunos bombardearam a vereadora com perguntas (transcritas a Assim será possível superar a assimilação servil do conheci-
seguir) que impressionaram pela maturidade e seriedade. mento via transmissão/recepção passiva. Será possível estabelecer
1. como são feitos os cálculos dos percentuais de aumento de uma unidade entre a relação teoria/prática do conhecimento
passagens e dos índices de lucro; lingüístico/conhecimento pedagógico/realidade social, fornecendo ao
2. quais os critérios para concessão e distribuição de linhas de educando uma visão crítica da realidade em que se insere.
ônibus; Por outro lado, a escola estará cumprindo o seu papel social de
3. existe fiscalização das empresas, por parte do município; formar cidadãos críticos, forjadores conscientes de um projeto histó-
4. quais os critérios para a gratuidade de passagens; rico. Dessa maneira, é possível existir unidade entre escola e vida,
5. existe verba para a conservação das vias; pois, estaremos trabalhando não com uma língua código, inerte, sem
6. de onde vem essa verba e como é distribuída; nenhuma significação para o aluno, mas, ao contrário, estaremos for-
7. como é a relação empresários/governo municipal; necendo meios para que ele busque formas de reivindicar seus direi-
8. por que o transporte coletivo do município é feito por empre- tos, solucionando problemas do cotidiano.
sas privadas, até de outros Estados?
Finalizando, entregaram à vereadora o documento 4. Referências bibliográficas
reivindicatório (transcrito a seguir), elaborado coletivamente, em aulas
anteriores. A parlamentar assumiu o compromisso de lê-lo no plená- BAKHTIN, Mikhail – Marxismo e Filosofia da linguagem. São Pau-
rio da câmara. lo, Hucitec, 1981.
FREIRE, Paulo – Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro, Paz e
Maceió, 14/04 de 1998 Terra, 1975.
____________ - A importância do ato de ler São Paulo, Cortez,
Senhores vereadores, 1987.
GERALDI, João Wanderley – O texto na sala de aula: leitura e pro-
Após discutirmos em sala de aula, os problemas referentes ao dução. Cascavel1985
transporte coletivo do nosso município, constatamos que o nosso LAFER, Celso – A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo
sistema de transportes urbanos encontra-se em situação bastante com o pensamentode Hannah Arendt. São Paulo, Companhia das
precária. Os veículos, além de insuficientes para atender à popula- letras. 1988.
ção, são velhos, mal conservados, não apresentando condições de LIBÂNEO, José Carlos – “Tendências pedagógicas na prática esco-
conforto e segurança. Além disso, enfrentamos problemas com os lar” In: LUCKESI Cipriano Carlos – Filosofia da educação São
funcionários incapacitados. Paulo, Cortez, 1994.
Essa situação provoca sérios prejuízos à população que além ORLANDI, Eni Puccinelli – Interpretação autoria, leitura e efeitos
de não ser bem servida, está sujeita a desentendimentos e acidentes do trabalho simbó-lico. Petrópolis, Vozes, 1996.

344 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Gênero discursivo e leitura:
a constituição dos gêneros
Vanice Maria Oliveira Sargentini
Univ. Federal de São Carlos – SP

ABSTRACT: Based on the French Discourse Analysis theoretical perspective and on the Bakhtin’studies, this paper aims to explore the discorsive
genres. To this discussion, we intends to take the discousrive genres as a means of teaching.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero discursivo – leitura –análise do discurso -ensino

Introdução elaborados pela comunicação verbal mais complexa (discurso literá-


rio, científico, filosófico). Os gêneros não devem ser considerados
Este artigo pretende apresentar reflexões sobre a constitui- como classes isoladas, mas como esferas da atividade de linguagem
ção dos gêneros discursivos. Consideramos que a linguagem acom- que abrigam um processo combinatório inacabado ( as interações
panha todas as atividades humanas, o que indica que é possível ha- cotidianas são a representação do mundo sempre em movimento) e
ver tantos gêneros de discurso quantas atividades humanas. A noção acabado (princípio da construção estética dos gêneros discursivos,
de gênero em Bakhtin (1992) e em outros pontos de seus estudos deflagrando um modo de dar corpo às experiências).
abrem perspectivas para a análise das relações entre a expressão da As reflexões de Bakhtin gestaram nos estudos de Análise do
individualidade e as pressões sociais que a determinam. Assim, con- Discurso de linha francesa concepções para a classificação dos dis-
sidera-se que o enunciador, imerso em uma sociedade, possui um cursos, considerando-os por vezes investido em um gênero que pare-
projeto discursivo e os gêneros do discurso apresentam recursos para ce estável, porém, suscetível a freqüente instabilidade.
a expressão. Abandonando, portanto, a concepção tradicional que conside-
São, portanto, os conceitos de dialogismo e de gênero desen- rava os gêneros como espécies de “quadros”, nos quais se encaixa-
volvidos por Bakhtin que sustentam nossos estudos. Ao concordar- vam os discursos, a Análise do Discurso de linha francesa focaliza
mos com Bakhtin que a lista de gêneros, nesta perspectiva, é primordialmente o posicionamento socio-histórico do discurso. As-
indeterminada, torna-se nossa tarefa considerar as coerções genéri- sim, considera de que maneira determinada formação discursiva in-
cas que determinam a enunciação. veste um gênero. Como exemplo da pertinência deste enfoque pode-
A análise de gêneros que circulam na sociedade e as leituras mos resgatar as diferentes formas de investimento da imprensa ope-
que os textos permitem criando novas significações serão exemplos rária de acordo com a formação discursiva.
para nossas reflexões. Vejamos o discurso anarquista que inaugura no Brasil uma
tipologia que circula na imprensa operária. Os jornais, escritos pelos
1.A constituição dos gêneros operários anarquistas, distribuídos nas fábricas, possuíam textos
narrativos, com ensinamentos morais, buscando incitar o leitor a uma
Dentre as contribuições de Bakhtin para os estudos atuais, as revolta social que levaria os trabalhadores conscientizados a uma in-
reflexões sobre gênero são as que melhor ilustram algumas mudan- surreição popular. Esses textos, que no início do século (1900 a 1930)
ças de paradigma nos estudos da linguagem. Para Bakhtin (1992), a caracterizavam um tipo de discurso da imprensa operária, hoje, cir-
linguagem caracteriza-se pela presença de gêneros do discurso que culam nos meio acadêmicos como contos anarquistas, de cunho lite-
mobilizam diferentes esferas da enunciação: rário. Observa-se ainda que o gênero da imprensa operária não é
investido da mesma maneira pelos anarquistas, pelos operários de
“ Qualquer enunciado considerado isoladamente é, claro, in- ideal comunista e pelos trabalhadores sindicalizados da atualidade.
dividual, mas cada esfera de utilização da língua elabora seus Assim, consideramos, portanto, que a cada gênero do discurso asso-
tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que cia-se um contrato específico, o qual leva em conta as relações entre
denominamos gênero do discurso” (Bakhtin, 1992: 279) enunciadores e enunciatários, as circunstâncias temporais e o local
da enunciação, os suportes e os modos de difusão. Os contos anar-
Bakhtin considera que os gêneros possam ter uma relativa es- quistas, hoje, não têm como enunciatários trabalhadores a serem
tabilidade e, portanto, não os encerra em uma estrutura determinada. conscientizados do ideal libertário, mas leitores que por intermédio
Assim, a noção de gênero do discurso abre perspectivas para análise dos textos reconstituem a história das reivindicações trabalhistas. O
das relações existentes entre a atividade de linguagem, as determina- suporte desses contos migrou dos jornais operários para uma publi-
ções socio-históricas e o acontecimento enunciativo. cação em forma de livro, nomeada de ‘Contos anarquistas’, em no-
O conceito de gênero nos estudos bakhtinianos é plural. Os vas circunstâncias temporais.
gêneros discursivos representam unidades abertas de cultura que abri- Nesta concepção, cada formação discursiva caracteriza-se pelo
gam formas particulares de ver o mundo e de consolidar visões de investimento de certos gêneros com o sacrifício de outros. As narra-
mundo de épocas históricas. Nesta concepção o gênero não se trata ções com ensinamentos morais características dos jornais anarquis-
de uma estrutura acabada com categorias formais e hierarquias, mas tas, sacrificavam o gênero literário, da mesma forma que, hoje os
o investimento de diversificadas formas de se pensar o mundo e a contos anarquistas, sacrificam o reconhecimento dos gênero carac-
história humana. terístico da imprensa operária.
A associação dos gêneros a grandes tipos de discurso é apre-
sentada por Bakhtin por dois conjuntos que privilegiam o ponto de 2. O gênero: do conceito lingüístico ao trabalho escolar
vista histórico: gêneros primeiros, que correspondem às interações
da vida cotidiana e os gêneros segundos (ou secundários), aqueles Os Parâmetros Curriculares Nacionais, a seu modo, trazem

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 345


para o ensino a reflexão sobre gênero ao tomar o texto como unidade e 4. O gênero deflagrando a leitura de novas significações.
considerar que:
“Todo texto se organiza dentro de determinado gênero em fun- Apoiar-nos-emos no texto de Thiago de Mello para análise
ção das intenções comunicativas, como parte das condições de pro- do gênero discursivo e suas implicações para a interpretação do tex-
dução dos discursos, as quais geram usos sociais que os determinam. to.
Os gêneros são, portanto, determinados historicamente, constituindo
formas relativamente estáveis de enunciados, disponíveis na cultura. Os estatutos do homem
São caracterizados por três elementos: conteúdo temático, constru- (Ato Institucional Permanente)
ção composicional e estilo.” (Brasil, 1998:21)
A Carlos Heitor Cony
Ressalta-se, ainda, que “a noção de gênero, constitutiva do
texto, precisa ser tomada como objeto de ensino”, privilegiando a ARTIGO I Fica decretado que agora vale a verdade,
diversidade de textos e gêneros já que textos pertencentes a diferen- que agora vale a vida,
tes gêneros são organizados de diferentes formas. Propõe-se, dessa e que de mãos dadas,
forma, o “abandono da crença da existência de um gênero prototípico trabalhemos todos pela vida verdadeira.
que permitiria ensinar todos os gêneros em circulação”(Brasil, ARTIGO II Fica decretado que todos os dias da semana,
1998:24). Entretanto, ao considerar que a diversidade de gêneros é Inclusive as terças-feiras mais cinzentas,
ilimitada, os parâmetros curriculares apontam que é preciso priorizar têm direito a converter-se em manhãs de domingo.
os gêneros que devem merecer abordagem mais aprofundada,.No que ARTIGO III Fica decretado que, a partir deste instante,
tange aos textos escritos, recomenda-se “privilegiar textos de gêne- haverá girassóis em todas as janelas,
ros que aparecem com maior freqüência na realidade social e no uni- que os girassóis terão direito
verso escolar, tais como notícias, editoriais, cartas argumentativas, a abrir-se dentro da sombra;
artigos de divulgação científica, verbetes enciclopédicos, contos, ro- e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro,
mances, entre outros”(Brasil, 1998:26). abertas para o verde onde cresce a esperança.
Partindo das propostas dos parâmetros, gostaríamos de aqui ARTIGO IV Fica decretado que o homem
destacar a importância de tomar-se a noção de gênero como objeto não precisará nunca mais
de ensino, uma vez que tememos que por um deslizamento de senti- duvidar do homem.
do, possa se restringir o ensino de gênero à utilização na escola de Que o homem confiará no homem
uma diversidade textual, investida em gêneros diversos. Defende- como a palmeira confia no vento,
mos, portanto, que a noção de gênero abre perspectivas para análise como o vento confia no ar,
das relações existentes entre a atividade de linguagem, as determina- como o ar confia no campo azul do céu.
ções socio–históricas e o acontecimento enunciativo e que ao se con- PARÁGRAFO ÚNICO. O homem confiará no homem
siderarem tais relações legitimam-se novas leituras. como um menino confia em outro
menino.
3.Gênero discursivo: alguns exemplos para reflexão ARTIGO V Fica decretado que os homens
estão livres do jugo da mentira.
Podemos, simulando uma atividade numa outra, desviar um Nunca mais será preciso usar
gênero de seu destino e contribuir, assim, num determinado momen- a couraça do silêncio
to da história para o aparecimento de novas variedades entre a infini- nem a armadura de palavras.
ta variedade de gêneros. Tomemos, como exemplo, as famosas recei- O homem se sentará à mesa
tas de bolo publicadas no contexto da ditadura militar; a construção com seu olhar limpo
composicional obedecia aos padrões de receita, já o conteúdo temático porque a verdade passará a ser servida
quebrava a expectativa do que seria dizível por meio deste gênero. antes da sobremesa.
Além disso, os gêneros se encaixam para criar efeito de veraci- ARTIGO VI Fica estabelecida, durante dez séculos,
dade e credibilidade ao enunciatário; é o caso de uma propaganda a prática sonhada pelo profeta Isaias,
que circula na mídia televisiva neste primeiro semestre de 2001, na e o lobo e o cordeiro pastarão juntos
qual um conceituado médico ao recomendar os cuidados para conter e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
a dengue, profere o discurso do lugar da ciência, porém investido em ARTIGO VII Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado
um discurso didático, promovendo, portanto, um apagamento do dis- permanente da
curso científico. justiça e da claridade
As músicas, atualmente, têm seus gêneros definidos a partir da e a alegria será uma bandeira generosa
formação discursiva da qual estão investidas. Embora, hip hop, rap e para sempre desfraldada na alma do povo.
funk possuam estrutura composicional semelhante, distinguem-se em ARTIGO VIII Fica decretado que a maior dor sempre foi e sempre
relação ao conteúdo temático. O primeiro privilegia um discurso de será
denúncia das causas sociais, enquanto o segundo ocupa-se das cau- não poder dar-se amor a quem se ama
sas comunitárias; já o funk focaliza a alegria das festas de uma soci- e saber que é a água que dá á planta o milagre da flor.
edade marginalizada, porém não declara em seu discurso comprome- ARTIGO IX Fica permitido que o pão de cada dia
timento com as causas sociais. tenha no homem o sinal de seu suor.
Tais exemplos permitem-nos destacar a importância de tomar Mas que sobretudo tenha sempre
o gênero como objeto de ensino, ressaltando que o gênero traduz o quente saber da ternura.
relações complexas que o homem mantém com o mundo por meio da ARTIGO X Fica permitido a qualquer pessoa,
linguagem. a qualquer hora da vida,
o uso do traje branco.

346 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


ARTIGOXI Fica decretado, por definição, temas e figuras que retratam poeticamente os valores da vida, da
que o homem é um animal que ama verdade, da liberdade e do respeito. Fala-se , por forma de artigos, de
e que por isso é belo, um agora que se opõe a um tempo de antes (Fica decretado que agora
muito mais belo que a estrela da manhã. vale a verdade, que agora vale a vida), convidando o enunciatário a
ARTIGOXII Decreta-se que nada será obrigado nem proibido. reconhecer dois tempos, marcados por duas formações ideológicas
Tudo será permitido, distintas, sendo que a presença discursiva de uma, implica a existên-
inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar cia da outra.
pelas tardes Consideramos que o gênero discursivo oferece uma interfe-
com uma imensa begônia na lapela rência decisiva na interpretação do discurso e aliamos a isso o papel
PARÁGRAFO ÚNICO. Só uma coisa fica proibida: central que na Análise do Discurso atribui-se às condições de produ-
amar sem amor. ção. No texto analisado, a construção composicional, característica
ARTIGO XIII Fica decretado que o dinheiro de um ato, e as informações de um tempo e lugar de produção do
não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs texto remetem-nos aos quadros da nossa história de repressão, marcada
vindouras pela ditadura militar, quando governar por atos e decretos era um
Expulso do grande baú do medo, procedimento freqüente. Criar, portanto, um texto que encaixa gêne-
o dinheiro se transformará em uma espada fraternal ros diversos como o oficial, o epistolar, o literário, em uma formação
para defender o direito de cantar discursiva de antimilitarismo, produzindo uma denúncia velada para
e a festa do dia que chegou. não cair nas malhas da censura, é tarefa nobre. Assim, para interpre-
ARTIGO FINAL Fica proibido o uso da palavra liberdade, tar esse discurso é preciso não apenas reconhecer alguns gêneros,
a qual será suprimida dos dicionários mas resgatá-los para deflagrar a leitura de novas significações.
e do pântano enganoso das bocas.
A partir deste instante 5. Considerações finais
a liberdade será algo vivo e transparente
como um fogo ou um rio, As reflexões apresentadas encaminham-nos a ressaltar que a
e a sua morada será sempre noção de gênero deve ser tomada como objeto de ensino, uma vez
o coração do homem. que a análise do gênero, ou do encaixe de gêneros investidos em um
texto desencadeiam significações que reclamam novas interpretações.
(Santiago do Chile, abril de 1964)

O texto acima caracteriza-se pela variedade de gêneros que Referências bibliográficas


abriga. A construção composicional é de um ato institucional, pelo
qual, em declaração solene, o governo baixa um regulamento, porém BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fon-
aí já surgem as primeiras subversões, pois o ato não tem a autoria tes, 1992.
governamental; ele é assinado por um poeta. Além disso o ato é uma BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros
declaração pública que tem como enunciatário a comunidade. Esse curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fun-
ato é endereçado, particularmente, a uma pessoa – o escritor Carlos damental: língua portuguesa/ Secretaria de Educação Fundamen-
Heitor Cony -, mescla-se, portanto, neste ato a característica epistolar. tal. – Brasília: MEC/SEF, 1998.
Se consideramos que a construção composicional é de um documen- MELLO, Thiago de Faz escuro mas eu canto. 4.ed. Rio de Janeiro,
to oficial (ato), paradoxalmente o conteúdo temático faz referência a Civilização Brasileira, 1978, p. 19-22

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 347


Gênero e materialidade discursiva: como a
propaganda turística ressignifica o espaço nordestino
Maria Regina Baracuhy Leite
Universidade Federal da Paraíba – PG Unesp Araraquara

ABSTRACT: Based on Bakhtin’s gender conception and on J. Authier-Revuz’s theory, we intend to discuss, in this paper, how the northeastern space
is built in the touristic advertisement´gender.
PALAVRAS-CHAVE: 1. Análise do Discurso 2. Gênero 3.Materialidade discursiva 4. Propaganda turística

1. Discurso, Gênero e Sentido cípio estruturador da linguagem, posto que ela se constitui a partir de
um incessante diálogo que se estabelece entre um eu e um tu, sujeitos
Nestas considerações inicias, pretende-se discutir a relação entre
historicamente instaurados em uma dada esfera da comunicação ver-
o discurso, o gênero e o sentido. Para tanto, utilizaremos, como apa-
bal e entre discursos sociais que configuram uma cultura, uma socie-
rato teórico, as reflexões de Mikhail Bakhtin sobre os gêneros do
dade. Portanto, a alteridade constitutiva do discurso apresenta, para
discurso, sobretudo em sua obra Estética da Criação Verbal (1997),
Bakhtin, uma dupla e indissociável dimensão: a da intersubjetividade,
bem como os pressupostos da Análise do Discurso de linha francesa,
o discurso do eu se constitui pelo discurso do outro e a da
edificada por Michel Pêcheux.
interdiscursividade, em que se entrelaçam discursos sociais. É por
Tanto Bakhtin como Pêcheux entendem o discurso enquanto
este viés que o pensamento bakhtiniano se encontra com a Análise
processo social, determinado, regulado pela ideologia. Isto significa
do Discurso, cujo objeto de estudo é o interdiscurso
entendê-lo indissoluvelmente ligado ao contexto histórico, social.
(Maingueneau:1989), ou seja, a relação de um discurso com outrem,
Em sua materialidade (seja ela verbal ou não-verbal), o discurso re-
através da qual se delineia o vínculo da língua com o social e, conse-
vela a articulação do lingüístico (ordem estrutural) com a sua
qüentemente, com a história e a memória.
exterioridade constitutiva (ordem sócio-ideológica).
Baseada no princípio bakhtiniano de constituição dialógica do
A grande diferença entre essa forma de pensar o discurso
discurso, Jacqueline Authier-Revuz (1982) desenvolve a teoria da
(e a língua, por extensão) e a lingüística da imanência é que esta se
heterogeneidade enunciativa. Percebendo a importância do Outro no
preocupa em estudar a língua como um sistema abstrato de signos,
processo discursivo, ela afirma que:
possíveis de serem descritos em níveis como o fonológico, o sintáti-
“sous nos mots, ‘dautres mots ‘ se disent: que derrière la
co, o morfológico. Dessa perspectiva, exclui-se a relação da língua
linéarité conforme a l’emission par une seule voix, se fait
com o contexto sócio-ideológico que ela se insere, limitando-se à
entendre une ‘poliphonie’ et que ‘tout discours s’avère s’aligner
abordagem dos fatos lingüísticos ao aspecto estrutural, à descrição
sur le plusieurs partées d’une position’; que le discours est
sincrônica do sistema formal da língua. De acordo com Fiorin
constitutivement traversé par ‘le discours de l’Autre’. “(p. 140-
(1990:5):
141)
“A partir do momento em que se constitui como ciência au-
Portanto, todo discurso é sempre habitado por outros discur-
tônoma, a lingüística passou a estudar internamente a lin-
sos e se destina a um interlocutor, daí ser ele constitutivamente he-
guagem. A maioria dos lingüistas não mais se preocupou com
terogêneo. Em alguns discursos, essa relação não está explícita, o
as relações entre a linguagem e a sociedade, não mais cuidou
Outro se “esconde” no nível enunciativo da heterogeneidade. Quan-
das vinculações entre a linguagem e os homens que dela fa-
do isso ocorre, J. Authier-Revuz afirma que ocorre a heterogeneidade
zem uso.”
constitutiva. Entretanto, esta também pode se encontrar “marcada”,
Por outro lado teóricos como Bakhtin e Pêcheux consideram a
“mostrada” na materialidade do discurso, evidenciando o movimen-
língua enquanto estrutura viva, dinâmica, em funcionamento, por-
to de inscrição do exterior no interior discursivo, ao explicitar a pre-
tanto, trazem, para os estudos lingüísticos, o sujeito (construído
sença do Outro no fio do discurso. A esse processo, Authier-Revuz
discursivamente) e a História. Ocorre então uma mudança de
(op.cit.) nomeia de heterogeneidade mostrada, manifesta explici-
paradigma e a língua passa a ser estudada, não somente em relação a
tamente na superfície textual. O conceito de heterogeneidade refere-
seus elementos internos, mas também na dimensão sócio-histórica
se, portanto, às diversas perspectivas, aos diversos pontos de vista,
que a determina.
às diversas vozes que, articuladas pelo enunciador, são incorporadas
Em suas profícuas reflexões sobre a linguagem, Bakhtin enfoca
ao seu discurso.
três conceitos que a regulam: a ideologia, o dialogismo e o gênero.
Sendo o discurso de natureza social, heterogênea, deduz-se
Para o mestre soviético, a palavra é o veículo ideológico, por exce-
que não é possível falar o que se quer no momento em que se quer,
lência. Segundo ele, “as palavras são tecidas a partir de uma multi-
uma vez que o discurso é determinado pelas estruturas sociais. Se-
dão de fios ideológicos e servem de trama a todas as relações soci-
gundo Bakhtin, cada esfera da atividade e da comunicação humana é
ais em todos os domínios” (1992:41)
composta por “formas típicas de enunciados, isto é, os gêneros do
A natureza social da linguagem está diretamente relacionada
discurso”.(1997: 301)
com a ideologia. Esta, por sua vez, funda-se no princípio da contra-
O pensador russo distingue os gêneros em primários (simples)
dição, isto é, no interior de uma dada ideologia, confrontam-se os
e secundários (complexos). Os primários dizem respeito à atividade
valores sociais, que refletem a luta de classes. Por isso, afirma
lingüística relacionada com os discursos orais – linguagem cotidia-
Bakhtin ( op.cit.) que “ a palavra é a arena onde se desenvolve a
na, familiar, a carta pessoal, etc., já os secundários – discursos literá-
luta de classes”, é o palco de vozes, polêmicas, contraditórias, con-
rios científico, entre outros -, são elaborados por meio de uma comu-
vergentes, sempre plural.
nicação cultural mais complexa, principalmente escrita. Entretanto,
Em conseqüência disso, ele institui o dialogismo como o prin-
Bakhtin assinala que os gêneros não são categorias estanques, pelo

348 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


contrário, se interpenetram. Por exemplo, o discurso jornalístico pode vel de materialidade não-verbal, através de imagens que se sobre-
servir-se da forma de uma carta pessoal para veicular uma dada men- põem com a exibição simultânea de esporte (windsurf), gente bonita,
sagem. Salienta-se que a incorporação de um gênero por outro impli- alimentação farta, orla exuberante...
ca redimensionamento dos sentidos que, ao migrarem, adquirem no- Quase todas as propagandas sobre o Litoral trazem pala-
vas significações. vras ou expressões em inglês (point, Condé Nast Traveler, Beach
Enfim, os gêneros discursivos regulam o modo de dizer de Park, entre outros), marcas discursivas que denunciam o discurso-
uma dada sociedade em uma determinada época. A esse respeito, Outro, o do estrangeiro, cuja voz dá credibilidade à informação vei-
sintetiza Brait (2000): culada e expressa a representação do “ser chic” e “ter status.”
“o gênero discursivo diz respeito às coerções estabelecidas Na propaganda do litoral paraibano (janeiro/1997), esse
entre as diferentes atividades humanas e os usos da língua discurso do eldorado brasileiro se repete, a começar pelo título: “O
nessas atividades, ou seja, as práticas discursivas implicam Paraíso Existe”. Eis o texto:
necessariamente coerções.” “São quilômetros de praias que se sucedem em enseadas co-
Partindo da premissa de que o gênero condiciona as práticas bertas de areia branca, as águas sempre mornas, o coqueiral
discursivas e de que estas se materializam em formas textuais crista- soprando uma brisa preguiçosa. O cenário pode até ser plu-
lizadas, pretendemos verificar, a seguir, através de que estratégia o ral no Nordeste, mas é singular em João Pessoa, por um
espaço nordestino é redimensionado no gênero propaganda turística. determinismo geográfico: é aqui onde fica o extremo oriental
das Américas – a Ponta do Seixas, no Cabo Branco.
2. Como a propaganda turística redimensiona o espaço nor- (...) “O point mais festejado da orla, no entanto, é Tambaú,
destino com seus hotéis de luxo, restaurantes internacionais e regionais, ba-
res, boates...
A propaganda é um instrumento de manipulação social que E, ao final conclui: “Um passeio pela foz do rio Paraíba é outra
integra nosso cotidiano. Pretende-se não apenas vender o produto, alternativa a indicar que o paraíso existe e está em João Pessoa”.
mas fazer crer que, além do seu valor utilitário, ele possui, principal- Esses discursos dialogam entre si, tanto em nível de
mente, um valor simbólico, que confere status e poder para quem materialidade verbal: praias, coqueirais, gente alegre e feliz — mes-
adquire. Segundo Bourdieu (1998:53): mo tema e figuras —, como em nível de materialidade não-verbal,
“os discursos não são apenas (a não ser excepcionalmente) com imagens que não apenas reforçam, mas ampliam o que está dito
signos destinados a serem compreendidos, decifrados; são nos textos. Essa rede temática, que vai se tecendo pela circulação e
também signos de riqueza a serem avaliados, apreciados, e repetição do mesmo tema e figuras, vai construindo uma representa-
signos de autoridade a serem aceitos e obedecidos.” ção do espaço litorâneo enquanto lugar paradisíaco ideal para o tu-
O discurso da propaganda afeta nossas práticas, comportamen- rismo e o lazer.
tos, condutas. É possível vislumbrar, através do estudo da propagan- A materialidade não-verbal do discurso da propaganda é, ge-
da, uma síntese da história, dos costumes e valores de uma dada soci- ralmente, mais impactante que a verbal. A eficácia da imagem advém
edade. A propaganda refrata um dado momento social. Isso significa de sua polifonia, do atravessamento de discursos que a constitui. Para
que, além de ser retratado, ele também é interpretado. Desse modo, Gregolin (2000):
não há uma relação transparente entre o homem, o mundo e a lingua- “O poder da imagem é o de possibilitar o retorno de temas e
gem, mas essa tríade inseparável é construída no discurso da pro- figuras do passado, colocá-los insistentemente na atualidade,
paganda. Tal construção é possibilitada pela linguagem, matéria-pri- provocar sua emergência na memória do presente. A imagem
ma desse tipo de discurso. traz discursos que estão em outros lugares e que voltam sob a
O corpus desse trabalho é composto por textos de propaganda forma de remissões, de retomadas e de efeitos de paráfrases.
turística oficial sobre o Nordeste, que circulam nos meios de comu- Por estarem sujeitas aos diálogos entrediscursivos, elas não
nicação de massa. Especificamente, serão analisadas duas propagan- são transparentemente legíveis, são atravessadas por falas que
das sobre o Ceará : uma que se encontra na revista Veja nº 45 de 10 vêm do seu exterior – a sua colocação em discurso vem clivada
de novembro de 1999 e outra na mesma revista de 15 de dezembro de de pegadas de outros discursos”.
1999, bem como uma propaganda sobre o litoral paraibano, divulgada Em relação às propagandas analisadas, verifica-se que as ima-
na mídia pela Secretaria de Transportes e Turismo da Prefeitura Mu- gens fragmentadas, justapostas se constituem de vozes recorrentes,
nicipal de João Pessoa desde janeiro de 1997. complementares, que funcionam como um desdobramento
Há, na mídia, duas representações do espaço nordestino que se parafrástico do verbal, criando com este, um efeito de identidade.
destacam: uma que diz respeito ao Sertão, em que a fome, a seca, a Esse movimento harmonioso do olhar que passa do visível ao nome-
pobreza e a miséria são focos centrais e outra que se reporta ao Lito- ado e vice-versa é uma das estratégias do discurso da propaganda
ral, cujos temas e figuras versam sobre belas praias, gente alegre e que visa, sobretudo, a persuadir o leitor a crer na veridicção da men-
feliz, hotéis luxuosos, enfim, o eldorado brasileiro. É desse discurso sagem com o objetivo de suscitar-lhe o desejo de comprar o produto
que a propaganda turística oficial se apropria, como mostra esse tex- anunciado.
to sobre o Ceará. Enveredando um pouco no campo do interdiscurso, da memó-
“Não foi por acaso que o Ceará foi indicado pela revista Condé ria discursiva, verifica-se que a representação social da costa brasi-
Nast Traveler como um dos points turísticos mais quentes do leira como eldorado tropical, vem sendo construída desde o discurso
novo milênio. É que aqui, a temperatura de 27 graus é tão do Descobrimento e remonta à carta de Caminha, em que este se
constante como o clima da nossa gente: alegre, divertida e refere ao Brasil como “a terra de muitos bons ares” onde “as águas
feliz. Você vai ver estrelas, relaxar, festejar, saborear, dançar, são muitas e infindas. E em tal maneira é graciosa (a terra) que
cantar, descobrir, velejar, surfar, desejar, namorar, se fartar. querendo aproveitá-la, tudo dará nela, por causa das águas que tem”.
Isso é que é vida.” Esse discurso de cunho idílico ecoa em outros discursos, como
A heterogeneidade mostrada é sinalizada no texto por meio o literário. Veja-se a célebre “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias:
de marcas lexicais e sintáticas — uso de verbos transitivos (festejar, “Minha terra tem palmeiras / Onde canta o sabiá / As aves que aqui
descobrir, desejar) que sugerem infinitos complementos e nessa gorjeiam / Não gorjeiam como lá”.
incompletude, possibilitam inumeráveis sentidos, bem como em ní- Esse ufanismo, que se materializa através de construções

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hiperbólicas, encontra coro no discurso da propaganda, cujas imagens dencia o caráter de manipulação do discurso da propaganda, cuja fina-
intensificam o sentido do texto verbal, no qual se relata a apresenta- lidade maior é seduzir.
ção do Beach Park, complexo turístico do Ceará: A construção do discurso da propaganda turística sobre o Nor-
“Beach Park é o maior parque aquático da América Latina, deste ocorre por meio de processos parafrásticos. Segundo Orlandi (
na beira do mar, debaixo dos coqueiros, no topo do mundo. É a 1999:36)
diversão mais quente do planeta”. (15/12/1999) “os processos parafrásticos são aqueles pelos quais em todo
Ressalte-se que, nessa propaganda, há um deslocamento de dizer há sempre algo que se mantém, isto é, o dizível, a memó-
sentidos na construção do paraíso. Ela pode nos fazer lembrar outros ria. A paráfrase representa assim o retorno aos mesmos espa-
discursos, como a carta de Caminha, trazendo para o presente, uma ços do dizer. Produzem-se diferentes formulações de um mes-
memória do passado, mas também ressignifica esse discurso, ampli- mo dizer sedimentado.”
ando e fazendo emergir outros sentidos, por exemplo, ao descrever Embora o discurso da propaganda turística sobre o Nordeste
as peculiaridades de um espaço outro: o da cidade de Fortaleza. aconteça nesse espaço do repetível, do “mesmo”, é também a partir
Observa-se que, sob as vozes do discurso da propaganda so- dele que se instaura o “diferente”. Por isso, em cada propaganda,
bre o Litoral nordestino, submergem outros discursos sociais (como ressoam vozes do passado e, ao mesmo tempo, ecoam vozes do pre-
o literário, o geográfico), vestígios de uma memória, que é constan- sente, que retomam fatos atuais e peculiaridades dos espaços que a
temente reatualizada, remodelada, resignificada. No entanto, é ela propaganda anuncia.
que constitui e possibilita a constelação de sentidos daquele discur- Entendemos a propaganda turística como um gênero comple-
so. Por isso, para a AD, não existe discurso autofundado, de origem
xo (na acepção de Bakhtin), caracterizado por diálogos entre discur-
absoluta, uma vez que “enunciar é se situar sempre em relação em
sos, através dos quais se constróem estereótipos e silenciamentos,
relação a um já-dito que se constitui no Outro do discurso”. (Brandão,
com o objetivo de seduzir o consumidor
1991, p. 77)
Em oposição ao discurso paradisíaco do Litoral, constituindo-
4. Referências bibliográficas
o “pelo avesso”, surgem os que tratam do Sertão, cujos temas, tam-
bém recorrentes, são a seca, a fome, a miséria. Esses discursos já se
cristalizaram no imaginário social, não só pela divulgação na mídia, AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. “Hétérogénéité montrée et
mas também pela reiteração no discurso literário. Citem-se como hétérogénéité constitutive: eléments pour une approche de l’autre
exemplos: Os Sertões de Euclides da Cunha, A Bagaceira de José dans le discours”. DRLAV, nº 26, 1982.
Américo de Almeida, Vidas Secas de Graciliano Ramos, entre ou- BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética (A teoria
tros. O silenciamento / apagamento desses discursos nos textos de do romance). 2ed., São Paulo: Hucitec,1990.
propaganda sobre o Nordeste é significativo. Ao tratar dessa questão ______Marxismo e filosofia da linguagem. 6 ed. São Paulo: Hucitec,
do silêncio, cite-se Orlandi (1992), para quem “o silêncio é constitutivo 1992.
de um discurso, pois todo dizer é uma relação fundamental com o ______Estética da criação verbal. 2 ed., São Paulo: Martins Fontes,
não-dizer”. No entanto, esclarece a autora que o silêncio não é o 1997. (Coleção Ensino Superior)
implícito, pois BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar
“O implícito é o não-dito que se define em relação ao dizer. O quer dizer. 2 ed. São Paulo: EDUSP, 1998.
silêncio, ao contrário, não é o não-dito que sustenta o dizer BRAIT, Beth. O discurso sob o olhar de Bakhtin. Em: GREGOLIN,
mas é aquilo que é apagado, colocado de lado, excluído”. M.R.V. et al. Análise do Discurso – Interpretação e Memória:
(op. cit. p. 106) olhares oblíquos. (no prelo)
Assim, constituindo o discurso do Litoral, no fio invisível que BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discur-
o tece e o contradiz, polemizando-o; encontram-se as vozes do Ser- so. Campinas- SP: Editora da Unicamp, 1991.
tão, silenciadas, apagadas, excluídas. A propaganda turística parece FIORIN, José L. Elementos de análise do discurso. 2 ed. São Paulo:
homogeneizar o espaço nordestino. Não é permitido, na conjuntura Contexto, 1990.
de “vender” esse produto, acionar, desvelar essa contradição GREGOLIN, M.R.V. Recitações de mitos: a História na lente da mídia.
constitutiva que atesta a incompletude do dizer e dos sentidos. Em : Filigranas do discurso: as vozes da História. Araraquara:
Essas duas representações do espaço nordestino _ a do Litoral FCL-UNESP, 2000.
e a do Sertão _ criam um efeito de homogeneidade decorrente da MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em Análise do
ilusão de transparência da linguagem. Por isso, a propaganda e a Discurso. Campinas, SP: Pontes: Editora da UNICAMP, 1989.
mídia, de um modo geral, fazem parecer que só é possível olhar o ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos.
Nordeste sob essas duas perspectivas (ou em uma única com duas Campinas –SP: Pontes, 1999.
faces), eliminando-se, assim, a convivência dialética da pobreza/ ri- ____. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas,
queza, tristeza/ alegria, fartura/ escassez, tanto no Litoral como no SP: Ed. da UNICAMP, 1992.
Sertão. Conseqüentemente, mascara-se a realidade social e se evi-

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O funcionamento discursivo e a construção
do sentido em audiências de trabalho
Maria da Glória Corrêa di Fanti
Pontifícia Universidade Católica/PUC-SP
Universidade do Vale do Rio do Sinos/UNISINOS-CNPq

ABSTRACT: This paper presents a reflexion on employee’s and employer’s representations during labor herings with the aim of apprehending
meaning effects out constructed images especially concerning position permanence assumed in discourse.
PALAVRAS-CHAVE: prática discursiva, atividade de trabalho, dialogismo, alteridade

1. Práticas discursivas e atividade de trabalho seu respectivo advogado, uma testemunha por parte do empregado,
duas por parte do empregador, o escrivão e a assessora da juíza3 .
Analisando práticas discursivas em situação de trabalho, espe- Nessa audiência não houve acordo entre as partes (empregado e em-
cificamente em audiências trabalhistas, sessões formais de concilia- pregador), isto é, não houve entendimento sem discutir o mérito da
ção e instrução processual para o julgamento de conflitos oriundos causa, o que resultaria no encerramento da questão. Assim, as partes
das relações de trabalho entre empregado e empregador, percebemos e suas respectivas testemunhas foram ouvidas em juízo. Os depoi-
a inscrição de uma complexa relação entre homem/linguagem e tra- mentos e fatos relevantes, conforme o critério da juíza, foram
balho, que, em determinadas condições histórico-sociais, produz uns registrados pelo escrivão no Termo de Audiência (TA), documento
ou outros sentidos entre os interlocutores. Tais práticas discursivas que passa a constituir o processo e serve de base para o julgamento
(Maingueneau, 1993), entendidas como a indissociabilidade entre a do caso.
face textual e a face social, abrem-se para o entendimento do traba- Com a materialidade discursiva eleita e considerando a mu-
lho em situação nas suas diversas materialidades. dança de esfera de mediação, isto é, a transferência do enfoque da
Na inter-relação linguagem e trabalho, o coletivo do trabalho relação empregado / empregador que deixa de ser uma relação de
apresenta-se numa tensão entre a estabilidade e a instabilidade. Nes- trabalho strictu sensu para ser objeto de trabalho de uma outra esfera,
sa perspectiva, Faïta & Clot (2000) tratam a atividade de trabalho a jurídica, mais especificamente a do trabalho, a qual possui coer-
como um teatro permanente de um movimento em duas direções: ções próprias, temos por objetivo analisar como o empregado e o
uma impessoal, genérica; outra pessoal, variação de si. A coletivida- empregador se instituem nas próprias práticas discursivas, como eles
de de trabalho, então, apresenta relações discursivas renovadas de são instituídos por seus representantes legais (advogados) e como
situação em situação, as quais, por meio de um movimento dialógico, são instituídos pelo juiz. Observaremos, com essas representações,
oferecem a cena em que os interlocutores se encontram, trazendo as imagens que são construídas e os posteriores efeitos de sentido,
histórias e experiências para a atividade. Esta orientação advém da principalmente em relação à permanência ou não das posições (vo-
concepção constitutivamente dialógica da linguagem, postulada por zes) assumidas no discurso.
Bakhtin (1995, 1997, 1998), em que o processo de interação verbal
pressupõe a intersubjetividade e a referência a outras enunciações 2. “Eu” X “outro”: alteridade constitutiva
reais e virtuais, assinalando a heterogeneidade própria da língua.
Para verificar as formas de instituição do empregado e do em-
É também a partir do embasamento dialógico bakhtiniano
pregador, consideramos a dimensão dialógica “eu” X “outro”, sendo
que a Análise do Discurso de orientação francesa propõe o princípio o “outro” constitutivo do “eu” e vice-versa, a alteridade constitutiva.
da heterogeneidade discursiva, isto é, o princípio de que a tessitura Nesse sentido, em nossa análise, procuramos principalmente o “ou-
do discurso se configura a partir de outros discursos (Authier-Revuz, tro” como uma característica (ou indício de uma) do empregado ou
1984)1 . O exterior, desse modo, é constitutivo, ou seja, todo discurso do empregador a qual, num espaço interacional, dá pistas ou forma
é atravessado pelo discurso do “outro”; ou ainda, constrói-se sobre o imagens do referente. Entendemos por imagens, conforme
“já-dito”. Assim entendido, Maingueneau (1984) ressalta a Maingueneau (1998b), as formas de representação que se apresen-
heterogeneidade própria da linguagem e propala o primado do tam como produtos de uma atividade discursiva, na qual um certo
interdiscurso sobre o discurso, a interdiscursividade, um espaço de universo de sentido se reconstrói articulando as diversas imagens
trocas entre vários discursos. Com efeito, a heterogeneidade da lin- presentes no discurso: assim, a imagem que o enunciador traz do co-
guagem, sua alteridade constitutiva, configurada na relação com o enunciador não se separa da imagem que ele faz de si mesmo ou do
“outro” é o fundamento de toda discursividade. tema do discurso.
Partindo dessa intrínseca relação com o “outro”, entendemos
que seja possível estudar as imbricações discursivas que suportam e 1 Authier-Revuz (1984) distingue a “heterogeneidade mostrada” da
atravessam a atividade de trabalho, a alteridade que constitui as prá- “heterogeneidade constitutiva”. A primeira apresenta marcas explícitas da
ticas discursivas das audiências trabalhistas. Nesse sentido, selecio- inscrição do “outro”. A segunda não apresenta marcas do “outro” na su-
namos de um corpus discursivo composto por 09 audiências, coletadas perfície lingüística. Sobre as influências bakhtinianas em Authier-Revuz ler
no primeiro semestre de 2000, em uma Vara do Trabalho do municí- Beth Brait (no prelo), Alteridade, dialogismo, heterogeneidade: nem sempre o
pio de São Paulo, uma audiência para análise2 . Tal audiência é oriun- outro é o mesmo.
da do conflito de uma relação de trabalho em que um operário/pe- 2 As audiências trabalhistas acontecem em Varas do Trabalho (antigas Juntas
dreiro reivindica de uma empreiteira de construção civil o cumpri- de Conciliação e Julgamento). A totalidade do corpus discursivo faz parte
de um projeto maior que desenvolvemos como pesquisa de doutoramento,
mento de direitos lesados durante a vigência da sua prestação de ser- na PUC-SP, sob orientação da Profª. Drª. Maria Cecília Pérez de Souza-e-
viço. Participam da atividade um juiz singular, no caso uma juíza, o Silva.
empregado com seu respectivo advogado, no caso uma advogada, o 3 O escrivão é o responsável pelos registros no Termo de Audiência. A
empregador, no caso uma firma representada por um dos sócios, com assessora é a responsável pela organização do fluxo das audiências.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 351


Na apreensão dessas formas de representação, consideramos 3.2 Nas práticas discursivas dos representantes legais
fundamental a noção de designação, proposta por Maingueneau
Observando as posições assumidas pelos litigantes por meio
(1998a), a partir da qual se pode identificar um referente, apreender
das imagens que deles se constroem no discurso de seus representan-
o seu modo de apresentação. Nessa perspectiva, entendemos que há
tes legais, constatamos aproximações e distanciamentos. Ao serem
de se considerar os atravessamentos ideológicos, o interdiscurso, a
representados por seus advogados e formarem com esses e os demais
historicidade e o lugar social de quem sustenta a designação. Com
participantes da audiência a coletividade do trabalho, a qual recobre
esses recursos e considerando os imbricamentos das diversas desig-
uma dimensão subjetiva, ideológica e social, empregado e emprega-
nações (de empregado e empregador) na circulação dos enunciados,
dor apresentam-se de forma heterogênea, que não se pode antecipar.
podemos apreender as imagens que se constroem nas práticas
Seus representantes legais também se apresentam de forma não pre-
discursivas. Observamos, com isso, que nessa atividade de trabalho
determinada, uma vez que na coletividade há singularidades que exi-
há lugares mais ou menos estabelecidos, os quais nos remetem às
gem negociações entre o “eu” e o “outro”, uma construção de posi-
noções de papéis institucionais e papéis discursivos (Maingueneau,
ções discursivas que se configuram em variados estatutos.
1998b). Os papéis institucionais são aqueles estáveis na interação,
Assim, se, no discurso da advogada, o empregado (cliente)
associados aos gêneros do discurso; já os papéis discursivos são aque-
aparece representado como trabalhador/pedreiro, não era de se espe-
les ocasionais. Assim, nessa atividade de trabalho, temos, por um
rar que o empregador aparecesse da mesma forma, mas sim em uma
lado, alguns papéis institucionais que se repetem a cada sessão (como
posição de chefia (patrão). No entanto, observamos representação
o papel do juiz, o do advogado do reclamante, o do advogado do
semelhante a qual se projeta por um certo deslocamento de imagens
reclamado e o do escrivão) e, por outro lado, temos papéis discursivos
que varia de ex-sócio da empresa reclamada a trabalhador/pedreiro
que se constroem nos processos de produção do discurso.
da construção. Tais imagens resultam em um efeito de distanciamento
Com base nessas observações, ressaltamos a concepção de que
da voz do empregado, pois, nesse jogo de representações, o empre-
o sujeito assim como o sentido não são dados a priori; eles se constro-
gador não seria mais sócio da empresa reclamada, mas sim ocuparia
em em uma complexa multiplicidade que se forma no espaço discursivo
outro estatuto na relação de trabalho. No discurso em que o advoga-
entre o “eu” e o “outro”. Sendo assim, mesmo havendo papéis
do do empregador apresenta-se como enunciador, o empregado é ins-
institucionais, formam-se papéis discursivos nesse espaço relacional.
tituído como trabalhador/pedreiro, mas é textualmente assinalado que
O sujeito, conforme Brandão (1995: 49), é descentrado, pois “na sua
não tem vínculo com a empresa reclamada. Já o empregador (cliente)
fala outras vozes também falam”. O sujeito é essencialmente “históri-
não é inscrito como empregador, mas sim como trabalhador/pedreiro
co”, sua fala é produzida a partir de um determinado lugar e de um
da construção, colega do reclamante.
determinado tempo, e “ideológico”, sua fala é um recorte das represen-
Ressalta-se, com isso, que inscrever tanto empregado quanto
tações de um tempo histórico e de um espaço social.
empregador de trabalhador/pedreiro é construir representações dife-
rentes para o mesmo referente, tendo em vista o papel institucional
3. Formas de representação do empregado e do empregador
de quem veicula a imagem. Para a advogada, considerar trabalhador/
3.1 Nas próprias práticas discursivas
pedreiro o seu cliente é representá-lo como empregado da empresa
Observando os depoimentos do empregado e do empregador, reclamada. Para o advogado, considerar trabalhador/pedreiro o em-
constatamos que as imagens construídas entram em conflito. Por um pregado é representá-lo como um operário da mesma construção em
lado, o empregado se institui como trabalhador/pedreiro e vigia e que o seu cliente (reclamado) trabalhou. Para o advogado, conside-
institui o empregador como uma empresa empregadora para a qual rar trabalhador/pedreiro o empregador é defender seu cliente da acu-
foi contratado por duas pessoas; por outro, o empregador se institui sação que lhe estão imputando. Para a advogada, considerar traba-
como ex-sócio, já que ressalta que a empresa é falida, e como pedrei- lhador/pedreiro o empregador é, de certa forma, aceitar essa defesa,
ro da mesma obra que o reclamante (empregado), da qual saiu por ter o que resulta na desresponsabilização pela parte patronal da relação
se acidentado. Portanto, institui o empregado como colega de traba- de trabalho. Com o entrecruzamento dessas representações, a desig-
lho. Se, de certa forma, o discurso do empregado revela um tom de nação “prejudicado”, conferida ao empregado pelo advogado do em-
ambigüidade ao afirmar que foi contratado por duas pessoas (uma da pregador, parece esboçar a ignorância do empregado que não está
obra e outra da empresa reclamada); de outra, o discurso do empre- reclamando do empregador certo, mas sim de um colega de trabalho.
gador revela um tom de convicção ao afirmar que a empresa é falida. Notamos que um fator relevante na instituição de imagens do
Assim sendo, seguindo a movimentação (inter)discursiva entre as empregado e do empregador são as oportunidades que os advogados
vozes que se conflituam na audiência, notamos que se forma um efei- têm de se manifestarem nas audiências e, particularmente, de faze-
to de sentido de que o empregado é desinformado em relação a quem rem perguntas aos litigantes e às testemunhas após o interrogatório
foi seu empregador. Entendemos que tal efeito de sentido pode ser da juíza. São oportunidades relativamente equivalentes para os dois
confirmado ou não no decorrer da audiência a partir das outras for- lados; no entanto, alguns utilizam esse espaço mais que outros. Com-
mas de representação do empregado e do empregador que se cons- parando as inserções dos advogados na audiência em análise, repara-
troem nas práticas discursivas. mos que, apesar de os dois representantes terem oportunidades de
Observamos, ainda, em meio a essa tensão de vozes, que há, fazerem perguntas, após o depoimento do empregado, apenas o ad-
de certa forma, uma aproximação nas afirmações do empregado e do vogado do empregador exerceu esse direito, a advogada não. Já, após
empregador. O primeiro afirma que era o proprietário da obra quem o depoimento do empregador, os dois fizeram perguntas. No depoi-
pagava os salários e que fora contratado por ele e pelo sócio da Cons- mento das três testemunhas, o advogado fez perguntas à testemunha
trutora. O segundo também afirma que o proprietário da obra contra- do empregado e a uma testemunha do empregador; a advogada não
tava e pagava seus funcionários. Essas versões ao mesmo tempo que fez perguntas à testemunha do empregado, mas fez às duas testemu-
aproximam empregado e empregador na superfície lingüística afas- nhas do empregador. Observamos, nesse quadro, que a advogada não
tam-nos na discursiva, favorecendo ao empregador. Se o proprietário fez perguntas ao seu cliente e nem à testemunha dele, enquanto que o
era quem pagava os funcionários e era quem contratava os operários, advogado fez ao cliente dele e a uma testemunha de seu cliente. En-
não seria ele o empregador? Fator que realça o conflito de vozes no tendemos que a oportunidade de perguntar é, do ponto de vista
plano discursivo e as divergências de versões do mesmo referente, discursivo, uma oportunidade de o enunciador fazer escolhas e/ou
no caso a relação de trabalho. omissões, de tentar resgatar vozes e apagar outras. Nesse sentido,

352 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


fazer perguntas ao próprio cliente e à(s) testemunha(s) do cliente Nas formulações decorrentes do depoimento do empregador,
pode ser, sobretudo, uma oportunidade de ratificar uma posição e/ou registradas no TA, observamos que, diferentemente do que as do
torná-la mais intelegível. empregado, há marcadores lingüísticos avaliativos explícitos em tor-
Em decorrência das inserções dos advogados, constatamos que no das imagens que se formam. Seguindo o movimento dialógico
há uma maior referência ao empregador do que ao empregado, ou dos enunciados que dá suporte à organização do discurso no TA,
seja, a posição assumida pelo empregador é mais recuperada do que observamos que o enunciador-juíza também traz o “discurso citado”
a do empregado. Com isso, a voz do empregado vai sendo protelada de forma indireta, o qual se funde no “discurso citante”, porém traz
ao contrário da voz do empregador, que vai sendo enfatizada a cada marcas explícitas de subjetividade - “sendo certo”, “de fato”, “já” -
pergunta / resposta. que sinalizam o descomprometimento do empregador para com o
empregado, pois levam à mesma conclusão de que a empresa “não
3.3 No discurso jurídico tinha qualquer atividade desde 95” (período anterior à construção),
o que leva a considerar que ela não é empregadora. Além dessas
Analisando as imagens que se constroem no discurso jurídico,
marcas, o depoimento recebe, no plano jurídico, uma atualização do
entendido, nesta reflexão, como o discurso em que o juiz ocupa o
verbo “falir” (empregador: “a última fatura que ela faturou foi de
papel de enunciador, observamos sua responsabilização pela articu-
março de 95 de lá pra cá foi falida”) por “encerrar as atividades”
lação das perguntas / respostas na audiência e também pela organiza-
(TA: “que a reclamada encerrou suas atividades...”). As imagens do
ção do que é registrado no TA. Ele é o representante do Estado para
empregador como trabalhador/pedreiro e empregado da obra tam-
julgar, após a tentativa de conciliação, o litígio. Seu comprometi-
bém são reforçadas na superfície textual do TA: “... o depoente tra-
mento também está em apreender o “mais fielmente possível” os de-
balhou como pedreiro contratado pelo proprietário Mário, portan-
poimentos na audiência, dentre eles a pluralidade de vozes que, de
to, nessa obra o depoente ativou-se como empregado, sem qualquer
um lado ou de outro, auxiliam no julgamento.
interferência da empresa reclamada...”. Há um movimento retórico
Tais vozes se circunscrevem na atividade e emanam correla-
lógico, marcado pelo articulador “portanto”, que orienta a uma con-
ções e movimentos discursivos que representam diferentes realida-
clusão, qual seja, que o reclamado atuou como empregado. A expres-
des sociais, ideológicas, econômicas e culturais; um meio histórico
são “sem qualquer”, na seqüência, equivale a dizer “sem nenhuma”,
de (con)vivência. Nesse meio, a circulação discursiva revela diferen-
ou seja, o empregador não era empregador, mas sim empregado e
tes acentos às palavras, aos enunciados, que na inter-relação com o
atuou “sem nenhuma” interferência da empresa reclamada. Essa ex-
discurso jurídico constitui o processo de construção de sentido e
pressão parece revelar o “grau de adesão” (Kerbrat-Orecchioni, 1980)
efeitos de sentido. Sob esse prisma, entendemos que há uma co-par-
do enunciador-juíza em relação ao conteúdo do enunciado. É muito
ticipação, isto é, uma incorporação do discurso jurídico na produção
diferente afirmar que atuou “sem interferência” do que atuou “sem
dos enunciados, uma participação dialógica, tendo em vista que todo
qualquer interferência”. Tal avaliativo corrobora a
discurso assimila a imagem de seu destinatário. São os “eus” consti-
desresponsabilização da empresa para com a obra.
tuídos pelos “outros”. Em decorrência disso, perpassam também pe-
las interlocuções das quais a juíza participa as variadas formas de
4. Escolhas e apagamentos
representação do empregado e do empregador construídas no espaço
discursivo da audiência. Essas imagens podem ser ignoradas, podem No decorrer da audiência, as vozes (posições) do empregado e
ser (re)tomadas e podem ser registradas (ou não) no TA. do empregador vão sendo retomadas, transformadas, expandidas,
Procurando marcas de subjetividade do enunciador-juíza na reprimidas, marcadas e/ou apagadas num constante processo
superfície lingüística, tendo em vista todo discurso ser subjetivo (em avaliativo. Nesse movimento discursivo, circunscreve-se o que po-
diferentes graus) (Kerbrat-Orecchioni, 1980) e, portanto, ser demos chamar de um pluringüismo (Bakhtin, 1998) mais aparente,
construído sob um processo avaliativo, não as encontramos aparen- uma diversidade de linguagens e perspectivas ideológico-verbais
temente. Os enunciados que compõem a textualidade do TA, referen- multiformes (de gênero, de profissões, de grupos sociais). Observa-
tes ao depoimento do empregado, são sobrepostos e não apresentam mos, nesse sentido, que, em certos momentos, o registro no TA traz
aqueles traços tradicionais de avaliação (modalizadores, termos alterações vocabulares do que foi enunciado pelo empregado e em-
avaliativos, etc.). Observamos que as vozes, facilmente distintas no pregador: como o verbo “trabalhar” pelo “ativar-se”, o substantivo
depoimento, incorporam-se a um só enunciador numa outra situação “dinheiro” pela expressão “papel moeda”, o nome da empresa por
de enunciação com singularidades próprias, a do TA. Esse funciona- “reclamada”, “registro em carteira” por “CTPS”, além daquelas de-
mento discursivo, que traz o “já-dito” em outros discursos, remete- signações próprias do universo jurídico que, de certa forma, apagam
nos à noção de discurso relatado, o qual, segundo Maingueneau as particularidades dos referentes, quais sejam, “reclamante”, “de-
(1998a), em releitura aos trabalhos de Bakhtin e Authier-Revuz, se poente”, etc. Essas alterações revelam uma preocupação com uma
caracteriza por ser uma enunciação sobre uma outra enunciação. As- linguagem técnica, mais hermética, uma forma de recuperar a insti-
sim sendo, no TA, o “discurso citante” do enunciador-juíza traz o tuição do estilo jurídico próprio do gênero, sem necessidade aparen-
“discurso citado” (perguntas / respostas), o qual na forma indireta, te de se impor com o depoente, mas dando um outro estatuto a suas
sem autonomia enunciativa, se funde no citante. A juíza ocupando o palavras e inscrevendo-as em um outro plano. Tais mudanças reve-
papel de enunciador, com suas próprias palavras, reformula as pala- lam a atualização do vocabulário coloquial para o técnico. Aquele
vras de um outro ato de enunciação; portanto, é responsável pela intelegível para todos; este, apenas para os que conhecem o vocabu-
seleção e subseqüente formulação das “informações” no TA, o que já lário da esfera jurídica.
é uma avaliação, uma forma de apreciação do discurso do emprega- Além dessas alterações, observamos que duas imagens institu-
do. Com isso tudo, as contradições emanadas nas imagens que se ídas no decorrer da audiência não foram resgatadas no TA. Uma, em
constroem do empregado no TA (divergência nas informações quan- relação ao empregado, aquela em que ele se institui como uma espé-
to aos proprietários da obra e às pessoas que contrataram o serviço) cie de vigia da obra; outra, em relação ao empregador, aquela em que
são apreendidas se levarmos em conta a articulação semântica entre ele destaca um acidente que sofrera na construção. Tal imagem, em-
as afirmações e o contexto de produção do discurso, incluindo aí o bora tenha sido ratificada por uma testemunha, não aparece registra-
papel institucional da juíza que com a filtragem do depoimento traz a da no TA, nem de forma tangencial. Sabemos que é próprio do gêne-
alteridade da linguagem. ro discursivo que o juiz faça uma seleção do que deve ser registrado

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 353


ou não no TA, ou seja, o que é relevante, segundo seus critérios, para empresa reclamada, a suposta empregadora, está desativada desde
o julgamento do caso. Entretanto, como não aconteceram advertên- 1995 (TA: “sendo certo que a reclamada, de fato já não tinha qual-
cias durante essas fases dos depoimentos, esperava-se que, de algum quer atividade desde 95”). Em outras palavras, o empregado atuou
modo, os relatos fossem registrados. Assim sendo, nota-se uma for- como empregado na construção, mas ele não foi subordinado de quem
ma de apagamento de parte da história pessoal do empregado e do ele pensava que era seu empregador, a empresa. Assim, qualquer
empregador e, portanto, das suas formas de instituição. possibilidade de ser “ouvido” se esvai; ele está reclamando do em-
pregador errado e, por isso, sua voz não é “ouvida”. Esta reflexão
5. Considerações finais remete, de certo modo, à problemática da precarização do trabalho
humano em função do capital(ismo), como a desregularização das
Encerrando parcialmente esta reflexão, observamos a constan-
relações de trabalho: sem contrato, sem registro e, de forma agrava-
te tensão de vozes entre empregado e empregador que pôde ser per-
da, sem saber para quem se está prestando serviço.
cebida nas práticas discursivas de toda a atividade; passando pelo
próprio discurso dos litigantes, pelo discurso de seus representantes
Referências bibliográficas
legais e pelo discurso jurídico que co-constrói todos os enunciados.
Tal tensão começou pela construção de imagens diferentes dos mes- AUTHIER-REVUZ, J. Hétérogénéité(s) énonciative(s). In Langages,
mos referentes, o conflito do eu X “outro”, da identidade X alteridade, Les plans d’énonciation, n. 73, 1984.
da convicção X dúvida, do esperado X surpresa. Se, no início da BAKHTIN, M. (Volochinov) Marxismo e filosofia da linguagem. 7.
audiência, havia uma espécie de suspense pela confirmação da posi- ed. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo:
ção assumida pelo empregado, expressa pelas imagens construídas Hucitec, 1995.
em seu discurso, em seguida as expectativas se frustraram em função
____. Problemas da poética de Dostoiévski. 2. ed. Trad. Paulo Be-
das imagens construídas no discurso do empregador, especialmente
zerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997
a de “empresa falida” e a de “trabalhador/pedreiro” da mesma obra,
____. Questões de literatura e de estética. A teoria do romance. 4.
uma espécie de surpresa na atividade (juíza: “é falida a Cobertu-
ra?”, “o senhor fez o que... o senhor foi pedreiro?”). Com essa ed. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: UNESP,
desestabilização, houve um certo deslocamento das atenções, isto é, 1998.
as atenções se voltaram para o empregador. A partir de então, a voz BRAIT, B. Alteridade, dialogismo, heterogeneidade: nem sempre o
do empregado foi sendo questionada discursivamente a cada depoi- outro é o mesmo. In Beth Brait (Org.), Discurso e enunciação.
mento enquanto que a do empregador, mesmo com algumas “atuali- Estudos enunciativos no Brasil: histórias e perspectivas. Cam-
zações”, foi sendo reiterada. pinas: Pontes, no prelo.
Em suma, estudando as formas de representação do emprega- BRANDÃO, H.N. Introdução à análise do discurso. 4. ed. Campi-
do e do empregador, uma espécie de dialética constitutiva, no seu nas: UNICAMP, 1995.
próprio discurso e no discurso de seus advogados, observamos uma FAÏTA, D. & CLOT, Y. Genres et styles en analyse du travail: concepts
forma de esvaziamento da voz do empregado, ou seja, um crescente et méthodes. In Travailler, n. 4, Revigny-sur-Ornair, Martin
distanciamento da sua posição de empregado da empresa reclamada. Media, 2000.
No discurso jurídico, percebemos o agravamento desse esvaziamen-
KERBRAT-ORECCHIONI, C. L’enonciation. Paris: Armand Colin,
to, pois com as imagens construídas no TA, em decorrência dos de-
1980.
poimentos dos litigantes, a voz do empregado é notadamente con-
frontada, uma forma de “apagamento”, pela voz do empregador. Es- MAINGUENEAU, D. Genèses du discours. Bruxelas: Pierre
sas imagens partindo de um enunciador, cujo papel institucional é Mardaga, 1984.
representar o Estado no litígio, recebem uma força “autorizada”. Com ___. Novas tendências em análise do discurso. 2. ed. Trad. Freda
tudo isso, parece ter ficado claro que o empregador não é emprega- Indursky. São Paulo: Pontes, 1993.
dor como o empregado imaginava, mas sim atuou de subordinado na ___. Analyser les textes de communication. Paris: Dunod, 1998a.
construção: “nessa obra o depoente ativou-se como empregado, sem ___. Termos-chave da análise do discurso. Trad. Márcio Venício
qualquer interferência da empresa reclamada” (TA). Ademais, a Barbosa e Maria Emília Lima. Belo Horizonte: UFMG, 1998b.

354 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Criações estilísticas como senha de acesso ao mundo
dos pacientes para exame radiológico
Maristela Botelho França
Universidade do Rio de Janeiro - UNIRIO

Dando aulas na disciplina de Expressão oral e escrita em cur- ção do trabalho através de uma organização dividida entre concebedores
sos de graduação da UNIRIO, ouço contente a expressão de temor e executores de tarefas. As tarefas cientificamente pensadas pelos
dos alunos preocupados com o risco de que os métodos apresenta- concebedores exigiriam muito pouco dos executores. Elas seriam tão
dos para a elaboração do plano dos textos e para a produção de intelectualmente simples que, para eles, chegaria a ser constrangedor
idéias os privem de sua capacidade criativa. Mas não menos feliz, falar sobre elas. Assim, falar do trabalho não seria da competência dos
escuto o ponto de vista daqueles que, sentindo-se incapazes de en- executores cujo trabalho dispensava o pensar ou o falar sobre a ativi-
frentar o trabalho de escrita acadêmica, se dizem aliviados pelo fato dade. Para eles, as suas próprias verbalizações não seriam adequadas
de esses métodos e ferramentas existirem. Mas o mais rico nesses e mesmo a linguagem criada pelos coletivos de trabalho, comenta
dois posicionamentos está no que eles deixam transparecer de uma Schwartz (1992), seria considerada simplesmente como a vulgariza-
verdadeira questão: a relação entre o saber formalizado, a media- ção da linguagem adequada, aquela apoiada nas prescrições e nas
ção desse saber em vista de uma prática, no caso, a escrita, e o codificações normatizadas. Esse estigma social e histórico explicaria
espaço da instância do singular face a normas pré-estabelecidas. porque, quando se fala do próprio trabalho, tenta-se fazer com que o
Parece-me que essa tríade encerra uma profunda questão sobre a discurso coincida com o plano da tarefa prescrita, bastante codificado.
construção do conhecimento em seu estreito laço com o desenvol- A ideologia taylorista foi de tal forma assimilada pelo senso
vimento dos indivíduos enquanto sujeitos. Encerra também toda a comum que não é raro ouvirmos comentários preconceituosos sobre a
problemática que vive o professor ao lidar com o ensino e aprendi- nulidade intelectual deste ou daquele trabalho. Foi num enquadramento
zagem, o que, aliás, permite a alguns considerar o magistério como desse tipo que encontrei o trabalho de recepcionistas atuando no gui-
parte das profissões impossíveis. chê de atendimento para marcação e registro de exames radiológicos
Mas retomemos do medo de se perder a criatividade face aos de um hospital público da cidade do Rio de Janeiro.
planos de textos e, como não, da norma representada pela língua e Entre outras razões que se constituíram numa demanda de aná-
mais particularmente de seu uso na esfera da atividade acadêmica. lise das situações de trabalho neste posto por uma lingüista (França,
Teria a aplicação de um método, ou melhor, de uma determinada 2001), estava o fato de se perceber que ele era visto pela chefia como
metodologia de produção escrita bem como as coerções sociais da um trabalho simples, mera repetição de procedimentos rotineiros.
língua força para arrancar do sujeito o que lhe é singular? A No entanto, a observação da comunicação que acontecia entre
formalização acadêmica pode resultar num dizer congelado, recepcionistas e pacientes evidenciou um trabalho de estilização de
monofônico, sem alma, sem estilo, sem autor? gêneros disponíveis para a atuação no posto que orienta uma gestão
Sempre que fazemos algo não o fazemos como um outro e de fluxo de pacientes por caso particular em oposição a uma gestão
nem mesmo repetimos exatamente o que fizemos antes. burocrática e padronizada. Neste artigo, tentarei mostrar em que con-
Essa certeza obtive ao dar início ao estudo da atividade de siste essa estilização o que imprescinde de uma apresentação sobre
trabalho humana. Tomei conhecimento de que, durante boa parte do gêneros discursivos e, no caso específico de nossa pesquisa, sobre
século passado, acreditou-se que o homem poderia funcionar no tra- gêneros de atividades.
balho como uma máquina de repetir gestos. A partir dessa crença,
experimentou-se uma “organização científica do trabalho” cuja es- A noção de gênero aplicada à atividade de trabalho
tratégia visava recrutar o homem certo para a tarefa certa. De um
A obra de Bakhtin e de seu círculo tratou de construir uma
modelo ideal estudado para cada atividade, a seleção do efetivo de
teoria geral do enunciado. Seu fio condutor consistiu na demonstra-
trabalho se pautava nas características humanas minuciosamente pen-
ção do fato de que não dispomos diretamente da língua, dispomos
sadas como necessárias para a realização de determinada tarefa. Nes-
dela através de um outro patrimônio social para a comunicação que
sa primeira fase do modo de organização do trabalho que tomou o
são os gêneros discursivos recuperáveis na memória impessoal rela-
nome de seu idealizador, o taylorismo teve no trabalho repetitivo nas
tiva a cada esfera da atividade humana. Os gêneros são assim conce-
linhas de montagem a situação ideal para que esse tipo de organiza-
bidos como formações relativamente estáveis que se distinguem das
ção fosse visto como salutar para os trabalhadores bem como para a
formas estáveis da língua. Essa relatividade se apóia na característica
manutenção dos índices positivos de produção.
dinâmica de sua apropriação. Um gênero discursivo não é nunca cri-
Ao lado do aspecto perverso de se tolir do homem a iniciativa
ado, mas recriado no uso que cada grupo, cada sujeito faz dele.
de seu gesto, o taylorismo e sua extensão no mundo pós-moderno
Desse fato consiste o contra argumento de Bakhtin em relação
serviu para revelar essa impossibilidade de se viver a repetição, de se
à dicotomia saussuriana entre fala e língua. Para Saussure a fala é um
apagar o singular em cada sujeito em cada momento e em cada situ-
ato apenas individual oposto à língua como fenômeno social. Na con-
ação sem custos altos à saúde. Tomando as palavras de Wallon (1947
cepção do uso da língua intermediado pelas formas de gêneros, a fala
apud Clot, 1998) o taylorismo serviu para impor o que ele tendia a
é também um fenômeno de natureza social, na medida em que os
desconhecer ou a suprimir: essa capacidade a que se referiu
gêneros fazem parte de um patrimônio social.
Canguilhem (1966) de o sujeito engendrar renormatizações em fun-
Durante a análise das situações de trabalho resultou produtivo
ção das infidelidades do meio.
tomar o gênero discursivo de Bakhtin enquanto gênero de atividade
(v. Clot e Faïta, 2000) pensado para abarcar, além do discurso, as
Uma tarefa simples: marcar e registrar exames radiológicos
técnicas – técnica aqui em sentido amplo - que fazem parte do desen-
O taylorismo foi desenvolvido no sentido de uma simplifica- volvimento das situações de trabalho. Sem visar uma discussão neste

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 355


momento, assinalo que existe polêmica a propósito dessa designação tal em questão e ao descompasso criado entre a atividade de serviço e
que, segundo estudiosos da obra de Bakhtin e de seu círculo (Brait, de formação dos médicos residentes (tratava-se de um hospital uni-
2001), é fruto de uma leitura equivocada da obra desses autores. Seus versitário), os exames de raio-x estavam sendo liberados rotineira-
argumentos apóiam-se no fato de que elementos extralingüísticos mente sem a emissão do laudo radiológico. Sem estar no âmbito de
foram apontados enquanto constitutivos de gêneros na obra de Bakhtin nossa competência discutir essa questão, nos detivemos no efeito que
na qual o sentido de texto é tomado de forma ampla, principalmente isso trazia ao trabalho na recepção. Esse fato dava aos recepcionistas
em um artigo pouco estudado desse autor intitulado “Por uma filoso- uma margem maior na gestão do fluxo de pacientes marcados, o que
fia do ato”. Desse modo, não se justificaria separar discurso e técni- resultou na constituição de um gênero de atendimento que se desen-
ca , já incorporados na conceitualização bakhtiniana de gênero. volve através de uma relação de serviço que considera a particulari-
De minha parte, enquanto lingüista, estou inclinada a enten- dade de cada caso.
der a vantagem em se pensar em gênero de atividade no fato de se
poder, assim, recolocar metodologicamente a linguagem no con-
junto das atividades humanas. Esse argumento não impede, ao con-
trário, reforça, a idéia defendida por Brait de que seja qual for a
esfera da atividade humana, temos um contexto para uma análise
teórica do discurso.
Além disso, a designação de gênero de atividade oferece a pos-
sibilidade de rever a clássica dicotomia entre tarefa prescrita e ativi-
dade real que tem de ser tratada nos estudos que colocam o trabalho
enquanto objeto. A atividade abordada em sua perspectiva genérica
oferece subsídios para tomá-la como sendo sempre fruto de uma re-
organização coletiva do trabalho. Do mesmo modo como acontece
com a língua, a relação do sujeito com o seu trabalho não se dá de
forma direta - da norma à forma pessoal que cada trabalhador a atu-
aliza na atividade - mas é intermediado pelos gêneros de atividade
disponibilizados pelo coletivo.
É importante frisar que gêneros de atividades são meios para
se agir no trabalho. As pessoas quando trabalham agem através dos
gêneros até o momento em que estes lhes permitem responder às
exigências da ação. Quando se faz necessário, a atividade se desen-
volve através de ajustes e modificações dos gêneros os quais consti-
tuem-se em criações estilísticas (v.Clot e Faïta, 2000). De início, no primeiro exemplo, o recepcionista identifica um dos
O campo de possibilidades de criação estilística está direta- exames requeridos pelo médico e constata que se trata de um exame
mente relacionado às margens de flexibilidade que oferecem cada contrastado, portanto, que exige do paciente um preparo prévio. Até
gênero profissional nas diferentes esferas da atividade. Por exemplo, esse ponto, trata-se de um procedimento previsto no gênero de sua
o gênero relativo à operação em telemarketing cujos diálogos são profissão. No entanto, é interessante notar a maneira como ele se ex-
monitorados tendo em vista scripts prévios (Algodoal, 2001) é um pressa dirigindo-se ao paciente “isso aqui … isso aqui não é hoje
gênero profissional que oferece aos trabalhadores menor margem de não, isso aqui tem que fazer outro dia, né ?”, embalando a mensa-
criação estilística. No entanto, no que se refere aos gêneros de ativi- gem num formato de pedido de confirmação ao paciente. E prossegue
dades disponibilizados para cada situação em particular nesse traba- o diálogo com essa postura, esse alinhamento, marcando um dos exa-
lho somente podemos dar conta de suas variedades a partir de uma mes para o dia da semana solicitado pelo paciente, “pra qualquer
observação sistemática in loco. segunda-feira que você falou ?” Parece claro que, nesse encontro, é
Há, portanto, uma interioridade recíproca entre estilos e gêne- o paciente que orienta o desenvolvimento das ações de Mauro. E o
ros profissionais e gêneros de atividade. Cada gênero profissional atendimento termina com o paciente sendo encaminhado para realizar
pode dispor de diferentes gêneros de atividades. Esses últimos en- o outro exame que lhe foi solicitado naquele mesmo dia.
contram sua forma acabada apenas no modo como a tarefa é redefinida Essa maneira de prestação de serviço que se desenvolve na
na situação em que se desenvolve. Os gêneros permanecem operantes direção de atender a demanda do paciente nesse posto vem a ser um
graças às recriações estilísticas. dos gêneros de atividade disponíveis para se efetuar a tarefa. Como
O estilo também é a distância que um profissional interpõe podemos observar nos outros dois exemplos de atendimento feitos
entre sua ação e sua própria história. A memória pessoal do sujeito por Fátima, esse é um gênero engendrado no e pelo coletivo.
inscreve sua atividade num outro campo de variantes além daquelas
que interferem no centro do gênero profissional. As criações estilísticas
O gênero de atendimento constituído numa relação de ser- É notório que as formas de atualização genérica se diferenci-
viço orientada para o caso particular do paciente am entre os dois recepcionistas. Mas antes de prosseguir sobre essa
diferença, é importante lembrar que esses exemplos trazidos aqui são
A prescrição da tarefa a ser realizada no posto de recepção o resultado de uma transcrição de momentos registrados em áudio a
indicava que a marcação de exames deveria ser feita tendo em vista o fim de se pensar o que acontece nas situações de trabalho estudadas.
tempo necessário para que o laudo radiológico fosse anexado ao pron- Não se pode deixar de lado o fato de que essas pessoas estão inseridas
tuário do paciente quando de sua volta à consulta ao médico num quadro institucional, fazem parte de um coletivo de trabalho
demandante. Além de se prever esse tempo, a marcação de exames mais amplo que abarca os técnicos em radiologia, os residentes que
deveria obedecer a um limite diário, variável de acordo com a nature- realizam e que demandam exames. Além disso sua função se localiza
za de cada exame. no interior de uma estrutura administrativa hierarquizada. Nesse sen-
Devido ao grande número de pacientes que procurava o hospi- tido as estilizações efetuadas trazem com elas a relação que cada

356 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


trabalhador estabelece com esse seu meio tanto de trabalho quanto de estagiária na instituição corrobora para isso. É por causa de situa-
com aquele ligado à sua história pessoal. ções como essas que Clot e Faïta (2000) apresentam a noção de gênero
Mauro trabalhava há nove anos no hospital, mas apenas há de atividade no interior de uma metodologia – a clínica da atividade -
três meses neste posto. Fátima é do quadro temporário e deixaria em que visa confrontar os diferentes trabalhadores ao seu trabalho e ao do
breve de prestar esse serviço. No exemplo de atendimento feito por outro para que gêneros e estilos sejam colocados em questão, ratifica-
Mauro e escolhido para ser comentado aqui, seu discurso revela o dos ou abandonados.
quanto está engajado em atender a demanda específica do paciente. No caso específico da pesquisa que conduzi, essa confronta-
No caso de Fátima, ela se dispõe desse mesmo gênero, mas seu tom ção foi em parte realizada. Decidi incorporar os diálogos que se pas-
de voz em “que dia a senhora quer?” (ex.1, l.5) é revelador de um saram entre mim e os recepcionistas ao longo dos atendimentos e aos
conflito de intenções. Através da réplica da paciente isso fica ainda poucos fui constatando que, de meu objeto, o trabalho deles passou a
mais claro “antes... tá bom pode ser esse dia mesmo” (ex.1, l.6) ao ser objeto de análise dos próprios recepcionistas. O passo seguinte
evidenciar a compreensão de um nível de interação pouco cooperati- será o de organizar uma maneira de restituir esses materiais com a
vo. Será necessário que Fátima proceda a uma reformulação discursiva finalidade de que os próprios trabalhadores possam instituir um es-
dando efetivamente à paciente outras opções de datas “que dia a paço de reflexão sobre seu trabalho.
senhora quer? dia 15? , dia 12?” (ex.1, l.7).
No segundo exemplo de atendimento feito por Fátima, o em- Referência bibliográfica
bate vivido é explicitado. Meu papel de analista do seu trabalho é
convocado a fim de revelar como ela situa o conflito: de um lado, as ALGODOAL, Juliana (2001). A voz e a linguagem no trabalho de
conveniências do paciente, de outro, a antecipação de outra proble- operadores de telemarketing. São Paulo: Programa de Estudos
mática que a recepcionista vive em seu trabalho. Fátima prossegue Pós-Graduados em Lingüística Aplicada e Estudos de Lingua-
explicando que os pacientes querem marcar o exame para o próprio gem - PUC-SP. Tese de Doutorado em preparação.
dia da consulta para evitarem ter de vir ao hospital mais vezes. No BRAIT, Beth. (2001). Atividade e Gêneros discursivos em Bakhtin.
entanto, ela sabe que podem ocorrer demoras no atendimento, fato Comunicação apresentada no II Congresso Internacional de Lin-
que deixa o paciente aflito, dirigindo-se repetidamente ao guichê de güística. Fortaleza, Universidade Federal do Ceará.
atendimento para expressar seu receio em perder o horário da con- CANGUILHEM, (1966) Le normal et le pathologique. Presses
sulta e para pedir a ela providências. Mas, mesmo antecipando que Universitaires de France.
sua atitude poderá lhe causar futura sobrecarga de trabalho, ela mar- CLOT, Yves (1998). Le sujet au travail. In.: KERGOAT, j.; BOUTET,
ca o exame segundo a demanda do paciente. Nesse sentido, pode-se J.: JACOT, H; LINHART, D. Le monde du travail. Paris: Editions
dizer que as criações estilísticas funcionam como senhas de acesso La découverte.
ao mundo dos pacientes. CLOT & FAÏTA, Daniel (2000). Genres et styles en analyse du travail.
Concepts et Méthodes. Revue Travailler: 4
Apenas encerrando o artigo
FRANÇA, Maristela B. (2001). Atividades de linguagem e gestão de
fluxo de pacientes para exame radiológico: o caso de atendi-
Há tantas maneiras de se utilizar um gênero social que se che-
mento de raio X. São Paulo: Programa de Estudos Pós-Gradua-
ga à sua própria em função dos objetivos que se persegue para a
dos em Lingüística Aplicada e Estudos de Linguagem - PUC-
realização de uma ação determinada. Essa constatação parece resol-
SP. Tese de Doutorado a ser defendida no primeiro semestre de
ver o caso da preocupação do estudante que mencionei no início des-
te texto. Os objetivos e o modo como se está envolvido com eles 2001.
constituem o espaço para a manifestação da singularidade. SCHWARTZ, Yves. (1992), C’est compliqué. In.: Travail et
Contudo a situação de Fátima não se resolve. Ela não é capaz Philosophie: convocations mutuelles. Toulouse: Octares.
de abandonar um gênero que não lhe serve integralmente e seu estatuto

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 357


Demonstrativos – uma condição de saliência
Mônica Magalhães Cavalcante
Universidade Federal do Ceará - UFC

ABSTRACT: Although there is a clear preference for the demonstrative as the determinant of labelling expressions, there are some contexts in which
the substitution for the definite article is possible and even more appropriate. This work discuss some of the criteria that determine the choice between
the two forms.
PALAVRAS-CHAVE: nomeação, demonstrativos, artigos definidos

1. Introdução imediata; nos usos dentro da situação ampla; nos usos por relaciona-
mento associativo.
Tem-se preservado, algumas vezes, o falso pressuposto de que
o artigo definido estaria vinculado ao status de informação conheci- 2.1 Na situação imediata
da, dada, definida, já introduzida no texto. Mas, embora os objetos
Nos usos na situação imediata, os referentes podem estar visí-
formalmente definidos correspondam muitas vezes a entidades ve-
veis para os participantes, os quais, neste caso, terão a alternativa de
lhas para o ouvinte, essa correlação, como afirma Prince (1992), não
se referir aos objetos discursivos por meio de SNs definidos no sin-
é sempre garantida. Hawkins (1977) constata que a maioria dos em-
gular ou no plural. Neste contexto de campo visível comum, os de-
pregos do artigo definido não exige a referência a um objeto previa-
monstrativos seriam perfeitamente intercambiáveis com os artigos
mente introduzido, que porta, por isso, um conteúdo novo para o
definidos, como se pode perceber em:
discurso.
(1) Não entre. O cachorro morde. / Não entre. Esse cachorro
Convém, pois, distinguir dois tipos de definitude. Uma, tam-
morde.
bém designada como “identificabilidade” (ver Chafe, 1994; Du Bois,
Note-se que, com o emprego do definido, o ouvinte, em (1),
Thompson, 1991, dentre outros), é de natureza cognitiva, e se define
está sendo instado apenas a conceber a existência do referente na-
por um parâmetro pragmático-discursivo. Numa perspectiva sócio-
quele momento da interação. Ao contrário do que se verifica com o
interacional, podemos dizer que um referente será encarado como
uso do demonstrativo, ele não está sendo instruído a percebê-lo de
definido (identificável) sempre que o falante supuser que o destina-
fato, mas somente a particularizá-lo no contexto em que se encontra.
tário é capaz de, por algum meio, reconhecê-lo no universo do dis-
Como afirma Hawkins (1977), não é função do artigo definido, em si
curso criado e negociado durante a interação. Outra, de natureza for-
mesmo, indicar visibilidade, mesmo que o referente esteja presente
mal, se descreve por critérios gramaticais e é assinalada, quando em
na situação imediata da enunciação.
SNs, pela presença de artigos definidos, demonstrativos, possessi-
Observa o autor que, se o referente não fosse visível, princi-
vos, ou certos quantificadores1 . Sabe-se que as duas definitudes não
palmente para o ouvinte, como no caso de uma placa deixada no
são, no entanto, isomórficas: há casos, por exemplo, de sintagmas
portão com os dizeres de (1), o emprego do demonstrativo não seria
nominais formalmente definidos que estabelecem referentes inteira-
autorizado, pois o destinatário estaria sendo orientado a identificar
mente novos para o destinatário.
precisamente o objeto referido no espaço real de fala, sem que as
Nosso interesse, neste trabalho, é analisar certas expressões
circunstâncias o permitissem. Diferentemente dos artigos, os demons-
referenciais, a que temos chamado de “expressões nomeadoras”, do-
trativos expressam, como vemos, uma espécie de comando para o
tadas de “definitude formal”, mas apenas parcialmente providas de
ouvinte encontrar no entorno situacional o referente que está sendo
“definitude informacional” (cf. a distinção em Prince, 1992). As ex-
ressaltado, e para distingui-lo em meio a outros objetos discursivos.
pressões nomeadoras se caracterizam pela definitude formal porque
Segundo Ducrot (1977), as expressões contendo demonstrati-
são marcadas por artigos definidos ou por elementos indiciais (de-
vo não exercem o mesmo tipo de função referencial que as expres-
monstrativos ou circunstanciais). Mas nem sempre podemos atri-
sões com artigo, pois um demonstrativo está necessariamente condi-
buir-lhes definitude informacional, ou não de todo, porque elas acres-
cionado a um pressuposto existencial, enquanto que um definido não
centam, geralmente, a um conteúdo dado certas nuanças de sentido,
se prende a tal exigência2 . Ducrot argumenta que um ato de demons-
com um teor de novidade que é muitas vezes decisivo para a progres-
tração só se viabiliza na presença de um nome, pois é o substantivo
são referencial e, principalmente, para a delimitação de pontos de
que institui o universo em que o referente deve estar perceptível para
vista do enunciador. Koch (2001), com base em Schwarz (2000),
o interlocutor, para ser focalizado. O fato é que, quando se usa um
chama a esse traço peculiar das nomeações de “tematização remática”,
demonstrativo, o destinatário encara o referente como estando obri-
por seu comportamento híbrido de tema e de rema: de informação
gatoriamente presente, quer seja no contexto lingüístico, quer seja na
dada, com função referencial, e de informação nova, com função
predicativa.
Mostraremos, aqui, pautando-nos pelos estudos de Apothéloz,
1
Chanet (1997) e de Koch (2001) a que funções pragmático-discursivas Tais expedientes de definitude se opõem à indefinitude formal, marcada
costumam estar associadas as expressões nomeadoras indicializadas geralmente por artigos indefinidos, por outros quantificadores, como pro-
nomes indefinidos ou numerais, ou pelo zero.
por demonstrativos e quais as restrições estruturais das nomeações 2
Esta constatação é decorrente do ponto de vista do autor, segundo o qual
que favorecem o uso do artigo definido, embora não impeçam a todas as descrições definidas pressupõem indicações existenciais, conquan-
intercambialidade com o demonstrativo. to isso não as obrigue a ser usadas exclusivamente com função referencial
(designadora) - há numerosos exemplos de descrições definidas emprega-
2. Demonstrativos x definidos – a condição de saliência das com função atributiva. O pressuposto de existência e unicidade instau-
rado por qualquer “emprego substantivo” independe, portanto, segundo
Hawkins (1977) distingue basicamente três tipos de situações o autor, das funções referenciais que ocasionalmente uma descrição defini-
em que se costuma empregar o artigo definido de primeira menção, da venha a desempenhar. Mas é por causa dessas indicações existenciais
ou seja, aquele que é novo para o discurso: nos usos dentro situação das descrições definidas que elas são freqüentemente usadas para referir.

358 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


situação enunciativa real, quer seja no conhecimento compartilhado, As expressões referenciais com definido podem, em todos es-
ainda que figure como informação nova para o discurso. Quando se ses casos, ser inteiramente novas para o discurso e velhas para o
emprega um definido, ao contrário, o referente pode estar ausente e destinatário, assim como ocorre com certas expressões demonstrati-
também pode ser inteiramente novo para o discurso, embora, por vas, mas não focalizarão o referente de modo a convidar o interlocutor
razões outras, esteja sendo explicitado como uma informação dada. a prestar atenção nele.
Assim, enquanto, nas expressões demonstrativas, o objeto de
discurso precisa ser considerado como perceptualmente localizável, 2.3 Nas relações associativas
nas descrições definidas isso não tem que acontecer necessariamen-
Os empregos do artigo definido por anáforas associativas se
te. A função do demonstrativo é primordialmente a de mostrar, a de
diferenciam dos anteriores, de acordo com Hawkins (1977), em dois
instruir o destinatário a reconhecer a entidade dentre outras possí-
aspectos cruciais: a relação é desencadeada por elementos lingüísticos
veis, ou de torná-la saliente. Como sintetiza Ducrot, o demonstrativo
expressos no cotexto, e existe um vínculo lexical de inclusão, ou
estabelece um “universo mostrado”, um espaço no qual é possível
uma ligação hipo/hiperonímica, ou ainda uma conexão atributiva entre
fazer um objeto discursivo sobressair-se.
a expressão definida e o antecedente. O exemplo (4) ilustra uma rela-
2.2 Na situação ampla ção de parte-todo construída em torno dos componentes do formato
de um cartão postal:
O que Hawkins (1977) trata como “condição de visibilidade”
(4) “Ano passado não tive retorno do cartão que mandei para
do demonstrativo deveria ser mais apropriadamente pensado como
Fortaleza e achei que tivesse perdido o contato. O seu cartão chegou
“condição de saliência”, já que o mesmo comando de “apontar para,
aqui em casa ontem (dia 24). Não acreditei quando vi os remetentes
dirigir-se a” é usado em outros contextos de não-visibilidade, como
e o lugar de origem. Estou ‘invejoso’ e feliz mesmo.” (carta entre
nos apelos a conteúdos específicos presentes na memória comum
amigos)
dos participantes da comunicação, ou nos apelos a informações ge-
A anáfora associativa é classicamente descrita como um pro-
rais do conhecimento compartilhado, conforme se pode notar no exem-
cesso de introdução de um referente novo no discurso ancorado em
plo seguinte:
um elemento do cotexto anterior, que desencadeia a remissão. A re-
(2) “Neste primeiro número do ano 2000, o Guia Pague Me-
lação se estabelece de forma indireta3 , implícita: dá-se a continuida-
nos Informatudo traz algumas matérias que podem ajudar você a cum-
de referencial mesmo sem haver retomada de referentes. Em (4), por
prir parte daquelas tão famosas promessas de ‘ano novo’. (Carta ao
exemplo, “os remetentes” e “o lugar de origem” remetem à fonte
leitor)
“cartão”, apesar de não a retomarem.
Na expressão em grifo, “daquelas” evoca um referente que o
Todavia, nem sempre a associação é autorizada por um traço
enunciador supõe já estabelecido na memória cultural e que, por essa
lexical de inclusão, como em (4). Às vezes, a referência é engatilhada
razão, é considerado como dado, informacionalmente definido. Em
por pistas não-nominais, ativadas por verbos, juntamente com outros
vista disso, o objeto é apresentado ao ouvinte como estando em foco
elementos do esquema textual. No exemplo seguinte, “ligar” e “falar
- apesar de só recentemente ser introduzido no discurso -, para que
bastante com o pessoal” licenciam o aparecimento de “a conta de
ele o interprete como lhe sendo imediatamente acessível, por ser sa-
telefone” como um referente de primeira menção:
liente.
(5) “Mas é isso mesmo, escolhi (ou escolheram?) de eu vir prá
A mesma condição de saliência não se cumpre, porém, com o
cá, e essas são algumas das conseqüências que a gente tem que enca-
emprego do definido. Em alguns casos, o referente é exibido como
rar. Ao menos dá prá ligar e falar bastante com o pessoal nesses dias.
dado por constituir um conhecimento muito geral, como ocorre com
A conta de telefone é detalhe” (carta entre um amigo e uma amiga)
o sol, a lua, o tempo, o ar etc.; confira-se o exemplo:
O importante, para nossos objetivos, é constatar que nenhum
(3) “Coincidentemente hoje faz um mês exato que sua carta foi
dos usos do conhecimento geral, ou das anáforas associativas permi-
escrita, e eu tô escrevendo – isso também me faz ver como de repente
te a intercambialidade do definido com o demonstrativo, sob pena
o tempo voa, já que me lembro de falar com você no telefone como
de, com a substituição, delinear-se um “universo mostrado” que, na
se fosse ontem. (...) O frio não tá nada do outro mundo, tipo uns 25
verdade, não está sendo indicado pelo falante. Em (4) e (5), por exem-
graus de dia e 18 à noite. A diferença é que o vento é gelado” (carta
plo, não se poderia trocar as expressões sublinhadas por “esses reme-
entre um amigo e uma amiga)
tentes”, “esse lugar de origem”, ou “essa conta de telefone”.
Se o demonstrativo substituísse o definido nas ocorrências em
A condição de saliência do demonstrativo dentro de um espa-
(3), com certeza haveria uma especificação do referente (“esse frio”,
ço de mostração, ou, de modo estendido, dos dêiticos em geral nos
“esse vento” etc.), uma espécie de indicação de que se tratava do tipo
parece, portanto, o ponto de distinção em relação ao artigo definido.
de frio ou de vento que estavam mais circunscritos às coordenadas
Tal constatação converge para as conclusões de Ehlich (1982)
dêiticas do falante, à sua situação de fala, e que mereciam ser desta-
sobre a diferença entre “procedimento dêitico” e “procedimento
cados naquele ponto da comunicação.
anafórico”. Ao primeiro, se prenderia a função de (re)focalização de
Outras vezes, a informação é menos geral, mas, ainda assim,
referentes; ao segundo, a de continuidade focal. Como frisamos em
não carece de nenhum tipo de detalhamento, daí por que pode ser
trabalho anterior (cf. Cavalcante, 2000), não devemos atrelar o pro-
introduzida como conhecida. Nestas circunstâncias, como demons-
cedimento dêitico exclusivamente a dêiticos típicos, nem o procedi-
tra Chafe (1994), a identidade particular dos referentes não interessa,
mento anafórico apenas a anafóricos, uma vez que existem expres-
porque, para os propósitos comuns, eles são equivalentes a quais-
sões referenciais anafóricas que, ao conterem indicializadores, exe-
quer outros, de modo que basta verbalizá-los como categorias, do
cutam igualmente procedimentos dêiticos.
tipo: o telefone, a farmácia, o correio etc.
A zona de conflito entre os empregos do definido e do de-
Ocorrências dessa natureza podem ser muito mais freqüentes
monstrativo se estabelece, no entanto, com o que estamos denomi-
do que supomos; elas representam uma manifestação flagrante da
cumplicidade dos interlocutores, de seu esforço cooperativo em apos-
tar todas as fichas nas expectativas gerais que partilham sobre situa-
3
ções típicas. É como se enunciador e destinatário firmassem o acordo As anáforas associativas têm sido analisadas, hoje, como apenas uma das
tácito da implicitude, por bem da comodidade e da economia. possibilidades do fenômeno mais amplo das “anáforas indiretas” (cf. Schwarz,
2000 e Marcuschi, 2000).

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 359


nando de expressões nomeadoras. As nomeações consistem no 3.1 Presença de um adjunto adnominal ou de um comple
encapsulamento de informações diluídas no cotexto anterior ou pos- mento nominal no SN rotulador:
terior, ou na remissão ao texto representado como um todo. Os con-
(8) A Câmara Municipal de Fortaleza pode estar um passo à
teúdos difusos recuperados são alçados à categoria de referentes e,
frente na análise e discussão de projetos que tenham a mulher como
instituídos como tais, passam a constituir o suporte de novas
tema. Desde o final do ano passado foi criada no Legislativo Munici-
predicações.
pal a Comissão da Mulher, da Juventude e da Criança.
Sob uma perspectiva formal, existem nomeações manifestadas
A iniciativa do Legislativo Municipal é pioneira, já que o Legislativo
por expressões definidas e por expressões demonstrativas, respecti-
Federal e Estadual não dispõem de uma comissão permanente especí-
vamente ilustradas nos exemplos seguintes:
fica para a mulher. (Editorial - jornal O Povo)
(6) “A Alemanha continua aplicada e com uma forte marca-
ção, como sempre fez. A diferença é que não tem jogadores excepci-
3.2 Substantivo derivado morfologicamente de
onais, com exceção do goleiro Khan. O fato (rótulo anafórico) mos- nominalizações:
tra que o principal responsável pelo glorioso período do futebol ale-
mão foram os excepcionais jogadores e não a famosa disciplina ale- (9) “Terceiro, apresentarei os meus resultados oriundos de um
mã.” (artigo de opinião – Jornal do Brasil) trabalho ainda em andamento, que focaliza a variação, tomando em
(7) “Na principal partida amistosa, a Argentina bailou em Roma. consideração as regras dos diferentes gêneros de texto. A apresentação
Venceu a Itália por 2 a 1, mas merecia um placar dilatado. (...) Batistuta segue com os aspectos tipológicos, que abrangem questões de nível
é mais preciso na finalização, mas Crespo é mais habilidoso. Cláudio universal (...)” (artigo científico)
Lopes é mais veloz, mas Gonzalez é mais técnico. Isso (rótulo DD) 3.3 Nomes metalingüísticos propriamente ditos:
mostra que o elenco argentino é muito bom.” (artigo de opinião – (10) “ ‘- Obriga papai noel [ quando eu] [ileg] eu [ileg] abri
Jornal do Brasil) o presente’. A frase é iniciada em discurso direto e imediatamente
Diferentemente das situações examinadas por Hawkins (1977), entra em discurso indireto, sem nenhuma marca.” (artigo científico)
em termos estruturais, o definido é sempre permutável com o demons-
trativo nos sintagmas nomeadores. 3.4 Hiperônimos representados por nomes altamente genéri-
As expressões nomeadoras podem ser realizadas não somente cos, principalmente quando não seguidos de expansão e quando em
por SNs, mas também por pronomes, e à escolha de uma dessas estru- posição de sujeito.
turas também estão correlacionadas funções cognitivo-discursivas di- (11) “Apenas 9% estão nas indústrias, onde em geral as colo-
vergentes. Postulamos que as nomeações de forma pronominal são cações são de melhor qualidade. Entre os homens, o porcentual na
sempre dêitico-discursivas e são selecionadas porque requerem baixo indústria é de 27%. Com relação aos rendimentos, a situação não é
esforço cognitivo. Ocorrem mais freqüentemente nos momentos da melhor.” (Reportagem – jornal O Povo)
interação em que o falante pretende apenas resumir, sem acrescentar Parece-nos que todos esses fatores estruturais apresentam dois
aspectos em comum: um maior grau de genericidade do nome
nenhum conteúdo novo, sem incluir nenhum propósito argumentativo.
rotulador, que lhe confere um poder mais sumarizador do que
Por sua vez, as nomeações de forma nominal assumem as carac-
avaliativo, e, em conseqüência disso, um grau mais baixo de novida-
terísticas do que Francis (1994) vem descrevendo como “rótulos”.
de para o destinatário – se é que se pode relativizar o status novo ou
Conquanto os rótulos possam ser escolhidos simplesmente para resu-
velho de um referente.
mir por meio de nomes gerais – nesse ponto, aproximam-se bastante
Como veremos a seguir, os fatores que facilitam o apareci-
das pro-formas e não têm força argumentativa -, eles servem, em geral,
mento de demonstrativos – que são comprovadamente mais freqüen-
não somente para sumariar, mas para adicionar um ponto de vista. Fun-
tes nos rótulos – estão inteiramente voltados para motivações
cionam como uma indicação de como o destinatário deve interpretar a
cognitivo-discursivas.
informação recuperada, por isso imprimem à categorização do referen-
te uma orientação argumentativa. 4. Funções discursivas do demonstrativo
O problema central consiste em descobrir quando se empregam
os rótulos com definido, que correspondem a anafóricos, e quando se O procedimento dêitico dos rótulos com demonstrativo, res-
utilizam os rótulos com demonstrativos ou advérbios, que correspondem ponsável pela (re)focalização de conteúdos difundidos no cotexto e
a dêiticos discursivos. pela monitoração da atenção dos interlocutores, traz como conseqü-
Sob uma perspectiva pragmático-funcional, temos mostrado (ver ência uma série de funções discursivas ligadas à saliência cognitiva
Cavalcante, 2000) que as nomeações com definido cumprem procedi- que ele promove:
mento anafórico, ao passo que aquelas com demonstrativo desempe-
nham procedimento dêitico. Embora relevante, a separação não justifi- 4.1 São mais indicados para provocar mudanças de direção na
ca, contudo, a preferência por uma ou outra forma em contextos espe- construção dos sentidos:
cíficos. Assim, a despeito da indiscutível correlação entre demonstrati- (12) A maior inserção das mulheres no mercado de trabalho
vos, saliência contextual e procedimento dêitico, sobram ainda como tem sido explicada também pelo aumento das exigências dos empre-
inexplicados os motivos pelos quais uma forma é preterida em detri- gadores com relação ao nível de escolaridade. Neste embate, as mu-
mento da outra. lheres, que tem maior grau de instrução, levam vantagem. Em 1999,
enquanto 35% tinham mais de oito anos de estudo, apenas 32% dos
3. Condicionamentos estruturais do definido homens estavam nesta situação. (Reportagem – jornal O Povo)

É interessante observar como os fatores sugeridos por Apothéloz; 4.2 Assinalam, com mais ênfase, o ponto de vista que os no-
Chanet (1997) e por Koch (2001) como condicionadores do uso do mes axiológicos acrescentam:
definido são de ordem estrutural: ou pela construção sintática da ex- (13) Sem se confundir com a imagem de fragilidade, as mu-
pressão nomeadora, ou pela derivação morfológica do nome rotulador, lheres reivindicam cada vez mais políticas públicas específicas vol-
ou pelos traços mais estritamente lexicais do rótulo. Os fatores podem tadas para o seu bem-estar. Para garantir essas conquistas, tem cres-
ser assim resumidos e exemplificados: cido nos últimos anos o número de leis federais, estaduais e munici-

360 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


pais que atendem às necessidades próprias do sexo feminino. (Edito- les nominalisations. In: MULDER, W. de; RYCK, L.T.;
rial - jornal O Povo) VETTERS, C. (eds.). Relations anaphoriques et (in)cohérence.
Amsterdan: Rodopi. p. 159-86.
4.3 São fundamentais na organização das informações no dis- CAVALCANTE, M. M. (2000). Expressões indiciais em contextos
curso, porque indicam posições no espaço mostrativo do texto: de uso: por uma caracterização dos dêiticos discursivos. Tese
(14) São instrumentos como a rabeca, a viola dos cantadores e (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
o marimbau (berimbau de lata ou de cabaça), este último percutido CHAFE, W.L. (1994). Discourse, consciousness, and time: the flow
ou tocado com arco.” (E040 – projeto cultural – NELFE) and displacement of conscious experience in speaking and
writing. Chicago e London: The University of Chicago Press.
4.4 São mais eficientes, por sua função focalizadora, na mar- CONTE, E. 1996. “Anaphoric encapsulation”. Belgian Journal of
cação de novos tópicos, na abertura de novos parágrafos. Linguistics 10: Coherence and anaphora, pp.1-10.
(15) “Note-se que os conteúdos referenciais dos SNs omissos DU BOIS, J. W.; THOMPSON, S. A. (1991). Dimensions of a theory
de conduzindo e de decidir, mesmo não sendo correferenciais com of information flow. Santa Barbara: University of California.
nenhum outro elemento no discurso (são casos de dêixis textual im- DUCROT, O. (1977). Princípios de semântica lingüística – dizer e
pura), ficam latentes no foco de consciência dos participantes, e, por não dizer. Tradução de Carlos Vogt; Rodolfo Ilari; Rosa A. Fi-
este motivo, devem ser considerados como conteúdos Dados. (...) gueira. São Paulo: Cultrix. Título original: Dire et ne pas dire:
Essas reflexões ratificam a idéia de que existem duas espécies de SN principes de sémantique linguistique.
omisso” (artigo científico) EHLICH, K. (1982). Anaphora and deixis: same, similar, or different?
Cremos que esta última função seja uma mera decorrência das In: JARVELLA, R.J.; KLEIN, W. (eds.) Speech, place and
duas primeiras, pois é a própria essencialização de conteúdos difusos action: studies in deixis and related topics. New York: John Wiley
(ou “hipostasiação”, conforme emprega Conte, 1996) que, atribuin-
and Sons. p.315-38.
do ao enunciado uma força ilocucionária, propicia a transição.
GILL, F. (1994). Advances in written analysis. London: Ed.
Routledge.
5. Considerações finais
HAWKINS, J.A. (1977). The pragmatics of definiteness. Part I. In:
Alguns contextos que parecem favorecer o emprego do de- Linguistische Berichte. Los Angeles: University of California,
monstrativo são perfeitamente compatíveis, no entanto, com o uso n. 47. p. 1-27.
do definido. É o caso, por exemplo, de certos rótulos classificadores KOCH, I. G.V. (2001). A referenciação como atividade cognitiva e
de “processo mental” ou de “atividades linguajeiras” (ver Francis, interacional. /Conferência apresentada no II Congresso Inter-
1994), como esse/o pensamento; essa/a explicação etc. Nesta situa- nacional da ABRALIN – Fortaleza/.
ção, prevalece apenas a condição de saliência, ou o procedimento PRINCE, E. (1992). The ZPG Letter: subjects, definiteness, and
dêitico que exercem os demonstrativos de tornar os referentes mais information-status. In: MANN, W.C.; THOMPSON, S.A . (eds.)
“visíveis” no campo mostrativo do texto. Discourse description: diverse linguistic analyses of a fund-
raising text. Amsterdan/Philadelph: J. Benjamins. p. 295-325.
6. Referências bibliográficas SCHWARZ, M.. (2000). Indirekte Anaphern in Texten. Tübingen:
APOTHÉLOZ, D.; CHANET, C. (1997). Défini et démonstratif dans Niemeyer.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 361


Colóquio
“ Português Europeu/Português do Brasil:
Unidade e Diversidade na Passagem do Milênio”
364 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001
A semântica das construções com
portanto no PE e no PB
Ana Cristina Macário Lopes (Universidade de Coimbra)
Erotilde Goreti Pezatti (UNESP/São José do Rio Preto)
Norma Barbosa Novaes (PG-UNESP/ São José do Rio Preto)

ABSTRACT: This paper aims to characterize the different semantic and pragmatic values of the operator portanto in a sample of written and spoken
sentences that represents European and Brazilian varieties of contemporary Portuguese.
PALAVRAS-CHAVE: conjunção, conector, portanto, articulador discursivo

0. Apresentação em todas as construções conclusivas, não é possível inverter a ordem


das proposições. Veja-se a agramaticalidade de (v):
Neste trabalho, propomo-nos contribuir para a caracterização
dos diferentes valores semânticos que o operador portanto pode as-
(v) *Portanto é tímida, a Joana é adolescente.
sumir no português contemporâneo, nas variedades européia e bra-
sileira. Para isso, foram utilizados dois corpora. Para o português
Observe-se agora, em (vi), o que ocorre quando se submete a
europeu (doravante PE), o corpus foi constituído a partir do Corpus
construção com portanto ao teste da interrogativa:
de Referência do Português Contemporâneo. Para o português bra-
sileiro (de agora em diante PB), foi utilizado o corpus mínimo do
(vi) A Joana é adolescente, portanto é reservada?
Projeto de Gramática do Português Falado e um corpus escrito ex-
traído de jornais e revistas de reportagens de grande circulação naci-
Assinale-se também a impossibilidade de o conector conclusi-
onal.
vo iniciar uma resposta a uma pergunta específica, introduzida por
O texto é constituído de quatro partes. A primeira apresenta
um constituinte interrogativo, ao contrário do que acontece com as
as propriedades sintáticas das construções conclusivas com portanto
subordinadas causais e temporais.
e a segunda traz a caracterização semântica dessas construções. Na
terceira parte, estabelece-se a especificidade da conexão conclusiva
2. Caracterização semântica das construções com portanto
face às causais e conseqüenciais, ficando a quarta parte reservada
para os valores assumidos por esse operador a partir da análise dos
Portanto, enquanto operador conclusivo, tem um significado
corpora.
de tipo instrucional: assinala ao ouvinte que a proposição que intro-
duz deve ser lida/interpretada como conclusão, cujo fundamento é
1. Propriedades sintáticas das construções conclusivas
um raciocínio inferencial. Assim, numa estrutura p portanto q (sen-
Portanto, enquanto operador de conexão e tradicionalmente
do portanto comutável com logo), o conector sinaliza que p é uma
incluído na classe das conjunções conclusivas, dá origem a textos
premissa e q uma conclusão, num esquema inferencial (p e q são
(ou discursos) não frásicos, ou seja, o produto final resultante da
entidades epistêmicas que integram o universo cognitivo do falante e
conexão não pode ser integrada na categoria sintática F (cf. Peres,
operam no domínio do raciocínio). A construção p portanto q confi-
1997). Para o provar, veja-se a impossibilidades de encaixamento da
gura um entimema, um esquema inferencial defectivo, em que uma
estrutura resultante da conexão como complemento de um verbo ou
das premissas não está explicitada1.
de um advérbio de frase, exemplificada em (i) e (ii):
Atente-se no exemplo (1), em que a premissa antecede a
conclusão:
(i) *O João disse [que[a Joana é adolescente, portanto é tímida]]
(ii) *Possivelmente, [a Joana é adolescente, portanto é tímida]
(1) Penso, portanto existo.
Atente-se agora noutras propriedades sintáctico-semânticas re-
O processo inferencial subjacente lembra, pela sua estrutura,
levantes das construções com portanto, partilhadas, também, por
o raciocínio formal designado por modus ponens na lógica
construções conclusivas em que o operador de conexão é logo. Como
proposicional clássica2.
o exemplo (iii) atesta, verifica-se a impossibilidade de a estrutura
Vamos chamar-lhe modus ponens cancelável porque é a pre-
final ser colocada sob o escopo de um operador de negação
proposicional:

(iii) A Joana não é adolescente, portanto é reservada. 1


Em Peres (1997), a caracterização das conclusivas faz-se em termos seme-
lhantes. No entanto, assimila-se o processo inferencial ao modus ponens,
Outra propriedade relevante das construções com portanto sem se evidenciar o carácter não-monótono da dedução.
2
prende-se com a impossibilidade de ocorrência da frase introduzida Se o texto fosse (1a), o processo inferencial seria idêntico, sendo que a
premissa omitida seria, neste caso, a premissa menor do modus ponens:
pelo conector em estruturas de clivagem ou de marcação de foco,
(1a) Se penso, existo, portanto existo.
como se prova em (iv): Note-se que uma construção conclusiva pode também dar origem a um
processo inferencial que lembra o modus tollens da lógica proposicional clás-
(iv) *É portanto tímida que a Joana é adolescente. sica. Veja-se (i):
(i) As luzes não estão acesas, portanto o João não está em casa.
Note-se ainda que nas construções com portanto, como aliás Neste caso a premissa elidida seria ‘Se/quando o João está em casa, as luzes
estão acesas?.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 365


missa genérica omitida que, articulada com a premissa expressa, sus- A inaceitabilidade assinalada compreende-se facilmente: num
tenta/valida a conclusão expressa. acto ilocutório expressivo (suportado pela exclamativa), o falante
Note-se que uma construção conclusiva pode também dar ori- exprime o seu estado psicológico face ao conteúdo proposicional do
gem a um processo inferencial que lembra o modus tollens da lógica enunciado; ora, a ocorrência do conector sinaliza um raciocínio
proposicional clássica. Veja-se (2), em que a premissa elidida seria inferencial que desemboca necessariamente na asserção de uma dada
‘Se/quando o João está em casa, as luzes estão acesas’.Também neste proposição. A ocorrência (11), extraída do corpus do PB, evidencia,
caso se trata de um modus tollens cancelável. no entanto, que portanto pode articular uma asserção e um ato
injuntivo. Nessa ocorrência a injunção condicional subjacente en-
(2) As luzes não estão acesas, portanto o João não está em casa. volve a expressão de uma volição no antecedente, que supostamente
corresponde ao propósito ou objetivo que o interlocutor pretende
Em muitos casos, essa premissa pode instanciar conhecimento atingir; ‘Se não se quer p, ! não q.
enciclopédico consensual, normalmente expresso através de frases
genéricas (a “voz geral, de consenso em dada cultura, ou (...) verda- (11) Imagine o desespero de uma mãe que cercou você de todo o cari-
de universalmente aceite” de que fala Koch (1989). Veja-se o exem- nho, que te deu tanta proteção, e hoje vê você mergulhar de corpo inteiro
plo seguinte em que a premissa omitida é a condicional expressa em numa piscina cheia de algas e bactérias repugnantes. E num verão des-
(4): ses, ainda por cima: quanto mais gente, mais impureza na piscina. Por-
(3) Riscaste o fósforo, portanto ele acendeu-se. tanto, não se descuide.” (PB, escrito, A-Ve:26/01/00:p.58: 1-6)
(4) Se tu riscares o fósforo, ele acende-se. 3. A especificidade da conexão conclusiva face às conexões
causais e conseqüenciais
Esta condicional, por seu turno, particulariza/instancia uma
assunção “por defeito”- a de que os fósforos, quando riscados, nor- Adotando a distinção proposta por Sweetser (1991) entre do-
malmente/geralmente acendem-se. Esta assunção pode ser expressa mínio do conteúdo (domínio que envolve a representação de estados
pela condicional genérica ‘Se alguém riscar um fósforo, ele acende- e eventos do mundo) e domínio epistêmico (domínio que envolve o
se’. Este tipo de informação que envolve generalizações a partir de conjunto dos conhecimentos e crenças dos falantes), parece-nos pos-
situações episódicas recorrentemente verificadas faz parte do common sível distinguir claramente as conexões causais e conseqüenciais da
ground dos falantes. Atente-se agora para o exemplo (5), em que, conexão conclusiva. Assim, nas construções causais e conseqüenciais
uma vez mais, o conector sinaliza que a proposição que introduz expressa-se uma relação de causalidade no nível do domínio do con-
deve ser interpretada como conclusão numa inferência dedutiva. Nesse teúdo, ou seja, representam-se dois estados de coisas, sendo que um
caso, a premissa omitida é (6): deles é apresentado como causa, e o outro como conseqüência. Como
assinala Óscar Lopes (1972), a causa é uma condição suficiente que
(5) O João é muçulmano, portanto não bebe álcool. se verifica no mundo real. Daí o carácter factual das construções cau-
(6) Se o João é muçulmano, não bebe álcool. sais e conseqüenciais, como as que se exemplificam em (12) e (13):

Esta premissa, por sua vez, apoia-se/instancia/particulariza uma (12) As estradas estão cortadas porque houve cheias.
assunção geralmente aceite, que pode ser expressa por meio da con- (13) Houve cheias, daí as estradas estarem cortadas.
dicional genérica exemplificada em (7) e semanticamente equivalen-
te a (8): Nas construções conclusivas, a relação causa/conseqüência
opera no nível do domínio epistêmico: o conector assinala que a pro-
(7) Se alguém é muçulmano, não bebe álcool. posição que introduz é a conclusão (ou consequência lógica) de uma
(8) Os muçulmanos não bebem álcool. inferência dedutiva legitimada pela articulação de uma premissa im-
plícita com a premissa expressa. Uma paráfrase aceitável destas cons-
Noutros casos, a premissa omitida pode resultar do conheci- truções será: o fato de o falante saber que p (ou acreditar que p, sendo
mento do falante acerca dos hábitos do seu interlocutor. Veja-se (9): p a premissa expressa) é a causa que o leva a asserir/concluir q, dada
a assunção de uma premissa genérica implícita. Verifica-se, assim,
(9) A Ana está mal-humorada, portanto está fechada no quarto. que a caracterização cabal desta conexão convoca necessariamente
uma dimensão pragmática.
A premissa omitida - se/quando a Ana está mal-humorada, A premissa expressa é normalmente uma proposição
fecha-se no quarto - é expressa novamente através de uma frase ge- epistemicamente necessária (é certo para o falante que p). A frase
nérica, mas a assunção veiculada por esta frase não integra, obvia- declarativa simples, sem qualquer lexicalização das modalidades
mente, conhecimento enciclopédico sobre o mundo. É um conheci- epistêmicas, é a expressão lingüística que manifesta por excelência
mento ‘local’, que pragmaticamente se pressupõe partilhado pelo uma atitude de certeza por parte de falante: é porque sabe que p que
interlocutor. o falante deduz q. Assim, a premissa p funciona como prova ou evi-
Note-se que, em todos os casos comentados, a noção de pres- dência (no plano epistêmico) que legitima a asserção categórica da
suposição pragmática parece adequada para dar conta da natureza da conclusão q. Não é aceitável uma construção conclusiva em que a
premissa omitida. Adota-se a definição de Stalnaker (1974), segun- premissa seja modalizada como epistemicamente possível ou prová-
do a qual pressuposições pragmáticas são “propositions whose truth vel e a conclusão seja apresentada como epistemicamente necessária,
S [speaker] takes for granted, or seems to take for granted, in making como acontece em (14):
his statement”.
Note-se, ainda, que os conectores conclusivos estão automati- (14) *É possível/provável que/talvez o João esteja doente, portanto
camente excluídos se a segunda frase revestir a forma de uma frase está mal-humorado.
exclamativa, como se pode ver em (10):

(10) O Luís está doente, *portanto que insuportável que ele está!3 3
Exemplo adaptado de Ferrari e Rossari (1998).

366 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Contrariamente ao que acontece com as construções causais, que retoma toda frase anterior. Portanto, nesse caso, ocupa a posição
em que a precedência temporal é decisiva no estabelecimento do nexo P1, reservada para constituintes com função pragmática especial, nesse
de causalidade (numa construção do tipo p porque q, q é a causa de caso, a de Foco. Na verdade, temos nesse caso a atuação pacífica de
p, e q antecede necessariamente q), nas conclusivas o nexo temporal dois princípios de ordenação de constituintes (cf. Dik, 1989): o Prin-
entre p e q é irrelevante, como se verifica em (15) e (16). cípio de Importância Pragmática, segundo o qual constituintes com
função pragmática especial são preferencialmente colocados em “po-
(15) A neve derreteu, portanto está calor. sições especiais”, geralmente a posição inicial da frase; e o Princípio
(16) Está calor, portanto a neve derreteu. de Complexidade Crescente4 , que diz que constituintes mais com-
plexos tendem a aparecer no final da sentença.
4. Os valores de portanto a partir da análise dos dados do Ocorrências de portanto como advérbio aparecem também,
corpus nas duas variedades, no domínio de uma oração subordinada reduzi-
4.1. Portanto conector da de gerúndio, sempre em posição pós-verbal, conforme demonstra
(20). Nesse caso o advérbio portanto, como satélite, ocupa sempre a
No corpus do PE, não são muito significativas as ocorrências primeira posição na oração subordinada. O princípio que aqui atua é
de portanto que manifestam as propriedades semânticas do conector também o da importância pragmática já que, por ser Foco, esse cons-
conclusivo acima enunciadas. Há apenas dez ocorrências no sub- tituinte é colocado em uma posição que não é a sua usual (P1), con-
corpus escrito, corespondentes 20%, e duas no sub-corpus oral, equi- siderando que o padrão básico de ordenação de constituintes em por-
valendo a 4%. No PB, obtivemos um porcentual de 32% de ocorrên- tuguês, como já demonstrado em estudos anteriores (cf. Pezatti e
cias com valor conclusivo no oral e 33%, no escrito. Os dados mos- Camacho, 1997), é P2, P1 S V O X, P35.
tram, então, que o PB utiliza com maior freqüência esse conector
com valor conclusivo do que o PE, embora no total geral esse opera- (20) o mesmo acontece para o sexo feminino...se na mulher se retira
dor seja menos freqüente na primeira variedade. (17) ilustra a cons- os ovários...retirando portanto a fonte pro/ da/ eh:: eh::/ elaboradora
trução conclusiva p portanto q: de hormônio...feminino...o:: as glândulas mamárias...elas se atrofiam
(PB, oral, EF-SSA-49)
(17) “O orçamento do município de São Paulo para o exercício fi-
nanceiro de 2000 prevê a receita de cerca de 7,6 bilhões de reais Como introdutor de oração gerundiva, portanto retoma
enquanto o orçamento fiscal do Estado de Minas Gerais tem receita anaforicamente a proposição anterior e, ao mesmo tempo, assinala
estimada de 14,2 bilhões de reais. Portanto, o governo de Minas que a proposição que prefacia deve ser lida como conseqüência da
Gerais lida com quase o dobro das somas do município de São Pau- situação descrita na proposição anterior.
lo.” (PB, escrito, Car-Ve:22/03/00:p.31:1-9) Estamos perante construções em que portanto opera no do-
mínio do conteúdo. Se portanto, no seu uso conclusivo (em que é
4.2. Portanto advérbio comutável com ‘logo’), opera ao nível do domínio epistêmico, neste
uso que começámos por considerar periférico opera no nível do
É freqüente no corpus a co-ocorrência da conjunção copulativa domínio do conteúdo, na medida em que os relata são neste caso
‘e’ com portanto; esta possibilidade combinatória evidencia a natu- estados de coisas do mundo, sendo um deles apresentado como causa
reza adverbial de portanto. Foram encontradas 12% de ocorrências do outro.
desse tipo no PE tanto oral quanto escrito, sendo seis ocorrências em
cada uma das modalidades, já no PB, encontramos 37%, no oral e 4.3. Portanto articulador discursivo
23% no escrito.
Sem exclusão de vínculos de participação na estrutura
(18) “(...) todas as actividades ligadas à finança, aos bancos, etc., interpessoal do discurso, a atuação de portanto revela-se também
concentram-se na Baixa, a indústria também, e portanto nota-se bas-
tante a concentração também dos meios de transporte (...)” (PE, oral,
572-20-C00-204-20-M-J-5-7-00)
Portanto, em todos os casos, é parafraseável por “por causa 4
De acordo com o Princípio da Complexidade Crescente, há uma preferên-
disso/por isso”, o que nos leva a afirmar que tem um comportamento cia pela colocação de constituintes de acordo com a ordem de complexida-
ainda próximo do de um adjunto adverbial de causa; tal como a pará- de crescente. (cf. Dik, 1989).
5
frase sugere, portanto retoma anaforicamente a proposição anterior A teoria de ordenação de constituintes da Gramática Funcional (cf. Dik,
1981) sustenta que cada língua tem um ou mais padrões funcionais, confor-
e expressa um valor causal. Por outro lado, sinaliza que a proposição
me o esquema geral P2, P1 (V) S (V) O (V), P3. As regras de colocação
seguinte deve ser lida como conseqüência da situação descrita pela inserem os constituintes da predicação subjacente em suas respectivas posi-
proposição anterior. ções nesse esquema e nenhum movimento subseqüente é permitido, uma
Nesses casos, o constituinte estudado aparece sempre, nas duas vez que um constituinte tenha obtido sua posição na estrutura. P2 e P3 são
variedades, após o relator e na primeira posição do segundo relatum, posições ocupadas por constituintes extrafrasais; P2 é a posição reservada
como se verifica em (19), equivalendo, então, a um advérbio de cau- para constituintes com a macrofunção pragmática de Orientação e P3, para
sa, com o seguinte esquema formal: [relatum] R [portanto relatum] Antitema (Tail), sendo que as vírgulas indicam pausas entonacionais. Assim,
entre as vírgulas, encontram-se os possíveis padrões para a frase, que cons-
titui uma predicação completa. As regras de colocação determinam, em pri-
(19) não distingue facilmente entre o certo e o errado e, portan-
meiro lugar, quais constituintes devem ou podem ir para a posição P1: verifi-
to, acha que distinções entre o que é legal e o que não é são arbitrárias ca-se, primeiramente, se há algum constituinte-P1 na predicação, como pa-
e injustas. (PB, escrito, ESP:06/08/00:p.2:279-292) lavras-Qu, pronomes relativos e conectores subordinativos. Se nenhum cons-
tituinte desse tipo estiver presente, então podem ser colocados na posição
Como se vê, o relator e, junta o primeiro relatum [não distin- P1 constituintes com função de Foco ou de Tópico. Aplicadas as regras de
gue facilmente entre o certo e o errado] ao segundo [acha que distin- P1, todos os demais constituintes da predicação assumem as respectivas po-
ções entre o que é legal e o que não é são arbitrárias e injustas], sendo sições estruturais, indicadas por S, O, V e outros símbolos possíveis, como
portanto parafraseável por por causa disso, uma expressão adverbial X, usados especialmente para indicar posições de satélites.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 367


centrada no processamento da informação e na tessitura dos tópicos (23) “Em uma avaliação recente dos programas de apoio ao ensino
que se lhe associam. Trata-se, portanto, de um marcador tipicamente financiado pelo governo federal americano, descobriu-se que aque-
articulador de partes do texto, pois estabelece relações seqüenciais les que deixavam escolas e professores fazer o que bem entendiam
entre elas, mediante o processamento de encaminhamentos, retoma- mostraram piores resultados do que os programas em que havia mui-
das e fechos de tópico (Risso, 1996a). No PB, 26% das ocorrências to mais orientação e estrutura[...]. Portanto, fogueira para os livros
apresentam esse valor no oral e 43%, no escrito. Já o PE, utiliza-se chatos e mortos.”(PB, escrito, Mat-Ve:31/05/00:p.22:87-93)
desse articulador em 20% do corpus escrito e 14% do oral.
Parece-nos que aqui portanto, continuando a assinalar uma
4.3.1. Retomador de tópico ancoragem no discurso precedente, introduz um comentário conclu-
sivo do falante, que assim fecha o tópico discursivo. Note-se que, em
Claramente, em contextos como os ilustrados abaixo, portan- usos deste tipo o encadeamento é mais difuso, já que toda a informa-
to sinaliza a retomada de um tópico discursivo que foi interrompido ção expressa pelo discurso anterior é relevante para a validação da
por uma digressão. O falante regressa ao tópico e, numa reformulação asserção final. A paráfrase que parece corresponder de forma mais
parafrástica, repete informação já dada. (21) ilustra um caso no PE. adequada a este valor de portanto envolve o recurso a expressões do
tipo ‘em suma e concluindo’.
(21) “É efectivamente uma profissão liberal que está, por semelhan-
ça, afim à, àquela actividade do advogado, não tem necessariamente 4.3.4. Reformulador de termos
os conhecimentos de direito que os advogados têm. Muito obrigado,
faz favor de fumar eu não utilizo, estejam à vontade. E...E portanto Importa ainda ilustrar um outro uso de portanto, desta feita
a razão de ser fundamental da diferença que há entre os serviços do como conector de sintagmas ou de constituintes frásicos. Neste caso,
solicitador e os do advogado, pois é precisamente essa cisão das ques- portanto define a orientação que o falante imprime à natureza do elo
tões de direito” (1003-23-M05-012-38-M-A-1-4-C). seqüencial entre entidades textuais, ou seja, é usado para reformular
a informação contida no sintagma anterior. Com esse valor
4.3.2. Encaminhador de tópico metadiscursivo, ocorreu em 6% dos casos do PE e 5,2%, no PB.

Parafraseável por ‘assim’, o advérbio conectivo, em contextos (24) “Eu pesco com dois colegas meus, mais ou menos da mesma
como (22) abaixo, parece ter um valor semântico que só poderá ser idade, que um pesca com iscos vivos, portanto a minhoca, no caso,
cabalmente descrito se tivermos em conta o nível da estrutura temática não é, e outro pesca à pluma, ou seja a mosca artificial”. (PE, oral.)
e informacional do texto/discurso. A frase em que ocorre portanto
dá continuidade ao tema/tópico discursivo- o programa da SIC sobre Em (24) o falante introduz um comentário que funciona como
Pedro Caldeira- elaborando-o; por outras palavras, a informação con- reformulação não parafrástica do sintagma anterior. Parece-nos tra-
tida na frase em que ocorre ´portanto’ concorre para a progressão tar-se ainda de um uso susceptível de ser integrado no âmbito da
temática do texto, mas decorre simultaneamente da informação pre- estruturação informacional do texto, embora num plano micro-estru-
viamente introduzida. A referência à utilização do próprio Pedro tural, já que aqui se articulam dois sintagmas. Portanto pode também
Caldeira como protagonista está já de alguma forma contida na frase funcionar como reformulador parafrástico, refletindo, no registro
anterior, em que se caracteriza o programa como docu-drama, ou verbal, a preocupação do falante com as circunstâncias vigentes de
seja, um produto híbrido/misto, em que documentário e ficção se interação social, como se observe em (25).
misturam. portanto assinala que há uma relação discursiva de elabo- (25) então o tecido subcutâneo...abaixo da pele portanto...nós va-
ração entre os dois segmentos do texto, sendo que o último explicita mos encontrar os elementos vasculares de::.../ hormônios responsá-
e especifica informação já sugerida ou já contida no primeiro. O va- veis pela...vasc/...irrigação...e pela inervação da glândula (PB, oral,
lor conclusivo que prototipicamente associámos a portanto mantém- EF-SSA-49)
se, mas desta vez ele é projetado do plano epistêmico para o plano da
organização discursiva/textual. portanto sinaliza continuidade e pro- 4.4. Portanto sinalizador de interação
gressão temáticas: esbate-se a componente lógica e reforça-se a rela-
ção de consequencialidade no plano textual/discursivo. Veja-se agora o exemplo seguinte, que ilustra
(22) “A SIC chama-lhe “Docu-drama sobre fatos reais com algumas paradigmaticamente um uso metadiscursivo de portanto. Enquadram-
cenas reconstituídas” e chamar-se-á talvez “Pedro Caldeira, o último se aqui os sinalizadores direto da interação, responsáveis pela ex-
corretor”. Teremos portanto a utilização do próprio Pedro Caldeira pressão das relações entre os interlocutores, pela checagem ou con-
firmação do funcionamento do canal comunicativo e pela sinaliza-
como protagonista na reconstituição de cerca de cinco cenas, nome-
ção de seus papéis de locutor/alocutário, no desenvolver do evento
adamente uma em que se encontra na correctora”(PE, sub-corpus
discursivo. Operam no plano da atividade enunciativa, assegurando
escrito, J19972).
a ancoragem pragmática do conteúdo, ao definirem, entre outros pon-
tos, a força ilocutória com que ele pode ser tomado, as atitudes assu-
4.3.3. Fechador de tópico
midas em relação a ele, a checagem de atenção do ouvinte para a
mensagem transmitida, a orientação que o falante imprime à nature-
‘Portanto” pode ser ainda utilizado para encerramento de dis- za do elo seqüencial entre entidades textuais. Servem também, como
curso, com uma clara função de introdutor de uma coda. A coda6 tem
também a propriedade de fazer a ligação entre o momento do início
e fim do discurso e o presente da enunciação, trazendo produtor e 6
O termo coda foi primeiramente sugerido por Labov (1978: 365) como
leitor de volta ao ponto do início do discurso. É exatamente o que segue: there are also free clauses to be found at the ends of narratives; (...)
ocorre no texto abaixo, retirado do corpus do PB. Depois de uma This clause forms the coda. It is one of the many options open to the narrator
longa discussão sobre livros, ensino e escola, o autor, no final do for signalling that the narrative is finish. (...) Codas may also contain general
texto, retoma o título Queimamos os livros?, respondendo à pergun- observations or show the effects of the events on the narrator(...). Alarga-
mos o seu uso ao utilizá-lo para definir sentenças que tenham essas carac-
ta nele contida.
terísticas em qualquer discurso, não apenas no narrativo.

368 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


se observa em (26), à checagem de interpretação por parte do que já foi dito; como Sinalizador de Interação é responsável pela
interlocutor, ou seja, o Locutor2 tenta aferir se a sua interpretação expressão das relações entre os interlocutores, operando, então, no
corresponde de fato àquilo que o Locutor1 quis dizer. plano da atividade enunciativa e assegurando a ancoragem pragmáti-
ca do conteúdo; como Marcador Conversacional, portanto, não se
(26) VR — O verdadeiro estúpido não é o deficiente mental, mas o deixa parafrasear, funcionando ‘no monitoramento da fala, na
que resiste activamente à inteligência. É a tal pessoa que, no fundo, modalização do conteúdo do que se vai dizer, ou mesmo para chamar
até sabe que está a errar e que podia fazer melhor, mas isso implica a atenção do interlocutor, mantendo-o preso à conversação’ (Castilho,
menos esforço. 1988:6). Parece haver, no entanto, um„ no entanto, um no entanto,
DN – O estúpido é, portanto alguém a quem falta uma pers- um„ no entanto, uma no entanto, uma função que subjaz a todas ou-
pectiva de tempo? tras: a de reformulador, seja parafrástico ou não. Com efeito, todos
VR – Sim, é uma falta de perspectiva para as consequências eles podem simultaneamente ser usados para reformulações textuais,
reais das suas ações. (PE, escrito, JC14674) quase como uma conseqüência de seu caráter de introduzir informa-
ção de alguma forma já conhecida ou, pelo menos, inferida.
4.5. Portanto marcador conversacional

Vejamos finalmente um exemplo que ilustra um dos usos mais Referências bibliográficas
freqüentes (50%) de portanto na oralidade, no PE:
CASTILHO, A . T. Para uma gramática do português falado. Traba-
(27) “(...) o urbanismo, portanto, o urbanismo deve acabar, portan- lho apresentado na 40ª Reunião Anual da SBPC. São Paulo,
to, o urbanismo como necessidade da, portanto da, do modo de pro- 1988. (Cópia xerografada).
dução capitalista (...)” DIK, S.. The theory of Functional Grammar I. Dordrecht: Foris, 1989.
___. The theory of Functional Grammar II. New York: Mouton, 1997.
Em casos deste tipo, portanto funciona como mero bordão FERRARI, A. e ROSSARI, C. “De donc á dunque et quindi: les
linguístico ou marcador conversacional, e a sua colocação depende
connexions par raisonnement inférentiel”. Cahiers de
apenas das pausas que o falante introduz no seu discurso. O locutor
Linguistique Française, 15, 1994, 7-49.
recorre ao operador em momentos de hesitação, quando o
processamento do discurso não flui. Contextos deste tipo atestam a PERES, J. A. “Sobre conexões proposicionais em português”, In:
dessemantização completa do operador, que apenas assume um va- BRITO, A. M et alii. Sentido que a vida faz. Estudos para Óscar
lor pragmático de tipo fático: o locutor sinaliza que a sua interven- Lopes. Porto: Campo das Letras, 1997, 775-788.
ção não está concluída, apesar das pausas, e mantém assim o seu PEZATTI E, E. G. & CAMACHO, R.G. Aspectos funcionais da or-
turno de fala. dem de constituintes. D.E.L.T. A, v. 13, n. 2, p. 191-214, agos-
to1997.
Considerações Finais RISSO, M. S. O articulador discursivo “então”. In: CASTILHO, A.
T. e BASÍLIO, M. Gramática do português falado. vol. IV. São
Como podemos perceber, de acordo com seu papel, esse ope- Paulo:FAPESP/ Campinas:Editora da Unicamp, 1996a.
rador, como Conector, deixa-se comutar por logo, apresentando um
RISSO, M. S.et al. Marcadores discursivos: traços definidores. In:
valor conclusivo epistêmico; como Advérbio, pode ser substituído
KOCH, I. G. V. Gramática do português falado. vol. VI. São
por por isso ou por causa disso e tem um claro valor causal; como
Articulador Discursivo, permite diferentes paráfrases assim, em suma, Paulo: FAPESP/ Campinas: Editora da Unicamp, 1996b.
concluindo e sinaliza sempre que a informação do fragmento textual SWEETSER, E. From etimology to pragmatics. Cambridge:
que prefacia ancora em informação precedente, vem na seqüência do University Press, 1991.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 369


Semelhanças e diferenças entre o PB e o PE no que
diz respeito à forma progressiva do infinitivo
Ana Paula Scher - Universidade de São Paulo
Evani Viotti - Universidade Estadual de Campinas1

ABSTRACT: The observation of data of a dialect of Brazilian Portuguese has attested an increase in the use of the periphrastic infinitive in contexts that
differ from those prescribed by the normative grammar of Brazilian and European Portuguese. The purpose of this paper is to explain why speakers of
standard Portuguese have a deviant interpretation of this new use of the periphrastic infinitive.
PALAVRAS-CHAVE: infinitivo perifrástico; semântica de eventos; progressivo.

1) Introdução 2) Uma visão informal da diferença entre os dois dialetos

A observação de dados de fala de um dialeto do português Há aproximadamente três anos, falantes do dialeto padrão do
brasileiro contemporâneo—que vamos chamar aqui, por conveni- português do Brasil vêm observando e comentando sobre o uso
ência, de dialeto α2 — revela um aumento significativo do uso do particular do infinitivo perifrástico feito por falantes do dialeto α.
infinitivo perifrástico [estar + -ndo] em contextos diferentes dos Muitas são as especulações sobre as causas para esse uso. Alguns
que são estabelecidos pela gramática normativa do português bra- acham que é influência do inglês, outros acham que se trata de um
sileiro, e dos contextos em que esse infinitivo é empregado no fenômeno de hiper-correção, outros pensam que se trata de um re-
dialeto que tem sido chamado de “norma urbana culta”. Os con- gionalismo. Entretanto, o motivo de essa “novidade” ter desperta-
textos em que esse novo uso do infinitivo perifrástico aparece di- do nossa curiosidade, deve-se ao sentido que nós, enquanto falan-
ferem, também, dos contextos em que, em português europeu, se- tes do português padrão, atribuímos ao infinitivo perifrástico tal
ria usada a perífrase equivalente [estar+a+infinitivo]. Em uma como usado no dialeto α. Quando ouvimos uma sentença como
sentença como (1) do português do Brasil, e (2) do português eu- (3), a interpretação que atribuímos a ela é a de que não existe qual-
ropeu, quer comprometimento, por parte do falante, de que a ação vai ser
levada a cabo. Ou seja, não existe qualquer garantia de que a recla-
1) No ano 2004, provavelmente a gente ainda vai estar estu- mação vai ser anotada, ou de que o problema vai ser verificado.
dando construções verbais. Tendo em vista que o dialeto α é largamente utilizado por pessoas
2) No ano 2004, provavelmente nós ainda vamos estar a es- responsáveis pelo atendimento ao público, não é de se estranhar
tudar construções verbais. que o uso do infinitivo perifrástico feito por esse dialeto, gerando
essa interpretação de falta de comprometimento em falantes do di-
observa-se o uso canônico da perífrase em questão. O que se tem aleto padrão, tenha chamado nossa atenção.
verificado no dialeto a é o uso do infinitivo perifrástico em uma
sentença como (3), que é estranha em português canônico: Alguns casos são também interessantes, à medida que, apesar
de serem considerados aceitáveis pelos falantes do dialeto padrão,
3) Eu vou estar anotando a sua reclamação imediatamente e detonam uma leitura particular que não parece ser totalmente ade-
hoje mesmo vou estar verificando qual é o problema. quada ao contexto em que eles aparecem. Assim, uma sentença como

O objetivo deste trabalho é fazer observações preliminares 4) No Capítulo 2, estarei discutindo a questão da morfologia,
sobre algumas propriedades exibidas pelo uso do infinitivo peri- usada na introdução de uma dissertação, se comparada à sua
frástico em dialeto α, sugerindo uma hipótese para explicar uma contraparte
das possíveis interpretações feitas por falantes do português
canônico, ao ouvirem o infinitivo perifrástico tal como usado pelo 5) No Capítulo 2, discutirei (ou vou discutir) a questão da
dialeto α. morfologia.
Parece gerar a interpretação de que a questão da morfologia será
O texto se organiza da seguinte maneira. No item 2, nós
vamos apresentar uma visão informal de interpretações geralmen-
te atribuídas por falantes do português padrão ao uso feito pelo 1
Evani Viotti está desenvolvendo a pesquisa que embasa este trabalho como
infinitivo perifrástico em dialeto α. No item 3, mostramos como
parte de seu projeto de pós-doutoramento financiado pela FAPESP, pro-
os dados da pequena amostra de fala natural do dialeto α que cole- cesso n. 99/10345-5.
tamos se distribuem entre as categorias estabelecidas por Vendler 2
O dialeto a tem sido chamado, informal e pejorativamente, de “secretariês”,
(1967), e utilizadas por um grande número de semanticistas do “burocratês”, ou “zero-oitocentês”. Esses nomes provavelmente se de-
evento. No item 4, vamos apresentar as linhas gerais da teoria de vem ao fato de que esse dialeto é mais comumente usado por uma larga
eventos defendida por Parsons (1990), para descrever, de maneira faixa profissional, que inclui recepcionistas, secretários, operadores de
mais formal, a estranheza causada pelo uso do infinitivo perifrásti- telemarketing, operadores de serviços de atendimento ao consumidor, e
co em dialeto α. Mostramos, ainda, como a combinação do uso do outros funcionários que são, de maneira geral, intermediários entre o pú-
blico e as pessoas que são efetivamente responsáveis pela tomada de deci-
infinitivo perifrástico de um modal com o infinitivo perifrástico de
são e pela ação. Entretanto, deve-se ressaltar que o uso desse dialeto já
um accomplishment ou achievement deve ser um fator que contri- está se expandindo e tem sido observado em falantes que não pertencem a
bui para aumentar ainda mais a estranheza desses usos, aos ouvi- esse segmento profissional, mas que, em geral (mas não necessariamente),
dos dos falantes do português padrão. estão em uma faixa etária abaixo dos 30 anos.

370 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


discutida, mas não será esgotada. Só a sentença em (5) admite essa 6) O João construiu uma casa,
interpretação, ou seja, só (5) admite a interpretação de que se pretende
apresentar uma proposta definida de solução para a referida questão. tem a seguinte forma lógica:
Portanto, intuitivamente, parece que a estranheza que nós sen-
timos em relação ao uso do infinitivo perifrástico por falantes do 7) (∃e)[Construir(e) ∧ Agente (e, o João) ∧ Tema (e, uma casa)
dialeto α está ligada a uma interpretação que tira do sujeito da ação ∧ (∃t)[t<agora ∧ Cul(e,t)]].
qualquer tipo de comprometimento ou controle sobre sua execução
total ou parcial. Parsons assume que eventualidades do tipo achievement não
são essencialmente diferentes de accomplishments. Um achievement
O estudo do problema levantado pelo uso do infinitivo peri- culmina quando ele acontece. O que se pode questionar é se existe
frástico pelo dialeto α nos parece ser extremamente abrangente. Ele um desenvolvimento do evento antes da culminância, como no caso
envolve questões de semântica lexical, relações predicativas e dos accomplishments. Como isso não é relevante para a proposta de
temáticas, construções das relações de tempo e aspecto, entre outras. Parsons, ele trata accomplishments e achievements como um só gru-
Neste trabalho, vamos nos limitar a procurar uma descrição dos fatos po de eventualidades, que ele chama de eventos.
que reflita a interpretação que vimos atribuindo a esse novo uso do
infinitivo perifrástico. No que diz respeito a estados, Parsons assume que a noção de
culminância não se aplica a eles. Em um determinado tempo, a única
3) Distribuição do infinitivo perifrástico em dialeto α característica que pode se aplicar a um estado é a de holding. Uma
sentença como (8) tem a forma lógica em (9):
Este estudo foi baseado em dados de fala espontânea coletados 8) O João conhece a Maria.
a partir de entrevistas diversas em programas de rádio3 e de outros 9) (∃e)[Conhecer (e) ∧ Experienciador (e, o João) ∧ Tema (e, a
contextos da vida cotidiana. Para fazermos uma primeira organiza- Maria) ∧ Hold (e, agora)]
ção desses dados, adotamos a famosa nomenclatura sugerida por
Vendler (1967:97-121) para a classificação dos verbos: A posição de Parsons quanto às eventualidades do tipo proces-
accomplishments, achievements, atividades (ou processos) e estados. so não é muito clara. Segundo Verkuyl (1999:40), até 1984, Parsons
assumia, em seu modelo, uma regra segundo a qual eventualidades
De maneira bastante informal e simplificada, o que verifica- do tipo atividade (ou processo) seriam semelhantes a estados. De-
mos é que a sensação de estranheza do falante de português canônico pois de 1984, Parsons teria passado a assumir que eventualidades do
frente a essas perífrases é maior se o infinitivo perifrástico é usado tipo atividade seriam semelhantes a eventos como achievements e
com sentenças que denotam uma eventualidade4 que culmina. As- accomplishments, por terem uma seqüência de pontos de culminân-
sim, sentenças com predicados de achievement ou de accomplishment cia. Entretanto, em Parsons (1990), as regras pré-1984 dominam a
são agramaticais para falantes do dialeto padrão. Sentenças que de- quase totalidade do trabalho, só sendo alteradas no final do livro.
notam estados também são estranhas ao dialeto padrão, mas não as- Como o objetivo deste trabalho é descritivo, e como nós estamos
sumem a mesma interpretação que as de evento. Quanto às sentenças utilizando o formalismo de Parsons meramente como uma ferramen-
de atividade, percebe-se que raramente parecem degradadas ao falan- ta para realizar essa descrição, nós vamos nos ater aqui à regra pré-
te do português canônico. Uma outra observação que se deve fazer é 1984 e tratar processos ou atividades como eventualidades que não
a de que a combinação do uso do infinitivo perifrástico de um modal têm um ponto de culminância e se assemelham a estados.
com o infinitivo perifrástico de um accomplishment ou achievement
parece ser um fator que contribui para aumentar ainda mais a estra- No que diz respeito ao progressivo, Parsons (1990) afirma que
nheza desses usos, aos ouvidos dos falantes do português padrão. sentenças que expressam eventos (accomplishments e achievements),
quando não estão no progressivo, requerem a culminância da even-
4) Semântica subatômica: os eventos subjacentes de Parsons tualidade, para que sejam consideradas verdadeiras. Quando elas
(1990) estão no progressivo, a eventualidade só precisa satisfazer hold, para
que seja considerada verdadeira. Assim sendo, um verbo que ex-
Para descrevermos, de maneira mais formal, os fatos aponta- pressa um evento, quando na forma progressiva, deve ser tratado,
dos acima, e esboçarmos uma primeira explicação para a estranheza semanticamente, como um verbo que expressa um estado. Conse-
sentida por falantes do português padrão ao se depararem com o uso qüentemente, sentenças que expressam eventos, quando na forma
do infinitivo perifrástico por falantes do dialeto α, vamos adotar a progressiva, têm uma forma lógica diferente da que têm quando na
teoria de Parsons (1990). forma não-progressiva. Comparem-se as sentenças em (10) e (11),
com suas formas lógicas em (12) e (13) (a diferença entre elas está
A proposta de Parsons investiga, em mais detalhes, a estrutura assinalada em negrito):
do verbo. Dada uma fórmula, do tipo ‘x assassinou y’, em que existe
uma constante e duas variáveis, Parsons se propõe a analisar a estru- 10) O João atravessou a rua.
tura da constante. Para isso, ele se vale de dois operadores— 11) O João estava atravessando a rua.
Culmination e Holding—que operam sobre eventos e tempos, e que
correspondem a certas características das eventualidades. A notação 12) (∃t) [t<agora ∧ (∃e) [atavessar(e) ∧ agente (e, o João) ∧
Cul(e,t) significa que e é um evento que culmina no tempo t. E a tema (e, a rua) ∧ Cul (e,t)]]
notação Hold (e,t) significa que e é (i) um estado e o sujeito de e está 13) (∃t) [t<agora ∧ (∃e) [atavessar(e) ∧ agente (e, o João) ∧
no estado e no tempo t; ou (ii) um evento que está em progresso (na tema (e, a rua) ∧ Hold (e,t)]]
porção que corresponde a seu desenvolvimento) no tempo t.

3
Assim, por exemplo, uma eventualidade do tipo accomplishment Programas “Espaço Informal” ou “Eldorado à tarde”, ambos parte de pro-
como gramação diária da Rádio Eldorado AM.
4
O termo “eventualidade” é usado aqui no sentido de Bach (1986).

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 371


Deixemos de lado, por enquanto, o tratamento que deve ser 17) A Maria corria.
dado ao progressivo de estados e atividade, para vermos como é que 18) (∃e)[correr(e) ∧ agente (e, a Maria) ∧ (∃t)[t<agora ∧ Hold
essas noções formais se aplicam aos dados de fala do dialeto a que (e,t)]].
expressam eventos. Em (14), temos uma sentença de nosso pequeno
corpus que expressa um achievement, e em temos sua contraparte no Entretanto, deve-se observar que, ao seguirmos o modelo de
dialeto do português padrão: Parsons anterior a 1984, a forma lógica de uma sentença que expres-
sa atividade na forma progressiva vai acabar por ser igual à forma
14) Estou ligando pra estar passando pra senhora a sua senha lógica da expressão não-progressiva como em (18), já que, em ambas,
da Caixa Postal. o que conta é exclusivamente a expressão do operador hold.
15) Estou ligando pra passar pra senhora a sua senha da Caixa
Postal. O mesmo deve acontecer com a expressão dos estados. Para
uma sentença como (19) na forma não-progressiva, Parsons (1990)
Na forma não-progressiva, em (15), a verdade da sentença de- atribui a forma lógica em (20):
pende da culminância da eventualidade. Ou seja, para que essa sen-
tença seja considerada verdadeira, é necessário que a eventualidade 19) A Maria foi esperta.
chegue até seu ponto de culminância, isto é, a senha precisa ser pas- 20) (∃s)[Ser-esperta(s) ∧ Tema(s, a Maria) ∧ (∃t)[t<agora ∧
sada—aliás, foi esse mesmo o motivo da ligação. Diferentemente, Hold (s,t)]]
na forma progressiva, em (14), a verdade das sentenças não requer
que a eventualidade por elas expressa chegue a seu ponto de culmi- Como é, então, que se pode construir a forma lógica, para o
nância. Os eventos no progressivo só precisam satisfazer hold, para progressivo, de uma sentença que expressa atividade ou estado, e
que as sentenças sejam verdadeiras. Em uma sentença como (14), que já tem o predicado Hold na forma não-progressiva? Nós ima-
por exemplo, não é necessário que a moça que realizou a ligação ginamos que talvez se possa usar um operador, que Parsons chama
chegue, efetivamente, a passar a senha da Caixa Postal. Para que um de In-progress, para dar conta de sentenças como (21) e (22), que
falante do português canônico interprete essa sentença como verda- expressam, respectivamente uma atividade e um estado, em forma
deira, a moça precisa simplesmente satisfazer o processo (se é que se progressiva:
pode dizer que achievements têm um subevento processo) que ante-
cede a culminância. 21) A Maria estava correndo.
22) A Maria estava sendo esperta.
Essa análise explica a reação de estranheza manifestada por
vários falantes do português padrão ao se confrontarem com o uso de Parsons postula esse operador In-progress como uma outra
infinitivo perifrástico feito pelo dialeto a, e a nossa sensação de falta possibilidade para o tratamento de sentenças que expressam evento,
de comprometimento de que a ação vai ser levada a cabo. De fato, se e estão na forma progressiva. Ele assume que, quando um evento e
o infinitivo perifrástico indica que o valor de verdade da sentença está em andamento, existe um estado de coisas correspondente ao
não depende de a eventualidade chegar a seu ponto de culminância, a andamento desse evento. Esse estado de coisas é um estado que
interpretação de que a ação não vai ser levada a cabo é perfeitamente equivale a “e está em andamento”. Parsons chama esse estado de
natural. Do mesmo modo, explica-se a leitura, feita por um falante coisas de “estado ‘in-progress’ do evento e”. Nós vamos chamá-lo
do português canônico, da sentença (4), aqui repetida, aqui de estado s’.

16) No Capítulo 2, estarei discutindo a questão da morfologia. Vamos imaginar que esse operador In-progress pode tomar,
como argumento, não só eventos, mas também atividades e estados.
Segundo a qual a questão da morfologia vai ser discutida, mas Dentro dessa perspectiva, quando uma atividade p ou um estado s
não esgotada. Isso se deve ao fato de que eventualidades de estão expressos em forma progressiva, existe um estado de coisas s’,
accomplishment, no progressivo, não precisam (necessariamente) ter que corresponde ao “estado in-progress da atividade p ou do estado
um ponto de culminância. s”. É como se s’ fosse um estado circunstancial (In-progress),
dentro de uma atividade durativa, ou dentro de um estado maior,
Passamos, agora, a tratar das expressões, no dialeto α, do permanente (Hold). Assim, as formas lógicas de (21) e (22) seriam
infinitivo perifrástico de atividades, de estados, e de verbos modais— as seguintes:
que vamos equiparar a estados—e ver qual é o tipo de interpretação
que um falante do dialeto padrão pode dar a elas. 23) (∃p)[Correr(p) ∧ Agente(p, a Maria) ∧ (∃t)[t<agora ∧
Hold((s’), t)]]
Como visto acima, no modelo de Parsons anterior a 1984, ati- 24) (∃s)[Ser-esperta(s) ∧ Tema(s, a Maria) ∧ (∃t)[t<agora ∧
vidades e estados são vistos como eventualidades que não têm um Hold ((s’), t)]]
ponto de culminância. Portanto, seu uso na forma progressiva não
deve ter o mesmo efeito que tem o progressivo aplicado aos eventos. A forma lógica em (23) significa que, para uma atividade p
No caso dos achievements e dos accomplishments, o uso do progres- de correr, a Maria é o agente de p, e p dura (holds), em um estado
sivo tem a propriedade de afastar a necessidade da culminância da particular de progressão s’, antes de agora. A forma lógica em
eventualidade. Mas no caso das atividades e estados, essa proprieda- (24) significa que, para um estado s de ser-esperto, a Maria é o
de não se aplica. Como se explica, então, que nós tenhamos sentido tema de s, e s dura (holds), em um estado particular de progressão
alguma estranheza na expressão do infinitivo perifrástico de ativida- s’, antes de agora.
des e estados, ainda que em menor grau e quantidade do que em
relação a achievements e accomplishments? Essa idéia não só parece fazer sentido dentro do modelo propos-
to por Parsons, mas também captura algumas das intuições que temos
Vamos supor que sentenças que expressam atividades ba for- sobre a expressão de atividades e estados em forma progressiva.
ma não-progressiva, como (17), tenham a forma lógica em (18):

372 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Como visto acima, a expressão de eventos na forma progressi- Com isso, a expectativa de um falante do português padrão é
va tem a propriedade de tornar desnecessária, ou pelo menos difusa, frustrada duas vezes: o que ele esperaria que fosse durativo e ilimi-
a culminância do evento. No caso de eventualidades como ativida- tado—que é o estado de possibilidade ou disponibilidade—recebe
des e estados, que tão somente duram no tempo sem culminarem, a uma interpretação que restringe esse espaço a um momento circuns-
sua expressão no progressivo tem uma interpretação diferente. A tancial, pelo uso da forma progressiva; e o que ele esperaria que
denotação de uma atividade ou estado no progressivo corresponde a chegasse a uma culminância, que é o evento de atender quatro alu-
uma parte restrita da duração, da eventualidade. Quando nós dize- nos de uma vez, recebe uma interpretação de que essa culminância
mos O João é bobo, nós queremos dizer que ser bobo é uma caracte- pode, eventualmente, nem ocorrer. Não é à toa que alguns falantes
rística inerente e permanente do João. Isto é, trata-se de um estado do português padrão chegam a ficar à beira do desespero quando
que dura sem limites. Quando nós dizemos O João está sendo bobo, precisam de um serviço ou de uma informação e são atendidos por
nós queremos dizer que, apesar de ele não ser bobo, ele assume as um falante do dialeto α!
características de um estado de ser bobo, por um pedaço limitado de
tempo. O mesmo acontece com uma atividade. Quando dizemos A 5) Conclusão
Maria corre, estamos falando de um processo ao qual não queremos Este trabalho nada mais é do um primeiro tratamento de uma
impor nenhum limite. Diferentemente, quando dizemos A Maria está variante dialetal do português brasileiro, que nós chamamos aqui de
correndo, estamos falando de um momento circunstancial do proces- dialeto α. Esse dialeto faz um uso do infinitivo perifrástico, que gera,
so de correr. muitas vezes, uma interpretação estranha em falantes do português
padrão do Brasil, e de Portugal. O objetivo deste trabalho foi apre-
De uma certa forma, o que parece acontecer é que a forma sentar uma descrição formal do infinitivo perifrástico. Essa descri-
progressiva aplicada a estados e atividades produz resultados opos- ção foi feita de modo a explicar o motivo pelo qual a interpretação
tos à forma progressiva aplicada a eventos. No caso dos eventos, dada por alguns falantes do dialeto padrão ao infinitivo perifrástico
como já visto, o progressivo retira a exigência de que a culminância do dialeto α é a de que não existem garantias de que a ação expressa
seja alcançada, e a verdade da sentença depende, exclusivamente de pelo verbo vai ser levada a cabo.
aquele evento ser durativo. No caso dos estados, que são durativos
em sua forma não-progressiva, a forma progressiva focaliza um pon- As conclusões a que chegamos são as seguintes:
to ou uma porção restrita, dentro daquela duração, eventualmente até
cancelando a duração maior. i. a interpretação de que a ação expressa por um infinitivo pe
rifrástico não vai ser levada a cabo deve-se ao fato de que a
Imaginemos, agora, que verbos modais possam ser analisados
aplicação da forma progressiva a predicados de eventos não
da mesma forma que se analisam verbos que exprimem estado. Eles
requer que a eventualidade chegue a um ponto de culminân
não têm ponto de culminância, e expressam uma duração ilimitada.
cia;
Se a idéia que nós desenvolvemos acima estiver correta, um modal
ii. quando a forma progressiva se aplica a atividades ou a ver
usado na forma progressiva vai exprimir um estado de duração limi-
bos de estado e a verbos modais, passa-se a interpretar aque
tada dentro de uma duração maior. Assim, por exemplo, enquanto
le estado ou atividade como tendo uma duração restrita, e
uma sentença como O João pode viajar para a Europa denota um
não mais permanente;
estado de poder ou de possibilidade que não tem limites, uma senten-
iii. como conseqüência de (i) e (ii), a combinação de um verbo
ça como O João tá podendo viajar para a Europa leva à interpreta-
ção de que esse poder ou possibilidade é temporário e restrito. modal no infinitivo perifrástico com uma expressão de
accomplishment ou achievement também no infinitivo peri
Que repercussão isso tem para a interpretação que falantes do frástico torna mais forte a interpretação de que o comprome
português canônico fazem do dialeto α? Examinemos a seguinte sen- timento com a culminância da eventualidade é muito peque
tença de nosso corpus: no.

25) Aí vai (es)tar dando pra (es)tar atendendo pelo menos Este trabalho apresenta alguns pontos interessantes. Do pon-
quatro alunos de uma vez. to de vista empírico, nós chamamos a atenção para uma possível
mudança em curso do português do Brasil, que precisa ser bem estu-
Nela, aparecem um modal no infinitivo perifrástico (em itáli- dada pela gramática e pela sociolingüística. O uso do infinitivo pe-
co), e a expressão de um evento no infinitivo perifrástico (em negrito). rifrástico, da maneira feita pelos falantes do dialeto α, cresce dia a
Duas forças conspiram aqui, para criar a sensação de insegurança dia, e parece estar se alastrando rapidamente. A cada dia que passa,
mencionada no início deste trabalho, relacionada à interpretação de os falantes do português padrão se acostumam mais e mais com esse
que a ação não vai ser levada a cabo. Primeiro, a forma progressiva uso, a ponto de já não terem tanta certeza de suas intuições a esse
de uma expressão de evento não requer a culminância da eventuali- respeito. O que inicialmente parecia restrito ao uso do infinitivo já
dade para ser verdadeira. Assim, quando um falante do dialeto pa- está se aplicando a outras formas, como o subjuntivo—“eu quis que
drão ouve a perífrase estar atendendo, ele pode dar a ela a interpreta- ele estivesse me dando uma receita do creme com vitamina C”, “não
ção de que a culminância desse atendimento não é necessária para é um material que a gente esteja precisando reciclar”—e o futuro
que a sentença seja verdadeira. Portanto, ele não tem certeza de que do pretérito—“a senhora estaria recebendo o jornal gratuitamente
o atendimento vai, de fato, ser completado. e, durante o período de 15 dias, estaria analisando e decidindo se
quer ser assinante ou não.
Em segundo lugar, o estado de possibilidade expresso pelo
modal dar, segundo os padrões de interpretação de um falante do Esses fatos parecem sugerir que o uso dessas perífrases de
dialeto padrão, deveria durar ilimitadamente. Entretanto, quando gerúndio é apenas a ponta de um iceberg, que representa um amplo
usado na forma progressiva, esse modal passa a expressar um estado conjunto de mudanças mais radicais em andamento no português do
temporário e limitado. Brasil.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 373


Referências Bibliográficas University Press. Capítulo 4: 97-121.
VERKUYL, H. (1989). Aspectual classes and aspectual composition.
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___________. (1993). A Theory of Aspectuality. The Interaction
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PARSONS, T. (1990). Events in the Semantics of English: A Study in
___________. (1999). Aspectual Issues. Studies on Time and
Subatomic Semantics. Cambridge, Mass: The MIT Press.
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VENDLER, Z. (1967). Linguistics in Philosophy. Ithaca: Cornell

374 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Localizadores temporais anafóricos em
Português Europeu e Português Brasileiro
Ana Teresa Alves
Universidade dos Açores

ABSTRACT: In this paper, I concentrate on the contrastive study of anaphoric temporal locators in European Portuguese and in Brasilian Portuguese,
focusing on three different types of anaphoric expressions - anaphors with hyponyms or with predicative content, anaphors with hyperonyms and pro-forms.
PALAVRAS-CHAVE: anáfora temporal, advérbios de tempo

0. Introdução
As sequências em (1) ilustram o tipo de anáfora temporal de Notas:
que me ocupo e que designo de anafóra de localização temporal. (i) Considero apenas as expressões que designam um único inter
valo de tempo. Não terei em conta expressões que designam
(1) a. A Ana nasceu em [1970]i. O Paulo também nasceu n[esse
mais de um intervalo, como, por exemplo, essas alturas, os
ano]i.
b. [A Ana mudou-se para Paris]i em 1999. Vivia em Lisboa mesmos anos.
até [então / aí]i. (ii) Há casos em que é defensável a presença de uma expressão
c. A Ana foi a Londres em [Dezembro de 2001]i. O Paulo foi anafórica nula, que não aparece representada no quadro acima
ao Brasil n[essa altura]i. (cf. Móia (2000: 224) a propósito de (a)). Não desenvolverei
esta questão aqui.
As expressões temporais anafóricas esse ano, então, aí e essa altura – (3) a. O Paulo chegou a casa à meia-noite. A Maria chegou meia
que integram adverbiais de localização temporal – retomam expressões hora depois Ø de isso.
representando intervalos de tempo que foram mencionadas no contexto b. O Paulo foi ao cinema ontem à noite. Passou por casa dos
linguístico anterior.
pais antes Ø de isso.
Neste artigo, terei apenas em conta os casos em que as expressões
anafóricas integram expressões adverbiais, ignorando os contextos, acei- c. O Paulo demitiu-se no dia 10 de Janeiro. Foi substituído no
táveis para algumas, em que elas ocupam posições argumentais (cf. (2)). dia seguinte Ø a isso.
(2) a. O Paulo teve dois acidentes em [1999]i. [Esse ano]i foi 1.1. Algumas diferenças entre expressões anafóricas
terrível.
1.1.1. As expressões anafóricas com hipónimos / com conteúdo
b. [A Ana foi a Londres]i em [Dezembro de 2001]i. O Paulo
escolheu [essa altura]i para ir ao Brasil. predicativo
(4) O Paulo nasceu em Maio de 1966. A Ana nasceu no mesmo
1. Subclasses de expressões temporais com destaque para as ex mês.
pressões anafóricas. (5) O Paulo foi a Paris em 1999. A Ana também foi a França nesse
No Quadro I abaixo, apresento a classificação das expressões ano.
temporais no que respeita à sua (in)dependência referencial com desta- (6) A Ana acabou o curso em 1990. Começou a trabalhar nesse
que para as expressões anafóricas. Na coluna da esquerda, incluo as ex- mesmo ano.
pressões dêicticas, ie, aquelas que exibem uma dependência referencial As expressões anafóricas deste tipo são decomponíveis em duas par-
relativamente ao tempo da enunciação; na coluna da direita, as expres-
tes: uma anáfora (esse / o mesmo / esse mesmo) e um predicado de
sões autónomas, ou seja aquelas que do ponto de vista referencial têm
plena autonomia. Na coluna do meio, incluo as expressões anafóricas, tempo hiponímico (e.g., ano / mês / hora / dois dias / cinco minutos).
ie, aquelas que são referencialmente dependentes do contexto linguístico Em termos formais, e no quadro da Discourse Representation Theory,
anterior. Divido-as em três classes – expressões com hipónimos ou com as expressões anafóricas do tipo esse mês, e o mesmo ano introdu-
conteúdo predicativo, expressões com hiperónimos e pro-formas – que zem na DRS uma condição de tipo predicativo - mês(t), ano(t) – e
caracterizarei mais abaixo. uma condição de identidade não resolvida – [t=?].

1.1.2 As expressões anafóricas com hiperónimos


(7) O Paulo doutorou-se em Maio de 1996. A Ana doutourou-se
na mesma altura.
(8) A Ana viveu durante seis meses em Paris. Conheceu o Paulo
nessa altura.
São decomponíveis em duas partes: uma anáfora (esse / o mesmo /
esse mesmo) e um hiperónimo temporal (e.g., intervalo de tempo,
altura, período). Formalmente, ao contrário de expressões como esse
ano e o mesmo mês, e à semelhança do que acontece com as pro-
formas, introduzem na DRS uma condição de identidade não resolvi-
da – [t=?] – apenas.

1.1.3 As pro-formas
(9) O Paulo mudou-se para Paris em 1999. Vivia em Londres até
{então / aí}.
(10) O Paulo fez o jantar ontem à noite. {Entretanto / enquanto

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 375


isso} a Ana escreveu duas cartas. ciço dos impostos, que permitirá ao estado arrecadar neste
Desprovidas de qualquer conteúdo predicativo, as pro-formas ano uma receita suplementar de 20 a 30 mil milhões de marcos
temporais, quando usadas anaforicamente, meramente retomam ex- (...)” (Corpus Natura/Público, par 5506)
pressões presentes no contexto linguístico anterior. Em termos for- [anafóricos]
mais, apenas introduzem uma condição de identidade não resolvida – (17) O governo chegou ao poder em 1987. Foi precisamente nes
[t=?] te ano que os estudantes começar a contestar a política da
educação.
2. Notas sobre as expressões anafóricas com conteúdo (18) “Guardo o meu carro numa garagem perto de minha casa na rua
predicativo D. João IV [ no Porto ], desde Abril de 1976; e nesse ano paga
2.1 Os localizadores temporais com demonstrativos va de aluguer mensal 450$00 e assim fiquei um ano ou dois.”
Analiso, nesta secção, as diferenças detectadas entre as duas (Corpus Natura/Público, par 30803)
variantes em estudo no que respeita ao uso dos localizadores tempo- (19) “Poluição sonora, urbanismo e poluição atmosférica constitu
rais com os demonstrativos este, esse e aquele do tipo de (em) este em as principais razões das queixas apresentadas prelos portu
ano e nesse dia. Ainda que esta questão pertença primariamente ao gueses ao Instituto Nacional do Ambiente em 1990. Um
domínio da determinação, parece-me importante estudar o seu impacte inquérito feito pelo INAMB dá conta da apresentação, naquele
no sistema da localização temporal. ano, de 227 reclamações.“ (Corpus Natura/Público, par 14451)
Uma diferença a ter em conta antes de passar a exemplos do
domínio temporal é que em PB (pelo menos na região de S. Paulo) No que respeita ao português brasileiro, apresento no quadro III abai-
esse é usado com um valor dêictico em contextos não-temporais, em xo as formas que encontrei atestadas e a sua classificação quanto à
situações em que o PE utiliza apenas este. Vejam-se os seguintes oposição dêictico vs. anafórico.
exemplos, que reflectem o juízos de falantes.

[referência a um livro em que o falante está pegando]


(11) a. PE - Já leste este romance?
b. PB - Cê já leu esse romance?
[referência a um bolo que o falante está comer]
(12) a. PE - Este bolo é delicioso!
b. PB - Esse bolo é delicioso!
[referência a um carro que o falante está a conduzir] Como se pode ver, encontrei atestadas sete expressões dife-
(13) a. PE - Este carro só me tem dado problemas! rentes. Incluo na classe dos localizadores (estritamente) dêicticos
b. PB - Esse carro só me tem dado problemas! Øem este UNID-TPO, Øem esse UNID-TPO e Øem aquele UNID-TPO. Este
último, encontrei-o atestado em contextos de discurso indirecto li-
vre, pelo que o coloco nesta classe com um (?); na classe dos
[referência a uma mesa em que o falante está a comer] localizadores (estritamente) anafóricos incluo naquele UNID-TPO, e
(14) a. PE - Esta mesa custou-me 50 Reais. na classe dos localizadores dêictico-anafóricos nesse UNID-TPO e nes-
b. PB - Essa mesa me custou 50 Reais. te UNID-TPO. Estes localizadores são apresentados, em contexto apro-
priado, nos exemplos (20)-(27).
Não esquecendo esta diferença, chamo a atenção para o Quadro II
abaixo, que contém os localizadores do tipo em estudo atestados em [dêicticos]
PE, e a sua classificação no que diz respeito à oposição dêictico vs. (20) “A transmissão também será realizada, ao vivo e com tradu
anafórico. ção simultânea, às 22h, pelo SBT, com Marília Gabriela como
apresentadora. O crítico de cinema Rubens Ewald Filho, que
participa como comentarista, faz questão de lembrar os prê
mios especiais que serão distribuídos este ano.” (Corpus
NILC/São brasilCarlos, par 9307)
(21) “Lacerda cria, ainda, duas vacas, dois bezerros e um jumen
to. Tira diariamente dez litros de leite e vende por CR$
200,00 o litro. Com isso, consegue dinheiro para as despe
sas da casa. «Além do leite, o único produto que vendere
Como se pode verificar, existem em PE quatro formas distintas mos esse ano são as abóboras», diz.” (Corpus NILC/São
distribuídas por três classes diferentes: Øem este UNID-TPO pertence à Carlos, par 36221)
classe dos localizadores estritamente dêicticos, nesse UNID-TPO e na- (22) “Era o primeiro pebolim que chegava ao Brás, novidade ab
quele UNID-TPO à classe dos estritamente anafóricos e neste UNID-TPO à soluta, caríssimo, segundo deu para depreender da expres
classe dos dêictico-anafóricos. Estas mesmas expressões aparecem, são do meu pai quando o gerente lhe deu o preço. O velho
em contexto adequado, nos exemplos (15)-(19). foi categórico: nem pensar que Papai Noel, aquele ano, se
ria tão generoso.” (Corpus NILC/Sao Carlos, par 665375)
[dêicticos] (23) “Depois de privatizar algumas dezenas de empresas ao lon
(15) “A equipa feminina de atletismo do Sp. Braga parte hoje para go dos últimos anos, o programa de desestatização do go
San Marino, onde vai participar, no sábado, na 10ª edição da verno mudou de rota. A ênfase neste ano está sendo dada à
Taça dos Clubes Campeões Europeus de Crosse, prova que retirada do governo do setor de serviços.” (Corpus NILC/
conta também este ano, pela primeira vez, com a presença da São Carlos, par 24683)
formação do Benfica(...).”(Corpus Natura/Público, par 1113) (24) “Estamos recuando no tempo», concorda Francisco Malfitani,
(16) “O governo alemão decidiu ontem proceder a um aumento ma que já fez campanhas do PT e que, nesse ano, cuidará da

376 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


propaganda de Francisco Rossi (PDT), candidato ao governo paulista.” (i) Se a possibilidade de esse ser usado em localizadores dêicticos
(Corpus NILC/São Carlos, par 144962) decorre do facto de em PB (pelo menos na região de S. Paulo) o
demonstrativo esse ser o demonstrativo usado em contextos dêicticos
[anafóricos] não-temporais que em PE só permitem o uso de este, é um facto
(25) “A primeira e única vez em que nenhum filme ganhou mais interessante e que importa explicar que, no domínio temporal, ao
de um Oscar foi em 1930. Foi neste ano também que Cedric contrário do que se passa no “não-temporal”, o demonstrativo este
Gibbons ganhou o prêmio pela cenografia de A ponte de seja o mais usado em contextos dêicticos. (No corpus NILC-SC, o
São Luís Rey (The bridge of San Luis Rey).” (Corpus NILC/ número de ocorrências de (em) este ano com valor dêictico é de cerca
São Carlos, par 20367) de 4000, enquanto o número de ocorrências de (em) esse ano com o
mesmo valor dêictico é de cerca de 150.)
(26) “O livro é de 62, escrito para sua licenciatura em história, e (ii) o papel da opcionalidade em PB de operadores obrigató-
foi tido como «excelente» pela banca examinadora. Dias, rios em PE em casos não envolvendo demonstrativos (note-se que a
coronel da Reserva do Exército, estudou nesse ano na Ma ausência do operador surge geralmente associada ao apagamento do
ria Antonia, como era conhecida a Faculdade de Filosofia, artigo). Vejam-se os seguintes exemplos aceitáveis em PB mas não
Ciências e Letras da USP.” (Corpus NILC/São Carlos, par em PE.
332486)
(28) “O prefeito César Maia, do Rio, declarou outro dia, em alto
(27) “Desde 1991, que o Bradesco vinha trabalhando na aproxi e bom som (...)” (Corpus NILC/São Carlos, par 867680)
mação da Metal Leve e da Cofap, gigantes do ramo de (29) “Adormeci, jurando voltar prá casa dia seguinte, mas o sol
autopeças do Brasil. O banco adquiriu naquele ano 15,32% afugentou os maus pensamentos (...).” (Corpus NILC/São
do capital da Metal Leve.” (Corpus NILC/São Carlos, par Carlos, par 1209789)
24149)
3. Notas sobre as expressões temporais com hiperônimos
Apresento de seguida a informação relativa ao número total de ocor-
rências e ao número de ocorrências anafóricas nos corpora consul- No que respeita ao uso das expressões temporais
tados dos localizadores atestados nas duas variantes, tomando como hiperonímicas, detectei duas diferenças entre o PE e o PB:
amostra os localizadores com o nome ano. i. diferente utilização em PB e em PE das expressões temporais
hiperonímicas tempo e época.

PB: esse tempo – PE: *esse tempo, OKessa altura


(30) “Caiu desfalecida contra o esteio. Japi lambia-lhe a mão fria
e pulava travesso para fazer sorrir a criança, soltando uns
doces latidos de prazer. (...) Por esse tempo pisava Martim
os campos amarelos do Tauape; seu irmão Poti, o inseparável,
caminhava a seu lado.” (Corpus NILC/Sao Carlos, par
1279531)
PB: esse tempo – PE: *esse tempo, OKessa altura
(31) “Se a grande bacia, ou qualquer das outras recebeu notas
que tivessem o destino da primeira, é o que se não sabe, mas
é possível. Foi por esse tempo que Aires o viu de carro,
Julgo poder extrair dos Quadros II, III e IV as conclusões em (i) e (ii): quase a sair pela portinhola fora, cumprimentando muito,
(i) em PB, tanto os localizadores com este como os localizadores com espiando tudo. (Corpus NILC/Sao Carlos, par 1278062)
esse (ainda que com graus de preferência diferente) podem ter um
valor dêictico. A possibilidade de os localizadores com esse ocorre- PB: esse tempo – PE: *esse tempo, OKessa altura
rem em contextos dêicticos parece seguir-se do facto de em PB (ao (32) “Aqueles que iam acompanhar até ao cemitério, procura
contrário do que acontece em PE) o demonstrativo esse ser usado em vam os seus carros. Embarcaram todos, e o enterro rodou. A
contextos dêicticos (não-temporais). esse tempo, na vizinhança, alguns pombos imaculadamente
brancos, as aves de Vênus, ergueram o vôo, ruflando estre
(ii) os localizadores com o operador em expresso exibem uma pitosamente;” (Corpus NILC/São Carlos, par 1296582)
ambivalência dêictico-anafórica que os seus correpondentes com um
Em PE, estes casos com o hiperônimo tempo não são aceitáveis, de-
operador nulo equivalente não exibem. Estes últimos – Øem este UNID-
vendo este nome ser substituído pelo nome altura, por exemplo. Apa-
TPO, Øem esse UNID-TPO e Øem aquele UNID-TPO – ou nunca ocorrem
rentemente, em PE, o localizador nesse tempo envolve obrigatoria-
como anafóricos, ou só ocorrem como tal numa percentagem estatis-
mente a referência a um período de tempo relativamente alargado.
ticamente irrelevante. Logo, os localizadores com o operador expresso
e os seus correspondentes sem operador expresso devem ser arruma-
(33) *O Paulo escalou o Pico da Vara em 1999. Chovia nesse tem
dos em sub-classes distintas (ambivalentes vs. estritamente dêicticos).
po.
(34) O Paulo escalou o Pico da Vara em 1999. Eu trabalhava ao
Os dados do Quadro IV levam-me ainda a colocar a hipótese de em
fim-de-semana nesse tempo. Por isso, não fui com ele.
PB a escolha entre operador não-realizado e o operador em não ser
tão arbitrária como se poderia supor à partida, estando a escolha do
Também no exemplo seguinte o nome época deveria ser substituído
operador nulo associada, pelo menos no domínio dos localizadores
em PE pelo hiperônimo altura, por exemplo.
temporais com demonstrativos, a contextos de dêixis.
PB: essa época – PE: *essa época, OKessa altura
Das questões que ficam em aberto, destaco as seguintes duas:
(35) “Outro encontro sobre Aids está previsto para Dezembro

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 377


em Paris. A ministra francesa da saúde, Simone Veil, espe leu muito.
ra que os países por essa época decidam eliminar as restri c. A reunião foi transferida para {aí / ali / lá}a pedido do
ções de viagem a pessoas infectadas com o HIV.” (Corpus presidente da companhia.
NILC/São Carlos, par 72459) d. O voo de Los Angeles até {aí / ali / lá} dura 12 horas.
Em PE, a expressão época parece só poder representar intervalos de
(iii) Em posições associadas a argumentos preposicionados introdu-
tempo anteriores ao tempo da enunciação.
zidos por uma preposição do tipo de a ou em (cf. casos de anáfora
(36) *O homem aterrará em Marte em 2020. Nessa época a te espacial) ocorrem obrigatoriamente não-precedidas de preposição.
levisão será personalizada.
(42) A Ana já foi várias vezes ao Japão.
(37) O homem aterrou na lua em 1969. Nessa época a televi Foi {lá / * a lá} pela primeira em 1999. Esteve {lá / *em
são em Portugal era a preto e branco. lá}durante uma semana. Voltou {lá / *a lá}em 2000.
ii. uso mais raro em PE do que em PB dos localizadores {este / esse
/ o} meio tempo (emboram existam em PE, não as encontrei estas (iv) A hipótese de que então, aí, lá e ali incluem um em / a nulo
expressões nos corpora consultados). permite explicar por que razão não se combinam com todos os opera-
dores temporais e cabeças de expressões denotadoras de intervalos
(38) “Este comercial fica no ar até 12 de outubro. Nesse meio de tempo complexas, em particular, explicar a razão por que não ocor-
tempo a empresa põe no ar um comercial da Dinamarca rem como complementos de antes e depois.
que mostra a linha de brinquedos «Cidade».” (Corpus
NILC/São Carlos, par 526147) (43) O Paulo chegou a Paris no dia 11 de Janeiro. A Ana chegou
muito {antes / depois} disso.
(39) “Dias depois, uma mulher morreu atropelada na avenida
das Américas, Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Ficou es (44) *O Paulo chegou a Paris no dia 11 de Janeiro. A Ana chegou
tendida na estrada por duas horas. (...) Neste meio tempo, muito {antes / depois} de então.
os carros passaram por cima do corpo(...)”. (Corpus NILC/
São Carlos, par 991023) Em termos informais, as expressões {antes / depois} de Maio estão
associadas a intervalos de tempo cujo final / início obrigatoriamente
não está incluído no intervalo que o seu complemento – Maio – re-
presenta. Daí que que não se combinem com expressões encabeçadas
por em como então.
Aceitando-se a hipótese, acima mencionada, de estas pro-for-
mas serem encabeçadas por uma expressão de tipo em, torna-se ne-
cessário explicar a sua ocorrência como complementos de desde e
até. De acordo com o exposto em Móia (2000) para o português
europeu, não há co-ocorrência de desde, até e em. O em nulo que
estas pro-formas expressões hipoteticamente integram seria, assim,
um em expletivo. Se não se aceitar a hipótese de Móia (2000) atrás
Considero que as expressões então, aí, lá, ali são pro-formas referida, pode colocar-se a hipótese de que a função do em nulo que
complexas - possivelmente resultantes da fusão de uma expressão de estas expressões integram consiste na definição de um sub-intervalo
tipo em,a com uma pro-forma. Apresento justificação em (i)-(iv): do intervalo que o complemento representa, o mesmo sucedendo com
o em realizado em PB (cf. (46)-(47)). (Note-se que estes exemplos
(i) Ao contrário do que acontece com os SNs anafóricos, as pro- são raros quando comparados com os exemplos em que até e desde
formas em causa não ocorrem em todos os quatro contextos apresen- se combinam com expressões não preposicionadas.)
tados em Móia 2000 como sendo os característicos das meras ex-
pressões denotadoras de intervalos de tempo, nomeadamente não (45) “Fernando Canzian, 27, é correspondente-júnior em Nova York
ocorrem em posições associadas a argumentos não preposicionados da Folha desde março de 1994. Vai cobrir os jogos da Copa
(cf. (40 a, b). em Nova York WASHINGTON Carlos Eduardo Lins da Sil
va, 41, é correspondente em Washington da Folha desde em
(40) O dia 1 de Janeiro de 2001 foi o primeiro dia do século julho de 1991.” (Corpus NILC/Sao Carlos, par 576930)
XXI.
a. *Então foi de festa em quase todo o mundo.1 (46) “O ganho real dependerá da inflação em reais. (...) As presta
b. *Então foi {a altura / o dia}em que o Paulo partiu para ções da casa própria no SFH, em contratos vinculados ao pla
Roma. no de equivalência salarial plena, sobem 30 ou 60 dias depois
c. A partida da Ana também estava marcada para então, do reajuste salarial. Por isso, até em agosto as prestações se
masela desistiu da viagem. rão reajustadas por índices relativamente altos.” (Corpus NILC/
d. O Paulo viveu em Paris até {então / aí / ali / lá}. Sao Carlos, par 572331)
(ii) Em casos de anáfora espacial, que eu assumo que, no que aqui me
interessa, são mutatis mutandis aproximáveis dos de anáfora espaci-
al, também claramente não ocorrem em contextos do tipo a. e b. (cf.
(41 a,b)).

(41) A Ana foi a uma reunião no Japão em 1999.


a. *{Aí / ali / lá} é {um lugar / um país} de que a Ana gosta 1 Lá, e ali só representam intervalos de tempo quando ocorrem como com-
muito. plemento de um operador temporal explícito. Dado que a sua
inaceitabilidade nestes contextos pode ser atribuída a essa restrição, não
b. *{Aí / ali / lá} é {um lugar / um país}sobre o qual a Ana
as incluo nem (a) nem em (b).

378 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Referências bibliográficas Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística,
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 28-30 de Se-
ALVES, A. T.: 2000, “On the Semantics and Pragmatics of Situational tembro de 2000.
Anaphoric Temporal Locators in Portuguese and in English”,
apresentado na Second International Conference in Contrastive
Semantics and Pragmatics, Cambridge, 11-13 de Setembro de
2000.
KAMP, Hans e Christian Rohrer: 1983, “Tense in Texts”, in R.
Bäuerle, C. Schwarze e A. von Stechow (eds.), Meaning, Use
and Interpretation of Language, Walter de Gruyter, Berlim /
Nova Iorque, 250-269.
O Corpus Natura / Público e o Corpus Natura / Diário do
MÓIA, Telmo: 2000, Identifying and Computing Temporal Locating
Adverbials with a Particular Focus on Portuguese and English, Minho são corpora de texto jornalístico. O Corpus NILC / Univer-
dissertação de doutoramento, Universidade de Lisboa. sidade de São Carlos contém textos brasileiros do registo jornalístico,
MÓIA, T. e A. T. Alves: 2000, “Sobre a Expressão de Distâncias didáctico, epistolar e redacções de alunos. O Corpus ECI-EBR (que
Temporais no Português Europeu e no Português Brasileiro”, provém do Corpus Borba-Ramsey) é uma selecção de excertos de
apresentado no Colóquio Português Europeu e Português Bra- obras brasileiras, contendo pelo menos discurso literário, didáctico e
sileiro - Unidade e Diversidade na Passagem do Milénio, XVI oral cuidado (discursos políticos).

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 379


Verbos de operação aspectual em PE e em PB:
semântica e sintaxe
Fátima Oliveira (FLUP), Luís Filipe Cunha (CLUP), Sérgio
Matos (FLUP) Anabela Gonçalves (FLUL)

ABSTRACT: Portuguese aspectual verbs have two different structures: 1. a+Inf./Ger., 2.de+Inf.. EP and BP can differ w.r.t. the availability of these
constructions (Ger. is not acceptable in standadd EP), the functional structure of the embedded domain and the stative/eventive nature of the ‘inputs’
corresponding to each construction.
PALAVRAS–CHAVE: operadores aspectuais, ‘input’ estativo/eventivo, T dependente, clíticos

1. Introdução diz respeito aos verbos de operação aspectual, prende-se com a pos-
O objectivo deste trabalho consiste em caracterizar semântica sibilidade de surgimento, na segunda destas variedades, de formas
e sintacticamente verbos de operação aspectual em PE e em PB. As envolvendo o Ger., a par com a utilização de a + Inf., em contextos
construções analisadas podem englobar-se em dois grandes grupos, em que a norma do PE apenas aceita, tipicamente, o recurso à última
Vasp+a+Inf /Vasp+Ger e Vasp+de+Inf, em que a distinção sintáctica configuração referida:
se articula com a semântica, quer no contraste entre os dois grupos, (1) O João está a comer/* comendo a maçã.
quer nas diferentes possibilidades de construção nas duas varieda- (2) A Maria ficou a chorar/* chorando.
des. Quanto ao primeiro caso, em PE só existe Vasp+ a+Inf, enquan- (3) A Lígia anda a ler/* lendo o livro.
to em PB também Vasp+Ger ocorre. As construções Vasp+de+Inf (4) O Rui começou a escrever/* escrevendo a tese.
distinguem-se sintáctica e semanticamente das anteriores, pois não (5) A Rita passou a viver/* vivendo na Holanda.
só apresentam uma única construção como, quando surgem com (6) O Guilherme continuou a beber/* bebendo o leite.
gerúndio em PB, não são aspectuais. (7) Cecon esteve inspecionando os estragos causados pela chu
va na avenida. (NILC, par 280628)
2. Semântica dos verbos de operação aspectual em PE e (8) A barca perdeu o leme e ficou dando voltas, em círculos.
em PB (NILC, par 20492)
Do ponto de vista semântico, é fundamental distinguir (9) Para completar, São Pedro andou lavando o céu e o ralo
predicação base de input e de output dos operadores, na medida em ficou bem em cima da gente. (NILC, par 22842)
que se considera que não só se altera o resultado da operação (10) Muitas meninas começaram a chorar. (NILC, par 8774)
aspectual, como também é necessário fazer algumas transições nas (11) O delegado Hélio Luz passou a suspeitar de Anísio. (NILC,
predicações base para ser possível que os verbos aspectuais operem par 10857)
as referidas mudanças (cf. Moens 1987). (12) Caído sobre o volante, continuou acelerando. (NILC, par
Consideramos que um operador aspectual é um “elemento 275520)
linguístico” cuja principal função é a de alterar a perspectivação ou a Enquanto as frases de (1) a (6), que ilustram (a norma padrão
focalização das situações. Uma opção por um tratamento deste tipo d)o PE, nos revelam que os verbos de operação aspectual representa-
advém da necessidade de dar conta de certas assimetrias resultantes dos seleccionam, de modo consistente, a + Inf., os exemplos de (7) a
de diferenças na interacção entre o operador e o tipo aspectual da (12) tornam claro, pelo contrário, que, em PB, parece existir uma
situação em causa, pois os operadores parecem ser sensíveis à classe certa alternância entre a configuração considerada e formas do Ger.
das eventualidades com que se combinam. Será possível encontrar algum tipo de explicação para este facto?
Assim, propõe-se para este tipo de construções uma análise A distribuição de a + Inf. e de Ger., no que respeita aos ver-
essencialmente baseada na noção de operação aspectual, que consis- bos de operação aspectual do PB, está longe de ser homogénea. De
te na conversão de um determinado input num dado output. Deste facto, os dados desta variedade apontam, inequivocamente, para a
modo, as categorias aspectuais básicas são comutadas por forma a existência de divergências significativas ao nível do tipo de configu-
obtermos o input desejado, que, por sua vez, sofre nova transição, rações em que os diferentes operadores aspectuais estão envolvidos.
por efeito do operador aspectual, com vista à obtenção de um output Assim, o número de ocorrências em verbos de operação aspectual
final (Cunha 1998). como estar (Ger. 33; a + Inf. 3), andar (Ger. 90; a + Inf. 0) ou ficar
Procura-se, assim, determinar tanto as classes aspectuais que (Ger. 320; a + Inf. 22) revela uma nítida tendência para estes compa-
se constituem como input, como as que surgem como output relati- recerem com formas do Ger., contrastando, nesse aspecto, com co-
vamente a uma transição aspectual. O input é tipicamente determi- meçar (Ger. 15; a + Inf. 3626) ou com passar (Ger. 0; a + Inf. 2748),
nado pelas condições necessárias para que se dê uma transição. Isto que seleccionam preferencialmente a + Inf. Finalmente, continuar
é, que parte(s) de um evento é/são indispensável(eis) como já exis- parece ser o único operador que se mostra capaz de surgir com ambas
tentes ou decorridas para que o operador possa operar sem provocar as estruturas de um modo relativamente equilibrado (Ger. 248; a +
anomalias semânticas. O output aparece reflectido na frase que inte- Inf. 167).
gra o operador, e a categoria aspectual resultante determina-se recor- Devemos, além disso, ter em conta que nem todas as ocor-
rendo a vários testes. rências que integram as configurações sob análise se reportam a ca-
sos de operação aspectual. Estruturas do género de começar +
3. Vasp + a + Infinitivo Vs. Vasp + Gerúndio Gerúndio ou de passar + Gerúndio podem revestir outras significa-
Um problema de grande relevância que se nos depara, quan- ções distintas. Assim, a primeira destas construções recebe, muito
do procuramos estabelecer um contraste entre o PE e o PB, no que frequentemente, uma interpretação de cariz basicamente temporal,

380 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


correspondente a começar por em PE (cf. (13)), enquanto a segunda A confirmarem-se as observações que acabámos de efectuar,
só admite a presença do verbo passar como elemento lexical pleno parece-nos lícito formular as seguintes conclusões relativamente aos
(cf. (14)): verbos de operação aspectual com a + Inf./Ger. no PB:
(13) Vinci começou pintando e só em 1990 passou à escultu o Quando um verbo de operação aspectual toma como seu
ra. (NILC, par 879959) “input” um processo (básico ou derivado), surge, preferen
(14) Nisto ouviram um rumor no telhado, e um morcego pas cialmente, com formas do Gerúndio.
sou agitando lentamente as grandes asas. (NILC, par o Quando um verbo de operação aspectual toma como “input”
1286505) um estado, comparece, tendencialmente, com a + Infinitivo.
Os exemplos que acabámos de apresentar poderiam ser toma- Antes de darmos a presente discussão por concluída, devemos
dos como ponto de partida para a formulação de uma hipótese que sublinhar que nos encontramos face a uma tendência geral e não pe-
passaria por considerar que a + Inf. se restringiria aos contextos em rante uma regra rígida. Com efeito, operadores como estar ou ficar
que a presença do Ger. dá origem a leituras diferenciadas (não surgem, ainda que muito raramente, em combinação com a + Inf.,
aspectuais). Isto equivale a dizer que a forma com Inf. se constituiria enquanto, por outro lado, começar admite, pelo menos em algumas
como uma alternativa unicamente para os casos em que a presença circunstâncias particulares, a presença do Ger., mantendo o seu valor
do Ger. induz interpretações marcadamente não aspectuais; de con- de verbo aspectual. Finalmente, surpreendemos casos em que conti-
trário, esta seria a estrutura seleccionada. Se é certo que a tentativa nuar + Ger. comparece com estados e em que continuar a + Inf.
de explicação que aqui esboçámos revela a capacidade de enquadrar, ocorre com “inputs” de natureza eventiva.
de um modo natural, os factos relativos a verbos de operação aspectual
como passar ou começar, ela deixa sem qualquer resposta os proble- 4. Vasp. + de + Infinitivo
mas levantados por continuar. Com efeito, este operador parece su-
Os verbos de operação aspectual que se integram neste tipo de
portar tanto a construção com Ger. quanto a com Inf., ambas mani-
construção envolvem interrupção, cessação, conclusão ou culminação
festando um valor inequivocamente aspectual, o que significa que as
de uma eventualidade. Neste grupo enquadram-se os verbos deixar
duas formas podem coexistir induzindo uma leitura de operação
de, parar de, acabar de, e terminar de, tanto em PE como em PB.
aspectual, ao contrário do que seria de prever. Somos, pois, forçados
Apresentam fundamentalmente distinções semânticas, quer no con-
a rever as nossas propostas, por forma a acomodar a totalidade dos
dados disponíveis. traste aspectual/temporal (acabar/terminar), quer no domínio de apli-
Um factor que poderá ser decisivo para a distribuição do Ger. cação (parar/deixar).
e de a + Inf. no escopo dos verbos de operação aspectual tem que ver
com a própria estrutura semântica que lhes está subjacente. Será pos- 4.1. Acabar de em PE
sível estabelecer uma relação entre as categorias aspectuais envolvi- Acabar de em PE pode, consoante a natureza aspectual dos
das nos “inputs” e “outputs” dos operadores com as configurações inputs ser um operador aspectual ou apresentar uma leitura apenas
morfológicas por eles seleccionadas? Vejam-se, a este respeito, os temporal. Pelo contrário, em PB, tal distinção surge tendencialmente
dados do Quadro I, onde se evidenciam os efeitos semânticos destes associada a dois operadores distintos, acabar de e terminar de.
verbos de operação aspectual: Como operador aspectual, acabar de pode ocorrer com pro-
cessos e processos culminados como predicações base. No entanto,
o seu input tem de ser um processo e o seu output é uma culminação
(ou processo culminado), tendo em conta os adverbiais com os quais
pode co-ocorrer. Por outro lado, não é compatível com predicações
estativas e ao ocorrer com culminações passa a apresentar uma leitu-
ra temporal, como é ilustrado pelos exemplos (19)-(23).
(19) Ontem, o Rui acabou de ler o livro às cinco horas.
(20) Ontem, o Rui acabou de ler o livro em meia hora.
(21) * Ontem, o Rui acabou de ser alto. [estado]
(22) * Ontem, o Rui acabou de gostar de Linguística. [estado
faseável]1
Enquanto estar, andar e ficar, cujo “input” é de cariz eventivo, (23) * Ontem, o Rui acabou de sair. [culminação]
se combinam, de preferência, com o Ger., começar e passar, que se Quando acabar de é temporal, é possível a construção com todas as
aplicam exclusivamente a estativos, revelam uma forte tendência para classes aspectuais, tal como é exemplificado em (24)-(28):
seleccionar a forma com o Inf. Finalmente, um operador como conti- (24) A Maria acabou de ser simpática: ofereceu-me um exem
nuar, que admite tanto eventos quanto estados como “categorias de plar do livro que publicou. [estado faseável]
entrada”, ocorre, de forma equilibrada, com qualquer uma das estru- (25) O Rui acabou de trabalhar (neste momento / há pouco).
turas em causa. [processo]
A confirmar a hipótese aqui avançada parece estar o facto de (26) O Rui acabou de ler o livro (neste momento/ há pouco).
continuar a + Inf. surgir, preferencialmente, em contextos estativos [processo culminado]
(cf. (15)-(16)), contrastando com continuar + Ger., que é muito mais
(27) O Rui acabou de bater à porta (neste momento / há pou
frequente com “inputs” eventivos (cf. (17)-(18)):
co). [ponto]
(15) Nos anos 50, Maria continuou a ter prestígio junto
(28) O Rui acabou de sair (neste momento / há pouco).
às instituições. (NILC, par 847078)
[culminação]
(16) Seu pai continuou a trabalhar no Brasil depois de
No entanto, deve observar-se que o ponto de perspectiva tempo-
libertado. (est. habitual) (NILC, par 8800)
(17) Debaixo de chuva, Zagalo continuou orientando o ral está contido no intervalo relevante adjacente e imediatamente pos-
time, pedindo mais combate na defesa. (NILC, par terior ao terminus das eventualidades. Não se verificando essa condi-
1224101)
(18) Wanderley não deu atenção à mulher e continuou
vendo o jogo. (NILC, par 295191) 1 Para o conceito de estado faseável, veja-se Cunha (1998).

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 381


ção de adjacência, através, por exemplo, da introdução no contexto de (45) * O Rui acabou de ser simpático.
um adverbial de tempo adequado, com Culminações e Estados, essa (46) ?? O Rui parou de ser simpático.
localização não se verifica, como em (29) em contraste com (30): (47) O Rui deixou de ser simpático.
(29) * Ontem às dez horas, o Rui acabou de sair. No entanto, quando a leitura habitual não é possível, deixar de não é
(30) Ontem, às 10 horas, mal o Rui acabou de sair telefo aceitável (à excepção de alguns processos como os verbos
nou a Teresa a perguntar por ele. meteorológicos), na medida em que só este operador se pode combi-
(31) Ontem às dez horas, o Rui acabou de ler o livro. nar com estados habituais, apresentando a sua cessação:
(aspectual) (48) O Rui acabou /parou /*deixou de escrever a carta.
(49) O Rui *acabou/ ?? parou/ deixou de sair à noite com os
4.2. Acabar de e terminar de em PB amigos.
Na variedade brasileira verifica-se que as construções com Assim, deixar de, ao combinar-se com processos, apresenta tipica-
de+infinitivo apresentam a interessante característica de cada um dos mente uma interpretação habitual, acabar de bloqueia essa leitura e
operadores se ter especializado em domínios que em PE são realiza- parar de marca uma interrupção, admitindo a possibilidade de reto-
dos por acabar de. Isto é, tendencialmente, terminar de é aspectual e mar o curso da eventualidade:
acabar de é temporal. Neste sentido, vejam-se os seguintes exem- (50) O Rui parou /? acabou /* deixou de fumar quando a
plos:2 Maria entrou na sala, mas voltou a pegar num cigarro mal ela saiu.
(32) À 0h de ontem, os detentos terminaram de cavar o tú (51) O Rui fumava desde os seus 15 anos. Mas deixou (*aca
nel (NILC, par 348798) bou / ?? parou) de fumar depois de um tratamento
(33) Chico acaba de finalizar seu segundo CD (NILC, par médico.
7325)
Podemos assim resumir no Quadro II as observações feitas:3 4.3.2. Em PB
Na variedade brasileira, deixar de comporta-se de modo paralelo ao
mesmo operador em PE, mas parar de apresenta divergências, na
medida em que há dois tipos, um semelhante a parar de e outro a
deixar de em PE. A uma certa instabilidade deste operador em PE,
corresponde assim uma distinção entre dois operadores em PB. Ve-
jam-se os exemplos (52)-(53)em que parar de opera sobre um pro-
4.3. Parar de e deixar de
cesso e também sobre um estado:
4.3.1. Em PE
(52) […] pediu a um policial que parasse de atirar (NILC,
Nesta variedade observa-se que parar de é semelhante a acabar de par 920)
quanto à predicação-base (processos e processos culminados), como (53) aos quais pediu para pararem de ter medo (NILC, par
se pode ver em (34)-(38), mas o output é um ‘evento pontual’ asso- 19554)
ciado a um estado cessativo. No entanto, não se trata de uma Quanto a deixar de, tanto pode ocorrer com estados como com pro-
culminação (39), embora também se possa questionar o seu estatuto cessos e processos culminados, sendo o output um estado cessativo
pontual, tendo em conta (41), o que nos leva a considerar que se trata ou um evento pontual associado a um estado cessativo, respectiva-
de uma construção que apresenta alguma instabilidade. mente, tal como em PE:
(34) * O Rui parou de ser alto. (54) Noticiei que a grife italiana iria deixar de vestir o time
(35) * O Rui parou de ser simpático. do Barcelona (NILC, par 12875)
(36) O Rui parou de correr. (55) Gostaria que Jackson deixasse de ser pop star (NILC,
(37) O Rui parou de ler o livro. par 9000)
(38) * O Rui parou de sair. (56) se a escurecesse totalmente (totalmente!) deixaria de ver
(39) * O Rui parou de ler o livro numa hora. os objectos (NILC, par 995)
(40) O Rui parou de ler o livro às 5 horas. Deste modo, a caracterização aspectual de parar de em PB pode
(41) O Rui parou de ler o livro durante 1 hora. apresentar-se no Quadro IV:
Quanto a deixar de, devem considerar-se dois tipos. Um primeiro
caso em que as predicações-base são estados não-faseáveis e o output
um estado cessativo igualmente não-faseável e um segundo caso em
que as predicações-base são processos e processos culminados, o
input processos e o output um evento pontual associado a um estado
cessativo.
No Quadro III resumem-se estas observações:

1
Para o conceito de estado faseável, veja-se Cunha (1998).
2
Com efeito, em 73 ocorrências analisadas com terminar de, apenas 4 po-
dem ser temporais, enquanto em 135 sequências analisadas com acabar de
só duas não são temporais.
3
Em PB acabar pode ocorrer com Gerúndio, mas não se trata de um opera-
dor aspectual, sendo paralelo à construção acabar por em PE. Terminar
Se compararmos Acabar de / parar de / deixar de, pode dizer-se que por também se pode encontrar mas, novamente, não se trata de um ope-
o primeiro indica a culminação do processo, o segundo a sua inter- rador aspectual, tal como acontece em PE em construções com acabar
rupção e o terceiro a cessação de um estado habitual. Tal é ilustrado por.
(i) Estas imperfeições podem aparecer na forma de verrugas, que acabam
por (42)-(47):
prejudicando a suavidade de sua pele. (Cláudia 38,nº6, p.147)
(42) O Rui acabou de fumar. (ii) Nossa cultura é muito machista e terminamos por reproduzir essa cultu-
(43) O Rui parou de fumar. ra quando botamos só as meninas para cuidar de casa. (revista Domingo,
(44) O Rui deixou de fumar. nº1. 199)

382 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Síntese 5.1.2. Natureza categorial do complemento seleccionado pelo ver
Do ponto de vista semântico, quando em PB são possíveis as bo aspectual
duas construções, Vasp+a+Infinitivo e Vasp+Gerúndio, há, A ocorrência do marcador de negação frásica no domínio
tendencialmente, leituras aspectuais diversas, nomeadamente quanto infinitivo quer em PE quer em PB sugere que o complemento do
à natureza dos inputs. As construções com de+Infinitivo, diferentes verbo aspectual pode ser de categoria TP:4
das anteriores, apresentam fundamentalmente distinções semânticas, (65) (O) João começou/continua a não dormir depois de ter
quer no contraste aspectual/temporal (terminar de/acabar de), quer sido assaltado.
no domínio de aplicação (parar de/deixar de). Estas divergências (66) ?(O) João está de novo a não fazer o que prometeu.
semânticas são corroboradas pela sintaxe destas estruturas, como a Embora se projecte, T encaixado é dependente de T matriz,
no sentido em que não define um domínio semanticamente
seguir se apresenta.
temporalizado (Newmeyer, 1975; Raposo, 1987; Ambar, 1992), exi-
gindo-se sobreposição das situações descritas nos dois domínios
5. Comportamento sintáctico dos verbos de operação
oracionais. Por essa razão, não podem ocorrer modificadores tempo-
aspectual em PE e em PB rais com valores distintos, nem pode ocorrer, no domínio infinitivo,
5.1. O modelo de estar a + INF e estar + GER o auxiliar de tempos compostos, que confere um valor de anteriori-
5.1.1. Natureza categorial da expressão a dade à situação descrita nesse domínio:
Como demonstrámos em secções anteriores, no que diz res- (67) *Os meninos, ontem, estavam a ler o livro, hoje.
peito aos verbos de operação aspectual, PE e PB distinguem-se pelo (68) *Os meninos estavam a ter lido esse livro.
facto de a segunda destas variedades admitir a ocorrência de formas A representação parcial do complemento infinitivo seleccionado
envolvendo o Ger, a par com a forma a + Inf. (cf. (57)-(58)), em pelos verbos de operação aspectual do PE e do PB em análise nesta
contextos em que a norma do PE apenas aceita, tipicamente, o recur- secção é, assim, a que se apresenta em (69):
so à última forma referida (cf. (59)): (69) Vasp [TP[T’[AspP[Asp’[Asp a] [VP tSU V …]]]]]
(57) estão a apertar os calos dos ocupantes de cargos execu Embora aparentemente a estrutura atribuída ao complemento
tivos estaduais (NILC, par 14422) dos verbos aspectuais do PE e do PB seja idêntica, as duas varieda-
(58) eles estão nos cafetinando (id., par 11806) des distinguem-se quanto às possibilidades de colocação dos clíticos
(59) as patrulhas estão a fazer rusgas (Natura/Público, par dependentes do verbo no Inf. Assim, por um lado, o PE admite Subi-
227) da de Clítico para uma posição proclítica ou enclítica, de acordo com
A análise das propriedades sintácticas da construção infinitiva as regras gerais de colocação dos clíticos nesta variedade (cf. (70)-
(71)), construção que, em PB, ocorre em número reduzido (2 exem-
acima ilustrada passa, a nosso ver, pela natureza categorial do ele-
plos no NILC):
mento a. De acordo com Raposo (1989), trata-se de uma preposição
(70) ainda se estão a realizar os estudos preliminares (Natura/
que encabeça um domínio oracional (PIC) com uma distribuição idên-
Público, par 13662)
tica à das orações pequenas canónicas, no sentido em que pode ocor- (71) que se começam a dar os primeiros passos (id., par 5293)
rer em isolamento sintáctico e na posição de Sujeito final em constru- (72) já lhe estava a ouvir resmungar (NILC, par 1291677)
ções com verbos predicativos: Por outro lado, em PB, o clítico ocorre preferencialmente em posição
(60) [Os meninos a fazer um bolo]! Que surpresa maravi proclítica, em contextos em que o PE exige ênclise no verbo encaixa-
lhosa! do ou Subida de Clítico:
(61) [Os meninos a fazer um bolo] é uma surpresa maravi (73) estava a lhe infernar a paciência (NILC., par 983969)
lhosa. (74) o cinema continua a me interessar (id., par 840433)
A atribuição de estatuto preposicional ao elemento a que ocor- Estas diferenças podem ser explicadas se assumirmos que (i)
re em construções aspectuais coloca, no entanto, alguns problemas. em domínios subordinados não finitos T pode ser activo ou defectivo
Em primeiro lugar, domínios infinitivos preposicionados não quanto a traços-V (Gonçalves, 1999) e (ii) as duas variedades em
seleccionados por verbos de operação aspectual não ocorrem, em análise são distintas quanto aos núcleos que legitimam os clíticos
Português, nos contextos ilustrados em (62) e (63): (Duarte et al., 2001). Assim, em contextos infinitivos seleccionados
(62) (Os meninos gostam de fazer bolos.) pelos verbos aspectuais, se T for activo, as duas variedades admitem
*Os meninos de fazer bolos! Que surpresa maravilhosa! a ocorrência de clíticos, em posição proclítica ou enclítica, de acordo
(63) *Os meninos de fazer bolos é uma surpresa ma com as regras gerais de colocação de clíticos de cada variedade:
(75) outros estão a fazê-lo agora (Natura/Público, par 47378)
ravilhosa.
(76) estava a se queixar (NILC., par 1111465)
Em segundo lugar, a + Inf ocorre, em alguns casos, a par de Ger -
Em PE, no entanto, se T encaixado for, nos mesmos contextos,
embora se verifiquem restrições (não sintácticas) quanto à preferên-
defectivo quanto a traços-V, o V encaixado deve verificar os seus
cia por uma das formas -, o que não acontece em construções em que traços contra os de T matriz; neste caso, o clítico também não pode
o domínio infinitivo não é seleccionado por um verbo de operação verificar os seus traços no domínio encaixado, sendo a sua subida
aspectual: para o domínio matriz uma estratégia de último recurso para evitar a
(64) a. O João obrigou a Maria a ler o livro não convergência da derivação. Neste aspecto, o PB distingue-se do
b. *O João obrigou a Maria lendo o livro. PE, uma vez que os clíticos são obrigatoriamente legitimados no do-
O comportamento específico de a em construções aspectuais mínio encaixado, o que exclui a possibilidade de Subida de Clítico.
levou Gonçalves (1992) e Duarte (1993) a sugerirem que este ele-
mento é a lexicalização de um núcleo de Aspecto (Asp), que, ao amal-
gamar-se com T, confere à construção o valor aspectual; nos contex-
4
tos de Ger, o núcleo Asp é lexicalmente nulo. Neste trabalho, assumi- A dependência da negação relativamente a T tem sido assumida de forma
consensual na literatura recente sobre o assunto (Zanuttini 1996, Matos
remos os fundamentos básicos desta análise, que será repensada no
1999). Quanto à relação entre T e clíticos, veja-se, entre outros, Duarte
quadro do Programa Minimalista. et al. (2001).

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 383


No que diz respeito à construção gerundiva dependente de ver- Síntese
bos aspectuais do PB, parecem estar em causa duas estruturas Os dados apresentados nesta secção mostram que as constru-
sintácticas distintas. Com efeito, verbos como continuar e começar ções analisadas se podem englobar em dois grandes grupos,
admitem negação encaixada, o que pode constituir um argumento em Vasp+a+Inf /Vasp+Ger e Vasp+de+Inf, em que a distinção sintáctica
favor da projecção de T no domínio gerundivo, mas verbos como se articula com a semântica, quer no contraste entre os dois grupos,
estar excluem, para a maioria dos falantes, a ocorrência de negação quer nas diferentes possibilidades de construção nas duas varieda-
encaixada: des. A análise comparativa das propriedades sintácticas das constru-
(77) o Carrefour e o Sé continuam não vendendo (NILC, par ções em PE e em PB permite-nos concluir que é no primeiro dos
250377) grupos que se encontra maior variação, nomeadamente no que diz
(78) continuam não funcionando os restaurantes universitários respeito à estrutura funcional do domínio encaixado com a forma
(id., par 309764) a+Inf.
Tendo em conta este comportamento, consideramos que o com-
plemento gerundivo pode incluir ou não uma projecção de T, pelo Conclusão
que as representações parciais desse complemento são as que se apre- Neste trabalho mostrámos que as distinções semânticas dos
sentam em (79): verbos de operação aspectual em PE e em PB estão relacionadas com
(79) Vasp [TP[T’[AspP[Asp’[VP tSU V …]]]]] / Vasp [AspP[Asp’[VP tSU as diferenças de estrutura sintáctica de forma clara, tornando possí-
V …]]] vel associar aos operadores que em PB se constroem com a+inf a
Quer num caso quer no outro, é possível a ocorrência de clíticos natureza estativa do input, que corresponde a considerar a como a
em adjacência ao verbo encaixado, o que permite colocar a hipótese lexicalização do núcleo Asp que, amalgamado a T, dá à estrutura o
de que, em PB, ao contrário do que acontece em PE, núcleos funcio- seu valor aspectual. Este é o caso também do PE, embora o input
nais distintos de T mas não distintos de V (Asp, por exemplo) podem tenha já características diferentes (eventos e estados faseáveis). Nas
legitimar clíticos: construções com Gerúndio, em PB, o input é eventivo e o núcleo
(80) As pessoas estão me dando apoio nas ruas (NILC, par Asp é lexicalmente nulo. Quanto às construções com de+inf., defen-
10046) deu-se que de não lexicaliza Asp e mantém o seu estatuto preposicional
(81) Eles ficam nos ameaçando (id., par 331832) em ambas as variedades, sendo as distinções fundamentais de natu-
O facto de o PB admitir a ocorrência de clíticos em domínios reza semântica, quer do ponto de vista aspectual, quer temporal.
participiais dependentes de verbos auxiliares, ao contrário do que
acontece em PE, constitui evidência empírica adicional em favor da Referências bibliográficas
hipótese de que o elenco de núcleos funcionais que legitimam clíticos
na primeira variedade é mais alargado do que na segunda. AMBAR, M. (1992). “Temps et Structure de la Phrase en Portugais”.
5.2. O modelo de deixar de + INF In Obenhauer, H. G. & A. Zribi-Hertz (orgs.). Structure de la
O domínio de + Inf não tem a mesma distribuição do domínio a + Phrase et Théorie du Liage. Saint-Denis: PUV.
Inf, não podendo ocorrer em isolamento sintáctico nem em posição CUNHA, L. F. (1998) As Construções com Progressivo em Portugu-
de Sujeito em construções com verbos predicativos, como acontece ês: uma Abordagem Semântica, Dissertação de Mestrado, Fa-
em (62) e (63): culdade de Letras da Univ. do Porto.
(82) Os meninos deixaram de ler o livro. DUARTE, I. (1993). “Complementos Infinitivos Preposicionados e
(83) *Os meninos de ler o livro! Que pena! outras Construções Temporalmente Defectivas em Português Eu-
(84) *Os meninos de ler o livro é uma pena. ropeu”. Actas do VIII Encontro da APL. Lisboa: APL.
Consideramos, assim, que de não lexicaliza o núcleo Asp, DUARTE, I., G. Matos, I. Ribeiro & A. Gonçalves (2001). “Clíticos
mantendo o seu estatuto preposicional, pelo que a representação par- Especiais em Português Europeu e Brasileiro”. Comunicação
cial do domínio infinitivo é a que se apresenta em (85):5 apresentada ao Colóquio PE-PB 2000. Fortaleza, Março 2001.
(85) [PP[P’[P de][TP[T’[T VP]]]]] GONÇALVES, A. (1992). Para uma Sintaxe dos Verbos Auxiliares
Note-se que de pode, nesta construção, desencadear próclise, ao con- em Português Europeu. Dissertação de Mestrado, Fac. Letras
trário do que acontece com a e de forma semelhante ao que acontece da Univ. De Lisboa.
com outras preposições: GONÇALVES, A. (1999). Predicados Complexos Verbais em Con-
(86) os investidores londrinos deixaram de se preocupar textos de Infinitivo não Preposicionado do Português Europeu.
(Natura/Público, par 5278) Dissertação de Doutoramento, Univ. Lisboa.
(87) durante os desfiles para o Outono-Inverno (...)não pa KAMP, H. & U. Reyle (1993) From Discourse to Logic. Introduction
raram de a fotografar (id., par 69608) to Modeltheoretic Semantics of Natural Language, Formal Logic
(88) os dois deixaram de se ver em dezembro de 1992 (NILC, and Discourse Representation Theory. Dordrecht: Kluwer.
par 96053) MATOS, G. (1999). “Negative Concord and the Scope of Negation”.
A diferença entre os verbos em análise nesta secção e os verbos CatWPL, vol. 7.
que seguem o modelo de estar não se limita, porém, ao estatuto do MOENS, M. (1987) Tense, Aspect and Temporal Reference. Disserta-
elemento que introduz o complemento infinitivo. De facto, em PE,
como em PB, os clíticos podem verificar os seus traços no domínio
encaixado, não podendo, por essa razão, subir para o domínio matriz,
uma vez que este movimento não seria (morfologicamente ) motivado:
1 Note-se, porém, que o domínio infinitivo não pode ser pronominalizado :
(89) *durante os desfiles para o Outono-Inverno não a para (i) *Os meninos deixaram disso.
ram de fotografar Esta impossibilidade parece estar relacionada com o facto de os verbos em
(90) *os dois se deixaram de ver em dezembro de 1992 análise serem verbos de Elevação. Veja-se que o complemento infinitivo
Esta impossibilidade de Subida de Clítico sugere que o núcleo T seleccionado pelo verbo parecer (um verbo de Elevação típico em diferentes
encaixado é sempre activo em contextos dependentes de verbos como línguas) exibe o mesmo comportamento:
deixar, contrariamente ao que acontece em contextos seleccionados (ii) Os meninos parecem gostar de gelados.
por verbos como estar. (iii) *Os meninos parecem isso.

384 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


ção de Doutoramento. Univ. de Edimburgo. Infinitive in European Portuguese”. LI, 18
NEWMEYER, F. (1975). English Aspectual Verbs. Paris: Mouton. ____________. (1989). “Prepositional Infinitival Constructions in
OLIVEIRA, F., S. Matos e L.F. Cunha (2000) “Alguns Operadores European Portuguese”. In Jaeggli, O. & K. Safir (orgs.). The Null
Aspectuais em Português Europeu e Português Brasileiro” Co- Subject Parameter. Dordrecht: Kluwer.
municação apresentada ao Colóquio PE-PB 2000. Coimbra, Se- ZANUTTINI, R. (1996). “On the Relevance of Tense for Sentential
tembro 2000. Negation”. In Belletti, A. & L. Rizzi (orgs.). Parameters and
RAPOSO, E. (1987). “Case Theory and Infl-to-Comp: the Inflected Functional Heads. N. Iorque, Oxford: OUP.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 385


Elipse de VP no Português Europeu
e no Português Brasileiro
Gabriela Matos, (Universidade de Lisboa)
Sónia Cyrino, (Universidade Estadual de Londrina)

RESUMO: Neste trabalho procederemos à caracterização de Elipse do VP e à determinação das propriedades responsáveis pela sua ocorrência e o seu
diferente comportamento em Português Europeu e Brasileiro. Mostraremos que o mesmo factor de legitimação está presente nas duas variedades e que as
diferenças registadas decorrem do Léxico.
In this paper we will characterize VP Ellipsis and isolate the properties responsible for its occurrence and different behaviour in European and Brazilian
Portuguese. We will show that the same licensing factor is at work in both varieties and that the differences rely on the Lexicon.
PALAVRAS-CHAVE: Elipse do VP, movimento/subida do verbo, legitimação do VP elíptico.

1. Elipse do VP em Português Europeu (PE) e Brasileiro d. Eles estão preocupados e nós também estamos [-].
(PB): aspectos comuns [-] = preocupados.
(5) (PB) a. Ela está enviando o livro para a editora e ele também
1.1. Caracterização de Elipse de VP está [-].
A Elipse do VP é caracterizada como um fenómeno que ocorre [-] = enviando o livro para a editora.
prototipicamente em Inglês, em exemplos como (1), em que o verbo b. — Eu já pude constatar que você é uma avó muito
principal e os seus complementos ou adjuntos são o alvo da elipse coruja.
(cf. (1a)-(1d)). A elipse pode, no caso do verbo copulativo be, res- — Mas tenho que ser [-], a minha neta é lindérrima.
tringir-se ao núcleo da oração pequena seleccionada pelo verbo, como (V. Loyola.Entrevista Benedita da Silva.
em. (2). Domingo,nº199, 25/ABR/1999)
[-]= uma avó muito coruja.
(1) a. John loves Mary, and Peter does [-], too
[-]= love Mary (Sag, 1980:10) Porém, a existência de subida generalizada do verbo nesta lín-
b. Sandy should go to Boston, and Betsy should [-], too. gua (cf. Pollock 1989, Belletti 1990) permite casos de Elipse do VP
[-]= go to Boston (Sag, 1980:11) identificados por verbos principais distintos dos verbos de cópula
c. Paul apologized, but Bob won’t have [-] (cf. Raposo 1986, Matos 1992, Kato 1993, Cyrino 1994/1997b, 1997a,
[-]=apologized (Sag, 1980:17) Martins 1994). As frases em (6) e (7) ilustram esta propriedade. Nes-
d. Betsy wanted to go home, but Peter didn’t want to [-]. tes exemplos, na explicitação do conteúdo da elipse, [t] está pela
[-]= go home (Sag 1980: 12) cópia do verbo.
2) Harry seems upset, but Bill doesn’t seem to be [-]
[-]= upset. (Sag, 1980:20) (6) A Ana trouxe o computador para a Faculdade hoje e a
Paula também trouxe [-].
O contraste entre (1)-(2) e (3), sugere que o factor determinante [-] = [t] o computador para a Faculdade hoje
para a existência de Elipse do VP é a possibilidade de um verbo ou (7) A: Escute, senhor Magnussen, esse seu Fernado
de um indicador da morfologia verbal (como to em (1d)) instanciar o Enríquez....
núcleo da projecção funcional que selecciona o VP elíptico. Os ver- B: ...Henrique.
bos auxiliares e be copulativo estão neste caso, um verbo como seem A: ...OK, Henrique, não tomou posse em Janeiro?
em (3) ou outros verbos principais não estão (cf. Pollock 1989, B: Tomou [-] sim, porquê?
Chomsky 1995). [-]= [t] posse em Janeiro
(Fritz Utzeri, Det ar Logn. Jornal do Brasil 6/9/99)
(3) *Harry seems (to be) upset, but Bill doesn’t seem [-]
[-]= upset. (Sag, 1980:20) 1.2. Elipse do VP vs. outros tipos de Elipse
Elipse do VP estabelece fronteiras com outras construções
As frases em (4) e (5) mostram que tanto o PE como o PB elípticas que afectam o predicado frásico ou os complementos do
possuem a construção de Elipse do VP prototípica, legitimada pela verbo principal.
presença de verbos auxiliares e copulativos.
1.2.1. Elipse do VP vs. Despojamento e Respostas
(4) (PE) a. Nenhum de nós tinha votado nesse candidato nem Fragmentárias
admitiamos que alguém tivesse [-]. Poderiamos admitir que a Elipse do VP em Português é uma
[-]= votado nesse candidato. construção ainda mais radicalmente diferente da inglesa, incluíndo
b. A: Alguém tem telefonado ao Pedro regularmente? na elipse o próprio verbo, como ilustrado em (8). Esta proposta foi
B: Tem a Ana [-] / A Ana tem [-]. defendida para o Espanhol por Brucart (1999) e Lopez (1999).
[-] = telefonado ao Pedro regularmente
c. Quanto às últimas aquisições bibliográficas, podemos (8) a. Algumas bibliotecárias catalogaram os livros mas ou
dizer que as revistas ainda não foram catalogadas, tras não [-]
mas há livros que já foram [-]. [-]= não catalogaram os livros.
[-] = catalogados b. A: Alguém tem telefonado ao Pedro regularmente?

386 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


B: Só a Ana [-]. (16) a. (PE) * Nenhum de nós havia votado nesse candidato nem
[-] = tem telefonado ao Pedro regularmente admitiamos que alguém tivesse [-].
[-]= [t] votado nesse candidato.
Rejeitaremos esta posição tendo em vista que as elipses presentes em c. * Quando a Ana pôs os óculos na mesa, a Maria também
(8) — caracterizadas como casos de Despojamento (Stripping) ou de colocou [-].
Respostas Fragmentárias em Matos 1992 — têm propriedades di- [-] [t] os óculos na mesa.
versas: (17) a. Ela tirou o anel do dedo e guardou [-] no cofre.
b. (PB) Ela espera os novos saírem nas bancas para com
(i) Em Despojamento e Respostas Fragmentárias a elipse prar [-].
afecta toda a frase e não apenas o VP, podendo ocorrer foneticamente
realizado não só o sujeito mas qualquer outro sintagma com a função Elipse do VP distingue-se de Anáfora do Complemento Nulo,
de argumento ou de adjunto: exemplificada em (18), por algumas propriedades diferenciadoras.

(9) a. Elas catalogaram os livros mas as revistas não [-] (18) a. (PE) Ainda que queiras [-], não podes resolver esse pro
[-]= Eles não catalogaram [tObj Dir]. blema facilmente.
b. A: A Ana tem telefonado a alguém regularmente? b. (PE,PB) Nosso time é superior aos adversários. Sei [-].
B: Só ao Pedro [-]. (Mauro Ventura, Jornal do Brasil, 2/Out/1999)
[-] = A Ana tem telefonado [tObj Indir] regularmente c. (PE,PB) E se você quiser deitar, também pode [-].
(Cláudia, Junho 1999, n´º 6, Ano 38, pp.46-47)
(ii) Despojamento está excluído de contextos-ilha, em que a Elipse
do VP é admitida: (i) Elipse do VP em Português exige paralelismo lexical en-
tre o verbo que identifica a categoria elíptica e um verbo do VP ante-
(10) a. A Maria só vai ao cinema se tu também fores [-]. cedente, o que não acontece com Anáfora do Complemento Nulo.
[-] = [t] ao cinema
(Elipse do VP) (19) * Ele não tinha ainda sido apresentado ao professor, mas vai
b. * A Maria só vai ao cinema se tu também [-]. [-] em breve
(Despojamento) (20) E se você quiser deitar, também pode [-].
[-] = fores ao cinema Revista Cláudia, Junho 1999, n´º 6, Ano 38, pp.46-47.

1.2.2. Elipse do VP vs. Complemento Nulo (ii) Elipse do VP pode mobilizar qualquer verbo. A ocorrên-
Elipse do VP distingue-se de Objecto Nulo, ilustrado em (15) por um cia da Anáfora do Complemento Nulo é lexicalmente determinada:
conjunto de propriedades estruturais e distribucionais. só é possível com verbos semi-auxiliares modais ou aspectuais e com
certos verbos de complementação (veja-se o contraste entre (21) e
(12) a. (PB) E se arma é poder, então o estado deve contro (22)).
lar [-]. (L.Vieira. Entrevista F. Monteiro. Domingo,
nº210, 11/JUL/1999) (21) a. Ainda que precises /necessites /possas /devas [-], não vais
b. (PE,PB) Ela tirou o anel do dedo e guardou [-] no cofre. resolver esse problema com facilidade.
c. O João olhou para a fotografia daquele homem. Reconhe b. A Maria ainda não escreveu o livro todo, mas já começou
ceu [-] [-].
imediatamente: era um dos seus colega de Faculdade. c. A Maria já começou a escrever a tese, e vai acabar [-] em
breve
(i) Elipse do VP pode ser legitimada por verbos auxiliares (cf. (4) e (22) a. * Ainda que pretendas [-], não podes resolver esse pro
(5a)); Objecto Nulo só pode ser legitimada por verbos principais (cf. blema com facilidade.
(12c)vs (13)): b. ?? Os médicos não queriam que a doente voltasse logo
para casa, mas ela
(13) O João olhou para a fotografia daquele homem. implorou [-].
* Tinha [-] imediatamente: era um dos seus colega de Facul [-] = voltar para logo casa
dade.
(cf. Tinha reconhecido [-] imediatamente: ...) Em suma, Elipse do VP em Português constitui um objecto
de estudo autónomo.
(ii) Em Elipse do VP, a elipse abarca a cópia do verbo, os seus com-
plementos e adjuntos; Objecto Nulo coincide com um único argu- 2. A Legitimação/identificação do VP elíptico
mento do verbo (cf. (14) vs (15)). Para dar conta da legitimação da Elipse do VP duas questões centrais
se colocam:
(14) Ana trouxe o computador para a Faculdade hoje e a Paula (i) Que mecanismo ou propriedade legitima Elipse do VP?
também trouxe [-]. (ii) Que mecanismo ou propriedade impede a sua existência?
[-]= [t] o computador para a Faculdade hoje
(15) Ela tirou o anel do dedo e guardou [-] no cofre. No âmbito do Programa Minimalista, Cyrino 1999 considera que a
legitimação dos constituintes elípticos pós-verbais em geral, e de
(iii) Elipse do VP em Português não pode ser legitimada por Elipse do VP em particular, implica o movimento do Verbo para Iº.
um verbo distinto de um dos verbos do VP antecedente; Objecto Só assim se explica a existência de Elipse do VP apenas com verbos
Nulo pode (cf. (16) vs. (17)). auxiliares no Inglês e a possibilidade de Elipse do VP com verbos
auxiliares e principais no Português. Adoptando uma proposta de

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 387


Cyrino 1999, admitiremos o seguinte princípio de legitimação: É possível encontrar algum fundamento empírico para esta hi-
pótese: (i) em línguas germânicas como o Alemão, os fenómenos de
(23) Legitimação do VP elíptico V2 têm sido atribuídos à subida do verbo para Cº. Deste modo, pare-
A legitimação do VP elíptico é feita sob c-comando local do ce plausível postular que nestas línguas é Cº que tem traços-v fortes;
núcleo funcional que subcategoriza o VP, instanciado por um (ii) em línguas Românicas como o Francês e o Italiano os tempos
núcleo lexical foneticamente realizado. verbais do passado são frequentemente dados por formas compostas,
que em Português e em Inglês são usadas para veícular valores
Num quadro em que Iº se encontra desmembrado em mais de aspectuais (veja-se o contraste entre (26) vs. (27)). Este facto poderá
um núcleo funcional, a condição estrutural requerida deve, contudo, mostrar que nestas línguas, Tº tem traços-v fracos.
ser reprecisada nos seguintes termos, quando a legitimação do VP
elíptico decorre do movimento do verbo: (26) a. Ho visto Maria.
O núcleo verbal legitimador da categoria elíptica move-se b. J’ai vu Marie.
para projecções funcionais alargadas de V, encabeçando a cadeia (27) a. Tenho visto a Maria.
funcional que subcategoriza o VP. b. I have (just) seen Mary.
É o que acontece em (24a.B), frase a que atribuímos a repre-
sentação em (24b). 3. Elipse do VP em Português Europeu vs. Português Brasileiro
Embora ambas as variedades coincidam nos aspectos centrais
(24) (PE) a. A: Alguém tem ído à praia? caracterizadores de Elipse do VP, existem algumas particularidades
B: Tem a Maria. que as distinguem. As diferenças tornam-se evidentes quando há mais
b. [AgrSP [Agrº tem ] [TP a Maria [Tº t ] [VP - ] ] ] de um elemento verbal dentro do VP. Assim, além da impossibilida-
de de algumas sequências verbais em PB, como estar a V-infinitivo
A questão que seguidamente se coloca é a de saber porque é em (28a), que tem por correlato possível estar V-gerúndio (cf. (28b)),
existem sequências bem formadas em PB com contrapartidas margi-
que c-comando local do núcleo verbal é requerido para legitimar a
nais em PE ((29b)e (31)vs.(30b) e (32)).
categoria elíptica? A resposta não difere substancialmente da dada
para os casos de c-comando de categorias sem realização lexical de-
(28) (PE) a. A Ana está a ler os livros às crianças e a Maria tam
correntes de movimento - são as instâncias realizadas que permitem
bém está [-].
identificar as cópias não-realizadas (/a suprimir em PF).
[-] = [t] a ler os livros às crianças
No que diz respeito à Elipse do VP, o c-comando por um item
(PB) b. A Ana está lendo os livros às crianças e a Maria tam
lexical que instancie um núcleo de flexão verbal realizado permite
bém está [-].
identificar a categoria elíptica como uma projecção verbal completa
[-] = [t] lendo os livros às crianças
(uma fase de vP, no sentido de Chomsky 1999). Assumindo a teoria (29) (PB) a. O carro não foi atribuído à Maria, mas os outros
da Bare Phrase Structure, em que uma categoria Núcleo não se dis- prémios foram [-].
tingue radicalmente da sua Projecção Máxima, este comportamento [-] = [t] atribuídos à Maria.
é esperado. b. O carro não foi atribuído à Maria, mas os outros
No quadro actual, nada mais é necessário postular para a prémios foram
legitimação do VP elíptico. De facto, se em versões anteriores do atribuídos [-].
Programa Minimalista se assumia que a legitimidade das representa- [-] = [t] à Maria
ções repousava (quase-)inteiramente na Teoria da Verificação, o mes- (30) (PE) a. O carro não foi atribuído à Maria, mas os outros
mo não acontece actualmente: só têm de ser verificados os traços prémios foram [-]
não-interpretáveis. Ora o VP é uma categoria com traços interpretáveis [-] = [t] atribuídos à Maria
- corresponde a uma fase (forte) vP, que contém a estrutura temática b.?? O carro não foi atribuído à Maria, mas os outros
associada ao verbo.1 Os traços não-interpretáveis, encontram-se ou prémios foram atribuídos [-]
na morfologia flexional associada ao verbo, ou nas projecções funci- [-] = [t] à Maria
onais que a verificam. Admitimos, assim, que nas configurações de (31) (PB) a. A Ana está lendo os livros às crianças e a Maria tam
Elipse do VP apenas o Verbo se move para verificação de traços, por bém está lendo[-]
motivos que são independentes da legitimação da categoria elíptica [-] = [t] os livros às crianças
embora desse movimento decorra a condição necessária para a sua b. A: Esse livro tem sido lido às crianças?
legitimação/identificação. B: Não, não tem sido lido [-]
[-] = [t] às crianças
2.3.2 Inexistência de Elipse do VP em línguas com Movi (32) (PE) a. ?? A Ana está a ler livros às crianças e a Maria tam-
mento do Verbo bém está a ler [-].
Tentativamente esboçaremos, no âmbito do Programa [-] = [t] livros às crianças
Minimalista, uma hipótese de explicação da inexistência de Elipse b. A: Esse livro tem sido lido às crianças?
do VP em línguas com movimento do Verbo. ?? B: Não, não tem sido lido [-]
[-] = [t] às crianças
(25) Hipótese: Elipse do VP só é possível em línguas que têm Tº
com traços-v fortes pois só estes permitem identificar a categoria a Em PE, (30b) e (32) são marginais, sendo privilegiada uma
ser suprimida (ou, na hipótese interpretativista, a ser reconstruída
em FL).
1 Note-se que o facto de o sujeito e o núcleo verbal serem constituintes
O Português e o Inglês são línguas em que Tº tem traços-v realizados em elipse do VP é compatível com a hipótese de a elipse do VP
fortes. As restantes línguas Românicas, e as línguas germânicas como operar sob uma fase, uma vez que respeita a Condição de Interpenetrabilidade
o Alemão, têm traços-v de Tº fracos, embora apresentem traços-v da Fase, que admite que em cada fase forte apenas o núcleo e a sua perife-
fortes de Agrº ou Cº, que têm de ser verificados antes de Spell-Out. ria estão acessíveis a operações para fora do domínio desse núcleo.

388 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


interpretação, não de Elipse do VP, mas de complementos nulos pelos verbos auxiliares e semi-auxiliares nas duas variedades. Ilus-
(objecto directo e indirecto nulos). De facto, a explicitação do verbo traremos esta análise com os casos das sequências que envolvem o
principal nestas sequências, faz com que os constituintes elípticos auxiliar ter dos tempos compostos, e o aspectual estar.
sejam preferencialmente interpretados como complementos elípticos No PE o auxiliar ter dos tempos compostos selecciona uma
referencialmente arbitrários. (em (30b) os outros prémios foram atri- projecção distinta de TP, e o Aspectual estar pode seleccionar uma
buídos a alguém; em (32a) A Maria está a exercer a actividade de projecção Tº (cf. Matos 1992) activa ou não (cf. Gonçalves 1999).
ler (algo), em (32b), o livro não foi lido nem às crianças nem possi- Assumimos, pois que é Tº <+activo> o núcleo legitimador do VP
velmente a ninguém).Pelo contrário, os exemplos (29) e (31) em PB elíptico, e que as sequências verbais têm de ser sentidas como uma
são bem-formados, sendo preferencial uma interpretação específica unidade complexa instanciadora desse núcleo. Constitui um argu-
dos complementos verbais elípticos e sendo aparentemente recupe- mento a favor da formação em PE dessa unidade verbal complexa
rável uma leitura de Elipse do VP. nas estruturas de elipse de VP, a impossibilidade de Inversão Sujeito
Verbo com mobilização apenas do primeiro auxiliar:
Uma outra diferença entre o PE e o PB reside na maior diver-
sidade de posicionamento de também nas sequências verbais (37) (PE) Alguém tem lido livros às crianças?
legitimadoras de Elipse do VP. Este advérbio é necessário nas elipses a. Tem o João [-]. [-]=[t] lido livros às crianças
de VP em frases coordenadas por veicular explicitamente a identida- b. Tem lido o João [-]. [-]=[t] livros às crianças
de do conteúdo predicativo a ser elidido. Os exemplos seguintes c. ??/*Tem o João lido [-]. [-]=[t] livros às crianças
mostram que o PE é muito mais restritivo do que o PB na colocação (38) (PE) Aguma coisa está a ser lida às crianças pelo João?
a. Estão os livros de histórias [-]. [-]=[t] lidos [DP t]
deste advérbio nas sequências verbais:
às crianças
b. Estão a ser lidos os livros de histórias [-] [-]=
(33) (PB) a. O João não faz isso antes de a Maria também ter
[t] [DP t] às crianças
feito [-].
c. ?? Estão os livros de histórias a ser lidos [-] [-]=[t]
b. O João não faz isso antes de a Maria ter também
[DP t] às crianças
feito [-].
c. O João não faz isso antes de a Maria ter feito [-]
Assim, a estrutura a propor para os exemplos bem formados
também.
do PE seria a seguinte, em que ter-feito em (40) foi reanalisado como
[-] = [t] isso uma unidade complexa, que ocupa Tº.
(34) (PE) a. O João não faz isso antes de a Maria também ter
feito [-]. (39) (PE) a. A Ana está a ler os livros às crianças e a Maria
b. ??/*O João não faz isso antes de a Maria ter também também está.
feito [-]. b. e a Mª também [Tº<+activo> está] [VauxP t [AspP [TP<-activo>
c. (?) O João não faz isso antes de a Maria ter feito [-] [vP-] ] ] ]
também. (40) (PE) a. O João não faz isso antes de a Maria também ter-
[-] = [t] isso feito.
(35) (PB) a. A Ana está enviando livros para a editora e a Paula b. antes de a Maria também [Tº<+activo>ter-feito] [VauxP t
também está enviando [-]. [V-PartP t [vP -] ] ]
b. A Ana está enviando livros para a editora e a Paula
está também enviando [-]. O contraste entre estes exemplos e os mal-formados em (41) e (42)
c. A Ana está enviando livros para a editora e a Paula sugere que em PE a extensão da cadeia, que pode envolver núcleos
está enviando [-] também funcionais diferentes de Tº activo, é um factor de degradação e que a
[-] = [t] livros para a editora interposição do advérbio também quebra essa cadeia.
(36) (PE) a. A Ana está a enviar livros para a editora e a Paula
também está a enviar [-] (41) (PE) a. ?? A Ana está a ler os livros às crianças e a Maria
b. ?? A Ana está a enviar livros para a editora e a Paula também está a ler
está também a enviar [-] b. e a Mª também [Tº<+activo> está] [VauxP t [AspP a [TP<-activo>ler
[-] = [t] livros para a editora [vP t ] ] ] ]
(42) (PE) a. * O João não faz isso antes de a Maria ter também
3.2. Uma proposta relativamente aos factores responsáveis feito.
pelas divergências b. e a Maria [Tº <+activo> ter] [VauxP t [também [V-PartP feito
O que os contrastes acima analisados sugerem é que em PE, a [vP t] ] ] ]
posição preferencial de também é c-comandando e precedendo toda
a sequência verbal formada por auxiliares e verbos principais de for- Pelo contrário, no PB os verbos auxiliares seleccionam em geral
ma a indicar, através do seu escopo, o início da sequência que legiti- projecções funcionais menos defectivas. Mais especificamente, o PB
ma a elipse. Esta sequência constitui um complexo verbal, formado apresentaria um outro domínio de TP com uma categoria funcional
por reanálise/reestruturação, que é quebrado quando também é inter- Tº activa permitindo licenciar os constituintes elípticos:
posto entre os verbos da sequência verbal, dado que a posição de
também indica que sequência legitimadora da elipse se inicia a partir (43) (PB) a. A Ana está lendo os livros às crianças e a Maria
do local em que o referido advérbio se encontra (Matos 1992). também está lendo.
Pelo contrário, no PB os verbos que participam nas sequências b. e a Maria também[Tº<+activo> está] [VauxP t [TP<+activo>lendo
verbais legitimadoras de Elipse do VP têm muito maior autonomia, [AspP t [vP-]]]]
aparentemente não havendo re-estruturação/ reanálise dos verbos (44) (PB) a. O João não faz isso antes de a Maria também ter-
presentes na sequência. feito
Assim, a nossa hipótese é que as diferenças observadas entre o b. e a Maria também[Tº<+activo> ter] [VauxP t [TP<+activo> feito
PB e o PE estão relacionadas com os complementos subcategorizados [V-PartP t [vP -]]]]

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 389


Assim sendo, a possibilidade de colocação de também está BRUCART, José (1999) La Ellipsis. In Bosque, Ignácio e Violeta
explicada, o mesmo acontecendo à legitimidade da interpretação das Demonte (dir.) Gramática Descriptiva de la Lengua Española.
categorias nulas como elipses de VP em sequências com o verbo Madrid: Editorial Espasa Calpe, vol 2, pp. 2787-2863.
principal. Em ambos os casos, no PB, o legitimador do VP elíptico é CHOMSKY, Noam (1995) The Minimalist Program. Cambridge, Ma:
o núcleo Tºmais encaixado. The MIT press.
————, (1999) Derivation by Phase. Occasional Papers in
(45) (PB) a. A Ana está lendo os livros às criançase a Maria está Linguistic, no.18, Cambridge, Ma: MIT.
também lendo. CYRINO, Sónia (1993) Observações sobre a mudança diacrónica no
b. ...e a Maria [TP [Tº está] [VauxP t [TPtambém [Tº<+activo> lendo] português do Brasil: objecto nulo e clíticos. In Roberts, Ian e
[AspP t [vP-]]]]] Mary Kato (1993).
—————, (1994/1997b) O objeto nulo no português do Brasil -
Uma evidência adicional a favor dessa segunda projecção TP é um estudo sintático-diacrônico, Londrina: Editora da UEL.
fornecida pela colocação dos pronomes clíticos em PB, assumindo —————, (1997a) Elementos Nulos pós-verbais no Português
que estes restringem a sua ocorrência a domínios temporalizados. Brasileiro Oral Contemporâneo. Relatório Final do Projecto No.
(cf. Rouveret 1995, Ambar 1999, Duarte et alii 2001). Assim, em PE, 300469/95-0. Universidade Estadual de Londrina.
em que poder, mas não o auxiliar ter dos tempos compostos, selecciona —————. (1999) “A categoria INFL no português brasileiro” Es-
TP, os seguintes contrastes verificam-se: tudos Lingüísticos XXVIII, p. 449-454.
DUARTE, Inês, Gabriela Matos, Ilza Ribeiro e Anabela Gonçalves
(46) (PE) a. João podia [TP ler-lhe o livro]. (2001) Clíticos Especiais em Português Europeu e Brasileiro.
b. * Ele tem [VauxP lido-lhe o livro] Comunicação apresentada ao Congresso da Abranlin.Fortaleza,
c. * Ele tinha [VauxP já lhe lido o livro] Ceará.
GONÇALVES, Anabela (1999) Predicados Complexos Verbais em
Pelo contrário, em PB, a possibilidade de ocorrência sistemática dos Contextos de Infinitivo não Preposicionado do Português Euro-
clíticos em próclise ao particípio passado e ao gerúndio nas constru- peu. Dissertação de Doutoramento. Lisboa: Universidade de Lis-
ções de verbos auxiliares, confirma que estes seleccionam domínios boa.
TP activos (cf. (46)). Como esperado, nesses mesmos domínios tam- KATO, M. (1993) Recontando a História das Relativas em uma Pers-
bém pode co-ocorrer com o clítico (cf. (47)). pectiva Paramétrica. In Roberts, Ian e Mary Kato (1993) Portu-
guês Brasileiro — Uma viagem diacrónica. Campinas: Ed
(47) (PB) a. João tem [te lido o livro] Unicamp.
b. João está [te enviando o livro] LÓPEZ, Luis (1999) VP-Ellipsis in Spanish and English and the
(48) (PB) O Pedro está te enviando livros e João está também te features of Aux. Probus 11: 263-297.
enviando livros. MARTINS, Ana Maria (1994) Enclisis, VP-deletion and the nature
of Sigma. Probus 6:
Em suma: MATOS, Gabriela (1992) Construções de Elipse de Predicado em
Os resultados obtidos nesta secção não põem em causa o factor Português. Dissertação de Doutoramento, Lisboa: Universidade
geral de legitimação da Elipse do VP: a existência de um Tº <+activo> de Lisboa.
com traços-v fortes. As divergências entre o PE e o PB decorrem do POLLOCK, Jean-Yves (1989) Verb-Movement, UG and the Structure
Léxico, mais precisamente, da natureza categorial dos complemen- of IP. Linguistic Inquiry 20: 365-424.
tos seleccionados pelos verbos auxiliares em cada uma das varieda- RAPOSO, Eduardo (1986) On the Null Object in European
des do Português. Enquanto em PE os auxiliares seleccionam Portuguese. In Jaeggli, Osvald and Carmen Silva-Corvalán (eds.)
tendencialmente projecções distintas de TP com Tº<+activo>, o mes- Studies in Romance Linguistics. Dordrecht/ Riverton: Foris
mo não sucede em PB. Publications
ROUVERET, Alain (1995) Clitics, Subject and Tense in European
Referências bibliográficas: portuguese. Ms
SAG, Ivan (1980) Deletion and Logical Form. New York/London:
AMBAR, Manuela (1999) Infinitives vs. Participles. In Treviño Garland Publications.
Esthela e José Lema (eds.) Current Issues in Linguistic Theory. ZAGONA, Karen (1988) Verb Phrase Syntax. A Parametric Study of
Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company. English and Spanish. Dordrecht/ Boston/ London: Kluwer
BELLETTI, Adriana (1990) Generalized Verb Movement. Torino: Academic Publishers.
Rosenberg & Sellier.

390 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Ordem VS e sujeito nulo em PE e PB
Izete Lehmkuhl Coelho (UFSC)
João Costa (UNL)
Maria Cristina Figueiredo Silva (UFSC)
Sérgio de Moura Menuzzi (PUC-RS)
Giorgia Brazzarola (bolsista PIBIC-UFSC)

ABSTRACT: The purpose of this work is to examine the possibilities of VS order in declarative sentences in PE and PB. The analysis shows that in both
varieties the VS order is grammatical in unaccusative contexts under specific syntactic-semantic conditions of focalization.
PALAVRAS-CHAVE: PB/PE; ordem VS; inacusatividade; focalização.

1. Introdução
Este trabalho procura investigar as possibilidades de ocorrên-
cia da ordem verbo-sujeito (doravante VS), considerando os dados do
português europeu (doravante PE) e do português brasileiro (doravante
PB). Para buscar evidências que atestem ou não nossas hipóteses a
respeito dos condicionadores da ordem VS, investigamos dois corpora
de língua escrita, pertencentes às variedades do PB e do PE (Projeto
PE/PB2000).
Este estudo procura também construir uma explicação alterna- A tabela mostra, em um primeiro momento, resultados favorá-
tiva para a correlação desde muito observada entre a propriedade do veis à postulação de que as duas variedades apresentam a mesma curva
sujeito nulo e a inversão do sujeito, de modo a incorporar observa- probabilística com respeito ao condicionamento do verbo na ordem VS,
ções correntes sobre outras propriedades destas duas variedades, o que leva a evidências favoráveis de que verbos inacusativos, em espe-
cial inacusativos não-existenciais e existenciais (não-copulares), apre-
entre elas a de que o PB perde progressivamente contextos de ocor-
sentam ambientes propícios à ordem VS (.77 e .99 no PB; e .55 e .93 no
rência do sujeito nulo, contextos que se mantêm firmes em favorecer
PE), enquanto verbos intransitivos apresentam-se como contextos
o sujeito nulo no PE. Adicionalmente, sujeito nulo e inversão do
inibidores da posposição, apenas .24 no PE.
sujeito ainda devem se relacionar com outras características de cada Examinemos agora o grupo de fatores traços de definitude e de
uma das variedades em discussão, particularmente sobre as estrutu- especificidade do DP, baseando-nos em Enç (1991). A autora relacio-
ras de expressão de foco e as possibilidades de expressá-lo via meca- na especificidade com definitude, propondo a seguinte formulação:
nismo entonacional. enquanto sintagmas [+definidos] e [+específicos] exigem que seus
referentes discursivos sejam ligados a referentes discursivos previa-
2. Os dados mente estabelecidos, sintagmas [-definidos] e [-específicos] exigem
2.1. Os resultados estatísticos que seus referentes sejam novos. A natureza da ligação é o que distin-
A seleção dos dados só levou em conta construções com ver- gue essas noções: a ligação relevante para estabelecer os critérios de
bos intransitivos e inacusativos, por não encontrarmos nenhuma ocor- definitude é a relação de identidade e para estabelecer os de
rência de posposição do sujeito em construções transitivas nesse especificidade é a relação de inclusão (grifos nossos). No primeiro
primeiro momento, nem na variedade do PB nem na do PE. Dos 612 caso, os referentes têm de ser idênticos. No segundo caso, os referen-
dados analisados (253 no PB e 359 no PE), encontramos 73 ocorrên- tes em questão devem estar (ou não) incluídos no conjunto de referen-
cias de V DP (29%) no PB e 121 no PE (34%). Após postulados os tes previamente mencionados no discurso.
Para discutir tais traços, considerem-se as sentenças abaixo:
grupos de fatores, categorizamos todos os dados e fizemos várias
rodadas estatísticas, utilizando-nos do pacote VARBRUL; o progra-
(1) a. (Fala do encontro com os adolescentes) A conversa acon
ma selecionou como estatisticamente relevantes, por ordem de teceu a meio de manhã (entrevista/PE, p.5)
significância, os seguintes grupos de fatores: b. Toda vez que eu reencontro Gaiarsa (...) a minha admira
Variedade do PB: ção cresce ainda mais (Entrevista/PB, p. 60)
1o. Grupo - Tipo de verbo
2o. Grupo - Forma de realização do DP (2) a. às vezes basta um empurrão, outras é preciso um apoio
3o. Grupo - Estatuto [+/- pesado] do DP mais sólido (entrevista/PE, p. 10)
4o. Grupo - Traços de definitude e de especificidade do DP b. Daí surgiram forças que atropelaram tudo ao seu redor (ma
Variedade do PE: téria assinada/PB)
1o. Grupo - Tipo de verbo Podemos dizer que em (2) os sintagmas indefinidos um em-
2o. Grupo - Traços de definitude e de especificidade do DP purrão/forças são partes não pressupostas da informação que se quer
3o. Grupo - Estatuto [+/- pesado] do DP veicular, por não estabelecerem relação nem de identidade, nem de
Interessam-nos nesse trabalho, em especial, os grupos de fatores inclusão com o discurso precedente, diferentemente do que acontece
tipo de verbo e traços de definitude e de especificidade do DP. Vale com os sintagmas definidos A conversa/a minha admiração em (1).
ressaltar que o grupo de fatores tipo de verbo foi o primeiro a ser seleci-
onado nas duas variedades de língua pelo pacote estatístico VARBRUL 1 Para efeitos de rodada do pacote estatístico VARBRUL, foi atribuída à
e seus resultados podem ser observados na tabela 1, abaixo: variedade do PB uma ocorrência de VS com verbos intransitivos.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 391


Essa diferença parece não ser trivial no que se refere à ordem do sujeito, Apesar de as possibilidades de VS se manifestarem com menos
como apontam os resultados estatísticos da tabela 2, a seguir. restrições semânticas no PE do que no PB, em especial quando o DP
é marcado com traços [-definido] e [+específico], a variação entre
essas duas variedades é mínima. Podemos observar a partir dos resul-
tados percentuais dos dois gráficos acima, que a ordem VS está con-
dicionada pelos sintagmas marcados com traços negativos de definitude
e de especificidade nas duas variedades. Tais resultados podem estar
refletindo respectivamente casos de tópico e de foco informacional,
segundo os quais informação velha tende a aparecer à esquerda do
Baseando-nos na tabela 2, podemos dizer, então, que quando o verbo, enquanto informação nova à sua direita, ordens SV e VS, res-
DP apresenta um alto grau de definitude, contendo traços [+definido] e pectivamente.
[+específico], a ordem SV é a mais recorrente, enquanto que, quando o
DP apresenta um baixo grau de definitude, DP [-definido] e [-específi- 2.2. O que dizem os falantes nativos
co] e DP nu, a ordem VS é a preferida nas duas variedades: .60 no PB e Os dados estatísticos que examinamos revelam parte significa-
.89 no PE. Tanto os percentuais quanto o peso relativo parecem apon- tiva das possibilidades de ocorrência das diversas ordenações permi-
tar que cada uma das ordens aparece em um contexto específico: (i) à tidas entre o sujeito e o verbo. No entanto, sabemos que não temos
medida que o DP é [-definido] e [-específico], diminui o número de revelado aqui o conjunto completo de possibilidades, em função das
ocorrências de SV e aumenta o número de ocorrências de VS; (ii) à especificidades do material do corpus frente ao tipo de restrição de
medida que é [+definido] e [+específico], aumenta o número de DPs uso que diferentes ordens de palavras podem apresentar nas diferen-
pré-verbais e diminui o número de DPs pós-verbais. Mas, afinal, essa
tes variedades do português. Assim, para completarmos o quadro, é
complementaridade também está relacionada à natureza do verbo? Veja-
mos o que o cruzamento entre o tipo de verbo e os traços do DP necessário recorrermos à intuição dos falantes nativos de cada uma
evidencia nos gráficos abaixo em cada uma das variedades da língua das variedades do português que, quando instados a darem julgamen-
portuguesa: tos de gramaticalidade, fornecem os dados faltantes juntamente com
sua intuição sobre os possíveis contextos de uso, informações que
também são cruciais para a análise que pretendemos desenvolver.
Nossa hipótese inicial é de que as variedades européia e brasi-
leira do português apresentam várias diferenças relativamente às or-
dens de palavras possíveis. Em PE, com verbos transitivos, são gra-
maticais, em contextos específicos, as ordens SVO, VSO e VOS,
como em (3):

(3) SVO O João comeu o bolo


VSO Comeu o João o bolo
VOS Comeu o bolo o João

Em PB, apenas a ordem SVO é possível em construções tran-


sitivas, à parte construções como “heavy NP shift” (cf. Figueiredo
Silva et alii, 2000) apresentada em (4) abaixo:

Como podemos observar no gráfico 1, devem existir diferenças (4) Fizeram a matrícula todos os alunos que estavam no corredor
significativas relacionadas principalmente aos traços de definitude entre
construções intransitivas e inacusativas no PB, apontando para a exis-
tência de uma complementaridade entre tais construções. À medida que Por outro lado, quando falamos de contextos de
o DP é marcado por traços negativos de definitude (e de especificidade) monoargumentalidade, falantes nativos e dados estatísticos dizem o
cresce o percentual de ordem VS em certos contextos de inacusatividade; mesmo e com a mesma veemência: com verbos monoargumentais,
quando, porém, o DP é marcado por traços positivos, a preferência é em PE são possíveis as ordens VS quer em construções intransitivas,
para a ordem SV (exceto em contextos existenciais). Essa correlação como em (5), quer em construções inacusativas, onde a ordem VS é
mostra que o grupo de fatores traços semânticos do DP não tem rele- gramatical tanto com focalização sobre o sujeito, como em (6a), quan-
vância independente nessa variedade do português.
to com focalização sobre a frase (Costa 1999), como em (6b):
Já no PE a curva não é a mesma, como podemos observar no
gráfico 2, abaixo.
(5) Viajou o João

(6) a. - Quem chegou?


- Chegou o João.

b. - O que aconteceu?
- Chegou o João.
Por seu turno, o PB só admite a inversão com inacusativos, e
ainda impõe restrições severas em contextos em que o sujeito é foca-
lizado (aparentemente apenas interpretações de lista e de exclusivida-
de são permitidas a frases como (6a)). Aliás, essa não é uma observa-
ção nova: vários trabalhos sobre o PB já mostraram uma restrição
forte de monoargumentalidade para a ordem VS no PB (cf. Kato
2001, Berlinck 1995), em especial, para contextos de inacusatividade

392 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


(cf. Coelho 2000), o que nos permite formular a seguinte generaliza- (11) - Quem chegou?
ção: o PB não permite sujeito pós-verbal, enquanto PE o permite. - Chegou o João/*O João chegou

3. As questões e, opcionalmente, os contextos de frase focalizada, como em (12):


As perguntas que se colocam, portanto, são: por que o PE
permite inversão com transitivos e inergativos e o PB não? Por que (12) - O que aconteceu?
tanto o PE quanto o PB admitem inversão com inacusativos? As - Chegou o João/ o João chegou
mesmas interpretações estão disponíveis nas duas variedades?
Observe-se, no entanto, que em PB, se (12) pode tornar-se
Este trabalho pretende derivar as diferenças de aceitabilidade
aceitável (especialmente se outras condições são satisfeitas, como
nas construções de inversão do facto de o PB estar a perder o sujeito
por exemplo se o sujeito for de “baixa topicalidade”: chegou uma
nulo (Duarte 1995, Figueiredo Silva 1996). Sabe-se historicamente carta pra Maria), o mesmo não se pode dizer para (11): apenas a
que as propriedades de sujeito nulo e inversão do sujeito estão de frase com ordem direta é aceita nesta variedade como resposta para a
alguma maneira relacionadas, embora não seja simples explicitar a questão que focaliza o sujeito, como vemos em (13):
maneira exata como isso se dá. Formularemos aqui uma hipótese
para esta relação, segundo a qual o sujeito nulo que conta efetiva- (13) - Quem chegou?
mente para a relação em questão é o sujeito nulo referencial. O PE - O João chegou/*Chegou o João
conta com sujeitos nulos referenciais, como atesta a gramaticalidade
de (7) abaixo: Se supomos que as duas variantes do português ainda estão
suficientemente próximas, como as tabelas examinadas na seção 2.1.
(7) Comeu o bolo mostram, seria interessante averiguar se essa diferença é real ou se são
os contextos de utilização que não estão adequadamente descritos. De
Assim, é possível obter inversão em qualquer contexto. Em fato, parece que há um problema descritivo com os dados do PE,
PB, como se sabe, pro referencial parece estar desaparecendo, dado porque existem contextos aparentemente de frase focalizada em que a
que sentenças como (7) são cada vez menos freqüentes nessa varieda- opcionalidade desaparece, como vemos em (14) ou (15):
de do português. No entanto, as sentenças em (8) abaixo são gramati-
(14) - O que aconteceu?
cais com sujeito nulo em PB; particularmente no que concerne (8a) e
- Caiu um avião/ ??Um avião caiu
(8b), o sujeito nulo é a única opção, sendo impossível o preenchimen-
to desta posição por qualquer elemento lexical:
(15) - O que aconteceu?
- Está um gato no jardim/??Um gato está no jardim
(8) a. Está chovendo
b. Parece que o João chegou Observemos que estes são os contextos de definitude, em que
c. Não usa mais saia temos predominantemente sintagmas de tipo [-definido, -específico]
na construção, mas não apenas esse tipo de sintagma, como mostra a
O PB parece, pois, ainda contar com pro expletivo. Uma vez gramaticalidade de (12) com inversão de um DP que é um nome pró-
que a análise da inversão com inacusativos para o fenômeno em várias prio. A generalização correta com relação ao PE parece ser, portanto,
línguas envolve um pro expletivo em posição de sujeito, é esperado que a inversão com inacusativos é utilizada para a focalização do
que só exista em PB inversão com esta classe verbal. sujeito ou em construções de foco identificacional (cf. Duarte, 1997),
construções em que se faz uma apresentação, mas não necessariamen-
4. Uma proposta de análise te de informação nova, como é o caso da frase focalizada.
Uma tentativa de formulação dessas idéias pode ser avançada Em PB, também é possível utilizar a inversão em contexto de
com base na divisão do parâmetro do sujeito nulo em duas condições foco identificacional, caso em que as duas variantes coincidem. No
distintas: uma condição estrutural, em (9), e uma condição morfológica, entanto, o foco informacional, em particular o caso da focalização do
em (10): sujeito, é expresso uniformemente através da prosódia em PB, uma
impossibilidade em PE. Dito de outro modo, para a expressão do foco
informacional, o PB lança mão da estratégia da prosódia marcada,
(9) Condição estrutural:
generalizada a todos os contextos, incluindo os transitivos; o PE uti-
Spec IP deve ser ocupado liza a prosódia usual, isto é, acento à posição mais à direita da senten-
ça e assim é a alteração na ordem das palavras, colocando à direita o
(10) Condição morfológica: sintagma a ser focalizado, que garantirá a interpretação de foco
O que ocupa Spec IP deve ter conteúdo lexical informacional a este sintagma.

Desse modo, podemos dizer que o PB respeita perfeitamente Referências bibliográficas


(9); quanto a (10), as únicas exceções são pro expletivo e pro arbitrá-
rio. O resultado da combinação particular do PB para estas condições BELLETTI, A. “The Case of Unaccusatives”. Linguistic Inquiry. Vol.
é o comportamento especial desta língua: apenas a inversão com 19 (1), inverno, 1988.
inacusativos é admitida. ___________. “Inversion as focalization”. Università di Siena (Revised
Procuraremos ainda explicar por que motivo os contextos que version) junho 1999 (mimeo).
legitimam a inversão são diferentes nas duas variedades, relacionando BERLINCK, R. de A. La position du sujet en portugais: etude
as diferenças com diferentes estratégias de focalização. Uma primeira diachronique des variétés brésilienne et européene. Paris, 1995.
abordagem do problema, feita em Costa (2000), aponta que, em PE, Tese de doutorado.
os contextos de inversão em construções inacusativas são os de BURZIO, L. Italian Syntax. A Government-Binding Approch.
focalização do sujeito, como exemplificado em (11): Dordrecht, Reidel, 1986.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 393


COELHO, I. L. A ordem V DP em construções monoargumentais: FIGUEIREDO SILVA, M. C. A posição sujeito no português brasi-
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Tese de doutorado. UNICAMP, 1996.
COSTA, J. Word Order Variation. A constraint-based approach. Tese FIGUEIREDO SILVA, M. C., COELHO, I. L. & MENUZZI, S. de
de doutorado, HIL/Leiden University., 1998. M. “A ordem VS em PB e PE”. Trabalho apresentado no 1º
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DUARTE, M. E. L. A perda do princípio “Evite pronome” no portu- ________. (1999) “Strong and Weak Pronominals in the Null Subject
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1-25, 1991.

394 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Algumas propriedades das construções negativas
do Português Europeu e do Português Brasileiro
João Andrade Peres (Universidade de Lisboa, Portugal)
Esmeralda Vailati Negrão (Universidade de São Paulo,
Brasil)

ABSTRACT: The paper addresses some properties of the constructions involving so-called structural (or sentential) negation, both in European and
Brazilian Portuguese. Two issues will be tackled: (i) sentential negation operators and directly related constructions, namely “reinforced negation”, and
(ii) some aspects of the arrangements that have been considered instances of negative concord.
PALAVRAS-CHAVE: negação, reforço da negação, concordância negativa.

1. Operadores de Negação Frásica em Português (9) “[A norma NBR 6023] destina-se a orientar a preparação e
1.1. Fixação de conceitos compilação de referência de material utilizado para a pro
Na terminologia de Payne (1985), as formas de negação em dução de documentos e para inclusão em bibliografias, resu
causa constituem realizações de “standard negation”. Esta, por sua mos, resenhas, recensões e outros. Aplica-se às descrições
vez, constitui uma das “syntactic forms of sentential negation”, con- usadas em bibliotecas e nem as substitui.”
juntamente com “negated quantifiers” (não muitos), “inherently
negative quantifiers” (nenhum estudante), “negated adverbials” (não Seguem-se exemplos de aplicações dos outros operadores
muitas vezes) e “inherently negative adverbials” (nunca) – cf. pp. negativos referidos:
197 ss.. (10) O Paulo não / nem jantou nem almoçou
Na terminologia de Horn (1989), a negação de que aqui se (11) A Ana saiu sem avisar os pais.
trata corresponde ao que ele designa “predicate denial” (com possí- (12) Sem te esforçares, não consegues nada.
vel variação de escopo). Este tipo de negação constitui, conjunta- (13) Deixei de fazer um bom negócio por tua causa.
mente com a “predicate term negation” (os relatórios não analisa- (14) Como não podia deixar de ser, vamos chegar atrasados.
dos, não muito longe daqui), um subtipo de “descriptive negation”. (15) Não deixa de ser curioso o que me estás a dizer.
Esta caracteriza-se por ser sempre verifuncional, assim se distinguindo
da “metalinguistic negation”. 1.3. Uma diferença nas tag-questions
1.2. Os operadores de negação frásica em português De passagem, note-se uma diferença entre português euro-
Se ignorarmos o plano morfológico, podemos dizer que a peu e português brasileiro (doravante, PE e PB, respectivamente) no
língua portuguesa dispõe de várias formas de expressão da negação que respeita à forma das chamadas tag-questions, no caso em que a
frásica padrão, não necessariamente em variação livre. Se a essas frase a que a tag é aplicada é negativa:
associarmos formas que envolvem coordenação ou subordinação, as
quais, para Payne, já não seriam estritamente negação-padrão ( “that (16) a. A Vera saiu, *(não) saiu / não foi / não é? [PE, PB]
type of negation that can apply to the most minimal and basic (17) b. A Vera não saiu, (*não) saiu? [PE, PB]
sentences”), obtemos o quadro seguinte: A Vera não saiu, pois não? [PE]
1.4. Negação reforçada
O fenómeno da negação reforçada, em que o operador nega-
tivo ou um sintagma com palavra negativa são usados para reforçar o
valor de negação já expresso por um outro operador negativo, verifi-
ca-se nas duas variantes, se bem que com muito mais frequência em
Importa salientar que o operador NEM envolve em muitos casos PB. É atestado por exemplos como:
implicatura convencional: (18) (…) assim como a tourada também eu não considero
(1) Nem em dez anos o país vai recuperar desta crise. muito esporte não...
(2) A – Vamos ao cinema? B – Nem penses! (RJ-DID 12:208)
(3) Você portou-se que nem um herói. (19) (…) não, não é só Ipanema... Copacabana... não...
(4) Se me convidarem para publicar nessa editora, nem pen |-114 L1 (PROJETO NURC/RJ-D2 147:113)
so duas vezes. (20) (…) isso não quer dizer que eu... sou muito contente com
Noutros casos tal valor parece estar ausente ou ser menos evi- a minha classe média não...
dente, podendo eventualmente reconhecer-se um valor informacional |-120 L1 (PROJETO NURC/RJ-D2 147:119)
do tipo da ênfase: (21) Mas se há a possibilidade de mexer em alguma coisa na
(5) O público nem sabe o que o espera! história do país – como aconteceu com o Pasquim –, se
(6) Nem imaginas o que me aconteceu ontem à noite! você continua com espaço para poder interferir, aí você
(7) Nem queiras saber o que andam para aí a dizer de ti! não vai para casa, não fecha o botequim não.
(8) O presidente da mesa nem cumprimentou os congressis
tas!
1 O texto foi encontrado pelo o primeiro autor, ao consultar o sítio da
Pela estranheza que causa, note-se a seguinte ocorrência, que, ABNT na Internet, a fim de procurar as normas de referência bibliográfica
a não ser desviante, constitui facto digno de registo1 : recomendadas pela ABRALIN.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 395


Jespersen, segundo o qual várias línguas naturais exibem um padrão
Nesses casos, o operador negativo que ocupa a posição pré-verbal é cíclico em que o operador negativo típico passa por um processo de
repetido no final da frase, o que distingue a negação reforçada de enfraquecimento que leva ao uso de sintagmas indefinidos ou
uma repetição da negação, exemplificada em (23): minimizadores como forma de reforçar o valor negativo desse ope-
(22) Sabe a que horas abre esta loja?. Não sei, não. [NE rador2 . O ciclo completa-se quando o operador negativo é substitu-
GAÇÃO REFORÇADA] ído pelo marcador de reforço, como se verificou em inglês, com a
(23) Sabe a que horas abre esta loja?. Não, não sei. substituição de ne pelo elemento adverbial not, e parcialmente em
[REPETIÇÃO C/ FUNÇÃO DISCURSIVA] francês, primeiro pela co-ocorrência de ne e pas e subsequentemente
[NB: o carácter discursivo da repetição torna-se evidente pela crescente exclusividade de pas na linguagem oral.
pelo facto de a resposta poder reduzir-se ao primeiro não.] Esquematicamente, podem representar-se estes processos evolutivos
(24) Sabe a que horas abre esta loja?. Não, não sei, não. como se segue:
[REPETIÇÃO DISCURSIVA E REFORÇO] (34) Francês: ne → ne… pas → pas (linguagem oral)
Noutros casos, o reforço está associado a uma palavra negativa: Inglês: ne → ne… not → not (mais verbo auxiliar)
(25) (…) na patinação ninguém ia saindo assim não..., só co Nos exemplos (29)-(33) acima, observamos que os sintagmas
nhecido mesmo... negativos nada, coisa nenhuma e coisíssima nenhuma podem ser o
(SP-D2 396:303) único elemento na frase utilizado para expressar o valor semântico
Estamos, pois, perante casos de reafirmação da força negati- de negação. A completar-se, o Ciclo de Jespersen teria, em pelo me-
va expressa em posição pré-verbal pelo operador negativo não ou nos algumas variedades do português, o perfil ilustrado pelas se-
por um sintagma negativo – como em (25) –, realizada pela repetição guintes instâncias:
do operador negativo frásico típico (não) no final da frase. Note-se, (35) NÃO sei → NÃO sei, NÃO → sei NÃO.
porém, que o mesmo efeito pode ser obtido pela aplicação, na segun-
da destas posições, da expressão de valor negativo nada. É o que 2. Sintagmas-n (n-words e n-phrases) em português
temos em frases como (26), do PB, e (27), do PE, em que aquela 2.1. Conceitos de concordância negativa
expressão não ocupa qualquer posição argumental: (36) a. Ninguém (*não) viu o Pedro.
(26) (…) e eu... “não vai chover nada... essa essa mulher tá b. O Pedro *(não) viu ninguém.
maluca”. (RJ-D2 369:206) Assumimos a seguinte caracterização, apresentada em Peres
(27) A – Que magra que estás! (no prelo), dos factos nucleares que definem a concordância negati-
B – Não estou nada, até estou mais gorda. va e que estão patentes no par de frases em (36):
Embora não exploremos o assunto, convém no entanto real-
çar que este segundo tipo de negação reforçada parece preferir con- “The salient phenomenon in these (…) data is the co-
textos de negação metalinguística, isto é, que envolvem contradição occurrence of a standard (arguably sentential) negation operator
de uma proposição da anteriormente no contexto. Assim, cremos que and a distinguished expression (nessuno, ninguém, nadie -
nos exemplos (18)-(22) e (23)-(25), seria difícil, se não impossível, Engl. nobody), commonly named “n-word” (after Laka 1990).
substituir o reforço não por nada. The well-known peculiarity of such kind of expressions resi-
A negação reforçada também é uma das explicações para a des in that, in contexts like Erro! A origem da referência
posposição do item negativo nenhum, que pode vir antes ou depois não foi encontrada.) they can be proven to express by
do núcleo nominal do sintagma do qual é o quantificador: themselves, without any overt negation operator, some sort of
negative value, while in contexts like (36), if, following the
(28) injeções, ele disse “não..., NADA disso... você não tem:: standard analyses of such sentences, the sentential negation
resfriado nenhum, o que você tem... é uma intoxicação operator is to be assigned its full semantic capacity, then the
gravítica...”(SP-DID 208:455) negative value of the n-word is, so to speak, inert.
Neste último texto, obviamente não se trata de dizer que, do This is the core notion of what might be called STRICT NEGATIVE
grupo de resfriados, nenhum elemento é possuído. CONCORD: an expression that is negative in some sense – in the

Merece ainda ser ressaltado o interessante facto de que, quan- cases under scrutiny, in the sense of involving contradiction
do o reforço é construído com a palavra negativa nada ou uma ex- and being antiadditive3 – is deprived of its negative value,
pressão similar, o operador negativo pode não vir expresso na lin- while keeping its form, even if it involves a (more or less
guagem coloquial (com mais facilidade em PB, mas também em PE): recognisable by present day speakers) negative morpheme. As
is well known, this is not the exact pattern found in French,
(29) A: Você ‘tá muito preocupado.
B: (Não) ‘tô nada.
(30) A: Foi você que perdeu o mapa.
B: (Não) fui nada eu! 2 A ideia de que há em português manifestações do Ciclo de Jespersen vem
(31) A: Ele é professor da USP. sendo defendida desde há vários anos pelo primeiro autor deste texto,
B: É nada! nomeadamente na sua docência, desde 1994, e em conferências proferi-
(32) A: O Paulo fez monte de besteira. das em 1998 no Brasil, nas Universidades de Campinas, de São Paulo, Fe-
B: Fez nada, foi a Maria que fez! deral de Alagoas e Federal da Paraíba. Note-se, porém, que nunca nessas
(33) A: Vai chover. intervenções fez qualquer referência às construções em que o elemento
de reforço é outra expressão que não o operador típico de negação.
B: (Não) vai chover nada. / (Não) vai nada chover. /
3 “For an n-word like English no, asserting that this operator is anti-additive
(Não) vai chover coisa / coisíssima nenhuma. is tantamount to stating that the following equivalence (where N1 and N2
Dados como os apresentados acima podem constituir evidên- stand for any nouns and X stands for any predicative expression) holds (see
cia da manifestação em português – muito mais intensamente em PB Zwarts 1995 for deeper analysis):
(i) [no (N1 OR N2) X] IF AND ONLY IF [no (N1) AND no (N2) X]” (Peres, no
do que em PE – do fenómeno descrito na literatura como Ciclo de
prelo)

396 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


where the weak negative particle is always required, and, more que está abundantemente descrita na literatura em relação ao correlato
utterly, in Slavic languages or Hungarian, where a strong inglês da contrapartida positiva (até). even).
negation particle always accompanies n-words. Of course, the
significance of a notion of NC where the concordant element 2.2.1.1.1. Operador implicativo aplicado a SN definido ou
does not autonomously possess some degree of negativity nome próprio
deserves serious reflection (…). PT (51) a.Nem o Pedro respondeu à pergunta.
(…) It should also be stressed that more relaxed patterns of b.?Não respondeu à pergunta nem o Pedro.
NC can be found in several languages (…), namely cases where (52) a.Este Verão nem em Londres choveu.
the negative value that justifies concordant elements like n- b.Este Verão não choveu nem em Londres.
words is not an overt negative operator or even a negative 2.2.1.1.2. Operador implicativo aplicado a SN de leitura genérica
operator (…).” (53) a.Nem um elefante derrubava este muro.
b.Não derrubava este muro nem um elefante.
Estabelecido este quadro conceptual da CN estrita, impõe-se 2.2.1.1.3. Operador implicativo aplicado a SN com operador
estabelecer algumas distinções. Antes de mais, é pertinente uma dis- numeral
tinção entre construções de CN explícita (consideradas, por simplifi- (54) a.Nem vinte estudantes foram à festa.
cação, dentro de um único domínio frásico, deixando de parte os b.Não foram à festa (nem) vinte estudantes.
efeitos de CN transfrásicos). Na CN explícita monofrásica, requer-se (55) a.Nem vinte estudantes couberam na sala.
um contexto anti-verídico – cf. Giannakidou 1998 –, com ocorrência b.Não couberam na sala (nem) vinte estudantes.
de um licenciador negativo visível do sintagma-n. Estes são os casos (56) a.Nem vinte estudantes cabem na sala.
clássicos, ilustrados em (36). Adiante, na secção 2.2., recordaremos b.Não cabem na sala (nem) vinte estudantes.
que o domínio da CN explícita é muito mais vasto do que tem sido (57) a.Nem vinte homens levantam esta pedra.
geralmente reconhecido na literatura, permitindo o português a ocor- b.Não levantam esta pedra (nem) vinte homens.
rência do fenómeno da CN com diferentes categorias e subcategorias
sintácticas. Na secção 2.3 acrescentaremos uma subclasse de cons- 2.2.1.1.4. Operador implicativo aplicado a SN com quantificador
truções de CN explícita que cremos não ter sido até hoje referida, universal, com leitura grupal e aspecto genérico
nomeadamente no que diz respeito ao português. (58) a.Nem todos os membros desta equipa levantariam esta
Em relação à CN explícita, PE e PB têm um comportamento pedra.
uniforme, idêntico ao das outras línguas de CN estrita, como o Espa- b. Não levantariam esta pedra (nem) todos os membros des
nhol e o Italiano. Podem, no entanto, estar a surgir em PB alguns ta equipa.
inovações, nomeadamente uma passagem do padrão de CN para um b’. Não levantariam esta pedra (*nem) todos os membros desta
padrão do tipo do inglês. Tal é sugerido por construções como as que equipa.
se seguem4 , que não comentaremos em virtude de se requerer uma
extensiva pesquisa de dados: 2.2.1.2. Operador implicativo aplicado a um segundo SV (envol-
vendo ou não subordinação) ou a um elemento predicativo
(37) Tem ninguém no chat.
(59) a. Não consegui nem começar o trabalho.
(38) Eles estão dizendo que sobrou nada.
b. Nem começar o trabalho consegui.
Quanto à CN implícita, em que se verifica a ocorrência de (60) a. Não quero nem ouvir falar / que me falem desse
um sintagma-n sem licenciador negativo visível, existem numerosos assunto.
casos nas línguas de CN estrita, nomeadamente em Espanhol, mas o b. Nem ouvir falar / que me falem desse assunto eu quero.
seu número é muito reduzido em português. (61) a.Não vou nem molhar os pés, quanto mais mergulhar.
IT (39) Credi che si presenterà nessuno? b. Nem molhar os pés eu vou, quanto mais mergulhar.
(40) C’è niente piú bello di questo? No PB, a construção é usada mesmo quando o valor implicativo é
(41) Dubito che venga nessuno. inexistente:
ES (42) Dificilmente / raramente verás a nadie en la plaza a esa (62) a.Ele não vai nem perceber que você esteve aqui.
hora de la noche. (63) a.Não consigo nem entender o que este autor está queren
(43) Es la ultima vez que te digo nada.5 do dizer.
(44) En lugar de habérselo dicho a nadie, te lo deberías haber (64) a.Hoje não vou nem jantar.
callado. (65) a.Não estou nem ligando.
PT (45) Demoliram a nunca acabada ponte da Madalena.
Seguem-se exemplos da extensão da construção a estruturas
(46) Tive todo este trabalho para nada. / Fartei-me de trabalhar
com verbo copulativo, aplicando-se o elemento negativo pseudo-con-
para nada.
cordante ao constituinte predicativo:
(47) Comprei fruta e mais nada.
(66) a.Não estou nem interessado nessa história.
(48) A Ana sabe o que fazer melhor do que ninguém.
(67) a.Não estou nem aí.
(49) “Os moradores dizem que foram burlados e que compra
Note-se que só aparentemente se trata de genuínos casos de CN, vis-
ram «coisa nenhuma».” (Público, 13/06/1994, p. 52)
to não haver variação livre entre estruturas de CN e outras de incor-
(50) Aos quesitos o réu respondeu nada.
2.2. CN explícita alargada – I6
2.2.1. Estruturas não-coordenadas com operadores 4 Os dados são extraídos de trabalho em curso de Hely Dutra Cabral da
implicativos Fonseca.
2.2.1.1. Operador implicativo aplicado a SN / SP / SAdv / ... 5 O primeiro autor crê que este tipo de estrutura, tal como o seguinte, não
é conhecido da literatura. Agradece a León Acosta ter-lhe chamado a aten-
Este subtipo compreende pelo menos diferentes SN’s defini- ção para eles.
dos ou genéricos, SP’s argumentais, e variados tipos de sintagmas 6 Esta extensão das construções de concordância negativa incorpora as pro-
adverbiais. A construção negativa em causa veicula uma implicatura postas surgidas em Peres (1997, 1998 e no prelo / 2000).

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 397


poração da negação (que seriam as das versões (62b)-(67b) que se (84) Ele zanga-se por nada. [CAUSAL]
seguem), uma vez que possivelmente estas teriam de carrear um va- (85) Foi tudo feito em nome de coisa nenhuma.
lor implicativo ausente na primeiras: (86) Ele fez tudo a troco de nada / de coisa nenhuma.
(62) b.Nem perceber que você esteve aqui ele vai! A hipótese que neste momento avançamos para explicar para
(63) b.Nem entender o que este autor está querendo dizer eu estes aparentes casos de violação da concordância negativa consiste
consigo! em se considerar que os constituintes resultativo e causal (ou outros
(64) b. Hoje nem jantar vou! com diferentes valores) são predicadores de estruturas proposicionais
(65) b. Nem ligando eu estou! que tomam proposições como argumento. Nesta perspectiva, e no
(66) b. Nem interessado eu estou nessa história! plano sintáctico, estaremos perante “small clauses” adjuntas, nos ter-
(67) b. Nem aí eu estou! mos de Hornstein & Lightfoot (1987). Estas ”small clauses” têm como
Poderá talvez falar-se, para estes casos, de negação redun- núcleo INFLo e, como seu sujeito, um PRO que remete para a propo-
dante, eventualmente com uma função de reforço. sição que é objecto da predicação do adjunto (em (82), tive todo este
2.2.1.3. Operador implicativo aplicado a operador condi trabalho). Em termos sintácticos, poderá dizer-se que o INFL vazio
cional concessivo obriga que o sintagma negativo nada em posição de objecto suba
(ou incondicional) para a posição de especificador da projecção NegP, uma vez que, de
outra forma, o operador negativo, que em português aparece normal-
(68) a. Nem que matem eu conto tudo o que sei. mente cliticizado ao verbo, não teria como se realizar. Alguns dados
b. Eu não conto tudo o que sei, nem que me matem. doutor tipo parecem favorecer a análise que propomos:
(69) Não estou interessado nem um pouco / um bocadinho.
(87) Trabalhei dia e noite, mas para nada.
2.2.2. Estruturas de coordenação disjuntiva (de SN, SV, SP, (88) Trabalhei dia e noite, e isto para nada.
SAdv, … ) possivelmente com valor implicativo
Ambas estas frases ilustram a possibilidade de o adjunto frásico
(70) a. Nem o Pedro nem a Ana foram à festa. ser dado explicitamente como predicador de uma estrutura frásica
b.Não foram à festa (nem) o Pedro nem a Ana introduzida por coordenação. Mais ainda, a realização em (88) do
(71) O Pedro nem descansou nem trabalhou. pró-frase isto reforça a ideia de que os dados de (82)-(86) se podem
(72) a. Não gosto de café nem com (açúcar) nem sem açúcar. analisar mediante a presença de um elemento PRO como sujeito de
b.Nem com (açúcar) nem sem açúcar eu gosto de café. uma “small clause”.
[PE]
2.4.1.3. Construções de coordenação
(73) a. Não se pode estacionar nesta rua nem de dia nem de
PE
Explicação por elipse e posição pré-verbal do sintagma-n:
noite.
b.Nem de dia nem de noite se pode estacionar nesta rua (89) a. Falou o Pedro e mais ninguém.
PE

(74) a. A Ana não foi à Faculdade nem ontem nem hoje. b. [falou o Pedro] e [mais ninguém (falou)]
b.Nem ontem nem hoje a Ana foi à Faculdade. (90) a. Foram à festa poucos ou nenhuns rapazes.
b.[foram à festa poucos (rapazes)] ou [nenhuns rapazes
2.3. CN explícita alargada – II (um operador de grau de Adj e de (foram à festa)]
Adv) (91) a. Como secretária, quero a Ana ou ninguém.
Introduzimos aqui um tipo de CN que envolve um sintagma-n com b. como secretária [quero a Ana] ou [ninguém (quero)]
função de operador de quantificação escalar nos domínios da signifi- (92) a. Quero tudo ou nada. (Je veux rien ou tout - Racine, cf.
cação adjectival e adverbial: Horn 89: 454)
(75) O director não é nada simpático. b [quero tudo] ou [nada (quero)]
(76) A história em causa não era nada edificante. (93) a. Comprei fruta e mais nada.
(77) Esta banda não toca mesmo nada. b. [comprei fruta] e [mais nada (comprei)]
(78) O Pedro não falou nada. [PB: ARGUMENTO, GRAU OU RE (94) a. Tive muitas despesas e nenhum lucro.
FORÇO] b. [tive muitas despesas] e [nenhum lucro (tive)]
(95) a. Comprei muitos livros, mas nenhum disco.
2.4. CN implícita b. [comprei muitos livros] mas [nenhum disco (comprei)]
Na presente secção, propomos pistas para a explicação de (96) a. Eu só usava avião para transporte. Mais nada.
casos de CN implícita. b. (...) [mais nada (usava)]
2.4.1. Resolução sintáctica da CN implícita 2.4.1.4. Construções comparativas
2.4.1.1. Orações pequenas (97) A Maria canta melhor do que ninguém.
A solução de casos do tipo dos exemplificados em (79)-(80) (98) A Maria convidou mais vezes o Paulo do que nenhum ou
pela consideração de orações pequenas (“small clauses”) é proposta tro colega.
em Peres1995/1997, que contrapõe a sua análise à de Zanuttini 1991. Perante dados deste tipo, estão disponíveis pelo menos duas
(79) Demoliram a nunca acabada ponte da Madalena. vias em alternativa. Uma, adoptada por Giannakidou 1998, consiste
(80) Ele gosta de trabalhar com ninguém à sua volta. em considerar que o licenciamento dos sintagmas-n é feito nestes
2.4.1.2. Adjuntos de frase casos por implicatura, assumindo-se que qualquer das frases deste
tipo convoca no seu processamento uma proposição com caracterís-
Os casos aqui focados envolvem adjuntos de frase em que, sem ticas de anti-veridicidade (em (97), a proposição de que “ninguém
legitimador visível, ocorre um sintagma-n. canta melhor do que a Maria”).
(81) Foi tudo para nada. [RESULTATIVA]
A segunda via envolve uma solução estrutural, acerca de cuja
(82) Tive todo este trabalho para nada. / Fartei-me de trabalhar
pertinência em relação às comparativas em geral se tem discutido na
para nada. [idem]
literatura. Dentro desta via, distinguem-se duas orientações. Uma é a
(83) Você lutou tanto para nada. [idem]

398 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


de Lerner e Pinkal 1995, segundo a qual está envolvida nestes casos Language, 63, n.1, março de 1987: 23-52.
uma quantificação universal sobre graus [a Maria canta bem num LAKA, Itziar. 1990. Negation in syntax: on the nature of functional
grau mais elevado do que todos os graus tais que alguém canta bem categories and projections. Ph.D. diss., MIT, Cambridge.
nesses graus], sendo a inserção do sintagma-n legitimada pelas pro- LERNER, J. Y. e M. Pinkal. 1995. “Comparative Ellipsis and Variable
priedades de monotonia decrescente à esquerda do quantificador uni- Binding”, Proceedings of SALT V, DMLL, Cornell..
versal. Perante esta hipótese, a questão óbvia é a de se saber porque PAYNE, John R. 1985. “Negation”. In T. Shopen (org.), Language
seria este o único caso em que tal factor teria força legitimadora de Typology and Syntactic Description, Vol. I (Clause structure).
sintagmas-n. Cambridge University Press, Cambridge.
A segunda orientação é a de von Stechow 1989, que introduz a PERES, João. 1995/1997. “Extending the Notion of Negative
noção de grau máximo, semelhante à que se requer para as constru- Concord”. In D. Forget, P. Hirschbühler, F. Martineau and M.-
ções superlativas [a Maria canta melhor do que o grau máximo tal L. Rivero (org.), Negation and Polarity, Syntax and Semantics,
Selected Papers from the Colloquium NEGATION: SYNTAX AND
que existe alguém que cante bem nesse grau]. Fica, porém, por ex-
SEMANTICS , Ottawa, 11-13 May, 1995. John Benjamins,
plicar a ocorrência da CN implícita.
Amsterdão.
Trata-se, pois, de matéria a requerer futura investigação.
PERES, João Andrade. 1997. “Towards a cross-linguistic and cross-
2.4.1.5. Casos não explicitamente considerados categorial view of negative concord”. Comunicaçõa apresenta-
Finalmente, atente-se em alguns dados que não considerámos da ao 2nd Annual Meeting of the Gesellschaft Für Semantik, Sinn
explicitamente, mas para os quais é possível conceber soluções inde- und Bedeutung 1997, Humboldt Universität and Zentrum für
pendentemente motivadas. Ficam os dados, que as compreensíveis Allgemeine Sprachwissenschaft, Berlin, December 5-7, handout.
restrições de espaço nos impedem de discutir. PERES, João Andrade. 1998. “On Romance Sensitivity to Non-
(99) O meu interesse por esse assunto é (quase) nenhum. veridicality”, comunicação apresentada à NEGATION: SYNTAX,
(100) O que tens de fazer é praticamente nada. SEMANTICS AND PRAGMATICS CONFERENCE , European Studies

(101) Neste momento, as esperanças de encontrar os náufragos Research Institute, Universidade de Salford, UK, 29 de Outubro
são praticamente nenhumas. a 1 de Novembro de 1998, handout.
(102) Os estudantes que ele orientou foram praticamente ne PERES, João Andrade. 2000. “Towards a Comprehensive View
of Negative Concord”. In K. Jaszczolt and K. Turner (org.),
nhuns.
Contrastive Semantics and Pragmatics II, Elsevier Science, Oxford,
no prelo.
Referências bibliográficas
STECHOW, Arnim von. 1989. “Comparing Semantic Theories of
GIANNAKIDOU, Anastasia. 1998. Polarity Sensitivity as Comparison”. Journal of Smeantics 3, 1-79.
(Non)Veridical Dependency. John Benjamins, Amsterdão. ZANUTTINI, Rafaella. 1991. Syntactic Properties of Sentential
HORN, Laurence. 1989. The Natural History of Negation. University Negation, A Comparative Study of Romance Languages, Ph.D.
of Chicago Press, Chicago. dissertation, University of Pennsylvania.
HORNSTEIN, N e D. LIGHTFOOT. (1987) Predication and PRO.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 399


Padrões de interrogativas-Q no Português Europeu
e no Português Brasileiro:
uma análise inter e intra-lingüística
Manuela Ambar (Universidade de Lisboa)
Mary Aizawa Kato (UNICAMP)
Carlos Mioto (Universidade Federal de Santa Catarina -UFSC)
Rita Veloso (Universidade de Lisboa)

ABSTRACT: In the last two decades different aspects of variation found in wh-interrogatives have deserved the attention of many linguists. The aim of this
paper is to describe the cross-linguistic variation in such structures and, more specifically, to compare European and Brazilian Portuguese wh-interrogative
and their internal variation.
PALAVRAS-CHAVES: Interrogativas-Q Ordem Português Europeu Português Brasileiro

1. Introdução Convém realçar que o Português do Brasil não dispõe do cons-


tituinte interrogativo simples que e que, como tal, (4a) não tem uma
Neste estudo concentrar-nos-emos em três aspectos de varia- correspondente gramatical sem inversão.
ção nas interrogativas-Q no Português Europeu (PE) e no Português
Brasileiro (PB): (i) inversão sujeito verbo, (ii) presença vs. ausência 3) Línguas em que a inversão coexiste com ausência de inver-
do elemento que, uma forma de complementador nas duas línguas e são, em determinados contextos, PE, Francês:
(iii) movimento-Q.
O trabalho será desenvolvido em duas perspectivas: a) inter-
lingüística, comparando PE e PB com outras línguas e b) intra-lin-
güística, analisando a variação interna nas duas variedades.

2. Variação inter-linguística

É nosso objectivo nesta seção articular as diferenças encontra-


das entre estruturas-Q do PB e do PE com diferenças e semelhanças
manifestadas em estruturas equivalentes de outras línguas. Com efei- Neste grupo de línguas o fenômeno de inversão é sensível ao
to, os contrastes resultantes da comparação entre PE e PB não são tipo de constituinte interrogativo, isto é, a inversão é possível, nas
comportamentos específicos destas variedades. Reencontramo-los de frases matriz, com qualquer constituinte interrogativo, mas a ausên-
forma sistemática noutras línguas. Pretendemos assim esboçar uma cia de inversão é impossível com o constituinte interrogativo simples
tipologia geral das línguas em relação a diferentes fenômenos das que. O duplo juízo de gramaticalidade em (10) pretende dar conta de
estruturas-Q e defender que estes aspectos de co-variação são reflexo que essas estruturas são possíveis quando têm um valor eco, valor
de fenômenos mais gerais de variação lingüística. As limitações de também presente nas outras estruturas matriz sem inversão (cf. (7) e
espaço neste artigo impedem-nos de propor um sistema explicativo (11c,d).
destes fenômenos, apresentando-se apenas uma descrição dos dife-
rentes padrões de estruturas-Q e de aspectos relacionados em dife- 2.1.2. A estrutura interna dos constituintes-Q
rentes línguas.1 Ao notar os fatos acima descritos, Ambar (1985, 1988) defende
que os constituintes interrogativos têm uma estrutura interna comple-
2.1. Inversão Sujeito Verbo em Estruturas-Q Matriz
xa, da qual decorrerá uma explicação para o fenómeno de inversão.
2.1.1 Três tipos de línguas:
Segundo estes trabalhos, existe uma escala na referencialidade nos cons-
1) línguas em que a inversão é sempre obrigatória, indepen- tituintes interrogativos desencadeada pela existência de traços semân-
dentemente do tipo de constituinte interrogativo, como o Húngaro. ticos que restringem o domínio de referência do elemento-Q. Essa es-
Comparem-se (1) e (2): cala vai do que simples, [- r(estritivo)], aos constituintes [que N], com
um grau intermédio de referencialidade manifestado pelos outros cons-
tituintes, que veiculam mais informação que que (mas menos que que
livro), sendo por isso também [+ r]. Veja-se (12):

2) línguas em que a inversão é impossível, como o Tetum – cf. (3a-c)


– ou o Português do Brasil (no caso não marcado e com excepção das
estruturas inacusativas; mas ver seção 3) – cf. (4) e (5): 1
Para uma análise unificadora dos diferentes fenómenos descritos no texto
veja-se Ambar e Veloso (1999).
2
O Húngaro possui partículas aspectuais, como meg ou el, que nas frases
declarativas precedem o verbo; em (2) pretende-se mostrar que a ausên-
cia de inversão sujeito verbo é impossível, independentemente da ordem
relativa entre o verbo e a partícula.
3
Ce que ocorre em Francês só nas interrogativas encaixadas, não podendo
por isso dizer-se que é equivalente ao Português o que.

400 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


O constituinte [-r] exige inversão nas interrogativas-Q em PE;
os constituintes [+r] dispensam a inversão, mas a estrutura adquire
nesse caso um valor eco4 . Uma explicação para estes fenômenos de-
verá relacionar a ordem relativa dos constituintes na frase com o grau
de referencialidade dos constituintes-Q e com as diferenças de inter-
pretação das diversas estruturas.

2.1.3. Ausência de inversão – interrogativas-Q com valor


eco e exclamativas-Q
2.1.3.1. Português Europeu
Como descrito na seção anterior, a ausência de inversão nas
estruturas-Q interrogativas dá origem a construções com valor eco,
poder-se-á dizer, a construções em que o constituinte-Q perde, de 2.2. Movimento-Q – Interrogativas matriz
alguma forma, a sua força interrogativa, o que só é possível com 2.2.1. Quatro tipos de línguas:
constituintes-Q [+ r]. Curiosamente, existe outro tipo de estruturas- Em relação à posição do constituinte-Q na frase, encontram-se qua-
Q que, em Português Europeu, apresenta a mesma ordem relativa de tro tipos de línguas:
constituintes, as mesmas restrições ao tipo de constituintes-Q que (i) línguas em que os constituintes-Q ocorrem obrigatoriamente in-
situ, i.e., línguas que (aparentemente) não têm movimento-Q visível,
são legitimados e cuja interpretação difere não só das interrogativas
e.g. Chinês – cf. (27-30):
eco, como das verdadeiras interrogativas. Estamos a falar das estru-
turas-Q exclamativas. Nestes casos, evidentemente, o constituinte-Q
não tem força interrogativa alguma. Interessantemente, apenas os cons-
tituintes-Q [+ r] podem surgir nestas estruturas, como se vê nas fra-
ses (13’-17’). Parece então haver uma relação entre a referencialidade
do constituinte-Q e a força das frases em que surge.
(ii) línguas como o Húngaro em que a opção constituintes-Q in-situ
não está disponível (cf. (31-32)), a não ser em contextos altamente
marcados (cf. 33):

2.1.3.2. Húngaro
O Húngaro, que, como vimos, não aceita ausência de inversão,
apresenta outra estratégia para formular interrogativas com valor eco:
as chamadas interrogativas de confirmação (cf. (18)). Nestas surge
uma forma de complementador (que aparece normalmente também
nas interrogativas encaixadas – cf. (20)) à cabeça da frase, estratégia (iii) línguas em que um Q-in-situ é possível se outro elemento-Q
também disponível na construção de exclamativas-Q (cf. (19a-b)). tiver sido movido, e.g. Inglês:
No entanto, ao contrário do que acontece no Português Europeu, tam-
bém nas exclamativas a ausência de inversão é impossível (cf. (19c)) (34) a. Who bought what?
e não há restrições sobre a forma do constituinte-Q: b. * John bought what?
c. What did john buy?

(iv) línguas mistas, i.e., línguas que permitem as duas opções (Fran-
cês, PE, PB, Tetum), com alguma (micro) variação: PB e Tetum
permitem movimento-Q visível, mas, contrariamente ao PE e ao Fran-
cês, as interrogativas qu-in-situ são mais frequentes (cf. Rossi 1993
para o PB e secção 3).

PB
2.1.4. Interrogativas encaixadas – ausência vs. presença de (35) a. Você comprou que livro ? (36) a. Você vai onde ?
assimetrias matriz/encaixadas
Em relação ao fenômeno da inversão sujeito verbo nas Tetum
interrogativas encaixadas existem dois tipos de línguas, dentro do (37) a. O hasoru se ?
grupo estudado: (i) sem assimetria de comportamento matriz vs. en-
caixada (Húngaro, exigindo sempre inversão (cf. (21)-(22)) e PB e
Tetum – exigindo sempre ausência de inversão (cf. (23)-(24)) e (ii) 4
Note-se que a escala de referencialidade dos constituintes-qu se reflecte
com assimetria de comportamentos (PE e Francês, exigindo inversão na inversão, já que para a maioria dos falantes as estruturas eco sem inver-
nas matriz com verdadeiro valor interrogativo, mas não nas encaixa- são são melhores se o constituinte integrar um N foneticamente realizado
das, com excepção para que, o constituinte [- r], que exige inversão (e.g. que livro vs. quem). Note-se ainda que derivar o efeito de adjacência
também na subordinada em PE (cf. (25) e (26)): do estatuto clítico de que não só náo dá conta desta gradação como tam-
bém não explica porque se mantém o mesmo tipo de restrição sobre que
nas interrogatives in situ (cf. 2.2.2).

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 401


Tu encontraste quem No outro tipo de línguas (que engloba o PE (cf.(46)) e o Fran-
PE Francês cês Europeu (cf.(47)) o complementador não pode surgir nas
(38) O João foi onde ? (39) Jean est allé où ? interrogativas-Q. Note-se no entanto que no Português Europeu o
complementador pode ocorrer nas estruturas-Q exclamativas, tal como
2.2.2. Algumas diferenças e restrições no Húngaro e no PB, com as restrições referidas na secção 2.1.3.
Como notado por alguns autores (Ambar et alii 1998, Chang
1997, apud Cheng & Rooryck 2000), as estruturas com constituin-
(46) *? Onde que tu vais ?
tes-Q iniciais diferem interpretativamente das estruturas qu-in-situ:
(47) Que livro que ele comprou!
(40) a. Que comprou o João ? (41) a. O João comprou o quê ? 3. Variação intra-lingüística
b. Nada. b. ?? Nada 3.1. Inversão VS
A ordem VS encontrada em interrogativas-Q é atribuída ao
Este fato parece indicar que os falantes atribuem um valor de movimento do V para a posição de Comp (Rizzi 1991, Ambar 1985,
verdade diferente à predicação presente em ambas as estruturas, i.e., 1987), ou para F (Kato e Raposo 1996). Os estudos diacrônicos bra-
para o enunciado (41a), os falantes assumem que é verdade que o
sileiros mostram a perda desse movimento desde o século XIX (Kato
João comprou alguma coisa, o que não acontece necessariamente em
e Tarallo 1988, Duarte 1992, Lopes Rossi 1996). A ordem VS é,
(40a). Por outro lado a ordem canônica da língua só aparentemente
porém, mantida com inacusativos, já que ela supõe uma estrutura
está reproduzida numa interrogativa in situ (comparem-se as prosódias
que envolve apenas movimento curto do V-para-I, com o sujeito em
de O João ofereceu flores à Ana e O João ofereceu o quê à Ana – no
posição de argumento interno do verbo (Mioto 1994). Supondo-se
segmento fônico flores à Ana não há nenhuma pausa entre flores e à
que o movimento longo do verbo só foi perdido na variante brasilei-
Ana enquanto que entre o quê e à Ana há.
Curiosamente, ainda, ao observarmos estruturas qu-in-situ do ra, prevê-se aqui um contraste entre as duas variedades e é isso, efe-
PE e do Francês, notamos que as mesmas restrições que existiam nas tivamente o que ocorre. Examinamos primeiramente o corpus Natura
estruturas-Q sem inversão com valor eco, nas interrogativas-Q su- Público para o PE e o NILC/São Carlos para o PB.
bordinadas e nas estruturas-Q exclamativas reaparecem agora nas
estruturas qu-in-situ: o constituinte-Q [- r] é excluído destas constru- 3.1.1. VS com inergativos e transitivos: só encontrados no
ções, manifestando mais uma vez um comportamento diferente do corpus do PE.
dos constituintes-Q [+ r]5 (cf. A Maria comprou *quê / o quê ? /
Marie a acheté *que/*ce que/quoi ?).
O facto de os constituintes-Q manifestarem esta sistematicidade
de comportamentos nas interrogativas-Q com valor eco, subordina-
das, exclamativas e in situ, apesar de surgirem em posições tão dife-
rentes na ordem linear, leva-nos a crer que existirá algo comum a
estas quatro estruturas, responsável ao mesmo tempo por uma inter- 3.1.2 VS com inacusativos , aí incluídas as cópulas: são encon-
pretação, poder-se-á dizer, factiva, partilhada por todas. Gostaríamos trados tanto no PE e no PB, conforme previsão
de dizer que se trata de uma projecção AssertiveP, na periferia es-
querda da frase, acima da posição que recebe os operadores qu- das
interrogativas puras (cf.fn1) 6 .

2.3. Complementador
Em relação à legitimação de um complementador nas
interrogativas-Q encontramos dois tipos de línguas: um, que engloba
o Português do Brasil, o Húngaro, o Francês do Quebec, e o Tetum, 3.2.. Clivadas (Q-é que): encontrado no PE e no PB
que para formular interrogativas “factivas” recorre à estratégia de
inserção do complementador. Saliente-se que existe contudo alguma
O trabalho diacrônico de Lopes Rossi (1996) constata que as
(micro)variação em relação à posição em que o complementador é
interrogativas com é que começam a aparecer nas duas variedades
inserido: em posição inicial (Húngaro, cf. (42)); entre o constituinte-
do português quando a clivagem passa a ser um processo amplo de
Q e o sujeito (PB, cf. (43), (cf. Kato 1993, Mioto e Figueiredo 1995)
– e Francês do Québec, cf. (44)); em posição final (Tetum, cf. (45) –
neste caso ainda há outra diferença: a partícula ka7 só ocorre nas
interrogativas polares): 5 Os únicos casos em que o que simples do PE pode ocorrer in situ – na sua
forma tónica quê – é quando está regido de preposição (“Eles falaram de
(42) Hogy mennyi pénzt fizettem ki ezért a házért? (per quê?”), podendo nesse caso discutir-se se será efectivamente uma forma
gunta de confirmação) [- r]. Note-se que em vez das formas o que (PE) ou ce que (Francês) nas in-
que_compl quanto dinheiro_ac paguei part esta_por art situ surgem as formas tónicas o quê e quoi.
casa_por 6 As interrogativas qu-in-situ não podem ser confundidas com as chamadas
interrogativas eco, em que o constituinte-qu também ocorre in-situ (cf.
Inglês). Limites de espaço impedem-nos de descrever aqui as proprieda-
PB Francês (Québec) des das estruturas eco.
(43) Onde que você vai ? (44) Où que tu vas ? 7 Não se pode dizer que a particula ka que surge neste tipo de estruturas do
Tetum é o complementador. Com efeito, o complementador desta língua é
(45) João sosa livru ka ? katak; resta saber se haverá alguma relação entre a referida partícula e a
João comprou livro part sílaba inicial do complementador, que talvez seja um morfema residual da
língua.

402 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


focalização. Até o século ...... a clivagem só era possível com argu- Houve uns poucos casos de sujeito nulo no PB em entrevistas,
mentos. Também é de Lopes Rossi a analise de interrogativas-Q como nas quais o entrevistador parece estar evitando usar uma forma de
derivadas de estruturas de clivagem. Essa é, portanto, uma constru- tratamento formal como o senhor e informal como você.
ção passível de ser encontrada nas duas variedades.

3.6. A variação observada conforme a modalidade

O corpus NILC/São Carlos: constituído de vários gêneros (ar-


tigos de jornais,romances e entrevistas) , o corpus Natura/Público, é
Note-se que com interrogativas clivadas o PE apresenta varia- constituído apenas de artigos de jornal. Resolvemos, entâo, exami-
ção entre que e o que . O PB, por outro lado, só dispõe de que. nar peças em PE , para ver o que o PE privilegia na fala. As peças
escolhidas foram:
3.3. Q-que : encontrado só no PB a)Jacinto Lucas Pires Arranha céus . Lisboa: Cotovia, 1999.
b) Carlos Alberto Machado:Transporte e mudanças Lisboa: Frene-
Kato (1993) propôs que as estruturas clivadas, incluindo-se aí si. 2000.
as interrogativas-Q , podiam ter apagamento da cópula no PB ( (É) O resultado encontrado foi o seguinte:
onde que a Maria mora? ). Mioto e Figueiredo ( 1995) não aceitam
essa análise em vista do PB admitir o que mais o é que ( Onde que é Clivadas 61%
que a Maria mora?). Propõem, ao contrário de Kato (1993) que a (59) a. O que é que tens para me dizer? (Pires p.15) PE
interrogativa com que é derivada apenas com a inserção de um que+wh b. Por que é que ela nos fez isso? (Machado p.31) PE
em Comp. Assim, há duas maneiras de se preencher o Comp em
-sujeito nulo 24%
interrogativas-Q : movimentando-se o Verbo flexionado para ele,
(60) a. O que vais fazer? (Pires p.56) PE
como no PE , ou inserindo-se o que+wh. Logo, uma vez que o PE
b. E você, o que é que faz? (Machado,p.65) PE
conta com o movimento longo do verbo, não se esperava mesmo
-Inacusativas 12%
encontrar, nessa variedade, interrogativas com que+wh.
(61) a. Onde está o rapaz? (Pires p.31)
b. O que é isso? (Machado p.73)

-in-situ 3%
(62) a. E foi lá fazer o quê? (Pires p.55)
3.4. Q-in-situ: é periférico no PE e extremamente pro b. Então, é o quê? (Machado p.88)
dutivo no PB
Assim, se na escrita há divergências consideráveis entre as
O trabalho diacrônico de Lopes Rossi revela outra mudança no duas variedades, na fala, há maior convergência, com o aparecimen-
PB: o aumento gradativo de Q–in-situ, chegando a 30% no século to maior de padrões comuns, com exceção dos in-situ.
XX. A comparação mostra diferença de produtividade.
4. Conclusões
O trabalho envolveu dados naturais de língua escrita , onde
presumimos haver uma forte presença de regras prescritivas entre-
meando o verdadeiro sistema-I dos falantes das duas variedades. Mas
podemos concluir que:
a) inexistência no corpus retrata inexistência no sistema: mo-
vimento longo de V, ou VS, no PB e complementizador quewh no
PE ;
b) marginal no corpus significa: a) licenciado no sistema, po-
3.5. Sujeito nulo e sujeito expresso rém ainda banido pelas normas escritas (Q-in-situ no PE) ou b) resi-
dual no sistema, e ainda mantido pelas normas (sujeito nulo no PB);
Os estudos brasileiros vêm detectando a perda do sujeito nulo c)conforme gênero, as diferenças entre PE e PB podem se
(Duarte 1995) e da inversâo VS (Berlinck 1995) nessa variedade do neutralizar por haver um domínio de intersecção de padrões nas
português, mudança que não parece afetar o PE. Assim sendo, a ex- duas variedades.
pectativa na análise comparativa era de que o PE apresentaria uso d) as similaridades podem ser superficiais, como nos casos de
produtivo de sujeito nulo em interrogativas-Q e o PB apresentaria o VS com inacusativos e com cópula . No PE a estrutura apresenta o
sujeito expresso e a ordem SV. A expectativa se confirma. verbo flexionado em Comp e no PB em I , com sujeito expletivo.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 403


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404 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Sujeitos indeterminados em PE e PB
Maria Eugenia Lamoglia Duarte
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Mary A. Kato
Universidade Estadual de Campinas
Pilar Barbosa
Universidade do Minho

ABSTRACT: This study describes Europen (EP) an Brazilian Portuguese(BP) indefinite subjects. EP prefers the “se”constructions, with and without
agreement, while BP tends to use both the overt personal pronouns (você, a gente) and the “se”construction without agreement. The differences are
attributed to the on-going loss of the null subject , and of clitics.
PALAVRAS-CHAVE: European Portuguese Brazilian Portuguese Indefinite subjects “se”

1. Introdução ções pessoais com ´você” e “a gente”. Estudando as estratégias de


No trabalho comparativo sobre sujeitos, Barbosa, Kato e indeterminação no PB e no PE, mostra que, no que se refere ao PE,
Duarte (2000) mostraram que o PB, ao contrário do PE, apresenta o uso de “se“ se confirma como a estratégia preferida (38%), enquan-
evidências, mesmo na escrita, da perda do sujeito nulo referencial, to o uso de “você” (6%) se apresenta como a estratégia menos usada.
fenômeno estudado numa perspectiva diacrônica por Duarte (1993, No PB, ao contrário, “você” é a forma preferida (44%), seguida pelo
1995). sujeito nulo (17%), terceira pessoa do plural (16%) e “a gente” (13%).
Galves (1987), por sua vez, foi a primeira a notar que o PB As formas “se” (8%) e “nós” (2%) ficam restritas à fala de informan-
apresenta um sujeito nulo peculiar, indeterminado, ao mesmo tempo tes mais velhos com escolaridade alta.
em que tende a apresentar o sujeito referencial expresso.
(1) a. No Brasil, não Ø usa mais saia. 2.2. Nas entrevistas transcritas em jornais e revistas
b. A Mariai disse que elai não usa mais saia. Para a análise dos sujeitos indeterminados foram utilizadas
entrevistas transcritas
Estudos recentes (Kato & Tarallo 1986, Duarte 1995) chamam,
entretanto, a atenção para o fato de que, o PB falado atual usa, além 2.2.1. As sentenças finitas
do sujeito nulo do tipo em (1), formas pronominais nominativas Com base nos resultados resumidos em 2.1, a hipótese era que
(expressas ou nulas) para a representação de sujeitos indefinidos (ou os sujeitos indeterminados no PB tenderiam a ser pronominais ple-
indeterminados), enquanto o PE privilegia as construções com se nos e os do PE nulos, com preferência pelo uso de “se” indeterminador/
para expressar a indeterminação do sujeito. Os autores atribuem o apassivador.
fenômeno à mesma mudança da perda do sujeito nulo. Foram excluídas as indeterminações com verbos na terceira
(2) a. “Então ∅ chega numa rua, não é, a rua é grande.” pessoa do plural, tanto pela sua baixa ocorrência quanto pela
b.“Depois que você termina o comércio, você vai na área especificidade no uso dessa estratégia, que em geral exclui o falante:
residencial.” (3) Mas estou convencida que se cv puserem o meu programa com
c.”Em primeiro lugar nós temos identificado claramente uma outro do tipo xixi-cocó,as pessoas escolhem este último. (PE)
nova consciência crítica da classe média”. Vejam-se os resultados na tabela 1:
d. “E se a gente falar que não tem?”
e. E se eu pego aquela rua ali, então eu chego mais rápido”.
(Kato e Tarallo 1986: 347)
São as seguintes as questões que o presente trabalho pretende
investigar:
a) que recursos as duas variedades do português usam para a
indeterminação do sujeito na escrita, que é sabidamente mais conser- Como se esperava, os resultados mostram que no PE as cons-
vadora que a fala? truções com “se” são indubitavelmente a forma preferida para repre-
b) caso a análise acuse diferenças nas formas de indeterminação nas sentar os sujeitos indefinidos (83%), seguida de longe por “nós”,
duas variedades, que explicação pode se dar a elas? As diferenças, se sempre não expresso. Quanto ao PB, por outro lado, confirma-se a
encontradas, podem ser atribuídas a diferenças na gramática ou às preferência por “você”, seguido de “se” e “a gente” em índices quase
normas (regras arbitrárias) vigentes nos dois países? iguais. Note-se que as formas pronominais são predominantemente
expressas, confirmando a mudança observada em relação aos sujei-
2. As construções pronominais nominativas e o sujeito nulo tos de referência definida.
indeterminado (4) Se você continua com espaço para poder interferir, aí você não
2.1 Na fala vai para casa, não fecha o botequim não. (PB)
Duarte (1995, 2000) liga o aparecimento das construções pro- A ocorrência do sujeito nulo pode ser vista em (5):
nominais nominativas a uma mudança mais geral no PB — a perda (5) Ø Tem que pegar o leitor na primeira linha. Não adianta querer
do sujeito nulo – mudança esta que se iniciou com os sujeitos brigar com ele.
referenciais de primeira e segunda pessoa. A autora mostra, com da- Ø Tem que mirar antes. (PB)
dos da fala, que também no contexto de sujeitos indefinidos/arbitrá-
rios, o PB preenche mais o sujeito, fazendo grande uso de constru-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 405


2.2.2 As sentenças infinitivas é, segundo Naro (1976), diacronicamente posterior à primeira, deno-
As construções com infinitivo de sujeito [+arb] em geral têm minada passiva pronominal, e começa a aparecer no século XVI. Se-
essa posição vazia, esteja o infinitivo precedido ou não de preposição: gundo este autor (apud Nunes 1990), a construção “impessoal “ sur-
(6) O que estava em vista era [ Ø preparar os povos para a autode giu da passiva pronominal, sem a concordância, e começa a suplantar
terminação]. (PE) no PB a passiva com concordância a partir do século XIX. Segundo
(7) Os cariocas vão querer me matar, mas lá em São Paulo (...) tem Nunes (1990), data igualmente do mesmo período o aparecimento no
lugar [pra Ø tocar], lugar [pra ensinar as crianças]... (PB) PB de estruturas sem o se, como em (15)1 :
(15) Vende casas.
Nas duas amostras analisadas (entrevistas em jornais e revis-
tas), porém, cerca de 10% apresentam um elemento na posição de A possibilidade de construções de sujeito nulo sem o se pode
sujeito, como mostra a tabela a seguir: ser atribuída ao fato da perda em curso dos clíticos no PB ( Tarallo
1983, Nunes 1990, Kato 1993 e Cyrino 1994) e ao fato da concor-
dância de terceira pessoa singular ser ainda pronominal, licenciando
no PB os nulos destituídos de traços de referencialidade. (Kato 1999a).
No PE atual, porém, segundo Nunes (op.cit.) e Duarte (2000),
a passiva com concordância é ainda a forma preferida de
Observe-se a semelhança no que se refere à ocorrência de sujei- indeterminação.
Com base nos achados de Nunes (1990), a hipótese é de que
to nulo. Quanto ao aparecimento de ‘se’, ele parece estar se inserindo
as construções com se no PE serão basicamente as com concordância
no sistema a partir de contextos regidos de preposição: das 10 ocor-
e as brasileiras sem concordância ou até mesmo com o se nulo. Vere-
rências no PE, 9 estão em orações regidas de preposição (6 com a
mos como a variação se manifestou em gêneros diferentes, a saber:
preposição ‘para’ e 3 com a preposição ‘de’, nas funções de adverbi-
a) a entrevista, que se aproxima da língua oral, b) as receitas de cozi-
ais, relativas e completivas de nome, adjetivo e verbo) e apenas uma
nha, tradicionalmente um discurso diretivo que usava a construção
em oração não preposicionada: com se e c) cartas de leitores de jornal, dos três o mais formal.
(8) Como é um pouco exagero, designadamente no PCP, [pensar- 3.2. A variação das formas com “se” na escrita contempo
se] que nos sectores intelectuais as conversas são mais simpáti rânea do PE e do PB
cas. (PE)
Nas entrevistas do PE, entre as construções com se+ verbo transitivo
Veja-se nos exemplos a seguir a variação observada no apare- direto, dez exibiam o argumento interno no plural e a concordância
cimento de ‘se’ tanto em PE quanto em PB: com ele é quase categórica (cf. ex. 16), exceto por uma ocorrência
(9) Os médicos receitam Prozac [para Ø atingir a felicidade] e o com se indeterminador (cf. ex. 17). Nas entrevistas do PB, As duas
Viagra [para se ter potência sexual]. (PB) únicas ocorrências com argumento interno no plural mantêm o verbo
(10) Mas [para se usar o preto] (...) as fábricas de pigmentos tive no singular (ex. (18):
ram que produzir o preto em barda. (...) [Para Ø ter a adesão (16) (...) e eu já fiz parte de vários júris em que se dão prêmios por
total da imprensa] há muito trabalho por trás. (PE) simpatia. (PE)
(17) Eu aprendi a fazer o sulfato de cobre com que se sulfatava as
Finalmente, destaquem-se no PB as 2 ocorrências de ‘você’ vinhas (PE)
na posição de sujeito de infinitivo, um fenômeno já observado por (18) Nem nas quadras de escola de samba do passado se fazia rodas
Cavalcante (1999): de partido alto. (PB)
(11) Você esquece como é legal [você ligar uma rádio e ter alterna
tivas]. (PB) Nas receitas de cozinha do PE, num total de 60, 16 usam a
(12) É até um clichê no rock’n’roll [você não precisar ler (partituras construção com se com concordância, (exemplo 19), 36 usam o im-
musicais)] (PB) perativo (exemplo 20) e uma receita usa o infinitivo (exemplo 21).

Em resumo, PB e PE se distinguem na representação dos su- (19) Limpam-se as cebolas e cortam-se às rodelas não muito finas,
jeitos indeterminados em sentenças finitas, com aquele preferindo limpam-se os pimentos das sementes e cortam-se também os
tomates às rodelas..... (PE)
formas pronominais nominativas enquanto este prefere o uso de “se”.
(20) Coza os espargos em água temperada com sal. Quando bem
Nas sentenças infinitivas, ambas as variedades preferem o sujeito
cozidos, escorra-os e corte-lhes os talos. (PE)
nulo, com o “se” aparecendo em cerca de 10% das sentenças. A dife-
(21) Aquecer o óleo num tacho Adicionar a cenoura, alho, ramos
rença está no fato de que o PB já começa a usar “você” em substitui-
de tomilho, cebola, pau de canela, ... .(PE)
ção ao “se”.
Quanto à concordância com o argumento interno plural ou
3. A variação nas construções com “se” composto, o”default” nas receitas portuguesas é usar concordância
3.1. Estudos diacrônicos do PB (ex.19 acima.), mas encontram-se, surpreendentemente casos sem
concordância (ex 22):
Evidências diacrônicas (Nunes 1990) mostram que o portugu-
ês europeu (PE) e o português brasileiro (PB) contam historicamen-
te com dois tipos de construções com se para a indeterminação do
agente, como se vê em (13) e (14): 1 Nunes (1995) mostra que a supressão do se atinge outros domínios como,
(13) Vendem-se casas. por exemplo, -se ergativo:
(14) Vende-se casas. “Um super reformista leva tempo para esquecer de hábitos tão arraigados.
(Nunes p.233)
-se reflexivo
A segunda , denominada impessoal (ou de se-indeterminador) “[Ele] ∅ sentara na cadeira de presidente.” (Nunes, p. 233)

406 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


(22) Depois da cebola corada adiciona-se as folhas de beldroegas 1. a perda do ‘se’ passivo com concordância em PB deve-se à
lavadas, o louro, o pimentão e a cabeça de alhos inteiros que perda do parâmetro do sujeito nulo – só as línguas români
só se retira a pele (PE) cas de SN evidenciam o ‘se’ passivo com concordância;
Ao contrário das receitas em PE, nas revistas brasileiras (Gula, 2. as construções com ‘se’ sem concordância em PB são poten
Globo Rural, Caras) há uma esquiva total de construções com se e cialmente ambíguas entre um ‘se’ equivalente ao on do fran
uma preferência categórica por imperativo. Em 58 receitas em dife- cês (nominativo e argumental Dobrovie-Sorin l998); e
rentes tipos de revistas, 57 usaram o imperativo para indeterminar o um ‘se’ equivalente ao ‘se’ passivo do Francês em
sujeito (ex. 23) e apenas um caso de indicativo com modal (ex.24)2 . que o sujeito é um expletivo (3ª pessoa). Como o PB ainda
(23) Cozinhe e bata bem o feijão (a consistência é importante: ele tem o expletivo nulo (Kato 1999a) e (ainda) um
não pode ficar nem ralo nem grosso demais). Pegue uma pane nulo argumental de terceira pessoa (Kato e
la de pressão e cozinhe a costelinha por 20 minutos PB) Negrão 2000), ambas as construções são, em princípio
(24) Servidas como aperitivo, as ostras devem ser mergulhadas no superficialmente semelhantes;
molho na hora de comer. Acompanha vinho branco e pão de 3. a possibilidade de construções de sujeito nulo arbitário sem
centeio com manteiga. (PB) o “se” pode ser atribuída à perda em curso dos clíticos no
PB ( Tarallo 1983, Nunes 1990, Kato 1993 e Cyrino 1994);
Nota-se, como nas receitas portuguesas, construções de passiva com 4. a tendência para o preenchimento da posição do sujeito com
se, com e sem concordância, esta última principalmente com argu- um sujeito explícito manifesta-se de forma mais acentuada
mento interno composto: nos contextos em que Dobrovie-Sorin (l998) postula o ‘se’
nominativo, o que constitui evidência empírica em favor
(25) Junte-se ainda toucinho, carne-do-sol, carne de porco e, se for
desta teoria.
possível, um osso de canela de boi, com bastante tutano.
(PB)
4.1. Teoria do ‘se’ impessoal de Dobrovie-Sorin l998
Uma análise preliminar do gênero “cartas de leitores”, mostra
Contrariamente a Cinque (l988), Dobrovie-Sorin (l998) de-
que a estratégia ainda soberana de indeterminação são as constru-
fende que existem apenas dois tipos de ‘se’: um único ‘se’ nominativo
ções com se nas duas variedades do português. Além disso, quando
e um único ‘se’ acusativo. Este último corresponde ao ‘se’ reflexo,
há argumento interno plural , há concordância tanto no PE quanto no
médio, passivo e ‘intrínseco’.
PB.
(26) ...onde não é só a nossa vida que está em causa e em que não se
4.1.1. ‘Se’ acusativo
podem tomar decisões unilaterais,... (PE)
(27) Fazem-se necessários alguns esclarecimentos sobre o governo
Dobrovie-Sorin (l988) faz uma proposta de análise unificada
do Rio de Janeiro nas informações publicadas por Época.
do ‘se’ reflexo, médio, passivo e ‘intrínseco’. Em todos estes casos,
(PB)
‘se’ é um clítico acusativo, o qual é uma anáfora e um marcador
morfológico de reflexividade. Os pressupostos teóricos de Doborovie-
Mas o PB se vale de nomes nus no singular como argumento
Sorin são os da teoria da reflexividade de Reinhardt e Reuland (l993),
interno, o que o livra do problema da concordância.
que define as condições A e B da teoria da ligação em função da
(28) a. Admite-se estrangeiro
noção de predicado reflexivo. Operando no interior deste quadro te-
b. Vende-se livro usado (PB)
órico, Dobrovie-Sorin faz as seguintes propostas:
(i) o ‘se’ acusativo é um marcador morfológico de reflexividade;
4. Generalizações empíricas
(ii) uma frase que contenha um ‘se’ acusativo tem de ter a indexação
O estudo dos dados revelou que a variação de construções de
que se segue, em que SN ocupa a posição de sujeito e cv é um objecto:
indeterminação encontrada no corpus não é a mesma nas duas vari-
edades do português. O PE usa as construções com se passivo indis-
(29) SNi se cvI
tintamente através das modalidades e dos gêneros, sugerindo que
essas construções ainda fazem parte da gramática nuclear do falante
Um aspecto importante da teoria de Reinhardt e Reuland é a
português e não são determinadas pela prescrição gramatical. As cons-
reformulação da Chain Condition de forma a englobar cadeias for-
truções com concordância co-existem, além disso, com as constru-
madas por movimento do SN e cadeias anafóricas. Dobrovie-Sorin
ções sem concordância. Já no PB, a variação é uma função da moda-
propõe que a configuração em (29) corresponde a dois tipos de ca-
lidade e do gênero. Assim, as entrevistas , que são mais próximas da
deia. Quando temos duas cadeias triviais, isto é, dois argumentos,
modalidade oral, privilegiam sujeitos pessoais como “você” e “a gen-
cada um com a sua função temática (cf. 30a), a interpretação daí
te” enquanto as cartas formais usam quase categoricamente o se, in-
resultante é a do ‘se’ reflexo. Quando temos um único argumento,
clusive com concordância. As receitas, e provavelmente outros gêne-
temos uma cadeia formada por movimento (30b), a que correspondem
ros diretivos, fogem da construção com se, optando pelo imperativo.
o ‘se’ médio passivo, o ‘se’ ergativo e o ‘se’ intrínseco:
A ausência de construções com se nos gêneros mais próximos da
oralidade e sua esquiva em escritas diretivas, sugerem que o falante (30) a. (SNi) (cvi) → ‘se’ reflexo.
do PB parece ter perdido a construção com se passivo, mantendo, b. (SNi cvi) → ‘se’ ‘médio-passivo’, ‘se’ ergativo, ‘se’ intrínseco.
apenas residualmente, o se impessoal. No estilo formal, contudo, o
falante brasileiro vai buscar a construção passiva, mais conservado- 4.1.2. ‘Se’ nominativo
ra. Tais formas podem ser consideradas fora do domínio da gramáti- É sabido que o francês não emprega a forma ‘se’ em alguns dos
ca nuclear, com estatuto de morfologia estilística, marcadora de for- contextos em que esta é permitida em italiano ou português. Nesses
malidade (Cf Kato 1999b)
2 Exceção são os livros de cozinha, alguns dos quais aparecem com datas
4. Uma proposta de análise recentes, mas se observa, pela ortografia, que são livros antigos re-publica-
Nesta secção iremos defender as seguintes idéias: dos sem editoração:

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 407


contextos, o francês usa a forma clítica on: (36) [IP Ilk [ s’est [VP traduit [trois romans]i ]]
(31) Ontem chegou-se tarde. Dobrovie- Sorin propõe que, em ambos os casos, há elevação
(32) Hier, on est arrivé en retard. em FL do SN em posição pós-verbal (cf. a regra de ‘substituição do
expletivo’ de Chomsky l993):
A forma ‘se’ em (31) é conhecida na literatura pelo nome de (37) [ SNI [ tI]]
‘se’ nominativo. De acordo com as análises anteriores a Dobrovie-
Sorin, assumia-se que a inexistência do ‘se’ nominativo em francês 5. Conseqüências para o PB
estaria relacionada com o Parâmetro do Sujeito Nulo (Cinque l988). Regressando agora aos dados do PB, estamos em condições de
No entanto, Dobrovie-Sorin mostra que, em romeno, uma língua de concluir o seguinte. A perda do ‘se’ com concordância relaciona-se
sujeito nulo, a forma ‘se’ é impossível em exemplos comparáveis a com a perda das propriedades associadas ao Parâmetro do Sujeito
(31). Os contextos em que o ‘se’ não é atestado em romeno são os Nulo do tipo do italiano: o PB perdeu a ‘inversão livre’ (Duarte l995,
seguintes:(a) construções adjectivais com cópula; (b) passiva ver- Kato l999). Por outro lado, apesar de o PB não permitir a “inversão
bal; (c) verbos transitivos com objecto expresso na forma acusativa; livre”, ainda retém o nulo de 3ª pessoa (expletivo e quase-argumental)
(d) verbos inacusativos. e um nulo ‘referencial’ anafórico (Kato l999); sendo assim, uma fra-
A não ocorrência da forma ‘se’ nestes contextos específicos se com o ‘se’ sem concordância como (38)
em romeno leva Dobrovie-Sorin a propor que este emprego do ‘se’ (38) Se vende casas.
está sujeito a variação paramétrica. Nos contextos mencionados, ‘se’
não é uma anáfora, mas antes um clítico nominativo, que está associ- pode ter duas representações sintáticas. Uma delas é a do ‘se’ passivo
ado a uma cv na posição de sujeito. A sua existência numa língua é (acusativo, anafórico), em que o nulo identificado pela concordância
um fenômeno puramente lexical, podendo o clítico nominativo assu- de terceira pessoa é um expletivo, que virá a ser substituído em FL
mir diversas formas (on em francês ou mann em alemão). Como qual- pelo argumento interno ‘casas’
quer outro sujeito clítico, o ‘se’ nominativo precisa de ser identifica- (39) [ cv [ se vende-øk] [SV [casas]i ]
do pelos traços de concordância verbal. Dobrovie-Sorin apresenta cv =expletivo; ‘se’ = anáfora
evidência independente em favor desta idéia: Em contextos do tipo
Aux-to-Comp em italiano, as construções de (a) a (d) mencionadas A outra representação é a do ‘se’ nominativo. Visto que o PB
no parágrafo anterior não são permitidas, embora todos os outros partilha com o PE a possibilidade (lexical) de ter um clítico ‘se’
tipos de ‘se’ (acusativo) sejam possíveis, o que confirma a hipótese nominativo, e ainda retém um nulo argumental de terceira pessoa,
de que os contextos indicados formam duas classes naturais. nada impede esta pessoa gramatical de identificar o clítico nominativo
‘se’.
4.1.3. Concordância vs. não concordância com o objecto (40) [ IP [sei vendei [SV cvi [ casas ]]]
Em línguas de sujeito nulo que têm ambos os tipos de ‘se’, cv=argumento; ‘se’ não é uma anáfora
nominativo e acusativo, existem dois padrões com verbos transiti-
vos: o ‘se’ com concordância e o ‘se’ sem concordância. Dobrovie- 6. Predições
Sorin apresenta argumentos sólidos em favor da idéia de que o pri- Vimos acima que o PB coloquial tende a evitar o ‘se’, supri-
meiro é o se ‘médio-passivo’ (portanto, o ‘se’ acusativo) e o segundo mindo-o em muitos casos. Esta perda foi atribuída à perda em curso
é o ‘se’ nominativo. Um dos seus argumentos baseia-se na observa- dos clíticos em PB. Por outro lado, há uma forte tendência para usar
ção de que, em italiano, em contextos de infinitivo (Aux-to-Comp), formas pronominais em substituição do ‘se’ indeterminado. Esta ten-
apenas o ‘se’ com concordância é atestado. Visto que apenas o ‘se’ dência tem sido atribuída à perda da Propriedade do Sujeito Nulo
acusativo é permitido em contextos do tipo Aux-to-Comp, conclui-se (Duarte l995, Kato l999). Neste quadro, a teoria de Dobrovie-Sorin
que o ‘se’ com concordância é o ‘se’ acusativo. prediz que os dois tipos de ‘se’, o nominativo e o acusativo, possam
estar sendo afetados de forma diferente neste período de transição da
4.1.4. Se’ passivo: língua. Em particular, prevê-se que a perda do ‘se’ passivo não obri-
Concentremo-nos agora no ‘se’ passivo (acusativo) em fran- gue necessariamente ao preenchimento da posição do sujeito, visto
cês e nas restantes línguas românicas de sujeito nulo. Vimos na seção que essa posição é uma posição não temática e o PB tem um expletivo
anterior que o ‘se’ passivo do italiano corresponde ao ‘se’ com con- nulo. Com efeito, o ‘se’ passivo pode ser omitido:
cordância. (41) Conserta sapato.
(33) Traduziram-se três romances
No caso do ‘se’ nominativo, estamos perante um clítico sujei-
Este tipo de ‘se’ é atestado em todas as línguas de sujeito nulo, to, argumental; logo, prediz-se que este morfema não possa ser omi-
incluindo o romeno. Numa língua sem sujeito nulo como o francês, o tido ou, numa língua em mudança como o PB, tenda a ser substituído
‘se’ passivo ocorre em construções com um expletivo em posição de por outra forma pronominal nominativa, como a gente, você, etc.
sujeito. A flexão verbal concorda com este: Com efeito, é isso que acontece precisamente nos contextos previs-
(34) Il s’est traduit trois romans. tos pela teoria de Dobrovie-Sorin: de acordo com as intuições dos
falantes, não é possível omitir a forma ‘se’ nas construções que en-
Estas diferencas devem-se ao Parâmetro do Sujeito Nulo. O volvem o ‘se’ nominativo, argumental. i. e., com a cópula e
argumento interno ‘três romances’ no exemplo (3) é um sujeito pós- predicadores adjectivais, com a passiva verbal e com verbos
verbal, que partilha os traços phi com a concordância verbal. inacusativos.
(35) [IPtraduzira-mi se[VP [ três romances]I]] (42) *Não é mais feliz aqui.
(43) *É freqüentemente traído por falsos amigos.
No caso de uma língua sem sujeito nulo como o francês, tal (44) *Chegou tarde.
configuração não é possível, pois o EPP precisa de ser verificado na
sintaxe. Daí a inserção do expletivo, que é o elemento que controla a
concordância verbal:

408 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Linguistic Perspectives on Romance Languages: Selected papers
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Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 409


Nomes simples: questões sintáticas e semânticas
Pilar Barbosa (U. Minho), Ana Müller (USP) e Fátima Oliveira (FLUP)

ABSTRACT: Bare Nouns are known to be subject to both syntactic and semantic restrictions in Romance languages. We discuss these restrictions both in
European and Brazilian Portuguese against the background of Generative Grammar and Formal Semantics.
PALAVRAS-CHAVE: nomes simples; português europeu; português brasileiro; ‘bare nouns’

1. Objetivos tença (6), por exemplo, a interpretação genérica de doce feito em


O objetivo deste artigo é discutir algumas restrições relaciona- casa resultaria do fato de que sua variável é presa por um quantificador
das à posição e à interpretação dos nomes simples (NS) no Portugu- genérico subjacente (6').
ês Europeu (PE) e no Português Brasileiro (PB). As línguas Româ- (5) Operador [restrição] [matriz]
nicas e Germânicas em geral aceitam a ocorrência de nomes simples (6) Doce feito em casa é sempre mais gostoso.
plurais. No PB, diferentemente das outras línguas Românicas e tam- (6') Geralmente x [se x é doce feito em casa], [x é mais gostoso].
bém do Inglês, o uso de NS singulares é bastante comum. A possibilidade de uma interpretação genérica é dada seja pelo
aspecto verbal, seja pela presença de um advérbio sentencial. Uma
2. Pressupostos Teóricos vez dada essa possibilidade, existe uma correlação entre a posição
Nas línguas Românicas e nas línguas Germânicas, os Nomes sintática de um constituinte indefinido e o fato de este contituinte
Simples estão submetidos a restrições tanto na sua interpretação quan-
poder ter uma interpretação genérica. Esta correlação é proposta por
to na sua distribuição. Os trabalhos sobre o assunto concordam que,
Diesing 1988, 1992 através de sua “Mapping Hypothesis” expressa
basicamente, a interpretação dos NS nas línguas Germânicas e Ro-
em (7).
mânicas modernas varia entre uma leitura existencial e uma leitura
(7) “Mapping Hypothesis” (MH):
genérica.
Material do VP é mapeado para a Matriz.
(1) Linguists are intelligent. (leitura generica do sujeito) Material do IP é mapeado para a Restrição.
(2) Physicians have made lots of calls in this hospital yesterday. Para que a variável de um indefinido possa ser generalizada
(leitura existencial do sujeito) ela tem de estar presente tanto na restrição quanto na matriz como em
(3) Linguisti capaci di scrivere il Mémoire o LST sono (6'). A forma lógica em (6') então, está de acordo com o previsto pela
intelligenti. (leitura generica do sujeito) ‘Mapping Hypothesis’. O sujeito doce feito em casa é mapeado para
(4) Medici del reparto di pronto intervento hanno telefonato a restrição e sua variável pode ser generalizada, pois está presente
spesso, ieri, in questo ospedale.(leitura existencial do su tanto na restrição quanto na matriz.
jeito) Por outro lado, sentenças nas quais o indefinido possui uma
interpretação existencial resultam do fato de que a variável livre do
Existem na literatura duas maneiras básicas de se analisar a
indefinido é presa por um quantificador existencial default que liga
semântica dos NS. A primeira é analisá-los enquando denotando di-
todas as variáveis que não foram presas por outros quantificadores
retamente espécies (cf. Carlson 1977a, b). Nesta análise uma senten-
na sentença. Este quantificador é adicionado automaticamente à ma-
ça na qual o NS tem uma leitura genérica como a sentença (1) teria a
triz (sentenças em que não há quantificação do tipo genérica, possu-
forma lógica em (1'). Esta forma lógica atribui a propriedade de ser
em apenas uma matriz). A fórmula em (8) é uma versão simplificada
inteligente diretamente à espécie LINGUISTS. Já uma sentença na
deste tipo de forma lógica que, no caso, não possui restrição. A fór-
qual o NS tem uma leitura existencial como (2), teria a forma lógica
mula em (9') é uma tradução lógica simplificada de (9).
em (2'). Neste caso, existe uma relação de Realização entre a espécie
(8) ∃x [indefinido x ∧ predicado x]
e as entidades que a compõe. (2') diz, então, que existe pelo menos
(9) A empresa apresentou documentos falsos na habilitação para a
uma entidade que realiza a espécie PHYSICIANS e que esta entida-
de telefonou muito ontem neste hospital. A quantificação é introduzida concorrência.
pelo predicado-de-estágio. (9') Existe pelo menos dois x (x são documentos falsos e a empresa
(1') intelligent (LINGUISTS) apresentou x
(2') ∃x [R (PHYSICIANS, x) & have made lots of calls … Em seu trabalho, Diesing 1992 deseja explicar as diferenças
yesterday x] de possibilidades de interpretação entre sentenças com predicados-
A segunda maneira de se analisar sentenças com NS tem sua de-estágio (stage-level) e de predicados (individual-level). Uma sen-
origem na análise dos indefinidos proposta por Heim 1982 e é de- tença como (10), que possui um predicado stage-level possui poten-
senvolvida em Diesing 1992, Kratzer 1995 & Krifka et al. 1995, cialmente as formas lógicas em (11), cujas paráfrases aproximadas
entre outros. Heim 1982 propõe que sintagmas indefinidos como um estão em (12). As diferentes interpretações de (10) seriam permitidas
cachorro não são sintagmas existencialmente quantificados em si pela MH porque Diesing assume que sujeitos de predicados stage-
mesmos, mas sim, são fórmulas com uma variável livre (um cachor- level são gerados dentro do Sintagma Verbal (VP) e depois se mo-
ro = cachorro x). No caso dos indefinidos com interpretação genéri- vem para Spec IP, deixando um traço em sua posição de origem.
ca, temos que estes sintagmas não não são verdadeiras expressões de Vamos assumir, com Kratzer 1995, que predicados-de-estágio
referencia à espécie, mas sim indefinidos ‘normais’ que tem sua va- possuem um argumento evento, ao passo que predicados-de-indiví-
riável presa por um quantificador genérico. duo não possuem este argumento. Assim sendo, quando mapeadas
Sentenças nas quais o NS tem uma interpretação genérica são para a FL, sentenças com predicados stage-level podem ter seu sujei-
então analisadas como estruturas tripartites compostas de um opera- to mapeado tanto para a restrição quanto para a matriz, pois apesar de
dor que toma duas sentenças como argumento: a restrição e a ma- seu sujeito estar em IP na estrutura superficial, seu traço também
triz ou escopo nuclear (5) (Heim 1982, Krifka et al. 1995). Na sen- pode ser interpretado.

410 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


(10) Fireman are available. (27) * Elefantes são inteligentes.
(11) a. ∃x,e [firemen x ∧ available x,e] (28) *Elefantes estão no parque.
b. Gx,e [firemen x ∧ be x,e] [available x,e] Os nomes simples no plural, mas com modificação, só podem ter
c. Ge [aqui e] ∃x [firemen x ∧ available x,e] leitura existencial com predicados episódicos e são ambíguos (Gen/
(12) a. Tem bombeiros disponíveis (agora neste bairro). Ex) com advérbios de quantificação genérica ou com aspecto habitu-
b. (Geralmente) bombeiro é disponível (em qualquer situação al, embora a leitura preferencial seja a genérica, como em (29)-(31).
em que esteja). No entanto, com predicados de indivíduo apresentam leitura genéri-
c. (Por aqui) tem bombeiro disponível. ca, como em (32):
Enquanto as três interpretações expressas em (11) são possí- (29) Crianças de dez anos ganharam um concurso de pintura. (EX)
veis no Inglês, o PB não permite toda esta gama de interpretações. (30) Crianças de dez anos usam internet. (GEN/EX)
Esta questão será discutida no decorrer do trabalho. (31) Crianças de dez anos telefonam frequentemente aos pais..(GEN/EX)
Já uma sentença com um predicado individual-level como (13) (32) Cães de guarda de grandes dimensões são mais agressivos/
possui apenas a interpretação em (14), cuja paráfrase está em (14'). A eficientes.
ausência de interpretações equivalentes a (11a) e (11c) para predicados
individual-level pode ser explicada por duas hipóteses: (i) predicados 3. 1. Sujeitos pós-verbais
individual-level são gerados diretamente for a do VP (Diesing 1988, Os nomes simples, como sujeitos pós-verbais, em contextos
1992) e (ii) predicados individual-level não possuem argumento even- caracterizadores, têm de ser modificados, tal como em Italiano, e isso
to (Kratzer 1995). A leitura existencial para médico fica então des- acontece quer o nome seja singular, quer plural, incluindo os contex-
cartada pela impossibilidade de o sujeito ser mapeado para a matriz. tos definitórios:
E a leitura que generaliza sobre eventos é impossível porque não há (33) * Não morde cão.
argumento evento. (34) *São estrofes de quatro versos quadras.
(13) Médico é inteligente. (35) *São mamíferos de grandes dimensões baleias.
(14) Gen x [médico x] [inteligente x] (36) *Estão extintos elefantes.
(14') Se é médico, então é inteligente. (37) * São inteligentes elefantes.
Predicados-de-espécie são predicados que exigem que seus (38) *Estão no parque elefantes.(GeN)
argumentos denotem diretamente uma espécie. Com este tipo de Longobardi (1999) considera que os nomes simples são inde-
predicado, nomes simples são possíveis nas línguas Germânicas, mas finidos, na medida em que, entre outras razões, podem ocorrer em
não são possíveis nas Românicas como ilustrado em (15)-(18). todos os contextos em que os indefinidos ocorrem. No entanto, veja-
(15) Dinosaurs are extinct. se o contraste entre (39) e (40)-(41), que mostra a relevância da dis-
(16) *Elefanti di colore bianco sono extinti. tinção singular-plural, e também (40) e (43) ou (41) e (44), que mos-
(17) ??Dinossauros estão extintos. tram uma assimetria entre posição pós- e pré-verbal:
(18) *Dinossauro está extinto. (39) Não mordem cães que ladrem.
(40) *Não morde cão que ladre.
3. Nomes Simples em Português Europeu (41) ??/*Não morde um cão que ladre.
Embora as línguas Românicas apresentem alguns contrastes (42) Cães que ladrem não mordem.
em relação às línguas Germânicas, convém ter presente que aquelas (43) Cão que ladre não morde.
também apresentam algumas distinções entre si. Como se verá, o PE (44) Um cão que ladre não morde.
distingue-se nalguns aspectos do Italiano e do Castelhano, nomeada-
mente no que diz respeito aos nomes simples em posição de objecto 3.2. Nomes Simples em posição de objeto
Em PE, contrariamente ao que acontece em Italiano e em
(cf. Longobardi 1994, 1999, 2000 e Laca 1999).
Castelhano, Nomes simples em posição de objecto de predicados
É sobre a distribuição dos nomes simples, com e sem modifi-
disposicionais (ou afectivos) não só podem ocorrer sem modificação,
cação, e das suas possíveis leituras em PE, que nos ocuparemos em
como apresentam uma leitura de espécie.
seguida.
Em Italiano a leitura genérica é impossível, se o nome simples
Uma das primeiras observações que deve ser notada é a de que
não for modificado, (cf.(45)-(46)), enquanto em PE é possível a lei-
em PE é relevante, relativamente aos nomes contáveis, fazer a distin-
tura genérica com nome simples, modificado ou não, tal como os
ção singular/plural. Com efeito, em posição de sujeito, nomes sim-
exemplos (47)-(48) mostram:
ples no singular sem modificação não são possíveis, quer em
(45) *Adoro arance. (GeN)
predicações episódicas, quer em predicações caracterizadoras (19) e (46) Adoro arance di grandi dimensioni. (Longobardi 1999)
com modificação só são possíveis em contextos indutores de (47) Adoro laranjas /Adoro laranjas de grandes dimensões.
genericidade (20)-(23): (48) Adoro gatos /Adoro gatos siameses.
(19) *Criança saiu / *criança faz asneiras. (sem pausa) Por outro lado, frases semelhantes com artigo em PE não apresentam
(20) Criança pequena faz asneiras. (Duarte et al. 1998) a leitura de os gatos como espécie, pois parece ser preferencialmente
(21) * Criança pequena fez asneiras. uma leitura de quantificação universal sobre um determinado univer-
(22) Criança que esteja quieta está doente. so do discurso:
(23) (?) Criança que está quieta está doente.
(49) Adoro os gatos / Adoro os gatos siameses.
Quanto aos nomes no plural sem modificação, podem ocorrer
Acresce que o contraste entre os seguintes exemplos parece muito
em contextos definitórios (com leitura genérica), mas não são aceitá-
interessante, na medida em que confirma o que atrás foi dito:
veis quer com predicados de espécie (26), quer de indivíduo (27), ou
de estado (28), tal como os exemplos seguintes mostram: (50) Adoro os gatos, * à excepção dos siameses.
(51) Adoro gatos, à excepção de siameses.
(24) Quadras são estrofes de quatro versos.
No entanto o exemplo (52) revela claramente uma assimetria
(25) Baleias são mamíferos de grandes dimensões.
entre a posição de objecto e a de sujeito no que diz respeito à modi-
(26) ?? Elefantes estão extintos.
ficação do nome ou do DP:

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 411


(52) Adoro os gatos siameses, à excepção dos de olhos azuis. 4. Nomes Simples no Português Brasileiro
Um outro contexto em que a existência de um nome simples ou não Krifka et al. 1995, entre outros, analisam os ‘bare plurals’ do
parece elucidativa é aquele em que a presença do artigo permite uma inglês como ambíguos entre expressões de referência à espécie e in-
leitura de small clause, inexistente com o Nome simples: definidos contendo uma variável livre. Longobardi 1999 defende que
os nomes simples nas línguas Românicas diferem dos ‘bare’s do In-
(53) Detesto sopas.
glês quanto a seu significado. Para ele, os NS argumentais em Ro-
(54) Detesto sopas frias /detesto as sopas frias. (cf. Oliveira 1998)
mance são sempre indefinidos, ou seja são predicados que contêm
uma variável livre (cf. Heim 1982).
Síntese:
Müller 2000 analisa os NSs no PB como indefinidos à la Heim
Da observação dos dados do PE, pode concluir-se que, em
1982, i.e, fórmulas com uma variável livre. Indefinidos genéricos
posição de sujeito, pré ou pós-verbal nomes simples sem modifica-
não são verdadeiras expressões de referencia à espécie. Entre outras
ção não são possíveis (a não ser em contextos definitórios), sendo-o,
coisas, eles não ocorrem com predicados episódicos (58) e eles tam-
no entanto, se forem modificados (cf. (20) e (22) ou (39) e (42)). Em
bém não podem ser usados com predicados de espécie (2).
posição de objecto, nomeadamente com predicados disposicionais,
os nomes simples, com ou sem modificação, apresentam uma leitura (58) *Automóvel chegou ao Brasil no século XX.
de espécie, enquanto com artigo, sem modificação, não apresentam (59) *Mico-leão-dourado está extinto.
tal leitura, que só é possível, se o nome estiver modificado (cf. (48),
(49) e (52)). Trata-se, portanto, de uma interessante assimetria entre 4.1 Nomes Simples em posição de sujeito
as duas posições e que deve ser explicada. A ‘Mapping Hypothesis” nos diz que material fora do VP é
mapeado para a restrição de uma estrutura tripartite em Forma Lógi-
3. 3. Duas hipóteses ca (FL). A primeira predição então é que sujeitos indefinidos gerados
Dado o PE e o Italiano serem muito semelhantes relativamen- fora do VP, em sentenças com quantificação genérica, farão sempre
te à questão dos nomes simples e os contextos em que ocorrem no- parte da restrição em Forma Lógica.
mes simples (pelo menos em posição de sujeito) serem também aque- Se assumirmos com Diesing 1992 que predicados-de-indiví-
les em que ocorrem indefinidos, seria de defender que o caso parti- duo são gerados fora do VP, podemos explicar as interpretações pos-
cular destes últimos exemplos se poderia resolver através de síveis para sujeitos simples destes predicados no PB. A sentença (60a)
scrambling na Forma Lógica, como Kratzer (1995) sugere para os tem apenas a interpretação (60b,c). Não temos aqui nenhuma
“ill-behaved Objects” - Nomes indefinidos com leitura genérica em peculidaridade do PB em relação a outras línguas, uma vez que
subordinadas adverbiais com um pronome construído como variável predicados I-level, tem seu sujeito gerado em Spec IP. Estes, portan-
ligada na subordinante: to, são mapeados para a restrição do quantificador genérico.1
(55) When Sue likes a movie, she recommends it to everyone (id: 151) Predicado Individual-level
Neste caso, como o objecto está em VP, esta seria a forma de o (60) a. Lingüísta é inteligente/Lingüístas são inteligentes.
fazer subir para o restritor, (deixando um vestígio na matriz) onde se b. Gen [lingüísta x] [inteligente x]
poderia ligar por um quantificador genérico não explícito. c. ‘Se é linguísta, é inteligente.’
Esta proposta seria mais elegante, na medida em que permi- Fica descartada então a possibilidade de uma interpretação existenci-
tiria manter que todos os nomes simples são indefinidos e por al para o sujeito indefinido do predicado I-level. Isto é comprovado,
isso predicados, pelo que para se constituírem como argumentos pois (61a) não tem a interpretação expressa por (61b).
necessitam de artigo definido. No entanto, os Nomes Simples em (61) a. Lingüísta é inteligente/Lingüístas são inteligentes..
PE têm um comportamento sensível à distinção de número, não b. #Tem alguns lingüístas inteligentes.
parecendo possível manter que os Nomes Simples plurais sejam
igualmente indefinidos (cf. o contraste entre (19) e (24)-(25) e o Por outro lado, uma generalização sobre eventos, também não é pos-
paradigma (39)-(44)). sível, pois esses predicados, segundo Kratzer 1995, não possuem um
Uma outra hipótese é a de considerar que nestes casos há uma argumento evento. A sentença (62a) não tem a interpretação de uma
excepção à generalização sugerida na primeira proposta: alguns no- generalização sobre eventos (62b).
mes simples (contáveis no plural) podem ser nomes de espécie (mes- (62) a. Lingüísta é inteligente/ Lingüístas são inteligentes..
mo não podendo ocorrer em posição de objecto com predicados de b. #Por aqui tem alguns linguístas inteligentes.
espécie do tipo inventar). Esta hipótese está em concordância com a Para sentenças com predicados stage-level, entretanto, ambas
de Raposo (1998:14) segundo o qual o Português, diferentemente de as leituras deveriam ser possíveis. Isto porque, para Diesing 1992,
outras línguas românicas, tem “a null determiner semantically close sentenças com predicados-de-estágio tem seus sujeitos gerados in-
to the overt definite one, but lacking a phonological matrix”. ternamente ao VP e depois movidos para SpecIP. A existência de um
No entanto, nem em todos os casos com Nomes simples se vestígio em Spec IP permitiria a reconstrução do sujeito para esta
pode argumentar a favor da presença de um núcleo funcional com posição em Forma Lógica. O PB deveria então, além da leitura gené-
traço definido. Veja-se a diferença entre os seguintes exemplos: rica, permitir uma leitura existencial para o sujeito de sentenças com
(56) Eu normalmente compro os livros do Cardoso Pires predicados stage-level.
(57) Eu normalmente compro livros do Cardoso Pires. Primeiro vamos examinar o comportamento dos Nomes Sim-
ples singulares no PB. O Nome Simples singular com interpretação
Isto tem como consequência que um nome simples (em espe- existencial em sentenças episódicas (46) é agramatical. Dentro de
cial plural) em posição de objecto directo, pode, em PE, ocupar duas nossos pressupostos teóricos, temos aí um problema, pois, pelo me-
posições: na matriz ou no restritor. No entanto, não se trata de uma nos em sua interpretação existencial, o comportamento de predicados
ambiguidade, mas antes de uma possibilidade restringida a contex-
tos estativos (disposicionais), o que se pode compreender pelo facto
de se tratar de contextos não muito adequados à introdução de novos 1 Note-se que enhuma das formulas apresentadas neste trabalho leva em
referentes discursivos, como é usual para os indefinidos, e poderem conta uma possível distinção semântica entre NS singulares e plurais (ver
assim ficar livres para outras interpretações. Müller 2000 para uma proposta sobre esta diferença).

412 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


episódicos com NS singulares não confirma no PB a predição de (iii) Construções típicas de DEC:
Diesing 1992 de que estes predicados deveriam permitir também uma (80) Médico sempre parece pro que pro detesta doente.
leitura existencial para seu sujeito ((63) e(64)).
Predicado Episódico ♦ Hipótese 2: O Nome Simples singular no PB é uma expressão-de-
(63) *Médico está trabalhando muito (agora neste hospital). referência-a-espécie.
(64) a. ∃x,e [médico x ∧ trabalhando muito x,e] (i) Não é possível com predicados episódicos.
b. Tem alguns médicos trabalhando muito (agora neste hospi (ii) Só é possível com predicados de indivíduos ou caracterizadores.
tal). Problema: Não é gramatical com predicados de espécie.
Note que uma interpretação genérica para o NS singular é possível
(6). Neste caso não temos mais um predicado episódico, mas sim 4.2 Nomes Simples em posição de objeto
uma predicação que generaliza sobre médicos e eventos usuais do No caso dos objetos, a “Mapping Hypothesis” nos leva a prever que
trabalho de médico - uma interpretação caracterizadora estes teriam sempre uma interpretação existencial, pois material do
(‘characterizing’) (7). VP é sempre mapeado para a matriz. Esta predição é realizada no
caso dos predicados ‘bem comportados’ (cf. Kratzer 1995). Estes
Predicado ‘characterizing’ incluem predicados episódicos (81 e 82) e predicados caracterizadores
(65) Ultimamente médico está trabalhando muito. formados a partir de predicados-de-estágio (83 e 84).
(66) a. Ultimamente x,e [médico x ∧ estar x,e] [trabalhando muito
Predicados episódicos
x,e]
(81) a.Leo comeu batata ontem às 5 horas da tarde. Existencial
b. Ultimamente médico anda trabalhando muito (em todas as
b.Leo comeu batatas ontem às 5 horas da tarde. Existencial
situação usuais de ‘ser médico’).
(82) A empresa apresentou documentos falsos na habilitação para
Resta-nos agora examinar a leitura na qual existe uma generalização
a concorrência … (Época, 116, 2000) Ex
sobre eventos, mas o NNsg sujeito possui uma interpretação existen-
cial (8). Neste caso, a interpretação existencial do sujeito indefinido Predicados Caracterizadores
também não é possível, pois (8) não significa (9). (83) a.Leo geralmente come batata no almoço. Existencial
b.Leo geralmente come batatas no almoço. Existencial
(67) Por aqui, médico está trabalhando muito.
(84) Concordo: Vera Fisher está linda. Mas um bom cirurgião plás-
(68) a.Ge [aqui e] $x [médico x Ù trabalhando muito x,e.
tico faz milagres. Existencial
b. Por aqui, tem alguns médicos trabalhando muito/Se é por
Por outro lado, existem predicados ‘mal-comportados’ (cf.
aqui, então tem alguns médicos trabalhando muito.
Kratzer 1995). Estes são predicados geralmente formados a partir de
Por outro lado, os Nomes Simples plurais possuem, pelo menos na
verbos que expressam relações ou propriedades permanentes.
língua escrita, todas as leituras previstas pela “Mapping Hypothesis”
Predicados que Expressam Propriedades ou Relações Permanentes
para os predicados-de-estágio. Como explicar a ausência de leitura
existencial para os Nomes Simples sujeitos em predicações (86) a.Leo odeia gato. Genérica
episódicas? b.Leo odeia gatos. Genérica
(69) Médicos estão trabalhando muito (agora neste hospital). (87)O Brasil agora tem um disque-denúncia para delatar quem dis-
Existencial crimina homossexuais. (Veja, 01.2001) Genr
(70) Ultimamente médicos estão trabalhando muito. O comportamento aqui é semelhante ao do PE, do Inglês e do Ale-
Genérica mão. O mau-comportamento dos objetos dos predicados de relações
(71) Por aqui, médicos estão trabalhando muito. permanentes, pode ser explicado pelo fato de que, em todas estas
Existencial para o sujeito - generalização sobre eventos línguas, estes predicados realizam ‘scrambling’ do objeto direto (cf.
(72) Moradores do Jardim Itapemirim voltaram a ficar sem con Kratzer 1995). ‘Scrambling’ é uma transformação que adjunge um
dução por causa da lama… (Cruzeiro do Sul 30.01.01) constituinte a IP e é uma instância de Mova-a.
Existencial
(73) Sobre o Plano de Segurança Nacional, acredito que bandidos 5. Comentários Finais
e traficantes estejam gratos. (Época, 110, 2000) Nesta seção, vamos esboçar comentários de uma primeira compara-
Genérica ção PE-PB em relação aos fenômenos tratados neste artigo. Tanto o
(74) Desde 1989, musicos veteranos compõem com um letrista de PE quanto o PB fazem uso dos Nomes Simples como indefinidos
enorme talento - e que morreu em 1982. (Veja SP (Vejinha), heimianos participando de sentenças genericamente quantificadas.
17.01.2001:31) Existencial para o sujeito - generalização No entanto, enquanto em PB, a estratégia preferida é o uso do Nome
sobre eventos Simples singular, em PE esta é o uso do nome simples plural. Este
contraste pode estar relacionado a um outro aspecto interessante de
♦ Hipótese 1: contraste entre as duas línguas com relação ao número dos nomes
(i) O nome simples singular sujeito é gerado em posição A’ (po comuns. Contrastando com o PB, a sentença (88) em PE significa
sição não argumental). que cada unicórnio tem apenas um chifre. Por outro lado, a sentença
(ii) O que temos em SpecIP, neste caso, é um pro. Daí a impossi (89) pode também ser interpretada como cada cão possuindo apenas
bilidade de reconstrução. um rabo, novamente em contraste com o PB.2
Dados que confirmam a hipótese: (88) Os unicórnios tem chifre.
(i) Inexistência de leitura de variável ligada: (89) Os cães perderam seus rabos.
(75) ???Médico detesta a si mesmo.
(76) *Médico se detesta (leitura distributiva)
(77) ???Médico sempre acha que sabe tudo.
(ii) Impossibilidade de estar dentro do VP:
(78) *Médico chegando, eu peço pra ligar pra você.
(79) *Menina ficando mais durinha chama mais a atenção. 2
Ver seção 2.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 413


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414 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Sobre a expressão da duração em Português Europeu e
Português Brasileiro: o uso de sintagmas com a
preposição por (* )
Telmo Móia
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

ABSTRACT: In this paper, the subsystem of duration of European and Brazilian Portuguese is analysed. The differences between these two variants
with respect to the use of por-phrases are focussed and some intriguing interactions between the temporal subsystem of duration and (temporal and
non-temporal) subsystems or values such as Aktionsart, prospectivity and intentionality are revealed.
PALAVRAS-CHAVE: tempo, duração, adverbiais, “por”.

0. Introdução afirmando que por três meses receberam comida de Amin.”


O objectivo do presente trabalho é analisar as diferenças en- (ibid., par. 165154)
tre as variantes portuguesa e brasileira do português (doravante PE e d.“Ele marca o fim do isolamento britânico que por sécu
PB) no que respeita à expressão de valores de duração por meios los foi fundamental à defesa do Reino Unido.” (ibid., par.
adverbiais. No essencial, cingir-me-ei apenas ao uso de sintagmas 1047486)
encabeçados pela preposição por, dado que apenas aí se registam e.“Outro motivo que pode fazer Joel se entreter por horas
algumas diferenças significativas entre as duas variantes, verifican- a fio é a política (...).” (ibid., par. 1138580)
do-se nomeadamente que estes sintagmas têm um uso bastante mais O que é interessante notar é que, em certos contextos – que
limitado em PE que em PB. contrastam com estes – o uso de sintagmas de duração com por é
Antes de passar à análise dos dados, impõem-se algumas con- também de uso comum em PE. Em seguida, tentarei enumerar factores
siderações preliminares. Em primeiro lugar, a limitação do uso de linguísticos que se afiguram como relevantes para dar conta da distri-
sintagmas com por em PE, acima mencionada, deve ser entendida, na buição destes sintagmas em PE:
generalidade dos casos, mais como uma questão de frequência de i. Aktionsart da estrutura matriz
ocorrência que de estrita gramaticalidade. Assim, as frases que adi- (2) a.O Paulo esteve em coma por dois meses. [??PE]
ante serão marcadas com um ou dois pontos de interrogação (como b.Esta manhã, o Paulo correu no parque por meia hora.
por exemplo (2a) – o Paulo esteve em coma por dois meses) não [??PE]
devem ser tomadas como frases inaceitáveis, ou marginais (no senti- (3) a.O Paulo saiu da sala por meia hora. [OKPE]
do usual do termo), dentro do sistema gramatical do PE. Trata-se b.O Paulo emprestou um livro à Ana por duas semanas.
antes de formas entendidas como pouco comuns, ou marcadas, de [OKPE]
expressar a duração em causa (podendo todavia alguns falantes senti- c.O Benfica contratou este jogador por seis meses. [OKPE]
las como estranhas), especialmente se confrontadas com contrapartidas Estes exemplos contrastam no valor de Aktionsart da estrutura
em que se usa a preposição durante, por exemplo. Na realidade, con- matriz – uma situação atélica (estado ou actividade) em (2), uma situ-
vém acentuar que se revelou bastante difícil obter dos falantes portu- ação (télica) pontual, ou achievement, em (3). Assim, enquanto que
gueses juízos firmes sobre o estatuto de muitas das construções ana- em (2) o sintagma com por explicita a duração da situação directamente
lisadas. Quanto aos corpora consultados1 , indicam nitidamente um representada – isto é, marca o que designarei uma duração básica –
contraste entre as duas variantes no que respeita ao número de ocor- , em (3) explicita a duração de uma situação derivada do achievement
rências das expressões de duração com por: em PB, o seu uso é abso- representado na matriz, nomeadamente um estado resultante (tempo-
lutamente generalizado; em PE, apesar de haver diversas ocorrências rário) deste – isto é, marca uma duração derivada2 . Ora, verifica-se
atestadas – como veremos adiante –, estas são comparativamente muito que o uso de sintagmas com por para veicular este segundo valor
mais raras. (cuja caracterização sintáctico-semântica será feita adiante, na secção
3) é comum em PE, ao contrário do seu uso para veicular o primeiro
1. Factores linguísticos condicionantes do uso de sintagmas valor (facto em que o PE e o PB divergem). Este é porventura o
de duração com por contraste mais nítido no que respeita ao uso da preposição por em PE
Comecemos por observar em (1) algumas ocorrências de
sintagmas de duração com por registadas no corpus brasileiro NILC/
São Carlos. Parece-me que estas estruturas seriam produzidas pelos
falantes de PE preferencialmente com contrapartidas com a preposi-
ção durante, ou, em certos casos, a locução ao longo de ou predicados ( )
* Este trabalho foi apoiado financeiramente pelo Instituto Camões (no âm-
de quantidades de tempo não preposicionados: bito do programa Lusitânia). Agradeço a João Peres as diversas observa-
(1) a.“Vulcões que soltam lava por muitos milênios podem ções feitas durante a discussão deste trabalho.
1
criar grandes cones.” (NILC/São Carlos, par. 1131485) Foram consultados essencialmente os corpora Natura/Público e NILC-São
b.“(...) [filmes como Sleep] cuja única cena retrata um Carlos, para o PE e o PB, respectivamente (cf. http://cgi.portugues.mct.pt/
amigo de Warhol dormindo por cinco horas e 21 minu acesso/).
2
É a própria expressão de duração que requer a agregação do estado resul-
tos.” (ibid., par. 8450)
tante (i.e. é ela o comutador aspectual). Neste texto, usarei o termo “du-
c.“Nessas imagens de arquivo aparecem flagelados ração derivada” apenas nestes casos.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 415


e será aquele a que darei aqui maior destaque (cf. ambiguidades anali- 2. Aspectos básicos da expressão da duração (de situações)
sadas na secção 5). O conjunto de frases que se segue e o Quadro 2 ilustram – de
ii. prospectividade da situação cuja duração é quantificada forma esquemática (que não pretende ser exaustiva) – a distribuição
(4) a. O Paulo esteve em Paris por duas semanas. [??PE] das expressões adverbiais de duração em português. Interessa, em
b. O Paulo vai estar em Paris por (mais) duas semanas. particular, salientar o lugar que ocupam no quadro os sintagmas com
[?PE] por, tópico deste trabalho. Eles marcam: (i) a duração básica de situ-
ações atélicas, caso em que o PE e o PB divergem e que será analisa-
Pode observar-se ainda um contraste em PE – porventura mais do com maior pormenor na secção 3; (ii) a duração (derivada) de
ligeiro – entre a marcação de uma duração verificada – isto é, uma estados resultantes de situações télicas, caso em que o PE e PB coin-
duração de facto de uma situação (já) ocorrida antes do ponto de cidem e que será considerado na secção 4.
perspectiva temporal, como em (4a) – e uma duração não verificada
– isto é, uma duração possível de uma situação a realizar-se após o  situações atélicas – durante ou, em certos contextos, predicados de
ponto de perspectiva temporal, como em (4b). No segundo caso, os quantidades de tempo não preposiconados (caso em que, discutivel-
mente, se pode invocar a presença de uma preposição nula, Æ)
sintagmas com por são sentidos como menos incomuns em PE.
• situações atélicas básicas
iii. existência de um controlador da extensão temporal da situação
(6) O Paulo esteve em coma (durante) três meses e meio.
cuja duração é quantificada
[estado]
(5) a. O Paulo vai estar em Paris por (mais) duas semanas.
(7) O Paulo correu (durante) meia hora no parque.
[?PE]
[actividade]
b. O Paulo pode ainda estar constipado por (mais) duas
• situações habituais ou genéricas
semanas. [??PE]
(8) a. O Paulo fumou durante vários anos. [situação básica
Outro contraste a que alguns falantes do PE são sensíveis tem atélica]
a ver com a existência ou não, por parte de uma dada entidade, de b. O Paulo leu o Expresso durante vários anos. [situação
controlo sobre a extensão temporal da situação relevante (isto é, a básica télica]
capacidade ou não de reverter a situação ou de planear a sua dura- • situações iteradas
ção). Assim, nos casos com duração não planeada (ou não contro- (9) O Paulo espirrou durante cinco minutos. [situação bá
lada), como (5b), o uso de sintagmas com por é talvez sentido como sica télica (pontual)]
menos comum que o seu uso nas contrapartidas com duração pla- • situações despojadas de culminação
neada (ou controlada), como (5a). (10) O Paulo leu o livro durante meia hora. [situação bási
Do cruzamento dos três factores linguísticos acima descritos, ca télica]
obtemos o quadro que se segue, que ilustra uma gradação (porventura  situações télicas – em
algo subtil) na utilização de sintagmas de duração com por em PE, • situações télicas básicas
oscilando entre os casos com duração derivada planeada e não (11) O Paulo escreveu o relatório em duas horas e meia.
verificada (como os de (3)), plenamente gramaticais, e os casos com [accomplishment]
duração básica verificada (como os de (2)), menos comuns. (12) *O Paulo achou acidentalmente esta moeda {durante /
em} meia hora. [achievement]
• culminações agregadas a um estado preparatório
(13) O Paulo atingiu o topo da montanha em três horas.
[situação básica pontual]
 outras situações, sem valor de Aktionsart definido – de, adjectivos
• expressões adnominais de duração3
(14) a. um terramoto {de quinze segundos / breve}
b. uma intervenção cirúrgica {de quatro horas / demorada}

Além dos três factores já mencionados, pelo menos outros dois


– que mencionarei com maior pormenor adiante – parecem ainda ser
relevantes:
iv. precisão da duração: duração precisa, imprecisa e vaga
Tendencialmente, quanto menos precisa é a duração melhor é
a compatibilidade com sintagmas com por em PE – cf. exemplos
(18)-(20) adiante.
v. variações lexicais (algumas relativamente subtis) no
predicado da estrutura matriz
3
Nem todos os predicados da mesma classe de aktionsart pare- As expressões nominais também podem representar situações com valo-
res de Aktionsart definidos (atélicos ou télicos), combinando-se com ex-
cem aceitar a combinação com sintagmas com por de igual modo
pressões duração com durante ou em:
(e.g. a expressão estativa estar interrompido aceita geralmente me- (i) a permanência das tropas no território durante seis meses
lhor que estar em casa, por exemplo). (ii) a construção da ponte em menos de dois anos

416 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


3. Expressão de duração básica com sintagmas com por sintagmas de duração com por; estes sintagmas (ou pelo menos algu-
Como já foi referido, existe uma tendência geral em PE para não mas deles) são discutivelmente analisáveis como seus complementos,
usar (ou rejeitar o uso de) sintagmas com por para representar a situando-se a questão no domínio da regência preposicional – e.g.
duração de facto de situações atélicas (ocorridas antes do ponto de prolongar(-se), arrastar(-se), estender(-se), prolongamento, ..., vi-
perspectiva temporal) – cf. exemplos (2). Todavia, há abonações deste gorar, (ser) válido, ..., persistir, perdurar, ... (? continuar, man-
uso em textos clássicos e algumas ocorrências nos corpora do PE: ter,...)
(15) a. “Por anos, a dama e o cavaleiro viveram em boa paz (21) a. A reunião prolongou-se por várias horas.
e união.” b. A situação arrastou-se por mais de dois anos.
(Alexandre Herculano, Lendas e Narrativas, apud c. O passaporte é válido por dois anos e meio.
Aurélio Buarque de Holanda, Novo Dicionário da d. Essa crença persistiu por alguns milénios.
Língua Portuguesa, Ed. Nova Fronteira, 2.ª ed., iv. Certos predicados estativos aceitam melhor que outros a combina-
1986, p. 1365) ção com sintagmas de duração (claramente não argumentais) com por
b. “(...) registou ventos de 75 nós (...) que devastaram – e.g. estar parado, estar interrompido, estar sem luz. Não procurarei
o iate por quatro horas” (Natura/Público, par. aqui identificar os factores linguísticos determinantes, mas o facto de
43234) estas expressões remeterem intrinsecamente para uma transição ou
c. “Ramalho Eanes (...) conviveu por algumas horas mudança de estados-de-coisas parece claramente ser relevante.
com os seus amigos, em tom marcadamente v. A combinação com expressões do tipo de a fio, consecutivos ou
apolítico.” (ibid., par. 555) seguidos – corrente em PB (cf. exemplos abaixo) – é mais fortemen-
d. “Fafe (...) chegou a frequentar o quartel, em Tancos, te rejeitada em PE:
por uns escassos 80 dias.” (ibid., par. 14883)
(22) a. “Habituadas, por anos a fio, a reverenciar os consu
e. “Desde as 10 horas da manhã, as manobras de entra
midores da classe média com lançamentos e farta pu
da do porto eram aguardadas ansiosamente e por três
blicidade, as empresas (...).” (NILC/São Carlos, par.
horas toda a guarnição permaneceu no convés (...).”
523771)
(ibid., par. 40360) [posição pré-verbal]
b. “Muitos presos não viram a luz do dia por meses a
Como também já foi dito, o uso de sintagmas com por para represen- fio.” (ibid., par. 1050451)
tar a duração de situações atélicas com um valor modal de incerteza, c. “E (...) foi capaz de escrever sete novelas de uma enfi
a realizarem-se (potencialmente) após o ponto de perspectiva tempo- ada só, ficando no ar, ininterruptamente, por cinco
ral, parecem apresentar um grau mais elevado de aceitabilidade (es- anos seguidos.” (ibid., par. 12688)
pecialmente se houver um controlador), embora ainda seja conside-
4. Expressão de duração derivada com sintagmas com por
rado pouco natural por alguns falantes. Eis alguns exemplos docu-
No que respeita à expressão da duração derivada (que ocorre
mentados em corpora do PE – (16) – e do PB – (17) :
com predicados pontuais, como sair, na matriz), convém distinguir a
(16) “A equipa (...) deverá permanecer em Portugal por
duração planeada – que não tem necessariamente de se verificar,
quase três semanas, terminando as suas tarefas a
embora isso possa acidentalmente acontecer – da duração verificada
seis de Maio.” (Natura/Público, par. 75600)
(de facto). Imaginemos, por exemplo, uma situação (a) em que o
(17) a. “Segundo Carlos Rexach, (...) Romário deve ficar
Paulo saiu de um determinado lugar com a intenção de estar fora
treinando separado dos companheiros por mais duas
durante meia hora e uma situação (b) em que o enunciador pretende
semanas.” (NILC/São Carlos, par. 653245)
referir uma dada ausência efectiva do Paulo durante meia hora (in-
b. “Jacarepaguá terá enchentes por mais 2 anos” (ibid.,
dependentemente dos seus planos). Eis os juízos que me parecem
par. 11912)
corresponder a essas interpretações (em frases com sintagmas com
Além destas duas situações, convém ainda notar alguns casos parti- durante e por):
culares de uso de sintagmas de duração (básica) com por em PE:
(23) a. O Paulo saiu {*durante / por} meia hora. [duração
i. As expressões de duração (vaga) construídas com o hiperónimo
planeada]
tempo são (mais) comummente aceites:
b. O Paulo saiu {??durante / ?/??por} meia hora. [duração
(18) a. O Paulo esteve em coma por três meses e meio.
verificada]
[??PE]
A expressão da duração verificada de estados resultantes (temporá-
b. O Paulo esteve em coma por muito tempo. [OKPE]
rios) com sintagmas com durante parece dar origem a sequências
c. O Paulo não esteve em coma por muito tempo.
marginais. Com sintagmas com por, a aceitabilidade parece variar
[OKPE]
com o tipo de predicado – compare-se sair, acima, ou ainda empres-
(19) a. As tropas talvez consigam resistir ao cerco por (mais)
tar, empréstimo ou contratar, em (24), marginais, com interromper
três meses. [?PE]
ou parar, em (25), que parecem compatíveis com esta duração:
b. As tropas não vão resistir por muito (mais)
??
tempo.[OKPE] (24) a. O Paulo emprestou-me o livro durante / por dois dias.
c. Ninguém sabe por quanto tempo (mais) vão as tro [d. verificada]
??
pas resistir. [OKPE] b. um empréstimo durante / por dois dias [d. verificada]
??
c. A empresa contratou o Paulo durante / por seis me
ii. As expressões – mais ou menos fixas – que indicam duração curta
ses. [d. verificada]
de forma vaga são geralmente aceites: por um instante, por (breves)
instantes, por um segundo, por algum tempo,... (25) a. “(...) vergonha, vergonha, vergonha, gritou ontem a
(20) a. Hesitei por dois dias, mas depois decidi recusar a multidão, que fez parar o trânsito na Avenida
proposta. [??PE] Alexandras por várias horas (...).” (Natura/Público,
b. Hesitei por um momento, mas depois decidi recu par. 8520)
sar a proposta. [OKPE] b. “O descarrilamento de um comboio regional que faz a
ligação entre Vila Real de Santo António e Faro (...)
iii. Certos predicados (basicamente) atélicos aceitam plenamente

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 417


interrompeu por mais de oito horas a circulação de e (iv) observando a interpretação em combinação com operadores de
para a estação de Faro.” (ibid., par. 33565) full-scanning (cf. Móia 2000, cap. 9):
Ignorarei doravante a expressão da duração (derivada) verificada, (33) O Paulo saiu do emprego por meia hora duas vezes.
concentrando-me nos casos com duração (derivada) planeada. Uma delas foi há coisa de cinco minutos atrás. [o
4.1. Expressão da duração (derivada) planeada com segundo evento de sair por meia hora é computado
sintagmas com por (como um dos dois relevantes) mesmo antes de trans
As frases que se seguem ilustram alguns exemplos típicos da correr meia hora de ausência]
duração em causa: iii. incompatibilidade com expressões do tipo de a fio, consecutivos,
(26) a. O Paulo saiu por duas horas. seguidos:
b. O presidente do Conselho Directivo fechou a escola (34) *O Paulo saiu por três horas {a fio / consecutivas}.
por dois dias. (35) O Paulo esteve ausente (durante) dez horas {a fio /
(27) a. O Paulo alugou a casa por três meses. consecutivas}.
b. O Paulo foi eleito presidente por três anos.
c. O jogador foi suspenso / contratado por dois meses. iv. não ocorrência em posição pré-verbal:
[“verbos de plano intrínseco”] (36) *Por meia hora, o Paulo saiu.
(37) Durante meia hora, o Paulo esteve ausente.
Outros exemplos de predicados pontuais usados neste tipo de
estrutura (documentados nos corpora de PE) são: abandonar [um 5. Ambiguidades duração básica / duração derivada
lugar], deixar [um objecto num local], [um casal] separar-se, encer- Para terminar, considerarei alguns casos curiosos de estrutu-
rar, paralisar, parar, prender, suspensão, interrupção, cedência, ras ambíguas entre a expressão de uma duração básica (verificada) e
paralisação ou contrato. uma duração derivada (planeada). A ambiguidade destas estruturas
No que respeita à caracterização sintáctico-semântica das es- resulta essencialmente da ambiguidade das expressões predicativas
truturas com duração planeada (que é importante para distinguir as usadas, que podem ser interpretadas ou como atélicas ou como pon-
ambiguidades do tipo considerado na secção 5), há que salientar pelo tuais (associáveis a um estado resultante). Estão nestas condições
menos as seguintes propriedades: expressões como ocupar um cargo, ficar num determinado local,
ficar numa determinada situação ou contratar jogadores. Em com-
i. valor de intencionalidade (associado, temporalmente, a um binação com sintagmas de duração com por pode surgir uma
valor prospectivo) ambiguidade – que é mais nítida em PB (já que para uma das inter-
Veja-se a possibilidade de rectificação (cf. Mittwoch 1980 ou pretações o PE recorre preferencialmente a sintagmas com durante)
Hitzeman 1993, por exemplos, para estruturas semelhantes do inglês – entre a expressão de uma duração derivada (planeada) e a ex-
com for), em (28), e a combinação com predicados que envolvem pressão de uma duração básica (verificada) (incomum em PE, com
controlo, em (29): por):
(28) a. O Paulo emprestou-me o livro por uma semana, mas eu (38) a. O ministro ocupou a pasta por vinte meses.
devolvi-lho passado dois dias. b. O Paulo ficou de baixa por seis meses.
b. O Paulo saiu por meia hora, mas afinal só regressou c. A pedido do presidente do clube, o Paulo contratou
passado hora e meia. jogadores por seis meses.
(29) a. O Paulo saiu por dez minutos.
b. O governo proibiu a pesca da sardinha por dois anos. Consideremos o exemplo (38a). A interpretação de duração
c. *O Paulo desmaiou por dez minutos. derivada (aceitável de igual modo em PE e em PB) é evidenciada em
d. *O Paulo apanhou uma gripe por duas semanas. contextos como “o ministro ocupou pasta por vinte meses, mas na
realidade ao fim de dois meses viu-se obrigado a pedir a demissão”
ii. preservação do carácter pontual da situação básica (isto ou “o ministro ocupou a pasta por vinte meses, esta semana”. A in-
é, a agregação do estado resultante não altera o valor de aktionsart da terpretação de duração básica, menos comum em PE (quando se usa
situação básica) por), sobressai quando substituímos por por durante, ou quando usa-
Esta propriedade pode ser demonstrada de diferentes manei- mos uma expressão predicativa exclusivamente estativa, como ser
ras, por exemplo: ministro da Defesa, por exemplo. Segue-se uma proposta de repre-
(i) através da possibilidade de combinação com localizadores pontu- sentação das duas interpretações em causa na linguagem da Teoria
ais ou com localizadores não pontuais associados a um intervalo de da Representação do Discurso (DRT), de Kamp e Reyle (1993), in-
extensão inferior à do estado resultante planeado (cf. referência em corporando as propostas de Swart (1998), quanto à representação da
Rodrigues 1994: 506-507, baseada no comportamento das expres- Aktionsart shift desencadeada pelas expressões de duração, e de Móia
sões francesas com pour mencionado em Berthonneau 1991): (2000), quanto à representação de somatórios de eventos para estru-
(30) a. O Paulo saiu por meia hora há cinco minutos. turas com expressões de duração. As formas a negrito salientam as
b. O Paulo emprestou-me o livro por uma semana ontem. principais diferenças entre as duas estruturas:
(ii) observando a interpretação em combinação com acabar de:
(31) O Paulo acabou de sair por meia hora.
[o evento de sair por meia hora verifica-se antes de
ter transcorrido a meia hora de ausência]
(iii) observando a interpretação em combinação com tempos com-
postos:
(32) A Ana entrou no escritório às 15.10h.
O Paulo tinha saído por meia hora (há dez minutos
atrás).
[o estado resultante do evento de sair por meia hora
verifica-se antes de ter transcorrido a meia hora de au-
sência]

418 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Quanto a estas representações, importa destacar (muito resu- linguísticos – alguns não estritamente temporais (como a
midamente) o seguinte: (i) a segunda DRS serve também como re- intencionalidade) – num subsistema essencialmente temporal, como
presentação para a frase o ministro ocupou a pasta durante vinte é o da duração. Sintomaticamente, estas interacções parecem fazer-
meses; (ii) a representação da interpretação B com um somatório deve- se sentir igualmente noutros subsistemas temporais, como o da loca-
se à possível descontinuidade do estado descrito – cf. o ministro ocu- lização – cf. o uso de sintagmas com até, como o seguinte (Móia
pou a pasta {durante / porPB} dez meses desde que o governo foi 2000: 277, baseado em exemplo de Mittwoch 1980):
eleito, há dois anos atrás; (iii) a representação da interpretação A (41) Ele emprestou-me o livro até segunda-feira, mas eu devolvi-lho
com um evento simples (em que a expressão de duração faz parte da no domingo.
caracterização intrínseca do evento, como se fosse um argumento Desejavelmente, em trabalhos posteriores, estas interacções se-
verbal) deve-se ao comportamento (das estruturas com estados resul- rão exploradas e integradas num quadro mais abrangente, que envolva
tantes temporários associados a descrições de achievements) descrito as diferentes manifestações da temporalidade nas línguas naturais.
em 4.1.
Como é óbvio, as ambiguidades em causa só surgem se não
existirem no contexto factores que bloqueiem uma das interpreta- Referências bibliográficas
ções. Atendendo ao que já foi dito sobre estas duas construções, é
fácil enumerar alguns desses factores. Consideremos, por exemplo, a
BERTHONNEAU, A.: 1991, “Pendant et pour, Variations sur la
frase (38b) – o Paulo ficou de baixa por seis meses. Alguns factores
Durée et Donation de la Référence”, Langue Française 91, 103-
que eliminam a interpretação de duração planeada, resultando, por
124.
conseguinte, em frases marginais em PE, são: (i) uso de expressões
HITZEMAN, Janet: 1993, Temporal Adverbials and the Syntax-
temporais com desde (que requerem full-scanning); (ii) ocorrência
Semantics Interface, diss. de doutoramento, University of
em posição pré-verbal; (iii) combinação com a fio:
Rochester, Rochester, New York.
(39)a.O Paulo ficou de baixa por seis meses desde 1995. [??PE]
KAMP, Hans e Uwe Reyle: 1993, From Discourse to Logic.
b.Por seis meses, o Paulo ficou de baixa. [??PE]
Introduction to Modeltheoretic Semantics of Natural Language,
c.O Paulo ficou de baixa por seis meses a fio. [??PE]
Formal Logic and Discourse Representation Theory, Kluwer,
Alguns factores que eliminam a interpretação de duração básica são:
Dordrecht.
(i) uso de um localizador pontual ou associada a um intervalo com
MITTWOCH, Anita: 1980, “The Grammar of Duration”, Studies in
extensão inferior à duração em causa; (ii) uso de acabar de (com o
Language 4.2, 201-227.
sentido da expressão inglesa [to have] just):
MÓIA, Telmo: 2000, Identifying and Computing Temporal Locating
(40)a. O Paulo ficou de baixa por seis meses, esta semana.
Adverbials with a Particular Focus on Portuguese and English
b.O Paulo acabou de ficar de baixa por seis meses.
”, diss. de doutoramento, Universidade de Lisboa.
Veio do médico agora mesmo.
RODRIGUES, Rosinda: 1994, “Os Adverbiais DURANTE Q N DE T e POR
6. Conclusão Q N DE T. Duas Formas de Quantificar a Duração”, Actas do X
O interesse do tópico em análise neste trabalho – o uso de Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Linguística,
sintagmas de duração com por – reside não tanto nas diferenças entre Évora, pp. 497-508.
o PE e o PB, que, como vimos, são por vezes bastante subtis, mas SWART, Henriëtte de: 1998, “Aspect Shift and Coercion”, Natural
mais na verificação da interferência de um conjunto de factores Language and Linguistic Theory 16, 347-385.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 419


Construções de voz média1
Roberto Gomes Camacho
Universidade Estadual Paulista - UNESP-São José do Rio Preto)

ABSTRACT: In Portuguese there is a set of predicates, formally identified by a non-coreferential use of the pronoun ‘se’, which supports the notion of middle
diathesis. This paper aims to provide evidence of formal and semantic conditions that allow to distinguish middle constructions from reflexive-reciprocal
ones.
PALAVRAS-CHAVE: voz, diátese, voz média, voz reflexiva.

0. Considerações iniciais bom indício para postular-se a existência de uma categoria


morfossintática de voz média. É necessário, entretanto, verificar se
Entende Klaiman (1994), que ao sujeito de sentenças básicas, esses tipos de predicados têm algum traço semântico comum que
ou não derivadas, só se permitem dois status conceituais, o de ‘inici- permita identificá-los como membros de um paradigma unitário.
ador e/ou controlador’ e o de ‘entidade afetada’, cabendo a uma
alternância formal na morfologia verbal indicar qual dos dois status 2. Proposta de trabalho
é atribuído ao sujeito da sentença. A essas formas alternativas Klaiman
se refere como diátese e ao sistema ao qual elas pertencem, como Minha proposta envolve a confirmação ou rejeição de três
voz, de acordo com a perspectiva assumida por Benveniste (1976) hipóteses interligadas, que serão detalhadas com as respectivas justi-
para o exame das línguas clássicas indo-européias. ficativas teóricas na seção 4; em 4.1, procuro estabelecer uma distin-
A hipótese sugerida por Klaiman (op.cit) foi aplicada ao espa- ção semântica entre construções reflexivo-recíprocas e médias. Parto
nhol e ao inglês por Arce-Arenales et al. (1994). Pretendo demons- do princípio de que as construções médias constituem tipos semânti-
trar aqui que essas categorias de voz básica, próprias de várias lín- cos bem definidos de predicados cujo sujeito detém a responsabili-
guas modernas, estão presentes também no português. A idéia fun- dade pelo desencadeamento do evento do qual é também o principal
damental é que o português, como língua nominativo-acusativa, tra- locus de seus efeitos. Em função da convergência desses dois status
ta sujeitos sintaticamente ativos como semanticamente afetados ou semânticos na entidade representada pelo sujeito, pode-se dizer que
não afetados pela evento representado na predicação. A classe de as construções médias fundem, na mesma entidade, iniciador e pon-
sentenças com sujeitos sintaticamente ativos mas não semanticamente to de chegada. Embora as construções reflexivo-recíprocas sejam
afetados considero sentenças básicas de diátese ativa, enquanto a clas- equivalentes à média, em termos da convergência dos status semân-
se de sentenças com sujeitos sintaticamente ativos que são semanti- ticos de iniciador e ponto de chegada elas implicam uma diferencia-
camente afetados considero sentenças básicas de diátese média. ção conceitual da entidade referencial em duas subpartes discretas, o
Embora a categoria de voz básica no português não apresente que não se aplica às médias.
expressão desinencial, como ocorria nas línguas clássicas, a Na seção 4.2, procuro demonstrar que a correlação formal
morfologia verbal permite distinguir a diátese ativa da média medi- mais evidente dessa diferenciação semântico-cognitiva está no dife-
ante o uso do clítico se em construções sintáticas alternativas com a rente estatuto morfossintático do clítico marcador, que preserva po-
expressão de diferentes funções semânticas mais ou menos similares sição argumental somente nas construções reflexivo-recíprocas
à diátese indo-européia. Essa caracterização formal conduz à formulação de uma ter-
Câmara Jr. (op.cit., p. 182-3) fornece três subcategorias de voz ceira hipótese, um tanto especulativa, de natureza tipológica, que apre-
média (medial, para o autor): a média reflexiva, a média recíproca e sento na seção 4.3: há uma supressão do clítico a afetar somente as
a média dinâmica. Tanto na média reflexiva, quanto na recíproca, a construções médias, o que induziria a pensar que o PB falado estaria
construção não-pronominal com objeto autônomo, isto é, não passando de sistema de uma forma, em que os dois tipos de constru-
correferencial ao sujeito, mantém inalterada a significação verbal, ção compartilham a mesma morfologia, para um sistema de duas for-
sempre numa forma ativa mas, em que a ausência de clítico, marcaria a medialidade, enquanto
Já na média dinâmica, a pessoa do sujeito, sob a forma do a manutenção do clítico, a reflexividade.
clítico, reaparece no predicado como o centro de um estado de coisas
que dele parte, mas que não sai de seu âmbito, eliminando-se, assim, 3. Pressupostos metológicos
o objeto sobre o qual ela recairia num evento transitivo típico:
Inicialmente, cabe esclarecer que me baseio numa perspecti-
(1) a. eu me levantei. va trans-sistêmica da morfologia média, proposta tanto por Kemmer
(1994) quanto por Klaiman (1994), esperando que esses tratamentos
Diferentemente das estruturas reflexivas e recíprocas, a cons- sejam um espelho para o português. Kemmer enumera uma lista de
trução com pronome autônomo altera a significação verbal, observe- dez tipos de situações mediais altamente relevantes, cujo correlato
se que em (1b) o predicado passa a ter um valor causativo e um formal é alguma espécie de marcador morfológico: cuidados corpo-
significado comparável ao de “erguer”. rais (Latim lavo-r; português lavar-se); movimento não-translacional
(Latim: reverto-r; português: virar-se); mudança na postura corporal
(1) b. eu levantei a cadeira. (alemão: sich hinlegen; português: deitar-se); movimento translacional
(francês: s’en aller; português: ir-se); eventos naturalmente recípro-
A despeito da morfologia compartilhada, é perfeitamente pos- cos (latim: amplecto-r; português: abraçar-se); médias de emoção
sível separar em um paradigma as construções reflexivas e recípro- (latim: irasco-r; português: irritar-se); discurso emotivo (latim: que-
cas e em outro as construções médias, de acordo com a intuição de
Câmara Jr. O português dispõe de itens lexicais específicos, todos
verbos inerentemente pronominais, para representar essas categorias 1 Este trabalho desenvolve parcialmente o projeto de pesquisa Construções
semânticas de certa universalidade nas línguas, o que oferece um de voz média (CNPq – Processo 301185/92-1)

420 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


ro-r; português: queixar-se); média de cognição (latim: medito-r; sem (4) a. João se levantou.
expressão no português; alternativa: lembrar-se); eventos espontâne- b. João levantou a pedra.
os (francês s’evanouir; sem expressão no português; alternativa: ori- c. ?João se levantou a si mesmo
ginar-se); média indireta (grego clássico: kta-sthai: adquirir para si
próprio, sem expressão em português). Diferentemente dos reflexivos, não há comutação plausível
Esses tipos de situações recorrem em diversas línguas com o entre o clítico e outro SN com manutenção de compatibilidade se-
mesmo comportamento sintático-semântico, de modo que, se existi- mântica, como comprovam os exemplos contidos em (3a-b) e (4a-b).
rem pelo menos duas situações dessas na mesma língua, ambas são Além disso, enquanto (4c) soa um tanto estranha, o mesmo não se
expressas pelo mesmo marcador. Esse fato sugere que a média é uma aplica à interpretação de (3c). Segundo Benveniste (op. cit.), ser o
categoria lingüística com forte potencial de manifestar-se gramati- sujeito, ao mesmo tempo, centro e ator do evento (diátese interna) é
calmente. Línguas em que haja um marcador manifestando gramati- condição para a construção média. É natural, portanto, que, quando
calmente essas situações são consideradas sistemas mediais. o sujeito for ator e exterior, haja secundariamente uma forma ativo-
O português se enquadra nesse subtipo de língua, diferente- transitiva do verbo; não sendo dirigido ao sujeito, o efeito do evento
mente do inglês, por exemplo, que, em vez de ser dotado de uma é transferido a outro termo, que é nesse caso o objeto, o que ocorre
forma de expressão medial, expressa regularmente os mesmos tipos com (3b), cuja leitura tipicamente reflexiva é nitidamente marcada,
de situação mencionados com a morfossintaxe intransitiva não- já que ver pressupõe uma experiência sensorial inerentemente volta-
marcada, como wash, ou mediante algum tipo de construção deriva- do para o outro. Essas distinções formais oferecem um bom indício
da como dress/get dressed (cf. Kemmer, 1994, p. 183-4). para postular-se a existência de uma categoria morfossintática de voz
O fato de o inglês associar a semântica da medialidade com média. É necessário, entretanto, verificar se esses tipos de predicados
intransitividade é comparativamente revelador para considerar o clítico têm algum traço semântico comum que permita identificá-los como
de verbos como barbear-se, vestir-se, lavar-se como marcadores membros de um paradigma unitário.
médios e não reflexivos. Para esses verbos, o inglês não admite o
reflexivo, mas, por exemplo, wash recebe um objeto reflexivo so- 4. Discussão das hipóteses
mente quando o sujeito é não-humano, como mostra o par John
washed/Tiger was washing himself, em que ‘John’ é um ser humano 4.1. Nas construções médias (e nas reflexivas) convergem no su-
e ‘Tiger’ o nome de um gato. Haiman (1983) entende que a razão de jeito os status semânticos de iniciador/controlador e entidade afetada
muitas línguas não marcarem ações corporais com o marcador refle-
xivo está no fato de haver expectativa maior de que seres humanos Como mencionado, as construções de voz média fazem parte
executem uma ação desse tipo sobre si mesmos e não sobre outras de um vasto domínio semântico, que inclui, de modo regular nas
pessoas; conseqüentemente, o objeto não requer codificação. diversas línguas, subtipos específicos de estados de coisas.
Em vista das posições aqui assumidas, evitarei usar o termo No levantamento prévio que operei sobre corpus escrito2 , exa-
‘reflexivo’ para designar os diversos usos do clítico se. Assim, um minei a incidência dessas classes semânticas nas construções médi-
verbo pronominal, como vestir-se, por exemplo, não será considera- as. A grande maioria, 60,0% das ocorrências (56/94) não se refere a
do uma instanciação de reflexividade, mesmo que haja um predicador nenhuma dessas categorias; trata-se de predicadores tipicamente
causativo correspondente. A razão disso é que vestir-se é um verbo processivos, como tornar-se, encontrar-se, seguido de predicativo
que representa uma situação de cuidado pessoal, o que é, por defini- do sujeito, e outros como encarregar-se, candidatar-se, abster-se de
ção, uma atividade que afeta a entidade iniciadora e/ou controladora etc, que não encontram classificação nos tipos de situação, assim
do evento. O uso causativo é uma situação incomum, marcada, e só é como os ergativos, como organizar-se, generalizar-se, desenvolver-
possível de ser enunciada nas situações em que o iniciador do evento se etc. Os mais reincidentes foram as médias de emoção com 34,0%
não está em condições de controlá-lo, como se observa em (2a-b) (13/94), verbos de cognição e de evento recíproco, cada qual com
abaixo. 13,0% (05/94),movimento translacional, com 16,0% (6/94),
exemplificados em (5):
(2) a. Após o banho, a tia vestiu o bebê com cuidado.
b. Depois que Antônio fraturou o braço, sua esposa o veste to (5) a. É também fácil descobrir como o bebê se consola quando
dos os dias. irritado. (MA,T6, L111)
b. Lembre-se que a gente também tem a Quantum (A, T25, L7)
O correlato morfossintático de uma construção média são, por- c. Cavaco reuniu-se com Ferreira do Amaral (MA, T2, L1)
tanto, sentenças com verbos intrinsecamente pronominais cujo clítico d. Sendo assim, quem está mal retira-se. (MA, T4, L.52)
não representa nenhum participante no esquema valencial. No caso
de vestir-se, o léxico do português dispõe de duas entradas, uma pro- Klaiman descreve o tipo médio de voz como aquele em que o
nominal que representa a interpretação média e outra não pronomi- sujeito é, além de iniciador e/ou controlador, representa também o
nal, que representa a interpretação causativa. O efeito semântico está status de entidade afetada, conceito mais abrangente que o do papel
no fechamento do predicado sobre seu sujeito, valor que já se supõe temático de Paciente. A voz média contrasta com a ativa com base no
estar presente na construção reflexivo-recíproca. A diferença, entre- fato de que no sujeito da ativa não incidem os efeitos do evento, que
tanto, é que, nesta, o clítico é, simultaneamente anafórico e recaem sobre outro argumento e o sujeito é, de algum modo, o
correferencial ao sujeito, enquanto, na média, ele perdeu completa- controlador do estado de coisas descrito na predicação.
mente seu estatuto argumental, podendo, por isso, ser considerado Além de predicações não controladas, como as construções
uma espécie de afixo pronominal que concorda em pessoa e número
com o sujeito da sentença. Comparem-se (3a-c) e (4a-c):

(3) a. Maria viu o menino no espelho


2
b. Maria viu-se no espelho. O corpus, extraído de jornais e revistas de grande circulação no Brasil e em
c. Maria viu-se a si mesma no espelho Portugal, é constituído pelos seguintes gêneros: matéria assinada (MA),
anúcio (A), carta do leitor (CL) e entrevista (E).

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 421


ergativas3 , a medialidade é uma propriedade semântica que se aplica cas, independentemente da atribuição de papel temático, adotando as
também a predicações controladas, em que uma entidade agentiva noções de Klaiman de controlador e entidade afetada. Observe a sen-
opera sobre si mesmo, como em levantar-se, virar-se, ajoelhar-se; é tença (9).
também central em processos e estados cognitivos que acarretam a
participação de entidades experienciadoras, como em lembrar-se e (9) Cigarro vende em qualquer lugar... mas é monopólio estatal
interessar-se, respectivamente. E com efeito embora o corpus levan- (D2-RJ-355).
tado manifeste uma incidência majoritária de predicadores de pro-
cesso (+dinâmico, -controlado), 46,0% (43/94), há 24,0% (23/94) de A visão do evento que a sentença verbaliza constrói a entidade
predicadores de posição (evento -dinâmico, + controlado), 16,0% afetada (papel temático de Paciente) como também o controlador do
(15/94) de predicadores de estado (evento -dinâmico, -controlado) e estado de coisas, ou seja, como a entidade mais significativa na de-
14,0% (13/94) de predicadores de ação (evento +dinâmico, +contro- terminação do curso do evento denotado pelo verbo, já que, o sujei-
lado), conforme se verifica respectivamente em (6a–d). to, também ponto de partida do evento, caracteriza-se mais pelo au-
sência de controle externo do que pelo exercício de controle. Esse
(6) a. O resto organizou-se por si mesmo. (MA, T12, L45) exemplo mostra que a conceitualização de um evento é independente
b. Um recém-nascido interessa-se em primeiro lugar pelos con de papéis temáticos tradicionalmente definidos, como Agente e Paci-
tornos e pelas fronteiras entre as cores. (MA, T6, L66). ente. Retomando os exemplos acima, vemos que todos envolvem a
c. O Colégio Cidade se dedica a aprimorar cada vez mais a conceitualização do sujeito de sentença de voz média como o lugar
formação de profissionais (A, T7, L1) de incidência do efeito da ação. A dupla identidade do sujeito decor-
d. Fresco e de rápida absorção, ele permite que você se vista re do fato de que a perspectiva que a média instaura é de representa-
imediatamente após a aplicação. (A,T16, L5) ção da entidade afetada como o ponto de partida do evento e, portan-
to, iniciadora e/ou controladora ou, pelo menos, entidade não sujeita
Assim, todos os casos de voz média do corpus manifestam a qualquer causa externa.
predicados com argumento único afetado e todo o evento é tomado Klaiman introduz os conceitos de ‘entidade afetada’ e ‘inici-
como não sendo o resultado da ação de uma outra entidade causativa. ador e ou/controlador’, distinguindo-os respectivamente de
A entidade referencial na função de sujeito parece manter responsa- macropapéis, como ‘undergoer’ e ‘actor’ (Foley & Van Valin, 1984),
bilidade para iniciar o estado de coisas que então só dele emana. considerando ‘entidade afetada’ e ‘controlador não relações temáticas,
É necessário acrescentar que, formalmente, todos os mas status conceituais . Assim distinguido, o status de entidade afe-
predicadores são mono-argumentais considerando-se o fato de que o tada pode acrescentar-se a argumentos representando várias relações
complemento dos supostos verbos de dois lugares é sempre um oblí- temáticas e na verdade pode convergir com qualquer um dos dois
quo. Esse tipo de predicador e os verdadeiramente monovalenciais macropapéis colocados por Foley & Van Valin num argumento
são majoritários no corpus, com uma freqüência de: 38,0% (36/94) sentencial único.
para cada um; há 24,0% (22/94) de predicadores seguidos de SN Uma entidade afetada representa o participante percebido
predicativo, conforme se observa respectivamente em (7a-c). como afetado ou como o mais afetado em conseqüência do estado de
coisas, ou como diz Klaiman, da ‘ação sentencialmente denotada’.
(7) a. No Brasil, cerca de 100 mil casais por mês estão se benefici Uma entidade afetada não tem só que submeter-se aos efeitos da ação,
ando. de um tratamento eficaz e seguro. (A, T81, L4) já que, em algumas línguas, um participante pode ser considerada
b. Mata germes e bactérias que se multiplicam na esponja. (A, afetado em virtude de executar certas ações, não submeter-se a seus
T94, L5). efeitos. Contrariamente, enquanto o status conceitual de controlador
c. A pele já se torna mais firme. (A, T61, L9) é ordinariamente associado com o macropapel Actor, ele pode acres-
centar-se ao Undergoer em alguns sistemas. Por meio de uma defini-
Tomando por base os subtipos de situação sugeridos por ção operatória, o status de controlador pode ser atribuído ao argu-
Kemmer, é possível identificar nos verbos de cuidado corporal, como mento cuja participação é vista como determinando o curso e/ou o
vestir-se, nos de movimento não-translacional, como virar-se, e nos resultado de uma ação sentencialmente denotada.
de mudança de postura corporal, como levantar-se, a característica
semântica de acarretarem a fusão no sujeito dos papéis de Agente e 4.2. Apesar de compartilharem aspectos semânticos e
Paciente, conforme aparece sugerido em Nunes (1995). O mesmo morfológicos, as construções médias constituem eventos de um par-
parece aplicar-se a outros tipos de situação que envolvem verbos de ticipante e as e construções reflexivas eventos de dois participantes.
comportamento, como conduzir-se, comportar-se, portar-se. Verbos
naturalmente recíprocos, como abraçar-se, parecem fundir os papéis A convergência dos status conceituais de iniciador/controlador
de Agente e Beneficiário; observe-se, a esse propósito, as constru- e entidade afetada numa única entidade referencial na função de su-
ções de (8a-b). jeito está correlacionada a outra propriedade semântica, ligada a um
princípo denominado por Kemmer (op. cit.), de ‘relativa elaboração
(8) a. João abraçou a mulher, antes que ela caísse de vez. de eventos’, um esquema mais generalizador, que retraduz a concep-
b. João abraçou-se à mulher, antes que ele caísse de vez. ção de transitividade prototípica, sugerida por Givón (1994 ), com
base no estudo sobre transitividade de Hopper & Thompson (1980).
A sentença (8b) contém um verbo tipicamente médio cujo Como as línguas em geral assimilam outros tipos de eventos
complemento preposicionado não funciona semanticamente como que não envolvem necessariamente transmissão de energia física,
Beneficiário, no caso, da ação de José, como é o caso de a mulher em
(8a); funciona muito provavelmente como um Instrumento (meio de
suporte), já que o Beneficiário passa a ser o próprio Agente, ambos 3
A perspectiva que a construção ergativa fornece é de uma representação
fundidos no sujeito João. em que a entidade afetada é também o ponto de partida do evento e não
Em vez de falar em papéis temáticos, é preferível tratar essas sujeita a qualquer causa externa; essa característica, aliada à marcação
relações semânticas como status conceituais mais generalizadores que morfossintática do clítico correspondente, torna evidente sua inserção na
podem convergir ou não com a função de sujeito de sentenças bási- classe das médias.

422 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


como os prototipicamente transitivos, Kemmer (op.cit) considera o (10) a. todo o terreno da vizinhança já valorizou (D2-RJ-355)
grau em que a elaboração lingüística de um estado de coisas toma b. o problema é vender pro comércio...quando começa a de
por base o ponto de vista de um participante que “o inicia” para um senvolver o comércio... (D2-RJ-355)
segundo participante, que é o alvo ou “ponto de chegada” do evento,
noções que equivalem às de iniciador/controlador e entidade afetada Não disponho ainda de levantamento quantitativamente orienta-
de Klaiman (op.cit.), mas não coincide totalmente com elas. Kemmer do sobre a modalidade oral que forneça evidência definitiva; ainda assim,
argumenta em favor de uma propriedade semântica crucial para a é possível suspeitar, a título de hipótese, que, à caracterização semântica, o
natureza da reflexividade e da medialidade, propriedade essa ainda PB falado vem acrescentando uma distinção gramatical nada desprezível,
mais abrangente que a noção de afetação do sujeito. Essa proprieda- que, se afeta o PE falado, o faz apenas em grau menor: somente constru-
de geral, que ela denomina de ‘elaboração relativa de eventos’ é o ções médias permitem a supressão do clítico, que é, nesse caso, o morfema
parâmetro ao longo do qual é possível situar a reflexividade e a marcador, conforme se observa e, (10a-b) acima.
medialidade como categorias semânticas intermediárias de Já com predicados agentivos que implicam intencionalidade,
transitividade entre eventos de um e de dois participantes, o que como matar, ferir, a ausência do clítico na função reflexiva parece
permite também distinguir uma propriedade da outra. tornar completamente impensável a construção (11), embora um equi-
Com base num postulado de Haiman (1983) sobre a separa- valente semânticamente mais específico e tipicamente médio, como
ção conceitual que o falante opera mentalmente no grau de suicidar-se em (12), prescinda do clítico nas variedades faladas in-
individuação dos participantes, Kemmer (op. cit.) elabora o princí- formais.
pio, por ela denominado distintividade relativa de participantes, se-
gundo o qual uma entidade única físico-mental pode ser (11) ?João matou (O) na semana passada.
conceitualmente distinguida em diferentes participantes, proprieda-
de que permite construir uma escala de tipos de eventos: (12) João (O) suicidou na semana passada.

Esse fatos sintáticos encaminham a discussão para um aspec-


to interessante, de natureza tipológica. A maioria das línguas dispõe
de um marcador especial para indicar que a entidade iniciadora/
Um evento de dois participantes se caracteriza cognitivamente controladora e a entidade afetada convergem no sujeito. Ao observar
pela existência de dois distintos participantes preenchendo dois pa- a relação formal entre marcadores mediais e reflexivos em línguas
péis semânticos numa interação ou relação assimétrica. Embora no dotadas de diátese medial, Kemmer (1994) mostra que é possível
evento reflexivo e no médio se evoquem, como no evento de dois enquadrá-las em pelo menos duas classes tipológicas básicas.
participantes, dois papéis semânticos separados, estes convergem Há os ‘sistemas de uma forma’, em que o marcador médio é
para uma única entidade referencial. Em virtude dos distintos papéis idêntico ao marcador reflexivo, como o alemão e, nesse caso, tam-
que evocam, os eventos reflexivo e médio denotam relações interna- bém línguas românicas, como o português, o espanhol e o francês.
mente complexas, mas o primeiro implica uma diferenciação Num outro tipo de línguas, que se pode rotular ‘sistema de duas for-
conceitual da entidade referencial em subpartes discretas, enquanto mas’, como o russo, o marcador de reflexividade (MR) é uma forma
o segundo prescinde dessa diferenciação; desse modo, o evento médio similar, mas não exatamente idêntica ao marcador de medialidade
está mais distante do evento de dois participantes que o reflexivo. (MM). Nesse caso, o MR é uma forma nominal ou pronominal, en-
Dado que a função prototípica dos marcadores reflexivos é quanto o MM é um afixo verbal, embora haja línguas desse tipo em
assinalar correferencialidade de participantes que constituem enti- que ambos os marcadores são afixos verbais.
dades normalmente distintas, tem sentido analisar o evento reflexi- O que é comum a todos os sistemas desse tipo é que o MM
vo como o tipo de situação que mantém alguma separação entre Ini- apresenta menos substância fonológica que o MR, seja quanto ao
ciador e ponto de chegada. Além disso, nos eventos reflexivos, o número de segmentos, seja quanto ao grau de dependência fonológica
Iniciador atua sobre si mesmo do mesmo modo como atuaria sobre com a raiz verbal, o que leva Kemmer a denominá-las respectiva-
outra entidade dele distinta e a função do marcador é simplesmente mente por ‘forma leve’ (light form) e ‘forma pesada’ (heavy form)
assinalar o fato de que diferentes papéis são exercidos pela mesma (cf. Kemmer, op.cit, p. 188).
entidade. A função do marcador médio, ao contrário, é indicar que Nos eventos reflexivos, o Iniciador atua sobre si mesmo, como
dois papéis semânticos, o de Iniciador e o de Ponto de Chegada, se atuasse sobre outra entidade e o marcador reflexivo assinala tão
referem-se a uma entidade holística, sem aspectos conceitualmente somente o fato inusitado de que diferentes papéis temáticos são exer-
diferenciados (cf. Kemmer, op. cit., p. 207). cidos pela mesma entidade. Nos eventos médios, por outro lado, o
marcador tem a função básica de indicar que dois papéis semânticos,
4.3. O português estaria em processo de transição de um siste- o de Iniciador/Controlador e o de Entidade Afetada/Ponto de Chega-
ma de marcação única para para um sistema de marcação dupla em da se referem a uma entidade singular holística sem aspectos
que os eventos médios e reflexivos se distinguiriam formalmente. conceitualmente distintos. O peso fonológico mais leve do marcador
médio reflete iconicamente o mais baixo grau de peso conceitual da
Um levantamento preliminar, operado sobre um corpus escrito entidade que ele sinaliza (cf. Haiman, 1983; Kemmer, 1994) 4 . É um
do PB e do PE detectou 109 construções de voz média e reflexivas,
sendo 72 casos no PE e 37 no PB. A proporção os dois tipos de constru-
ções é de 6 vezes mais de médias que de reflexivas, conforme apontam
4
os seguintes índices: 14,0% (15/109) de construções reflexivas e 86,0% Haiman (1983) trata a separação conceitual pressuposta nas formas leves e
(94/109) de construções médias, proporção que se mantém aproxima- pesadas não como uma diferença entre a semântica reflexiva e a média,
mas em termos do grau de ‘individuação’ de objetos. Tratando especifican-
damente igual nas duas variedades.
do das diferenças entre reflexividade e medialidade, Kemmer (op.cit) pre-
Apesar de o marcador de voz média do português ser, como já fere empregar o termo distintividade relativa de participantes num evento
mencionado, por definição, o clítico reflexivo, podem ocorrer alternati- para representar o grau em que uma entidade singular físico-mental é
vas não-clíticas, mesmo num corpus mais formal, como as entrevistas conceitualmente distinguida em participantes separados, sejam eles corpo
do NURC: vs mente ou Agente não contrastivo vs Paciente contrastivo.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 423


tanto forçado chamar o clítico reflexivo de forma pesada, já que, em maior a distintividade, mais forte a marcação. Nesse desdobramento,
termos absolutos, é por definição átono e, portanto, foneticamente aplica-se o postulado funcionalista de que a gramática emerge do uso
leve. Em termos relativos, entretanto, a forma pesada teria manifes- e, no caso da distinção entre construções médias e reflexivo-recípro-
tação fonética, que seria ausente na leve. cas, o uso das formas está voltado para a ativação de princípios semân-
Esses padrões de marcação apontam para dois aspectos: por ticos dos quais a gramática parece ser não mais que um resultado.
um lado, como os marcadores médio e reflexivo mostram
freqüentemente relações formais sincrônicas e/ou diacrônicas, é pos- Referências bibliográficas
sível concluir que há uma relação semântica entre as categorias que
os marcadores expressam; por outro lado, o fato de as línguas faze- ARCE-ARENALES, M. et al. Active voice and middle diathesis: a
rem freqüentemente uma distinção formal entre as marcas reflexiva e cross-linguistic perspective. In: Fox, B, Hopper, P.J. Voice: form
média também sugere que há uma distinção semântica entre os and function. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins, 1994,
correlatos funcionais desses marcadores formais, suscetível de p. 1-22.
codificação lingüística e é nos ‘sistemas de duas formas’ que a dife- BENVENISTE, E. Ativo e médio no verbo. In: Problemas de lin-
rença se manifesta mais claramente (cf. Kemmer, op.cit., p. 190). güística geral. Trad. São Paulo: Ed.Nacional/Ed. da USP, 1976,
O latim se caracterizava como um ‘sistema de duas formas’ p.183-191.
mas os marcadores reflexivo e médios não eram cognatos: a expres- CÂMARA JR., J.M. Princípios de lingüística geral. Rio de Janeiro:
são formal do primeiro era o clítico se, enquanto a do segundo era Livraria Acadêmica, 4ª ed. revista e aumentada,1972.
desinencial, mediante o acréscimo de -r à raiz verbal; nesse caso, o ___. Dicionário de Lingüística e Gramática. Vozes, Petrópolis, 1977.
latim constituía um sistema de duas formas não cognatas. O desapa- FOLEY, W. , VAN VALIN,R. Functional syntax and universal
recimento dos verbos depoentes tornou possível generalizar o uso do grammar. Cambridge: Cambridge University Press, 1984
reflexivo para as construções médias do português e de outras lín- GIVÓN, T. The pragmatics of de-transitive voice: functional and
guas românicas, como o espanhol e o francês. typological aspects of inversion. (Introduction). In: ___ (ed.)
Não obstante esse percurso diacrônico, é possível pensar que Voice and Inversion. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins
a distinção gramatical entre construções médias e reflexivas venha a Publishing, 1994, p. 3-46.
traduzir-se, respectivamente, na ausência e na presença do clítico e, HAIMAN, J.. Iconic and economic motivation. Language (Baltimore),
nesse aspecto, o PB, em sua variedade falada, estaria num processo v. 59, 1983. p. 781-819.
mais avançado que PE no desenvolvimento de um sistema de marca- HOPPER, P. J. , THOMPSON, S.A.. Transitivity in grammar and
ção dupla, similar ao russo. Ao examinar dados provenientes do PE discourse. Language (Baltimore), v. 56, 1980, p. 51-299.
falado, Nunes revela que essa variedade se apresenta bem menos afeita KEMMER, S.. Middle voice, transitivity and the elaboration of events.
à supressão de clíticos que a brasileira. “De certo modo”, afirma, “o In: Fox, B, Hopper, P.J. (Ed) Voice: form and function. Amsteram/
dialeto europeu parece espelhar estágios anteriores do português bra- Philadelphia: John Benjamins, 1994, p. 179-230.
sileiro” (1995, p. 235). KLAIMAN, M.H. Affectiveness and control: a typological study of
Para concluir, uma nota pertinente sobre a conseqüência teóri- voice systems. In: Shibatani, M. (ed.) Passive and voice
ca das hipóteses aqui discutidas. Se válidas, parecem reforçar a idéia [Typological studies in language, v. 16] Amsterdam/Philadelphia:
de que, ao ativar o princípio cognitivo de distintividade dos participan- John Benjamins, 1988.
tes, omitindo ou manifestando foneticamente o clítico, o falante acio- NUNES, J. Ainda o famigerado se. D.E.L.T.A.(São Paulo) v. 11, n. 2,
na, correlativamente, o princípio de iconicidade, segundo o qual, quanto p. 201-40, 1995.

424 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Comunicações Coordenadas
426 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001
Estratégias discursivas em gêneros
acadêmicos escritos
Antonia Dilamar Araújo
Universidade Estadual do Ceará

ABSTRACT: This paper aims to analyze doctoral theses in the area of discourse analysis, written by native speakers of Portuguese and English, in order to
examine discursive practices in this type of academic text as well as to identify linguistic markers that realize such practices. The results will help to orient
future researchers in the production and comprehension of the genre in focus.
PALAVRAS-CHAVE: texto acadêmico – gênero textual – estratégias discursivas

1. Introdução Heberle (1999) em um estudo sobre estratégias discursivas em


gêneros acadêmicos escritos diversos, mostra que nos discursos con-
O estudo de gêneros acadêmicos-científicos tem atualmente temporâneos os escritores fazem uso de técnicas de linguagem infor-
merecido a atenção de estudiosos da linguagem preocupados em com- mal para se aproximar do leitor e cita a intercalação de orações
preender os processos de construção de significados e em desvelar interrogativas, observações em parênteses, o uso do discurso direto,
sua organização discursiva e as diferentes formas de expressão lin- como exemplos dessa informalidade no texto escrito. No entanto, é o
güística que caracterizam esses gêneros através das diversas discipli- estudo de Bunton (1999) em teses de doutorado em inglês que consi-
nas. Ao construir significados, pesquisadores-escritores devem de- dero mais detalhado. O autor considera as escolhas lingüísticas pes-
monstrar competência lingüística e comunicativa, que pressupõe não soais como formas metatextuais e as define como “aqueles elemen-
só o domínio do código da língua, mas também a habilidade de utili- tos no texto que servem primariamente ao propósito de organização
zar estratégias discursivas, numa dimensão sócio-cultural da lingua- textual” (p. 43). O autor identifica como formas metatextuais, a
gem, que veicula propósitos comunicativos a práticas discursivas es- referenciação textual e intertextual, os marcadores de atos comunica-
pecíficas de um determinado gênero. tivos do texto, os conectivos textuais, os explicitadores de lingua-
A análise de gênero inclui tanto a organização macrodiscursiva gem. Estas formas serão consideradas como ponto de partida na iden-
quanto a microdiscursiva, oportunizando a percepção das formas lin- tificação das estratégias discursivas no corpus selecionado.
güísticas que são parte de um jogo comunicativo, no qual funcionam
como estratégias de persuasão e subjetividade (Coracini, 1991) na 3. Metodologia
busca da aparente impessoalidade e neutralidade do discurso cientí-
fico. Dessa forma, este trabalho tem por objetivo analisar teses de O presente estudo que faz parte de um projeto de pesquisa em
doutorado, enquanto gênero textual acadêmico, escritas por falantes andamento, se caracteriza como uma investigação descritiva e anali-
de português e inglês, na área de análise do discurso escrito, com o sa dois exemplares do gênero tese de doutorado, texto acadêmico-
intuito de identificar as estratégias discursivas dos escritores e as científico, enquanto produto de construção de conhecimento e de
marcas lingüísticas que lexicalizam tais estratégias, considerando o significação. As teses selecionadas forram escritas por falantes nati-
contexto e a cultura em que esses textos foram produzidos. vos de português e inglês na área de análise do discurso escrito, ten-
do como temas “avaliação em artigos de pesquisas experimentais em
2. Pressupostos teóricos inglês” e “o resumo de dissertações de mestrado em lingüística”, de-
fendidas em 1989 e 1998, na Universidade de Birmingham, Inglater-
Todo ato de linguagem, enquanto atividade comunicativa, en- ra e na Universidade Federal de Santa Catarina, no Brasil, respecti-
volve sujeitos socialmente organizados que se manifestam dentro de vamente e tendo uma média de 400 páginas, incluindo os anexos.
um quadro de regularidades sócio-comunicativas convencionalmen- A análise, de natureza qualitativa, consiste na identificação das
te determinadas e através de estratégias discursivas de cunho pessoal estratégias discursivas na construção de sentidos e considerar-se-á
(Lysardo-Dias, 1998:17). Isto significa dizer que na produção de tex- dois componentes: o organizacional ou estrutural e o lingüístico. Na
tos acadêmicos, por mais que tente parecer imparcial, dedutivo, lógi- análise levantei todas as possíveis estratégias discursivas de natureza
co, é através das mais diferentes estratégias discursivas e procedi- textual e interpessoal, identificando as expressões lingüísticas que os
mentos de argumentação que o escritor revela sua subjetividade e escritores usam para lexicalizar tais práticas discursivas. Como pon-
tenciona provocar no interlocutar uma reação, ou seja, “convencer to de partida de análise das teses, adaptei e adotei as estratégias
da validade da pesquisa relatada e do rigor da mesma” (Coracini, identificadas no estudo de Bunton (1999) e tentei identificar outras.que
1991:42). Assim o foco deste trabalho são as estratégias discursivas os dados revelaram na análise das teses. Para os propósitos deste
na produção das teses de doutorado. trabalho, os nomes dos autores das teses selecionadas são omitidos e
Por estratégia discursiva, adoto a noção apresentada por as teses são identificadas, através dos exemplos, pela abreviação TP
Lysardo-Dias (1998:22), como sendo “a articulação entre o fazer- (tese em português) e TI (tese em inglês) seguidos do capítulo e da
coletivo e o fazer individual que faz do discurso não um lugar de página em que o exemplo se insere.
mera reprodução, mas um espaço de interação entre elementos soci-
ais convencionalmente pré-determinados e mecanismos lingüísticos 4. Resultados e discussão
individuais”. Pode-se concluir que na configuração estrutural e lin-
güística do texto acadêmico, o escritor se utiliza de procedimentos Ao analisar as teses selecionadas, identifiquei várias estratégi-
diversos e escolhas pessoais para alcançar objetivos comunicativos as discursivas as quais foram agrupadas em categorias e percebi pon-
comuns e adequados aos efeitos que deseja produzir no leitor. tos de semelhanças e pontos de diferenças na construção do texto

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 427


acadêmico que merecem ser destacados aqui. As estratégias anafóricas e aqui são denominadas de recapitulações. Vejamos alguns
identificadas foram agrupadas em dois componentes: a nível estrutu- exemplos:
ral e lingüístico, comportando subcategorias, que podem ser
visualizadas no quadro abaixo: Ex. 1 In the next three chapters, the identification and
significance of the three functions will be discussed. (TI,
Chapter 3, p. 105)
Ex. 2 Nas subseções seguintes, apresentamos comparativa
mente algumas definições de resumo acadêmico, os diversos
tipos e suas características.... (TP, Capítulo 3, p.55)
Ex. 3 The previous section has shown some of the problems
inherent in trying to define evaluative aspects of the lexico-
grammar. (TI, Chapter 3, p. 69)
Ex. 4 Bhatia (1993), como já colocamos acima, faz uma dis
tinção clara entre resumo e introdução de artigos de pesquisa.
(TP, Capítulo 2, p.21)

Os exemplos 1 e 2 antecipam o tipo de informação que será


discutida e apresentada no referido capítulo levando o leitor a criar
expectativas em relação à informação a ser apresentada. Nos exem-
As estratégias discursivas listadas no quadro acima caracteri- plos 3 e 4, em uma relação anafórica, os autores fazem referência à
zam as práticas discursivas do pesquisador-escritor, enquanto sujei- informação já apresentada em seção anterior, recupera e relembra ao
to comunicante de resultados de sua investigação, com o objetivo de leitor o que foi discutido no texto. As referências textuais também
persuadir sobre a verdade do conhecimento novo produzido para um são definidas pelo nível em termos de escopo do segmento do texto
leitor idealizado. Passemos agora a analisar cada estratégia. (tese, capítulo, seção, parágrafo, sentença) e de distância ao segmen-
to referido (capítulo, seção, local e imediata). Exemplos:
I- Nível organizacional ou estrutural: esta estratégia
macrodiscursiva diz respeito às regularidades sócio-comunicativas Ex. 5 This thesis makes no assumptions about the position of
do gênero em estudo pelo escritor. No caso das teses analisadas, per- evaluation within any particular theory of discourse,… (TI,
cebi que os textos tinham a mesma estrutura. A tese em inglês tinha Ch. 1, p. 10) (escopo – tese)
oito capítulos, sendo um introdutório, dois teóricos, três de resulta- Ex. 6 Nesta pesquisa, como não privilegiamos um enfoque
dos das análises, um de discussão e um de conclusão. A tese em didático da produção de gêneros, tratamos somente das no
português é composta de sete capítulos, sendo um introdutório, dois ções de comunidade discursiva,... (TP, Cap. 2, p.12) (esco
teóricos, um de metodologia, um de resultado, um de discussão e um po – pesquisa)
de conclusão. Ambas as teses anexaram o corpus analisado em for- Ex. 7 Chapter 3 looks at theories of evaluation in discourse,...
ma de anexos e apresentados em um segundo volume, oferecendo (TI, Ch. 1, p.11) ( distância – capítulo diferente)
aos pesquisadores como um banco de dados para futuras pesquisas.
Convém ressaltar que os capítulos da tese em inglês apresentaram 2.1.2 As referências intertextuais dizem respeito a referênci-
um estrutura interna diferente da escrita em português: cada capítulo as explícitas a outros textos, especialmente a outros autores. Aqui
continha introdução, três a cinco seções e conclusão, enquanto que podemos incluir as citações curtas que ocorrem no interior dos pará-
em português os capítulos continham de três a seis seções, sem uma grafos e as longas. Exemplos:
introdução e conclusão formal. No entanto, as teses tinham um pon-
to de semelhança: as introduções e conclusões continham as mesmas Ex. 8 The grammar used is Halliday´s as described in Halliday
unidades informacionais, ou seja, as introduções contextualizam a (1985a) (TI, Ch. 1, p. 10)
pesquisa, definem os objetivos e hipóteses, justificam a relevância Ex. 9 Desponta, nessa área, John Swales (1981, 1990) com
do estudo e descrevem a organização retórica da tese. As conclusões trabalho pioneiro de descrição de introduções de artigos de
sumarizam os pontos principais do estudo, discutem as implicações pesquisas... (TP, Cap. 1, p. 1)
teóricas e práticas e oferecem sugestões para futuras pesquisas.
2.1.3 As referências textuais não-lineares são aquelas que se
II - Nível lingüístico: várias são as estratégias identificadas referem a tabelas, quadros, figuras ou anexos. Exemplos:
neste nível:
Ex. 10 They then represent the rhetorical structure of a scientific
2.1 - Estratégias de referenciação: manifestações de lingua- research article as shown in Figure 2.1. (TI, Ch. 2, p. 23)
gem verbal e não-verbal que fazem referências explícitas a outras Ex. 11 Abaixo, na figura 8, pode ser visualizada a nossa pro
partes do texto ou a outros autores. Identificamos estratégias de posta de organização retórica de resumos acadêmicos.... (TP,
referenciação textuais, intertextuais e não-lineares. Cap. 5, p. 120)

2.1.1 As referências textuais são definidas pela direção da 2.2 Marcadores de atos comunicativos do texto: esta estraté-
referência e pelo nível em termos de escopo e distância. No que diz gia é expressa pelos marcadores explícitos de atos do discurso de-
respeito à direção, as referências têm a função de antecipar, sumarizar sempenhados no texto, como, por exemplo, sumarizar, definir, dis-
ou referir-se a um segmento posterior no texto, que aqui denomina- cutir, comparar, rever, etc. Exemplos:
mos de antecipações. Elas estabelecem relações catafóricas. Ou ainda
as referências têm a função de repetir, recapitular, ou referir-se a um Ex. 12 I shall examine the notion of the scientist-as-writer as
segmento apresentado anteriormente no texto. Estabelecem relações a constructor of facts (Section 2.4) (TI, ch. 2, p. 16)

428 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Ex. 13 Limitamo-nos então a comentar a seguir alguns estu amenizar e proteger o escritor de possíveis refutações em relação aos
dos que exploram a produção de resumos como são aplica argumentos e assertivas de incerteza apresentados no texto. Este fe-
das... (TP, Cap. 2, p. 16). nômeno ocorreu nas duas línguas, o que parece indicar ser esta uma
forma de persuasão e argumentação. Exemplos:
2.3 Explicitadores da informação do texto: são as explana-
ções explicitamente indicadas do que significa certos termos e sím- Ex. 16 Perhaps the most controversial hypothesis proposed
bolos no texto. Em inglês, os explicitadores são lexicalizados por in by Sinclair is that written discourse shares the three-part
other words, that is, for example; em português pelos seus equivalen- structure of the exchange. (TI, Ch. 3, p. 98)
tes, em outras palavras, isto é, por exemplo. Ex. 17 Em contrapartida, deve-se considerar, do nosso ponto
de vista, que as fronteiras genéricas são frouxas e tênues, ....
2.4 Mecanismos retóricos de natureza lexical: são (TP, Cap. 2, p. 8)
sinalizadores lexicais que se repetem formando redes de conexão.
São as palavras-chaves, o léxico básico, específico da área de conhe- • Tempo verbal: por ser a tese um texto expositivo, percebeu-
cimento da comunidade discursiva (Swales, 1990) que contribuem se que houve uma tendência para o uso do tempo presente nos capí-
para a coesão, sustentam a coerência e garantem legibilidade e com- tulos (introdução, parte teórica, discussão, e conclusão) e seções em
preensão do texto. Neste aspecto, foi observado uma quantidade con- que a exposição de teorias e idéias é o objetivo principal e o tempo
siderável destes sinalizadores nas duas teses, o que nos leva a perce- passado nos capítulos de caráter reportativo ou relato, como a
ber o campo semântico dos termos usados. Na tese em inglês, por metodologia e resultados, tanto na voz ativa quanto na voz passiva. O
exemplo, os termos evaluation, experimental research article, language, uso da voz passiva é considerado também uma marca da impessoalidade
interpersonal, writer, reader ,argument e em português, resumos, do discurso científico.
retórica, sinalizadores, unidade temática, unidade retórica, itens
lexicais, informações, argumento, organização retórica. Além destes 2.6 Uso de intercalação de perguntas: este recurso é típico
termos, percebe-se o uso de palavras que se referem ao gênero e a de textos expositivos e foi usado, embora com pouca freqüência, com
partes constituintes do texto tais como: thesis, tese, chapter, capítulo, o intuito de prender a atenção do leitor e também de declarar o co-
section, seção, example, figure, quadro, excerto, pesquisa, resulta- nhecimento que o escritor tem do assunto em foco. Cada pergunta
dos, análise. Estes itens lexicais que se repetem são importantes no pressupõe uma resposta, e essa estratégia nas duas teses foi realizada
sentido que “centralizam informação que tem relações semânticas com bastante sucesso.
diretas no texto e relações pragmáticas indiretas na interação leitor-
texto” (Cavalcanti, 1985:172). 2.7 Linguagem avaliativa: como todo texto científico é tam-
bém avaliativo, no sentido de que o escritor revela sua postura,
2.5 Mecanismos retóricos de natureza gramatical: são as- posicionamento, impressões sobre determinado assunto, essa estra-
pectos gramaticais importantes a serem observados na construção de tégia pode ser percebida ao longo dos capítulos das duas teses.
sentidos do texto acadêmico-científico. Destacamos aqui as estraté- Comumente, a avaliação de argumentos e teorias é lexicalizada pelo
gias que buscam a impessoalidade do discurso científico: emprego de adjetivos e expressões atributivas de valor e relevância.
Exemplos:
• o uso de nominalizações e metáforas gramaticais: nas
duas teses notou-se o uso de nominalizações ou metáforas gramaticais Ex. 18 One of more important points noted by Hunt and
(Halliday 1985,1994) que são formas de representação no discurso Vipond is that evaluation is cumulative. (TI, Ch. 3, p. 60)
científico da impessoalidade, marcada pelo uso de expressões “Este Ex. 19 Infelizmente, não foi viável, nesta pesquisa, aplicar
trabalho”, “A pesquisa..” seguido de um verbo +animado, represen- instrumentos valiosos de investigação para testar o conheci
tando o pesquisador que desaparece para dar lugar à situação cir- mento metacognitivo .... (TP, Cap. 7, p. 198)
cunstancial. Como exemplo dessas metáforas registra-se: This thesis
aims at..., This study reveals..., The results indicate…, The research
demonstrated…, Esse trabalho evidencia…, A pesquisa privilegia…. 5. Conclusões preliminares

• Formas pronominais de referência ao leitor: outra forma Esse estudo preliminar pretendeu identificar estratégias
de buscar a impessoalidade no discurso científico e identificado nas discursivas em teses de doutorado escritas em duas línguas:português
teses em estudo é o uso da forma pronominal “nós”, considerada e inglês. A análise dos dados, a princípio revelou que a natureza
universal, e que indica uma forma de envolver o leitor e proteger o deste gênero é bastante complexa, principalmente, se considerarmos
escritor de possíveis refutações das proposições apresentadas no tex- a construção de sentidos em culturas diferentes. Várias estratégias
to. Convém salientar que na tese em português a predominância foi o foram utilizadas de forma semelhante nas duas teses como: a
uso do pronome “nós” e na tese em inglês, houve uma mistura do estruturação do texto em seis movimentos retóricos – introdução,
pronome “we” e do “I”, principalmente, quando a autora avaliava fundamentação teórica, metodologia, resultados e discussão e con-
teorias e argumentos apresentados no texto. Exemplos: clusão, o uso de mecanismos lexicais e gramaticais, a linguagem
avaliativa, estratégias de referenciação. No entanto, houve também
Ex. 14 I shall then re-examine the theories of discourse diferenças, percebidas na estrutura interna dos capítulos, na extensão
mentioned in the light of this investigation. (TI, Ch. 1, p. 1) dos parágrafos (em inglês são mais longos), no emprego das formas
Ex. 15 Queremos dizer, com isso, que o gênero tem uma pronominais de referência ao escritor, e nas citações longas que, na
força tanto maior quanto mais se aproxima da forma consagra língua portuguesa, foram realizadas de várias maneiras. Essas dife-
da. (TP, cap. 2, p. 44) renças podem ser justificadas tanto pelas normas que a comunidade
discursiva em que o escritor está inserido estabelece, quanto pelas
• Modalização da linguagem: expressa através do uso dos próprias escolhas pessoais que o escritor faz para construir o texto
verbos, adjetivos e advérbios modais, que tem a função de avaliar, científico e produzir efeito no leitor. A variedade de estratégias

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 429


discursivas revela que o processo de construção do texto não é tão da ciência. São Paulo:Pontes/EDUC. 1991.
simples quanto se imagina e, que é necessário que futuros pesquisa- HALLIDAY, M. A K. An Introduction to Functional Grammar. 2.ed.
dores sejam conscientizados do conhecimento advindo dessas estra- London: Edward Arnold, 1994.
tégias para que possam comunicar os resultados de suas pesquisas de HEBERLE, Viviane M. Estratégias discursivas de informalidade e
forma mais persuasiva e coerente. envolvimento em gêneros escritos. Intercâmbio. Vol. 8. São
Paulo:PUC. 135-142, 1999.
6. Referências bibliográficas LYSARDO-DIAS, Dylia. O saber-fazer comunicativo. Teorias e prá-
ticas discursivas – estudos em análise do discurso. MACHA-
BUNTON, David. The use of higher level metatext in Ph.D theses. DO, Ida Lúcia, CRUZ, A R. E LYSARDO-DIAS, D. (org.s).
English for Specific Purposes. Vol. 18 Pergamon Press. 41-56, Belo Horizonte: Carol Borges/UFMG, 1998, 17-24.
1999. PALTRIDGE, Brian. Thesis and dissertation writing: preparing ESL
CAVALCANTI, M. C. Itens lexicais chaves como fios condutores students for research. English for Specific Purposes. Vol. 16. N.
semântico-pragmáticos na interação leitor-texto. IN: FAVERO, 1 Pergamon Press 61-70, 1997.
L.L. e PASCHOAL, M. S. Z. (orgs.). Lingüística textual::texto e SWALES, J. Genre Analysis: English in academic and research
leitura. São Paulo:EDUC, 1985, p. 171-184. settings. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
CORACINI, Maria José. Um fazer persuasivo – o discurso subjetivo

430 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Análise do gênero Petição Inicial
Antônio Luciano Pontes
Universidade Estadual do Ceará - UECE/UNIFOR
Universidade de Fortaleza - UNIFOR

ABSTRACT: This paper aims at presenting the results of a genre analysis. The corpus selected and analysed for this studyes composed of twenty petitions
as parts of civil processes. The analysis is based on Swales (1990) notion of genre. The generic description of the legal pieces shows that the rhetorical
moves are conventionalized as well as steps are apened to criativity.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero, análise de gênero, petição, movimento.

dades discursivas, não a indivíduos, a outros tipos de grupo


Introdução
ou a vastas comunidades de fala (Swales, 1990, p. 9).
O presente trabalho insere-se na área da Análise de Gêneros e
Como se vê, os gêneros são instrumentos utilizados pelos mem-
tem como objeto de estudo o gênero petição inicial.
bros da comunidade discursiva, para compartilharem objetivos e in-
A pesquisa, que se encontra ainda em andamento, apóia-se
teresses ocupacionais ou recreativos (Swales, 1990, p. 08).
nas posições teóricas de Swales (1990) sobre gênero e objetiva ape-
A produção lingüística efetuada, portanto, por esta comunida-
nas propor um modelo de análise que será o resultado do estudo da
de é estruturada em funções retóricas que se denominam movimen-
Petição Inicial. Pretende, ainda, descrever os aspectos léxico-grama-
tos e passos.
ticais, sinalizadores das diversas funções retóricas que o compõem.
O movimento (move), é segundo Motta-Roth (1995, p. 60),
O corpus para a análise é composto por vinte petições e foi
“um bloco de texto, uma unidade de informação, uma unidade de
extraído de um corpus maior, abrangendo todos os gêneros jurídicos,
estrutura do discurso com características específicas e funções co-
componentes de um processo cível. A pesquisa se insere no âmbito
municativas claramente definidas”. Cada movimento é realizado por
do Programa de Iniciação à Pesquisa Científica FUNCAP/UNIFOR,
unidades funcionais menores denominadas passos (steps). Estes mais
tendo como participante a bolsista Danielle Gurgel Lima, acadêmica
abertos à criatividade, caracterizam-se como opcionais ou obrigató-
do curso de Direito da UNIFOR.
rios, organizando-se em classes.
Primeiramente, apresentaremos as posições teóricas relativas
A partir destes conceitos, Swales (1990), apresenta seu mode-
ao conceito de gênero, em seguida, exibiremos os resultados da pe-
lo de análise, que denominou CARS (Create A Research Space). O
tição inicial e sua organização.
autor desenhou o modelo a partir da análise da estrutura retórica hie-
rárquica de introduções de artigos de pesquisa, o qual se organiza em
três movimentos:
Pressupostos Teóricos
1. estabelecer o território;
2. estabelecer o nicho;
Este estudo, conforme foi colocado, tem respaldo teórico em Swales,
3. ocupar o nicho.
que define gênero como:
Dentro de cada movimento realizam-se alguns passos interme-
diários, entre regulares e opcionais.
uma classe de eventos comunicativos, cujos membros compar-
Para o estudo da estrutura organizacional das petições, toma-
tilham um conjunto de propósitos comunicativos. Esses pro-
mos por base o modelo CARS, com as devidas adaptações para aná-
pósitos são reconhecidos pelos membros especializados da
lise deste objeto.
comunidade discursiva e dessa forma passam a construir o fun-
damento do gênero. Esse fundamento modela a estrutura
Metodologia da pesquisa
esquemática do discurso e influencia e limita a escolha de con-
teúdo e estilo ( Swales ,1990, p. 58).
Para o nosso propósito, analisamos apenas 20 petições inici-
ais. Escolhemos a Petição Inicial como o primeiro gênero a ser apre-
Desse modo, gênero assim entendido além de apresentar um
sentado, por ser ele o ato introdutório do processo, o qual significa
propósito comunicativo bem definido, ainda se caracteriza por ter
etimologicamente caminhar para frente. É a petição inicial o primei-
padrão de similaridade quanto à estrutura esquemática, ao estilo e à
ro passo nesse caminho, cujo fim é a obtenção de uma providência
audiência pretendida. Esses traços são determinantes para reconhe-
jurisdicional do Estado para decidir sobre a sua pretensão. O gênero
cer um gênero como prototípico de uma comunidade discursiva.
em questão se apresenta como uma declaração do autor expressando
Swales associa então a noção de gênero, como se observa, a
a vontade de acionar a lei. É também ato processual que desencadeia
um grupo seleto de usuários que está ligado a atividades ocupacionais
todos os demais. Tal peça jurídica se estrutura conforme o Código de
e/ou recreativas. A este grupo denomina comunidade discursiva. Para
Processo Civil (doravante CPC), no seu artigo 282, em sete incisos.
o teórico, comunidades discursivas são definidas como:
A não-observância, ainda segundo o mesmo Código, da
obrigatoriedade de tais incisos implica indeferimento do pedido. A
(...) redes sócio – retóricas que se formam a fim de atuar em
petição inicial indicará:
torno de um conjunto de objetivos comuns. Uma das caracte-
rísticas que os membros estabelecidos dessas comunidades
I- O juiz ou tribunal, a que é dirigida.
possuem é a familiaridade com gêneros particulares que são
II- Os nomes, prenomes, estado civil, profissão, domicílio e
usados em causas comunicativas desse conjunto de objetivos.
residência do autor e do réu.
Em conseqüência, gêneros são propriedades de comunidades
III- O fato e os fundamentos jurídicos do pedido.
discursivas, o que quer dizer que gêneros pertencem a comuni-
IV- O pedido com as suas especificações.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 431


V- O valor da causa. Movimento 8 - Finalizar
VI- As provas com que o autor pretende demonstrar a verdade 8.1 Fecho
dos fatos alegados. 8.2 Local, data e Assinatura
VII- O requerimento para a citação do réu.

Estes 7 incisos foram utilizados, no nosso trabalho, como • Discussão dos resultados
parâmetros para a identificação dos movimentos/passos das petições
Observando os movimentos e passos, já estabelecidos, apon-
do corpus, como será demonstrado a seguir.
tamos aspectos conceituais e sinalizadores léxico-gramaticais que
caracterizam a descrição geral das funções retóricas presentes no
Resultados da pesquisa
corpus em análise:
• Movimentos e passos das petições em análise
Movimento 1 - Escolher o juízo competente
A petição se destina segundo a lei ao juiz ou tribunal compe-
Utilizando os incisos acima referidos e observando a estrutura
tente. O juiz é indicado não pelo nome mas pelo grau ou cargo. Indi-
das petições pertencentes ao corpus em análise, chegamos à estrutu-
ca-se também a vara a que pertence. Como são várias, deixa-se um
ra prototípica do gênero petição inicial.
espaço em branco, para o preenchimento do número correspondente
Esta se constitui, pois, em movimentos, os quais correspondem
à vara o qual se dará pelo distribuidor do documento.
aos incisos apresentados pelo CPC, com algumas modificações, e,
Esse movimento se materializa no cabeçalho da petição cujo
em passos, que se comportam como facultativos ou obrigatórios. E
formato é convencionalizado e estratificado.
assim teremos a seguir o padrão de organização ou distribuição das
informações do gênero petição inicial.
Movimento 2 - Apresentar as partes
Aqui se individualizam as partes, promovente e réu, caracteri-
Movimento 1- Escolher o juízo competente
zam-se pelo registro civil, profissão, domicílio e residência. Também,
neste movimento, informa-se o tipo de ação que se vai proceder.
Movimento 2 - Apresentar as partes
2.1 Qualificar o promovente (nome, nacionalidade, profis
Passo 2.1 Qualificar o promovente
são, endereço, constituir advogado)
Neste passo obrigatório, qualifica-se o autor ou promovente,
2.2 Informar o tipo de ação e o seu procedimento
considerando dados pessoais e de residência. Enuncia-se ainda, o
2.3 Qualificar o promovido ( nome, nacionalidade, profis
seguinte igualmente obrigatório, através das expressões de base ver-
são, endereço, constitui advogado)
bal, que lhes servem de conexão, quais sejam promover ou propor,
como no exemplo extraído do corpus:
Movimento 3 - Apresentar os fatos e os fundamentos jurídicos
3.1 Apontar os fatos
MARIA APARECIDA DE OLIVEIRA, brasileira, viúva,
e/ou
do lar, residente e domiciliada nesta cidade, na Rua Pires
3.2 Expor as tentativas de solução
do Rio, 989, por seu procurador no fim assinado,
e/ou
3.3 Citar resolução semelhantes
Passo 2.2 Informar o tipo de ação e procedimento
e/ou
Neste passo, informa- se o tipo de ação e seu procedimento, e
3.4 Citar pesquisas
ele se conecta ao passo seguinte, através da preposição contra.Temos
e/ou
o exemplo: “ Ação de despejo por falta de pagamento, cumulada
3.5 Citar a doutrina
com cobrança de aluguéis”, contra...
e/ou
3.6 Citar jurisprudência
Passo 2.3 Qualificar o promovido
e/ou
Qualifica-se o promovido, ou réu, através de dados pessoais e
3.7 Citar a lei
de residência. Ainda neste passo obrigatório constitui-se também o
e/ou
advogado.
3.8 Fazer comentários
Este passo conecta-se ao movimento posterior por meio de
expressões do tipo: dizendo e requerendo, passa a expor e reque-
Movimento 4 - Requerer a citação do promovido
rer, e outros: “JOÃO CARLOS BARBOSA, brasileiro, casado...,
dizendo e requerendo o seguinte:”
Movimento 5 - Fazer o pedido
e/ou
Movimento 3 - Apresentar os fatos e os fundamentos jurídicos
5.1 Apresentar as evidências
O autor deve expor os fatos claramente, podendo ou não se
e/ou
utilizar dos dispositivos legais. Tal ausência não invalida a exordial.
5.2 Fazer comentários sobre a impossibilidade
e/ou
Passo 3.1 Apontar os fatos
5.3 Sugerir algo ou alguma quantia para solucionar o litígio
Este passo é o único obrigatório neste movimento, por reali-
e/ou
zar o tópico central.
5.4 Solicitar a fixação de honorários advocatícios, multa, custas
Seguem-se a este passo, subordinando-se a ele, vários passos
facultativos em uma série numerada, cada um funcionando como base
Movimento 6 - Requerer todos os meios de prova previstos em lei
de argumento para condenar o réu. Estes argumentos podem ser: ci-
tar uma doutrina, citar a lei etc.
Movimento 7 - Dar-se o valor da causa

432 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Movimento 4 - Requerer a citação da promovida to. Este movimento, tal como o primeiro, é caracterizado por ter um
Aqui instaura-se a tríade processual (autor-ação-réu), obser- formato convencionalizado e estratificado.
vando-se a ocorrência do verbo requerer. Eis um exemplo: “Reque-
Conclusão
rendo que seja citado o réu, para vir purgar a mora, relativamente ao
primeiro pedido, ou contestar ambos os pedidos, no prazo legal...” Do exposto, conclui-se que:
Movimento 5 - Fazer o pedido 1- Os movimentos reescrevem o que já é previsto, em parte,
É o próprio objeto da ação e resulta da exposição do fato e do pelo Código de Processo Civil, fazendo da petição inicial um gênero
fundamento jurídico, sendo necessária uma coerência entre o aconte- cuja estrutura é previsível.
cido e o pedido formulado. 2- Os passos são facultativos ou obrigatórios. No caso de se-
É curioso assinalar ainda que todos os passos se apresentam rem facultativos, há fatores que determinam esta opcionalidade.
como opcinais, no interior do movimento. Embora para que este se 3- Os mecanismos de conexão marcam as articulações entre
realize, seja necessário pelo menos a presença de um passo. movimentos e passos.
4- Elementos léxico-gramaticais recorrentes sinalizam os mo-
Observa-se a presença de expressões como: ante o exposto,
vimentos e os passos nos textos empíricos do gênero em análise.
ante os fatos, diante do exposto, em face do exposto.
Trata-se de um gênero bastante conservador, cuja linguagem reflete
o modo como se diz da comunidade discursiva jurídica.
Movimento 6 - Requerer os meios de provas previsto em lei
Nas ações de execução que são iniciadas com um título Referências bibliográficas
executório não existe necessidade de tal movimento, pois o docu-
mento anexado é prova suficiente. MOTTA-ROTH, D. Rethorical features and disciplinary cultures: a
genre-based study of academic book review in Linguistics,
Movimento 7- Dar-se o valor da causa Chomestry, and Economics. Florianópolis: UFSC. Tese (Douto-
É o valor do pedido. Sua fixação irá influenciar na competên- rado em Lingüística Aplicada). Departamento de Língua Ingle-
cia e no rito que serão dados ao processo. sa e Literatura Correspondente da Universidade Federal de San-
ta Catarina, 1995.
Movimento 8 - Finalizar SILVA, S.A. de. Um estudo de entrevista baseada na análise de gêne-
É composto pelo fecho, passo facultativo, e ainda pelo local, ros lingüísticos. The Especialist. São Paulo. V.12. n. 1 /2, p. 121-
data e assinatura. 143, 1995.
O fecho costuma ser expresso com as seguintes expressões: SWALES, J.M. Genre analysis: English in academic and research
nestes termos, P.E. deferimento ou nestes termos, espera deferimen- settings. Cambridge: Cambridge University, 1990.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 433


O hipertexto e o texto eletrônico:
características e desafios. 1
Iúta Lerche Vieira
Universidade Estadual do Ceará

ABSTRACT: The impact of information technology on the traditional forms of learning can be strikingly felt in writing, which has undergone changes as
deep as its own invention, paper and press invention. Adopting a new technology for reading, writing and circling the words leads to the emergence of new
text practices and styles, among other changes. In this context, we present a characterization of electronic text as compared to the typographic text, placing
the hypertext between the multiplicity of emerging formats or styles in transition. We discuss redefining such categories as space/time (ubiquity/ simultaneity,
presence/absence), cohesion/coherence, as well as the form of “handling” the electronic document, the mode of text production/transmission, and the new
relationships established between author/text/reader. Concomitantly, we point out some challenges represented by this new form of virtual communication
for users, research and teaching.
PALAVRAS-CHAVE: Texto eletrônico, hipertexto, estilo de texto, informação tecnológica.

Introdução: o texto eletrônico e gêneros emergentes, apontando algumas ques-


tões que se colocam na esfera da escrita.
O momento tecnológico que vivemos neste alvorescer do sé-
culo XXI é tão significativo para a história da humanidade como a I. O hipertexto: Um documento eletrônico revolucionário.
própria invenção da escrita há 3000 anos atrás, como a criação suces-
siva de novos suportes do pensamento, ou o aperfeiçoamento de Duas décadas atrás, antes mesmo de surgirem os primeiros
tecnologias imprescindíveis ao avanço seguinte. Assim foi com a computadores pessoais (em 82), dois pensadores geniais já antecipa-
descoberta do papel, vindo da China, através da Arábia em torno do vam a concepção de hipertexto, projetando o que hoje é realidade. O
século XII, tornando-se de uso geral no século XIV. O mesmo acon- primeiro deles, Roland Barthes, insatisfeito com a forma linear do tex-
teceu na passagem do manuscrito para o impresso, quando surgiu a to convencional, assim discorria profeticamente sobre o texto ideal:
imprensa em meados do século XV, ou quando ocorreu sua mecani-
zação, através da “indústria tipográfica”, já no século XIX (Fevre e “...as redes são múltiplas e jogam entre elas sem que nenhu-
Martin, 1992). ma possa reinar sobre as demais. Este texto não é uma estru-
tura de significados, é uma galáxia de significantes; não tem
Com a tecnologia eletrônica criam-se possibilidades até então começo; é reversível; se tem acesso a ele através de múltiplas
inimagináveis de produzir, acessar e transmitir informações. Surgem entradas sem que nenhuma delas possa ser declarada com
novas formas de letramento, transformam-se os hábitos de viver, tra- toda segurança a principal; os códigos que mobiliza se perfi-
balhar, de fazer ciência, arte e cultura, ou de usufruir de bens cultu- lam até perder-se de vista, são inexplicáveis (o sentido não
rais e sociais. No centro desta revolução tecnológica, o computador... está nunca submetido a um princípio de decisão, senão ao
Tudo está, de uma forma ou de outra, atrelado à sua incorporação acaso); os sistemas de sentido podem apoderar-se deste texto
irreversível à vida prática. Tão difícil como conceber nossas ativida- absolutamente plural, mas seu número não se fecha nunca, ao
des sem essa tecnologia é mantermo-nos à margem dela. Sob tal im- ter como medida o infinito da linguagem” (1980: 3)
pacto e sob o efeito de transformações ainda em curso chega a ser
arriscado emitir concepções mais definitivas... O segundo, Michael Ende, ao descrever a paixão leitora de seu
personagem, em A História Sem Fim, desvelava-nos o sentido maior
Em termos de tecnologia da escrita, vivenciamos talvez uma da intertextualidade:
das maiores expansões da capacidade comunicativa humana. No di-
zer de Cassany (2000:7), estamos passando de um suporte analógico “... Bastian olhou fixamente o título do livro e sentiu, ao mes-
para um digital, especialmente em relação à produção e transmissão mo tempo, arrepios de frio e uma sensação de calor. Ali estava
do discurso escrito (apenas a recepção do texto ainda se faz pelo uma coisa com a qual ele já havia sonhado muitas vezes, que
suporte analógico - papel, livro, revista). É que no ambiente analógico tinha desejado muitas vezes desde que dele se apoderara aquela
tradicional os dados de linguagem são representados e transmitidos paixão secreta: uma história que nunca acabasse! O livro
através de elementos físicos, compostos por átomos, seja de forma dos livros!” (1985: 6-7)
oral (voz, sons, lábios) ou de forma escrita (papel, livros, máquina de
escrever ). Já no ambiente digital, os sistemas de representação e de Ora, quem diria que as descrições visionárias de Barthes e a
transmissão de informações se fazem de forma mais mental que físi- ficção de Ende tão cedo se concretizariam...e que suas conjecturas
ca, por meio de dígitos (computadores, teclados, Internet, celulares). viessem a alimentar uma reflexão acadêmica? Neste sentido, o que
Mais que mudanças quantitativas, trata-se de transformações quali-
tativas, onde alteram-se os próprios conceitos de tempo espaço, di-
mensões tradicionalmente identificadas com o modo de, produzir,
compreender, ou divulgar textos escritos. E essa ruptura da continui-
1
dade e da linearidade implica em aprendizagens radicalmente novas, Trabalho apresentado no II Congresso Internacional da ABRALIN (Associa-
sem precedentes na história da cultura escrita. É, pois, nesse contex- ção Brasileira de Lingüística), Fortaleza, Universidade Federal do Ceará ,
14 a 16/03/2001, na Sessão de Comunicação Coordenada “Gênero Textu-
to radical de mudanças que arriscaremos algumas caracterizações sobre
al: Caracterizando Práticas Convencionais e Inovadoras”.

434 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


nos interessa, em particular, é mostrar como na concepção de 4. Rutpura da linearidade do discurso com foco nas cone-
hipertexto vamos reencontrar aquela idéia de Barthes, de um texto xões entre textos: o conteúdo textual organizado de modo hiper e
ideal, com múltiplas entradas e sentidos; ao mesmo tempo capaz de intertextual é visto como uma rede, tornando-se uma multiplicidade,
dar conta da paixão leitora descrita por Ende, não apenas em “textos sem um sentido unívoco e sem a imposição de um princípio domi-
que remetem a outros textos, em histórias sem fim”(Abaurre, 1988: nante. O livro eletrônico, de estrutura não-seqüencial, é antes “uma
87), mas agora numa intertextualidade inédita, que não é mais articu- estrutura que entra em contacto com outras estruturas, não metafo-
lada apenas no interior do texto, ou entre textos, mas na própria dinâ- ricamente como no texto impresso, mas de maneira
mica para operar com esse novo suporte de escrita, que é o digital. operativa”`(Álvarez, 1998:53). Trata-se de uma proximidade dife-
rente da que os livros têm numa biblioteca. Um documento eletrôni-
Isto posto, procuremos definir o texto eletrônico em formato co pode fundir-se em uma estrutura textual maior através de numero-
hipertextual e multimídia, apontando-lhe características de ordem sos pontos de contacto. Pode dissolver-se em seus componentes e
pragmática, discursiva e processual (modo de produção) redefinir continuamente sua interrelação com outros textos.

A) o que é hipertexto? 5. Contém elementos multimídia, veiculando também tex-


tos não-verbais: os elementos da escritura eletrônica podem ser pa-
Como nos diz Álvarez (1998: 52-53), “o hipertexto é um do- lavras, imagens, sons, ações e processos realizados pelo computador.
cumento eletrônico composto de nós ou unidades textuais
interconectadas que formam uma rede de estrutura não-linear. As 6. Do ponto de vista textual/discursivo, os textos redigidos
palavras destacadas ou sublinhadas nestes blocos textuais desempe- especificamente para este meio tendem a ser menos reiterativos (pon-
nham a função de botões que conectam outras fontes. Navegando tuação mais flexível, menos retomadas), menos longos, com estilo
entre esses nós, o leitor vai criando suas próprias opções e trajetórias menos dependente de procedimentos retóricos, já que o leitor mes-
de leitura, rompendo o domínio tradicional de um esquema rígido de mo elegerá as transições de uma unidade à outra (Bolter, 1991;
leitura imposto pelo autor. Assim, oferece-se ao leitor a oportunida- Nielsen, 1990; Landow, 1992, apud Álvarez, 1998: 53). É interes-
de de experimentar o texto, não apenas a um nível subjetivo de inter- sante notar que a própria coesão enquanto categoria textual é
pretação, mas a um nível de manipulação objetiva dos elementos que redimensionada. Se, por um lado, parece haver menos coesão porque
o integram.” 2 Adotando uma forma de organização similar à da mente o texto se subdivide em outros independentes; por outro lado, ela é
humana, a partir da construção de redes de conceitos associados, num ampliada. É que a estrutura não-seqüencial do hipertexto permite
hipertexto é possível, por exemplo, acessar dicionários e enciclopé- recuperar as diversas conexões virtualmente existentes entre os com-
dias audiovisuais pelo simples ato de “clicar” um termo sublinhado ponentes da informação. Ela atualiza múltiplos enlaces e interrelações
ou uma nota-de-rodapé. Pode-se ler a definição de uma palavra na conceptuais que coexistem num texto, mas que não podiam ser cap-
tela, ouvir sua pronúncia e outros efeitos sonoros; pode-se ter acesso tados na estrutura linear convencional, que só possibilitava atualizar
a ilustrações animadas, seqüências gráficas e tanto mais... uma linha de argumentação.

B) caracterizando o hipertexto: 7. Transformação nos papéis de leitor e de autor: no texto


eletrônico em formato hipertextual essas distinções são menos cla-
1. Alteração do espaço textual tradicional (página impressa, ras. Em geral o leitor torna-se mais ativo e o autor assume funções
com escritura estável e controlada exclusivamente pelo autor), pas- diferenciadas.
sando para um formato eletrônico, mais fluido e dinâmico, permitin-
do ao texto maior transitoriedade e mutabilidade, reduzindo a distân- 7.1. Mudança radical na relação do leitor com o texto, cri-
cia que separa o escritor do leitor e possibilitando sua interação. O e- ando um novo suporte para a escrita e novos contextos para ler e
texto é modificável: pode-se alterar, deletar, inserir, aplicar correto- escrever. O texto eletrônico permite ao leitor:
res ortográficos etc.
a) Interagir de forma mais dinâmica com a informação;
2. Ausência de permanência do texto, que existe apenas como b) Buscar e explorar significados com maior facilidade e eficiência;
informação digital. A “impermanência” do e-texto pode aumentar c) Abordar o texto a partir de suas próprias necessidades e expectati-
sua longevidade (durabilidade) e o impacto de qualquer escrito. Esta vas;
aparente contradição decorre da facilidade com que o texto eletrôni- d) Escolher entre diversas opções, múltiplas trajetórias e esquemas
co pode ser replicado e disseminado (como os “encaminhados” e possíveis de leitura, ao invés de um esquema único de leitura;
“atachados”), para não mencionar seu armazenamento de forma muito e) Vivenciar a experiência de aprendizagem por exploração e desco-
compacta (como os “zipados”). Um texto enviado pela Internet atra- berta;
vessa o mundo e pode atingir um número infinito de leitores, que f) Experimentar o texto como parte de uma rede de conexões nave-
podem “salvá-lo” num infinito número de computadores. gáveis que lhe dão acesso fácil e rápido a outra informação neces-
sária para a compreensão.
3. Ocultação da materialidade do texto ao leitor: o docu- g) Experimentar o conhecimento por meio de recursos multimídia,
mento ou livro eletrônico , constituem mais um conceito abstrato, impossíveis com as fontes de referência tradicionais.
que um objeto tangível. Nele, o leitor não dispõe de um conjunto de
páginas encadernadas, onde pode ir e voltar, havendo meios de
armazenamento que ocultam do leitor toda pista sobre o começo e o
final do texto. Dificilmente ele localiza o tamanho do texto na tela, 2
Embora num texto impresso o índice possa remeter a diversas alternativas
ou sabe a princípio quantas “telas” terá que ler. Assim também, um de leitura, estas devem submeter-se à ordem fixa das páginas. Já o hipertexto
texto eletrônico não requer necessariamente um final, permitindo que apresenta uma estrutura menos rígida, onde podem coexistir estruturas hi-
se explore apenas alguns conteúdos, que se desvie para outro texto e erárquicas e associativas. Qualquer rota representa uma alternativa apro-
assim por diante... priada de leitura, implicando numa alteração radical na relação do leitor
com o texto.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 435


7.2. Mudança na relação do autor com o texto e com o lei- 5. Sobre o ensino da leitura e da escrita: se os textos usados
tor (audiência): seu papel se expande, ultrapassando a simples es- para ler, consultar e estudar passam a ser documentos eletrônicos
critura do texto. Ele pode acumular funções de formatar, ilustrar, pro- cabe questionar se as práticas de ensino da leitura e da escrita estão
duzir animações, vídeos, efeitos sonoros, inserir desenhos, fotos, grá- adequadas; se um texto eletrônico é processado da mesma maneira
ficos, textos orais e determinar também as diversas operações do pro- que um texto impresso em papel... se fica mais fácil ou mais difícil
grama. Face à maior interatividade do leitor com o texto, pode pare- ensinar a ler e a escrever? Diríamos que os processos de aquisição
cer que o autor perde terreno, mas num formato hipertextual ele as- são os mesmos, mas a motivação para ler/escrever tende a aumen-
sume tarefas adicionais, além de planejar múltiplos enfoques para a tar... Com relação ao seu desenvolvimento, parece tornar-se mais fá-
informação ou, na concepção tradicional de texto tipográfico, produ- cil num sentido e mais difícil noutro...Com tantas facilidades
zir vários “textos” independentes com afinidade temática. operacionais e tamanha simplificação na mecânica do escrever, o aluno
ganhará fluência e velocidade no trabalho, mas talvez perca muito da
II. Futurologia ou realidade? Alguns desafios para o usuá- consistência do escrito, da profundidade de uma reflexão ou argu-
rio, o ensino e a pesquisa: mentação conduzida com recursos retóricos específicos...Talvez es-
tes gêneros tendam a desaparecer...talvez a ciência e a academia ve-
Mudanças tão profundas no modo de produzir e lidar com a nham a empregar outros códigos...
informação desafiam nossas concepções tradicionais sobre o que seja
ler/escrever e obrigam-nos a rever normas e convenções estabelecidas 6. Sobre a pesquisa em novas tecnologias da informação e
sob o domínio do alfabeto, lápis/papel e da imprensa. Vejamos al- implicações para o letramento. Tantos problemas e áreas de pesqui-
guns prognósticos e desafios que já se tornam realidade: sa novos se colocam nessa “Era da Informação”. Vejamos alguns
exemplos (Kamil, 2000:771-788):
1. Sobre o e-livro: muda o conceito tradicional de livro com - Uso do computador e composição3 , comparação entre escrita
novidades na forma de produzir, acessar, consultar e interligar-se a eletrônica e manual;
outras informações. O livro impresso, que historicamente foi o meio - Estudos sobre hipermídia, hipertexto e letramento: natureza,
mais importante de difusão do conhecimento e o suporte das princi- usos, estratégias de leitura,
pais construções intelectuais, deixa de ser o único objeto de leitura. - Internet, e-mail e outras tecnologias no ensino e em outros
Nos próximos anos muitos livros adotarão um formato eletrônico. contextos
(Álvarez, 1998: 51). Se o livro eletrônico vai de fato substituir o de - Efeitos da multimídia no letramento: texto/efeitos visuais e
papel é uma questão polêmica. Uma linha de argumentação contra se sonoros e impacto na aprendizagem; instrução em multimídia – pro-
apóia nas características físicas do livro impresso, que é portátil, mais cessos cognitivos envolvidos, estilos de aprendizagem e implica-
barato, não requer energia e pode ser lido com mais comodidade. Por ções sociais;
outro lado, não se pode ignorar que o tamanho e o preço dos equipa- - Motivação para o letramento em ambientes de tecnologia e
mentos eletrônicos tendem a cair progressivamente. com populações especiais.
- Computadores e colaboração: práticas colaborativas de
2. Sobre a importância da leitura e da escrita: o surgimento letramento em ambiente de aprendizagem e de trabalho.
de um novo suporte para ler/escrever implica transformações funda- Na “Era da Informação” a velocidade da mudança mal tem
mentais nos processos de criar textos, nas estratégias de leitura e na permitido uma avaliação de maior alcance sobre os novos conheci-
formação de novos leitores. Contudo a leitura continuará sendo o mentos e usos da tecnologia. As projeções para o futuro se impõem
instrumento fundamental de aprendizagem, de acesso à informação, antes mesmo que a consistência do presente esteja garantida e sufici-
ao conhecimento, à cultura, lazer, prazer estético e ao desenvolvi- entemente investigada... Finalizamos dizendo que essa concepção es-
mento pessoal (Anaya Rosique, 1994 e Fajardo, 1994, apud, Álvarez, tratégica da continuidade e rapidez da mudança nas tecnologias de
1998: 52). Assim também a escrita. Nunca antes foi tão importante informação e comunicação, redefinindo constantemente as práticas
saber escrever como agora. de trabalho e letramento, no momento é uma tendência mais forte
que investigar como a tecnologia transforma o letramento, ou estu-
3. Sobre o surgimento de novos gêneros e formatos de tex- dar suas mútuas influências (Leu e Donald, 2000:743-770).
tos: tecnologia e letramento interagem de muitas maneiras e influen-
ciam-se mutuamente. Os usuários inventam novas aplicações e mo- III. Referências bibliográficas:
dos para usar a tecnologia em atos de escrita. Nesse novo espaço
textual surgem também novos estilos de redigir, novos gêneros e for- ABAURRE, Maria Bernadette Marques (1988). “A propósito de lei-
matos de textos (e-texto, hipertexto, e-mail, formulários eletrônicos, tores e de escribas”. In Idéias 3. São Paulo, FDE.
sites ou home pages). Cada um com seus usos e convenções, com ÁLVAREZ, Octavio Henao (1998). “El texto electrónico: un nuevo
novos aspectos pragmáticos e discursivos em jogo... reto para la didáctica de la lecto-escritura”. In: Lectura y Vida –
Revista Latinoamericana de Lectura, Año XIX, no. 1, marzo
4. Sobre as implicações das novas formas de ler sobre os 1998: 51-55, Buenos Aires/Newark-Delaware, IRA.
leitores proficientes e os futuros leitores: a participação na cultura BARTHES, Roland (1980). S/Z. Madrid, Siglo XXI.
passa a ser mediada por novos dispositivos audiovisuais e outras CASSANY, Daniel (2000). “De lo analógico a lo digital – El futuro
maneiras de ler. Essas tecnologias terão profundas implicações na de la enseñanza de la composición”. In: Lectura y Vida – Revista
relação dos já letrados com os textos e no modo como as novas gera- Latinoamericana de Lectura, Año XXI, no.4, diciembre 2000:
ções serão alfabetizadas (Ferreiro, 1996:28). Para alguns estudiosos, 6-15, Buenos Aires/Newark-Delaware, IRA.
a leitura e a escrita eletrônica dão à alfabetização uma perspectiva
totalmente nova, uma vez que muda a natureza física e visual do
texto escrito, que era o que lhe conferia estabilidade e assegurava seu
controle total pelo autor (Bolter, 1991 e Landow, 1992, apud Álvarez,
3
1998: 52). O uso de tecnologias de computador na leitura e na escrita ainda é recen-
te, não chegando a 4 décadas (Kamil, 2000: 772)

436 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


ENDE, Michael (1985). A História Sem Fim. São Paulo, Martins KAMIL, Michael L. et. al. (2000: 771-788). “The Effects of Other
Fontes, Editorial Presença. Technologies on Literacy and Literacy Learning”.In:
FEBVRE, Lucien e MARTIN, Henry-Jean (1992). O Aparecimento KAMIL, M.L. et. al.(editors). Handbook of Reading Research
do Livro. São Paulo, Unesp/Hucitec. Vol. III. Mahwah/NJ, LEA.
FERREIRO, Emilia (1996). “La Revolución Informática y Los LEU Jr., Donald J. (2000: 743-770). “Literacy and Technology:
Procesos de Lectura y Escritura”. In: Lectura y Vida – Revista Deictic Consequences for Literacies Education in na Information
Latinoamericana de Lectura, Año XVII, no. 4, diciembre Age”. In: KAMIL, M.L. et. al.(editors). Handbook of Reading
1996:23-30, Buenos Aires/Newark-Delaware, IRA. Research Vol. III. Mahwah/NJ, LEA.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 437


Mensagens em secretárias eletrônicas:
um caso típico de oralidade secundária
Stella Maria Miranda Vieira
Universidade Federal de Pernambuco– UFPE
Universidade Estadual de Ceará - UECE

ABSTRACT: Based on the conception that orality and literacy are not a simple dichotomy, this paper analyses 20 messages recorded by an
answering-machine as an example of what was called ‘secondary orality’ by Ong (1982). The aim of the study is to identify how the lack of spatial
and temporal commonality affects the message.
PALAVRAS-CHAVE: oralidade secundária, secretária eletrônica, papel da audiência.

Introdução Uma das diferenças (talvez a mais importante) entre a escrita e


a fala típicas, pontos extremos do contínuo sugerido por Tannen
Os avanços tecnológicos, como ressaltam Ong (1982) e (ibid:3), diz respeito ao papel da audiência. No caso da primeira, o
Halliday (1989), modificaram a maioria dos conceitos tradicionais destinatário da mensagem não está presente ao processo de elabora-
sobre as características da escrita e da fala, já que alguns tipos de fala ção da mesma, portanto, normalmente, não tem acesso às
assumiram características que costumavam ser atribuídas à escrita. reformulações, reestruturações e mudanças de rota que ocorrem antes
Ong (1982:136-137) criou o termo “oralidade secundária” para de- que se atinja o produto final. Dependendo do nível de formalidade da
signar esses novos tipos de oralidade que resultaram do progresso situação, do tempo disponível e do temperamento do escritor, há uma
tecnológico e que são, segundo ele, “profundamente enraizados na maior ou menor distância entre o primeiro rascunho e a forma final a
escrita”. Ele dá o exemplo dos discursos políticos transmitidos pela que o destinatário tem acesso. No caso da conversa espontânea, as
TV, em que o emissor não recebe feedback dos telespectadores a marcas de hesitação, reformulações e falsos inícios, embora aparentes,
quem ele se refere como “audiências incomensuravelmente maiores passam praticamente despercebidos pelo interlocutor, cuja atenção
mas inaudíveis”. está focalizada no conteúdo da mensagem.
A comunicação via secretária eletrônica, objeto deste estu- É importante chamar a atenção para a gradação entre os dife-
do, é um caso muito evidente de oralidade secundária. O que me rentes tipos de audiência quanto à maneira de estar presente. Na
interessa no presente trabalho são as maneiras como os aspectos interação face a face, a linguagem corporal tem papel importantíssi-
característicos da experiência comunicativa de deixar mensagem em mo: expressão facial, contato visual e gestos fornecem um tipo de
secretária eletrônica afetam a estrutura da mensagem produzida. feedback, que por ser imediato, pode influir no próprio curso da
mensagem. Além disso, o fato de os interlocutores compartilharem o
Os estudos de oralidade e escrita mesmo espaço físico (cf. Rubin, ibid) possibilita uma formulação
menos explícita, com o recurso a referências exofóricas.
No que se refere à questão fala x escrita, a tendência mais Um passo adiante no contínuo, em direção à escrita típica,
recente consiste em considerar tal distinção, antes vista como uma temos a conversa telefônica, semelhante à interação face-a-face, exceto
simples dicotomia, em termos de fatores multidimensionais como em pelo fato de que os interlocutores estão deslocados no espaço e, por-
Rubin (1980) e Biber (1988). Rubin (ibid), chama a atenção para o tanto, a linguagem corporal perde sua função. No caso das mensagens
fato de que as diferenças entre diferentes tipos de fala e diferentes registradas por secretárias eletrônicas, além do distanciamento espa-
tipos de escrita podem ser maiores que a simples distinção de moda- cial, característico do meio telefônico, há o deslocamento temporal,
lidade (fala x escrita) e propõe uma taxonomia em que esta é apenas pois o destinatário, normalmente, não escuta a mensagem ao mesmo
uma das várias dimensões contrastivas. tempo em que esta é emitida.
Chafe (1982) propõe dois eixos de diferenciação, segundo os
quais a escrita é integrada e envolvida e a fala, fragmentada e distan- Metodologia
ciada. Embora esses eixos sejam estabelecidos em termos dicotômicos,
Chafe se mostra consciente de que os tipos de fala e escrita que ele Para fins de coleta de dados para esta pesquisa, determinei que
compara (a escrita acadêmica e a conversa espontânea) são tipos durante aproximadamente um mês, na parte da tarde, ninguém aten-
maximamente diferenciados, admitindo, portanto, a possibilidade de desse o telefone em minha casa. Esta minha recomendação nem sem-
resultados diferentes numa comparação entre tipos de fala mais for- pre foi seguida, pois quando alguém estava esperando um telefonema
mais e tipos de escrita mais informais. importante, não admitia correr o risco de que a pessoa não quisesse
Mais recentemente, ainda na linha de reação contra a visão do deixar mensagem. Quando atingi o número de 20 mensagens gravadas
contraste oral/escrito como uma dicotomia simples, Marcuschi e transcritas, procedi à análise das mesmas.
(1995:13-14), a partir de uma perspectiva sócio-interacionista que O ponto de partida para a análise foi a seqüência de passos que
ele compartilha com outros autores brasileiros como Koch (1992) e considero uma estrutura convencional de mensagem de reação à secre-
Preti (apud Marcuschi 1995), propõe um “contínuo tipológico de tária eletrônica. Tal estrutura contém os seguintes passos: (a)
práticas sociais de produção textual” que em muito se assemelha ao endereçamento, (b) auto-identificação, (c) declaração do motivo da
contínuo proposto por Tannen (1982). O contínuo de Tannen tem chamada e (d) fechamento.
numa das extremidades “estratégias orais” e na outra, “estratégias Na transcrição, a fim de preservar, enquanto possível, a pri-
letradas” que ela define, respectivamente, como aqueles tipos de vacidade das pessoas envolvidas, os nomes das mesmas foram subs-
estratégias tradicionalmente associados à oralidade e aqueles tradici- tituídos por nomes fictícios. Preferi utilizar a pontuação convencional
onalmente atribuídos à escrita. da língua portuguesa que, na minha opinião, torna mais fácil a

438 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


reconstituição da entonação pelo leitor, e procurei limitar ao mínimo o nós tamos devendo a ela, pra poder... colocar hoje no cor/ no
uso de convenções especiais. São estas (1) o uso de sublinhamento no banco. Mas a gente queria que cê desse a resposta logo,
indicando aumento de volume da voz, (2) reticências para indicar porque nós vamos para... nós vamos sair antes de nove. Obri-
pausas, (3) dois pontos para marcar alongamento de sons e (4) linha gada. Iara.
tracejada entre parênteses (——) para indicar trecho ininteligível. O Esta última mensagem também me chamou a atenção pela sua
uso de parênteses duplos são usados para comentários meus, portan- semelhança com o gênero escrito bilhete no que se refere à auto-
to, não fazem parte da transcrição. Reticências entre parênteses nos identificação que vem no fechamento, como uma assinatura.
exemplos indicam que parte da transcrição foi omitida. Nas mensagens produzidas por membros da família, a auto-
identificação é quase sempre omitida, por ser considerada supérflua,
Discussão dos resultados como também o fechamento é, muitas vezes, dispensado, ficando a
mensagem reduzida à explicação do motivo da chamada. Encontrei,
Além das 20 mensagens efetivamente gravadas, por 5 vezes, pois, 9 casos de nenhuma menção à própria identificação e 3 ocorrên-
durante o período de coleta dos dados, a secretária foi acionada sem cias de “Sou eu”, que é uma maneira de explicitar a não necessidade de
que fosse deixada mensagem. Numa dessas vezes, a pessoa voltou a identificação. O resultado é, portanto, de 60% de casos de omissão da
ligar, desta vez para meu celular. Esta é uma indicação clara de um auto-identificação.
elemento comum a todas as experiências de uso de secretária eletrôni- Em 2 das mensagens, a auto-identificação está embutida na
ca, ou seja, a frustração de não poder falar com uma determinada explicação do motivo da chamada como nos exemplos a seguir:
pessoa num momento específico. As reações diante da necessidade de Ex.11: Pede aí uma das meninas pra ligar pra Lúcia, a mãe do
deixar uma mensagem gravada são, geralmente, de desagrado, sendo Mauro. Obrigada.
uma das mais comuns a de simplesmente desligar o telefone. Dentre as Ex.12: Dr. João! Ligue para Pedro Vieira. 9968 8333. Obrigado.
mensagens gravadas, destacarei 5 que transmitem, em diferentes graus, Nas mensagens de relacionamento profissional ocorreu não
a irritação diante da impossibilidade de interação imediata. Estas men- só a auto-identificação como a identificação da empresa, ou referência
sagens são de membros da família cujo grau de intimidade permite à relação de trabalho, como nos exemplos seguintes:
expressar esse tipo de reação. Transcrevo abaixo em ordem crescente Ex.13: Aqui é Vilma, da Citrus.
de irritação as referidas mensagens. Ex.14: É Carla, do Britanic.
Ex.1: Sou eu. Preciso falar com a Neide. Digam a ela pra ligar Ex.15: É Ana, cliente de Neide.
pra mim. No exemplo 16, a funcionária não se identifica, mas identifica a
Ex.2: Sou eu! Liga pra mim, por favor, alguém aí! Eu quero falar empresa:
com a Neide. Ex.16: Por favor, ligar com urgência para a central de atendi-
Ex.3: Sônia! Atende aí, que eu preciso falar contigo! mento da Embratel. Número 33018127. Responsável, Marta
Ex.4: É, eu preciso que alguém me atenda, né? Vê aí quem é que de Souza ((nome da assinante)). Obrigada.
tá me me escutando, pra me atender, que eu preciso falar com O exemplo 17 (empregada doméstica justificando falta ao tra-
alguém. Tchau. balho) é uma exceção:
Ex.5: Dá pr’alguém atender o telefone por favor? Ex.17 – Alô! ....... É porque.... Dona Sônia? É porque eu num
Quanto à estrutura das mensagens, constatamos que apenas as vou poder ir hoje não. Que a Renata tá com dor de ouvido. Só
de tipo institucional ou referentes a relações profissionais, seguem tou avisando.
todos os passos esperados, como no exemplo 6, que se segue. Quanto ao fechamento, podemos dizer que “Obrigado(a)” foi o
Ex.6: Sêo João ((endereçamento)), aqui é Vilma da Citrus ((auto- mais freqüente, com 45% de ocorrência, seguido da total ausência de
identificação)). ..... É p’ra ligar para o Hotel Golden (——)..... fechamento em 30% das mensagens. Os 25% restantes dividiram-se
Ligue para a Citrus, para me dar uma resposta ((declaração do entre “Tchau”, “Tchau um beijo” e “Um beijo”.
motivo)). Obrigada ((fechamento)). A declaração do motivo da chamada, que constitui o cerne da
Com respeito ao endereçamento das mensagens analisadas, a mensagem, apresenta-se no presente estudo de 3 maneiras diferentes
constatação é que, de um modo geral, o mesmo independe do emissor que denominarei de (a) adiamento, (b) substituição e (c) iniciação. O
da mensagem de abertura, pois, na metade dos casos, a fala foi dirigida adiamento do evento comunicativo pretendido foi o comportamento
diretamente à pessoa com quem se pretendia falar enquanto na outra mais freqüente, ocorrendo em 45% das mensagens, e pode ser obser-
metade, exceto em um dos casos, subentende-se um endereçamento vado nos exemplos 16 e 17 abaixo.
genérico, do tipo “Quem quer que me ouça...” como nos exemplos 6 Ex.18: Lúcia? É Carla, do Britanic. Quando você puder dê uma
e 7 a seguir. ligada pra mim. Tá? Obrigada.
Ex.7: Só queria saber se se lembraram de reativar a hotlink. Ex.19: É::: bom di:a. É Ana, cliente de Neide. Que eu gostaria
OK? Tchau. de dar uma palavrinha com ela. Obrigada.
Ex.8: Sou eu. Isa e Lúcia vão. Eu acho que num vou não. Ligue Em 30% das mensagens identificamos a tentativa de realizar a
pra elas. Obrigado. tarefa comunicativa de modo substitutivo, a fim de evitar novo telefo-
A exceção à tendência genérica dos endereçamentos implí- nema, como se pode ver no exemplo 17 acima e no exemplo 20 a
citos é um caso em que a voz do emissor da mensagem de abertura é seguir..
levada em conta no exemplo 9 abaixo. Ex.20: Dona Sônia! Sêo João! Fernando. Tou ligando só
Ex.9: Telefonamos pra lhe desejar um Feliz Aniversário. Onde pr’avisar que eu vou ficar aqui até tarde de novo. É:: .. alguém de vocês
é que você anda? ((Segue-se um comentário meta-comunicativo dá o dinheiro da passagem de Vera, quando eu chegar a gente resolve.
dirigido a uma terceira pessoa)) É ele mesmo, é a voz dele. Não Tou com o dinheiro já aqui. Tchau.
podemos atender. Deixe seu recado. O terceiro tipo de comportamento, a que chamei de iniciação,
Houve ainda outra mensagem (Ex.10), em que o telefonador ocorreu em apenas 3 das mensagens (15%) e consiste em iniciar a
dirigiu-se à pessoa cuja voz reconheceu na mensagem de abertura, troca comunicativa, indicando a necessidade de “feedback” posteri-
pedindo-lhe que transmitisse o recado a uma terceira. or, como nos exemplo 6, já citado, e no exemplo 21 a seguir.
Ex.10: João, diga a Sônia, que o Hélio quer saber, quanto é que Ex.21: Fernandinho! É Bete. Eu preciso falar com você, meu

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 439


filho. Sobre:: esse problema da da da intimação. Eu num sei: eu a ligação escuta uma mensagem planejada e editada e deve responder a
vou tentar pro Jornal. (——) eu vou ligar pra você mais tarde. esta “on-line”, sem possibilidade de planejamento e sem o “feedback”
Um beijo. imediato e intenso que caracteriza as conversas telefônicas. Em
Um outro aspecto revelado pela análise dos dados foi a presen- contrapartida, tal mensagem será ouvida em condições mais próximas
ça explícita do elemento meta-comunicativo em 30% das mensagens, de uma situação de leitura, já que o receptor pode ouvi-la repetidas
como exemplificado abaixo, que vejo como um indicador de que o vezes e não tem a responsabilidade de fornecer uma resposta imedia-
falante tem consciência do caráter substitutivo do evento de fala em ta. Cria-se, portanto, uma posição bastante vulnerável, desconfortável
questão. mesmo, para a pessoa que faz a chamada.
Ex.22: (...) Só p’ra dizer que a gente já chegou, a viagem foi O estudo aqui relatado tem características embrionárias; com
ótima, (...) um corpus maior e mais variado seria possível investigar outros as-
Ex.23: (...) Só tou avisando. pectos que nos meus dados não são conclusivos, demandando uma
Ex.24: (...) Tou ligando só p’ravisar que eu vou ficar aqui até investigação mais aprofundada. Um deles é a tentativa de simular um
tarde de novo. (...) contexto mais interativo, mais semelhante a uma conversa telefônica,
Ex.25: Telefonamos pra lhe desejar um Feliz Aniversário. (...) através da entonação interrogativa do endereçamento da mensagem,
muito comum nesse tipo de conversa, quando o telefonador quer
Considerações finais confirmar seu reconhecimento da voz que atende à chamada, e de
outros marcadores também interrogativos como o que ocorre no exemplo
O que emerge de minhas observações é um tipo de fala em abaixo como um pré-fechamento da mensagem.
muito semelhante ao gênero escrito bilhete, muito dependente de co- Ex.26: Lúcia? É Carla, do Britanic. Quando você puder, dê uma
nhecimento compartilhado e com poucas disfluências (pausas e ou- ligada pra mim. Tá? Obrigada.
tros marcadores de hesitação). A ocorrência reduzida de disfluências
pode estar relacionada à ausência de “feedback” da parte do receptor, Referências bibliográficas
como também ao fato de que o tempo de gravação de cada mensagem
é limitado. BIBER, D. Variation across Speech and Writing. Cambridge:
A tarefa comunicativa de utilizar secretária eletrônica des- Cambridge University Press, 1988.
perta, com muita freqüência, uma atitude de rejeição por parte do CHAFE, W. Integration and Involvement in Speaking, Writing and
telefonador. Na minha interpretação, a relutância em deixar mensagem Oral Literature. In: TANNEN, D. (ed) Spoken and Wrtitten
gravada em secretária eletrônica é uma decorrência de ter que produzir Language: Exploring Orality and Literacy, 1982, pp. 35-53.
em tempo-real, portanto, sem possibilidade de planejamento, uma HALLIDAY, M. A. K. Spoken and Written Language. Oxford: Oxford
mensagem que será ouvida como produto, com uma característica de University Press, 1985.
permanência que não é atributo da oralidade típica. O grau de compro- __________ & HASAN, R Language, Context and Text: Aspects of
misso com o que é dito numa mensagem gravada é incomparavelmente Language in a Social-Semiotic Perspective. Oxford: Oxford
maior do que com aquilo que faz parte de uma conversa face-a-face, ou University Press,1989.
mesmo de uma conversa por telefone. Além disso há a possibilidade KOCH, I. A Inter-Ação pela Linguagem, São Paulo: Contexto, 1992.
de que o receptor da mensagem focalize aspectos formais da mesma, MARCUSCHI, L. A. Oralidade e Escrita. Conferência de abertura do
o que não ocorre numa interação oral espontânea, cujo processamento II Encontro Franco- Brasileiro de Ensino de Língua, (mimeo)
“on line” impõe um tipo de atenção seletiva, que põe em segundo UFRN, 1995.
plano as disfluências tão comuns na fala espontânea. ONG, W. J. Orality and Literacy: The Technologizing of the word.
A mensagem de abertura da secretária eletrônica, que é emi- London: Methuen, 1982.
tida sempre que não se pode, ou não se quer, atender o telefone, é RUBIN, A. A theoretical taxonomy of the differences between oral
bastante diferente das mensagens recebidas. É uma mensagem plane- and written language. In: SPIRO, R. J., BRUCE, B.C. and
jada e que passa por um processo de edição que só termina quando o BREWER, W. F. (eds) Theoretical Issues in Reading
emissor está satisfeito com sua forma. Comprehension, New Jersey: L. Erlbaum, 1980, pp. 411-438.
Há, portanto uma pronunciada desigualdade de condições TANNEN, D. Spoken and Written Language: Exploring Orality and
entre os dois participantes dessa pseudo-interação. A pessoa que faz Literacy. Norwood, N.J.: Ablex, 1982

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A toponímia como representação
da realidade regional
Marlene Schneider
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul - UFMS (Pós-graduação)

ABSTRACT: This work aims at presenting an analysis of the toponymy of the Pantanal region in Mato Grosso do Sul state. The study of toponymy, in which
the physical and cultural environment is represented, is very important.
PALAVRAS-CHAVE: toponímia, realidade regional.

O estudo da Toponímia1 é de suma importância para o conhe- de de valores, representando a realidade do grupo social. Pode-se
cimento da realidade social, histórica, econômica, política e geográ- dizer que a recuperação de aspectos extralingüísticos torna-se im-
fica de uma comunidade, uma vez que através do estudo das desig- prescindível para a explicação da motivação que deu origem à maio-
nações atribuídas aos lugares, pode-se recuperar aspectos subjacentes ria dos topônimos do corpus analisado neste trabalho.
à realidade nomeada. Partindo desse princípio, este trabalho apre- Na análise da toponímia do Pantanal sul-mato-grossense, to-
senta resultados parciais de uma pesquisa mais ampla acerca da mamos como hipótese o pressuposto de que devido a imensa riqueza
toponímia do Pantanal sul-mato-grossense e objetiva estabelecer a ambiental peculiar do Pantanal, a realidade local seria retratada nas
relação entre língua/cultura no processo de nomeação de acidentes denominações dos acidentes físicos da região pantaneira.
físicos da região, como as baías, corixos, córregos, rios e vazantes. Os dados para a realização deste trabalho foram obtidos atra-
A ação de nomear as coisas sempre esteve presente na huma- vés de consulta às cartas cartográficas elaboradas pelo Ministério do
nidade. Anteriormente a uma geografia humana (país, estado, muni- Exército no ano de 1979, na escala 1:1250 e a livros que focalizam
cípio, distrito, bairro) existiu uma geografia física com característi- aspectos histórico-geográficos do Pantanal.
cas específicas, de acordo com as peculiaridades locais (hidrografia, O Pantanal sul-mato-grossense situa-se aproximadamente en-
orografia, vegetação). Juntamente com os elementos físicos, há tam- tre os paralelos 18° e 21° e os meridianos de 55° e 58°, à Noroeste do
bém os elementos de ordem sociocultural influenciando e determi- Estado do Mato Grosso do Sul, limitando-se com a Bolívia e o
nando a vida do homem nesse ambiente. Segundo Salazar-Quijada Paraguai, Mato Grosso e o Planalto Central Brasileiro. A área do
(1985: 09) Pantanal é plana, com altitudes que não ultrapassam os 200 metros
acima do nível do mar com declives entre os extremos norte e sul de
“o mais antigo tesouro da lingüística e de outras realidades 3 centímetros por quilômetro. Devido a essa característica, dois ter-
que não hajam prescrito, encontram- se na toponímia. Os no- ços de seu território se transformam periodicamente em imensas la-
mes de muitos acidentes geográficos, de todo o mundo pro- goas que impõem os hábitos da população e da fauna local.
vêm de épocas nas quais, o homem não conhecia a escritura A região foi alcançada por uma expedição branca pela primei-
em nenhuma de suas formas. Estes nomes chegaram a nós por ra vez no século XIV. Como estava inundada, recebeu o nome de
tradição oral.” “Mar de Xaraiés, em homenagem a uma tribo de índios com esse
nome, da família dos guarani. No entanto, descobriu-se depois, a
Tradicionalmente a toponímia era definida como o estudo da inexistência do mar . Atualmente é conhecido como Pantanal, cuja
origem e significação dos nomes de lugares. Devido à limitação des- denominação também é considerada inadequada, de acordo com
se conceito, atualmente na conceituação da toponímia são valoriza- Calheiros, Fonseca (1996: 19), “... pois a área não exibe característi-
dos tanto a etimologia, como o aspecto humano. Conforme as afir- cas de pântano, mas engloba um conjunto de diferentes feições, de
mações do estudioso do assunto Salazar-Quijada, a toponímia é o denominação tipicamente regional, cuja existência é reconhecida pelos
“...ramo da Onomástica que se ocupa do estudo integral, no espaço e pantaneiros e corroborada pelos pesquisadores”. A autora cita as
no tempo, dos aspectos geo-históricos, sócio-econômicos e antropo- baías, os corixos, os córregos e as vazantes, entre outros, como for-
lingüísticos que permitiram e permitem que o nome de um lugar se madores da geografia pantaneira. A caracterização do Pantanal em
origine e subsista” (1985: 18). 11(onze) sub-regiões, é devido a existência dessas feições regionais,
Apesar de o signo toponímico estar inserido entre os demais associadas a aspectos geopolíticos. (Silva, apud Calheiros, 1996:19).
signos no sistema lingüístico, há algumas diferenças que precisam ser É importante ressaltar que as sub-regiões de Cáceres, Poconé,
consideradas. Primeiramente, sua função é identificar e não significar. Barão de Melgaço localizam-se no Estado do Mato Grosso, tendo
Além dessa identificação, seu estudo fornece subsídios para a mani- como ponto de divisa o Rio Correntes, enquanto as sub-regiões do
festação de índices da realidade regional. Outro aspecto de grande Paiaguás, Nhecolândia, Abobral, Miranda, Aquidauana, Nabileque,
relevância do signo toponímico é a questão da presença da motivação, Porto Murtinho e Paraguai pertencem ao Estado do Mato Grosso
pois, de maneira geral, ele é estimulado pela realidade circundante, do Sul.
valorizado pelo denominador no momento da nomeação. Ao analisar-se a toponímia do Pantanal, verifica-se, em um
Assim, de acordo com a realidade de cada comunidade, há a primeiro momento, a manifestação da realidade peculiar do
escolha por determinadas maneiras de se expressar. Conforme o lin- ecossistema pantaneiro já nas próprias designações atribuídas aos
güista Sapir (1969: 20), “...a trama de padrões culturais de uma civi-
lização está indicada na língua em que essa civilização se expressa
(...) a linguagem é um guia para a realidade social”. Salienta-se, 1 - A Toponímia é a disciplina que se ocupa com o nome de lugares e faz
assim, a interdependência entre fatores lingüísticos, culturais e soci- parte da Onomástica. Além da Toponímia, a Onomástica também envolve
ais. Nessa perspectiva, os topônimos, como integrantes do léxico e em seus estudos a Antroponímia, que estuda o nome de pessoas. (Salazar-
conseqüentemente da língua, podem representar toda uma infinida- Quijada, 1985: 15).

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 441


acidentes físicos da região, como por exemplo, vazante, que é registra- conhecido por suas idéias republicanas. (Mendonça,1971: 111). As-
do no Dicionário Aurélio (2000), dentre outras acepções, como um sim, infere-se que a designação de Rio Miranda para o acidente geo-
brasileirismo de MT2 no sentido de “campo alagado por águas de gráfico pode ter representado uma homenagem a essas celebridades
chuva”. Calheiros, Fonseca (1996: 19) complementa a explicação an- históricas.
terior definindo as vazantes como “escoadouros naturais da água Assim, ao observar-se as designações toponímicas agrupadas
na época das enchentes, com características de curso fluvial intermi- aos vários campos, pode-se verificar que a língua sofre influências do
tente, com vários quilômetros de extensão”. Já Carvalho, (apud Be- quadro ambiental em que se acham os falantes. No entanto, tal influên-
zerra, Chaparro, Peixoto 1997: 12) conceitua esse acidente geográfi- cia só acontece no momento em que o grupo valoriza um elemento e o
co como “largas depressões situadas entre as cordilheiras, não apre- reporta à língua. Por exemplo, a simples existência de uma espécie de
sentando um canal definido” e Ponce, (apud Bezerra, Chaparro, Pei- animal, vegetal ou outro aspecto físico não é suficiente para que surja
xoto 1997: 12) também observa que “durante a estação das cheias, um signo correspondente. É necessário que os falantes da língua dêem
essas depressões drenam riachos intermitentes, se estendendo por importância ao fator físico. Ressalta-se, dessa maneira, também a im-
vários quilômetros. Todavia, muitas vazantes são perenes, revelando portância do fator social do ambiente em que o grupo está inserido na
a presença de uma substancial vazão de subsuperfície”. Nota-se pe- forma de nomeação dos elementos da realidade.
las definições apresentadas que a unidade lexical vazante nomeia Nesse sentido, o signo toponímico é o que mais nitidamente
um acidente físico representativo da realidade físico-geográfica da reflete o ambiente físico e social dos falantes. Desta forma, podemos
inferir que, em grande parte, o caráter do ambiente físico e as caracte-
região pantaneira.
rísticas do povo pantaneiro, que valoriza a imensa riqueza ambiental
Já o item lexical córrego designa na região pesquisada um ri-
regional em que vive, são incorporados na toponímia local. Assim,
beiro de pequeno caudal; riacho, um brasileirismo, segundo o Dicio-
através da análise dos zootopônimos, fitotopônimos, hidrotopônimos
nário Aurélio (2000). Baía, por sua vez, é o nome “atribuído às pe-
e historiotopônimos de acordo com a taxionomia adotada por Dick
quenas lagoas temporárias ou permanentes de formas circulares, se-
(1992: 31-34) obtém-se uma amostra da diversidade da fauna e da
micirculares ou irregulares, muito características do Pantanal” flora regional, além das características físicas e dos aspectos históri-
(Calheiros, Fonseca, 1996: 19). O Dicionário Aurélio (2000) cos da região e chega-se ao estabelecimento da correspondência entre
complementa essas informações ao registrar a acepção “canal para o nome do lugar e a condição ambiental determinativa. Um designativo
escoamento de pântano” para a unidade lexical baía. comum da língua passa à categoria de topônimo, como ilustram os
Outro acidente físico típico da região pantaneira é o designado topônimos Córrego Baguari, Córrego Anhuma, Vazante da Garça e
pelo item lexical corixo, ou seja, “pequenos cursos fluviais, de leito Corixo Sabiá que recuperam denominações atribuídas a aves que pas-
próprio que ligam baías próximas a canais mais estreitos e profun- saram à categoria de topônimos. Fenômeno similar ocorre com os
dos” (Calheiros, Fonseca, 1996: 19). De acordo com o Dicionário fitotopônimos, como Córrego das Flores, Córrego Jatobá, Vazante
Aurélio (2000), corixo é um brasileirismo de Goiás e do Estado do Aguaçu, Vazante Caraguatá que retomam aspectos da flora, descre-
Mato Grosso no sentido de “canal por onde as águas das lagoas, dos vendo a realidade ambiental regional através da retomada do nome de
brejos ou dos campos baixos se escoam para os rios vizinhos”. árvores e flores, ou seja, uma retomada do conjunto da vegetação
Como já foi registrado, este trabalho focaliza a análise de existente no Pantanal do Mato Grosso do Sul.
topônimos que nomeiam vazantes, córregos, baías, corixos e rios da Também os hidrotopônimos representam a riqueza das águas,
região pantaneira. Para tanto, os dados foram organizados em torno de cujo vaivém nasce toda a riqueza ambiental do Pantanal, ou seja,
dos seguintes campos léxicos3 : fauna, flora, hidrografia e história. das enchentes periódicas do Pantanal advém a tipicidade dos aci-
Desta forma, agrupados ao campo léxico da fauna pode-se ci- dentes geográficos presentes na região: corixo, vazante, brejo e rio.
tar, entre outros, os seguintes topônimos que recuperam nomes de Essas designações são novamente retomadas para nomear o próprio
animais típicos da região: Corixo dos Cavalos, Corixo Jacaré, Corixo acidente físico hidrográfico em estudo, como Vazante do Corixão,
Jaguatirica; Córrego Piranha, Córrego Anhuma, Córrego Jibóia, Vazante do Riozinho, Vazante do Brejão. Essas denominações co-
Córrego Sucuri e Córrego Piranema; Vazante do Bugio, Vazante muns de acidentes hidrográficos também passaram à categoria de
Capivara e Vazante da Garça e o Ribeirão Caracol. topônimos. O mesmo acontece com o historiotopônimo acima cita-
Já o campo léxico da flora reuniu, por exemplo, topônimos do, Rio Miranda, que homenageia personalidades históricas do final
como: Corixo do Cerrado; Córrego Buriti Vermelho, Córrego das do século XIX, cuja memória é lembrada e retomada através da
Flores, Córrego Jatobá e Córrego Tarumã; Vazante Aguaçu, Vazan- Toponímia.
te Angical, Vazante Cambará, Vazante Caraguatá e Vazante Taquari. Frente ao exposto, vale retomar à guisa de conclusão, o pensamen-
Importante registrar a grande produtividade de topônimos rela- to de Lévi-Strauss, (apud Dick 1990: 263), segundo o qual “não basta a
cionados a esses dois primeiros campos, fato justificável pelas própri- identificação de cada animal, planta ou qualquer outro fenômeno, é preci-
as características da região pantaneira em termos de fauna e de flora. so saber qual é o papel que cada cultura lhe atribui dentro do sistema de
Ao campo léxico relativo à hidrografia, por sua vez, foram significações”. Assim, vale ressaltar que o recorte da toponímia do Pan-
agrupados topônimos que remetem a aspectos hidrográficos do Pan- tanal sul-mato-grossense tomado como objeto de análise forneceu-nos
tanal, como brejos, corixos, baías, rios, córregos que possuem em mostras da presença da interdependência entre língua e cultura na forma
comum o traço distintivo água: Córrego Baía das Amoreiras e de designação dos acidentes físicos da região.
Córrego Valinho; Vazante do Brejão, Vazante do Corixão, Vazante
do Corixinho e Vazante do Riozinho.
2 Registre-se que a marca dialetal MT pode também estender-se, por ora,
Na seqüência, temos o campo léxico referente à história que para a realidade de MS, devido à não consolidação da divisão do Estado do
reuniu menos topônimos. Cita-se como exemplo, o Rio Miranda, MT em MT e MS, no ano de 1979, assim como também à posição geográ-
cujo nome também designa um pantanal e uma cidade do Estado de fica do Pantanal que está localizado tanto no MT como no MS.
Mato Grosso do Sul. A história do Estado de MT registra a presença 3 Adota-se neste trabalho, a definição de campo léxico do lingüista Eugênio
de duas personalidades que se destacaram no cenário político do es- Coseriu. Segundo esse lingüista, campo “é do ponto de vista estrutural,
tado: o Senador João Antônio de Miranda, terceiro senador pela Pro- um paradigma léxico que resulta da repartição de um conteúdo léxico con-
víncia de Mato Grosso; e o primeiro juiz de Direito da Comarca de tínuo entre diferentes unidades dadas na língua como palavras e que se
Cuiabá durante a Guerra do Paraguai, Pascoal Domingos Miranda, opõem de maneira imediata umas as outras, por meio de traços distintivos
mínimos.” (Coseriu, apud Isquerdo, 1996: 102).

442 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


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Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 443


Arcaísmos e regionalismos na obra de Hélio Serejo
Neide Araújo Castilho Teno
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul - UFMS

ABSTRACT: This paper discusses the question of archaisms and regionalisms on Helio Serejo’s linguistic works and it also analyses some works employed
by the author which evidentiates by the archaic and regionalist aspects of the language.
PALAVRAS-CHAVE: arcaísmo, regionalismo

Entende-se que o léxico de uma língua é a soma de toda a expe- por longo tempo.
riência sociolingüística cultural de uma comunidade. Os membros des- O presente trabalho apresenta resultados preliminares de uma
sa comunidade funcionam como sujeitos perpetuadores ou transfor- pesquisa, ainda em andamento, sobre a questão dos regionalismos na
madores do léxico por isso são os usuários da língua que criam ou obra do escritor sul-mato-grossense Hélio Serejo (HS)2 . Focalizando
conservam o vocabulário dessa língua. Nesse sentido, o léxico é o nível temas regionais como a vida e as atividades dos peões de boiadeiros,
lingüístico que melhor registra as mudanças sociais, culturais ocorri- dos ervateiros, dos caboclos, o autor registra hábitos culturais e
das na sociedade, razão por que é considerado “o patrimônio social da lingüísticos da região da fronteira Brasil/Paraguai e, para tanto, vale-se
comunidade por excelência, juntamente como outros símbolos da he- de uma linguagem permeada de unidades lexicais e expressões que
rança cultural. Dentro desse ângulo de visão, esse termo léxico é trans- deixam transparecer tanto a influência das línguas em contato nessa
mitido de geração para geração como signos operacionais por meios faixa da fronteira - português, espanhol e guarani – como dos vários
dos quais os indivíduos de cada geração podem pensar e exprimir seus processos migratórios que trouxeram para região povos oriundos de
sentimentos e idéias” (Biderman, 1981: 132). diferentes estados brasileiros. Nessa comunicação, discutiremos aspec-
Assim, pode-se observar no léxico de determinados grupos tos do vocabulário empregado por HS, nas obras “De galpão em galpão
sociais lexias que representam diferentes momentos da história da (GG)”, “O tereré que me inspira (TI)”, “Balaio de bugre especial (BBE)”,
língua. A língua portuguesa no Brasil, por exemplo, reúne em seu “Vida de Erval (VE)” e “Caraí Ervateiro” (CE)3 , destacando-se parti-
léxico unidades lexicais que revelam tanto nuances da língua do co- cularmente a questão dos arcaísmos/regionalismos.
lonizador quanto de línguas de povos nativos. Em vista disso, no Para o presente estudo, foram selecionadas unidades lexicais
léxico de uma língua é freqüente a presença de “marcas” regionais que demonstram tendências quanto ao tipo de vocabulário utilizado
que configuram a norma de uma determinada região. Norma esta aqui por HS.
sendo “entendida como costume, a tradição continuada que se verifi- Na análise das unidades lexicais selecionadas tomamos como
ca nos hábitos lingüísticos de uma comunidade” (Pires de Oliveira, referência o sentido atribuído pelo autor às lexias e os dados obtidos
1998: 107). No nível do léxico, essas particularidades regionais são através da consulta a dois dicionários: Novo Aurélio o Dicionário da
denominadas de regionalismos. Essa questão do regional suscita Língua Portuguesa séc. XXI, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira,
questionamentos quanto ao ponto de referência. O vocábulo é regio- 1999 (AB) e o Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa,
nal de qual região? É regional com relação a que falar? Biderman de Caldas Aulete, 1964 (CA). Foi consultado também o Dicionário
(1998: 134) , adaptando o conceito de regionalismo proposto por de Regionalismos do Rio Grande do Sul, de Nunes e Nunes, 2000
Boulanger (1985), registra que o regionalismo pode ser definido (NN) para complementação de informações.4
como: Assim, do conjunto do vocabulário já levantado das obras
“...qualquer fato lingüístico (palavra, expressão ou seu senti- pesquisadas, tomou-se como objeto de estudo 13 lexias que foram
do) próprio de uma ou de outra variedade regional do portu- agrupadas segundo os seguintes critérios: influência indígena – cunhã,
guês do Brasil, com exceção da variedade usada no eixo caraí e curuba; influência espanhola – assoleado, invernada e
lingüístico Rio/São Paulo, que se considera como o português arranchamento; marcas de conservadorismo – atoleimado, avoen-
brasileiro padrão, isto é, a variedade de referência e com ex- gos, procela e longeva; regionalismos locais – mineiro, habilitado e
clusão também das variedades usadas em outros território barbaquazeiro.
lusófonos”. Iniciando a análise do primeiro grupo, o que reúne lexias que
É importante mencionar, ainda, o conservantismo dos textos denotam a influência indígena, temos a lexia cunhã que é registrada
históricos e literários da língua, uma vez que encontramos neles ter- por AB como mulher, jovem e por CA, com acepção de a mulher do
mos arcaicos. Na literatura sul mato-grossense, por exemplo, obser- caboclo. E é justamente nessa acepção de mulher que a lexia aparece
va-se autores cujas obras evidenciam essa questão da utilização de no corpus pesquisado: “Corria, gritava. Batia palmas. Pisava no pró-
vocábulos caídos em desuso dentre eles: Manoel de Barros, Helio ximo. Empurrava a cunhã”5 (GG, p. 11); “... dobra as forças do peão
Serejo. Nas obras de Hélio Serejo, por exemplo, encontramos vocá-
bulos arcaicos que lhes são conferidos uma marca regional1 . Vocá-
bulos que não são criações do autor, nem revelam ser neologismos,
mas registram uma linguagem própria da geração do autor, da sua
1 A temática regionalista conferida ao autor é devido a sua exploração no
vivência diária. E como sua infância e grande parte da sua vida foi
vocabulário do peão, do ervateiro, do caboclo pantaneiro, etc.
vivida em contato com o campo, com o peão, com o ervateiro, com o 2 Doravante utilizaremos a sigla HS para referir-se ao escritor Hélio Serejo.
homem pantaneiro, em regiões isoladas com pouco acesso à informa- 3 Na indicação das fontes dos exemplos serão utilizadas as siglas apontadas
ção, em razão da distância do meio urbano, a sua linguagem é marcada entre parênteses.
por itens lexicais que evidenciam o caráter conservador da língua. E 4 A referência a essas obras lexicográficas no corpo do trabalho será indicada
essa tendência ao conservadorismo é muito evidenciada em comuni- através das siglas especificadas entre parênteses.
dades rurais ou em indivíduos que mantiveram por muito tempo con- 5 Em todos os exemplos citados na análise dos dados, o destaque na unida-
tato com o meio rural, ou que tenha vivenciado atividades do campo de lexical objeto do estudo constituí-se “grifo nosso”.

444 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


e aumenta o fogo da cunha”. (VE, p.22). Cunha (1998) registra a naturais ou artificiais onde se encerram animais de criação para
etimologia Ku ñã, do Tupi, para a lexia “cunhã” e acrescenta os se- descansarem e recuperarem as forças, ou para engordarem. É justa-
guintes dados à definição dos demais lexicógrafos: por extensão es- mente nessa acepção que essa unidade aparece no corpus pesquisado:
posa ou companheira do caboclo ou do homem branco. Nota-se ser “seguidamente era transferida de invernada, a fim de pegar pasto
essa a acepção atribuída a esse item lexical por HS. fresco” (TI p. 15).
A lexia caraí merece atenção. Apenas AB registra essa unida- Essa lexia encontra-se registrada no Dicionário de Regionalis-
de lexical, mas com acepção diferente da evidenciada na obra de HS: mos do Rio Grande do Sul, de Nunes e Nunes (2000) na acepção de
AB atribui à lexia em questão o sentido de “macaco da noite” e clas- criar, para engordar, para cruzamentos de raças. Esse mesmo dici-
sifica-a como um brasileirismo. Já Guasch e Ortiz (1998) registram o onário apresenta ainda para invernada um sentido figurado de lugar
verbete Karaí com a acepção de “señor, persona”, dentre outras. Há abandonado. Nota-se, portanto, que essa definição confirma o uso
de se destacar que a lexia caraí assume um sentido muito próprio na atribuído à unidade lexical invernada por HS. Trata-se, também, de
linguagem de HS. Ele conserva o traço semântico usual, mas atribui uma lexia emprestada ao espanhol platino que se incorporou na lín-
à lexia também o sema de tratamento respeitoso, amigável, de pessoa gua portuguesa do Brasil como um brasileirismo.
vencedora, conforme ilustram os exemplos extraídos do corpus Com referência à lexia arranchamento, AB registra-a como
pesquisado: “mas, caraí ervateiro, guapo, arrojado, vencedor de em- brasileirismo do Rio Grande do Sul no sentido de casa de moradia
baraços”. (CE, p. 1); “Caraí ervateiro – temente a Deus – um respei- no campo, com seus complementos – (...) galpões...” e CA como
toso por índole – leva a sério essa crença” (CE, p. 49). ação ou efeito de arranchar, conjunto de ranchos. Notamos que
Já o item lexical curuba encontra-se registrado pelo dicionarista arranchamento é uma forma derivada do verbo arranchar que, por
AB como brasileirismo e como uma variante popular de escabiose, sua vez, procede de rancho, uma lexia oriunda do espanhol platino.
ou seja, afecção cutânea contagiosa, parasitária... AB registra tam- O exemplo pesquisado no corpus ilustra o uso da unidade lexical
bém para lexia curuba a acepção de o bicho que provoca sarna. A arranchamento na acepção de galpão, um dos complementos de uma
própria etimologia da palavra elucida o seu significado: do tupi = moradia campestre: “Pernoitamos, muitas vezes à margem de um ar-
‘sarna´ (AB). Os exemplos a seguir confirmam o uso da unidade roio no arranchamento de bugres...” (BBE, p. 05)
lexical curuba nas acepções registradas por AB: “Quando a curuba é Interessante mencionar a presença de brasileirismos do Sul no
das brabas daquelas que chega “afogueá” o rosto do cristão...” (BBE, vocabulário de HS, fenômeno justificável em razão da forte presença
p. 86); “Curuba se esparrama – sobe ou desce e seguidamente dá na de migrantes oriundos do estado do RS no início do processo da
mulher em lugar feio” (BBE, p. 85). colonização e povoamento do então estado de MT (século XIX) e na
Observa-se que o fato de HS utilizar no seu vocabulário unida- atuação desses migrantes nas atividades dos ervais.
des léxicas de origem tupi parece justificar-se pelas próprias caracte- Ao terceiro grupo de lexias analisadas, o referente à presença
rísticas da população da região pesquisada, em sua maioria, de as- de marcas de conservadorismo lingüístico, foram reunidas as unida-
cendência indígena ou paraguaia, uma vez que no século XIX essa des lexicais atoleimado, avoengos, procela e longeva.
região fronteiriça do Brasil com o Paraguai, na época áurea da explo- A primeira lexia pesquisada, atoleimado, está registrada tanto
ração da erva-mate, transformou-se num “laboratório social e por AB como por CA. AB registra-a como particípio de atoleimar,
lingüístico”, com índios, falando guarani, povos de origem espanho- ou seja, tornar-se tolo, apatetar-se, aparvalhar-se; fazer-se de tolo,
la e elementos que vieram para a localidade em busca de trabalho. de parvo. CA confirma essa definição ao atribuir a atoleimado a de-
Como HS viveu grande parte de sua vida em contato com diferentes finição de um pouco tolo, aparvalhado, apatetado. Importa registrar
povos e costumes, nessa região de fronteira, acabou assimilando e que AB aponta, ainda, muitas lexias sinônimas de tolo, muitas delas
utilizando em suas obras unidades lexicais que integram o vocabulá- de uso popular e/ ou classificadas como brasileirismos: abestalhado,
rio referente a atividades econômicas da região. abobalhado, babaca, palerma, bocó, atolambado e inclusive
Na seqüência temos o grupo de unidades lexicais que revelam atoleimado. O exemplo retirado do corpus ilustra essas definições:
a influência espanhola no vocabulário de HS. “... traz caguira da braba deixando o vivente atoleimado” (BBE, p.
A primeira lexia desse grupo é assoleado, que foi registrada 12). A idéia de toleima, (tolice), abobalhado, está claramente expres-
por a AB como brasileirismo na acepção de animal cansado, por sa no exemplo acima. Notamos, pois, que a lexia atoleimado não
haver andado emtrabalhado muito ao sol quente, e por extensão o mais figura normalmente na comunicação cotidiana, ficando restrita
indivíduo fatigado, arquejante, por haver andado ou trabalhado a determinados usos. Trata-se, portanto, de uma marca de
muito ao sol quente. Trata-se de uma forma derivada de “assolear”, conservadorismo lingüístico na linguagem de HS.
lexia registrada por AB com o sentido de cançar-se (animal e por Fenômeno semelhante ocorre com avoengos. A lexia avoengo
extensão, pessoa) por haver andado muito ao sol. Segundo AB, é registrada por AB como antepassado, avós. Já CA não registra
essa lexia é derivada do espanhol platino asolearse e se constitui em avoengos, mas avoengo com a acepção de que herdou dos avós e
brasileirismo do Sul. avoenga com o sentido de herança, direito de sucessão aos bens dos
Percebemos que nas duas definições está implícita a idéia de antepassados. Preferência na compra dos bens. Avós, série de avós
cansaço por ter trabalhado muito e se exposto ao sol. É nessa acepção ou progenitores de quem descendemos. Nas diferentes acepções está
que este item lexical aparece no corpus: “... dormia longas horas, que implícita a idéia de antepassados. É neste sentido que o item lexical
quase imóvel, roncando, porém, como um porco assoleado”. (GG, aparece com freqüência no corpus: “... mês da fé da crença e da Fé
p. 12). A expansão de sentido ocorrida nesta acepção garantiu-lhe a dos avoengos”. (TI., p. 8). Raras vezes, mas surge no corpus a forma
marca regional. Como forma derivada de assolear; assoleado man- feminina avoenga, referindo-se também a antepassados: “Na semana
tém o traço semântico de cansaço do homem, em razão de muito Santa – pela sagrada crença avoenga – as sete estrelas possuíam mais
trabalhao. brilho.” (BBE., p. 10). Constata-se, pois, que o uso da lexia avoen-
Já o item lexical invernada encontra-se registrado pelos dois gos por HS atesta a marca conservadora de sua linguagem.
dicionaristas consultados como brasileirismo. AB registra com o sig- Continuando a análise focalizamos a lexia procela, que é re-
nificado de designação comum a certas pastagens (...) onde se guar- gistrada pelos dois dicionaristas consultados, basicamente com mes-
dam equídeos, muares e bovinos, para repousarem e recobrarem as ma acepção: “tempestades, temporais ocorridas no mar”. É nessa
forças. Já em CA registra-se como pastagens cercadas de obstáculos acepção que HS utiliza a lexia: “quando a procela se acalma, na cumeada

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 445


da serra, ficam os destroços...” (BBE, p. 46). Observa-se, também, todas as ranchadas” (VE, p. 10). A lexia barbaquazeiro representa um
nessa situação, a preferência do autor pelo uso de itens lexicais regionalismo local de origem ameríndia.
pouco usuais no estágio atual da língua portuguesa. Estes dados aqui analisados permitem-nos constatar, na obra
Semelhante fenômeno acontece com a lexia longeva. Trata-se de de HS, a presença de unidades léxicas de uso geral da língua que
um item lexical registrado tanto por AB como por CA como um quali- recebem um tratamento diferenciado transformando-se em regiona-
ficativo na acepção de idoso, que tem muita idade, avançado em idade. lismos como ocorre com mineiro, habilitado; de itens lexicais que
O exemplo retirado do corpus ilustra a idéia de coisa antiga, fato distan- atestam o caráter conservador da língua, como em atoleimado, avo-
te, velho, implícita nas definições apresentadas pelo lexicógrafo: “Quanto engos; de unidades lexicais de procedência indígena: caraí, cunhã e
mais adentrava a longeva época...” (BBE., p. 30). de itens lexicais oriundos do espanhol platino já classificados como
Segundo Melo (1981: p. 161), o conservadorismo é “um dos brasileirismos do Sul, que também integram o vocabulário do autor:
caracteres dos dialetos, mormente dos transplantados”. Na situação invernada, arranchamento. Desta forma, partindo da premissa de
específica das lexias atoleimado, avoengos, procela, longeva, consta- que o meio rural não exige renovação lingüística e que a obra de HS
tamos que HS, ao escrever suas obras, vale-se de unidades lexicais focaliza atividades campestres próprias de uma região fortemente
que, embora de uso não comum por falantes contemporâneos da lín- marcada pela miscigenação cultural e lingüística, parece pertinente a
gua portuguesa, pertencem ao léxico da língua transplantada pelos presença, nas obras do autor, de um vocabulário que integre unidades
colonizadores, configurando-se como conservadorismos lingüísticos. léxicas de diferentes procedências e com caráter conservador. Assim,
O último grupo de lexias examinadas neste trabalho reúne uni- os dados já analisados indicam uma forte tendência do autor para o
dades lexicais, aqui classificadas, como regionalismos locais. uso de itens lexicais já consideradas em desuso na linguagem. Em
Iniciemos com a lexia mineiro, classificada tanto por AB quanto razão disso, determinadas unidades léxicas que aparentemente po-
por CA como brasileirismo do MT e do PR, na acepção de “descobri- dem sugerir neologismos ou regionalismos, na verdade, são arcaís-
dor de ervais nativos inexplorados ou virgens”. Uma outra acepção é mos da língua resgatados pelo autor e que não raras vezes passam a
apresentada para mineiro: “trabalhador que corta as folhas de erva- ser caracterizados como regionalismos locais. Nesse sentido, conclu-
mate”. Nessa acepção AB classifica a lexia como brasileirismo de MT e ímos, retomando a posição de Houaiss (1988: 65), ratificando que
do PR e CA como brasileirismos de MT. Ambos apontam como sinô- muitas das palavras registradas ao lado de serem regionalismos -
nimo de mineiro, nessa segunda acepção, a lexia tirador também um podem ser arcaísmos. A continuidade da pesquisa poderá reafirmar
brasileirismo de MT. O exemplo a seguir atesta o uso da lexia: “O ou refutar as tendências aqui apontadas.
mineiro é o que mais se alegra. Sabe que pré-foliação pode garantir raído
de bom resultado financeiro”. (CE., p. 49). Nota-se que o sentido de
Referências bibliográficas
trabalhador na atividade ervateira está presente nos exemplos. Essa
acepção é recuperada pelo homem que trabalha nessa atividade campesina
AULETE, Caldas. Dicionário contemporâneo da língua portugue-
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trado por CA e por AB com a mesma significação: ambos o apresen- lexicologia, lexicografia, terminologia. Campo Grande: UFMS,
tam como brasileirismo do MT e do PR na acepção de “empreiteiro 1998, p. 132.
da elaboração da erva-mate”. É justamente nessa acepção que a lexia CUNHA, Antonio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua
aparece no corpus pesquisado: “... o rancho melhor, a casa do caraí portuguesa. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 2000.
habilitado...” (GG, p. 37) ou “... nesse preciso momento passava ali... _________________________. Dicionário Histórico das palavras
o habilitado Acylino Sanches, que se inteirando do assunto, prontificou- portuguesas de origem tupi. São Paulo: Melhoramentos, 1998.
se a levar Don Chico Serejo, seu companheiro de lutas ervateiras até FERREIRA, A. B. H. Novo Aurélio o dicionário da língua portu-
Ponta Porã” (TI, p. 36). guesa (séc. XXI). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
Percebe-se que o sentido de peão ervateiro mais qualificado está HOUAISS, Antonio. O Português no Brasil. 2ª ed. Unibrade - Cen-
presente no emprego da lexia habilitado ao referir-se à vivência ervateira. tro de Cultura, R. J, 1988: 65.
O cultivo da erva-mate era uma das fontes de renda da população na ZENO, C. N. & RUI, C. N. Dicionário de regionalismos do Rio
região fronteiriça com a República do Paraguai, na faixa correspondente Grande do Sul. 9ª ed. Porto Alegre: Martins Livreiro - Editor,
ao Estado do MS. A atividade ervateira, desde o cultivo, a colheita, o 1981.
preparo até a comercialização era vivenciado por HS diariamente. Tra- OLIVEIRA, Ana Maria P. Pires de. Regionalismos brasileiros: a
ta-se de um item lexical ligado diretamente a uma atividade econômica questão da distribuição geográfica. In: As ciências do léxico.
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Por fim, temos a lexia barbaquazeiro, unidade não registrada nas GUASCH, Antônio S. J. & J.S., ORTIZ, Diego J. S. Dicionário
obras lexicográficas consultadas. AB, entretanto, registra barbaquá como castelhano – guarani, guarani- castelhano. 13ª ed. Cepae,
brasileirismo do Sul com a seguinte acepção: “diz-se da erva-mate pre- Asunción, Paraguay, 1998.
parada no carijo”. Esse mesmo lexicógrafo classifica essa lexia como um SEREJO, Hélio. De galpão em galpão: crônicas folclóricas. Pres.
provável americanismo. Já na fronteira Brasil/Paraguai o item lexical Venceslau S.P.
barbaquá nomeia o local onde a erva mate é preparada. Na região Sul ____________. O tereré que me inspira. São Paulo-Presidente Pru-
esse local é denominado de carijo. Já barbaquazeiro, forma derivada de dente: Gráfica Santo Antônio., 1986.
barbaquá, nas obras de HS, designa “aquela pessoa que trabalha no ____________. Balaio de bugre especial. São Paulo: Cingral, 1992.
preparo da erva-mate no barbaquá. O barbaquazeiro constitui uma das ____________. Vida de erval. 1987.
atividades mais importantes numa ranchada ervateira”; “Ele, o arrieiro ____________. Caraí ervaeiro. 1987. São Paulo-Tupi Paulista:
dos ervais, o mineiro arrojado, ou o barbaquazeiro – ave noturna de Versiprosa, 1990.

446 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Vocabulário de Manoel de Barros: um estudo
no campo dos regionalismos.
Simone Cristina Spironelli
Universidade Federal do Mato Grosso do Sul - UFMS/ Pós-graduação

ABSTRACT: This work presents partial results of study accomplished concerning the vocabulary of Manoel of Barros aiming at to verify the incidence of
factors cultural partner in the configuration of the regional lexicon.
PALAVRAS-CHAVE: Manoel de Barros; regionalismo; léxico.

A língua tem como função primeira ser instrumento de comuni- usadas em outros territórios lusófonos” (Biderman, 1998: 134).
cação e de interação social, exprimindo valores e satisfazendo as ne- Assim, a partir dessa concepção fizemos o levantamento das
cessidades de determinados grupos sociais. Essa influência da língua lexias encontradas nas obras de Manoel de Barros focalizadas neste
no ambiente social reflete a realidade e a visão de mundo de um indiví- estudo: Poemas concebidos sem pecado (1999), O guardador de
duo através da linguagem. águas (1998), Retrato do Artista Quando Coisa (1998). Desse le-
O presente trabalho apresenta resultados parciais de pesquisa, vantamento foram selecionadas 13 lexias para a presente análise.2
ainda em andamento, acerca do vocabulário do poeta sul-mato- Considerando que o Novo Dicionário Aurélio da Língua Por-
grossense Manoel de Barros e discute a questão dos regionalismos, tuguesa (1986) apresenta um número considerável de verbetes clas-
objetivando verificar a incidência de fatores de natureza sócio-cultu- sificados como brasileirismos gerais ou regionais e também por ser
ral na configuração do vocabulário do autor. essa obra considerada o dicionário geral do português do Brasil de
A visão de mundo apresentada pelo poeta é cercada pela natu- maior circulação nacional, tomamos como referência essa obra
reza e por pessoas simples (bugres, mendigos, loucos, bêbados), é a lexicográfica para a análise dos dados apresentados neste trabalho.
visão de um menino que conheceu uma realidade além daquela que Embora os critérios utilizados para a classificação das unidades
lhe é natural demonstrando através de sua poesia que a língua reflete lexicais em brasileirismos não sejam explicitados na obra, infere-se
o mundo e a realidade cultural com que ela se conjuga. pela observação dos verbetes que o dicionarista marca como “Bras” as
Barros nos leva a uma viagem pelo mundo das palavras com lexias supostamente de uso em todo o país e como “Bras. N, Bras.
uma sensibilidade única, mostrando-nos que é através do povo que a NE, Bras. S, Bras. MS” – as que nomeiam referentes específicos de
língua se faz; assim, temos a visão de que o sistema lingüístico iden- uma região. Assim, poderíamos considerar as unidades marcadas como
tifica e diferencia os falantes de uma região, além de valorizar a iden- “Bras.” regionalismos gerais do português do Brasil, se contrastando
tidade histórica e os aspectos culturais do povo que carrega e utiliza com as demais variedades do português, e como regionalismos espe-
a língua. cíficos de uma região as lexias marcadas com a abreviatura “Bras.”
Nesta perspectiva, para viabilizar o alcance do propósito de seguida da sigla da região.
nossa pesquisa trabalhamos com a seguinte hipótese: em que propor- Desta forma, na análise dos dados serão consideradas as defi-
ção o vocabulário de Manoel de Barros apresenta lexias1 típicas da nições apresentadas por Ferreira (1986) quando se tratar de unidades
região do Pantanal sul-mato-grossense. dicionarizadas na acepção utilizada por Manoel de Barros. Quando o
Um aspecto que merece especial atenção na linguagem é a ques- item lexical não estiver dicionarizado ou quando registrado por
tão da relação entre léxico e vocabulário. Em uma visão geral, léxico Ferreira (1986) com acepções diferentes da apresentada por Barros,
designa o conjunto das unidades que formam a língua de uma comu- considerar-se-á a concepção inferida no contexto da obra. Portanto,
nidade, enquanto vocabulário é uma amostra do léxico de um na apresentação dos dados, as lexias foram distribuídas em três gru-
interlocutor ou vários interlocutores; através do estudo vocabular, pos: I – Regionalismos classificados por região, II – Regionalismos
seja este, de um ou vários interlocutores, pode-se estabelecer um re- gerais, III – Regionalismos locais.3
gistro e uma descrição para compor o léxico da língua de uma comu-
nidade. É conveniente ressaltar que, por mais considerável que seja a I – Regionalismos classificados por região:
lista de ocorrências que figuram o vocabulário estudado, não se pode 1. “Ilhota de pedra no meio de um corixo4 é de nome sarã”.
ter uma visão precisa da totalidade do léxico, pois este só se estabe- (GA, p. 42)
lece após a reunião de vários vocabulários. Nessa totalidade do léxi-
co, situam-se unidades lexicais classificadas como regionalismos. Im-
portante registrar que o próprio conceito de regionalismo suscita,
não raras vezes, polêmicas e reflexões.
Biderman (1998: 133) considera o conceito regionalismo am-
bíguo e afirma que “os dicionários são lacônicos e até contraditórios
1 Utilizaremos o termo lexia no sentido proposto por POTTIER, B.,
no tratamento desta matéria e formulam um conceito incompleto e
AUDUBERT, A., PAIS, C. T., (1973: 26-30) “Unidade lexical memorizada”.
inadequado de regionalismo”. Essa mesma autora retomando e adap- 2 Para a identificação das fontes de onde foram extraídos os exemplos, uti-
tando o conceito de regionalismo apresentado por Boulanger (1985) lizaremos a seguinte convenção:
define-o como “qualquer fato lingüístico (palavra, expressão, ou seu PCSP – Poemas Concebidos Sem Pecado, 1999. GA – O Guardador de
sentido) próprio de uma ou de outra variedade regional do português Águas, 1998. RAQC – Retrato do Artista Quando Coisa, 1998.
do Brasil, com exceção da variedade usada no eixo lingüístico Rio/ 3 Nos dois primeiros grupos, considerou-se a classificação apresentada por
São Paulo, que se considera como o português brasileiro padrão, isto Ferreira (1986) no que tange aos brasileirismos. No terceiro grupo consi-
é, a variedade de referência, e com exclusão também das variedades derou-se a acepção apresentada no contexto da obra.
4 Grifo nosso.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 447


Aurélio apresenta duas entradas para a lexia corixo. O con- vende objetos feitos com ele” como se pode depreender do contexto
texto apresentado por Barros nos remete à segunda entrada onde o apresentado.
autor faz uma remissiva à palavra corixa classificada como brasilei- 9. “Suporte de uma tapera é o abandono.”
rismo de MT5 e GO na acepção de “canal onde as águas das lagoas, (GA, p. 25)
brejos ou campos baixos escoam para os rios vizinhos”. Trata-se, na O lexicógrafo Ferreira (1986) classifica a lexia tapera como
verdade, de uma lexia de uso comum da região pantaneira. brasileirismo com a acepção de “habitação ou aldeia abandonada,
2. “Senão a gente teria que chupar bocaiúva, fazenda itinerante abandonada e em ruínas”.
comer ovo de ema e tirar mel do pau para sobremesa”. Pode-se encontrar nos exemplos de 7 a 9 unidades lexicais
(RAQC, p. 29) marcadas por Ferreira (1986) como brasileirismos de uso geral que
Já a lexia bocaiúva é apresentada por Ferreira com a seguinte também são utilizadas por Barros, um escritor de temática regionalista.
definição: “Palmeira encontrada em MT, dotada de frutos drupáceos Esse processo pode ser explicado pelas ações migratórias no territó-
doces de caules lisos e finos”. rio brasileiro, que permite a simultaneidade de uso de uma mesma
3. “ — Que mané agradecer, quero é minha funda lexia em diferentes regiões do país.
vou matando passarinhos pela janela do trem”
(PCSP, p. 17) III - Regionalismos locais
A lexia funda também está dicionarizada com a definição de Ainda, detectamos a presença de lexias não dicionarizadas que
“laçada de couro ou de corda para arrojar pedras, ou outros projetis, representam o léxico local da região pantaneira:
ao longe”. Essa lexia é considerada por Ferreira (1986) como brasi- 10. “— Correu de campo dez a zero e num vale de
leirismo do MS. botina!
4. “Os cardos que vivem nos pedrouços têm a mesma sintaxe plong plong, bexiga boa.”
que os escorpiões de areia”. (PCSP, p. 15)
(GA, p. 40) Nota-se que a lexia bexiga, embora dicionarizada com dife-
A unidade lexical cardos, por sua vez, designa “plantas consi- rentes acepções, não aparece no exemplo com o mesmo sentido dado
deradas praga (brasileirismo L e S cardo-bosta, cardo-melão NO e a ela pelo dicionarista consultado, uma vez que foi utilizada por Bar-
S)” conforme a obra lexicográfica consultada. ros no sentido de bola de futebol.
5. “Na enchente só entravam batelões e bois de sela 11. “Dorme no ombro dele um tordo arino.”
que iam levar mantimentos.” (GA, p. 18)
(GA, p. 29) A lexia arino é definida por Ferreira (1986) como brasileiris-
Batelão é definido no Novo Dicionário Aurélio da Língua Por- mo de MT na acepção de “indivíduo dos Arinos, tribo indígena das
tuguesa, dentre outras acepções, como brasileirismo do MT, signifi- cabeceiras do rio Arinos (MT)”.Já o emprego dessa lexia por Barros
cando “canoa pequena, barcaça impelida a remo ou rebocada”. confere-lhe o valor de qualificativo já que determina a lexia tordo,
6. “E o rio passava lá embaixo com piranhas camalotes “um pássaro de plumagem branca”, segundo Ferreira (1986).
pescadores e lanchas carregadas de couros vacuns fedidos.” 12. Tem um cago de ave no chapéu.
(PCSP, p. 39) (GA, p. 09)
A unidade lexical cago representa um regionalismo
O item lexical camalotes, a exemplo de outros, nomeia um
local utilizado por Manoel de Barros para nomear as fezes de pássa-
referente característico da região do Pantanal, ou seja, uma “ilha flu-
ros, conforme ilustra o exemplo 12.
tuante que desce os rios, formada de plantas aquáticas” segundo
13. “Abrigo de vagabundos e de bêbados, restaram
Ferreira (1986). Trata-se na classificação desse lexicógrafo de um
as expressões: estar na draga, viver na draga por estar sem dinhei-
brasileirismo do Sul e Centro-Oeste.
ro, viver na miséria”.
Observamos que as unidades lexicais destacadas nos exemplo
(PCSP, p. 44)
1 a 6, classificadas como brasileirismos regionais por Ferreira (1986)
referem-se a elementos do meio ambiente do Pantanal do Mato Gros-
O próprio autor define a expressão estar ou viver na draga.
so do Sul, região que Manoel de Barros retrata em suas poesias com
Segundo ele, draga nomeia um abrigo para os vagabundos e bêba-
bastante originalidade, o que confirma o caráter regionalista da obra
dos, por isso, “estar ou viver em uma draga” tem o mesmo sentido
evidenciado através do vocabulário utilizado pelo poeta.
que “estar sem dinheiro, viver na miséria”.
Vale ressaltar que, através da análise das unidades lexicais
II – Regionalismos gerais
reunidas neste corpus, pudemos constatar que o vocabulário empre-
7. “Dela sempre trazia novidades:
gado por Manoel de Barros está condicionado tanto pelo ambiente
Em seus joelhos pousavam mansos cardeais...”
social quanto pelo ambiente cultural e que o autor incorpora em suas
(PCSP, p. 13)
obras tanto lexias já marcadas dialetalmente por Ferreira (1986) como
A lexia cardeais aparece no dicionário consultado registrado
brasileirismos gerais e registra unidades lexicais com significados
com a designação de “várias aves passeriformes (...), geralmente são
peculiares à região focalizada. Isso reforça a dificuldade em se carac-
brancas ou pretas, com a cabeça, mento ou outras partes do corpo
terizar unidades lexicais como regionalismos devido, dentre outras
encarnadas”. O lexicógrafo além de marcar a lexia cardeais como
razões, à intensidade migratória presente na realidade brasileira. Desta
brasileirismo, qualifica-o como “palavra típica brasileira” e apresen-
forma, constatamos que um grupo geograficamente situado mantém
ta como variante a lexia “galo-do-campo”, que nomeia uma ave bas-
suas relações sociais com a comunidade global.
tante conhecida na região pantaneira.
8. “Cláudio, nosso arameiro, acampou debaixo da
árvore”.
para tirar postes de cerca” 5 Considerando a divisão relativamente recente do Estado do Mato Grosso
(PCSP, p. 63) (1979) e o fato de o Pantanal abranger áreas dos Estados de MT e MS,
Arameiro, unidade lexical classificada como brasileirismo por pode-se considerar as lexias marcadas por “Bras. MT”, por ora, como re-
Ferreira (1986) designa “um indivíduo que trabalha em arame ou que presentantes da linguagem dos dois estados.

448 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


À guisa de conclusão, podemos afirmar que os elementos sócio- Retrato do Artista Quando Coisa (1998)
culturais e lingüísticos se inter-relacionam, dando a possibilidade de Sambixuga: verme (variante de sanguessuga)
percebermos os aspectos locais de uma determinada região. Assim, Trampas: excremento
Manoel de Barros retrata em seus versos a importância da palavra e Frangos d’água: espécie de ave (galinhola com cabeça e gar
caracteriza não apenas o vocabulário regional, como também aspectos ganta preta)
importantes à temática que aborda, ele mostra a visão de mundo do Gravatá: espécie de ave (caroá, caraguatá)
homem pantaneiro e sua realidade regional. Esmolambado: arrastar molambos
Paina: conjunto de fibras sedosas
Referências bibliográficas Tapera: habitação ou aldeia abandonada
Ferrolhos: retranca
BARROS, M. Poemas concebidos sem pecado. 3ª ed. Rio de Janeiro: Tajedos: regato leito de rochas
Record, 1999. Melões-de-São-Caetano: espécie de trepadeira
_____. O guardador de águas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1998. Passá um taligrama: fazer necessidades fisiológicas
_____. Retrato do artista quando coisa.Rio de Janeiro: Record, 1998. Capuz roto: tipo de erva
BIDERMAN, M. T. C. Os dicionários na contemporaneidade: arqui-
tetura, métodos e técnicas. In: PIRES DE OLIVEIRA, A. M. P., Boteco: botequim
ISQUERDO, A. N. (Org.) As ciências Cachaça: aguardente
do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. Campo Gran- Visgo: tipo de planta
de: UFMS, 1998, p. 129-142. Lacraias: espécie de inseto
_____. Teoria lingüística: lingüística quantitativa e computacional. Barranqueira: ribanceira ou barranco
Rio de Janeiro: Livros técnicos e científicos, 1978, p. 80-93. Cansanção: tipo de planta que agride a pele humana (água-
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua viva)
portuguesa. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. Nambu: ema (variante de nandu)
POTTIER, B., AUDUBERT, A., PAIS, C. T. Estruturas Lingüísticas Pirizeiro: tipo de planta que cresce em terreno pantanoso e faz
do Português. 2ª ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1973, esteira
p. 27-30. Ponhamos: colocamos
Troços: coisas

Anexo Teiús: lagarto


Em anexos colocamos outras lexias encontradas nos livros de Jaburu: espécie de ave
Manoel de Barros analisados para este trabalho. As palavras estão Sarã: ilha pedregosa
acompanhadas pelos sentidos estabelecidos no contexto. Átimo: curto espaço de tempo
Hosco: diz-se do gado vacum
Poemas Concebidos sem Pecado (1999) Aguilhão: vara comprida com ferrão na ponta
Bate-num-quara: roupa de uso diário Frinchas: canal muito estreito
Carnegão: tumores ou furúnculos Trolhas: desempoladeira, colher
Rubafo: espécie de peixe (dorme dorme, maiuraqué, robafo) Vareios: falar coisa sem nexo
Chalaneiro: que dirige pequena embarcação (chalana – que Trampas: excrementos
passa em igarapés e pequenos rios) Adejos: cavalo que anda sem carga
Lavandeira: lavadeira
Amassa-barro: espécie de pássaro (João-de-barro)
Desmanchada: ato ou efeito de desmanchar-se (derretida) Bueno, entonces seja felizardo lá pelos rios de janeiros: bom,
Baita: grande então seja feliz no Rio de Janeiro.
Jias: rãs Cordas de liras: em todos os tons
Êta: expressão de alegria, surpresa, espanto
O Guardador de Águas (1998) Bão: bom
Abeira: chegar a beira de Entrar de soneto: de encher os olhos, bonito
Gerânios: plantas ornamentais Entonces: então
Carancho: espécie de árvore (carcará) Voltou de ateu: ignorar os preceitos da religião
Grotas: vale profundo Vãobora: contração de vamos embora
Lanhos: pedaços de carne em tiras Êpa: expressão de surpresa
Alforje: nariz grande e chato Magrento: muito magro
Rengo: cavalo manco de uma perna Lavar a feição: lavar o rosto
Tapera: habitação ou aldeia abandonada Dantes: contração de + antes.
Maçarocas: bola que se forma na cauda dos cavalos (cabelo
embaraçado)

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 449


Funções discursivas dos rótulos
em resumos acadêmicos
Bernardete Biasi-Rodrigues
Universidade Federal do Ceará - UFC

ABSTRACT: We investigate the labels discursive functions in the textual organization of academic abstract genre. The analysis of 40 abstracts in different
modalities showed that the information units constitute thematic cells juxtaposed that, generally, aren’t connected each other by means of sequential explicit
cohesive links. The labels with evaluation purposes don’t occur frequently in academic abstracts; these cohesion devices have, in general, a resumptive
function, introducing some thematic units.
KEYWORDS: academic abstracts; cohesion; labels.

1 Introdução amento, um recurso de seqüenciação frástica que, de acordo com Vilela


Os resumos acadêmicos apresentam uma distribuição regular e Koch (2001, numa reformulação da proposta de Koch, 1989), pode
das informações em cinco unidades retóricas básicas: apresentação, se dar por justaposição ou por conexão. A despeito do que sugere o
contextualização, metodologia, resultados e conclusões, cada uma nome, porém, a justaposição não se estabelece necessariamente sem o
com suas respectivas subunidades preenchidas opcionalmente (Biasi- emprego de conectores, como o confirma abaixo:
Rodrigues, 1998). Esta composição foi verificada a partir da análise
A justaposição pode dar-se com ou sem o uso de partículas
de 134 resumos de dissertações e, posteriormente, testada em outras
seqüenciadoras. A justaposição sem partículas, particularmen-
modalidades de resumo: de teses, de artigos científicos e de comuni-
te no texto escrito, extrapola o âmbito da coesão textual (...).
cações em congresso.
Inexistindo tais elementos, cabe ao leitor construir a coerên-
A análise da organização retórica de resumos acadêmicos reve-
cia do texto, estabelecendo mentalmente as relações semânti-
lou também que as unidades de informação constituem células temáticas
cas e/ou discursivas. (Vilela,Koch, 2001:498)
que são reconhecidas através de pistas lexicais de natureza semântico-
cognitiva, identificadas ou inferidas no texto. Essas células temáticas Diferentemente dos encadeamentos por conexão, os mecanis-
não são em geral ligadas umas às outras através de elos coesivos explí- mos de justaposição proporcionam a seqüenciação de porções textu-
citos, como acontece nos textos expandidos; elas constituem, mais ais não articuladas por elos que expressem relações lógico-semânti-
freqüentemente, blocos textuais independentes, o que lhes permite al- cas ou argumentativas. Exemplo típico de tal espécie de conexão são
teração de ordem na estrutura textual dos resumos e, em alguns casos, as expressões rotuladoras que sumarizam as principais conclusões
supressão de alguma delas sem prejudicar o conjunto. em textos acadêmicos expandidos, como:
Neste trabalho, investigamos como as expressões rotuladoras se (1) “Diante desse quadro, acredita-se que essa etapa prelimi-
distribuem nas subpartes que constituem o gênero resumo acadêmico nar da pesquisa indica a necessidade de reanálise dos resultados aqui
com o objetivo de verificar se contribuem para a organização dos con- sistematizados num corpus mais amplo (...)”. (AAC03 – artigo cien-
teúdos de acordo com os propósitos discursivos do enunciador. Anali- tífico – Protexto)
samos, em 40 exemplares de resumos de diferentes modalidades, em Outro tipo de justaposição com elo coesivo, segundo Vilela e
que subunidades ocorrem os rótulos metalingüísticos e se são empre- Koch (2001), são os marcadores de ordenação no tempo/espaço, que
gados para construir a arquitetura argumental desse gênero. se prestam à demarcação da sucessão dos segmentos discursivos no
texto. Trata-se de expressões como em primeiro lugar, em segundo
2 As relações coesivas entre as unidades temáticas dos
lugar, finalmente etc.
resumos acadêmicos
Em resumos acadêmicos, temos verificado que, na maioria dos
Temos constatado (Biasi-Rodrigues, 1998, 2000) que a rela- casos, as unidades temáticas se encontram dispostas por justaposição
ção entre as unidades temáticas nos resumos não se dá por cone- sem o uso de elos seqüenciadores. Entretanto, algumas partículas
xões manifestadas no texto, pelo menos não preferencialmente, mas seqüenciais podem marcar, às vezes, a transição entre os blocos
pelo preenchimento de um esquema textual, que permite lacunas e temáticos, conforme se pode ver no exemplo seguinte:
distribuição seqüencial variada das informações. As expectativas (2) “Inicialmente, foi enfatizada a importância para esse cam-
do leitor são geradas por pistas diversas. As predições podem ser po de estudos dos valores da cidadania (democracia, acesso à saúde,
feitas por meio de palavras-chave em cada unidade, com o auxílio educação, habitação, entre outros), do reconhecimento de sindicatos,
do conhecimento prévio do leitor, da sua competência de antecipar centrais sindicais, entidades patronais, partidos políticos, Congresso
e de conferir se as suas previsões são verdadeiras ou falsas, ou se o Nacional, além dos procedimentos e regras adotados nas relações
texto não oferece condições de confirmá-las, por fugir a regras for- entre Estado, empresários e trabalhadores como, por exemplo, direi-
mais de organização das informações. As fórmulas de início, por to de greve, sindicalização, negociação e contratação coletivas. Em
exemplo, ativam o esquema do gênero como um todo e possibili- seguida, foram estabelecidas mediações econômicas, políticas e so-
tam ao leitor desenvolver expectativas sobre como as informações ciais para analisar de forma crítica o conceito teórico de sistema de-
podem estar dispostas no texto. senvolvido, originalmente, por Dunlop (1993).” (ART07 – resumo
Isso nos leva a postular que, em geral, as células temáticas nos de tese – Protexto)
text0os-resumos estão muito mais agregadas por relações de associ- Além dos conectores acima, que assinalam encadeamentos por
ação lexical, ancoradas no conhecimento de mundo da comunidade justaposição, os elos responsáveis pelo encadeamento por conexão
discursiva acadêmica, do que por elementos de coesão seqüencial de também podem marcar a mudança de unidade retórica nos resumos
natureza lógico-semântica ou argumentativa. acadêmicos, ainda que não muito freqüentemente. Ocorrências mais
Cremos que os mecanismos de coesão seqüenciadora que en- comuns, encontradas na entrada de algumas unidades temáticas em
tram em ação nos resumos se organizam principalmente por encade- resumos de dissertações (Biasi-Rodrigues, 1998), são as seguintes:

450 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Unidade 2 – Contextualização da pesquisa: obtidos por justaposição, constam as estratégias de textualização2
Para chegar à comprovação dessa hipótese... por rótulos (“labels” em Francis, 1994), um fenômeno de
Para realizar este trabalho... encapsulamento de partes do discurso por meio de expressões nomi-
Para tal fim foi realizada uma pesquisa... nais definidas ou demonstrativas. Segundo Conte (1996:1), a
Para tanto, foi necessário rever conceitos... rotulação se caracteriza como “um recurso coesivo pelo qual um
sintagma nominal funciona como uma paráfrase resumidora para uma
Unidade 3 – Apresentação da metodologia: porção precedente do texto. Esta porção de texto (ou segmento) pode
Desta forma, na presente pesquisa será analisada... ser de extensão e complexidade variada (um parágrafo inteiro ou
Para esse fim, elaborou-se um corpus... apenas uma sentença)”.
Para isso, foram efetuadas gravações... Dada a peculiaridade dos rótulos de recuperar um conteúdo
Para tanto, após detectar os problemas... proposicional, reintroduzindo-o sob uma perspectiva particular, for-
mulamos a hipótese de que tais elementos coesivos poderiam ter
Unidade 5 – Conclusão(ões) da pesquisa: uma presença bastante representativa nos resumos acadêmicos e de-
A partir de uma avaliação das abordagens...foi proposto... veriam exercer um papel argumentativo relevante nesse gênero.
Dessa forma, os resultados levaram a crer... Na literatura sobre o assunto, tem-se enaltecido o potencial
Deste modo, constatou-se... argumentativo dos rótulos, que simultaneamente encapsulam seqüên-
Enfim, pode-se perceber... cias discursivas, nomeando-as pela primeira vez, e atribuem ao seg-
mento rotulado um valor axiológico.
Como se pode notar, duas espécies de conectores se desta- Além desse uso essencialmente avaliativo dos rótulos, os au-
cam no levantamento acima: um do tipo lógico e outro do tipo tores salientam outro papel discursivo dessas expressões: sua função
argumentativo. Saliente-se que essa terminologia não significa que metadiscursiva de orientar a atenção do destinatário para certos tre-
os elementos lógico-semânticos não tenham igualmente função chos do discurso. Como afirma Francis (1994:86):
argumentativa. Os conectores lógicos expressam predominantemen- Assim como os rótulos prospectivos, os retrospectivos têm
te relações de mediação1 e se concentram sobretudo na unidade 2, uma importante função organizadora: eles assinalam que o
em que se define a contextualização da pesquisa, e na unidade 3, em escritor está se movendo para a fase seguinte de seu argumen-
que se explicitam os passos metodológicos. Os conectores to, tendo-se utilizado da fase anterior encapsulando-a ou em-
argumentativos instauram, geralmente, uma relação de conclusão e, pacotando-a em uma única nomeação. (...). Portanto, estes
por isso mesmo, são mais recorrentes na unidade 5, conforme se ve- rótulos têm uma clara função de mudar o tópico e de ligá-lo:
rifica nos exemplos elencados acima. eles introduzem mudanças de tópico, ou uma alteração dentro
Do nosso ponto de vista, esses mecanismos retóricos configu- de um tópico, mesmo preservando a continuidade colocando
ram-se como fórmulas de entrada em algumas unidades de informa- uma informação nova dentro de um esquema dado.
ção e poderiam ser dispensados sem qualquer prejuízo à informação
Os rótulos são, desse modo, encapsulamentos de porções tex-
contida na unidade que introduzem. São fórmulas usadas para
tuais não-específicas, as quais são erigidas em referentes no momen-
topicalizar o conteúdo temático nas unidades 2, 3 e 5, com uma fre-
to mesmo em que são empregados. Como afirma Cavalcante (2001):
qüência bastante restrita em todo o corpus e totalmente ausentes na
unidade 4 – ‘Sumarização dos resultados’. Esses recursos parecem essas expressões se caracterizam pela definitude formal por-
corresponder à concepção de Vande Kople (1985, apud Motta-Roth, que são marcadas por artigos definidos ou por elementos
1995:118-120) de metadiscurso, mais especificamente ao tipo que o dêiticos, mas nem sempre podemos atribuir-lhes definitude
autor denomina de conectivos textuais, empregados para marcar a informacional, ou não de todo, porque elas acrescentam, ge-
organização seqüencial do texto e encontrados também por Motta- ralmente, a um conteúdo dado certas nuanças de sentido, com
Roth e Hendges (1996) em resumos de artigos de pesquisa em dife- um teor de novidade que é muitas vezes decisivo para a pro-
rentes áreas disciplinares. gressão referencial e, principalmente, para a delimitação de
Essa característica peculiar do gênero resumo, de encadeamento pontos de vista do enunciador.
de células temáticas por justaposição sem elos coesivos marcando a Nossa investigação revelou, no entanto, que a função avaliativa
seqüenciação das informações, o aproxima de uma classe de discur- dos rótulos, imprimindo ao discurso uma perspectiva particular do
sos (gêneros) que Hoey (1986) denomina de ‘colônia discursiva’, falante, não parece ser preponderante em todos os gêneros. Especifi-
por sua natureza heterogênea quanto à aparência e usos e, até certo camente nos resumos acadêmicos, por exemplo – objeto de interesse
ponto, fora dos padrões dos discursos convencionais. Para o autor, desta pesquisa -, as expressões rotuladoras apresentam, de modo mais
‘colônia discursiva’ é “um discurso cujas partes componentes não recorrente, uma função primordialmente sumarizadora e classifica-
têm seu significado derivado da seqüência na qual elas estão locali- dora, como demonstra o exemplo seguinte:
zadas. Se as partes forem misturadas, a utilidade pode ser afetada, (3) (Un3) A análise destas questões foi possibilitada pela apli-
mas o sentido permanece o mesmo” (Hoey, 1986:4). Esse foi exata- cação de questionários aos alunos e professores de três escolas -
mente o comportamento verificado na organização das informações municipal 4a e 7a séries; estadual e particular; 4a , 7a e 3a séries - e
em resumos acadêmicos de diferentes modalidades, produzidos em de uma redação escrita simultaneamente pelos alunos e professores,
diferentes áreas de conhecimento com propósitos específicos. para verificar que estratégias discursivas usam aqueles no processo
3 A função discursiva dos rótulos nos resumos de instauração do novo, do diferente. A análise das estratégias incidiu
sobre os oito melhores textos de cada série pesquisada (num total de
Os mecanismos de natureza léxico-gramatical, entendidos como 64 textos), indicados pelos professores, e sobre os textos produzidos
sinalizadores coesivos locais, identificados na linearidade do texto, pelos professores (08). (Resumo de tese)
ou como traços caracterizadores do gênero resumo acadêmico, certa-
mente merecem uma reflexão mais aprofundada, razão por que deci-
dimos ampliar a análise com o amparo de estudos que explicam os 1 De acordo com Vilela e Koch (2000), as relações de mediação exprimem
processos de referenciação textual. os meios pelos quais se pretende atingir um fim.
Como mostramos no item anterior, dentre os recursos coesivos 2 Sobre as estratégias de textualização, ver Koch (1997).

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 451


Em (3), “estas questões” e “a análise das estratégias” resumem lecem uma organização por justaposição ou por conexão com elos
informações difusamente explicitadas em segmentos anteriores e clas- coesivos explícitos.
sificam-nas por meio de designações metalingüísticas, dando-lhes Nos resumos, em geral, os rótulos apenas sumarizam o texto
um suporte genérico, como por meio de “nomes de processo mental” como um todo e ocorrem mais freqüentemente introduzindo a primei-
(ver Francis, 1994), do tipo “questões”, “estratégias”. ra unidade temática. Os resultados não confirmam, portanto, a hipó-
Mais comumente, porém, os rótulos servem para iniciar os re- tese inicial de que as expressões rotuladoras ocorrem com freqüência
sumos, com denominações mais técnicas, a que Francis chama de e de que executam função principalmente avaliativa.
“nomes de texto”, como trabalho, pesquisa, texto, parágrafo etc.
Referências bibliográficas
Exemplo:
(4) (Un1) Este trabalho tem por objetivo discutir e levantar BIASI-RODRIGUES, B. Estratégias de condução de informações
elementos para a formulação de políticas de desenvolvimento regio- em resumos de dissertações. Florianópolis: UFSC, 1998. Tese
nal, com foco sobre questões rurais, considerando o caso do estado de Doutorado.
do Piauí, no período de 1970 a 1995. (Resumo de tese) _____. Estratégias de condução de informações em resumos acadêmi-
No entanto, esporadicamente, os rótulos também são empre- cos. Revista do GELNE, Fortaleza: UFC, 2000 (ainda não
gados com função avaliativa dentro de uma unidade temática, como publicada).
se pode conferir em (5): CAVALCANTE, M.M. Demonstrativos – uma condição de saliên-
cia. Comunicação apresentada no II Congresso Internacional da
(5) (Un4) Uma avaliação dessa experiência de um quarto de
ABRALIN - Fortaleza, 2001.
século aponta para o fracasso desse modelo de desenvolvimento re-
CONTE, Maria-Elisabeth. Anaphoric encapsulation. Belgian Journal
gional. Por que fracassaram esses esforços para modernização agrí- of linguistics, 10, 1996. p. 1-10. /Tradução de Mônica Maga-
cola, segundo a estratégia adotada? Principalmente porque as políti- lhães Cavalcante/.
cas governamentais não avançaram no entendimento daquilo que FRANCIS, Gill. Advances in written analysis. London: Ed. Routledge,
pretendiam transformar – a agricultura tradicional – e das possibili- 1994. /Tradução de Mônica Magalhães Cavalcante, Valéria
dades dessa transformação, dentro de um padrão de desenvolvimen- Sampaio Cassan de Deus e Thatiane Paiva de Miranda/.
to agrícola definido ao longo desse século, resultando na formação HOEY, M. The discourse colony: a preliminary study of a neglected
de “complexos agro-industriais”. (Resumo de tese) discourse type. In: COULTHARD, M. (org.). Talking about
4 Considerações finais text, ERL Discourse Analysis Monograph. Birmingham, (13):1-
As relações que se estabelecem na superfície dos textos-resu- 26, 1986.
KOCH, I.G.V. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 1989.
mos fogem ao padrão dos textos expandidos, e as teorias sobre coe-
_____. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto,
são para estes textos não se aplicam na mesma medida para a compo- 1997.
sição dos resumos, cujas informações são distribuídas em células MOTTA-ROTH, D. e HENDGES, G. R. Uma análise de gênero de
temáticas ou unidades retóricas com funções próprias e independen- resumos acadêmicos (abstracts) em economia, lingüística e quí-
tes entre si. mica. Revista do Centro de Artes e Letras, Santa Maria: UFSM,
O encadeamento entre elas se dá preferencialmente por justa- 18(1-2):53-90, jan./dez. 1996.
posição sem elos coesivos, embora apareçam ocasionalmente, in- VILELA, M., KOCH, I.G.V. Gramática da língua portuguesa. Por-
troduzindo as unidades, alguns elementos seqüenciais que estabe- to: Almedina, 2001.

452 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A rotulação como estratégia de
referenciação no gênero resenha
Benedito Gomes Bezerra
Universidade Federal do Ceará - UFC/Pós - Graduação

ABSTRACT: This paper examines discourse labelling as a signalling element to the organization of moves in book reviews. We analyze 10 reviews written
by proficient writers, and 10 by college students. Results allow us to conclude that discourse labelling may be considered as a relevant instrument to the
investigation of lexical aspects in genre organization.
PALAVRAS-CHAVE: Referenciação; rotulação; gênero; resenha.

1. Introdução 2. Metodologia

A estrutura retórica dos diversos gêneros é, reconhecidamen- Examinarei 20 resenhas, tomadas aleatoriamente de um corpus
te, sinalizada por marcadores léxico-gramaticais na superfície do texto, maior, composto de resenhas produzidas por especialistas e rese-
conforme demonstrado, e.g., por Rodrigues (1998), para resumos de nhas produzidas por escritores iniciantes, alunos do ensino superi-
dissertações de mestrado, e Araújo (1996) e Motta-Roth (1995), para or, como tarefa acadêmica proposta pelo professor/professora. As
resenhas de livros. Outrossim, a relevância de uma análise de gêne- 20 resenhas aqui enfocadas estão divididas em dois grupos iguais,
ros que dê espaço a esses mecanismos concretos de articulação retó- conforme sua produção ou por especialistas ou por alunos. As 10
rica do texto já era sugerida, entre outros, por Swales (1984), quando resenhas produzidas por especialistas foram publicadas no periódi-
da primeira formulação de seu modelo de análise. Segundo esse au- co Vox Scripturae, dirigido à academia teológica de confissão evan-
tor, os moves precisam ser claramente sinalizados para o leitor (Swales, gélica ou protestante na América Latina; o outro grupo de 10 rese-
1984: 80). No caso específico das introduções de artigos de pesqui- nhas foi produzido por alunos do curso de bacharelado em Teolo-
sa, conforme Swales (op. cit.), essa sinalização ocorre no começo do gia do Seminário Teológico Batista do Ceará, em Fortaleza. Para
segmento textual que introduz cada move. fins de referência, designarei as resenhas de especialistas pela sigla
Na análise do gênero resenha, Araújo (1996), elegeu como RE mais um número seqüencial (RE1, RE2, etc.) e as resenhas dos
sinalizadores lexicais os chamados “substantivos inespecíficos” alunos por RA1, RA2 e assim por diante.
(unspecific nouns), categoria proposta por Winter (1992, apud Araú-
jo, 1996: 12). Por sua vez, Motta-Roth (1995) aplica, ao mesmo gê- 3. Resultados e discussão
nero, o conceito de metadiscurso, derivado de Crismore (1990). 3.1. Rótulos prospectivos (advance labels): nos exemplos a
Francis (1994), propõe, como uma das formas de organização seguir, esse tipo de rótulo é destacado pelos itálicos.
do discurso escrito, na superfície léxico-gramatical, o conceito de (1) A reflexão do autor encaminha-se para encontrar resposta a
rotulação (labelling). De acordo com essa autora, um rótulo discursivo quatro questões fundamentais:
pode ser utilizado para “permitir ao leitor a predição exata da infor-
mação que se segue” (Francis, 1994: 84) ou para “encapsular ou 1. O que determinou a sobrevivência dos judeus ... (RA1)
acondicionar um trecho do discurso” (p. 85). No primeiro caso, o A dupla rotulação, começando com a reflexão, revela ao leitor
rótulo é prospectivo (advance label); no segundo, retrospectivo que o resenhista vê o trabalho do autor da obra sob análise (neste
(retrospective label). Ambos exercem a função de organização do caso, um artigo), como um processo mental. Segundo a visão do
discurso, catafórica ou anaforicamente. Nesse sentido, enquanto os resenhista, o autor do artigo empenha-se em refletir sobre o assunto e
rótulos prospectivos apontam para o que se pode esperar a seguir, os tenta encontrar uma resposta para quatro questões fundamentais. Este
rótulos retrospectivos exercem a função de sinalizar uma mudança último rótulo anuncia que tipo de organização se imprimirá ao dis-
de tópico ou de ligar entre si tópicos no interior do discurso. curso. O modificador fundamentais caracteriza a postura avaliativa
A noção de encapsulamento, relacionada com os rótulos re- do resenhista.
trospectivos, é vista por Conte (1996: 1) como “um dispositivo coesivo Esse procedimento de rotulação reaparece no exemplo (2),
pelo qual um sintagma nominal funciona como a paráfrase sumária em que o resenhista anuncia o conteúdo a ser desenvolvido na se-
de uma porção precedente do texto”. Essa anáfora “lexicalmente ba- qüência através do grupo nominal duas respostas, retomado no pará-
seada” apresenta um “nome geral” como núcleo do sintagma nomi- grafo seguinte por a outra mostra:
nal e “uma clara preferência por um determinante demonstrativo” (2) Por que haveria esse destaque para a pobreza na Bíblia? Barth
(idem). Os grupos nominais, entretanto, nem sempre são oferece duas respostas: a pobreza não é condição natural de
“atitudinalmente neutros” (Francis, 1994: 93). Assim, muitos rótulos vida...
são explicitamente avaliativos, sendo realizados lexicalmente atra- A outra mostra de Barth para o destaque que a Bíblia dá à
vés de “axiônimos”, i.e., nomes avaliativos (Conte, op. cit.: 1). pobreza é que em grande humilhação Deus, em Jesus Cristo, tornou-
Os rótulos discursivos apresentam um potencial não explora- se o Senhor da humanidade... (RA2)
do na análise da estrutura do gênero resenha. Considero, com Bhatia Sobre o papel do rótulo prospectivo em permitir ao leitor “a
(1997: 637), que a avaliação é um dos “valores genéricos” mais rele- predição exata da informação que se seguirá” (Francis, 1994: 84),
vantes como “estratégia persuasiva para atingir o efeito promocional cabe um importante reparo: o rótulo não possibilita saber o conteúdo
ideal” em uma resenha. Dessa forma, os rótulos avaliativos serão da informação, e sim o tipo de organização que se dará ao discurso.
especialmente significativos na presente análise. Pretendo, assim, Em casos como o exemplo (1), o acréscimo do modificador funda-
examinar a aplicabilidade da noção de rótulos discursivos como es- mentais revela ainda como o resenhista encara o material que apre-
tratégia de referenciação e sinalização lexical na estrutura do gênero sentará em seguida. No exemplo (2), a rotulação é “atitudinalmente
acadêmico resenha. neutra” (Francis, op. cit.: 93), não avaliativa. A “outra mostra”, apre-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 453


sentada como uma das duas respostas, nada demonstra da visão pes- (7) Karl Barth... ocupa-se neste artigo do exame das respostas da
soal do escritor/resenhista sobre o material analisado. Muito diferen- das pelos cristãos à questão dos judeus, desde o começo da era
te é o caso abaixo, em que o escritor avalia os conceitos selecionados cristã, considerada como problema a ser resolvido.
como “importantes”. O uso do modificador revela a atitude do escri-
O artigo é de 1949, pouco tempo depois da criação do Estado
tor em relação à matéria analisada:
de Israel pela ONU, e o teólogo junta a sua às reflexões múltiplas e
(3) O autor nos alerta também para dois conceitos importantes: obras de vulto que surgem naquele momento histórico.
Satanás não consegue ler a sua mente e não conhece o seu Introduzindo o tema, o autor assinala que... (RA1)
futuro. (RE2) Um rótulo explicitamente avaliativo encontra-se no exemplo (8):
As demais ocorrências do corpus podem ser inseridas sempre
em duas categorias principais, como já mostraram os exemplos cita- (8) Por que o anti-semitismo? O que é que se tem contra os judeus
dos. A partir dessa análise, posso afirmar, pelo menos provisoria- para que aflore, até no século das luzes, estúpido como sem
mente, e seguindo Francis (op. cit.), que os rótulos prospectivos po- precedentes? Barth ressalta duas respostas: mesmo que se saiba
dem ser avaliativos ou não-avaliativos (“atitudinalmente neutros). que o judeu não é pior do que qualquer outra pessoa, provavel
Demonstro isso novamente nos exemplos (4), (5) e (6). mente seja visto como um espelho que reflete nossa imagem,
ü rótulo prospectivo avaliativo: caracterizado como “palavra esta apresentada como “a ruindade de todos nós” (p. 331). se
profética”, o conteúdo do livro é apresentado como algo indispensá- estiver pagando o preço por ser o povo escolhido por Deus,
vel, espécie de revelação divina para o público-alvo. aquele judeu crucificado também o fez, carregando a culpa de
(4) Dar tempo para família ou ler mais um livro? Bom, já que é o todos... Como essa pequenez do judeus é a mesma de todas as
livro Pastores em perigo, então eu vou ler mais esse. pessoas, elas tendem a desprezá-los. Daí, o anti-semitismo.
(RA1)
Nessa palavra profética aos pastores do nosso tem-
po o autor, Pr. Jaime Kemp, traz uma advertência muito séria aos Da mesma forma, em (9), o sintagma desse suposto problema
líderes do rebanho evangélico brasileiro. (RE5) revela, pelo uso do modificador suposto, o posicionamento do escri-
ü rótulo prospectivo não-avaliativo: a informação sobre o au- tor quanto à existência ou não de “diferenças” entre Paulo e Tiago:
tor da obra resenhada é dada em termos de “realidades pessoais”. (9) No livro de Tiago, a justificação poderia ser um ponto polêmi
Embora vise ao credenciamento do autor, o rótulo aplicado assume co onde aparentemente ocorre uma diferença de posição entre
uma forma extremamente sóbria. O que há de avaliativo verifica-se Paulo e Tiago em relação a fé e obras no contexto da justifica
propriamente na realização lexical do rótulo, e não no rótulo em si. ção. Ladd coloca duas diferentes posições defendidas por teó
(5) Ex-diretor do respeitado Instituto Cristão de Pesquisas, Ro logos a respeito desse suposto problema e procura abrandar esse
meiro fala a partir de três realidades pessoais: primeiro, ele é problema da forma mais diplomática possível. (RA8)
pentecostal... segundo, ele demonstra boa bagagem bíblico- Em RA2, o exemplo (10) apresenta dentro dessa visão como
teológica... terceiro, sua pesquisa é firmemente documentada... rótulo para o que Francis denomina de “processo mental” (op. cit.:
(RE3) 92). Como a autora ressalta, nem sempre é fácil diferenciar a realiza-
O mesmo tipo de distanciamento se verifica em (6), só se ção de um “processo mental” de um ato ilocucionário ou de uma
desfazendo na continuação do texto, quando o escritor explicitamen- “atividade de linguagem”.
te manifesta sua preferência pela primeira possibilidade: (10) O texto é bem pequeno, mas marcante em essência. O autor
(6) Vemos, conforme a abordagem evangelical, três possibilida analisa o trato sociológico que sempre tem sido dado ao problema da
des para a autoridade da Bíblia: pobreza considerada como necessidade material na vida. Dentro des-
sa visão, os pobres seriam aqueles que, voluntariamente ou não, ti-
 A Bíblia como revelação objetiva da verdade de Deus e o vessem necessidade de bens necessários à subsistência e que estari-
Espírito Santo como guia para a interpretação; am ao seu alcance se seus recursos financeiros permitissem isso.
 Podemos nos submeter às tradições teológicas; No exemplo (11), o rótulo é metalingüístico (este estudo) e é
 Podemos apelar para a razão ou para experiências pessoais. introduzido por um ato ilocucionário representado pelo verbo con-
3.2. Rótulos retrospectivos: Enquanto o rótulo prospectivo tem cluo, que tem como cognato o “nome ilocucionário” conclusão, não
natureza catafórica, indicando ao leitor que tipo de expectativa ele lexicalizado no texto. Estudo encapsula todo o conteúdo da resenha,
pode ter sobre o desenvolvimento do discurso, o rótulo retrospecti- como nome-núcleo típico de “atividades de linguagem”, refletindo
vo, já lexicalizado, presta-se ao encapsulamento anafórico (Francis, uma apreciação atitudinalmente neutra do conteúdo analisado. Não é
1994; Conte, 1996; Koch, 1999) de um segmento textual previamen- o que acontece no exemplo (12), em que parâmetros avalia positiva-
te realizado. Como tal, “não há um grupo nominal particular a que mente o texto resenhado, tratando como padrão ou medida a aborda-
ele se refira; não é uma repetição ou ‘sinônimo’ de nenhum elemento gem feita pelo autor do texto-fonte.
precedente” (Francis, 1994: 85). Referindo-se a uma informação dada,
(11) Concluo com este estudo que devemos ter bastante cuidado
acrescenta algo de novo em termos de como deve ser interpretada a
com a tendência de interpretação do texto... (RA3)
seção encapsulada, em relação à qual o rótulo se apresenta como
(12) Depois destes parâmetros da Hermenêutica contemporânea que
equivalente. Quanto ao aspecto formal, normalmente o rótulo apare-
mostra Jesus o Deus encarnado e [a] autoridade da Bíblia na
ce na abertura de um novo parágrafo, alternando ou ligando tópicos.
abordagem evangelical... (RA3)
No exemplo (7), o tema é a expressão que inclui tudo que foi
dito a respeito do artigo sob análise do resenhista. Descreve uma RA5 é particularmente rica no que diz respeito ao
“atividade de linguagem”(Francis, 1994: 91; Koch, 1999: 5) que in- encapsulamento de segmentos localizados do texto, sempre com ca-
clui as referências anteriores a “exame das respostas dadas...” e “o ráter metadiscursivo ou metalingüístico. Neste sentido, verificamos
teólogo junta a sua às reflexões múltiplas...”. Além disso, o rótulo nomes designativos de “atividades de linguagem”, no exemplo (13);
tema aponta para o caráter metadiscursivo da atividade de produção nomes referentes a processos mentais, no exemplo (14); e nomes
de uma resenha. “ilocucionários”, no exemplo (15).

454 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


(13) A visão e abordagens dos hermenêuticos tradicionais, em que A comparação entre as resenhas do grupo RA com as rese-
apresentam o leitor capaz de estudar o texto, e entender o seu nhas do grupo RE revela, no tocante à avaliação, aspecto essencial
significado perfeitamente. Por outro lado, declara o autor desta na configuração do gênero, significativas diferenças. A tabela abaixo
obra, a existência dos hermeneutas liberais os quais fazem a mostra que a postura avaliativa é predominante nas resenhas RE, em
interpretação baseado pelo literal e a visão que cada um tem ambos as modalidades de rotulação. As resenhas RA, apesar de utili-
em particular. zarem 79% mais rótulos que as resenhas do outro grupo, avaliam
Em meio a toda essa discussão, surgem os tipos de aborda- bem menos. Em um total de 34 rótulos das resenhas RA, apenas 10
gens como a subjetiva.
(14) O autor dá muita ênfase ao pensamento de Bultmann, por
este ser considerado um dos mais significativos dos eruditos
do século XX. E uma dessas ênfases é o método que ele
desenvolveu, a “demitização”, e esse método diz que os even
tos estão ligados por sucessão de causa e efeito. Nesta visão (30%) são avaliativos; entre as resenhas RE, 11 (58%) de um total de
a Bíblia perde a sua credibilidade por causa dos elementos 19 rótulos são avaliativos.
sobrenaturais.
Tabela: A rotulação em resenhas acadêmicas
(15) O autor desta obra tem sido feliz em colocar com toda a segu Os dados da tabela também confirmam a idéia de Francis de
rança e conhecimento de causa que há uma necessidade por que “rótulos retrospectivos são muito mais comuns que rótulos
parte do leitor do uso de padrões para ajudá-lo a compreender prospectivos” (1994, p. 89). No grupo RA, 80% dos rótulos são re-
o autor da Escritura, a fim de que este leitor tenha uma aborda trospectivos; no grupo RE, o percentual cai para 73%.
gem mais adequada e mais fiel ao original da Escritura. Ele Quanto ao uso da estratégia de rotulação em resenhas acadê-
ainda faz uma advertência... micas, verificamos que o grupo RA utiliza uma média de 3,4 rótulos
para cada resenha; o grupo RE, por sua vez, apresenta a média de 1,9
Ao afirmar essas colocações, o Richard explica que esses rótulos para cada resenha.
princípios ajudarão ao leitor avaliar sua perspectiva pessoal...
As resenhas do grupo RE apresentam raros mas altamente 1. Conclusão
avaliativos rótulos do tipo retrospectivo. Em RE1, a avaliação é
atitudinalmente negativa: Através da análise dos dois grupos de resenhas, demonstrei
que os aportes de Francis (1994) podem ser aplicados para o exame
(16) Por falta de avaliação bíblica dos fenômenos – riso do Espíri das estratégias de referenciação no interior do gênero acadêmico re-
to, grunhidos, rugidos e vômitos supostamente provocados pelo senha. O uso da rotulação mostrou-se bastante produtivo para reve-
Espírito (e a lista vai crescer) – que Wimber e Deere inicial lar a postura mais ou menos avaliativa dos resenhadores.
mente aprovaram, o nome de Cristo e o próprio movimento Além disso, constatei diferentes atitudes, nos dois grupos de
carismático moderno sofreram nas mãos da mídia secular. In resenhas, quanto à utilização de rótulos e quanto ao nível da avalia-
felizmente (para eles), Wimber, Deere e outros teóricos do ção empreendida na produção das resenhas. Os especialistas (grupo
Vineyard, tiveram que engolir seu endosso inicial à Bênção do RE) parecem mais conscientes da natureza avaliativa do gênero. Os
Toronto, que recentemente repudiaram e condenaram por es alunos (grupo RA), ou por não dominarem o gênero, ou por não
crito. Essa falta de percepção parece algo surpreendente para possuírem os recursos teóricos necessários para uma avaliação mais
pessoas de tamanha intimidade com o Espírito Santo! completa, apresentam um uso mais restrito dos rótulos avaliativos.
A referenciação, tal como enfocada aqui, apresenta-se como
Igualmente avaliativo, mas em sentido positivo, é o exemplo (17):
importante instrumento para ajudar no desenvolvimento de uma ta-
(17) Diferente de um documentário, Evangélicos em crise vibra a refa ainda em construção: o mapeamento da estrutura e das caracte-
ira e a preocupação do autor quanto às aberrações no às vezes rísticas de um vasto repertório de gêneros textuais. O tipo de enfoque
ingênuo campo evangélico. É um livro de paixão sobre um dado neste trabalho poderá ser particularmente relevante para aplica-
assunto que exige paixão: o testemunho de Jesus Cristo atra ção em pesquisas mais extensas e aprofundadas.
vés da sua Igreja no Brasil... Não é surpreendente que, publi
cado em dezembro de 1995, o livro já (em agosto de 1996) Referências bibliográficas
está na terceira edição. Cada obreiro e cada congregação pre
cisam ouvir essa chamada claríssona. (RE3) ARAÚJO, A. D. Lexical signalling: a study of unspecific-nouns in
book reviews. Florianópolis: UFSC, 1996. (Tese de Doutorado)
O exemplo (18) mostra, através do “nome ilocucionário” afir- BHATIA, Vijay. Genre analysis today. Revue Belge de Philologie et
mações, uma maneira atitudinalmente neutra de fazer o d’Histoire, 75(3):629-652, 1997.
encapsulamento anafórico. CONTE, Maria-Elisabeth. Anaphoric encapsulation. Belgian Journal
of Linguistics. 10:1-7, 1996.
(18) Neil diz que “não há novidade alguma no fato de as pessoas
CRISMORE, A. Metadiscourse and discourse processes: interactions
tentarem atender às suas necessidades espirituais independen
and issues. Discourse Processes, 13:191-205, 1990.
temente de Deus” (p. 37), e complementa: “Ao contrário do
FRANCIS, Gill. Labelling discourse: an aspect of nominal-group
que ensina a Nova Era, você nunca teve o potencial para vir a
lexical cohesion. In: COULTHARD, Malcolm. Advances in
tornar-se um deus, você não o tem agora e jamais o terá. Só
written text analysis. Londres: Routledge, 1994. p. 83-101.
Deus é capaz de ser Deus” (p. 39). Estas afirmações nos fa
KOCH, Ingedore. A construção discursiva da referência. Campinas:
zem refletir sobre a onda de “otimismo”, “pensamentos positi 1999 (mimeo).
vos”, “energias” e “poderes” com que somos bombardeados MOTTA-ROTH, D. Rhetorical features and disciplinary cultures: a
no dia-a-dia e que nos fazem esquecer que dependemos da genre-based study of academic book reviews in linguistics,
graça de Deus na nossa vida. chemistry and economics. Florianópolis: UFSC, 1995. (Tese de
3.3 Uma visão global dos dados Doutorado)

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 455


RODRIGUES, Bernardete Biasi. Estratégias de condução de infor- _____ . Research into the structure of introductions to journal articles
mações em resumos de dissertações. Florianópolis: Universida- and its application to the teaching of academic writing. In:
de Federal de Santa Catarina, 1998. (Tese de doutorado) WILLIAMS, R., SWALES, J., KIRKMAN, J. (eds.) Common
SWALES, John M. Genre analysis: English in academic and research ground: shared interests in ESP and communication studies.
settings. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. Oxford: Pergamon Press, 1984. p. 77-86.

456 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Dêiticos discursivos na fala e na escrita
Alena Ciulla
Universidade Federal do Ceará - UFC

ABSTRACT: In this research, we investigate the relationship among the forms of manifestation of the DD and their discoursive functions, considering
the texts correspondence across speech and writing. We observe that when manifested by NPs, besides their role as a cognitive guide, DD has an
argumentative function.
PALAVRAS-CHAVE: dêiticos discursivos, funções discursivas, monitor cognitivo

0. Introdução a autora considera quatro subtipos de dêiticos discursivos, conforme


segue:
Os objetivos desta pesquisa são: a) verificar quais os tipos de a) Dêiticos discursivos “dêiticos”: recuperam entidades já
DD que ocorrem mais freqüentemente nos artigos científicos e nas introduzidas no contexto e mantêm um vínculo com o espaço
aulas, considerando a correspondência que esses textos mantêm no extralingüístico. Neste subtipo, a posição do falante coincide com a
continuum fala-escrita; b) verificar quais as formas de manifestação do texto;
que costumam associar-se aos tipos de DD encontrados; c) relacio- b) Dêiticos discursivos textuais: exercem a função de organi-
nar as diferentes formas de manifestação e os tipos de DD encontra- zar porções do discurso, guiando a atenção do destinatário para ele-
dos às funções que desempenham nos contextos pesquisados; e d) mentos de acordo com a sua disposição física no próprio texto;
testar a classificação de DD adotada. c) Dêiticos discursivos da memória: chamam a atenção do des-
Até este momento da pesquisa, analisamos 12 exemplares de tinatário para um elemento do discurso e recategorizam-no sob um
textos acadêmicos, sendo 3 falados, com um total de 21.136 palavras novo aspecto pertencente ao conhecimento partilhado. Não se refe-
e 9 escritos, com um total de 20.836 palavras. Classificamos as dife- rem pontualmente, mas resumem porções inteiras do discurso anteri-
rentes formas de realização dos DD em cada modalidade falada e or e acrescentam informações novas.
escrita, e analisamos algumas funções cognitivo-discursivas que po- d) Dêiticos discursivos do contexto: orientam os focos de aten-
dem ser desempenhadas por esses elementos nos diferentes contex- ção do destinatário, referindo-se a informações difusas do texto.
tos enunciativos. Ao analisar as funções desempenhadas pelas expressões
No decorrer desta pesquisa, pretendemos trabalhar com dois indiciais, Cavalcante aponta duas que merecem maiores investiga-
corpora: o primeiro consta de artigos científicos para anais de con- ções e que são consideradas como hipóteses para a análise do correlato
gresso, selecionados do Projeto de organização textual na fala e na forma-função dos DD nos textos examinados por esta pesquisa: a de
escrita, da UFC, e de exemplares de textos falados, especificamente que os DD do contexto, quando representam expressões rotuladoras,
aulas, escolhidas dentre as Elocuções Formais do projeto ajudam a construir o ponto de vista do enunciador e a de que os DD
PORCUFORT (Português Oral Culto de Fortaleza), organizado pelo realizados por pronomes demonstrativos estão, muitas vezes, associ-
Prof. Dr. José Lemos Monteiro. O segundo - organizado pelo Prof. ados a mudanças de tópico.
Francisco Roterdan Damasceno, aluno do Programa de Pós-Gradu- Como essa classificação ainda não foi aplicada a um corpus
ação em Lingüística, da UFC - é constituído de tomadas de depoi- amplo, esta pesquisa é uma oportunidade de verificarmos o seu
mento de instrução penal (representando a modalidade falada) e de comportamento em uma análise comparativa entre textos falados
termos de interrogatório do acusado (representando a versão escrita e escritos.
das tomadas de depoimento). O número de textos vai depender da Cavalcante dedica, no entanto, um capítulo muito breve à cor-
quantidade de palavras de cada um, de modo que, ao final, tenhamos relação forma-função dos DD na fala e na escrita, considerando tam-
uma distribuição de palavras equivalente entre a modalidade escrita e bém o grau de espontaneidade. Em vista disso, nosso trabalho se faz
a falada. relevante na medida em que dá continuidade a esta investigação.
Como Marcuschi (1996), a autora também encontrou um mai-
1. Pressupostos teóricos or número de DD em textos mais formais e um percentual reduzido
nas modalidades faladas, o que a levou a concluir que os contextos
Para identificar os diversos tipos de DD e estabelecer a relação escritos mais formais são os mais favoráveis à ocorrência dos DD.
entre suas formas e funções, partimos da caracterização proposta por Uma das motivações desta pesquisa foi a indicação de Caval-
Cavalcante (2000), em sua tese de doutorado. A autora parte de uma cante de que ocorrem variações importantes no uso de expressões
importante distinção entre dêixis e anáfora, pois, por serem expres- dêiticas em diferentes contextos. Porém, as constatações da autora
sões que remetem dentro do contexto e, ao mesmo tempo, apresenta- sobre esse aspecto não foram aprofundadas, uma vez que não era seu
rem características de subjetividade, os DD são freqüentemente con- propósito investigar as diferenças no funcionamento da dêixis
fundidos com alguns anafóricos. Embora os DD recuperem informa- discursiva entre vários gêneros falados e escritos. Além disso, os cri-
ções difusas, e os anafóricos apresentem a tendência de referirem-se térios de modalidade fala-escrita e espontaneidade não são suficien-
a entidades pontualmente identificáveis, esse critério ainda não é su- tes para uma avaliação adequada. De acordo com Marcuschi (1999)
ficiente para diferenciar os dois tipos de elementos, já que há um tipo e Biber (1988), existe não uma separação dicotômica entre essas duas
de anafórico que, ao modo dos DD, resume informações difusas. Nesse modalidades de linguagem, como faz supor a autora, mas uma cor-
caso, conforme demonstra Cavalcante, o único modo de diferenciar respondência entre a variação lingüístico-textual na relação fala-es-
DD de anafóricos resumidores é ter em conta o caráter dêitico dos crita e a variação tipológica entre textos falados e escritos. Portanto,
primeiros, pelo qual se estabelece um elo com as coordenadas da para que se possa estabelecer com rigor um paralelo entre traços
situação enunciativa. lingüísticos presentes em textos falados e escritos, é preciso que o
De acordo com as diferentes motivações dos elementos dêiticos, estudo seja feito através da comparação entre gêneros que compor-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 457


tem uma relação de proximidade. Por esse motivo, para esta pesqui- papel de organizar o discurso, direcionando o foco de atenção dos
sa, foram escolhidos textos escritos de comunicações em congressos interlocutores a objetos discursivos, funcionando como um “monitor
e exposições acadêmicas orais, por um lado, e textos-depoimento cognitivo”.
(falados) e textos consignados (escritos), por outro, pois são fenôme- Esse aspecto, que foi também observado por Cavalcante (2000)
nos discursivos que apresentam uma equivalência no continuum fala- e contribuiu para a caracterização dos DD pela autora, é de grande
escrita. importância para a descrição funcional da dêixis discursiva nos tex-
Esta pesquisa também é baseada em um trabalho de Marcuschi tos que estamos examinando. O que pretendemos defender, no entan-
(1996), em que o autor faz um levantamento com base em 60 textos to, é que, embora os DD efetivamente se comportem como orientadores
de língua escrita em um total de 46.500 palavras e em outros 14 cognitivos, auxiliando os interlocutores a relacionar os enunciados,
textos de língua falada totalizando 46.463 palavras. Na sua análise essa não é a sua única função. Se levarmos em consideração alguns
sobre a presença dos dêiticos nesses textos, foram identificadas 6.299 exemplos de DD que foram encontrados na pesquisa de Marcuschi,
expressões dêiticas, sendo que os DD ocuparam o terceiro lugar em como acima e a seguir, precisaremos concordar com o autor quanto
termos de quantidade, com 159 ocorrências na fala e 195 na escrita. ao fato de que, nesses casos, os DD não contribuem para ampliar o
Esses dados são interessantes na medida em que indicam a significa- conteúdo proposicional, operando meramente para a qualidade do
tiva presença dos DD nas duas modalidades. foco. Esse tipo de dêitico, conforme Cavalcante (2000), serve para
Marcuschi constatou importantes diferenças no comportamento guiar a atenção do ouvinte/leitor quanto à disposição dos referentes
dos DD na fala e na escrita, dentre as quais destacamos as seguintes: no texto. Empresta saliência cognitiva aos objetos referidos, sem,
- os DD foram mais freqüentes na fala, porém na escrita apre- no entanto, acrescentar-lhes informações.
sentaram uma maior variação de itens lexicais. Observe-se, agora, o exemplo abaixo encontrado por Marcuschi
- na modalidade falada, 60% das ocorrências concentraram-se (1996) em um artigo científico:
no item isso, enquanto que na escrita houve uma maior diversifica-
ção, principalmente entre as formas esse+ /nome/, aqui, para isso e (1) “essas especulações são, como viram, muito limitadas” (p.8)
com isto.
Outro ponto abordado pelo trabalho é a relação entre os gêne- Embora não disponhamos do trecho anterior a essa passagem,
ros textuais e os DD. Marcuschi encontrou um maior número de DD podemos supor que, em (1), o enunciador vinha enumerando algu-
em textos mais formais, especialmente nos científicos e nos jurídi- mas proposições, as quais foram finalmente nomeadas por essas es-
cos. Segundo o autor, isso pode ser explicado pelo fato de que em peculações. Essa expressão dêitica funciona aqui como um rótulo
textos científicos e jurídicos há uma preocupação maior em organi- (Francis, 1994) que categoriza um novo referente para o discurso.
zar o conteúdo do texto. Tal categorização obviamente contribui para o propósito
Marcuschi aponta também a relação entre a ocorrência de DD argumentativo do autor, já que acrescenta um novo ponto de vista. O
e o número de palavras do texto, isto é, textos com maior número de falante escolheu o termo especulações dentre todos os que poderiam
palavras provavelmente apresentarão maior quantidade de DD. figurar em seu lugar, os quais poderiam se adequar ao contexto, mas
Portanto, para o autor, há uma grande probabilidade de ocor- não ao seu propósito.
rer um maior número de DD em textos jurídicos e científicos, tanto Vejamos, abaixo, dois exemplos semelhantes a esse encontra-
pela questão da formalidade quanto pelo número de palavras. do no corpus dessa pesquisa:
O trabalho de Marcuschi carece, porém, de uma análise sobre (2) “...ela pode se deslocar da sua base material (né?)... se des-
as relações entre as formas de manifestação e a função dos DD nos locando de sua base material ela pode começar a pensar coisas dife-
diferentes gêneros situados no continuum fala-escrita e nos diferen- rentes do real... (/tende?) esse é o grande vôo que a gente /tende
tes graus de formalidade. Como o próprio autor reconhece, o seu nessa explicação da existência e consciência da divisão do trabalho...”
corpus é restrito e não possibilita uma análise que possa confirmar e (Inquérito n° 18 – EF – PORCUFORT)
explicar adequadamente essas relações. (3) “... que é uma das evoluções da Astronomia (...) então se
Consideramos importante a investigação desses aspectos na tem podido ir muito mais longe... porque eletronicamente se pode
medida em que contribuem, efetivamente, para a análise do funcio- fazer um telescópio funcionar com uma potência(...) mas hoje já exis-
namento dos DD na organização textual, o que não seria possível tem aparelhos... ou dobro do tamanho do Palomar(...)então com todo
alcançar com a mera constatação dos percentuais de ocorrência em esse avanço da puxada e a imagem trabalhada no computador (...)toda
cada modalidade. Tomamos as conclusões de Marcuschi, no entanto, essa tecnologia tem permitido a gente(...).” (Inquérito n° 53 - EF –
como base para algumas hipóteses específicas desta pesquisa. Par- PORCUFORT)
tindo do pressuposto de que textos científicos e jurídicos são ambi- Com base nestas evidências, outra hipótese se apresenta, no
entes discursivos propícios para que ocorram DD em grande número que diz respeito à função dos DD e à relação forma/função: a de que
e variedade, escolhemos essas duas “instâncias de formação os dêiticos discursivos, mais especificamente os do contexto, funcio-
discursiva”1 (cf. Marcuschi, 1999:5) como corpus desta pesquisa. nam muito freqüentemente como rótulos, tal como foram descritos
Com base em um número maior de textos, buscamos ampliar o estu- por Francis (1994), e cumprem um papel altamente argumentativo.
do iniciado por Marcuschi em termos de extensão e também em ter- Identificamos também, conforme indicação de Cavalcante
mos de detalhamento de como funcionam os DD nos contextos sele- (2000), um outro tipo de função, que Apothéloz e Chanet (1997)
cionados.
Marcuschi (1995; 1996) ressaltou também a dificuldade de
definir com precisão todos os casos de DD e, não identificando os
diferentes tipos de DD, conseqüentemente, não os relacionou aos 1
Marcuschi (1999) trata como “instâncias de formação discursiva” as dife-
variados papéis que podem desempenhar na organização textual. rentes espécies de discurso, como o discurso jurídico, o jornalístico, o reli-
No que diz respeito à função dos DD, o autor baseia-se princi- gioso etc. São como linguagens utilizadas em certas esferas de comunica-
palmente em Ehlich (1982), e faz a relevante constatação de que a ção. Não representam nem tipos discursivos, como o narrativo, o descri-
dêixis discursiva é um tipo de referenciação que tem a função de tivo e o expositivo (que são construtos teóricos), nem gêneros textuais,
orientar tanto o ouvinte quanto o leitor. Os DD cumpririam, então, o como o artigo científico, a tomada de depoimento etc. (que são formas
lingüisticamente realizadas, encontradas em textos empíricos).

458 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


denominaram como “marcação de parágrafo” e que diz respeito a festado principalmente através de SNs avaliativos pode contribuir
uma mudança de tópico operada pela expressão. Observemos estas para a força de argumentação do texto.
expressões: Até o presente momento, foi feita uma primeira análise de
(4) “Eles serão então levados a procurar as formas que lhes parte dos dados encontrados em textos acadêmicos falados e escri-
pareçam mais apropriadas para expressar suas intenções comunica- tos. Investigaremos, numa próxima etapa da pesquisa, a hipótese de
tivas. Desse modo, o trabalho com as formas nunca está que os textos jurídicos também mostram diferenças no comporta-
dissociado...” (artigo científico – Projeto de organização textual na mento dos DD se comparados com os textos acadêmicos.
fala e na escrita)
4. Referências Bibliográficas
(5) “Pode-se dizer que a poesia intersignos revisitou nossa tra-
dição poética a partir da visualidade e apresentou uma nova proposta APOTHÉLOZ, D; CHANET, C. (1997). Défini et démonstratif dans
de leitura e de criação. Nesse novo quadro, a poesia concreta, por les nominalisations. In: MULDER, W. de; RYCK, L.T.;
exemplo, é colocada em seu devido lugar...” (artigo científico – Pro- VETTERS, C.(eds.) Relations anaphoriques et (in)cohérence.
jeto de organização textual na fala e na escrita) Amsterdam: Rodopi. P. 159-86.
Podemos perceber, nestes exemplos, que o conteúdo relevante BIBER, D. (1988). Variation across speech and writing. Cambridge:
para o propósito do enunciador foi salientado através das expressões University Press.
dêiticas desse modo e Nesse novo quadro, e inauguram um novo CAVALCANTE, Mônica M. (2000). Expressões indiciais em con-
ponto a ser discutido. textos de uso: por uma caracterização dos dêiticos discursivos.
Tese (Doutorado em Lingüística) – Universidade Federal de
3. Conclusão Pernambuco. 205p.
EHLICH, Konrad. (1982). Anaphora and deixis: same, similar or
Os resultados, até agora, permitem as seguintes constatações different? In: JARVELLA, RJ.; KLEIN, W. (eds.) Speech, place
quanto à forma de manifestação e quanto aos tipos de DD: and action: studies in deixis and related topics. New York: John
- tanto na modalidade escrita quanto na falada, a maior ocor- Wiley and Sons. P.315-38.
rência é de dêiticos discursivos do contexto; FRANCIS, Gill. (1994) Labelling discourse: an aspect of nominal-
- na fala, o pronome substantivo isso é a forma mais ocorrente; group lexical cohesion. In: Coulthard, M. (ed.). Advances in
- as expressões encapsuladoras manifestadas por SNs com written text Analysis. Londres: Routledge.
pronomes demonstrativos são as mais freqüentes na escrita. MARCUSCHI, Luiz Antônio. (1995) Fala e escrita: relações vistas
Os dêiticos do contexto que mais aparecem na fala, por vale- num continuum tipológico com especial atenção para os dêiticos
rem-se de formas mais neutras, representadas principalmente pelo discursivos. Anais do II Encontro Nacional sobre Fala e Escrita,
pronome isso, normalmente apresentam uma função de sinalizar que Maceió.
o falante está avançando para um novo estágio em sua explicação. Já MARCUSCHI, L.A. (1996). A dêixis discursiva como estratégia de
na escrita, são mais freqüentes os DD do contexto que se manifestam monitoração cognitiva. In: KOCH, Ingedore G.V.; BARROS,
através de rótulos com SNs, os quais, além de inaugurar um novo Kazuê S.M. (orgs.). Tópicos em lingüística de texto e análise da
tópico a ser abordado, também têm forte poder resumidor e conversação. Natal: EDUFRN, p. 156-171.
argumentativo. _____. (1999). Por uma proposta para a classificação dos gêneros
Muitas vezes, além de sumarizar um conteúdo, o DD mani- textuais. Recife: UFPE. /Versão provisória.

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Os dêiticos na correspondência eletrônica
Maria Helenice Araújo Costa
Universidade Estadual do Ceará - UECE

ABSTRACT: This work investigates the behavior of deixis in the discourse organization of e-mail. In the perspective of a continuum speech-writing,
we consider that the utterance in e-mail is similar, in many aspects, to spontaneous conversation. The study examines to that extent the deictic forms
reflect these aspects giving the e-mail messages an intermediate status between oral and written discourse.
PALAVRAS-CHAVE: fala – escrita; e-mail; dêixis

1. Introdução Interessa-nos, neste trabalho, o gênero epistolar (ao qual per-


Numa visão processual da linguagem, a situação de produção e tence a carta pessoal) e, particularmente, o subgênero correspondên-
recepção do discurso desempenha importância fundamental. O uso, cia eletrônica.
na comunicação, de tecnologias modernas como o computador gera
novas situações que, naturalmente, interferem na organização das in- 3. O gênero epistolar
formações nos textos. Assim, as mensagens via correio eletrônico, Do ponto de vista funcional, o rótulo gênero epistolar (ou
embora se assemelhem em alguns aspectos às cartas tradicionais, apre- “gêneros carta”) abriga uma multiplicidade de textos com propósitos
sentam características específicas, mais próximas às da fala, em fun- tão variados que se torna difícil caracterizar todos eles sob um mesmo
ção do veículo. conjunto de critérios. Conforme Paredes Silva (1997:121) observa:
Esta pesquisa, que ainda se encontra em fase inicial, enfoca o De fato o rótulo carta é abrangente e pouco esclarecedor:
uso dos dêiticos na correspondência eletrônica. Tendo em vista o excetuando-se o formato externo – cabeçalho, data, assinatura
papel desempenhado pela dêixis na ordenação do discurso (cf. Tauste, – e algumas expressões formulaicas freqüentes em suas seções
2000), nosso objetivo é investigar o comportamento dos dêiticos em iniciais e finais, o corpo da carta permite qualquer tipo de
um corpus formado por 45 mensagens eletrônicas provenientes de comunicação: desde as vantagens de um determinado cartão
correspondência pessoal e de uma lista de discussão. Duas perguntas de crédito até informações sobre o condomínio, passando pe-
básicas orientarão o futuro desenvolvimento do trabalho. São elas: las esperadas novidades do amigo que mora no exterior. To-
a) Como se distribuem nos textos os diversos tipos de dêiticos? das elas são cartas, mas não devemos colocá-las na mesma
b) Como funcionam esses elementos a serviço da organização categoria.
dos textos em questão? Paredes Silva propõe que qualquer gênero se descreva segundo
três níveis. O primeiro seria o das estruturas discursivas, ou do que se
2. O continuum fala – escrita tem chamado de tipos de texto. Trata-se de rotinas retóricas ou de
Estudos mais recentes sobre gêneros textuais defendem a idéia seqüências convencionais para se organizar o discurso. Os cinco tipos
de que os textos orais e escritos se distribuem ao longo de um continuum de texto mais citados são o narrativo, o descritivo, o expositivo, o
tipológico em cujos pólos se localizam a conversação face-a-face e o argumentativo e o injuntivo. Podemos dizer, com a autora, que, sob
ensaio científico, considerados, respectivamente, protótipos das mo- este primeiro nível, os gêneros epistolares não corporificam nenhum
dalidades falada e escrita. Dentro desse contínuo, quando se levam em tipo específico e podem conter, inclusive, mais de um deles simulta-
conta, além do modo de realização, outras características ligadas às neamente. O segundo nível é o da caracterização do próprio gênero
condições de produção e recepção, percebe-se que alguns textos escri- como unidade comunicativa; são todos os traços que confeririam ao
tos se aproximam dos falados típicos e vice-versa (cf. Biber, 1988; gênero “carta” sua organização típica, tal como é reconhecida social-
Marcuschi, 1999). mente pela comunidade. O terceiro nível seria o funcional-interativo,
Biber (1998) ilustra esse fato ao comparar quatro gêneros: dois aquele que tem em conta os propósitos enunciativos e os eventos a
orais - conversação espontânea e conferência - e dois escritos – carta que o gênero está associado. Sob este último aspecto, como já frisa-
pessoal e ensaio acadêmico, enfocando critérios situacionais (nível de mos, os gêneros epistolares podem cumprir as mais variadas funções
interação, grau de conhecimento partilhado, partilhamento espaço- em diferentes eventos comunicativos – pedido, convite, conselho,
temporal, interação com o texto etc.). Na análise de Biber, para cada cumprimento, recomendação etc. Em qualquer um dos casos, porém,
critério (um total de 10), os textos são classificados de acordo com o está presente a intenção deliberada de estabelecer um contato com o
seguinte código: “+” valor situacional da oralidade; “–” valor situacional leitor. Assim é que, para Herman (2000: 1), o “gênero epistolar procu-
da escrita; “I” valor intermediário, conforme se pode observar no ra transmutar as ausências que lhe são peculiares em presenças da
quadro do autor: conversação face-a-face”.
A conversação típica e o ensaio acadêmico apresentam, con- Violi (2000: 2), atentando para esse caráter interativo das cor-
forme esses critérios, oposição máxima. O primeiro é marcado ex- respondências em geral, refere-se ao gênero epistolar como uma espé-
clusivamente com o símbolo “+” (valor situacional da oralidade) e o cie de “diálogo escrito”. Por outro lado, levando em conta as altera-
segundo com o sinal “–” (valor situacional da escrita). Poderiam, ções decorrentes do meio escrito, a autora deixa claro que há distin-
assim, ser considerados gêneros “puros”. O mesmo não se pode ções entre esse tipo de interação e o que se verifica na conversação
dizer em relação aos outros dois textos. A conferência, embora se face-a-face. Ao contrário do que ocorre no diálogo oral típico, em que
realizando através da fala, apresenta algumas marcas da escrita e os participantes partilham a mesma situação de elocução, cria-se na
diversos valores considerados intermediários. Por sua vez, a carta carta “um vácuo entre o emissor e o receptor”, entre “o tempo e o
pessoal, que é um texto de realização escrita, apresenta predominân- espaço da elaboração do texto e o tempo e o espaço da leitura”
cia de marcas da oralidade e de valores intermediários. São, portanto, No nível do discurso, segundo a autora, esse distanciamento
exemplos de textos “híbridos”.

460 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


espaço-temporal interfere no sistema geral da dêixis. Enquanto nos dade” e pela “volatilidade” que são peculiares à fala. Violi (2000)
diálogos orais típicos o acesso às pessoas do discurso e à sua localiza- aponta, nos textos, a presença de elementos que caracterizam um
ção espaço-temporal é dado pelo contexto situacional, numa carta, estilo altamente informal, como as abreviaturas, as formas elípticas,
esses elementos são inscritos textualmente. Dados como local, data e as construções paratáticas etc. Observa que tais formas são geralmen-
identidade do remetente, assim como a identidade do destinatário te evitadas nas cartas regulares. Acrescentaríamos a esses traços a
(informada por meio do vocativo e mencionada pelo sistema prono- recorrência de palavras dêiticas, tomando por base as constatações de
minal) constituem “a ancoragem para o desenvolvimento (...) do siste- Marcuschi (1997) de que os dêiticos pronominais são muito mais
ma dêitico de referência” (Violi, 2000: 2). freqüentes na fala do que na escrita.
Ferreiro (1992: 99), em suas pesquisas sobre aquisição da es- Quantificando as ocorrências dessas quatro categorias em todo
crita, relata um episódio que ilustra a dificuldade das crianças para o corpus por ele analisado, o autor encontrou os resultados dispostos
entender essa separação entre a escrita e a leitura de uma carta. Ao no quadro que reproduzimos abaixo:
ouvir da mãe a leitura de uma carta que lhe fora enviada pela avó, Ana,
uma menina de 6 anos, vai elaborando sua resposta. Para cada pergun-
ta ou afirmação que ouve, escreve um comentário. Em resposta ao
trecho “Passo horas pensando o que vamos fazer juntas e nos lindos
lugares a que iremos quando for visitá-la”, Ana escreve: “Sabia que o
farias.” À pergunta “Como estão Ricardo e sua família?”, responde:
“Bem.” Como se observa, a atitude de Ana indica que ela reconstituiu
os turnos da conversação. Ferreiro explica que a criança, embora tenha
“competência dialógica”, usou-a numa situação que não é a mesma do Comparando o número de ocorrências de cada tipo nos textos
diálogo face-a-face1 . falados e escritos, verificou que os dêiticos pronominais e espaciais
Ainda em relação ao tempo, Violi caracteriza as mensagens são mais numerosos na fala que na escrita, enquanto os temporais e
escritas, comparando-as com as narrativas. Esclarece que, enquanto discursivos têm uma distribuição muito semelhante nas duas modali-
nestas a distância temporal está apenas implícita no ato da escrita, dades.
naquelas, tal distanciamento “se refere a uma dimensão extratextual Para o autor, a predominância de formas dêiticas pronominais e
precisa (o tempo que a carta levará para chegar ao seu destino)” (Violi, a grande incidência de dêiticos temporais indicam que o discurso está
2000: 2). A esse respeito, é válido conferir a explicação de Zubin e “mais ligado a relações de tempo e pessoa que a relações de espaço”
Hewitt (1995) sobre a organização de histórias orais. Para os autores, (Marcuschi, 1997:164).
o narrador, inicialmente, situa suas memórias no contexto de fala (iden- Um dado, porém, que não foi comentado pelo autor, mas que
tifica personagens, tempo e espaço). Após essa interação inicial, ins- para nós é importante, é a grande diferença entre a freqüência de
tala-se a “ilusão” da história, quando o narrador passa a segundo formas dêiticas espaciais na fala e na escrita. Embora o índice total se
plano, e o mundo da história vem à tona. A partir de então, o tempo e apresente muito baixo, convém notar que, na fala, a incidência é quase
o espaço enfocados são fictícios, isto é, constituem a situação de fala seis vezes maior que na escrita. Acrescente-se a isso a observação do
das personagens2 . autor de que, entre os dêiticos temporais e espaciais, “a qualidade do
uso3 ” é muito diversa, de tal maneira que na fala não se conseguiria
4. O subgênero mensagem eletrônica saber qual a referência pretendida se não se tivesse a situação concreta
Antes de caracterizarmos o subgênero e-mail, convém deixar pela frente.” (Marcuschi, 1997:162).
claro que esse rótulo, mais ainda do que o das cartas pessoais, abriga Todas essas informações nos parecem úteis para este trabalho,
uma grande variedade de usos, estilos e propósitos comunicativos. uma vez que pretendemos investigar possíveis marcas da fala, quanto
Violi (2000) admite que o meio eletrônico pode ser utilizado, quer ao uso dos dêiticos, na correspondência eletrônica. Analisando a pre-
para simplesmente veicular mensagens com características próximas sença dos dêiticos nesse subgênero, buscamos examinar em que medi-
às das cartas comuns, quer para fazer circularem mensagens de caráter da o emprego de diferentes tipos de dêiticos reflete o caráter híbrido –
mais interativo, mais próximas à conversação. É desta última forma, meio fala, meio escrita – dos e-mails.
considerada pela autora como mais peculiar, que tratamos no presente
trabalho. 5. Freqüência de dêiticos nos e-mails
Mesmo a forma típica do e-mail guarda algumas semelhanças O fenômeno da dêixis pode ser entendido como a referência a
com a troca de correspondências tradicional. No que tange à distância elementos do discurso cuja interpretação depende do contexto
espacial, por exemplo, ocorre nesta o mesmo que nas cartas comuns: lingüístico ou extralingüístico da enunciação (os participantes, seu
o “diálogo” se desenvolve por escrito, entre interlocutores distantes. status na interação, o lugar e o tempo onde ocorre a interação ou ainda
Assim, elementos como a identificação do remetente e do destinatário a localização no discurso corrente). Na visão de Tauste (1996), “a
também precisam fazer parte da estrutura textual. dêixis (...) refere-se a uma classe limitada de elementos (os chamados
Mas o e-mail não pode considerado apenas uma versão moder- dêiticos) que têm função referencial, mas devem ser interpretados
na da carta. A tecnologia, como afirma Violi (2000: 1), mais do que um com referência à “origo” do falante (...)”. Cavalcante (2000: 9) explica
simples “artefato”, constitui um “recurso que afeta e transforma as que a condição para que uma determinada forma referencial tenha uso
dimensões de nossa experiência”. Em se tratando do tempo, essa dêitico é que “o posicionamento espácio-temporal do falante”, não
tecnologia provoca uma alteração drástica no e-mail típico, na medida
em que praticamente anula o intervalo entre o envio e o recebimento
de uma mensagem. Tal rapidez na circulação das mensagens, por sua 1 Podemos levantar também a hipótese de que a apresentação oral do
vez, como que restaura os turnos conversacionais, imprimindo a este texto escrito (a leitura pela mãe) tenha simulado, para a criança, a conver-
subgênero características mais próximas às da conversação típica do sação.
que aquelas que se verificam na carta (cf. Biber, 1988). 2 Apesar de a observação ter como foco as narrativas orais, a mudança no
Como resultado dessa maior aproximação com a fala, o estilo campo dêitico (do aqui e agora do narrador para o aqui e agora dos
das mensagens, na visão de Strenski (1995), é marcado pela “prolixi- personagens) ocorre também nas histórias escritas.
3 Grifo do autor.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 461


importando se “dentro do campo dêitico da situação real, ou do con- do conhecimento partilhado entre os interlocutores. Encontramos
texto”, seja relevante para a recuperação do referente em foco. mensagens que se iniciam por uma forma pronominal (ISSO, por
De acordo com o conhecimento envolvido na determinação do exemplo) remetendo a um trecho do discurso do interlocutor, o que, a
sentido, reconhecem-se geralmente os seguintes tipos de dêixis: pes- nosso ver, confirmaria uma forte aproximação desses textos com a
soal, espacial, temporal e discursiva e social. Marcuschi (1997) clas- conversação típica.
sifica os dêiticos em pronominais4 , temporais, espaciais e discursivos. Como reconhece Marcuschi, há muitos problemas quanto à
Em nossa amostra, usando as mesmas categorias de Marcuschi, classificação dos dêiticos. Logo de início, reconhecemos, por exem-
obtivemos a seguinte distribuição de elementos dêiticos: plo, a necessidade de analisar, separadamente, as os textos proveni-
entes de correspondência pessoal e os da lista de discussão. Parece
haver diferenças, entre os dois grupos de mensagens, quanto ao com-
portamento das formas dêiticas. Todas essas observações estão ainda
no nível da especulação e apenas nos servirão como ponto de partida
para o desenvolvimento da pesquisa.

Referências bibliográficas
Conforme se pode ver, esses resultados se aproximam dos que
foram encontrados por Marcuschi, principalmente no que se refere à BIBER, Douglas (1988). Variation across speech and writing.
predominância dos dêiticos pronominais e à baixa produtividade dos Cambridge: Cambridge University Press.
espaciais. Uma diferença, contudo, aparece quando se compara a pro- CAVALCANTE, Mônica Magalhães. (2000). Expressões indiciais
porção de dêiticos temporais e discursivos nas duas amostras. Na em contexto: por uma caracterização dos dêiticos discursivos.
pesquisa do autor, os primeiros revelaram-se bastante produtivos em Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco.
relação aos últimos. Em nossa amostra, as duas categorias se igualam FERREIRO, Emília (1992). Com todas as letras. São Paulo: Cortez.
em número de ocorrências. HERMAN, Vimala. (2000). Deictic projection and conceptual blending
in epistolarity. http://www.press.jhu.edu/journals/poeticstoday/
6. Considerações finais v020/20.3herman.html.
O fato de estarmos apenas iniciando esta pesquisa não nos MARCUSCHI, Luiz Antônio (1997). A dêixis discursiva como es-
permite ir muito além nas conclusões quanto à participação dos tratégia de monitoração cognitiva. In: KOCH, Ingedore G.V.;
diferentes tipos de dêiticos no e-mails. As semelhanças entre a amos- BARROS, Kazuê S.M. (orgs.). Tópicos em lingüística de texto e
tra aqui estudada e a que foi analisada por Marcuschi (freqüência análise da conversação. Natal: EDUFRN. p. 156-171.
alta de formas pronominais e baixa de formas espaciais) apenas ______. (1999). Por uma proposta para a classificação dos gêneros
confirmam a conclusão do autor em relação ao discurso de um modo textuais. Recife: UFPE. /Versão provisória. Xerocopiado/.
geral: a maior remissão às noções de tempo e pessoa em relação às de PAREDES SILVA, Vera Lúcia. Variações tipológicas no gênero textual
espaço). Vale ressaltar que o corpus analisado por ele envolve diver- carta. In: KOCH, I. G.V.; BARROS, K.S. M. de. (orgs.) Tópicos
sos gêneros textuais. em Lingüística de Texto e Análise da Conversação. Natal:
Um dado que nos parece singular nesta amostra, em relação à EDUFRN, 1997. p.118-24.
pesquisa de Marcuschi, é a diferença quanto à distribuição dos STRENSKY, Ellen (1995). Electronic epistolariry: e-mail as gift
dêiticos temporais e discursivos. Especificamente em relação à fre- exchange. Fourth Annual Cultural Studies Symposium.
qüência dos temporais (os quais, como vimos, mostraram-se em Manhattan.
nossos dados proporcionalmente menos produtivos que no levanta- TAUSTE, Ana Maria Vigara (2000). Sobre deixis coloquial. http://
mento feito por Marcuschi), poderíamos levantar a hipótese de que www.ucm.es/info/circulo/no1/vigara.htm.
a diluição do tempo no gênero, conforme afirma Voili (2000), teria VIOLI, Patrizia.(2000). Electronic dialogue between orality and literac
exercido alguma influência. - a semiotic approach. http://se.unisa.edu.au/vc/9-echat.html.
Em termos qualitativos, o contato inicial com os textos nos ZUBIN, David A. & HEWITT, Lynne E. The deitic center: a theory
chamou a atenção para o tipo de ancoragem das formas dêiticas. Per- of deixis in narrative. In: DUCHAN, F. Judith et al. (1995).
cebemos que, em muitos casos, a recuperação dos referentes depende Deixis in narrative. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates.

4 Marcuschi explica que a categoria “dêiticos pessoais” envolve “um con-


junto muito heterogêneo de fenômenos”: os dêiticos de pessoa stricto
sensu, as anáforas e os demonstrativos e possessivos (entre os quais
alguns são dêiticos stricto sensu e outros funcionam, ora como dêiticos,
ora como termos anafóricos). Em razão disso, o autor passa a usar o
rótulo “dêticos pronominais”, para congregar toda essa variedade de
usos, em vez de “dêiticos pessoais”.

462 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A lição conservadora e a análise lingüística do texto
Albertina Ribeiro da Gama
Célia Marques Telles
Universidade Federal da Bahia - UFBA

RÉSUMÉ: L’inter-relation entre la critique textuel et l’ étude de la langue du texte est bien connue. On voit l’importance de cette leçon
conservatrice, nécéssaire aux éditions des textes anciens aussi qu’ à celles des textes modernes et contemporains. On donne des exemples d’éditions
qui suivent une leçon conservatrice, en les comparant aux éditions faites d’après des critères moins conservatrices ou même très modernisées.
PALAVRAS-CHAVE: filologia, análise, lingüística; mudanças lingüísticas; crítica textual.

1 Introdução 2 A lição conservadora

Em artigo recente (Telles, 2000), ao tratar das relações entre as O mais importante é que se usem textos fidedignos, não nos
mudanças lingüísticas e a crítica textual, recorre a Carolina Michaëlis esquecendo de que enquanto não dispomos de um texto fidedigno,
de Vasconcelos, que, relembrando Francisco Adolpho Coelho, assi- todas as operacões hermenêuticas e críticas podem tornar-se arbitrá-
nalava que o estudo filológico tem de compreender algumas etapas. rias, intempestivas e inseguras (Tavani, 1988:53).
Ora, essas etapas são, na sua essência as mesmas com que se depara Ao lado do texto fidedigno é preciso recordar a importância e o
o filólogo na atualidade: o estudo da língua, o estudo da métrica, o valor das chamadas edições modernizadas, reproduzindo um texto
estudo das alusões históricas, os estudos dos autores (das particula- antigo segundo padrões ortográficos e lingüísticos modernos (Spina,
ridades biográficas, retiradas em especial da documentação sobre ele), 1994: 19), advertindo que para a crítica literária estas edições não têm
o estudo das relações entre a sua obra e as demais representações valor algum. (Spina, 1988). Essas edições buscam levar ao alcance do
literárias, a história dos manuscritos, a determinação da autenticidade público de hoje a fruição de uma obra extraordinária, sem desvirtuar o
dos testemunhos, a restituição do “texto do autor” e, finalmente, a primitivo sabor de sua linguagem (Spina, 1988:xv), não se devendo
determinação do valor literário e histórico do texto (Vasconcelos, prejudicar a legitimidade do texto, além de permitir a leitura fluente
1946:143). do mesmo.
Essas nove etapas constituem, a bem dizer, três grupos de Ora, se os objetivos a serem alcançados pelo editor é o estudo
objetivos: o estudo da língua, a determinação do valor literário e da língua, é melhor conservar os textos na sua grafia original. Os
histórico do texto e a Crítica Textual. Mas, se a preocupação central critérios de transcrição e de reprodução adotados devem levar em
da filologia são os textos literários, nenhuma pesquisa filológica pode conta a especificidade dos manuscritos estudados, bem como a neces-
prescindir do conhecimento lingüístico (uma vez que o estudo das sidade de se tornar esta transcrição o mais rigorosa e inequívoca pos-
línguas e dos dialetos faz parte da lingüística e a filologia, no sentido sível, respeitando o movimento da escrita, suas hesitações, seus equí-
próprio da palavra, incide sobretudo na análise dos textos literários) vocos e as marcas dos incidentes caligráficos (Reis, Milheiro, 1989:
e nenhuma pesquisa filológica é possível sem sólidas bases lingüísti- 201)1 .
cas; por outra parte os limites entre lingüística e filologia não são Que a lição conservadora é a mais aconselhável na edição de um
sempre bem nítidos (Tagliavini, 1969: 1-2). Se o filólogo se engana na texto, qualquer que seja ele, não resta dúvida e os exemplos que per-
transcrição, cria um fato linguístico novo, que, embora pareça perten- mitam o confronto entre um comportamento conservador e outro
cer ao texto original do autor, se deve ao seu editor. É, pois, indispen- modernizador são esclarecedores.
sável que o trabalho filológico seja acompanhado de uma tomada de
Se tomamos, a título de exemplo, os critérios preconizados
consciência dos seus processos e das limitações que eles não permi-
utilizados pela maioria dos editores de textos medievais, veremos que
tem ultrapassar. Realmente, não é possível distanciar-se daquilo que
a grande maioria deles prefere uma lição modernizadora. Alguns exem-
é o elemento fundamental do texto: a língua. E, ao enfocar a língua, é
plos desse comportamento servem para demonstrar a necessidade de
preciso considerar a problemática da natureza tempo-dependente
se optar pela lição conservadora.
(“tipe-dependent nature”) do sistema lingüístico (Thibault, 1996:80-
O estudo das relações grafemático-fonéticas que permite, a partir
110). Nesse enfoque de interfaces, duas perspectivas podem ser con-
dos dados textuais, inferir a realização de alguns fonemas só é possí-
sideradas: na primeira, o da mudança lingüística, o texto é testemunho
vel se a edição mantém fielmente a grafia do manuscrito. Assim, Ramón
da língua; na segunda, a da crítica textual, a língua é apenas um dos
elementos do texto, embora o mais importante deles, pois, o texto é Menéndez Pidal pode afirmar sobre a língua da gesta Roncesvalles,
estruturado pelas possibilidades de uso da língua. datada do século XIII: “El lenguaje del fragmento en parte corresponde
Em qualquer situação, quer se trate de filologia do manuscrito geográficamente al carácter de la letra del escriba; es decir, ofrece
ausente ou crítica textual tradicional ou de filologia do manuscrito algunos rasgos propios de la región navarro-aragonesa.”(Menéndez
presente ou crítica textual moderna, o conhecimento da língua do Pidal, 1976: 21)2 . Assinala, em seguida, que o documento apresenta a
texto é de suma importância para o editor (Gama et al., 1996). Desse grafia navarro-aragonesa para as palatais:
modo, três tipos de dados lingüísticos são fundamentais para o editor • <yll> a mais geral, <eyll> <yl> equivalem a [λ]: “Fiz uos
de textos: aqueles ligados à rima, à métrica e ao ritmo; aqueles ligados cavayllero aun preçio tan grande” (v. 68), ao lado da leitura
às chamadas lectiones difficiliores, e, finalmente, as variantes (Contini, crítica “fizvos cavallero a un preçio tan grande”; “Prenden agoa
1990:165-73). Dessas variantes – lugar do texto em que ocorre diver- fria al Rej com eilla dauan” (v. 100), ao lado de “prenden agua
gência entre dois ou mais testemunhos – de fundamental importância fria, al rei com ella davan.”; “Sa que la de mororos uostornastes la
(Xavier, Mateus, 1990:s.v.) importam-nos as textuais, nos manuscri- ayla”, junto a “saquéla de moros, vos tornástesla alláe.”
tos anteriores à difusão da imprensa, e as autorais, nos manuscritos
modernos (autógrafas portanto, que podem ser encontradas em ma-
nuscritos e em datiloscritos ou mesmo em impressos com interven- 1
Por sua vez, é bom sempre lembrar que as normas da ABNT recomendam
ção do autor). a: “transcrição literal da fonte”.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 463


Registrando-se também a grafia castelhana <ll>: “Sallj me de
françia atieras estraynajs morare” (v. 64), frente a “Sallíme de
Françia a tierras estrannas morare”;
• <yn>, de uso dominante, <ynn> equivalem a [ñ]: “Des peynos
del cauayllo tan grant duelo que faze” (v. 86), ao lado de
“despennós del cavallo, tan grant duelo que faze,”; “Agora
plogujes alcriador amj seynnor Jhesu christo” (v. 79), junto a
“¡Agora ploguiés al Criador, a mi sennor Jesuchristo,”;
• <yx>, <x> depois de <i> equivalem a [š]: “Dodeyxastes a Roldan
djgades me la uerdade” (v. 19), frente a “¿do dexastes a Roldán?,
digádesme la verdade.”; “El Rey quando esto dixo cayo es Note-se que nesses quatro excertos somente a leitura
mortecjdo” (v. 82), junto a “El rey quando esto dixo, cayó paleográfica indica os sinais da scripta. A edição modernizada chega
esmortecido.”; mesmo a substituir alguns termos.
Outro exemplo pode ser extraído das edições do Livro de cozi-
• <ych> equivale a [c]: Por uuestra amor ariba muychos3 me foljan nha da Infanta D. Maria. O manuscrito muito interessante, obra de
amare” (v. 38), ao lado de “Por vuestra amor arriba muchos me sete mãos diferentes executada entre o século XV e o XVII, oferece
solían amare”. interessantes elementos para a análise dos fatos de língua. Comparem-
se três leituras para a receita de Leite cozido, pertencente à scripta 1.
A comparação entre três edições de A Demanda do Santo Graal
mostra o conservadorismo da leitura de Joseph Piel (Piel, 19884 ) em
relação às edições de Augusto Magne (Magne, 1970), de Irene Freire
Nunes (Nunes, 1995) ou de Heitor Megale (Megale, 1988). Vejamos
um exemplo:

Nesse exemplo, as duas leituras paleográficas mantêm as ca-


racterísticas da grafia que marcam a scripta 1. A leitura modernizada
substitui as formas propia e tempara, assim como não marca a vogal
nasal [e)] e o iode no ditongo decrescente [ey].
Outra ilustração pode ser trazida, agora em texto moderno. A
análise dos três testemunhos manuscritos do poema Sub umbra de
Arthur de Salles (070:0391, 072: 0432, 076:0452) mostra a vacilação
da grafia do autor, nos dois primeiros, datados da década de 20,
claramente pseudo-etimilogizante, no terceiro, datado de 1947, uma
grafia modernizada, ainda que sejam mantidos alguns traços do perí-
odo ortográfico anterior (Gama, Telles, 1993:54). O Quadro 1 mostra
a vacilação da scripta do poeta nos três testemunhos.

Quadro 1 - Comparação da scripta


nos testemunhos de Sub umbra

2
Traduzindo: “A linguagem do fragmento coresponde em parte geografica-
mente ao caráter da letra do escriba; isto é, oferece alguns traços próprios
da região navarro-aragonesa”.
3
A propósito desse exemplo, ressalta tratar-se de uma grafia estranha, úni-
co exemplo junto à forma apocopada muyt (Menéndez Pidal, 1976:23).
4
Na verdade a edição data de antes de 1934.

464 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Ao mesmo tempo que essa demonstração corrobora a moderni- nuscrito do século XIII. São Paulo: T. A. Queiroz/EDUSP. Tex-
zação da grafia em textos editados ou escritos depois de 1943, serve to modernizado com base em cópia do século XV e nas edições
para justificar a conservação da grafia dos ditongos decrescentes <ae>, Magne de 1944 e 1955-70...
do ditongo átono <ei> pelo <e>, de criações lexicais do poeta inexcita. MENÉNDEZ PIDAL, R. 1976. Textos medievales españoles;
ediciones críticas y estudios. Madrid: Espasa-Calpe.
3 considerações finais NUNES, Irene Freire (edit.). 1995. A Demanda do Santo Graal.
Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.
Tomamos apenas três exemplos de textos manuscritos, de PIEL, Joseph-Maria. (edit.). 1988. A Demanda do Santo Graal.
épocas diferentes. Em todos os casos fica patente a necessidade de se Lisboa: Imprensa Nacio-nal/Casa da Moeda. Concl. por Irene
optar pela leitura conservadora, a fim de oferecer ao pesquisador da Freire Nunes. Pref. de Ivo de Castro.
língua elementos que lhe permitam fazer uma descrição da variante PIEL, Joseph M. (edit.). 1986. Livro da ensinança de bem cavalgar
lingüística documentada no texto, em qualquer nível de análise. toda sela que fez El-Rei Dom Eduarte de Portugal e do Algarve
e Senhor de Ceuta. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda.
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Manupella. nário de termos lingüísticos. Lisboa: Cosmos. v. 1
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Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 465


Os caminhos de Simão Mutuca:
os documentos inacabados
Maria Dolores Teles
Universidade Federal da Bahia - UFBA

ABSTRACT: Based on a model for studying lexical variation previouslyused by Luiz Fagundes Duarte, this paper is concerned with the observatioon of the
impublished work produced by Arthur de Salles, wherein the author´s punctuation usage and wall relatede corrections are analyzed as a sign of his
intencional creative process.
PALAVRAS-CHAVE: Criação textual – Correções autógrafas – Pontuação – Fragmentos manuscritos

Como se dá a criação textual? Como se faz a organização frasal, ainda entre testemunhos que formam a série contínua ou linear da
de modo a oferecer ao possível leitor um dado sentido? Que cami- narrativa. Em termos macronarrativos, esta progressão se faz de tes-
nhos possíveis percorre o autor para conferir à sua obra um efeito de temunho a testemunho, numa dinâmica textual, que confirma o mo-
sentido? Todas essas indagações, já anteriormente por outros coloca- vimento do texto no seu em se fazendo. Este caminho porém nem
das, pressupõem respostas que ainda não foram plenamente respon- sempre se faz linearmente, mas, ás vezes, como no caso dos testemu-
didas. As teorias levantam hipóteses. Os teóricos tentam explicitá- nhos de A planta am(a)rga, segue uma linha sinuosa que, ao que
las. A prática evidencia o quanto é difícil e complexo assinalar a parece, seria uma característica do usus facciendi de Arthur de Salles.
trajetória da construção de um escritor, quando ele deixa manuscri- Para a ordenação do conjunto dos testemunhos da série A planta
tos emaranhados de rasuras e de emendas, obras inacabadas, textos am(a)rga, adotaram-se, além da perspectiva funcional, os critérios
incompletos, rascunhos, fragmentos, possíveis planos de elabora- sintáticos da organização frasal e os aspectos coesivos da pontuação,
ção, passíveis de retomadas posteriores. porquanto os signos pontuacionais, além de conferir a combinação
No entanto, é um trabalho apaixonante. O debruçar-se sobre sintático-frasal, possibilita a criação de novos efeitos de sentido aos
aquelas rasuras, destrinçá-las, quando possível, e tentar envolver-se enunciados.
na trilha da construção textual, é um trabalho exaustivo e difícil, to- Com base, então, na perspectiva funcional da frase, ou seja, na
davia possível. Através de pistas, dados e marcas deixadas escritas dinâmica textual que os testemunhos oferecem, é que se tenta forma-
na superfície do papel, pode traçar-se a trajetória dessa construção. lizar a ordenação dos testemunhos 004:0098, 004:0097, 004:0094,
Alguns dados parecem insignificantes. Todavia, é preciso verificar 004:0108, que se constituem, ao que parece, uma primeira fase, mo-
se eles contribuem para o achamento do caminho indicado pelas pis- mentos de tentativa de escrita. Em seguida, ordenar-se-ão os teste-
tas maiores, se contribuem para o aclaramento da hipótese levantada. munhos 004:0096, 004:0087 e 003:0051, os quais, se acredita, per-
Nada é desprezível, quando se pretende enveredar pelos caminhos tencem a uma segunda fase de releitura do escritor do mesmo texto.
do autor. Um terceiro momento, poderia ser o testemunho 003:0051, que pare-
O caminho genético de qualquer obra literária ou não atraves- ce terminalizar, de certo modo, o texto A planta am(a)rga.
sa um longo e árduo labor, sempre atualizado pelas sucessivas
3 Operações de confronto
releituras e sucessivas reescritas rumo à obtenção do seu objeto-de-
sejo: o texto definitivo. Em função dessa trajetória, o escritor realiza Depois que se analisou o documento 004:0093, o qual consi-
ajustes, substituições, supressões e acréscimos, de modo a atingir a derou inicial nas condições da dimensão percursional da escrita dos
evolução desejada. testemunhos constituintes de A planta am(a)rga, ou como se deno-
Nos testemunhos que ora se estudam, Arthur de Salles segue minou “Os caminhos de Simão Mutuca”, tenta-se agora estabelecer
esse mesmo percurso. Mas para chegar às correções, ele concretizou o confronto entre os manuscritos 004:0098, 004-0097, 004:0094 e
seu projeto mental de escrita. Por isso, os testemunhos em apreço 004:0108, que, segundo a hipótese levantada, dão continuidade ao
seguem seu trajeto a partir de um projeto concretizado pré-existente trabalho de escrita de Arthur de Salles nesse processo concretizador
no mundo visível, e nele calcado. da “geração de idéias”, delineadas no plano inicial, ou seja, no teste-
munho 004:0093.
2 Ordenação dos documentos
É importante ressaltar que um conjunto de versões
Para que se possa seguir o percurso de uma escritura, neces-
constitutivas de um mesmo testemunho pode abrir a porta à análise
sário se faz que se ordenem os testemunhos que integram o conjunto
lingüística em virtude de certos elementos que se podem ver atra-
da série em questão. A estratégia utilizada para tal instrumentalização
vés da sucessão das seqüências do processo produtivo. Dito de ou-
reside justamente nos critérios da organização hierarquizada da pro-
tra forma, através das similaridades ou seqùências parafrásticas que
gressão textual em sua globalidade, da coerência, da coesão lexical
se relacionam de testemunho para testemunho. Também, é bom as-
de frase a frase e da pontuação vista como elemento de coesão sintá-
sinalar que Szlles tem uma forma sinuosa de escrever. Assim, neste
tica e semântica do enunciado. Estes instrumentos asseguram a con-
momento, a partir do conhecimento das passagens retidas e daque-
tinuidade dos enunciados e a progressão temática que encaminha a
las que foram canceladas nos escritos subseqüentes, se fará a com-
trajetória dessa escritura.
paração das outras versões do documento inicialmente reproduzido
A perspectiva funcional oferece o modo pelo qual se observa
e considerado como o plano de construção textual. Desse modo,
essa progressão temática, veiculando, através da organização das
poder-se-ão estabelecer paradigmas de correspondência às substi-
estruturas frásicas, da ordem das palavras, as informações dadas numa
tuições, supressões e acréscimos efetuados entre as expressões va-
frase ou num segmento frasal, ou seja, no enunciado, de modo a cons-
riantes bem como de sua pontuação.
tatar que no segmento seguinte aparecem informações novas. Estas
Obedecendo às medidas operacionais adotadas em O Dote de
informações podem acontecer no interior sintático-semântico da pró-
Mathilde, acrescentar-se-ão outras, se for o caso. O quadro de n. 1
pria estrutura frasal como também entre períodos ou parágrafos e

466 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


apresentará de modo contínuo a possível sucessão material das eta- pois se constitui dos elementos externos adquiridos através de leitu-
pas de produção do texto, cuja continuidade se manifesta nos teste- ras e da experiência.
munhos 004:0096, 004:087 e 003:0051. A leitura do quadro permi- 5.1.1 As mudanças intratextuais locais dos testemunhos de
tirá sobressair a fragmentação do intrincamento dos planos Arthur de Salles
sintagmáticos e paradigmáticos dos eventos narrativos e cenas des- Analisando-se o conjunto dos testemunhos incompletos de
critivas através da fragmentação dos enunciados precedentes que, à Salles, verifica-se que as mudanças ocorridas internamente aconte-
medida em que se reconstróem, ou melhor, à medida em que são cem por meio da repetitividade dos cenários, das construções sintáti-
retidos podem ser substituídos, redimensionados ou até cancelados. cas, do léxico e da pontuação. Veja-se: a cena inicial, tomada em sua
Do ponto de vista semântico, os enunciados podem ser aparentados íntegra, do testemunho 004:0098 está presente nos testemunhos
se se correspondem com os enunciados dos documentos preceden- 004:0097 e 004:0094:
tes. Sintaticamente, é possível a análise em função da equivalência 1) 004:0098 do como um ser estranho feito daquelle mes
entre os enunciados do mesmo contexto. mo fumo e daquella mesma chamma
Com essa abordagem, monta-se o quadro comparativo dos 2) 004:0097 do como um ser estranho feito daquelle mes
documentos 004-0098, 004-0094, 004-0097 e 004-0108 pelos quais mo fumo e daquella mesma chamma
parece ter sido o percurso do escritor após o plano inicial. 3) 004:0094 do como um ser estranho feito daquelle mes
mo fumo e daquella mesma chamma
4 A “gestação” de Simão Mutuca São unidades telegráficas sem nenhuma menção concreta ao
“ser estranho”
Esta fase preparatória, gestacional, feita das coisas lidas, vis- As linhas seguintes dão lugar à reorganização, inserindo for-
tas e entendidas, e também preenchidas pelas recordações mas lingüísticas já organizadas sintaticamente. Há uma ordem nas
interiorizadas, é a etapa em que as idéias vão sendo geradas, e cana- palavras, combinado-as, e formando estruturas. Como exemplo;
lizadas para um estágio posterior: é a fase em que os autores riscam e 4) 004:0098 [galgou um ponto mais alto e olhou como
rabiscam. Geralmente, ela se manifesta por meio de desenhos, nume- um guerreiro victorioso, o chão fumante e
ração, nomes, frases desconectadas, preenchendo todo o espaço combusto onde se exorciam [os ultimos] <os>
escritural, como se observa em vários manuscritos de Arthur de Salles. galhos como ultimos vencidos] [de sua] de
(003:0051, 004:110, 004:0118 e outros). Esta fase se concretiza muitas vastação.
vezes por intermédio de um plano, que no caso desse conjunto, se 5) 004:0097 galgou um ponto sobranceiro e olhou, como
formaliza no testemunho 004:0093. um guerreiro victorioso o chão combusto
onde se extorciam os ultimos galhos mais
5 Do visual ao textual grossos como ultimos vencidos do seu genio
Neste momento da escrita, os testemunhos, 004:0098, destruidor.
004:0097, 004:0094, 004:0108, 004:0096, 004:0087 e 003:0051 se- 6) 004:0094 galgou um ponto sobranceiro e olhou, como
guem um caminho de certa forma linear, pois se inicia com um pla- guerreiro victorioso, o chão combusto onde
no, no qual se vão concretizando no fragmento nomes de persona- se extorciam os ultimo(s) galhos mais gros
gens e de produtos, ações e cenários relacionados ao tema que pre- sos como ultimos vencidos do seu genio
tende desenvolver. Esses dados lançados na superfície do papel re- destruidor1
velam a elaboração mental que estivera em gestação por longo tem- 6 Notas conclusivas
po. Essas marcas retraçam o percurso do mundo visível, cognitivo, As etapas genéticas da escritura do texto estão presentes na bus-
para o lingüístico. O escritor “vê” locais, cenas, o campo de cultivo, ca das formas lingüísticas desejadas e na utilização dos signos
os homens na labuta diária da agricultura e “ouve” as vozes dos ani- pontuacionais ora substituídos, ora suprimidos ora ainda acrescenta-
mais e o canto dos homens e da enxada, enfim, visualiza todas as dos, atestados diante das correções que se fazem mais rareadas à medi-
cenas e, mais ainda, capta, além das imagens visuais e sonoras, as da em que o discurso lingüístico se torna mais consistente. As estrutu-
cores, as luzes, e reconstitui essas imagens experienciadas, lidas ou ras narrativas são (re)construídas à proporção que o texto em movi-
contatadas, com signos lingüísticos, com signos pontuacionais, como mento se transforma. O discurso estilístico se verifica mediante as cor-
se verifica no anunciado e posteriormente no descrito, confirmando reções vocabulares, sintático-semânticas e pontuacionais que se pro-
a interligação da visão do espaço interior através das frases cessam. Não se constitui um texto acabado nem terminal, mas o que
entrecortadas e da pontuação ainda indecisa. ficou estruturado deixa entrever que se tornaria um possível conto.
5.1 Os mecanismos de reformulação
O caminho da construção lingüística no período redacional Referências bibliográficas
passa por determinados mecanismos situados e inscritos na textura
do tecido verbal. O percurso inicial da gestação das idéias foi ultra- ASSUNÇÃO, Lucidalva Correia. A prosa inacabada de Arthur de
passado pelo registro formal. Entretanto, este registro merece aten- Salles: Os Rincões Patriciso e outros escritod. Sakvador: UFBA,
ção, uma vez que ainda não adquiriu a consistência textual requerida. 1999. Dissertação de Mestrado. Orient. Profª Drª Albertina
É o momento em que o escritor reflete sobre o que escreveu. E nessa Riberio da Gama.
reflexão, nessa releitura, ele vai iniciar um longo trajeto: o das BADWIN, Elizabeth. O Dote de Mathilde, conto de Arthur de Salles:
reformulações na ordem das palavras, na estruturação sintática, no proposta de edição crítico-genética e estudo. Salvador: UFBA,
léxico e na pontuação. É a luta entre o espontâneo e o formal. Passa
da fase de representações cognitivas e se liga às formas da língua, às
possibilidades que ela lhe oferece. Nessa fase, surgem as reorganiza-
ções que caminham pela intratextualidade e pela intertextualidade. A
primeira se relaciona com a estrutura interna e consiste nas mudan- 1 De acordo com os sinais usados, os colchetes [ ] indicam que o trecho ou
ças operacionalizadas no interior da própria forma lingüística. A se- as expressões colocadas entre eles foram riscados; os sinais < > servem
gunda ocorre na estruturação das frases, mas sem o enfoque interno, para assinalar o acréscimo interlinear de um nome; os parênteses indicam
um acréscimo conjetural do editor.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 467


1996. Dissertação de Mestrado. Orient. Prof. Dr. Nilton Vasco FUCHS, Catherine. Elements pour une approche enonciative de la
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au geste d´écriture variant. In: FERRER, Daniel et al. L´écriture REY-DEBOVE, Josette. Pour une lecture de la rature. In: FUCHS,
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p. 9-25. Paris: CNRS, 1987. p. 103-226.

468 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Características lingüísticas na obra de Gumes
Maria da Conceição Souza Reis
Universidade Estadual da Bahia - UNEB
Universidade Federal da Bahia - UFBA

ABSTRACT: João Gumes’ literary documents, whick have aleady been amolized before, offer some elements which allow us to observe some language
facts. One of these facts results from the analysis of the author’s variables registered in the manuscript documetns. It is focused in this study the matrix of
the stylistic grammar of the document.
KEY WORDS: stylistic grammar, manuscript, literary documents.

Introdução mos apenas alguns comentários sobre os autógrafos do escritor que


nos permitem traçar o matrizamento da sua gramática estilística. Para
Antes de fazermos qualquer consideração sobre as variantes tanto, selecionamos, do conjunto de manuscritos, o prólogo do dra-
autorais de João Gumes1 , cabe apresentar alguns esclarecimentos ma Abolição para fazermos uma breve demonstração.
sobre o nosso objeto de estudo, o texto. Toma-se por texto aquilo que
pode ser definido por sua organização ou estruturação com a inten- Os autógrafos de João Gumes: um estudo de gênese
ção de construir um “todo de sentido” e também como objeto de uma
cultura, inserido numa sociedade e determinado por formações ideo- É possível encontrar no espólio de João Gumes textos em que
lógicas específicas, refletindo e representando a visão de mundo do se podem notar as marcas que se registram ao longo da produção
autor que se universaliza através de sua obra. Nessa visão de texto, textual. O autor põe em confronto diversos materiais lingüísticos,
conciliam-se abordagens internas e externas da linguagem que pro- que vai testando, pondo em prática mecanismos de recusa, substitui-
curam explicar os procedimentos e mecanismos que o estruturam. ção, acrescento, deslocamento, até encontrar ou não aqueles que
Pretende-se fazer uma análise interna ou estrutural do texto, melhor designam as suas representações da realidade.
no sentido de verificar os elementos lingüísticos que Gumes manipu- Nestes documentos autógrafos, podemos observar que o au-
la quando da sua elaboração, bem como uma análise externa desse tor, na tentativa de alcançar o texto “perfeito”, mais elaborado, pro-
texto, quando se recupera o texto enquanto objeto discursivo, social cede leituras, releituras e reformulações da linguagem. Essas
e histórico. reformulações consistem em reorganizações locais limitadas ao tex-
O nosso objeto tem se apresentado sob formas diferentes, com- to, manifestadas na pontuação, na ordem das palavras, nas constru-
pleto, incompleto, inacabado, em prosa ou em verso, com muitas ou ções sintáticas, nas escolhas de termos gramaticais e lexicais
poucas correções lingüísticas e estilísticas, consubstanciadas em su- Gumes ao elaborar seu discurso narrativo no prólogo do dra-
pressões, substituições, acrescentamentos, deslocamentos. São do- ma Abolição submete-o a pelo menos três intervenções: uma campa-
cumentos autógrafos que apresentam uma grande quantidade de da- nha de escrita e duas de correção. Primeiro o autor escreveu o texto-
dos materiais, contabilizáveis e comparáveis, reveladores de mani- base (A1) e , ao longo da redação faz algumas correções (A2 e A3).
pulação do texto pelo autor. Há, porém, outros textos apógrafos que A1 - texto-base, com correções feitas em curso de redação,
são importantes para este estudo, por terem sido publicados com a algumas supressões e substituições, tanto por sobreposição como
autorização do escritor. por substituição na entrelinha superior, com um x ou não nos lugares
A leitura dos autógrafos da obra de João Gumes oferece ele- emendados.
mentos que nos permite inferir: o escritor deixa marcas lingüísticas A2 - correções por supressões, substituições, acrescentamen-
que revelam a sua escritura, o modo de construir a sua obra, fato que to, quase sempre localizados na entrelinha superior do texto-base.
o particulariza diante de outros escritores. É através dessas marcas A3 - correções por supressões realizadas em uma terceira
deixadas nos manuscritos e da escolha vocabular que o autor expres- releitura do texto.
sa sua visão de mundo e sua intenção poética, além disso, dialoga
com as obras que o precedem, ao tempo que elabora seu texto pressi- Tipos de correções
onado pela tradição literária.
A partir do estudo dos manuscritos do escritor, pretendemos Conforme já fora mencionado, os autógrafos revelam que Gu-
apresentar a gramática estilística de João Gumes. Para tanto, procu- mes, no processo de depuração de seu texto, tinha tendência a proce-
rar-se-á seguir o método lingüístico aplicado por Luiz Fagundes der correções em seu discurso. Apresenta 68 lugares variantes, ou
Duarte2 aos autógrafos de Eça de Queiroz, fazendo-lhes, é claro, os seja, lugar de redação não única. São correções estilísticas funcio-
ajustes necessários de acordo com os manuscritos de Gumes.
O método demonstrado por Luiz Fagundes Duarte tem como
objetivo definir “a peculiar estrutura gramatical que está subjacente a 1 João Antônio dos Santos Gumes, escritor e jornalista baiano, nasceu em
cada um dos momentos de escrita, reescrita, correção, e correção a Caetité, em 10 de maio de 1858 e faleceu em 29 de abril de 1930. Um dos
correção.” Constitui-se de seis etapas, a saber: 1) constituição de uma principais intelectuais da região do Alto Sertão, implantou a imprensa na
amostra representativa do corpus, abarcando todos os testemunhos região do sudoeste do estado da Bahia, criando, em 1897, o jornal A Penna,
disponíveis; 2) marcação dos níveis e momentos de todas as transfor- que circulou com interrupções até 1940. Apesar de seu nome não figurar
mações textuais; 3) classificação por classe gramatical, 4) elaboração nos compêndios de literatura brasileira e/ou baiana, Gumes escreveu ro-
mances, comédias, dramas e crônicas. Chegou a publicar dois romances: O
de cálculos estatísticos acerca da distribuição de cada classe em ter-
Sampauleiro, em dois volumes, e Os Analfabetos. Deixou inédita as seguin-
mos tipográficos; 5) elaboração de probabilidade; 6) matriz de pro- tes obras: Pelo Sertão, Vida Campestre, Seraphina, Abolição, Mourama e Sor-
babilidade de ocorrências. te Grande. Como editor do A penna tem centenas de crônicas publicadas.
No momento, devido à exiguidade do tempo e de nossa pes- 2 Cf. Luiz Fagundes DUARTE. A fábrica dos textos: ensaios de Crítica
quisa, no que tange a essa análise, encontra-se em fase inicial, tecere- Textual acerca de Eça de Queiroz. Lisboa: Cosmos, 1993, 144p.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 469


nais: substituição, supressão, acrescentamento e deslocamentos; e 2. promettendo-lh’<e> [o] vender <lh’o> quando
espaciais: na linha, na entrelinha e em sobreposição. Vejam-se: fosse possivel. (L.69)
3. Como se sente <um prazer,> [uma espécie] de refrigerio
I. Substituição por sobreposição da alma (L.285)
4. Mas...para que discus<sões> [são]? (L.303)
1. Dão-se; o prólogo em 187<8>/ 6 /e (L.10) 5. Nunca <†> [foi] meu amigo! (L.308)
2. <Os> [os] 3 atos em 1888 (L.11) 6. deixa transparecer <em> [de] sua alma uma
3. virtudes que não têm e desconhece<ndo>[m] certa meiguice (L.538)
os meritos alheios? (L. 616) 7. cedeste <de> [á] <in> magia do canto do cysne! (L. 544)
4. decretados por <d>[D]eus (L.401) 8. <Mas> <s>[S]ocega, minha chara (L.586)
5. não tratamos <n> [d]o nosso negocio! (L. 424) 9. <Mas> < o> [O] que hei de fazer agora? ?
6. para saber o que <és> [tu] és (L.451) Diz-me<!>[.] (L.559)
7. (Antero sae furioso pel<l>[a] esquerda) (L.456) 10. <Mas> <i>[I]sto é intoleravel! (L.661)
8. Que<m>[r] amesquinhar quem ja de si é mesquinho (L.120) 11. Eu irei. <Mas...> <o> [O] velho me aceitará? (L.667)

II. Supressão 3.2 Substituição na entrelinha

1. aquella <antiga> opulencia de que fallam os antigos (L.50) 1. teu corpo é teu e <todos> [↑ ambos] juntos pertenceis ao
2. em todo <o> caso. é preciso examinal-a primeiro (L.88) Sr Alferes Bonifacio (L.111)
3. Um rapaz <de futuro> como o Sr. Xico, que espera<r> conquis 2 .pullular <na> [↑em] epocha não mui remota. (L.241)
tar um bonito futuro, e <que espera> algum dia galgar altas 3.<fazer em minha alma> [ ↑n’ella fazer] um attrito por
posições (L.98, 99) demais doloroso. (L.372)
4. Tenho 15 annos, <e tenho> meu Senhor, bastante intelligencia 4. pois é esse o merito da miseravel raça de <onde>
(L.119) [↑que] descendem. (L.504)
5. suppõe não ter força<s> bastante<s> 5. Alli, <lagrimas e lamentos,> o[↑soffrimento da vitima,]
para repellil-o!? (L.126) aqui < a tempestade de remorso!>
6. morrerei <com a minha honra>(L. 192) [↓ as agruras do remorso.] (L.519-521)
7. Vou de uma cajadada matar dous coelhos” <E aqui está o filho 6. és a <inocencia> [↑ingenuidade] personificada. (L.557)
meu pai.> (L. 248)
8. teria a obrigação de vir aqui <constantemente> a meudo IV. Acrescentamento na entrelinha
(L. 267)
9. refrigerio da alma ao fazer<se> um bem como este! (L.285) 1. encontrar pessoas [↑que pensassem] de modo differente
10. não é crime <, antes é naturalismo,> (L. 378)
rasgar-se essa (L.343) 2. fica o negocio concluido entrando/ o molecote
11. essa sublime essencia manada de Deus [↓pr1:200#000]. (L. 20)
<,a verdade> (L.354) 3. És [↑de] uma loquacidade intoleravel
12. Tudo isso < é muito e> seria muito bom (L.419) (L. 545)
13. Mas pode<re>mos d’aqui sahir! (L. 446) 4. a sua linguagem e [↑vendo] o seu porte magestoso?!
14.amor que debalde queres <indirectamente> recalcar no íntimo de (L. 550 -552)
teu coração! (L.558) 5. pois até desgosto-me [↑de] possuir (L.576)
15. Socega, <minha amiga> e veremos (L..592) 6. uma vez em [↑nossa] casa (L.534)
16. é tempo de esquecermos <os> antigos 7. pois até desgosto-me [↑de] possuir (L.575)
preconceitos! (L.610) 8. appellidam uma facção com um nome, [↑que tornam odioso]
17. protejamos uma <pequena> fracção do aggremiam (L.614)
povo brazileiro (L.611) 9. exercer sobre [↑mim]uma tyrannia (L.640)
18. Meu pai <tambem> anda em tua procura.<(faz um sinal quasi 10. És [↑de] uma loquacidade intoleravel (L. 545)
imperceptivel dirigindo a Emilia)> (L.629/630)
19. uma tyrannia que fará a minha eterna desgraça, <( sabes que Gênese do texto
alguem tem sobre elle tal ascendente, que conseguiria vencer
todos os obstaculos)> e ficas em uma O prólogo do drama Abolição não apresenta características de um
perenne inacção (L.641-643) texto definitivo, apesar de escrito em boa letra, não foi passado a
20. Impressionou-me o caracter do Dr., é exacto; porem como <im limpo. Rico em correções, perfazendo um total de 68 correções: 43
pressionaria> a qualquer. (L. 550) no momento de escrita (ME), 25 no momento posterior (MP).
21. <Mas> <s>[S]ocega, minha chara (L.586) A supressão é o caso mais freqüente. Das 68 correções 28 fo-
22. <Mas> < o> [O] que hei de fazer agora? ? ram supressões. Recurso utilizado pelo autor como mecanismo
Diz-me<!>[.] (L.559) equilibrador do texto responsável pelo processo de anulação da re-
23. <Mas> <i>[I]sto é intoleravel! (L.661)
dundância discursiva. A substituição à frente é a segunda mais fre-
24. Eu irei. <Mas...> <o> [O] velho me aceitará? (L.667)
qüente, registram-se 12 ocorrências. Normalmente, o autor risca can-
celado e o substituto se coloca de imediato à frente do substituído.
III. Substituição
Essa correção parece pertencer ao primeiro jato de escrita, ou seja,
3.1 Substituição no curso da escrita
substituição em curso. Palavras lexicais e gramaticais fazem parte
deste tipo. Apresenta 06 substituições na entrelinha superior, ocu-
1. vive sonhando com <o> [um] futuro a que não
pando quase sempre espaço material deixado livre pelo texto primiti-
tem direito. (L.62)

470 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


vo. Um outro tipo de substituição é a sobreposição: adaptação de cupa-se mais com as preposições, os pronomes e as conjunções, pro-
partes do enunciado já escrito, com a finalidade de estabelecer concor- cessando alterações de cunho estilístico.
dâncias. O acréscimo na entrelinha superior ficou reduzido a apenas Observe-se a tabela que registra a ocorrência e a freqüência dos
10 ocorrências. diversos tipos de estruturas sintáticas:

Quanto à transformação genética que envolve a estrutura sintá-


Quanto às classes transformadas, o autor manipula, em pro- tica, o fenômeno mais significativo é a supressão (08). O fragmento de
porção não aproximada, os signos gramaticais (artigo, pronome relati- frase parece ser o principal alvo (09) de João Gumes.
vo, pronome possessivo, conjunção) e os signos léxicos (substantivo,
verbo, adjetivo, advérbio). No nível da estrutura sintática, suprime Considerações finais
frase, e ora permuta SN e SP, ora suprime-os. As informações aqui apresentadas dão uma pequena amostra
Salienta-se a preocupação do escritor com os signos gramati- do estudo que visa analisar os documentos autógrafos de João Gumes,
cais frente aos léxicos, conforme se observa da distribuição das classes na tentativa de encontrar um processo de classificação de manuscri-
gramaticais sobre as quais o autor reelabora a sua linguagem. Dentre os tos, considerando suas características lingüísticas, de forma que seja
signos léxicos, predominam palavras que têm a função básica na frase possível determinar o grau de aperfeiçoamento estilístico (traçar sua
(verbos, substantivo e adjetivos). Entre os signos gramaticais, preo- gramática estilística), como também contribuir para a definição de
estratégias editoriais.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 471


O léxico dos poemas de
Arthur de Salles
Alícia Duhá Lose
Universidade Federal da Bahia - UFBA/Pós-graduação em lingüística

ABSTRACT: A lexical analysis of a random sample of 12 inedited manuscript documents of Arthur de Salles was carried out. In his vocabulary there are
marked, personal choice and common use lexias. The classification of the poet as a parnassian and symbolist was confirmed since 47% of marked lexias are
parnassian and 53% are symbolist.
PALAVAS-CHAVE: Arthur de Salles, léxico, Simbolismo, Parnasianismo

Parnasiano na forma, simbolista no vocabulário e vice-versa Depois no ceo e na terra


Em notícia do jornal A Tarde, de Salvador, logo após a morte 15 Das trevas a escuridão
de Arthur de Salles1 , foi dito que E eu leio. E vão-me estes versos
No mesmo diapazão
“nenhuma geração o combatia. Se entre os escritores e poetas Á luz da lampa fumosa
acadêmicos contava com admiradores, menos querido e admi- De morrediço clarão.
rado não o era nas rodas dos literatos de tendência e convic-
ções modernistas. Não vivia enclausurado em torre de mar- 20 Vão-me as sextilhas sahindo
fim, acompanhava e participava das vibrações cívicas da ju- Mas, ai de mim! que o rimar
ventude, formava com os moços em movimentos renovadores, Não tem a diva doçura
dominado por uma sinceridade que todos lhe reconheciam e Nem o celso cantar
admiravam” (A Tarde, 1952), Que himanavam dos cantos
25Daquella lyra sem par.
desta forma, Arthur de Salles não foi um escritor fechado em uma só
vertente, não seguiu uma única escola, atualizou-se ao longo do tempo
e buscou aquilo que de melhor cada movimento lhe oferecia, escreven- Outra característica do Simbolismo, desta vez destacada no
do hinos, odes, sonetos, poemas, poemetos e, inclusive, poemas com vocabulário, é essa disposição de criar uma gramática psicológica e
estrutura e vocabulário de cantigas medievais, além de fazer traduções um léxico original, cunhando neologismos e regenerando arcaísmos
de Shakespeare. desusados, recorrendo a expedientes gráficos: usando, por exemplo,
Arthur de Salles, homem de vastíssima cultura, “versejara ora maiúsculas, o y pelo i, etc. (Moisés, 1995: 475).
como simbolista, ora como parnasiano, ora praticando o classicismo,
mas sempre artista impecável na estruturação de sua magnífica pro- Os documentos que compõem este trabalho
dutividade.” (Estado da Bahia, 1952). Conforme se afirma no jornal Analisando os manuscritos de Arthur de Salles, pode verifi-
Estado da Bahia, Arthur de Salles pode ser considerado parnasiano e car-se, a princípio, que de seu vocabulário, por vezes pseudo-
simbolista, classificação que se comprova através do levantamento etimologizante, constam lexias marcadas, ou seja, aquelas cujo uso
lexical de sua obra, pois se a forma de seus versos evidencia por caracterizam alguma escola literária – no seu caso ficam evidentes as
vezes o parnasianismo, o vocabulário denota o simbolismo. influências tanto do parnasianismo quanto do simbolismo, como ve-
Nos versos abaixo, ainda em processo de escritura, podemos
remos a seguir; lexias de criação pessoal, sintaticamente aceitáveis,
ver várias das características do Parnasianismo, onde se cultua a for-
algumas vezes criadas pelo poeta para efeito de rima; e lexias de uso
ma através de uma métrica rigorosa e a arte justifica-se pela sua bele-
comum, termos, criados por ele ou não, que fazem parte do seu léxi-
za formal, a arte pela arte, tendendo ao descritivismo. Porém, seu
co, aparecendo repetidas vezes ao longo de suas obras, “palavra mui-
vocabulário, muitas vezes, nos reporta a um universo etéreo e bru-
to minha amiga”, no dizer do poeta.
moso, da poesia pura, não racionalizada, que usa imagens e não con-
Para o trabalho em questão serão utilizados os documentos
ceitos, primando pelo subjetivismo e pelo mistério, nos limites do
1, 2, 5 (fólios 1, 2 e 4), 7, 9 (fólio 1vº), 10, 11, 13, 14, 15, 16 e 17,
inconsciente, seguindo as características da escola Simbolista.
todos prováveis inéditos, arquivados na pasta 001 do Setor de Filologia
doc. 001:0009 Românica da UFBA. Estes documentos foram agrupados simples-
fº1vº mente por serem rascunhos de poesias não pertencentes a nenhuma
obra específica, o que faz deles uma amostra aleatória da produção
A noute vae alongada poética de Arthur de Salles.
Pela immensa escuridão A partir da análise do vocabulário desses manuscritos pôde-se
E eu leio, enchendo o silencio chegar ao seguinte levantamento, no qual transcrevemos as palavras
5 Desta minha solidão
exatamente como se encontram nos manuscritos:
Na cella do frei poeta
Sextilhas de Frei Antão.

Lá fora de quando em quando


Corre um ligeiro brilhar:
10 Luz de lampyrio que passa,
Como se estrella, a voar, 1 Poeta baiano (1879-1952), parnasiano e simbolista, escreveu tanto em prosa
Deixara no largo voo quanto em verso, e pode ser ainda considerado um dos representantes da
Rastilhos de ouro no ar. fase de transição pré-modernista

472 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Pode verificar-se através dos dados lexicais levantados que
Arthur de Salles era um poeta inventivo, que sofreu as influências de
seu tempo, e que não abandonou o vocabulário pseudo-etimologizante
de sua época.
Muitos dos vocábulos usados por Arthur de Salles podem ser
encontrados em obras de contemporâneos seus, autores, simbolistas
e parnasianos, que o poeta admirava, como Cruz e Souza, Alphonsus
Guimarães e Augusto dos Anjos, ou Olavo Bilac e Raimundo Cor-
reia. Vários outros vocábulos, porém, fazem parte de um léxico pes-
soal de Arthur de Salles, essas palavras, muitas vezes criadas por ele,
são utilizadas repetidas vezes ao longo de toda sua obra, compondo,
o que podemos chamar de, “marcas” da escrita sallesiana, seu modus
scribendi.
No entanto, as influências dos movimentos literários dos quais
participou são tão marcantes que encontramos, através do levanta-
mento vocabular desses 12 documentos, que compreendem uma
amostragem aleatória, como se disse, uma interessante paridade quan-
titativa nas ocorrências lexicais de ambas as escolas: pois temos pra-
ticamente o mesmo número de lexias marcadas que podem ser consi-
deradas parnasianas (45) e simbolistas (51). Pode-se afirmar, por-
tanto, a partir da análise destes documentos, que a influência de ambas
as escolas literárias é praticamente a mesma: 47% Parnasianismo e
53% Simbolismo.
A par disso, temos ainda, pelo menos 13 lexias de uso comum,
que serão encontradas ao longo da produção intelectual do poeta e,
ao que tudo indica, 19 lexias de criação pessoal.

Considerações finais
Apesar de este trabalho ter se ocupado apenas de uma peque-
na parte dos documentos pertencentes ao Acervo de Arthur de Salles,
influências de ambas as escolas literárias ficam evidentes na obra do
poeta. E, o que mais chama a atenção, é que os ideais do Parnasianismo
e do Simbolismo tiveram, ao que podemos constatar, praticamente
igual importância sobre a criação poética de Arthur de Salles.

Referência bibliográficas

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Fronteira. 2 ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
LOSE, Alícia Duhá. Sobre os manuscritos inéditos de Arthur de Salles.
In: JORNADA DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DO GELNE,
18, 2000, Salvador. Anais... (No prelo)

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 473


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na Nery Garcez e Maria Clara Constantino. São Paulo: Cultrix/ Edição Crítica pelo Grupo de Edição Crítica de Textos, sob a
EDUSP. direção de Nílton Vasco da Gama. Sessão em homenagem a
Morreu Artur de Sales. A Tarde, Salvador, 27 jun. 1952. Arthur de Salles. Estado da Bahia, [Salvador], 10 out. 1952.
SALLES, Arthur de, 1948. Poemas regionais; Sangue mau, O ramo SOUZA, Antonio Loureiro, 1979. Baianos Ilustres. 3. ed. rev. São
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SALLES, Arthur de, [1920]. Poesias; 1901-1915. Bahia: s.n.
252+ivp.

474 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Estratégias para o aperfeiçoamento da
pronúncia em aula de língua estrangeira.
Denise Scheyerl*
Robério Rubem de Matos* *
Décio Torres Cruz* **
Universidade Federal da Bahia

ABSTRACT: This paper is about the use of poetry and music as effective activities in the process of learning the phonetics of languages.
PALAVRAS-CHAVE: pronúncia, estratégias, ensino, línguas estrangeiras.

Apresentação We say sew, but also few?


Esta é uma reflexão conjunta do Grupo de Pesquisa em Lingüística And the maker of a verse
Aplicada ao Ensino/Aprendizagem de Línguas Estrangeiras do Cannot rhyme his horse with worse?
Departamento de Letras Germânicas da Universidade Federal da Beard is not the same as heard,
Bahia.. Atualmente, o grupo tem duas vertentes: Estudos em Tradução Cord is different from word,
e Lingüística Aplicada ao Ensino e Aprendizagem de Línguas Cow is cow, but low is low,
Estrangeiras. Shoe is never rhymed with foe.
Think of hose and dose and lose,
Poesia e música para o aperfeiçoamento da pronúncia em aula And think of goose and yet of choose,
de língua estrangeira. Think of comb and tomb and bomb,
Doll and roll and home and some.
Pode-se aprender a pronúncia como se aprende o léxico e a And since pay is rhymed with say,
morfologia? É claro que sim; há diversas maneiras para tal. Why not paid with said I pray?
Citaremos duas: Think of blood and food and good;
Mould is not pronounced like could.
1ª) Os alunos imitam os sons naturais, tentando pronunciá-los como Why is it done, but gone and lone…
os nativos. Os sons, as palavras, apresentam-se sem contexto, sem Is there any reason known?
função e, conseqüentemente, não representarão um momento autêntico To sum it up, it seems to me
That sounds and letters don’t agree. (SOARS, 1984: 27)
do nosso discurso. Fatalmente, não se alcançarão os objetivos com
exercícios entediantes como nos exemplos de exercícios de pronúncia
Ritmo
e repetição encontrados na maioria dos livros de língua inglesa, conforme
os exercícios “Pronunciation. Listen and repeat the nationalities” ou Uma das razões da retenção de poemas e canções é, sem dúvida, o fato
“Stress and information. Listen and repeat” do livro Look Ahead de que a poesia e a música são altamente rítmicas. Padrões de sons e
(HOPKINS, A. & POTTER, J., 1994: 9). acentos são repetidos em seqüências regulares e isso facilita a sua
aquisição. A poesia oferece um hot-line para o toque rítmico da língua;
2ª) Os alunos usam não só o ouvido ou a boca , mas também as mãos, ele é o guia para a estrutura de informação da mensagem falada, mesmo
os pés, todo o corpo. Defendemos, assim, a utilização da poesia e da que ela não seja entendida. É o caso do poema Annabel Lee de Edgar
música para o treinamento e o aperfeiçoamento da fonética. Alan Poe, cujos versos se adequam perfeitamente ao ensino de ritmo e
aliteração. Exercícios rítmicos podem ser praticados ainda através dos
Por que poesia e música? Vejamos alguns argumentos favoráveis: “Jazz Chants”, trazidos ao ensino de língua inglesa por Carolyn
Graham. Os próximos exemplos do inglês e do alemão ilustram
Memorização diferentes versões rítmicas.

Fragmentos de poemas e canções ficam fixados na nossa memória. Rhythm Practice


Alguns trechos, por serem particularmente marcantes, permanecem A B
e se repetem nos nossos ouvidos (até quando estamos dormindo)
sem estarmos conscientes disso. Estes fragmentos, na língua Hi. Hi.
materna ou não, permanecem na nossa memória por longo tempo, Hello. Hello.
mesmo que a competência comunicativa já tenha se exaurido. É o What’s your name?
What’s your name? Rita. Rita.
caso da música do ABC, usada tanto no ensino de alemão quanto no
What about yours?
de inglês. Em alemão, ela facilita o aprendizado das vogais /ö/, /ä/ e /
Richard. Richard.
ü/, mais difíceis para o falante do português, dentre outras. Where are you from, Richard?
Podemos ainda nos utilizar de poemas para o ensino de pares . Tell me where you’re from.
mínimos do inglês, como no exemplo a seguir onde há uma Dallas. Dallas.
discrepância na pronúncia de palavras que apresentam formas I’m from Dallas, Texas.
escritas semelhantes: How about you?
Paris. Paris.
When the English tongue we speak I’m from Paris, France.
Why is break not rhymed with weak? Nice to meet you, Rita
Won’t you tell me why it’s true Nice to meet you too.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 475


Das Haus
Jean Apatride für Samuel Beckett

Wir dachten, wir seien eingeladen


worden. Wir dachten, wir seien
Gäste. Es dauerte lange, bis wir
verstanden, daß wir hier zwar
Gäste sind, daß es aber keinen
Gastgeber gibt, der für uns sorgen
Könnte (ACKERMANN, 1982: 13)

Outros exemplos em língua inglesa podem ser encontrados em


poemas de Emily Dickinson (e alguns de Edgar Alan Poe), que
devido à sonoridade e ao tamanho (alguns bastante curtos), se
adequam ao ensino de pronúncia e ritmo através da universalidade
de seus temas.

Ludicidade

Um dos fatores-chave ao se aprender uma língua estrangeira é a


Ambigüidade habilidade e a oportunidade de se “brincar” com a língua para se
testar a sua elasticidade. Poesia e música são recursos através dos
Quase sem exceção qualquer poema significa mais que uma coisa. quais isso pode ser feito. São estratégias ideais também por sua
Trata-se de algo que é evidente para todos e de algo que é particular tolerância de erros, por provocarem reações pessoais, sensibilidade
para alguns. Há um significado público e um pessoal. No ensino verbal e, evidentemente, por serem altamente motivadoras. Um
isso tem uma vantagem imensa. Significa, observados os limites, excelente exemplo é o poema Ottos mops de Ernst Jandl para o
que a interpretação pessoal de cada aprendiz tem validade e
treinamento não só de [?] vs. [o] mas também para o treinamento da
também que se torna possível a discussão interativa, desde quando
diferença entre vogais breves e longas do alemão.
cada percepção é diferente.

Não-trivialidade Ottos mops


Ernst Jandl
Dado o fato de que a função da poesia e da música é de realçar ou
espelhar as nossas experiências de vida, conclui-se que ambas Ottos mops trotzt
oferecem um input significativo para os aprendizes. Isto as coloca Otto: fort mops fort
numa posição privilegiada em contraposição aos demais materiais Ottos mops hopst fort
de ensino: a poesia e a música têm um conteúdo afetivo ou Otto: soso
cognitivo que realmente significam alguma coisa e não são
simplesmente fabricadas para a sala de aula. Observem-se, através Otto holt koks
dos próximos exemplos, como elas possibilitam de maneira original Otto holt obst
o trabalho em coro falado ou cantado. Otto horcht
Otto: mops mops
Solomon Grundy Goodbye
Martin Bell Alan Maley
Otto hofft
Solomon Grundy `Don’t lie’, she said.
Born on Monday, `I try’, he said. Otto mops klopft
Christened on Tuesday, `My eye!’ she said. Otto: komm mops komm
Married on Wedne sday, `Don’t cry’, he said.
Took ill on Thursday, `I’ll die!’ she said. Ottos mops kommt
Worse on Friday, `Oh my!’ he said.
Died on Saturday, `Goodbye!’ she said. (RIVERS, 1983: 103)
Ottos mops kotzt
Buried on Sunday, Otto: ogottogott (JANDL, 1977: 8)
And that was the end of Solomon Grundy.
Of Solomon Grundy (RIVERS, 1983: 102)
Em inglês, existem diversos poemas que se enquadram nessa categoria.
O poeta norte-americano e. e. cummings (1894-1962), que participou
Universalidade
do movimento modernista, realizou diversos experimentos com a página
impressa, com poemas que muito se assemelham aos dos nossos
Poesia e música são formas de linguagem que são atividades da
humanidade. Os temas são comuns a todas as culturas: amor, poetas concretistas. Como Emily Dickinson, ele também não intitulava
morte, natureza, religiões, crenças. No poema Das Haus o autor seus poemas, ficando os títulos conhecidos pelos primeiros versos.
confronta sentimentos universais como o aconchego da terra natal Alguns de seus poemas são bastante jocosos e se adequam à exploração
(Haus) e a estranheza de se estar em um outro país, como hóspedes da ludicidade na prática de pronúncia na sala de aula, como podemos
(Gäste). O poema é um excelente material para o trabalho com os observar nos dois exemplos abaixo:
ditongos alemães.

476 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


[my sweet old etcetera] [may I feel said he] tem exercido um papel mais consistente, principalmente como
my sweet old etcetera may I feel said he elemento integrante da cultura, a poesia tem sido esquecida em aula de
aunt lucy during the recent (i'’ll squeal said she
war could and what just once said he) língua estrangeira, apesar de ser autêntica lingüisticamente e de
is more did tell you just it’s fun said she
what everybody was fighting
provocar também uma resposta individual autêntica por parte dos
for, (may i touch said he alunos. Se usada da forma aqui sugerida, poderá envolver os estudantes
my sister how much said she
isabel created hundreds a lot said he)
num processo de aprendizagem da fonética dinâmico e efetivo.
(and why not said she
hundreds) of socks not to
mention shirts fleaproof earwarmers (let’s go said he
etcetera wristers etcetera, my not too far said she
mother hoped that what’s too far said he Referências bibliográficas
i would die etcetera where you are said she)
bravely of course my father used
to become hoarse talking about how it was may i stay said he ACKERMANN, Irmgard. Als Fremder in Deutschland. München,
a privilege and if only he (which way said she
could meanwhile my like this said he
DTV, 1982. Die Rhythmuslokomotive. München, Goethe Institut,
self etcetera lay quietly if you kiss said she 1995
in the deep mud et
cetera may i move said he GILLIAN, Brown & Yule, George. Teaching the spoken language.
(dreaming, is it love said she) Cambridge: Cambridge University Press, 1983.
et if you’re willing said he
cetera, of (but you’re killing said she GRAHAM, Carolyn. Jazz Chants. New York, Oxford University
Your smile Press, 1978.
eyes knees and of your Etcetera) but it’s life said he
(CUMMINGS, apud McQUADE, 1987: but your wife said she HOPKINS, A. & POTTER, J. Look Ahead. Book 1. Essex, Longman,
1916) now said he)
ow said she
1994.
JANDL, Ernst. Poetische Werke. München, Luchterhand Verlag, 1977.
(tiptop said he
don’t stop said she McQUADE, Donald et al (edit). The Harper American literature.
oh no said he) New York, Harper & Row, Publishers, 1987.
go slow said she
Primar: Zeitschrift für Deutsch als Fremdsprache im
(cccome?said he Primarschulbereich. München, Goethe Institut, 1995.
ummm said she)
you’re divine!said he RIVERS, Wilga M. Interactive language teaching. Cambridge,
(you are Mine said she) Cambridge University Press, 1983.
(CUMMINGS, apud McQUADE, 1987: 1918)
Rhythmus und Lied im Daf – Unterricht. São Paulo, Instituto Goethe,
1993.
SOARS, J. & L. Headway. Upper Intermediate. Students’ Book.
Conclusão Oxford, Oxford Univ. Press, 1984.

Nos últimos anos discutiu-se bastante sobre autenticidade da língua


dentro da abordagem comunicativa. No entanto, enquanto a música

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 477


Pode a publicidade contribuir para
a aquisição de uma segunda língua?•
Sílvia Maria Guerra Anastácio(1)
Célia Nunes Silva(2)

ABSTRACT: The study of the process of creation of advertising can be enlightening to second language acquisition. How could the learning facilitator
profit from analyzing the advertising strategies? Wouldn’t both the facilitator and the advertiser be trying to make a dream come true?
PALAVRAS-CHAVE: Publicidade, estratégias, aquisição, linguagem.

Introdução manter determinada atitude, que, por conseguinte, estará menos sus-
cetível a mudanças (McConnell, 1978: 577).
A palavra propaganda vem de propagare, técnica de jardina- Solomon Asch (apud McConnell, 1978: 580) mostrou que
gem que consiste em enterrar sucessivamente mudas de plantas no há duas formas básicas de induzir a mudança de atitudes em relação
solo para que continuem se reproduzindo. Trata-se de uma ação a um objeto: 1. mudar o próprio objeto ou produto, de modo que a
repetitiva, de uma arte cultivada (Brown, 1971:12). Quanto ao con- sua própria percepção não seja mais consoante com os fatos; 2. dei-
ceito propaganda, está associado à técnica de conceber, criar, execu- xar o objeto “como está”, mas de alguma forma conseguir que o
tar e difundir idéias, conhecimentos (Ferreira, 1999:1649). observador mude a sua percepção dos atributos bons ou ruins daque-
Já a publicidade, consiste em um esforço individual ou grupal, le mesmo objeto.
que visa persuadir o outro através dos meios de comunicação para Dentre os traços mais influentes que um comunicador possui
obter vantagens financeiras. Envolve o meio de comunicação que está a credibilidade. Aparentemente, tendemos a nos mover em dire-
apresenta o produto (...), como também o produto em si, a sua emba- ção a alguém em quem confiamos ou admiramos, e para longe de
lagem, marca, preço e mensagem que se deseja transmitir. É fruto do alguém de quem desconfiamos. Logo, é a credibilidade do
marketing, que por sua vez, estabelece uma ponte entre consumidor comunicador, que, em primeiro lugar, parece levar alguém a prestar
e produtor; faz sondagens de comportamento, objetivos e atitudes de atenção à sua mensagem; se bem que, por outro lado, somos inclina-
um consumidor em potencial, visando a satisfação desse consumidor dos a “desafinar” ao ouvirmos um comunicador em quem não confi-
e os lucros da empresa. Logo, se detém em analisar o mercado, suas amos, muito antes dele acabar de transmitir a sua mensagem.
necessidades e motivações, bem como, os produtos propostos, as Quanto às mensagens de maior apelo emocional, essas apa-
motivações, previsões, concorrentes, vendas e questões de comuni- rentemente terão, a curto prazo, mais efeito sobre as atitudes e os
cação (Lampreia, 1995:65). comportamentos das pessoas do que as de maior apelo racional; en-
Para Claude Marti, a publicidade não pode criar necessidades tretanto, as primeiras não possuem consistência suficiente para influ-
até então inexistentes, mas “recupera apetites”, atuando como uma enciar as mudanças de atitude a longo prazo. Também observamos
força catalisadora no mercado consumidor (Marti apud Lampreia que as comunicações, as quais tendem a amedrontar o interlocutor,
1995:61). As campanhas publicitárias exercem um poder persuasivo focalizam apenas a sua atenção sobre os problemas e suas respecti-
sobre a população, tornando imperiosas certas necessidades que po- vas dificuldades, e não sobre possíveis soluções.
deriam passar quase desapercebidas. Ainda no que diz respeito à mensagem, ela tem de ser ex-
pressa claramente, em poucas palavras e de forma sugestiva. Deve
As leis da publicidade e sua linguagem envolvente ser sempre positiva; assim, em vez de “não gaste dinheiro”, o anún-
cio dirá “poupe dinheiro”. Tentará, ainda, evitar o uso do condicio-
A publicidade mitifica e converte em ídolo o objeto de con- nal, a fim de não dar margem a dúvidas; em vez de “você poderia
sumo, revestindo-o de atributos que ultrapassam as qualidades que ganhar mais...”, dirá “você ganhará mais...”. Assim, um anúncio terá
lhe são inerentes, a sua própria realidade. Atua, então, sobre as moti- sempre mais possibilidades de êxito, caso se mostre positivo. Deve
vações inconscientes do público, compelindo-o à ação e levando-o a apontar para o lado feliz e atraente da vida, como se indicasse um
tomar certas atitudes (Lampreia, 1995: 24). Estas são formas de per- caminho a seguir, e nunca para o lado triste, escuro e pouco convida-
cepção, que envolvem sentimentos, afetos, tendências emocionais, e tivo. Uma pasta dental, então, não deve mostrar dentes estragados
que nos predispõem a agir de determinada maneira. Assim, a atitude por falta do seu uso, mas evidenciará dentes bonitos e saudáveis,
que assumimos perante alguém ou algum objeto permite-nos predi- graças à utilização do produto; pois é preferível que se fale das con-
zer o comportamento futuro daquela pessoa ou identificar a natureza dições futuras em vez das existentes, ou daquilo que as pessoas dese-
de determinada coisa, pois armazenamos as nossas experiências na jam ser ou ter, e não do que são ou têm, atualmente. Uma agência de
memória (de longo-prazo) de acordo com as impressões que guarda- viagens dirá “venha ao país do sol e da alegria”, em vez de “esqueça
mos dos acontecimentos que vivenciamos. Isto é, atribuímos “rótu- o inverno, o frio e a chuva”.
los verbais” ou rótulos abstratos às vivências que experimentamos, e As afirmações gerais, também, devem ser evitadas. Quanto
então, preenchemos o arquivo de nossa memória com esses rótulos. mais específica e definida for a assertiva, melhor será, mais força
É por isso que quanto mais conhecemos uma pessoa, uma coisa, ou dará aos argumentos empregados. Então, uma boutique que anuncie
uma idéia, mais estável será, geralmente, a nossa atitude frente aqui-
lo que conhecemos; e quanto mais inclinados nos sentimos em rela-
ção a alguma coisa, mais difícil será mudar os “rótulos de memória”,
que atribuímos àquela coisa. Além disso, quanto mais a atitude que • Trabalho apresentado no II Congresso Internacional da ABRALIN- Forta-
assumimos em relação a alguém nos permita predizer futuros aconte- leza/Março/2001
1- Prof. Titular do Departamento de Letras Germânicas ILUFBA/UFBA
cimentos e futuras entradas, mais nos sentiremos recompensados a
2 Prof. Adjunto do Departamento de Neuropsiquiatria FAMED/UFBA

478 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


“redução de preços” causará menor impressão do que outra que anun- ência. Reconhece-se como “intervalo ótimo” aquele que não é grande
cie uma redução de 20% em todos os preços” (Lampreia, 1995:38). demais, ou seja, um segmento de tempo em que a audiência ainda não
Convém, ainda, que o publicitário conheça a sua audiência tenha esquecido a mensagem enviada (Ibidem, 1995:41).
para que possa sugerir algo que vá de encontro às necessidades exis- Lei da vivacidade. De acordo com esta lei, dentre várias men-
tentes, pois assim, a sua mensagem será mais prontamente aceita do sagens emitidas, aquela cuja impressão for mais viva no momento da
que uma sugestão que não vá de encontro à necessidade alguma. recepção tenderá a reaparecer, preferencialmente, em relação a ou-
Além disso, à medida que as mensagens vão sendo enviadas, é vital tras. Assim, um anúncio, que tenha produzido uma forte impressão
que o comunicador esteja atento às reações da audiência, e observa- da primeira vez que o vimos ou ouvimos tenderá a voltar mais à
mos que as maiores mudanças de postura acontecem quando o nossa memória, do que outro de maiores dimensões ou repetido mais
comunicador consegue que essa audiência assuma prontamente as vezes, mas que tivesse produzido no receptor uma impressão menor.
atitudes sugeridas pelo anúncio. Essa lei aplica-se, essencialmente, à qualidade do conteúdo do anún-
Segundo Lampreia (1995: 51), a publicidade, para desenca- cio, que muitas vezes, “cola” no ouvido do receptor; também, atitu-
dear com êxito a ação desejada, deverá seguir uma trajetória psicoló- des mais personalizadas, positivas, flexíveis, entusiásticas, formula-
gica, que privilegie a atenção, o interesse, o desejo e a ação. Ou seja, das, com freqüência, em frases na voz ativa e no tempo presente
qualquer anúncio publicitário que queira levar à ação terá de ser vis- enfatizam a impressão de vivacidade transmitida pela mensagem.
to e compreendido, interessar pelo conteúdo e, por fim, criar no re- Lei da contigüidade. Segundo a qual se estabelece uma asso-
ceptor a vontade de agir no sentido desejado. Assim, chamar atenção ciação de idéias, em que a parte tende a evocar o todo a que pertence;
é, pois, o primeiro objetivo de qualquer anúncio, e dentre as múlti- assim, por contigüidade, um cubo de gelo faz lembrar o frio. De
plas mensagens publicitárias recebidas somente as que conseguirem modo que um anúncio bem concebido deve fazer o indivíduo associ-
chamar a atenção do receptor terão alguma chance de chegar às eta- ar facilmente uma imagem ao produto, através de uma comparação
pas seguintes. sugerida direta ou indiretamente. Através dessa lei, o nome de uma
Servindo-se da lei da vivacidade, a chamada de atenção se marca pode vir a tornar-se genérico de um produto, como acontece
processa de modos diferentes: na comunicação oral, o tom elevado nos casos da Kodak ou Gilette.
pode ser uma forma de atrair a atenção; na comunicação visual, a Lei do contágio. Esta lei baseia-se no fato do ser humano ter
enorme dimensão do painel, independente do conteúdo, pode se des- uma tendência ao conformismo e à imitação, aceitando facilmente
tacar por si mesmo, ou uma série de cartazes iguais colocados ao opiniões perfilhadas pela maioria ou por personalidades importan-
longo de um muro, que chamarão a atenção por seu número elevado, tes. Daí “X, o refrigerante que todos os jovens bebem”
estando aqui em jogo a lei da repetição. Um anúncio bem concebido Lei do emissor. Segundo ela, quanto mais importante for o
deverá ter, também, uma apresentação original ou insólita, com uma emissor de uma mensagem maior será a força de impacto desta junto
ao receptor. É o que acontece quando se escolhe uma estrela de cine-
viva combinação de cores, um conteúdo envolvente. Despertar o in-
ma para apresentar as vantagens de um sabonete.
teresse do receptor é a etapa que o anúncio pretende alcançar, agindo
Lei da transfusão. Consiste em aproveitar, quer uma corrente
sobre as tendências e as motivações, que determinam a conduta do
de opinião, quer uma motivação existente, e derivá-la, explorando-a
indivíduo.
favoravelmente, noutro segmento. É o caso da utilização de crianças,
A etapa seguinte da mensagem publicitária é criar o desejo.
que, por vezes, anunciam produtos ou serviços destinados a adultos.
Pela sua argumentação, o anúncio procurará evocar valores como o
Faz-se a transfusão de uma motivação associada às crianças (amor,
sentido de economia, vaidade, sexualidade... É também nesta fase
carinho, necessidade de proteção...) para o produto anunciado.
que é dada toda a informação sobre o produto anunciado (nome, pre-
Na verdade, os produtos quando são fabricados, nada comuni-
ço, local onde se possa adquiri-lo). Finalmente, a etapa derradeira do
cam, necessariamente; mas após receberem o tratamento semiótico
anúncio é levar a uma ação de compra, através de um ato voluntário
da publicidade e do marketing, então, assumem um significado, ad-
do consumidor.
quirem uma personalidade, valores. Passam a ser belos, jovens, sau-
Qualquer campanha publicitária procura, portanto, que seus
dáveis, alegres, dinâmicos, elegantes, eficazes, inteligentes, sofisti-
anúncios sejam memorizados; para tal, observa algumas leis, especi-
cados, tradicionais, populares. O importante é enfatizar os benefícios
almente a da vivacidade, da contigüidade e sobretudo, da repetição.
do produto, realçando o que o comprador quer ouvir e numa lingua-
Verificou-se que, quanto mais perto a memorização estiver do mo-
gem que aproxime o emissor e o receptor da mensagem.
mento da ação, maior será a sua influência sobre esta; daí a efetividade
A falta de distanciamento entre as partes é construída, basi-
das campanhas de “boca de urna” nas eleições.
camente, por dêiticos, que apontam para alguma imagem ligada à
A publicidade atua, em suma, segundo leis gerais da comuni- mensagem publicitária, como no anúncio: “Sabão como este nunca
cação e outras, também, que lhe são próprias. Lampreia (Ibidem, 1995: se viu”. Também o uso de pronomes em primeira pessoa convida
40) enfatiza as seguintes regras da publicidade: então, o interlocutor do anúncio à intimidade, como se o procurasse
Lei da simplificação. Consiste em sintetizar uma mensagem com o olhar: “O nosso Martini é delicioso”; “Nós escolhemos pri-
ao máximo, partindo do pressuposto de que quanto mais simples for meiro mas é você quem fica sempre com o melhor”( Pinto, 1997:152).
mais fácil será a sua compreensão e memorização, bem como mais (Ibidem 172-3). Portanto, os indicadores espaciais do discurso pu-
rápida a sua posterior referência por parte do receptor. É importante, blicitário celebram o aqui e agora, contrastando o espaço do ‘outro’
portanto, usar frases objetivas, curtas, e palavras conhecidas. Ou, em (das outras marcas, dos concorrentes) com o do ‘nós’ (do enunciador
se tratando de imagens plásticas, favorecer a leitura do campo visual da mensagem).
da esquerda para a direita, pelo fato de que, no ocidente, aprendemos
a ler nessa direção. Em conseqüência, a matéria situada do lado supe- Saberes necessários à publicidade e à prática educativa
rior direito da tela terá maior peso, atraindo mais a atenção do recep-
tor, já que é para lá que os lhos se dirigem. A publicidade também se Traçando um parâmetro entre as idéias de Paulo Freire (PF) e
utiliza de cores primárias, que são percebidas, preferencialmente, na Piaget (P) sobre a natureza da educação, observamos que esses mes-
seguinte ordem: laranja, vermelho, azul e verde. tres têm muito em comum com os publicitários:
Lei da repetição. Segundo a qual, quanto mais vezes uma .PF: “ensinar exige respeito aos saberes do educando, saber escutar
mensagem for repetida maior probabilidade terá de voltar à consci- suas necessidades”

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 479


P:“deve-se respeitar cada aluno em particular, com as suas singulari- Considerações finais
dades ”;“Motivação é o fator básico da criatividade, motivação é sin-
toma de desequilíbrio, contradição, carência, necessidade”; Ao compararmos educadores e publicitários, destacaríamos
“interesse=motivação”(Lima, 1986:57/68-9). que ambos buscam uma abordagem sob medida, personalizada, em
que o receptor se veja envolvido no processo. Trata-se de situações
 a publicidade deve respeitar o usuário, acatando suas opiniões e
em que se aposta na simplicidade, mas visando atingir uma comple-
feedbacks: “elimine o prato feito e vá de encontro às necessida
xidade, de modo que se construa um processo de complexidade pro-
des do usuário” (Ribeiro, 1999: 238).
gressiva, em que um tema ou uma informação vá se associando à
outra, por analogia; em que a repetição leve à memorização, mas a
PF: “ensinar exige estética e ética, exige reconhecer que a educação
um tipo de repetição bem particular, já que no caso dos anúncios, o
é ideológica”.
publicitário joga com a desconstrução de expressões prontas, mitos,
 a publicidade é uma arte revestida por valores estéticos e éticos,
imagens, palavras, assim instaurando, com freqüência, o inusitado, o
sendo a mensagem organizada de tal modo a causar uma forte
inesperado, o original. Este material publicitário, devido à sua
impressão no sistema de valores receptor.
musicalidade, poeticidade e valor estético presta-se, sobremaneira, a
 a publicidade pode não dizer toda a verdade, mas também não
ser trabalhado em aulas de aquisição de uma segunda língua, pois o
deve mentir, nem ludibriar, além de passar valores e espelhar
aprendiz tende a memorizar melhor aquelas expressões conhecidas,
uma postura perante o mundo.
aqueles sintagmas ou blocos de idéias construídos e desconstruídos
com tamanho senso estético e que são geralmente, palatáveis aos sen-
PF: “ensinar exige risco, aceitação do novo”
tidos. O professor deve, ainda, instigar o aluno a desenvolver a sua
P: “a inteligência se desenvolve através de flexibilidade; o profes
reflexão crítica, autonomia e liberdade, até para ser capaz de reco-
sor é um desequilibrador, que propõe situações-problema” ;
nhecer as estratégias argumentativas usadas pela publicidade para
“criar é o exercício da inteligência, é coordenar, combinar de
persuadir e manipular o outro.
forma nova” (Ibidem 34/54/70).
Finalmente, do mesmo modo que a publicidade, o ensino pre-
 a publicidade tem de ousar novas idéias e lutar contra o
cisa captar e reter a atenção do aluno, despertando-lhe os sentidos, o
engessamento da equipe;o elemento lúdico é desafiante e
interesse, a curiosidade, o desejo de aprender, e motivando-o a agir, a
envolvente, pois propõe combinações inusitadas.
mudar de atitudes, de comportamentos. Tanto o professor quanto o
comunicador publicitário devem inspirar credibilidade para serem
PF: “ensinar exige consciência do inacabamento e de que a mudan-
vistos e ouvidos. Têm de ser transmissores de sonhos, estabelecendo
ça é possível”
um vínculo com o receptor, e levando as pessoas a apostarem no lado
P: “o equilíbrio das operações mentais, sempre buscado, é 1pro
melhor da vida, para que cada um acredite no próprio potencial e
cesso circular”(Ibidem61).
possa render o seu melhor.
 a publicidade promete mudanças positivas se o usuário for leva
do à ação. Visa sempre melhores resultados e o aperfeiçoamen-
Referências bibliográficas
to do produto para fazer frente às concorrências:
“Não se esqueça de ser sempre um caçador de acertos”( Ribeiro,
BROWN, J. A. C. Técnicas de persuasão. Rio de Janeiro: Zahar,
1999: 240).
1971.
CARRASCOSA, J. A. A evolução do texto publicitário:a associação
PF: “ensinar exige apreensão da realidade”
de palavras como elemento de sedução na publicidade. S. Pau-
P: “comportamento é construído numa interação entre organismo
lo: Futura, 1999.
e meio”(Lima 1986:13)
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. O dicionário da língua
 a publicidade aguça a percepção da realidade pelos sentidos
portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
e promove o lado palpável dos signos (Jakobson apud Pinto
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. S. Paulo: Leitura, 1998.
1997:97).
LIMA, Lauro de Oliveira. Piaget para principiantes. S.Paulo: 1980.
MARTI, C. In: LAMPREA, Martins J. A publicidade moderna.
PF: “ensinar exige alegria e esperança”
Lisboa: Presença, 1995.
 a publicidade se compromete em acentuar o lado positivo das
McCONNELL, J.,V. Psicologia. RJ: Interamericana, 1978.
situações, para que o usuário possa dar vôos ao sonho e à
PINTO, Alexandra Guedes. Publicidade: discurso de sedução. Por-
imaginação:“pense grande”(Ribeiro, 1999:237).
to: Porto Editora, 1997.
REIN, David P. The language of advertising and merchandising in
PF: “ensinar exige comprometimento”
English. N. York: Regents Publishing Company, 1982.
P: regras não são entidades eternas, podem ser questionadas em
RIBEIRO, Julio. Fazer acontecer. S. Paulo: Cultura, 1999.
contratos(Lima, 1986:17).
 a publicidade requer um pacto, cumplicidade entre produtor e
Transparências
usuário, envolvimento.
1.”A criação do mundo” – Michelangelo na Capela Sistina
PF: “ensinar exige autonomia e reflexão crítica” (Freire, 1998:7-9).
Campanha “Levi’s down the ages” –
P: “Basta proibir a discussão para paralisar o desenvolvimento, o
Essa publicidade faz uma montagem interessante e, ao mesmo
homem só progride em liberdade (Lima, 1986:29). “Sem
tempo, viola o princípio da lógica, ao jogar com elementos opostos e
criatividade e liberdade não há construção”(Ibidem,
categorias diversas; estas acabam se harmonizando visualmente, num
53). .”De que adianta um canário se você não o deixa espaço em que o moderno e o antigo se integram. Note a analogia
cantar?”(Ribeiro 1999:239). entre a criação do mundo e a da calça Levi’s, uma hipérbole visual,
 a publicidade joga com as escolhas da audiência, numa bus que joga com o inusitado. A imagem geradora aqui é a da criação. O
ca de manipular o público alvo. anúncio remete ao domínio do imaginário, do mítico. Jeans é tão

480 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


perfeito, que parece ter entrado em cena antes do homem pecar, crianças sorrindo, trata-se de um anúncio sui generis. Essa publicida-
quando tudo ainda era perfeito, e tem perdurado desde então. Portan- de dirige-se a pacientes que sofrem de doenças terminais, buscando
to o anúncio sugere um clima de perfeição inquestionável. seduzi-los a vender as suas apólices de seguro ou parte delas em troca
de uma importância em dinheiro, que lhes permita aproveitar o último
Pode-se fazer um brainstorm, cobrindo parte dos próximos anúnci- tempo de vida, que lhes resta. Note o jogo de palavras We put life in
os, e elicitando quais seriam os produtos, como também, os sentidos life insurance!, que empresta uma conotação positiva ao anúncio,
evocados. sendo reiterada a positividade do conceito vida em Life Partners.
Observe, também, como é insólita essa conjugação de imagens feli-
2. Apelo à visualidade, toque, gosto. Sentido de proteção, intimida- zes com o tema proposto, buscando o anúncio emprestar-lhe um oti-
de, sugeridos pela concha e pelo capacete do logotipo do hotel. O mismo e uma vivacidade, que nada têm a ver com a situação. O texto
nome do produto, o hotel Caesar Park, evoca tradição, história, po- é todo feito de promessas e barganhas (Coping. Living with cancer.
der, elegância, sofisticação; logo, apenas idéias positivas. Esse dis- Palo Alto: Janssen. May/June 1995. v 9. Issue. P.12).
curso publicitário promete um serviço impecável, fazendo o hóspede
4. Mais um anúncio do mesmo tipo, da mesma revista publicada nos
sentir-se em casa, tal como uma pérola na concha. Note, também, a
EUA, Coping- living with câncer. Basta olhar a imagem do casal
analogia entre a sofisticação do hotel, e a da jóia. sorridente para se perceber que, mais uma vez, aplicou-se a lei da
publicidade conhecida como transfusão, que ocorre quando se em-
3. Num estranho anúncio, este que começa com a palavra Imagine, presta a uma entidade (doença terminal) atributos de uma outra (ca-
apesar de evocar a música de John Lennon, mostrar belas paisagens e sal feliz ).(Ibidem p.39).

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A interface versos e música
A trajetória da mulher brasileira rumo à
conquista de uma identidade social
Maria da Conceição Santos Soares
Universidade Federal da Bahia

ABSTRACT: Pretende-se, através de textos musicais, resgatar a gênese e identificar o valor poético desses textos através de critérios literários.
The aim of this paper is to rescue the genesis and identify the poetical value of some musical texts through literary criteria.
PALAVRAS-CHAVE: Verso, música.

1. Introdução 2. Trajetória

Este trabalho faz parte de um projeto maior, intitulado Começando a caminhada no início da década de 40, me
Resgatando Versos Através da Música Popular Brasileira. utilizarei da canção intitulada Emília de autoria de Haroldo Barbosa e
Como parte inicial da proposta de trabalho, pretendo aqui, Wilson Batista, grande sucesso da época, para ilustrar a imagem da
através de textos poéticos selecionados da música popular brasileira, mulher dentro do universo masculino, naquele momento.
fazer um passeio enfocando o signo mulher e o seu papel na relação
amorosa como temática central. São textos representativos que datam Emília
do início da década de 40 e vão até o final dos anos 90. (1942, Haroldo Barbosa & Wilson Batista)
Não tenho a pretensão de esgotar este tema, mas de ressaltar Interprete: Vassourinha (Mário Ramos)
algumas diferenças que vão surgindo de um texto para outro à medida Eu quero uma mulher
que o tempo vai passando, e a imagem da mulher brasileira se Que saiba lavar e cozinhar
modificando perante toda a sociedade. Que de manhã cedo
A multiplicidade de formas em que ela se apresenta nestes Me acorde na hora de trabalhar
textos me leva a pensar na atualização de elementos da lírica amorosa Só existe uma
romântica, utilizando para isto de recortes de situações relatadas de E sem ela eu não vivo em paz
relações amorosas, que se concretizaram ou não, mas que ficaram na Emília, Emília, Emília
memória. O passado, o presente, e o futuro por vezes se defrontam Eu não posso mais
através da memória. Ninguém sabe igual a ela
As semelhanças entre os textos de autores diferentes, de Preparar o meu café
épocas e contextos culturais diferentes são várias e muito Não desfazendo das outras
representativas. As associações podem ser feitas imediatamente ao Emília é mulher
compará-las. Papai do céu é quem sabe
Escolhi o texto lírico como base para estudo, porque ele se A falta que ela me faz
adequa ao tipo de análise que me proponho a fazer. Recortes de Emília, Emília, Emília
situações de relações amorosas de primeira pessoa ou de primeira Eu não posso mais
voz. O eu-lírico. A expressão individual. Pensando em termos da identidade social, que é uma
A poesia lírica que nasceu da necessidade de uma expressão conquista do ser humano, e da identidade biológica que é uma atribuição
individual, e por ser habitualmente acompanhada pela flauta e pela da natureza, fica claro que o autor se utiliza de um discurso que
lira passou a chamar-se lírica, e traz imagens sonoras e plásticas. O inferioriza a mulher e também que os papéis sexuais são estereotipados
elemento musical é intrínseco às palavras. A musicalidade dos textos na sociedade patriarcal da época. Emília faz falta, não porque seria a
se faz presente numa leitura cuidadosa, quer os instrumentos musicais outra parte que o complementaria, mas principalmente, para
se apresentem ou não. desempenhar funções que condenam a mulher apenas à condição natural
O texto lírico romântico acredita na poesia como expressão
de ser biológico. A mulher fica impossibilitada de construir sua própria
do “eu”. A relação amorosa é muitas vezes abordada num tom
identidade social, estigmatizada pela diferença entre os sexos. O
nostálgico. A solidão e a falta que o outro faz, também se apresentam
discurso cultural da época obrigava a mulher a aceitar um lugar
no texto, assim como, a incompreensão, a dúvida e a infidelidade. O
subalterno. Ela apenas podia exercer as atividades que sua natureza
amor por vezes é correspondido e por outras vezes não. Mas, o
biológica lhe permitia.
sentimento e a expectativa do autor em relação ao outro, parecem
Nos anos 70, Antônio Carlos Jobim, produz a canção
muito explícitos nos textos. O que nos confirma que a produção
Falando de Amor que comentaremos a seguir:
literária da lírica romântica é uma expressão individual de
pessoalização do poético que se utiliza das relações entre som,
sentido, ritmo e imagem. O sujeito lírico comanda essas relações
através da visão subjetiva. * Membro do Grupo de Pesquisa de Lingüística Aplicada do Departamento
em Letras Germânicas da UFBA desde 1995.

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Falando de Amor Quero ser assim, quero ser assim
(1979, Tom Jobim) Senhora das minhas vontades
Se eu pudesse por um dia E dona de mim
Esse amor, essa alegria Que venha de dentro de mim
Eu te juro, te daria Ou de onde vier
Se pudesse esse amor todo dia Com toda malícia e segredos
Chega perto, vem sem medo Que eu não souber
Chega mais meu coração E tenha o cio das forças
Vem ouvir esse segredo E lute com todas as forças
Escondido num choro canção Conquiste o direito de ser
Se soubesses como eu gosto Uma nova mulher
Do teu cheiro, teu jeito de flor Livre, livre, livre para o amor
Não negavas um beijinho Quero ser assim
A quem anda perdido de amor Senhora das minhas vontades
Chora flauta, chora pinho E dona de mim
Choro eu o teu cantor Que venha essa nova mulher
Chora manso, bem baixinho De dentro de mim
Nesse choro falando de amor Que venha de dentro de mim
Quando passas, tão bonita Ou de onde vier
Nessa rua banhada de sol Este texto revela uma mulher desejosa de mudanças fortes,
Minha alma segue aflita de transformações em sua vida, e em seu modo de ser. Ela agora se
E eu me esqueço até do futebol mostra um ser que pensa e quer ter direito as decisões sobre si mesma.
Vem depressa, vem sem medo Não importa de onde lhe venham as forças para a grande
Foi pra ti meu coração transformação que se faz necessária no momento, o seu grande desejo
Que eu guardei esse segredo é de se modificar e conquistar o direito à liberdade de ação e de
Escondido num choro canção pensamento, o que inclui aí também a liberdade para o amor.
Lá no fundo do meu coração Uma nova mulher está na memória de todos que viveram
A mulher agora é objeto de desejo para uma relação amorosa. essa época como um hino que seduzia e pedia socorro, e ao mesmo
O poeta se declara perdidamente apaixonado e confessa até mesmo tempo mostrava a força e a determinação da mulher. O apelo de
esquecer do futebol, a grande paixão da maioria dos homens brasileiros. libertação é gritante, e a tomada de consciência determinante.
Ao se declarar apaixonado, as qualidades da mulher por ele exaltadas Nos anos 90 a canção intitulada Sozinho de autoria de
são: o cheiro, o jeito de flor e a beleza física. Peninha interpretada por Caetano Veloso tomou conta do país e
A mulher ainda não lhe pertence e parece até que ainda nem permaneceu em primeiro lugar em todas as paradas de sucesso por um
notou a sua aflição. Neste texto, o poeta já pede, suplica e se confessa longo período. O seu texto abaixo é o que veremos na seqüência.
incapaz de tê-la quando diz e repete se eu pudesse.
A imagem da mulher neste universo masculino ocupa um Sozinho
lugar de destaque como objeto de desejo para complementação do (Peninha)
“eu” do poeta e o discurso exalta as qualidades femininas. A Às vezes no silêncio da noite
subjetividade do autor é representada pelas suas motivações pessoais. Eu fico imaginando nós dois
No final dos anos 80, a canção Uma Nova Mulher, dos Fico ali sonhando acordado, juntando
compositores Paulo Debétio e Paulo Rezende é um grande sucesso na O antes, o agora e o depois.
voz da cantora Simone Bittencourt, é este texto que usarei para Porque você me deixa tão solto
exemplificar esta etapa do trabalho. Porque você não cola em mim
Tô me sentindo muito sozinho
Uma Nova Mulher Não sou nem quero ser o seu dono
(Paulo Debétio & Paulo Rezende) É que carinho às vezes faz bem
Que venha essa nova mulher Eu tenho meus desejos e planos secretos
De dentro de mim Só abro pra você mais ninguém.
Com olhos felinos, felizes Porque você me esquece e some
E mãos de cetim E se eu me interessar por alguém
E venha sem medo das sombras E se ela de repente me ganha
Que rondam o meu coração
E ponha nos sonhos dos homens Quando a gente gosta é claro que a gente cuida
A sede voraz da paixão Fala que me ama só que é da boca pra fora
Que venha de dentro de mim Ou você me engana ou não está madura
Ou de onde vier Onde está você agora?
Com toda malícia e segredos
Que eu não souber No corpo deste texto, o “eu” poético, se imagina com a
Que tenha o cio das forças sua amada, sonha acordado, e analisa o antes, o durante e o depois.
E lute com todas as forças No depois, ele se sente desprezado e abandonado e
Conquiste o direito de ser conseqüentemente muito solitário.
Uma nova mulher
Livre, livre, livre para o amor No seu discurso dirigido à pessoa que ama, o sujeito lírico

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 483


poético diz que não é possessivo e que, portanto, não pretende ser Fica claro aqui, que a mulher é independente, tem consciência
dono dela. Diz que confia nesta pessoa inclusive a ponto de dividir do seu papel feminino, e do seu lugar no mundo e na sociedade em que
com ela seus desejos e até mesmo seus planos secretos. Mas, não vive. E, parece até, que neste momento, existe uma atitude de frieza,
entende porque ela não o procura e questiona o que acontecerá se ele, vingança e defesa em relação ao homem, e ao tratamento que recebeu
por se sentir tão só, se interessar por outra pessoa e for conquistado dele no passado.
por ela. A trajetória, o papel na relação amorosa, a identidade social,
O “eu” poético neste texto acredita que se deve cuidar do enfim, as mutações do código cultural se processaram muito lentamente
ser amado e sua grande dúvida é se e é enganado ou se o seu grande durante as últimas seis décadas. A lírica integrada através da
amor, ainda é imaturo, para se comportar da maneira que para ele seria referencialidade sígnica, projetada no significante poético, permite
a certa, a adequada, a ideal. mostrar o drama sociocultural da mulher brasileira através dos textos
Nesse momento, a mulher já toma posição de liderança que foram utilizados para a amostra neste trabalho.
do rumo do relacionamento amoroso. O homem já não é a figura
central da sua vida. Ela já se permite se afastar por algum tempo ou 3. Conclusão
por tempo indeterminado sem ter que justificar sua atitude. O
homem passa a ser agora o ser carente e dependente que nunca Ficam na memória do povo brasileiro, lembranças
demonstrou ser. fragmentadas, ou não, da situação da mulher representada por imagens
No final dos anos 90, a canção de título Garganta que tem que sugerem submissão, objeto de desejo dentro de uma relação
como autor Totonho Villeroy, numa belíssima interpretação da jovem amorosa, desejo de libertação e busca de identidade social, posição de
cantora Ana Carolina, transmite uma mensagem de liberdade e auto- liderança do rumo do relacionamento amoroso, e por fim a mulher
suficiência, qualidades que são pertinentes a algumas mulheres que liberada, independente, e consciente do seu lugar na relação amorosa,
vivem o momento atual. Vejamos o seu texto a seguir: na sociedade, e no mundo.
Através da música, da poesia, da arte, se pode emocionar o
Garganta ser humano e deixar gravado na memória um registro dos desejos
(Totonho Villeroy) inerentes àqueles que produzem essa arte capaz de transformar e
muitas vezes melhorar o mundo em que vivemos.
Minha garganta estranha quando não te vejo Ainda fazendo uso de palavras dos autores dos textos
Me vem um desejo doido de gritar abordados neste trabalho, gostaria de complementar minha fala, me
Minha garganta arranha a tinta e os azulejos utilizando da lírica romântica e dizendo o seguinte:
Do teu quarto, da cozinha, da sala de estar Eu posso saber lavar e cozinhar, negar um beijinho a quem
Venho madrugada perturbar teu sono anda perdido de amor, e fazê-lo até mesmo esquecer do futebol. Posso
Como um cão sem dono me ponho a ladrar ser motivo de reflexão para quem fica sonhando acordado pensando
Atravesso o travesseiro, te reviro pelo avesso no antes, no agora e no depois, e se realmente é amado. Mas sou livre
Tua cabeça enlouqueço, faço ela rodar para o amor, senhora das minhas vontades e dona de mim. Aprendi a
Sei que não sou santa, vezes vou na cara dura, me virar sozinha por força das circunstâncias, é verdade, mas nem por
Vezes ajo com candura pra te conquistar isso, pretendo dar linha a alguém para depois abandoná-lo. Ser mulher
Mas não sou beata, me criei na rua é saber conquistar e se deixar conquistar, sem que para isso, seja
E não mudo minha postura só pra te agradar necessário usar.
Vim parar nessa cidade por força da circunstância
Sou assim desde criança, me criei meio sem lar Referências bibliográficas
Aprendi a me virar sozinha
E se eu tô te dando linha BASSNETT, Susan. Comparative literature: a critical introduction.
É pra depois te abandonar Massachusetts: Blackwell, 1993.
Aprendi a me virar sozinha BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura
E se eu tô te dando linha da modernidade. São Paulo: Editora Schwarcz Ltda, 1992.
É pra depois te abandonar BITTENCOURT, Gilda Neves da Silva. Literatura comparada . Teoria
O “eu” poético neste texto é uma mulher que age às vezes e prática. Ensaios. Porto Alegre: Sagra – D.C. Luzzatto Editores,
com muita firmeza e outras com candura para conquistar o amado. 1996
Mas que não abre mão dos seus valores e nem da sua postura para CARA, Salete de Almeida. A poesia lírica. Série Princípios. São Paulo:
agradar o homem amado.É uma mulher que declara que não é santa, Editora Ática, 1995.
que se criou quase sem lar, e que por força das circunstâncias, aprendeu RAMALHO, Cristina. Literatura e feminismo: propostas teóricas e
a se virar sozinha. Acrescenta ainda, que já pode viver só e que se por reflexões críticas. Rio de Janeiro: Elo Editora, 1999
acaso der esperança a algum homem, é só para depois abandoná-lo.

484 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Ensino/aprendizagem de inglês
instrumental para informática
Décio Torres Cruz, UFBA, UNEB, Faculdade Ruy Barbosa
Marta Rosas de Oliveira, UFBA
Alba Valéria Silva, Faculdade Ruy Barbosa

ABSTRACT: Report of a research in Instrumental English for Computer Sciences which resulted in a textbook for classroom use. It describes the
steps, the objectives, the schedule, the need to write the book inglês.com.textos para informática, the result of the analysis of the material
investigated, and the theoretical fundamentals of the book.
PALAVRAS-CHAVE: inglês instrumental, ensino de línguas estrangeiras, inglês técnico para informática, metodologia de ensino de inglês.

Apresentação contexto; o leitor passa a ser visto como um sujeito ativo, um bom
usuário de estratégias e um aprendiz cognitivo. Com base nesses
Este trabalho é o resultado de um dos projetos de pesquisa pressupostos, os pesquisadores de leitura acreditam que o significado
desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa em Lingüística Aplicada do não está contido nas palavras impressas na página. O leitor constrói
Departamento de Letras Germânicas da Universidade Federal da Bahia. significados, fazendo inferências e interpretações. A informação é
O projeto teve como finalidade a escrita de material de ensino de armazenada na memória de longo-prazo em estruturas de conhecimento
estratégias de leitura em língua inglesa voltadas para a área de informática organizadas. A essência da aprendizagem constitui em ligar novas
para ser utilizado, em forma de livro didático, no terceiro grau. O projeto informações ao conhecimento prévio sobre o tópico, a estrutura ou o
originou-se da necessidade de material didático-pedagógico que gênero textual e as estratégias de aprendizagem. A construção de
contivesse textos em língua inglesa na área de informática e se adequasse significados depende, em parte, da metacognição, da habilidade do
às características de um curso de inglês instrumental no Brasil de hoje. leitor de refletir e controlar o processo de aprendizagem (planejar,
Havia uma necessidade premente, nos meios acadêmicos, de material monitorar a compreensão, e revisar os usos das estratégias e da
atualizado com instruções e explicações em língua portuguesa que compreensão); e das suas crenças sobre desempenho, esforço e
englobasse não somente o ensino instrumental da língua inglesa, com as responsabilidade.
diversas estratégias de leitura, como também o ensino de um vocabulário A leitura vem, justificadamente, readquirindo posição de
técnico da área de informática. Havia, assim, uma lacuna de material destaque no ensino de línguas: ela é fonte de diversos tipos de
específico que viesse a satisfazer as exigências dos currículos dos cursos informação sobre a língua estrangeira, o povo que a fala e sua cultura,
de Processamento de Dados, Análise de Sistemas, Ciência da além de ser o contexto ideal para a apreensão de vocabulário e sintaxe
Computação e até mesmo de Ciências da Informação, e que munisse os em contextos significativos, permitindo ao aprendiz mais tempo
profissionais dessas áreas com a habilidade de leitura de textos técnicos, para a resolução de problemas e a assimilação das novas informações
essencial para o desenvolvimento de seus estudos. Assim, os apresentadas. A leitura, portanto, é fundamental ao aperfeiçoamento
pesquisadores envolvidos com esse projeto decidiram investigar os das demais habilidades e à expansão do conhecimento.
diversos materiais existentes com a finalidade de proceder à escrita de
Assim, o número de estudos sobre a leitura e os seus múltiplos
um material que suprisse as falhas neles encontradas. Para isso, foi feito
aspectos cresceu muito nas últimas décadas, principalmente após
um estudo das diversas teorias de ensino/aprendizagem de leitura e das
os desenvolvimentos da análise do discurso. Nessa linha, destacam-
diferentes estratégias envolvidas no processo.
se os estudos centrados na aquisição e no processamento da leitura,
na teoria de esquemas e nas estratégias de leitura para o uso
Introdução / Pressupostos teóricos
instrumental da língua, estratégias estas que constituem o tema da
pesquisa a que o nosso projeto se dedicou.
Historicamente, o enfoque dado à leitura dentro do processo de
ensino-aprendizagem de língua estrangeira tem variado de acordo com a
Objetivos
corrente metodológica em voga. Até o final da década de 40, esse processo
estava centrado na leitura e tinha por base o método do ensino da
gramática e da tradução. A partir e por causa da Segunda Guerra Mundial, O projeto tinha como principal objetivo criar, com base na
desenvolveu-se o método audio-lingual baseado nas teorias behavioristas investigação de aspectos da prática do ensino-aprendizagem de leitura
em voga na época, com o propósito de ensinar línguas européias aos em inglês instrumental para a área de informática, um livro-texto que
soldados americanos que partiam para o campo de batalha. Com o contemplasse estratégias de leitura e o estudo de estruturas
desenvolvimento desse método, a leitura foi praticamente ignorada, gramaticais contextualizadas para a compreensão e interpretação de
tendo sido, inclusive, considerada prejudicial à aquisição de uma boa textos técnicos. Para tanto, tivemos que estabelecer um cronograma
pronúncia quando apresentada ao aprendiz antes que este tivesse de atividades que nos permitisse, a partir de uma série de hipóteses
adquirido fluência oral. O objetivo da leitura era o domínio de habilidades levantadas, baseadas em nossa própria experiência docente, atingir
e fatos isolados através da decodificação mecânica de palavras e da os seguintes objetivos específicos:
memorização pela repetição. O aprendiz possuía um papel passivo, de • identificar os objetivos do ensino-aprendizagem de leitura
um instrumento receptor de conhecimentos vindo de fontes externas. instrumental em idioma estrangeiro;
Com o desenvolvimento das ciências cognitivas, essa idéia foi • analisar os conteúdos programáticos do ensino instrumental
aos poucos sendo reavaliada. Os objetivos da leitura passam a ser a da língua em termos de sua adequação aos fins que se destinam;
construção de significados e o aprendizado auto-regulado. O processo • definir, a partir da pesquisa bibliográfica e da pesquisa de
de leitura é concebido como uma interação entre o leitor, o texto, e o campo, as estratégias, estruturas gramaticais, exercícios de expansão

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 485


vocabular e atividades de leitura apropriadas ao ensino-aprendizagem e segundo graus. Alguns dos alunos, por considerarem mais fácil,
de inglês instrumental dentro de uma perspectiva contextualizada; optam por espanhol no exame vestibular, e alguns nunca tiveram
• identificar as etapas da leitura e avaliar as estratégias e nenhum contato com a língua inglesa, conforme relatos feitos em
atividades pertinentes a cada uma, dentro de uma perspectiva lúdica; questionários aplicados entre os alunos envolvidos com a pesquisa.
• analisar os papéis do aluno e do professor na realização das Além disso, por ser a área de informática bastante dinâmica e pela
atividades de leitura; velocidade das mudanças tecnológicas relativas à área computacional,
alguns desses livros já estavam com informações ultrapassadas, mesmo
Justificativas da pesquisa aqueles escritos mais recentemente, uma vez que o material mais
recente data de 1996. Os materiais de inglês instrumental possuíam
O ensino-aprendizagem de inglês instrumental em cursos um caráter muito genérico e não se adequavam às nossas necessidades
técnicos e universitários tem no desenvolvimento das estratégias de específicas. Os materiais escritos especificamente para a área, com
leitura uma de suas principais metas. Embora alguns dos aspectos da instruções e explicações em português, ou continham textos com
leitura no contexto em pauta já tenham sido estudados, quatro razões informações defasadas ou ainda estavam muito próximos ao ensino
principais justificaram o nosso projeto: em primeiro lugar, ele tradicional de gramática e tradução. Alguns deles nem consideravam
representa uma aplicação eficaz das estratégias de leitura para a as diversas fases de leitura e alguns chegavam a ignorar as diversas
compreensão e interpretação de textos técnicos; em segundo, ativando estratégias.
conhecimentos prévios do aprendiz, ele constitui uma ferramenta que
o conduza à autonomia na aprendizagem; em terceiro lugar, os seus Conclusão
resultados são relevantes para as instituições de ensino que atuam em
contextos semelhantes; finalmente, tratou-se de um projeto de pesquisa- A partir da análise dos diversos materiais, concluímos que
ação, ou seja, os investigadores estavam diretamente envolvidos na deveríamos desenvolver um material que satisfizesse às seguintes
prática sob investigação. Os resultados foram incorporados ao especificações:
processo, servindo de base para novas investigações, o que tornou os • constituísse um todo orgânico, coeso e coerente, selecionado
investigadores críticos de seu próprio trabalho e co-responsáveis pela tendo em vista as diretrizes curriculares dos cursos da área de
produção de conhecimento sobre a sua prática. informática e correlatos;
• fosse feito sob medida para os alunos do terceiro grau, com
Cronograma base em suas necessidades e dificuldades específicas;
• apresentasse instruções e explicações em português;
Dividimos o projeto em cinco etapas: A primeira etapa • fosse variado, abrangente e atualizado;
constituiu de pesquisa e avaliação de fontes bibliográficas nos meses • fosse adequado aos novos parâmetros curriculares do MEC,
de janeiro e fevereiro de 2000. Na segunda etapa foram feitas a seleção com tópicos abordados de modo a fomentar o espírito crítico do
e pré-redação do material, nos meses de março e abril de 2000. Na aluno;
terceira etapa, nos meses de maio a julho de 2000, foi feita a redação • abrangesse as estratégias de leitura mais significativas;
final do material. A quarta etapa constituiu de aplicação e revisão do • trouxesse exercícios e explicações gramaticais contextualizados
material pelos professores envolvidos com a pesquisa, nos meses de e apresentados de forma lúdica;
agosto a dezembro de 2000. O material foi aplicado e testado com os • tratasse a gramática de maneira simplificada, com as regras
alunos de Ciência da Computação e de Processamento de Dados da sendo apresentadas de modo que o próprio aluno pudesse inferi-las;
Faculdade Rui Barbosa na cidade de Salvador, Bahia. A quinta etapa • fosse rico em ilustrações;
constitui de publicação do material, prevista para o final do mês de • fosse adequado a grandes e pequenos grupos de alunos;
março de 2001. • possuísse foco voltado exclusivamente para a leitura e
compreensão textual, explorando-as desde a etapa preparatória (warm-
Resultados da avaliação bibliográfica up) até o acompanhamento (follow-up);
• viesse preencher uma lacuna atualmente existente no que diz
Foram analisados diversos livros, ou de inglês instrumental, respeito a material didático atualizado, produzido especificamente
ou escritos especificamente para a área de informática, conforme para cursos universitários da área de informática e áreas correlatas.
aparecem nas referências bibliográficas. O objetivo da avaliação desse Assim surgiu o livro inglês.com.textos para informática que
material era identificar: foi utilizado, testado, e revisado pelos autores e representa o resultado
a) atualidade das informações contidas nos textos; concreto de produção de um grupo de pesquisa científica. Para o
b) diferentes etapas de leitura professor, este livro representa um material de trabalho consistente e
c) estratégias de leitura utilizadas; dinâmico e, para o aluno, um conjunto de atividades de leitura elaborado
d) etapas seguidas na apresentação de conteúdos; com base em suas necessidades específicas e apresentado, em
e) contextualização na apresentação de vocabulário e português, de forma atraente e bem-humorada.
estruturas; Conforme especificado na apresentação do livro, cujo conteúdo
f) atividades lúdicas e jogos para exercitar conhecimentos; transcrevemos parcialmente a seguir, destacamos três das premissas
g) progressão e divisão dos assuntos. que fundamentaram o nosso projeto: a primeira é a de que a leitura
h) uso da língua portuguesa nas explicações e instruções. eficiente e crítica é essencial à vida acadêmica e profissional de qualquer
A avaliação bibliográfica serviu apenas para corroborar aquilo pessoa, independente de sua área de atuação. Neste livro, isso se
que já sabíamos na prática de sala de aula: o material existente era evidencia não apenas no foco, voltado exclusivamente para a
insuficiente para as necessidades específicas de nossos alunos. Primeiro compreensão textual, mas também na abordagem dos tópicos, que
porque os materiais para a área de informática escritos em língua privilegia o desenvolvimento do espírito crítico; a segunda premissa é
inglesa pressupunham um conhecimento prévio dessa língua que a a de que a leitura bem-sucedida é um processo interativo que envolve
maioria dos nossos alunos não possuem. Todos sabemos das tanto a informação veiculada pelo texto quanto o conhecimento prévio
dificuldades e deficiências de ensino de língua estrangeira no primeiro do leitor. Sendo assim, pressupomos que alunos e professores

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contribuam com a sua própria experiência de língua e cultura para a Inglês básico para informática. São Paulo: Atlas, 1996.
interpretação e a construção de sentidos; a terceira premissa baseia-se GALANTE, Terezinha Prado e POW, Elizabeth. Inglês para
no princípio de que a utilização eficaz de qualquer estratégia de leitura processamento de dados. São Paulo: Atlas, 1996.
depende da definição de um objetivo para a leitura e da monitoração da GLENDINNING, Erich e McEWAN, John. English in Computing.
compreensão tendo em vista esse objetivo. Por isso, a leitura é London: Nelson, 1987.
explorada, desde a etapa preparatória até o acompanhamento final, GREENBAUM, Sidney e QUIRK, Randolph. A Student’s Grammar
através de uma série de atividades lúdico-cognitivas e de ilustrações of the English Language. Essex: Longman, 1990.
que buscam a participação motivada de seus usuários. GRELLET, Françoise. Developing Reading Skills: A Practical Guide
O resultado do projeto – inglês.com.textos para informática to Reading Comprehensive Exercises. Cambridge: Cambridge
– é um conjunto orgânico, coeso e coerente de textos e atividades University Press, 1994.
voltados para o ensino de inglês na área de informática em qualquer de HILLMAN, Linda H. Reading at the University. Boston: Heinle &
suas modalidades: processamento de dados, ciência da computação Heinle, 1990.
ou análise de sistemas. Ele contém 24 unidades, planejadas para cursos KNUTH, R. A. & JONES, B. F. “What Does Research Say About
entre 60-72 horas/aula, cujo conteúdo obedece a um grau de dificuldade Reading?” Internet: http://www.ncrel.org/sdrs/areas/stw_esys/
crescente. Os textos são variados, abrangentes e atualizados, envolvendo str_read.htm.
desde a história das máquinas até questões mais recentes, como a LAVINE, Roberta Z. e FECHTER, Sharon A. On Line: English for
inteligência artificial. Seu objetivo é a construção e consolidação de Computer Science. New York: McGraw-Hill, 1986.
conhecimentos não só de língua inglesa, mas também de informática, LAY, Nancy Duke S. Developing Reading Skills for Science and
através do desenvolvimento conjunto de estratégias de leitura, atividades Technology. New York: Collier Macmillan, 1988.
de compreensão textual, expansão de vocabulário e revisão de tópicos MAGALHÃES, M. C. C. & ROJO, R. H. R. “Classroom interaction
relevantes de gramática contextualizada, de uma maneira leve, ágil e and strategic reading development.” Reflections on Language
eficaz. Dessa forma, esperamos estar dando a nossa contribuição para Learning. Ed. BARBARA, Leila & Mike Scott. Clevedon:
o campo de ensino/aprendizagem de inglês instrumental para a área de Multilingual Matters Ltd., 1994. pp. 75-88.
informática. MOSBACK, Gerald e MOSBACK, Vivienne. Practical Faster
Reading: A Course in Reading and Vocabulary for Upper-
Referências bibliográficas Intermediate and More Advanced Students. Cambridge:
Cambridge University Press, 1977.
AHMAD, K. et al. Computers, Language Learning and Language MULLEN, Norma D. e BROWN, P. Charles. English for Computer
Teaching. Cambridge: Cambridge University Press, 1985. Science. Oxford: Oxford University Press, 1985.
ALLSOP, Jake. Cassell’s Students’ English Grammar. East Sussex: MURPHY, Raymond. English Grammar in Use: A Self-Study
Cassell Pubs., 1987. Reference and Practice Book for Intermediate Students.
ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática metódica da língua Cambridge: Cambridge University Press, 1991.
portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1991. OLIVEIRA, Sara. Reading Strategies for Computing. Brasília: Editora
BAUDOIN, E. Margaret, CLARKE, Mark A., SILBERSTEIN, Universidade de Brasília, 1999.
Sandra, DOBSON, Barbara K. e BOBER, Ellen S. Reader’s OMMAGIO-HADLEY, Alice. Teaching Language in Context.
Choice: A Reading Skills Textbook for Students of English as a Boston: Heinle & Heinle Pubs., 1993.
Second Language. Michigan: University of Michigan Press, PINTO, Dilce et al. Compreensão inteligente de textos, Vol. 1. Rio de
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Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 487


Da natureza dos padrões recorrentes
nos erros de ordenação serial
Elizabeth Reis Teixeira
Universidade Federal da Bahia - UFBA

PALAVRAS-CHAVE: Aquisição, Fonologia, Erros de Ordenação Serial


ABSTRACT: Serial ordering errors which occur in adult speech reveal the segment as being an independent unit in speech control. . In this study,
child data as well as adult data found in BP will be examined in the light of Schattuck-Hufnagel & Klatt’s findings (1979) based on MIT and UCLA
and of the Frame/Content Theory ( MacNeilage & Davis,1990a e 1990)
PALAVRAS-CHAVE: Erros de ordenação serial; Aquisição Fonológica, Fonologia do Português.

Introdução assistematicamente coletados de adultos falantes de PB ( Português


Brasileiro), exibem características semelhantes aos dados infantis ana-
Erros de ordenação serial são definidos como as partes do lisados.
enunciado que não correspondem ao que o falante pretende dizer. A
evidência de que o elemento se porta como um erro manifesta-se Resultados
através da necessidade imediata de auto-correção por parte do indi-
víduo falante. Em todos os exemplos infantis citados, bem como em quase
No que diz respeito à estruturação fonético-fonológica, eles todos os exemplos não infantis no PB, todas as trocas envolveram
indicam que o segmento é uma unidade independente no controle segmentos consonantais. Houve apenas uma ocorrência adulta
da fala, que se revela através das limitações impostas pela estrutura com troca entre vogais, comprovando a tendência já observada na
da sílaba, através da qual consoantes e vogais ocupam posições es- literatura em relação à predominância das trocas consonantais.
pecíficas nos movimentos de troca. MACNEILAGE & DAVIS (Shatttuck-Hufnagel & Klatt, 1979) :
(1990).De acordo com a proposta teórica Molde/Conteudo, destes
Ex.1: POLENGUINHO [pole 0giu]  [pelo0giu]
autores, o desenvolvimento da fala resulta da diferenciação dos
moldes através de modificações no conteúdo das diferentes posi-
Trocas
ções. Estes erros são relativamente raros nas crianças talvez por-
que a organização segmental adulta ainda não tenha sido adquirida 1) Não foi possível fazer previsões em termos dos segmentos
como um todo. permutados, e também não existe tendência à palatalização:
Segundo Shatttuck-Hufnagel1 & Klatt (1979), que analisaram líquida coronal com líquida coronal, fricativa labial com fricativa
os bancos de dados adultos do MIT e da UCLA: coronal, rótico velar com fricativa coronal, oclusiva labial com fricativa
1) Os dados contidos nos dois bancos de dados analisados coronal, tap coronal com oclusiva labial, oclusiva velar com fricativa
indicam um mecanismo de palatalização favorecendo os erros de labial, dentre outros. (Vide dados em anexo, e Teixeira 2000)
fala; 2) Em PB, parece haver uma tendência relativa para as trocas ocorre-
2) A posição ótima para a ocorrência dos erros é a C inicial da rem com segmentos que possuem o mesmo valor do traço de sono-
palavra; ridade, sendo esta a única semelhança fonética atestada: 73%
3) Os erros são mais prováveis quando os itens envolvidos dos elementos permutados eram surdos.
partilham certas propriedades (i.e. quando as duas consoantes são 3) Apenas 32% das trocas ocorreram envolvendo a C inicial da
foneticamente semelhantes); palavra, contradizendo os achados de Shatttuck-Hufnagel & Klatt
4) Os erros são mais prováveis quando os itens envolvidos (1979).
têm alta taxa de ocorrência na língua ambiente. 4) Como não é possível prever os segmentos mais afetados pelas
trocas, conforme relatado em 1), estas envolvem os mais variados
Dados sobre erros infantis de ordenação serial são, (quando tipos de segmentos, alguns com alta taxa de ocorrência na língua
confiavelmente eliciados e descritos) extremamente valiosos, i.e., in- ambiente (como /, p , t , m/) e outros com baixa freqüência (como
dicam que pode existir, desde cedo, uma certa independência / f , z , v,  /).
representacional do conteúdo fonético do enunciado em relação ao
5) Embora 8 dos casos envolvam a permuta de elementos da sílaba
controle dos moldes. Algumas crianças, mais do que outras, exibem
Tônica com da Pre-Tônica (55%) ou da sílaba Tônica com da Pós-
padrões migracionais bastante semelhantes aos erros de ordena-
Tônica (18%), e apenas 18% de trocas entre elementos em posições
ção serial adultos.
Pré-tônicas e 9% em posições Pós-Tônicas contíguas, a tonicidade
Os erros infantis analisados no presente trabalho foram
coletados de um criança falante de PB (Laura) durante um período não parece ser uma variável relevante, como atestam as formas
básico de 5 anos em forma de estudo de diário parental. Erros deste BEZERRO e BEZERRINHO, que, apesar da extensão lexical dis-
mesmo sujeito, coletados após o período de aquisição e sedimen- tinta e padrões migracionais distintos (Tônica  Pós-Tônica e
tação de sua fonologia, mostram a remanescência de uma “ten- Pré-Tônica 2  Tônica), têm os mesmos segmentos consonantais
dência aquisicional bastante individual e idiossincrática”, ma- permutados. Ressalve-se, contudo, que não foram encontradas tro-
nifesta através da dificuldade em relação à colocação dos segmen- cas entre Pré-tônicas e Pós-Tônicas.
tos nas distintas posições dentro da estrutura ou molde silábico- Ex. 2: BEZERRO (3;7) [bi0 zeq q u] = [bi0 q Vezu],
lexical em palavras multissilábicas. Erros semelhantes, BEZERRINHO (3;7) [bize0q qiu] = [bi qe0ziu]

488 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Conclusões (fricativa dento-alveolar sonora  (rótico não tap =fricativa velar
sonora) (paroxítona; PreT2 = T)
Embora os dados sobre erros de ordenação serial em PB cor- • CAPACETE (3;7) [kapa0seti] = [kasa0peti] CV. CV.0CVCV
roborem os achados Shatttuck-Hufnagel & Klatt (1979) no que diz (oclusiva bilabial surda  fricativa dento-alveolar surda) (paroxítona;
respeito à predominância de trocas consonantais, diferentemente do PreT2 = T)
que foi observado por estes autores, nos dados coletados em PB, quer • ÁRABE 4;01 [0aabi] = [0abai]  V . CV. CV (tap dento-alveolar
adultos ou infantis: sonoro  oclusiva bilabial sonora) (proparoxítona, PosT 1 = PosT2)
• não existe, sistematicamente, um mecanismo de • GAVETA 4;01 [ga0vet] = [va0get] CV.0 CV.CV (oclusiva velar
palatalização favorecendo os erros de fala; sonora  friativa labio-dental sonora) (paroxítona, PreT1 = T)
• a posição ótima para a ocorrência dos erros é a C inicial da • JARRA 4;01 [0Ћax] = [0xaЋ] CV. CV (rótico não tap {fricativa
sílaba e não necessariamente C inicial da palavra; velar surda}  fricativa pós-alveolar sonora) (paroxítona: T = PosT)
• não se sustenta a afirmação de que os erros são mais prová- forma dissilábica
veis quando os itens envolvidos são foneticamente semelhantes. • CHOCOLATE 4;01 [oko0lati] = [koo0lati] CV.CV 0CV.CV
Existe, contudo, uma preferência pela troca de consoantes surdas; fricativa pós-alveolar surda  oclusiva velar surda) (paroxítona;
• não se pode concluir que a freqüência de ocorrência dos sons PreT1 = PreT2)
na língua ambiente exerça influência sobre as trocas: alguns dos seg- • BACALHAU 4;01 [baka0aw] = [kaba0aw]  CV.CV. .0 CV
mentos trocados têm alta taxa de ocorrência na língua ambiente (oclusiva bilabial sonora  oclusiva velar surda) (oxítona; PreT1 =
(como  , p , t , m/) enquanto outros têm baixa freqüência (como / f, PreT2)
z , v, Ћ /). (Vide Teixeira & Davis, 2001) • REVÓLVER 4;01 [xe0vwvx] = [ve0xvx] CV. .0 CV(S). CVC
(rótico não tap {fricativa velar surda}  fricativa labio-dental sono-
Referências bibliográficas ra) (paroxítona, PreT1 = T)
• PROCURANDO [pku0 ndu] = [kpu0 ndu] CCV.CV.0
MACNEILAGE, P & Davies, B.. (1990) Acquisition of speech CVN. CV (paroxítona, PreT1 = PreT2)(Rodrigo, 3;1)
production: The achievement of segmental independence.In
Sujeito em período pós-aquisicional
W. Hardcastle & A. Marshal (orgs.). Speech Production and
Speech Modeling 55-68.
• EMBARALHAR (10,10) [i m baa0  a] = [i m baa0 a]
SHATTTUCK-HUFNAGEL, S. & Klatt, D. (1979) The limited use
VN..CV.CV0CV (tap dento-alveolar sonoro  lateral palatal sono-
of distinctive features and markedness in speech production:
ra) (oxítona: PreT3= T)
evidence from speech error data. Journal of Verbal Learning and
• REPETIR (12 anos) [xepi 0ti] = [xeti 0pi]  CV.CV..” CV (oclusiva
Verbal Behavior, 18, 41-55.
bilabial surda  africada dento-alveolar com saída pós-alveolar
TEIXEIRA, E.R. & Davis, B. (2001) Early Sound Patterns in the surda) (oxítona; PreT2 = T)
Speech of Two Brazilian Portuguese Speakers, Language and • EXIGENTE 13 anos [ezi0enti] = [ei0zenti]  V. CV. .0 CVN..CV
Speech, (no prelo) (fric. pos-palatal sonora  fric. dent-alveolar sonora) (paroxítona,
PreT 2 = T)
Anexo • CAROLA 13; 02 [ka0l] = [ka0l] (CV. .0 CV.CV) (late-
ral dento-alveolar sonora  tap dento-alveolar sonoro) (paroxítona,
Exemplos infantis PreT 1 = T)
• COLORIDO ( 2;06) [kolo0idu] = [koo0lidu] CV.CV.0CV.CV (late- • CAMARÃO (13;04) [kama0w]  [kaa0mw] CV.CV.CVSN
ral dento-alveolar sonora  tap dento-alveolar sonoro) ((paroxítona; (tap dento-alveolar sonoro à nasal labial sonora)(oxítona: PreT2= T)
PreT2 = T)
• PROFESSORA (3;4) [pofe0so] = [prese0fo] CCV.CV.0CV.CV Dados de adultos falantes de PB
(fricativa labiodental surdaà fricativa dento-alveolar surda)(paroxítona;
PreT2 = T) • REMANEJAR [xemne”a]=[xeme”na]  CV.CV.CV.0 CV
• BEZERRO (3;7) [bi0zeq qu] = [bi0q qezu] CV,0 CV.CV (fricativa (nasal dento-alveolar  fric. pos-palatal ) (oxítona; PreT3 = T)
dento-alveolar sonora  (rótico não tap =fricativa velar sonora) • POLENGUINHO [pole֊ “giu] à [pelo “giu] CV.CVN 0 CV.CV
(paroxítona; T = PosT) (vogal média alta posterior  vogal média alta anterior) (paroxítona,
• BEZERRINHO (3;7) [bize0q qiu] = [bi qe0ziu] CV.CV.CV.CV PreT 1 = PreT 2)

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 489


Desenvolvimento das habilidades fonológicas: da
sensibilidade fonológica à consciência fonológica1
Wilson Júnior de Araújo Carvalho – Universidade de Fortaleza
(UNIFOR) / Doutorando do Programa da Pós-Graduação em Letras e
Lingüística da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

ABSTRACT: Some considerations will be about phonological abilities and their relations to the learning of alphabetical systems, and about the
relevance of determining the developmental course of the acquisition of phonological abilities. The objectives and some methodological procedures
used in this research will also be presented.
PALAVRAS-CHAVE: sensibilidade fonológica, consciência fonológica.

Introdução Além da habilidade de categorizar rimas, outras habilidades


típicas desse nível de consciência (o da pré-consciência ou sensibili-
O desenvolvimento das habilidades fonológicas ocorre nor- dade fonológica) são: a habilidade de efetuar auto-correção, fazer
malmente ao longo dos primeiros anos da infância. Tais habilidades julgamentos de igual e diferente e a percepção da aliteração.
constituem, inicialmente, conhecimentos procedimentais, que ainda
não permitem a criança refletir sobre a sua fala de forma intencional. O nível da consciência fonológica
Nesse momento inicial, segundo Poersch (1998: 10), o mais correto
seria falar de uma sensibilidade fonológica, que seria um “dar-se A noção de causalidade recíproca entre a consciência
conta de que algo existe, sem que isso oportunize considerações mais fonológica (e.g., a consciência segmental) e o letramento alfabético
reflexivas que levem a explicar o como e o porquê”. é a posição mais aceita atualmente. Entretanto, há estudos que colo-
A habilidade de categorizar rimas, por exemplo, seria um tipo cam a consciência fonológica como pré-requisito para a aprendiza-
de sensibilidade fonológica, pois a atenção é mais dirigida à simila- gem da leitura e escrita, como também, estudos que afirmam ser a
ridade global, ou seja, não envolve a atenção a segmentos, nem ne- consciência fonológica uma conseqüência da aprendizagem da leitu-
cessariamente envolve a identificação precisa dos segmentos forma- ra e escrita.
dos pelas palavras que rimam (Cardoso-Martins, 1994). Entretanto, Embora alguns autores (Lundberg, 1991) sugiram ser a cons-
progressivamente, desenvolvem-se processos atencionais que leva- ciência segmental precursora da aquisição da leitura e poder ser ob-
rão à emergência da consciência fonológica. Esta, por sua vez, situ- servada entre não-leitores, entre os pesquisadores desta área predo-
ada no nível mais alto do processo de conscientização2 , possibilita mina a idéia de que a consciência segmental normalmente emerge
tratar a linguagem como objeto de reflexão e de manipulação. somente em indivíduos que aprenderam a ler alfabeticamente. Isto
As habilidades fonológicas, portanto, representam diferentes sugere que o desenvolvimento da consciência segmental é uma res-
níveis de domínio da estrutura fonológica da língua: um nível pré- posta às demandas impostas na aprendizagem da correspondência
consciente, o da sensibilidade fonológica, e um nível consciente, o escrita-fala, e não, um produto natural da maturação cognitiva.
da consciência fonológica. Esses dois níveis de habilidades Outros estudos (Content et al., 1986) indicam quer apesar da
fonológicas estariam, de diferentes modos, relacionados à aprendi- existência de uma influência direta e específica da instrução em lei-
zagem dos sistemas alfabéticos. tura alfabética sobre o desenvolvimento da consciência segmental,
não se pode dizer que a alfabetização é um pré-requisito para o de-
O nível da sensibilidade fonológica senvolvimento das habilidades metafonológicas. A influência da ins-
trução em leitura ocorreria porque algumas das atividades que nor-
O ponto de discordância entre os diversos autores diz respeito malmente estão incluídas na instrução em leitura podem, por elas
à possibilidade ou não de a habilidade para detectar rima vir a favo- mesmas (isoladas do restante do curriculum), promover a consciên-
recer as habilidades de leitura e escrita, pois todos parecem concor- cia segmental. A questão é que estas atividades não estão, comumente,
dar que a sensitividade à rima tem um desenvolvimento natural e disponíveis fora da instrução escolar. O estudo de Content et al. fo-
anterior à alfabetização formal (letramento alfabético). Tal concep- calizou a capacidade de crianças de 4- e 5- anos de idade de realiza-
ção encontra sustentação no sucesso de pré-escolares e adultos rem tarefas de apagamento das consoantes inicial e final, indepen-
iletrados em tarefas de categorização de rimas. dentemente de terem alguma experiência com material alfabético.
Para Cardoso-Martins (1994), não se pode dizer que a Os autores observaram que durante a aplicação dos experimentos a
sensitividade à rima não tenha um papel na aquisição de uma orto- adoção de um feedback corretivo após a resposta dada pela criança
grafia alfabética. Para a autora a sensitividade a sons em palavras faz crescer rapidamente as habilidades de segmentação. Esta desco-
pode, de fato, ser uma pré-condição para a aprendizagem de uma berta vêm reforçar a concepção de que a alfabetização não pode ser
ortografia que representa sons. Segundo Cardoso-Martins, o fato de vista como pré-requisito para o desenvolvimento da consciência
ser bem desenvolvida a habilidade para detectar a rima ao final dos segmental.
anos pré-escolares não pode ser casual.
Outros autores, contudo, não encontraram esta conexão
(Stanovich et al., 1984). Em seu estudo, estes autores administraram
dez tarefas fonológicas diferentes a crianças do jardim de infância. O 1 Este trabalho refere-se à tese de doutoramento do autor, em desenvolvi-
objetivo era observar as correlações entre tais tarefas e o progresso mento no Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da Univer-
em leitura um ano mais tarde. Stanovich et al. Constataram que três sidade Federal da Bahia (UFBA), sob orientação da Profa. Dra. Elizabeth
tarefas que envolviam o reconhecimento de rima não funcionaram Reis Teixeira.
como preditoras da habilidade de leitura na 1a série. 2 Sobre os níveis do processo de conscientização cf. Poersch (1998).

490 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


O percurso desenvolvimental das habilidades fonológicas Para a verificação das habilidades fonológicas basear-nos-
emos nos testes propostos por Cardoso-Martins (1991, 1994). Tais
A maioria dos trabalhos acerca das habilidades fonológicas
testes serão aplicados em dois momentos do ano escolar: no início
não tem distinguido os diferentes níveis de consciência envolvidos
do ano e próximo ao final do ano letivo da respectiva série pré-
nas habilidades fonológicas, o que tem gerado conclusões equivoca-
escolar/escolar.
das quanto ao desenvolvimento dessas habilidades. Além disso, os
Os dois tipos de testes serão utilizados para analisarmos tan-
estudos até agora realizados, tratam de um ou outro nível de consci-
to a sensibilidade fonológica quanto a consciência fonológica. A
ência das habilidades fonológicas, em determinado momento do tem-
diferença é que quando estivermos analisando a sensibilidade
po, sem dar conta do continuum desenvolvimental dessas habilida-
fonológica, exigiremos da criança apenas o reconhecimento das
des. Isso, certamente, constitui lacuna a ser preenchida nos estudos
semelhanças entre as unidades fonológicas (rima, sílaba ou fonema)
psicolingüísticos desenvolvidos no Brasil.
das palavras envolvidas em cada item. Quando analisarmos a cons-
Desse modo, como forma de contribuirmos para a compreen-
ciência fonológica, exigiremos a declaração explícita da criança
são sobre como e quando se dá o desenvolvimento dos níveis de
acerca das unidades fonológicas que se assemelham. Nesse segun-
reflexão sobre a fala, a nossa pesquisa tem como objetivo central
do caso, não bastará o reconhecimento, pois será necessária a
investigar o percurso desenvolvimental das habilidades fonológicas.
explicitação de qual unidade fonológica se assemelha a uma outra
Com isso, pretendemos:
na estrutura silábica e lexical.
• Estabelecer o momento em que se dá a transição entre a sen-
sibilidade fonológica e a consciência fonológica.
Considerações finais
• Verificar quais as unidades fonológicas (rima, sílaba e fonema)
que mais precocemente/tardiamente ficam ao alcance da atenção pré- Dada a importância que os estudos das habilidades fonológicas
consciente (sensibilidade fonológica). têm adquirido para a compreensão, pelo menos parcial, do processo
• Verificar quais as unidades fonológicas (rima, sílaba e fonema) de aprendizagem da leitura e da escrita, acreditamos que nosso estu-
que mais precocemente/tardiamente ficam ao alcance da atenção cons- do pode ser útil àqueles que lidam com pré-escolares e escolares das
ciente (consciência fonológica). séries iniciais quando lhes for necessário trabalhar a estrutura
• Subsidiar a clínica fonoaudiológica3 com informações acer- fonológica da língua, como forma de auxiliar no domínio do sistema
ca das características desenvolvimentais das habilidades fonológicas. alfabético do português.
Além do que dissemos acima, nosso estudo pode trazer con-
População e amostragem tribuições à clínica fonoaudiológica, campo de atuação que tem uti-
lizado testes para a determinação das habilidades fonológicas para
Os sujeitos de nosso estudo serão alunos de uma escola-mo-
fins de avaliação e ou terapia dos chamados distúrbios de leitura e
delo que atende a crianças de uma favela de Fortaleza. As crianças
escrita (D.L.E.) ou dos distúrbios de processamento auditivo cen-
serão acompanhadas do jardim à 1a série do 1o grau.
tral (DPAC). Por esse motivo, a determinação dos ritmos e padrões
Para a composição da amostra definitiva levaremos em conta
de desenvolvimento das habilidades fonológicas pode contribuir para
os seguintes critérios:
a construção de parâmetros de normalidade/anormalidade que auxi-
Os alunos devem:
liem as atividades clínicas do fonoaudiólogo que atua nas áreas de
a) possuir autorização dos pais ou responsáveis para participar
audiologia e linguagem.
da pesquisa.
b) estar cursando a sua respectiva série pré-escolar/escolar pela
Referências bibliográficas
primeira vez, para garantir uma certa homogeneidade em termos das
habilidades exigidas na respectiva série pré-escolar/escolar e a pos-
CARDOSO-MARTINS, Cláudia. A sensibilidade fonológica e a
sibilidade de acompanhar o desenvolvimento das habilidades
aprendizagem inicial da leitura e da escrita. Cadernos de Pes-
fonológicas, sendo que o não-emparelhamento, conforme esse crité-
quisa. v.76, p.41-49, fevereiro 1991.
rio, poderia constituir uma variável interveniente.
_____________. Rhyme Perception: Global or Analytical? Journal
c) estar sob a mesma metodologia de alfabetização, pois
of Experimental Child Psychology. 57, p.26-41, 1994.
metodologias diferentes poderiam constituir uma variável
GOES, G. & MARTLEW, M. Young children’s approach to literacy.
interveniente.
In: MARTLEW. M. (org.). The psychology of written language.
d) ter sido submetidos a uma anamnese, com o intuito de co-
Chichester: John Wiley & Sons, 1983.
nhecermos os dados pessoais e familiares das crianças e de seus pos-
LUNDBERG, I. Phonemic awareness can be developed without
síveis antecedentes patológicos, assim como os dados referentes à
reading instruction. In: BRADY, S. A. & SHANKWEILER, D.
gravidez, ao parto e ao desenvolvimento das crianças.
P. (eds.). Phonological process literacy. Hillsdale, NJ: Lawrence
e) ter sido avaliados quanto ao nível de inteligência (Teste de
Erlbaum Associates, 1991.
Matrizes Progressivas de Raven), de desenvolvimento fonológico e
POERSCH, José Marcelino. Uma questão terminológica: consciên-
de acuidade auditiva.
cia, metalinguagem, metacognição. Letras de Hoje. v.33, n.4,
p.7-12, dezembro 1998.
Instrumentos para coleta de dados
STANOVICH, K. E.; CUNNINGHAM, A. E. & CRAMER, B. B.
Para sabermos se as crianças lêem convencionalmente ou não, Assessing phonological awareness in kindergarten children:
utilizaremos respectivamente o Esquema de Classificação para a issues of task comparability. Journal of Experimental Child
Leitura de Livros de História Favoritos, proposto por Sulzby & Psychology. 38, p.175-190, 1984.
Barnhart (1992). SULZBY, E. & BARNHART, J. The development of academic
Para sabermos o nível de escrita emergente, por sua vez, utili- competence: all our children everge as writers and readers. In:
zaremos os níveis de desenvolvimento da escrita propostos por Góes IRWIN, J. W. & DOYLE, M. A. (orgs.). Reading/writing
e Martlew (1983), em que os autores investigam o comportamento connections: learning from research. Newark, IRA, 1992.
da criança na escrita, antes da alfabetização, em três tipos diferentes
de atividades: a) ditado; b) cópia de palavra lida; c) escritura, de
memória, da palavra copiada. 3 Fonoaudiologia é a área de formação básica do autor.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 491


A redução dos ditongos durante a aquisição
das semivogais no português brasileiro
Andréa Sena dos Santos
Universidade Federal da Bahia

ABSTRACT: This work shows the preliminaries results of a research made with 32 children, with ages between 2;1 to 7;0, whose parents had the complete
universitary education, about the diphtongs’ acquisition in Brazilian Portuguese.
PALAVRAS-CHAVE: Aquisição, Fonologia, Semivogais.

1. O Problema 3. Metodologia

As semivogais são, até hoje, uma fonte de discussão entre vá- A coleta de dados para este trabalho foi efetuada através da
rios autores que se dedicam ao estudo destes segmentos na Língua metodologia transversal de coleta de dados, isto é, foram coletados
Portuguesa, havendo discordância desde a nomenclatura a ser utili- dados por meio de um contato rápido e dentro de uma situação con-
zada para estes segmentos, até a sua posição na estrutura silábica, trolada, e, para que esta metodologia pudesse ser aplicada com su-
isto é, se elas são vogais, consoantes ou se formam um grupo a parte. cesso, foi elaborado um exame fonético-fonológico especialmente
Neste trabalho será adotado o termo clássico semivogais para para a classe das semivogais, exame este que tem como objetivo fa-
se referir a tais segmentos, que serão definidos e classificados segun- zer uma avaliação do tipo “screening” (INGRAM,1976) da maturação
do TEIXEIRA (1988a), ou seja, semivogais são sons produzidos com fonológica da criança, verificando sua capacidade de produzir sons
movimentos rápidos de língua e com um canal oral quase desimpedi- de sua língua distintivamente.
do, semelhante ao da vogal, sendo que a natureza rápida e transitória Inicialmente se pensou em escolher apenas palavras substanti-
desses sons, em associação com a força expiratória presente durante vas, mas isso não foi possível devido ao fato de que alguns ditongos
a sua produção, caracterizam esses segmentos como consonantais. só se mostraram produtivos no vocabulário infantil quando faziam
Para resolver este problema Teixeira abandona o binarismo na classi- parte da classe verbal. Assim, dentre as 53 palavras do teste, 47 delas
ficação dos segmentos fônicos e propõe um modelo ternário no qual são substantivos, 04 são verbos, 01 é um advérbio de lugar e 01 é
as semivogais são classificadas como elementos de transição entre uma onomatopéia, o que causou a necessidade de serem feitas pe-
vogais e consoantes, sendo que, no português, estes segmentos são quenas adaptações para a eliciação destes vocábulos.
mais de natureza vocálica que consonantal. Para a seleção das palavras que constam no teste foram leva-
Este estudo terá como base teórica a noção de Processos dos em consideração os seguintes fatores:
Fonológicos, inicialmente desenvolvida por STAMPE (1973) com a • tipo de técnica de eliciação a ser utilizadas, no caso, a nome-
Teoria da Fonologia Natural, e posteriormente revisada e aprimorada ação de figuras através da eliciação espontânea em condições con-
por INGRAM (1976/1989), GRUNWELL (1982/1987) e TEIXEIRA troladas;
(1985/1988b). A escolha dessa linha teórica de estudos sobre a aqui- • faixa etária das crianças a partir de 2;1 anos, para evitar um
sição fonológica é justificada por sua proposta de uma investigação número elevado de formas com repetição;
sistemática da aquisição a partir de processos fonológicos, grupo no • boa representação pictórica das palavras, para facilitar a
qual se encontram inseridos o processo de Simplificação de Diton- estimulação visual;
gos e as estratégias utilizadas na implementação deste processo. • representatividade dos contextos fonológicos;
Há diversos tipos de processos fonológicos que atuam no perí- • extensão e acentuação lexical, sendo evitadas palavras
odo de aquisição da linguagem pela criança, tornando a fala infantil, proparoxítonas e polissílabas;
fonologicamente, mais simples que a adulta. O processo de Simplifi- • tempo de testagem, que, para ser otimizado, determinou a
cação de Ditongos é aquele no qual o encontro vocálico deixa de escolha de palavras que continham, de preferência, mais de uma va-
existir devido a estratégias utilizadas pelas crianças, como a Elisão riável a ser estudada, evitando, assim, o cansaço e o desinteresse por
ou queda da semivogal, a Silabificação ou separação dos elementos parte das crianças.
do ditongos em sílabas diferentes, a Migração, que é a permuta da Foram entrevistadas 27 crianças de 2;1 a 7;0 anos, mas apenas
semivogal para outra sílaba e a Reduplicação do ditongo em outra os dados de 16 compõem o corpus deste trabalho, sendo que estas
sílaba. crianças pertenciam à classe sócio-escolar A, que é aquela cujos
pais (ou pelo menos um deles) possuem o 3º grau completo. Foram
2. Objetivos da Pesquisa utilizados, no teste, 41 estímulos visuais para a eliciação de 53 pala-
vras e 54 variáveis.
Pretende-se verificar nesta pesquisa: A distribuição das 53 palavras que compõem o teste, quanto
a) se há diferenças entre a aquisição de ditongos crescentes e ao contexto fonológico e ao tipo de ditongo, é a seguinte:
decrescentes;
b) que estratégias são mais e menos recorrentes durante a aqui-
sição dos ditongos;
c) em que faixa etária o processo é descartado pelos falantes; e
d) contribuir para o estabelecimento de padrões maturacionais.

492 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Os enunciados que tinham, em sua estrutura, ditongos decres-
centes que são monotongados na fala adulta, foram monotongados
pelas crianças. As palavras areia e meia, e também a palavra geléia,
que fazem parte do contexto de ditongos crescentes ambissilábicos,
também foram afetadas pelo processo de monotongação do ditongo /
ej/. A monotongação ocorreu em 88% dos enunciados que eram sus-
cetíveis a esse processo, o que significa que, salvo por influência da
escola, as crianças não adquirem esses ditongos, pois elas não os
4. Resultados escutam em seu ambiente lingüístico, devido ao fato de esse processo
já estar estabelecido no português brasileiro.
Foi feita uma seleção dos dados que seriam analisados nesta Os enunciados que tinham ditongos decrescentes fonéticos em
pesquisa, encontrando-se, de 864 enunciados esperados, um total de sua estrutura sofreram em percentual de 9% de ocorrência de estraté-
833 enunciados produzidos, após se retirar as não-realizações dos gias de simplificação. Quando pronunciadas, essas consoantes fo-
sujeitos. Em seguida foram excluídos os enunciados produzidos igual ram, excetuando-se a produção da palavra calça, realizada pelo sujei-
ao modelo-alvo e os enunciados que foram afetados por outros pro- to S29 como [ “kaýsŒ ], semivocalizadas. Esse achado é corrobora-
cessos que não o de Simplificação de Ditongos, restando, assim, 167 do pelo trabalho de LAMPRECHT (1990), no qual ela afirma que a
enunciados válidos para o teste e 175 ocorrências de uso de estratégi- consoante lateral é sempre semivocalizada, tanto na posição absoluta
as implementacionais de simplificação. como na posição interna da palavra.
A quantidade de ocorrências de enunciados dos ditongos cres- Os ditongos crescentes presentes na sílaba átona final tiveram
centes e decrescentes está exposta na tabela abaixo: a elisão da semivogal como a estratégia mais atuante. A coalescência
intrassilábica foi a segunda estratégia mais utilizada, tendo todas as
ocorrências acontecido na palavra sandália, na qual a semivogal, an-
tes de sofrer elisão, palatalizou a consoante lateral que a precedia.
Apenas 14% dos enunciados produzidos no contexto de
ambissilabicidade foram afetados pelo processo de simplificação de
ditongos, sendo que 98% desses enunciados foram afetados pela elisão
parcial. O fato interessante ocorrido com esses ditongos é que, para
efeito de análise neste trabalho, estavam sendo considerados apenas
os ditongos crescentes contidos nessas palavras, mas a ocorrência de
68% das elisões nas palavras que tinham o ditongo decrescente [ej]
aponta para o fato de que esse ditongos são, fonologicamente, de-
crescentes, pois eles se comportam do mesmo modo que os ditongos
decrescentes, quando em contexto de monotongação. DOURADO et
al. (1991), em seu trabalho, apesar de admitir a geminação da
semivogal neste contexto de oralidade, considera este tipo de diton-
gos como Decrescentes.
Segundo TEIXEIRA (1991) a semivogal velar, por volta dos
2;6 anos já está adquirida nos ditongos crescentes, enquanto a
semivogal palatal só vai ser adquirida nesta posição por volta dos 3;0
anos de idade. Ela ainda afirma que a aquisição das semivogais não
Ao se analisar as tabelas 03 e 04, chega-se à conclusão que, ultrapassa a idade média de 3;6 anos.
dos enunciados produzidos com ditongos crescentes e decrescentes Será adotado o patamar de 75% de produção de enunciados
em sua estrutura, 79% não foram afetados pelo processo e apenas sem interferência do processo de simplificação de ditongos, para que
21% foram afetados pelo processo de simplificação de ditongos. Isto se possa considerar o processo descartado, o mesmo adotado por
significa que, no geral, estes ditongos são produzidos sem grandes TEIXEIRA (1991). A seguir estão os percentuais de segmentos afe-
problemas pelas crianças aprendizes da classe sócio-escolar A. tados em cada grupo etário, nas classes A, isto é, para o ditongo ser
A elisão parcial foi a estratégia implementacional mais recor- considerado adquirido, cada grupo deve ter, no máximo, 25% de enun-
rente no processo de simplificação de ditongos, com 87% de ocor- ciados afetados.
rências nos ditongos crescentes e 96% de ocorrências nos ditongos
decrescentes.
Dos enunciados produzidos e que tinham ditongos crescentes
nasais em sua estrutura, 31% foram afetados pelo processo de simpli-
ficação de ditongos e 69% não foram afetados. Dos enunciados com
ditongos decrescentes nasais, 4% foram afetados e apenas 96% não
foram afetados pelo processo de simplificação de ditongos. Isto sig-
nifica que os ditongos decrescentes nasais sofrem menos a influência
de estratégias de simplificação, sendo, em conseqüência, adquiridos
mais cedo que os ditongos crescentes nasais.
Os ditongos crescentes que ocorreram na sílaba tônica foram
afetados em um percentual de 39%. Já os ditongos decrescentes so-
freram um percentual de apenas 6% simplificações, ou seja, os diton- Os ditongos decrescentes nasais e os ditongos decrescentes na
gos crescentes demoram mais apara serem adquiridos que os decres- sílaba tônica foram considerados adquiridos a partir do grupo etário
centes na sílaba tônica. G1 e os ditongos decrescentes fonéticos foram considerados adquiri-
dos desde o grupo G2.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 493


Os ditongos decrescentes em contexto de monotongação não ças não adquirem os ditongos que são monotongados na fala adulta,
foram considerados adquiridos por nenhum grupo, pois a criança que é o modelo-alvo das crianças;
não pode adquirir aquilo que ela não vivencia. Desta maneira, este estudo cumpriu sua finalidade, pois atin-
Tirando-se uma média da aquisição dos contextos fonológicos giu todos os seus objetivos, além de trazer importantes contribuições
dos ditongos decrescentes, chega-se a uma idade média de 2;6 anos, para os estudos que procuram traçar o Perfil do Desenvolvimento
como idade em que o ditongo decrescente já está adquirido, para a Fonológico em Português (PDFP).
classe sócio-escolar A.
A aquisição dos ditongos crescentes é mais demorada, sendo 6. Referências bibliográficas
eles considerados adquiridos na sílaba átona final, pela classe A, a
partir do grupo etário G2. DOURADO, L. B. S. et al. (1991). A Aquisição da Fonologia
Os ditongos crescentes ambissilábicos foram considerados por Falantes do Português: A eliciação de amostras
adquiridos a partir do grupo etário G1, pois como em tópico anterior, fonológicas. Salvador: UFBA.
esse ditongo é primordialmente, decrescente, e por isso têm um com- GRUNWELL, P. (1982). Clinical Phonology. London: Croom Helm.
portamento semelhante ao dos ditongos decrescentes. GRUNWELL, P. (1987). Clinical Phonology. 2ª ed. London:
Os ditongos crescentes nasais e na sílaba tônica foram consi- Chapman & Hall.
derados adquiridos pela classe sócio-escolar A no grupo etário G4. INGRAM, D. (1976). Phonological Disability in Children. London:
Ao se fazer a média das idades em que cada contexto Edward Arnold.
fonológico dos ditongos crescentes foi considerado adquirido, che- INGRAM, D. (1989). First Language Acquisition. Cambridge,
ga-se a uma idade média de 3;0 anos, para a classe sócio-escolar A. Mass.: Cambridge Univ. Press.
LAMPRECHT, R. R. (1990). Perfil da Aquisição Normal da
5. Considerações finais Fonologia do Português – Descrição Longitudinal de 12 cri-
anças: 2:9 a 5:5. Tese Inédita de Doutorado.
Constatou-se, sobre os ditongos crescentes e decrescentes pro- Porto Alegre. PUCRS.
duzidos por crianças pertencentes à classe sócio-escolar A, que: STAMPE, D. (1973). A Dissertation on Natural Phonology. Chica-
• Os ditongos crescentes são adquiridos mais tarde pelas cri- go: Universidade de Chicago. Tese Inédita de Doutorado.
anças, quando comparado com a aquisição dos ditongos decrescen- TEIXEIRA, E.R. (1985). The Acquisition of Phonology in Cases
tes; of Phonological Disability in Portuguese Speaking Subjects.
• A elisão das semivogais foi, de fato, a estratégia mais recor- London: University of London. Tese de Doutorado.
rente na implementação do processo e a menos recorrente foi a TEIXEIRA, E. R. (1988a). Aspectos Fono-articulatórios e
reduplicação de ditongos; Fonológicos do Português. Salvador.
• Os ditongos nasais são adquiridos, simultaneamente, com o TEIXEIRA, E. R . (1988b). Processos de Simplificação Fonológica
mesmo tipo de ditongos orais; como Parâmetros Maturacionais em Português. Cadernos de
• O processo de simplificação de ditongos crescentes é des- Estudos Lingüísticos (14): 53-63. Campinas: UNICAMP.
cartado por volta dos 3;0 anos, e o de ditongos decrescentes é des- TEIXEIRA, E. R. (1991). Perfil do Desenvolvimento Fonológico
cartado por volta dos 2;6 anos; em Português (PDFP). Estudos Lingüísticos e Literários (12):
• Salvo por influência do processo de alfabetização, as crian- 225-238. UFBA.

494 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Sertão: tempo e espaço
Erasmo d’Almeida Magalhães
Universidade Estadual Paulista - UNESP/Araraquara

ABSTRACT: The Word sertão taken as simple lexia is studied here. It is looked for as source of data: the columnists’ of the centuries texts XVI and XVII,
printed sources (Interesting Documents, Inventories and Testaments and other), literature said regionalista, elements picked in field research.
PALAVRAS-CHAVE: literature regionalista, documentação, lexia simples sertão

Albert Dauzat (1932: 21-40) classifica, de uma maneira geral, “... inventaram exército para ir ao sertão traze-los à
os topônimos em duas grandes classes: designações espontâneas e marinha...” (13)
designações sistemáticas. Afirma, em relação às primeiras: “Ces
désignations collectives sont em general, à l’origine, dês surnoms, au “Além disso, a nação dos tapuias (que como se lê à p. 466
sens linguistique du mot, ou, suivant l’expression de M. Camille habitava o sertão da baía) que tem diversas línguas não se dá
Jullian, dês épithètes de condition, qui deviennent plus tard dês noms bem a beira-mar, ...” (14)
propres consacrés par l’usage puis par l’emploi officiel” (1932: 21).
Daí podermos dizer que sertão pode ser considerado como Bluteau (1720: 612-613) registra sertão como “região apar-
topônimo espontâneo, que no temário do I Congresso Brasileiro de tada do mar, e por todas as partes metida entre terras. Mediterranea
Dialetologia e Etnografia1 leva o nome de oficioso, se bem que, pou- Régio”, que Rodrigo Fontinha (s/d) diz ser também “Floresta no
cas vezes figurando na cartografia atual, mas de larga circulação no interior do continente, longe do mar, o interior das terras...”, afir-
linguajar nordestino culto ou popular, na literatura oral e regionalista, mando Cândido de Figueiredo (1926) que se trata de “lugar incul-
na documentação antiga e nos trabalhos geográficos e históricos, sendo to, geralmente distante de povoações ou de terrenos, cultivados”. O
que, nos estudos lingüísticos e nos dicionários não se deu muita aten- vocábulo encontra estes vários sentidos em diferentes pontos do
ção às suas mais diferentes conotações. território brasileiro.
A “carta de Pero Vaz de Caminha”2 é aceita geralmente como
Assim, na Ilha de Búzios (Estado de São Paulo), entende-se
o primeiro documento local da história do Brasil e dentro de nossos
por sertão área florestada não necessariamente longe do mar, onde
propósitos, em seus devidos termos, a considerarmos como o primei-
se pode obter madeira para construção de casas e de embarcações.
ro documento de índole lingüística sobre a área de domínio portugu-
Entre as pessoas de mais idade anotamos a expressão designando
ês na América. O escrivão faz referência a ribeira3 , a chã4 , a sertão,
etc. que além de guardarem a mesma acepção que possuem em Por- também local anteriormente revestido por vegetação espessa e agora
tugal, na terra descoberta ganharam nova significação, seja como ocupado ou não por uma incipiente capoeira7 .
vocábulo de uso corrente, seja como topônimo. Ainda em se tratando do litoral paulista recolhemos outras
No documento citado tem-se sertão como região florestal. Se- acepções para o termo. Em Icapara (município de Iguape – SP) con-
não vejamos a descrição que faz do quadro físico: sidera-se sertão a área que não está compreendida dentro dos limi-
tes, um tanto imprecisos, da “vila”, sendo geralmente ocupada por
“Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, cultivos e mata, não estando situada entre o mar e a “vila”. Em
a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, Ubatumirim (município de Ubatuba – SP) sertão é a designação
que nos parecia muito longa. dada ao interior da costa onde habitam os “caipiras”8 , cujas ativida-
des se restringem à coleta de palmitos, à agricultura de subsistência e
Trabalhos posteriores a Carta de Caminha ainda conservam a secundariamente à pesca fluvial, com limites interiores imprecisos.
expressão com sentido de floresta. É o caso do estudo de Gabriel
Soares de Souza5 e dos Diálogos das Grandezas do Brasil (9).
Nos Diálogos... (1956: 33) lê-se: “Como não se vemos que em 1 Vd. Inérida, nº 2, p. 160. Rio de Janeiro, 1959.
tanto tempo que habitam o Brasil não se alargam para o Sertão para 2 Utilizamos a edição crítica de Jaime Cortesão. Rio de Janeiro, 1943.
haverem de povoar nele dez léguas, contentando-se de, nas fraldas 3 Ao sentido “porção de terreno banhado por um rio” junte-se a acepção
do mar se ocuparem somente em fazer açúcar”. Com a légua medin- restrita do Nordeste, “zona própria para a criação de gado vacum”. In
do cerca de seis quilômetros poder-se-á facilmente observar que esse Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, p. 1050. Rio de Janeiro,
sertão era muito próximo da linha litorânea e essa distância indicaria, 1961.
4 No Brasil com “significação peculiar de planície elevada, chapada...” In
para a época, área coberta de matas.
Dicionário da Terra e da gente do Brasil, p. 104. São Paulo, 1961. Leia-se
Talvez pelo não conhecimento da natureza da paisagem vege-
estudo sobre o termo por Joseph M. Piel in “Nomes de lugar referentes ao
tal de outros pontos de território o autor dos Diálogos... (1956: 74) relevo do solo”. Separ. da Revista Portuguesa de Filologia, vol. I, tomo I, p. 5-
tenha escrito: “... na capitania de São Vicente e outra mais para o 6. Coimbra, 1947.
sertão chamada de São Paulo”6 . 5 Vd. “Tratado Descritivo do Brasil em 1587” In Boletim Geográfico, nº 174,
O mesmo sentido não ocorre em Fernão Cardim (1964), que p. 319. Rio de Janeiro, 1963 onde se lê “... e no sertão d’ella tem grandes
sempre distingue apenas duas regiões no Nordeste, a costa e o ser- mattas de páobrazil”, em referência à costa, do Rio Sergipe até o Rio
tão, este sempre longe da costa e não dando nunca a impressão de ser Real.
terreno coberto pela floresta tropical litorânea. 6 Luis D’Alincourt escreve que “os primeiros vicentistas deram o nome de
Transcrevendo (1964: 461), temos as especificações desejadas: campo ao terreno de serra acima para o diferenciar das terras do
beiramar, os quais acharam muito cobertas de arvoredo” In Memó-
“... toda a costa de Pernambuco, que começa no rio de São ria sobre a Viagem do Porto de Santos à cidade de Cuiabá, p. 39. São Paulo,
1953.
Francisco para além, ..., e maior parte do sertão...”
7 Observação registrada “in loco” nos anos de 1964 e 1966. A mesma vale
para a anotada na Ilha Monte de Trigo.
E costa (1964: 463, 470) corresponde a marinha e beira-mar, 8 Em Búzios são chamados de “caipiras” todos os que habitam o continen-
em contraposição ao longínquo sertão: te, sendo considerado termo depreciativo.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 495


Esta última conotação encontramos também nos Relatos se faz entre praça e sertão. A primeira se refere a uma cidade interiorana
Sertanistas (1953: 144), em documento datando do século XVIII, que para um litorâneo seria dita sertaneja, mas na região em que se
onde se pode ler: encontra seu sítio não é considerado sertão. O mesmo registro temos
em Violeiros do Norte (1962: 228) num trecho de um desafio entre
“Estas são as chamadas Minas de Inhanguera, tão afamadas dois cantadores: “Rua de homem valentão / Eu estou cansado de ver,
como as antigas, e ficam no sertão da Enseada das Guaroupas / Da praça até o sertão”.
e Ilha de Santa Catarina”. Ainda que o sertão seja conhecido como terreno onde impera a
caatinga, Luetzburg (1923: 84) diz: “nesta determinação (caatinga e
Como região longe de povoações e geralmente coberta de ve- sertão) o sertanejo não obedece à classificação botânica, atende, ape-
getação densa é o que arrolam Alfredo d’Escragnolle Taunay, Mário nas, o aproveitamento útil do terreno, para fins agrícolas ou pecuári-
Palmério e Hugo de Carvalho Ramos, em Inocência (s/d), Vila dos os. Em vista disto, denomina a parte mais seca e inútil da caatinga
Confins (1966) e Tropas e Boiadas (1965), respectivamente. de sertão, dando ao restante o nome geral de caatinga”.
Em Inocência (s/d: 2, 10) temos: “ali começa o sertão cha- Esta afirmação não conseguimos registrar na literatura consul-
mado bruto” demarcando o início da área florestal, desabitada como tada. Registramos sim o termo campo como sendo área cultivada e
se pode perceber pela complementação “O legítimo sertanejo, ex- mato muito fechado12 como caatinga espessa ou fechada.
plorador de desertos ...”. O certo é que se pode documentar facilmente e sempre a sig-
Ainda que “Vila dos Confins” esteja situada em “sossegados e nificação de sertão, no caso específico do Nordeste, como faixa de
esquecidos sertões” para os que ali vivem sertão toma outra terras ocupada pela pecuária bovina, quer na literatura específica
conotação. Mário Palmério ao se referir à paixão vexatória de um do sertão quer na específica do litoral, com os exemplos se multi-
personagem morador na “Vila” escreve: “Pe. Sommer gostava mas plicando em Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Manoel de
era de se sorveter o sertão ...” (1966: 20). Descrevendo a paisagem Oliveira Paiva.
além do pequeno núcleo populacional registra: “No mato do Cor-
rente, ..., apenas o tamborilhar das primeiras gotas da chuva na fo-
lhagem densa” (1966: 217). E, adiante: “Sertão bruto mesmo, um
ermo!” (1966: 217).
À semelhança do que ocorre na cartografia paulista do sécu-
lo passado9 e mesmo inícios do atual, para Hugo de Carvalho Ra-
mos (Op. Cit.) o vocábulo ganha o sentido de “sítio remoto e des-
conhecido”.
Para o citadino do sul do país a palavra sertão lembra-lhe o
interior, em geral onde domina a agro-pecuária10 .
A região abrangida por Santo Amaro, Juquitiba, Itapecirica,
etc., fornecedora de produtos agrícolas para a Cidade de São Pau-
lo, ainda que não necessariamente remota, era, até começos do pre-
sente século, desconhecida e por isso chamada de sertão de São
Paulo. Com o avanço da urbanização e crescente industrialização
não se pode mais falar em caboclo de Santo Amaro, em referência
ao agricultor dos lugares indicados, e encontrar receptividade no
ouvinte, mormente que as áreas citadas, integrando o “cinturão ver-
de” da capital, possuem uma população agricultora marcantemente
nipo-brasileira.
Na região nordeste quanto mais conhecedor do espaço fosse
o morador e à medida que os colonizadores mais adentravam o
Brasil e a exploração da vegetação costeira se fazia mais intensa,
tendo como conseqüência um território mais conhecido, melhor se-
riam precisados os termos litoral e sertão. Assim o “recuo do
sertão” se efetivava, com a zona da mata não sendo mais designada
como sertão.
9 Veja-se, por exemplo, o Atlas do Império do Brasil, Rio de Janeiro,
Nos estados nordestinos, sertão tem uma conotação específi- 1868.
ca apresentando-se como definição de um território típico de criação 10 Como exemplo: “Como sertão carioca entende-se a zona rural do
de gado (daí sertanejo não só lembrar o habitante da área, mas como Estado da Guanabara caracterizada por fraca densidade demográfica e pela
também o vaqueiro) com características físicas11 e culturais própri- agricultura como forma dominante de ocupação da terra”. “Aspectos Geo-
as. Tem, à semelhança do pago gaúcho, como bem postula Louis gráficos do Sertão carioca” In Aspectos da Geografia Carioca, p. 171. Rio de
Edmond Hamelin (1959: 23), “uma ressonância psicológica e soci- Janeiro, 1962.
al”, sempre significando unidade regional que se antepõe às “panca- 11 “O vocábulo sertão, no Nordeste do Brasil, designa o vasto interior onde
o relevo é geralmente mais uniforme, o clima mais seco, a caatinga mais
das do mar”, e à “praia” nomes que o sertanejo dá à região litorânea.
rude e a ocupação humana rarefeita. Trata-se de uma região ou de um
Embora essa unidade possa ser tomada como um todo, ela conjunto de regiões onde as extensões da caatinga já não são
apresenta áreas compartimentadas como demonstram as expressões freqüentemente interrompidas pelas manchas úmidas dos brejos”. Paisa-
encontradas na literatura de cordel e as reproduzidas na literatura gens do Nordeste em Pernambuco e Paraíba, p. 154. Rio de Janeiro,
regional. 1958.
Na literatura de cordel são constantes as expressões diversos 12 Da Literatura Popular em Verso transcrevemos: No sertão da Paraíba
sertões, alto sertão, interior do sertão, etc. / Os pobres estão lamentando / A praga dos gafanhotos / Que lá estão
Em Dona Guidinha do Poço ( : 82) anotamos a distinção que acabando ‘Toda espécie de lavoura / Que no campo estão frutando. (p.
245, 435).

496 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Imaginário cultural: construindo
uma outra história
Naiá Sadi Câmara Maretto
Universidade de Ribeirão Preto

ABSTRACT: The aim of this paper is to investigate if there is identity or difference between the Elementary School students and dictionarycultural
imaginary
PALAVRAS-CHAVE: Imaginário, identidade, escola.

Se compreender o simbolismo de uma sociedade é desvendar “Coube ao autor a iniciativa de tentar reconciliar a ciência com
as significações que ela carrega e sendo que o simbolismo pressupõe o sonho, entendendo que, na própria inovação tecnológica, está
o imaginário, nosso objetivo é investigar se há identidade ou diferen- presente a potência criadora da imaginação.” (Dagonet, 1986 )
ça entre o imaginário cultural de alunos do ensino fundamental, espe-
cificamente, alunos da 5ª ‘serie e dos dicionários e enciclopédias. Assim percebemos que o valor eufórico dado ao imaginário
Como o dicionário e a enciclopédia constituem o arquivo surge em várias áreas do conhecimento num momento em que se
cultural e léxico de uma sociedade, nossa investigação pretende ana- discute as certezas cartesianas que, no momento atual não são mais
lisar se esses alunos mantém ou alteram os paradigmas culturais e totalmente eficientes para explicar o mundo.
sociais em seus textos, por meio de estratégias de apagamento e Como afirmam Chevalier e Gheerbrant “ A imaginação já
explicitação dos intediscursos que permeiam seus textos. não é mais desprezada como a louca da casa. Está reabilitada, consi-
Também pretendemos revelar o papel da instituição escola na derada gêmea da razão, inspiradora das descobertas e do
formação desse imaginário cultural. progresso.”(1999:XII)
O tema do imaginário tem sido bastante discutido em várias Temos refletido sobre imaginário e para tanto, faz-se neces-
áreas do conhecimento neste fim de século, talvez porque estejamos sário explicarmos os termos imaginário, símbolo, uma vez que exis-
vivendo um momento de transição, de crise dos paradigmas tem muitas concepções diferentes desses termos.
Acreditamos que antes de definirmos o imaginário, faz-se
norteadores da vida do homem.
necessário entendermos o que seja representação.
Por muito tempo, o imaginário foi renegado. Para os filóso-
Segundo o dicionário Aurélio, representação [do lat.
fos antigos, a busca pela verdade estava relacionada a experiência
Representatione].......4. Reprodução daquilo que se pensa......9. Filos.
dos fatos, às certezas lógicas. Como a imagem não se reduz a ser
Conteúdo concreto apreendido pelos sentidos, pela imaginação, pela
verdadeira ou falsa, ela foi desvalorizada pelos lógicos.
memória ou pelo pensamento”( Aurélio,1986 :1489)
No século 17, privilegiava-se o racionalismo cartesiano e mais
Assim, podemos afirmar que a representação é um tipo de
uma vez o imaginário é excluído. tradução mental de uma situação exterior percebida e que o imaginá-
rio é sempre uma representação que pode manifestar-se por meio de
“O racionalismo cartesiano instituiu-se como método univer- imagens ou discursos.
sal de uma pedagogia do saber científico, podendo mesmo ser Contudo, esses discursos e imagens que representam o ima-
dito que os renomados estágios evolutivos positivistas são eta- ginário não são neutros no sentido de que eles sofrem influências
pas de extinção do simbólico”(Durand, 1989 ) socio-culturais, ou seja não há um pensamento ou idéia que não se-
jam influenciados pelas ideologias, como afirma Bourdieu (1982),
Percorrendo os vários momentos da história, percebe-se que o “as representações mentais envolvem atos de apreciação, conheci-
imaginário é confundido, considerado como sonho, loucura, delírio. mento e reconhecimento e constituem um campo onde os agente so-
Todavia, nem todos os pensadores da antigüidade renegaram ciais investem seus interesses e sua bagagem cultural.
veementemente o imaginário. Essas representações do imaginário irão existir nos símbo-
Platão reconhecia que nem todas as verdades poderiam ser com- los, ou como afirma Castoriades “o imaginário deve utilizar o simbó-
provadas logicamente e reconhecia a existência do mito, da alma. lico, não apenas para “exprimir-se”, o que é obvio, mas para “exis-
Assim, influenciado por Platão, alguns outros filósofos partem tir”, para passar do virtual a qualquer coisa a mais” (1986, :154), ou
para a defesa das imagens. seja, o símbolo pressupõe o imaginário e nele se apoia. Contudo, o
O cristianismo também pode ser considerado um momento autor complementa dizendo que isto não significa que o símbolo seja
importante de valorização do imaginário com a adoração das ima- apenas constituído pelo imaginário pois também possui um compo-
gens de Cristo e dos santos. nente “racional-real”.
Segundo Durand “ ...é pela imagem que a alma humana repre- Neste sentido, as sociedades constroem suas representações
senta com maior exatidão ainda as virtudes da santidade”. (Durand, coletivas e cada indivíduo irá apreender essas imagens e manifestá-
1998 :19) las nos seus discursos. Contudo, esta construção simbólica nas soci-
Há muitos outros momentos na história ocidental, já no século edades não são totalmente livres, uma vez que se baseiam no que já
XX, em que se observa uma tentativa de resgate das imagens: o ro- existe.
mantismo, o simbolismo, o surrealismo são exemplos de tendências Quanto ao termo imagem, segundo o dicionário Aurélio’:
de valorização do sonho e da imaginação. imagem: [Do lat. Image] S.F. 1. Representação gráfica, plástica ou foto-
Contudo, três momentos se fazem realmente notados: a psica- gráfica............8. Aquilo que evoca uma determinada coisa, por ter com
nálise , a antropologia e, o mais importante deles, as pesquisas de ela semelhança ou relação simbólica; símbolo.9. Representação mental
Bachelar. de um objeto de uma impressão....”(Aurélio,1986: 917-918)

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 497


Já o imaginário é assim definido pelo dicionário: não mais encontramos todos os símbolos do passado. O milho, a
Imaginário: [Do lat. Imaginariu] adj. 1. Que só existe na imagina- palmatória deram lugar ao diálogo.
ção; ilusório; fantástico. (op cit :918). Hierarquizam supervisores de ensino, diretores, inspetores
Como podemos observar, o Aurélio confirma o valor apenas e mestres que, hoje tentam manter-se num nível mais próximo
de sonho, de ilusão que vigorou por muito tempo na história. dos alunos.
Segundo Durand, o imaginário sendo o “museu de todas as Se buscarmos uma definição para a instituição escola, vamos
imagens passadas, possíveis, produzidas e a serem produzidas, cons- encontrar, por exemplo, no dicionário: Estabelecimento público ou
titui o “capital pensante do homem”. privado onde se ministra, sistematicamente, ensino coletivo...., 5.
Constitui-se, desta forma em um importante campo de inves- Sistema ou doutrina de pessoa notável em qualquer dos ramos do
tigação da história do homem, pois, como afirma Castoriades, “tudo saber; 6. Conjunto de adeptos e/ou seguidores de um mestre ou de
o que se nos apresenta, no mundo social-histórico, está uma doutrina ou sistema...;9. Estudo, conhecimento, saber.....”
indissociavelmente entrelaçado com o sentido simbólico (Aurélio, 1986 : 987)
(Castoriades,1986:142) Observamos, nessas definições duas idéias: uma de escola en-
Esta representação simbólica do imaginário poderá ser en- quanto lugar, estabelecimento e uma outra que define escola como
contrada na linguagem e nas instituições sociais. um conjunto de saberes a serem seguidos. De qualquer forma, em
Nas instituições, essas representações ocorrem em “rituais” e ambas percebe-se que no imaginário das sociedades, a escola sem-
Castoriades exemplifica com o ritual religioso, mostrando que a es- pre ocupou um lugar de destaque, onde se concentrava a divulgação
colha dos símbolos não é aleatória, pois , como já dissemos, o simbo- do saber, da cultura que devem ser transmitidos e seguidos por uma
lismo não é nem neutro, nem totalmente adequado: determinada comunidade.
Contudo, hoje, será que essa instituição ainda representa, no
“ Nem livremente escolhido, nem imposto à sociedade consi- imaginário popular as mesma funções e valores?
derada, nem simples instrumento neutro e medium transparen- Sabendo então que o imaginário coletivo manifesta interes-
te, nem opacidade impenetrável e adversidade irredutível, nem ses específicos de uma comunidade e que esse imaginário se ex-
senhor da sociedade, nem escravo flexível da funcionalidade, pressa por símbolos, discursos e representações figurativas, fomos
nem meio de participação direta e completa em uma ordem buscar nos textos de crianças como elas figurativizam sua imagem
de escola.
racional, o simbolismo determina aspectos da vida em socie-
Antes de analisarmos os textos, é importante refletirmos sobre
dade( e não somente os que era suposto determinar) estando
a relação do imaginário e as crianças.
ao mesmo tempo, cheio de interstícios e de grau de liberdade”.
Em primeiro lugar, será possível perceber nos textos infantis a
(op.cit:152)
“espontaneidade e a parte de construção e de manutenção do ponto
de vista cultural?
Ainda, segundo o autor, as instituições são redes simbólicas Como afirma Held, num determinado momento de sua vida,
socialmente sancionadas que possuem uma parte funcional e uma a criança “imagina todos os fenômenos da natureza como “artifici-
imaginária, mas salienta que tanto as instituições bem como o imagi- ais”, isto é, calcados sobre o modelo da atividade humana”
nário não podem ser vistos apenas para satisfazerem as necessidades (Held,1977 :42)
da sociedade, nem tão pouco como redes simbólicas, pois se consi- Nesta fase do desenvolvimento da criança, a fronteira entre o
derarmos apenas o aspecto simbólico das instituições, não consegui- que é imaginário e o que é real é muito pequena.
ríamos compreender, muito menos determinar as origens e razões Segundo a autora, para o adulto, tudo o que ultrapassa as nor-
das escolhas de determinados símbolos no lugar de outros. mas sancionadas fica no campo do fantástico, do imaginário, bem
Ainda para o autor, explicar o nível do percebido e do racio- diferente do que ocorre para as crianças, uma vez que elas ainda não
nal é relativamente fácil, entretanto quando se trata do nível incorporaram todas as normas vigentes de seu grupo social.
imaginarío, tudo se torna mais complicado Muitas vezes confundem- se nos textos infantis mentira e brin-
Para Castoriades, os símbolos do imaginário, muitas vezes cadeira de representação imaginária, pois, por falta de limites tem-
surgem conforme as necessidades sociais e, portanto preenchem de- porais e de construção histórica, esses pequeninos transportam para
terminadas funções como as de punir, controlar, vigiar, seduzir, etc. o real o imaginário sem perceberem que acabam de construírem uma
Nosso objetivo, então, neste trabalho é identificar como es- mentira.
sas funções se manifestam nas instituições e nos discursos produzi- Esse fato também ocorre porque a noção de espaço real e mítico
dos nelas. se confundem.
Escolhemos analisar a instituição escola partindo do pressu- Para Held, a imaginação também é uma forma de a criança
posto de que é nela que se formam as bases do pensamento do ho- distrair-se em um mundo fechado, de fugir ou até mesmo de rebelar-
mem e portanto, esta tem um papel fundamental na formação do se contra os adultos.
imaginário das pessoas. Acreditamos que é justamente a escola uma das instituições
Adotando a idéia de ritual de Castoriades, perceberemos que a responsáveis por fazer com que a criança seja capaz de um pensa-
escola é composta de símbolos determinados hierarquicamente dis- mento racional, objetivo e científico do universo, ou seja, seu objeti-
postos, formando um código, uma linguagem de manipulação. vo primeiro é retirar a criança de seu mundo imaginário e trazê-la, o
Na sala de aula, o professor, como um sacerdote, é o respon- mais rápido possível para o mundo real.
sável pela condução e organização do ritual. Há alguns anos, havia Discutir sobre as implicações dessa conduta, ou sobre os mé-
em todas as salas um púlpito que reforçava essa posição ritualística todos pedagógicos utilizados pela escola para alcançar seus objeti-
da aula. vos, não é a intenção deste trabalho, contudo não podemos deixa
Objetos como palmatória, milho, réguas de madeira, simboli- de observar que com essa atitude temos a cada dia menos
zavam o autoritarismo do professor e seu distanciamento em relação criatividade, poeticidade em nossos alunos, e que o que é ainda
pior, também não estamos encontrando, com essa atitude mais pen-
ao aluno.
sadores ou mais cientistas.
Nessa época, a figura do professor era a de único detentor de
Sem dúvida, a relação criança e escola se dá como uma difi-
todo o saber e cabia aos seus pupilos apenas ouvir e respeitar.
culdade a ser vencida.
Com o passar dos anos e com a transformação da sociedade,

498 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Será então, primeiro pelos desenhos e depois pela linguagem- grupo social, contudo, em cada exemplo podemos também identificar
verbal que as crianças irão revelar seu universo imaginário e mais figuras como aula vaga, merenda, que marcam, cada uma delas, uma
tarde o imaginário de sua comunidade. representação da escola que é particular: espaço de facilidades, lugar
Resta-nos assim investigar como a criança se posiciona a res- onde há o que comer.
peito das questões e do imaginário dos adultos. Como afirma Castoriades,
Analisando textos produzidos por alunos de uma 5ª série do
ensino fundamental de uma escola estadual da cidade de Batatais, “ realidade, linguagem, valores, necessidades, trabalho de cada
interior de São Paulo, identificamos algumas figuras que revelam sociedade especificam cada vez, em seu modo de ser particular, a
sua relação com o imaginário cultural de seu grupo social. organização do mundo e do mundo social referida às significações
Pedimos que esses alunos escrevessem sobre diversos temas, imaginárias sociais instituídas pela sociedade considerada”(
tais como: a escola, a família, a igreja, entre outros. Castoriades, 1986:416)
Neste trabalho, por uma necessidade espacial, mostraremos Assim, ao analisarmos os textos dos alunos do ensino fundamental
apenas alguns textos referentes ao tema escola. estaremos desvendando suas significações imaginárias, que no caso espe-
J.M.B.C., 11 anos, inicia seu texto sobre a escola da seguinte cífico analisado acima, revela uma identidade com o imaginário cultural de
maneira:1 seu grupo social.
“Lugar de aprendizagem. Aqui agente pode aprender a fazer Concluindo, afirmamos que retirar das crianças a representação
tudo que quizer. Na escola não se aprende so a ler e escrever na imaginária ou o prazer de inventar não a tornará um adulto melhor, mes-
escola a gente aprende sim a viver....” mo porque, quando adultos, eles não mais “brincarão”, mas continuarão
Este aluno mantém o mesmo sema do dicionário, ou seja, representando um imaginário cultural, sem se darem conta disso.
uma identidade com o imaginário. Por outro lado, ao afirmar que Mudam-se os símbolos, as imagens, as crenças, mas o imagi-
também na escola se aprende a viver, ele amplia sua definição que irá nário persiste até como condição da existência humana.
coincidir com a visão imposta nos parâmetros curriculares e, desta
forma também marca uma identidade com seu grupo. Referências bibliográficas
A.V. M. Z.11 anos: “Portinari e uma escola nem Boa nem rui.
Porcauso de uma coiza tem muita aula vaga, isso não é Bom. O ba- CASTORIADES, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade.
nheiro eu tenho ate medo de entre lá. Porque é um cheiro de sigaro”. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986
D.S.L. 11 anos “ A escola para mim é muito importante pois CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos. 14ª
lá aprendemos para um dia trabalhare..... Mas esta escola que eu es- ed., trad. Vera da Costa e Silva...[et.al.], Rio de Janeiro: José
tou estudando a pouco tempo não é grande coisa tem muita aula vaga Olympio, 1999.
não tem tarefa e a maioria das provas ou melhor quese todas são em DAGONET, F. Bachelard. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
grupo.........” DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário. Trad.
M.A.C. 11 anos “..............Eu preferia estudar em outra esco- Hélder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997
la. Eu acho que Ter muita aula vaga é errado. Eu acho que a escola é DURAND, G. O imaginário. Trad. Renée Eve Levié. Rio de Janeiro:
lugar de estudar não de ter aula vaga.” Difel, 1998.
C.T.B. 11 anos. “....A escola é muito boa. Nela nós fazemos PESAVENTO, S. J. Em busca de um outra história: imaginando o
muitos amigos”. imaginário. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v.15, nº
P.R. 2 “ A escola pramim é muito boa, pois a merenda é uma 9, 1995.
das coisas que mais gosto”. SARTRE, Jean Paul. A imaginação. 8ª ed. Trad. Luiz Roberto Salinas
Por meio desses poucos exemplos, percebemos que todos Fortes. São Paulo, Bertrand Brasil, s/d
reproduzem a concepção de escola presente no imaginário de seu

1 Os textos foram transcritos exatamente como escritos pelos alunos.


2 O aluno não revelou sua idade

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O preconceito linguístico e o
ensino de língua portuguesa
Maria Lúcia de Oliveira
Universidade Federal da Paraíba - UFPB

RÉSUMÉ: Ce que je vais présenter ici, c´est une réflexion sur l´opinion préconcue souvent imposée dans l´inseigment de la langue portugaise.
PALAVRAS-CHAVE:Ensino,Língua Portuguesa,Preconceito.

No ensino da língua portuguesa pouca tem sido a atenção dada al, sujeita a “toda alteração da estrutura social” (Meillet, 1948), o que
à questão do preconceito que o falante enfrenta em certas situações pressupõe não somente o contexto verbal mas também o contexto de
de uso efetivo da língua. situação.
Temos observado,nesses muitos anos de ensino, que certos fa- Nessa perspectiva, a língua é apenas um conjunto de regras
tos lingüísticos são tidos como “problemas” para muitos alunos. Pen- abstratas e se compara a qualquer ciência “dita” exata, como bem
semos, por exemplo, no uso de um tempo verbal por outro: do imper- esboça Stálim (in Jakobson,1970:75):
feito pelo presente do indicativo. Não são poucos os falantes que já
se sentiram constrangidos ao fazerem uso do fato descrito e serem Neste sentido, a gramática se assemelha à geometria que ,
mal interpretados. com suas leis, abstrai-se a si própria dos objetos
Na verdade, quantos de nós não nos vimos diante de reprova- concretos,considera os objetos como corpos despojados de
ções como “quer ou não quer?”, “queria ou quer?”, “queria, não quer sua existência concreta e define suas mútuas relações não como
mais.” Quando expressamos um desejo através do imperfeito? relações concretas de determinados objetos concretos, mas
O que nos chama a atenção é que essa atitude conservadora, como relações de corpos em geral, isto é, como relações des-
entretanto, não reflete apenas a visão de alguns falantes. Muitos alu- tituídas de toda concretude.
nos universitários continuam encarando a língua como um fenômeno
isolado, descontextualizado, fora da situação de interlocução. Diante dessa situação, certamente o fato de o falante dizer, por
Ao nosso ver, para esses alunos, as abordagens teóricas que exemplo,droga viciosa ao invés de dizer droga viciante é apenas
concebem a linguagem como um instrumento de interação social, uma das várias “escorregadas” cometidas pelo usuário que “desco-
ação entre sujeitos “uma forma de ação interindividual, nhece” a regra gramatical.
finalisticamente orientada” (Kock,19970), são, no mínimo, tentati- A estranheza causada pela formação adjetiva viciosa, conside-
vas “confusas” de explicação de fatos da língua falada que a gramá- rando o contexto dado,mostra o teor do preconceito decorrente, ao
tica normativa “sabiamente” considera como erros. nosso ver, da pressão exercida pela tradição normativista que não
É muito comum ouvirmos de alunos queixas do tipo: “eu não deixa o usuário perceber que a linguagem se insere num cruzamento
sei como é que um aluno que será professor continua dizendo eu não de informações. Neste caso, o adjetivo teria sido usado numa reda-
vou não, estou indo embora, vou vir amanhã, entre outras observa- ção de vestibular, cujo tema motivador fora um texto jornalístico que
ções. noticiava que 38% dos jovens brasileiros fumantes começaram o ví-
Essas queixas nos revelam que o conservadorismo gramatical cio aos treze anos.
está cada dia mais forte.Daí BAGNO (1999:13) se expressar nos se- O uso da formação viciosa se justifica plenamente uma vez
guintes termos: que o falante depreendeu, a partir da estatística apresentada, que o
número de viciados é muito grande.Os adjetivos em –oso, em geral,
Parece haver cada vez mais, nos dias de hoje, uma forte ten- têm leitura “que tem muito” o que não acontece, em regra, com os
dência a lutar contra as mais variadas formas de preconceito, adjetivos terminados em –nte, cuja leitura é de “que (verbo)”. O
a mostrar que eles não têm nenhuma justificativa, e que são falante,nesse caso, eficientemente, condensou as informações para
apenas o resultado da ignorância, da intolerância ou da ma- melhor especificá-las.
nipulação ideológica. (grifo nosso) Infelizmente, porém, essa Naturalmente, o exemplo acima é apenas um dos vários casos
tendência não tem atingido um tipo de preconceito muito co- de “erros” que temos em português, mas é o suficiente para ilustrar o
mum na sociedade brasileira:o preconceito lingüístico.Muito efeito negativo de uma tradição escolar que enaltece a exceção, o
pelo contrário,o que vemos é esse preconceito ser alimentado particular, o idealizado.
diariamente em programas de televisão e de rádio, em colu- Para finalizar, gostaríamos de acrescentar que em nossas ob-
nas de jornal e revista, em livros e manuais de ensino que servações percebemos que o preconceito lingüístico é mais palpável
pretendem ensinar o que é “certo” e o que é “errado”, sem entre alunos de cursos ditos de “elite”, como Medicina, Direito, en-
falar, é claro, nos instrumentos tradicionais de ensino da lín- tre outros. Para esses alunos é muito difícil passar de um registro
gua: a gramática normativa e os livros didáticos. para outro ,ou seja, fazer a adequação lingüística.Ao nosso ver temos
aí pelo menos duas possibilidades: ou o falante não conhece outra
Como se observa, além do livro didático e da gramática variedade do português do Brasil ou acredita que fazendo a adequa-
normativa, o preconceito lingüístico é reforçado através dos meios ção lingüística não terá o prestígio social relativo à função profissio-
de comunicação em geral. nal. Alguns supõem que“se um médico falar igual ao paciente não
Com efeito, concordamos com o ponto de vista do autor citado terá a mesma credibilidade de outro que não o faz e pode até perder
porque acreditamos que um dos problemas mais graves no tocante à clientes porque fala errado”.
abordagem lingüística desses instrumentos consiste no fato de eles Tal posicionamento contraria um princípio inerente à lingua-
atribuírem à linguagem a propriedade única do poder de abstração, gem humana que afirma ser “a heterogeneidade parte integrante da
ao invés de percebê-la também como um fenômeno de interação soci- economia lingüística da comunidade e necessária para satisfazer as

500 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


exigências lingüísticas da vida quotidiana” (Labov, 1982). Paulo. Contexto.
Na verdade, numa sociedade onde a escolarização não é JAKOBSON,Roman.(1970):Lingüística.Poética.Cinema. São
democratizada,a norma-padrão é um patrimônio de poucos e repre- Paulo.Perspectiva.
senta a “própria identidade de grupo dominante” Bagno (2000:172) KOCK,Ingedore.(1997): A inter-relação pela linguagem.São
Paulo.Contexto.
Referências Bibliográficas LABOV, W. (1982): Building on Empirical Fundations. In: Lehmann,
W.,Malkiel, Y. (Orgs). Perspectives on Historical Lingüistics.
BAGNO,Marcos.(1999): Preconceito Lingüístico,como é, como se Amsterdam: John Benjamins Publishing Company.
faz. São Paulo,Loyola. MEILLET, A. (1948): Linguistique historique et linguistique générale.
________. (2000): A língua de Eulália.Novela sociolingüística. São Paris: Libraire Ancienne Honoré Champion.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 501


Relativismo lingüístico ou relatividade lingüística?
Uma revisitação aos princípios conceituais postulados
por Benjamin Whorf à luz de abordagens
conexionistas e pragmático-interacionistas1
Fábio Alves da Silva Júnior
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG/FALE

ABSTRACT: Building on Whorf ’s Principle of Linguistic Relativity, this article aims at discussing issues of intercultural language use. By analyzing
examples of verbal aspect marking in English, German, Turkish, and Portuguese, it attempts to revisit Whorf ’s concepts of overt and covert categories in the
light of connectionist and pragmatic approaches.
PALAVRAS-CHAVE: Relatividade Lingüística, Lingüística Antropológica, Conexionismo, Pragmática

1. Introdução sucederam. Apenas em meados da década de 80 é que alguns autores


voltam a se debruçar sobre o trabalho de Whorf numa tentativa de
Ao longo de toda sua vasta obra, Benjamin Lee Whorf argu- revisitá-lo à luz de abordagens lingüísticas mais recentes.
menta em favor de uma estreita inter-relação entre linguagem, Para efeito dessas revisitações ao trabalho de Whorf, é impor-
cognição e cultura. Ao conjunto de suas idéias, Whorf deu o nome, tante ressaltar as distinções epistemológicas entre os conceitos de
em inglês, de Principle of Linguistic Relativity. Refutado com vee- hipótese e princípio. Um princípio deve obedecer a métodos deduti-
mência pelos teóricos gerativistas, o Relativismo Lingüístico, como vos de teorização, exercidos através da observação de um dado con-
o conhecemos em português, viu-se acoplado conceitualmente às junto de fenômenos; pode ser estendido, e modificado, através da
premissas do relativismo filosófico (cf. Kay & Kempton, 1984). Con- análise de hipóteses. Essas, por sua vez, possuem caráter indutivo
tudo, através dos trabalhos de Lucy (1992), Gumperz & Levinson em sua confirmação ou refutação. Aos resultados analíticos obtidos
(1996) e, sobretudo, Lee (1996), fica evidente que a idéia original de através da testagem empírica de hipóteses, aplicam-se reanálises que
Whorf encontra seu maior ponto de ressonância junto ao princípio afetarão (ou não) os postulados estabelecidos através de um dado
da relatividade postulado na física por Albert Einstein, situando-se princípio, que por sua vez, poderá sofrer reformulações. A nosso
bem distante do relativismo na filosofia (cf. Alford, 1981:25). ver, tratar as idéias de Whorf como um princípio ou como uma hipó-
É comum encontrarmos referências na literatura sobre os tra- tese revela concepções divergentes sobre os elementos envolvidos
balhos desenvolvidos por Edward Sapir e Benjamin Whorf menções nas tentativas de se estudar fenômenos da linguagem. Para nós, afir-
à Hipótese do Relativismo Lingüístico. Constata-se, a nosso ver, um mar que Whorf formulou uma hipótese implica em isolar a lingua-
equívoco conceitual ao rotular o trabalho de Whorf como tendo sido gem humana e dissociá-la de suas interfaces cognitivas e culturais.
direcionado por uma hipótese passível de validação empírica. As Por outro lado, tratá-las como um princípio implica em uma concep-
reflexões desenvolvidas por Whorf explicitam claramente que inte- ção que busca estabelecer parâmetros entre a linguagem e o modo
ressavam-lhe princípios explicativos - e não hipóteses - que pudes- como compreendemos a experiência. Um princípio, em oposição a
uma hipótese, prescinde de comprovação empírica, e constitui uma
sem levar a identificação de categorias cognitivas subjacentes à ca-
abstração que procura nortear reflexões científicas a respeito de um
pacidade humana de produzir e usar linguagem. Este artigo procura
determinado tema.
demonstrar que o conceito whorfiano de um Principle of Linguistic
O Princípio da Relatividade Lingüística postulado por Benja-
Relativity pode ser expresso mais adequadamente em português como
min Whorf permite a formulação de categorias dinâmicas e flexíveis,
sendo um Princípio de Relatividade Lingüística. Como ilustração
passíveis de reconfiguração a partir da troca estabelecida entre a for-
das implicações e conseqüências desta nova opção terminológica e
ma e o uso lingüísitco. Um exemplo desse caráter dinâmico são as
conceitual, este artigo apresenta exemplos de marcação aspectual no
categorias overt e covert no pensamento de Whorf. Enquanto as ca-
português, inglês, alemão e turco e procura fomentar o início de um
tegorias overt refletem padrões específicos de clasificação lingüísti-
diálogo das idéias de Benjamin Lee Whorf com os postulados de- ca, morfologicamente marcadas, as categorias covert, não marcadas
senvolvidos por abordagens conexionistas e pragmático- morfologicamente, são aquelas que nos fazem preferir ou preterir
interacionistas no que diz respeito à gênese e ao uso contextualizado certas construções lingüísticas em detrimento de outras, independen-
da linguagem. temente de qualquer regra lexical ou gramatical. As categorias covert,
para Whorf, têm efeitos importantes sobre a organização de proces-
2. Relativismo ou relatividade lingüística?: considerações sos cognitivos em decorrência das inter-relações estabelecidas entre
Teóricas conceitos, práticas sociais e itens lexicais (cf. Whorf, 1956:92).

São frequentes as referências no campo dos estudos da lingua-


gem à Hipótese do Relativismo Lingüístico, considerada como
1 Este artigo apresenta resultados preliminares de um projeto de pesquisa
intrisecamente relacionada à escolha dicotômica se é a língua que
financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
configura uma determinada visão de mundo ou se é a visão de mun- Tecnológico (CNPq), na modalidade PQ, processo nº300737/95-5.
do que tem implicações na configuração de uma língua específica. 2 Apesar de serem frequentes na literatura as menções à hipótese de Sapir-
Envolto por este movimento pendular, o trabalho de Whorf2 nunca Whorf, este trabalho considera apenas os textos originais de Whorf para
chegou a ser analisado em detalhes pelas gerações de teóricos que o efeitos de reflexões e análises.

502 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Entendemos que Whorf preocupava-se essencialmente em iden- • Pode-se dizer que o turco é aspectualmente mais marcado que
tificar a função dos padrões gramaticais das línguas que analisava. A o português, o inglês ou o alemão?
posição de Penny Lee aproxima-se do direcionamento que procura-
mos dar às nossas revisitações. Lee (1996) interpreta o Princípio da Sabe-se que o inglês, assim como o alemão, prioriza a marca-
Relatividade Lingüística de Whorf como sendo equivalente à cons- ção de aspecto verbal através de relações adverbiais enquanto que o
trução de um arcabouço conceitual, a partir da experiência lingüísti- português, e possivelmente outras línguas românicas, parece priorizar
ca do indivíduo, através do qual revestir-se-á de significado a reali- a marcação de aspecto através da carga semântica do verbo, ou seja,
através de uma opção pela lexicalidade. O turco, por sua vez, parece
dade que vivencia. Padrões de regularidades, ou quase regularida-
fazer uma opção preferencial de marcar aspecto através de tempos
des, são apreendidos no decorrer de processos de interação. Lee des- verbais distintos, usando para tal a morfologia aglutinante da língua.
taca também a relevância de uma correta contextualização do princí- Especulativamente, poder-se-ia dizer que, dentro da trajetória
pio formulado por Whorf, o qual, para sua correta avaliação, deve ser postudada por Bybee, o turco, talvez, esteja em um estágio evolutivo
compreendido como um axioma, integrante de uma epistemologia e mais avançado que o português. Nesta perspectiva, enquanto o por-
metodologia que orientam a lingüística antropológica (cf. Lee, tuguês lexicaliza o aspecto, já incluindo, porém, neste processo al-
1996:85). De acordo com esse ponto de vista, Whorf desenvolveu gum tipo de marcação gramatical (i.e.: acabar de fazer); o inglês e o
um tipo de análise que não se propunha a focalizar simplesmente a alemão, por outro lado, utilizam-se de uma opção lingüística de natu-
estrutura das línguas estudadas, mas, sobretudo, entender as inter- reza adverbial para marcar o aspecto verbal (i.e. I’ve just arrived; Ich
relações entre língua, cognição e cultura. Neste contexto, acredita- bin gerade angekommen), marcação essa que, no futuro, poderá vir a
mos ser possível tratar dos movimentos dinâmicos propostos por adquirir caráter morfológico. O turco encontrar-se-ia no extremo deste
Whorf, contrapondo-os aos postulados de abordagens conexionistas continuum com a marcação morfo-sintática do aspecto incorporada à
estrutura da língua (i.e geliyorum4 ).
e pragmático-interacionistas. Entendemos Whorf como um teórico
Whorf parece ter se preocupado em identificar as diferentes
preocupado com o papel desempenhado pela linguagem na configu-
opções de marcação aspectual entre a línguas ameríndias, deixando
ração de nossa realidade cognitiva, exercendo o papel de mediadora claro, a partir das categorias overt e covert, as características relati-
na co-construção de processos interativos com o meio ambiente. vas - e não relativistas - deste tipo de escolha paramétrica. Entende-
Neste artigo, procuramos defender nossa compreensão de que mos que as categorias overt e covert devem ser vistas, no desenrolar
o Princípio de Relatividade Lingüística pode ser utilizado para ex- dos processos de constituição da linguagem, como agentes discretos
plicar, de forma adequada, diferentes opções paramétricas feitas por de mudanças que levam da lexicalidade à gramaticidade. Dentro dessa
comunidades lingüísticas distintas. Com o intuito de ilustrar um pou- perspectiva, a forma e o significado atuam como mecanismos com-
co mais esta posição, apresentaremos, a seguir, algumas observações plementares de processos lingüísticos. Se tomarmos como exemplo a
sobre características inerentes à marcação de aspecto verbal nas lín- expressão do futuro, não como tempo verbal, mas como relação
guas naturais contrastando-as com decisões pontuais relativas à mar- aspectual, veremos que, apesar de o português, o inglês e o alemão
cação de aspecto verbal no português, inglês, alemão, e turco. terem um tempo verbal que determina marcadores específicos para
tal fim5 , o uso pragmático da língua determina que essas relações
sejam especificadas de outras formas – preferencialmente por rela-
3. Examinando a marcação de aspecto verbal à luz do prin
ções adverbiais. Portanto, é perfeitamente possível dizer:
cípio da relatividade lingüística
• em português: Vou lá amanhã;
É nossa compreensão que devemos atribuir características de • em inglês: I’m going there tomorrow;
universalidade ao aspecto verbal e, nesse sentido, concordamos com • em alemão: Ich gehe morgen hin.
as proposta feita por Joan Bybee e seus associados (cf. Bybeee et al.
1994). Acreditamos que a linguagem humana pré-estabelece meca- Por outro lado, o turco faz uso explícito do sufixo acak/ecek6
nismos formalistas para seu processamento e uso efetivo e que esses como referencial de marcação aspectual do futuro. Portanto, é im-
mecanismos podem ser explicados através da postulação de uma re- possível dizermos yarin odaya gidiyorum*7 . É preciso explicitar a
lação algorítmica. Assim sendo, as categorias funcionais responsá- relação aspectual futura como sendo yarin odaya gidecegim8 . Volta-
veis pela manifestação do aspecto verbal poderiam, talvez, ser mos, assim, àquilo que postuláramos anteriormente, qual seja, que
explicadas dentro de um arcabouço teórico formalista. Contudo, de- existe uma relação evolutiva de natureza cognitiva operando na mar-
cação de fenômenos lingüísticos. Para nós, a mudança das relações
fendemos também a posição que a universalidade da noção de aspec-
cognitivas envolvidas na marcação de aspecto verbal se dá através de
to verbal revela-se através da função. Acreditamos, pois, ser possível
buscar chegar à frente formalista a partir da frente funcionalista. Em
última instância, acreditamos ser possível identificar os princípios
cognitivos responsáveis pela manifestação de aspecto verbal, 3 Conferir, por exemplo, no turco, dois tipos morfologicamente diferencia-
parametrizá-los em termos de função e explicar, dentro de uma pers- dos de marcação aspectual: no presente do indicativo - presente contínuo
marcado pelo sufixo [–yor] e presente recorrente marcado pelo sufixo [-
pectiva translingüística, como são codificados lingüisticamente. Neste er] - e dois tipos diferentes marcação aspectual no pretérito do indicativo -
sentido, o trabalho de Benjamin Whorf é instrumental nesta nossa passado pessoal marcado pelo sufixo [–d/t] e passado relatado, não
proposta de investigação. Sua distinção entre categorias overt e covert vivenciado, marcado pelo sufixo [ -m*s]
possibilita a identificação de escolhas paramétricas por comunidades 4 gel[chegar]+i[vogal de ligação, varável segundo os padrões de harmonia
lingüísticas diferenciadas no sentido revelar as características vocálica do turco]+yor[sufixo marcador de continuidade]+um[marcador
cognitivo-pragmáticas inerentes a um tipo específico de categorização de 1a. pessoa do singular].
5 hei-de + INFINITIVO, em português; will + INFINITIVO, em inglês;
cognitiva.
werden + INFINITIVO, em alemão.
Tomando como base três formas possíveis de marcar 6 *c*k dentro das regras de harmonia vocálica do turco.
lingüisticamente o aspecto verbal, quais sejam, como entradas lexicais 7 Yarin[amanhã] oda[lá]+ ya [sufixo direcional] gidi[radical verbal de che-
distintas, como nas línguas eslavas; como componente interno ao gar]+ yor[sufixo marcador de continuidade]+um[marcador de 1a. pessoa
tempo verbal, como nas línguas românicas e germânicas; e como do singular].
tempo verbal distinto, como no turco entre as línguas altaícas3 , le- 8 Yarin[amanhã] oda([á]+ ya [sufixo direcional] gid[radical verbal de che-
vantamos a seguinte questão: gar]+ ecek[sufixo marcador de ação futura]+im[marcador de 1a. pessoa
do singular].

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 503


mecanismos de co-variação que, dentro de uma perspectiva diacrônica, nos é direcionado não apenas por padrões lógico-dedutivos, mas,
co-existem em um determinado momento9 . Essa co-existência impli- valendo-se deles, pelas características específicas das interações en-
ca diretamente na possibilidade de direções múltiplas para um mes- tre os indivíduos envolvidos no ato comunicativo;
mo fenômeno lingüístico. Acreditamos que a identificação dessas • A maleabilidade dos conceitos explicativos é essencial para
possibilidades foi objeto de estudo por parte de Benjamin Whorf e garantir que processos de adequação, acomodação e consolidação,
que a aplicação dos postulados do Princípio de Relatividade Lin- de natureza cognitivo-pragmática, possam ser equalizados diante de
güística tem implicações fundamentais para posteriores análises situações correntes de gênese, contato e mudança lingüística.
sincrônicas e comparações translingüísticas.
4. Conclusão
4. Conexionismo e pragmática cognitiva-Interacionista:
Possíveis Interfaces com o princípio da relatividade lin Em vista do espaço restrito deste artigo, suas conclusões são
güística apenas indicativas. Procuramos demonstrar, ao longo do texto, a es-
treita relação existente entre o Princípio de Relatividade Lingüística
Examinando possíveis semelhanças e diferenças entre o portu-
formulado por Benjamin Whorf e recentes abordagens conexionistas
guês, o inglês, o alemão e o turco nos casos de marcação de aspecto
e pragmático-interacionistas nos estudos da linguagem humana. Os
verbal descritos na seção anterior e considerando-as à luz das catego-
exemplos de casos de marcação aspectual no português, inglês, ale-
rias overt e covert postuladas por Benjamin Whorf, acreditamos ser
mão e turco são apenas ilustrativos de possíveis tendências e não
possível estabelecer algumas inter-relações com abordagens teóricas
devem ser entendidos como exaustivos. O principal próposito do texto
recentes que, como a abordagem defendida pelo Princípio da Relati-
é servir de indicador de uma nova tendência que parece delinear-se
vidade Lingüística, procuram incorporar a uma base natural da lin-
guagem, parâmetros de configuração oriundos das interações lingüís- no campo dos estudos da linguagem, qual seja, a fusão de princípios
ticas e sócio-culturais de um determinado grupo de indivíduos. Neste formalistas e fucionalistas - desconsiderando-se a dicotomia
sentido, tanto abordagens conexionistas mais recentes (cf. Elman et racionalista vs. empirista inerente a eles - na busca por explicações
al., 1996) quanto a corrente interacionista entre os pragmatistas (cf. mais coerentes para fenômenos lingüísticos envolvendo o uso
Marcuschi 1999) defendem a idéia de que a linguagem humana cons- contextualizado da linguagem. Neste contexto, o Princípio da Rela-
titui-se através de: tividade Lingüística, seminal no trabalho de Benjamin Whorf, mere-
ce ser revisitado.
• processos cognitivos que operam com base na categorização
de padrões de regularidade; 5. Referências bibliográficas
• processos inferenciais que, a partir de uma determinada rede
de interações, contribuem para a construção de significado através da ALFORD, Danny Keith Hawkmoon. Is Whorf’s relativity Einstein’s
convencionalização de implicaturas. relativity?. Proceedings of the Seventh Annual Meeting of the
Berkeley Linguistics Society, p.13-26. 1981.
No que toca às tendências em curso nas abordagens conexionistas, BYBEE, Joan; Revere PERKINS & PAGLIUCA,. The evolution of
Jeffrey Elman e seus associados (cf. Elman 1996:391) registram uma grammar: tense aspect and modality in the languages of the
preocupação cada vez maior com a plausibilidade biológica das redes world. Chicago: Chicago University Press. 1994.
neurais desenvolvidas como evidências de que a aquisição da lingua- ELMAN, Jeffrey; Elizabeth BATES; Mark JOHNSON; Annette
gem humana configura-se a partir de generalizações e restrições KARMILOFF-SMITH; Domenico PARISI & Kim PLUNKETT.
cognitivas direcionada pelas experiências e interações dos indivíduos Rethinking Innateness: a connectionist perspective on
enquanto inseridos em um determinado contexto. development. New York: MIT Press. 1996.
No que diz respeito as tendências em curso na Pragmática, GUMPERZ, John & Stephen LEVINSON (orgs.). Rethinking
Marcuschi (1999: 113) as agrupa em três noções básicas, quais se- linguistic relativity. [Studies in the social and cultural foundations
jam, (i) a noção estrutural; (ii) a noção inferencial; e (iii) a noção of language 17]. Cambridge: Cambridge University Press. 1996.
interacional. Interessa-nos aqui, sobretudo, a terceira abordagem. KAY, Paul & Willet KEMPTON. What is the Sapir-Whorf
Acreditamos que, ao postular a configuração do comportamento hypothesis?. American Anthropologist 86:1, p.65-70. 1984.
inferencial a partir da interação entre uma base cognitiva e as trocas LEE, Penny. The Whorf theory complex: a critical reconstruction.
lingüísticas e sociais com o meio ambiente, esta corrente da pragmá- Amsterdam: John Benjamins. 1996.
tica estabelece afinidades teóricas com os postulados conexionistas. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Coerência e Cognição Contingenciada.
Ambas as correntes defendem a idéia de que: In MONTEIRO DE BARROS, Kazue Saito (org.). Produção
Textual: interação, pensamento, variação. Natal: EDURF. P.111-
• A linguagem humana pode ter uma base a priori, mas configu-
121. 199.
ra-se sempre a posteriori a partir da rede de inter-relações estabelecidas
LUCY, John A. Language diversity and thought: a reformulation of
entre o indivíduo e o contexto no qual encontra-se inserido;
the linguistic relativity hypothesis. [Studies in the social and cul-
• A linguagem humana tem um caráter plástico, flexível e di-
tural foundations of language 12]. Cambridge: Cambridge
nâmico, encontrando-se aberta a novas configurações resultantes de
University Press. 1992.
modificações nas interações entre os indivíduos envolvidos no ato
WHORF, Benjamin Lee. Language, mind and reality: selected
comunicativo;
• caráter lógico-analítico da linguagem humana é apenas um writings of Benjamin Lee Whorf. J. B. CARROL (org.). New
de seus muitos traços. O comportamento inferencial dos seres huma- York: MIT Press. 1956.

9 cf. exemplos do português, inglês e alemão para relações aspectuais no


futuro

504 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


O papel do auditório no discurso retórico-
argumentativo: uma análise do texto jornalístico
Gilton Sampaio de Souza
Universidade Estadual do Rio Grande do Norte - UERN/ Pau dos Ferros
Universidade Estadual de Paulista - UNESP /Araraquara

ABSTRACT: This paper discusses on how the audience influences in argumentative and rhetorical discourses. The theoretical basis for the work hereafter
is the New Rhetoric. The corpus to be analyzed is extracted from two articles about Northeast region of Brazil that were published in newspapers of other
different regions.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso, Argumentação, Auditório, Mídia.

Considerações iniciais Para Breton,


“... a argumentação implica na existência de um emissor –
Analisa-se, neste trabalho, o papel que o auditório (Perelman e
que chamaremos aqui por um termo geral: orador; de uma
Tyteca, 1996) representa na construção de discursos retórico-
mensagem, constituída pela opinião colocada com vistas a
argumentativos sobre a região Nordeste do Brasil, publicados pela
convencer, e um receptor, o outro, o público – chamado aqui
mídia impressa. Investigam-se, portanto, os discursos que são
geralmente de auditório”
construídos pela imprensa escrita, a partir do foco dos possíveis lei-
(1999a: 13)
tores dos textos por ela veiculados, e que, também, são influenciadores
diretos ou indiretamente da própria construção desses textos. Parte-
Sendo assim, o ato de argumentar envolve tanto uma tese a ser
se, então, do pressuposto de que o local (região) em que os textos
defendida pelo orador/enunciador, como a imagem que este tem do
foram escritos interfere na construção do discurso, inclusive no con-
auditório, assim como de sua auto-imagem1 que pretende construir
teúdo de sua mensagem. Assim, estereótipos presentes no cotidiano
perante os seus leitores, no caso dos jornais escritos. A argumenta-
das pessoas da região Sudeste do Brasil, por exemplo, sobre a região
ção, portanto, “visa à adesão dos espíritos e, por isso mesmo, pressu-
Nordeste, são também corroborados pelos jornais daquela região. E
põe a existência de um contato intelectual” (Perelman e Tyteca, 1996:
aquelas pessoas, em última instância, com seus preconceitos sobre o
16). Se a argumentação pressupõe um contato intelectual entre ora-
Nordeste, sendo também leitoras de jornais, seriam influenciadoras
dor e auditório, e que, como mostra Breton (op cit), na argumenta-
para que esses estereótipos aparecessem em jornais de grande circu-
ção, o orador busca sempre um ‘acordo prévio’ com o auditório, como
lação, naquela região.
uma estratégia argumentativa, é nesse “acordo prévio”, nesse “conta-
Como corpus para esta análise, têm-se dois artigos publicados
to intelectual”, que o auditório influencia o orador na construção de
por jornais diferentes, sendo um na região Nordeste e, o outro, na
seu texto.
região Sudeste. No primeiro, escolheu-se o artigo “Pobre região rica”,
Além do orador (aqui também chamado de enunciador), da
publicado pelo jornal Tribuna do Norte (TN), em 27/08/98, no Esta-
do do Rio Grande do Norte (RN), de circulação diária, portanto, um opinião e do auditório, Breton alerta para o contexto de recepção do
texto publicado por um jornal de um Estado do Nordeste para os discurso, pois é nesse contexto que se encontram as opiniões, valores
seus habitantes lerem. Para a outra região, a Sudeste, escolheu-se o e julgamentos que são compartilhados por um auditório e que “vão
artigo “A indústria da pobreza no caminho de FHC”, publicado pela determinar um papel na recepção do argumento, na sua aceitação ou
Folha de São Paulo (FSP), em 05/06/98, também de circulação diá- na sua adesão variável que ele vai provocar” (1999a: 29).
ria, e direcionado para o Estado de São Paulo, portanto, para leitores É por isso que o conceito de auditório adquire um significado
não nordestinos. Objetiva-se, então, verificar se o público a quem o especial na Nova Retórica, pois “compreende-se facilmente que a
texto é dirigido interfere em sua produção. Este trabalho faz parte de importância do público influencia a natureza da mensagem” (Reboul,
uma pesquisa maior que está em andamento, com vistas à construção 1998: 142). Numa perspectiva de delimitação do que seja um auditó-
da Tese de Doutoramento sobre argumentação e estereótipos nos dis- rio, pode-se entendê-lo como
cursos sobre o Nordeste. Todos os textos coletados para esta pesqui-
sa foram publicados no período de maio a dezembro/98, uma vez “... o conjunto de pessoas que queremos convencer e persua-
que, nesse período, dois grandes fatores conduziram essa região para dir. Seu tamanho varia muito. (...) É preciso não confundir
o debate nacional: mais uma grande seca no Nordeste e uma eleição interlocutor com auditório. Um repórter que entrevista você
para Presidente da República do Brasil. não é seu auditório, é apenas seu interlocutor. O auditório
são os leitores do jornal ou os telespectadores em suas casas”
Bases teóricas (Abreu, 1999: 41)

Como base teórica para este trabalho, têm-se os estudos de- Considerando que toda pessoa, ao argumentar, ao escrever ou
senvolvidos a partir da Nova Retórica ou Teoria da Argumentação falar o seu texto e defender uma tese, já tem em mente o auditório ao
(Perelman e Tyteca, 1996), cujas reflexões respaldam-se, entre ou- qual está direcionando o seu discurso, supõe-se, então, que qualquer
tros, nos estudos de Aristóteles (1998). Foi nessa teoria que se deli-
mitaram os conceitos de argumentação e auditório utilizados neste
ensaio. 1
A imagem que o orador deseja passar de si mesmo, ou o seu ethos, para o
A argumentação aqui é vista como uma ação humana, uma auditório, relaciona-se à que Aristóteles (1998: 07) apresenta, em sua Arte
ação que implica o ato de convencer o outro sobre a validade de uma Retórica, pois, para este filósofo, o orador deve fazer “crer que se encon-
opinião defendida; uma ação que, para ser efetivada, necessita de tra em determinadas disposições a respeito dos ouvintes, e, além disso,
uma interação entre o orador e o auditório. encontrar estes nas mesmas disposições a seu respeito”.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 505


discurso, ao ser escrito/falado, já traz, em si, influências recebidas de Exemplo 3 –
seus possíveis leitores/receptores. E é assim que também acontece no “A atual seca no Nordeste coloca em xeque a concepção e os
discurso jornalístico, cujo poder simbólico (Bourdieu, 1998) é enor- mecanismos de funcionamento das políticas sociais do gover-
me e que, como qualquer outro discurso, “é uma das instâncias em no de Fernando Henrique Cardoso”
que materialidade ideológica se concretiza” (Brandão, 1998: 37). Por A partir dessa tese preparatória, na qual o orador consegue a
está ligado a uma empresa (o jornal), esse discurso precisa despertar adesão do auditório para a sua tese principal (ver Abreu, 1999), que
o interesse dos possíveis leitores para que, também, o jornal possa será apresentada posteriormente, o jornalista desenvolve o seu texto
ser vendido. Para Carmagnani, a intervenção do jornal sobre o leitor no intuito de defender a tese segundo a qual a região Nordeste não se
acontece em dois níveis, sendo um em longo prazo, e, o outro, de desenvolve devido o coronelismo e o voto de cabresto, por exemplo,
imediato. A longo prazo, “leva o leitor a optar pela leitura daquele que impedem o seu crescimento econômico. Para isso, o orador faz
jornal, em nível imediato, tenta fazer com que os leitores vejam os bastante uso do argumento pelo exemplo, para escrever sobre o que
fatos divulgados do mesmo modo do jornal (leia-se aqui a empresa FHC já fez durante os seus primeiros quatro anos de governo, espe-
de comunicação) os viu” (1996: 03). Com isso, a relação orador/ cialmente em projetos como o Proger (Projeto de Geração de Empre-
enunciador do texto jornalístico com o auditório, leitores do jornal, é go e Renda), Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agri-
bem mais profunda do que, simplesmente, a de um emissor/receptor. cultura Familiar), entre outros. No entanto, ao escrever sobre a “in-
A existência do jornalista, por si mesmo, ao escrever o seu texto, já dústria da pobreza no caminho de FHC”, o orador faz uso de um
implica na existência de um auditório, ideologicamente marcado, argumento por ilustração, sobre o desvio de recursos por um gerente
com os seus valores, suas crenças e, inclusive, seus preconceitos. de banco, como estratégia argumentativa, para, inclusive, revelar cer-
tos preconceitos sobre o Nordeste. A importância deste tipo de argu-
A análise dos textos
mento se deve ao fato de que
O texto 1 (T1) “Pobre região rica”, escrito pelo economista e
professor universitário, Alcir Veras, e publicado no jornal nordesti-
no, parte do pressuposto de que o Nordeste do Brasil é uma região “Enquanto o exemplo era incumbido de fundamentar a regra,
rica e que apresenta um grande potencial para o seu desenvolvimen- a ilustração tem a função de reforçar a adesão a uma regra
to, mas que ainda não se desenvolveu. conhecida e aceita, fornecendo casos particulares que escla-
O orador inicia o texto com as seguintes questões: reçam o enunciado geral, mostram o interesse deste através
da variedade de aplicações possíveis, aumentam-lhe a pre-
Exemplo 1 – sença na consciência”
“Por que o Nordeste, uma região potencialmente rica em (Perelman e Tyteca, 1996: 407)
recursos naturais e mão de obra, não se desenvolveu?
Por que a maioria absoluta de sua população vive em estado Nesse caso, embora os dois, tanto o argumento pelo exemplo
de extrema pobreza?” como o argumento por ilustração, sejam “ligações que fundamentam
a estrutura do real”, como mostra Perelman e Tyteca, a ilustração
Depois de levantadas essas duas questões básicas para o seu tem, diferentemente do argumento pelo exemplo, a função de “refor-
artigo, o orador escreve todo o seu texto para mostrar que o Nordeste çar a adesão a uma regra conhecida e aceita” e, inserida nesta, podem
é rico. Para isso, faz uso, principalmente, dos argumentos pelos exem-
estar, também, preconceitos e estereótipos já conhecidos pelos leito-
plos2 , exemplos de inúmeras riquezas naturais, agrícolas, marítimas,
res/auditório do jornal, e que são corroborados pelo orador, histórico
entre outras. No sexto parágrafo (dos onze existentes no texto) o
orador dá uma possível resposta aos seus leitores/auditório, do moti- e ideologicamente atravessados por eles. Surgem, então, neste T2,
vo, para ele, do não desenvolvimento desta região. disfarçadas como informações verdadeiras sobre a região Nordeste,
discursos manipulados3 , preconceituosos, em que o orador usa um
Exemplo 2 – argumento por ilustração para reforçar a adesão a uma tese por ele
“Da condição de maior produtor mundial de açúcar no século defendida, como neste exemplo a seguir:
XVII, passando por período de apogeu algodoeiro, em mea-
dos do século XIX, o Nordeste poderia ter feito dessas duas
atividades agrícolas a base de sua auto-sustentação econômi- Exemplo 4 –
ca, não fosse a presença sempre constante de interferências “No interior do país, o gerente do banco pode eventualmen-
políticas, aliadas a interesses comerciais a impedir a autono- te ter comprometimentos que direcionem os projetos sociais
mia regional (grifo nosso)”. para determinados grupos ligados a políticos locais.
(...)
Nesse exemplo, pode ver-se que o problema do não desenvol-
Na mesma lógica do gerente do banco, a maior parte desses
vimento da região Nordeste deve-se a “interferências políticas... a
investimentos acaba nas terras daqueles que não são os mais
impedir a autonomia regional”, isto é, para o enunciador desse texto,
o Nordeste não se desenvolve porque há outros poderes, maiores, necessitados, mas têm contatos políticos”
que interferem em seu desenvolvimento. Assim, nesse texto publica-
do no jornal de um Estado do Nordeste, e para nordestino ler, o
problema do não desenvolvimento desta região não se deve a pro- 2
Para Perelman e Tyteca (1996: 399), “A argumentação pelo exemplo impli-
blemas locais, mas a interferências externas, de outras regiões. ca – uma vez que a ela se recorre – certo desacordo acerca da regra parti-
No texto 2 (T2), “A indústria da pobreza no caminho de FHC”, cular que o exemplo é chamado a fundamentar, mas essa argumentação
escrito pelo jornalista Olympio Barbanti Jr., publicado pela Folha de supõe um acordo prévio sobre a própria possibilidade de uma generaliza-
São Paulo e direcionado, primeiramente, para os paulistas, discute o ção a partir de casos particulares...”
não desenvolvimento do semi-árido nordestino a partir da proble- 3
O conceito de manipulação aqui utilizado respalda-se nos estudos de Breton
mática da seca naquele local, partindo do pressuposto, ou “acordo (1999b: 20), segundo o qual “A manipulação apóia-se numa estratégia cen-
prévio”, como mostra Breton (1999b), de que FHC ainda não conse- tral, talvez única: a redução mais completa possível da liberdade de o pú-
guiu solucionar os problemas decorrentes da seca no Nordeste. O blico discutir ou de resistir ao que lhe é proposto. Essa estratégia deve ser
próprio texto já é iniciado com a seguinte tese: invisível, já que seu desvelamento indicaria uma tentativa de manipulação”.

506 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Fazendo uma suposição de que “pode eventualmente”, “No problema local, o que, de certa forma, já exclui as outras regiões de
interior do país”, “o gerente do banco” desviar recursos, o orador/ qualquer responsabilidade para com o problema. Certos estereótipos
enunciador do T2 parte desse exemplo hipotético para generalizar presentes no cotidiano dos paulistas e de outros estados do Sudeste,
esta informação, durante todo o texto, não enquanto hipótese, como como a tese de que, no Nordeste, tudo passa pelos coronéis e pelo
ele havia apresentado anteriormente, mas já como um fato para voto de cabresto, também estão presentes no texto publicado pela
ser ilustrado, uma “verdade”, em que, como “Na mesma lógica do Folha de São Paulo, o que revela uma superficialização da questão,
gerente do banco”, a maior parte dos investimentos também acaba além de uma manipulação das informações para “sustentar” certos
sendo desviada para aqueles que têm contatos políticos, conforme estereótipos presentes naquela região e adequar o seu discurso às
pode verificar-se na seqüência seguinte, também recortada do mes- expectativas de seu auditório/leitores do jornal. Conclui-se, então,
mo artigo: mesmo que parcialmente, essas reflexões sobre as influências do au-
ditório na construção do discurso retórico-argumentativo, ressaltan-
Exemplo 5 – do que todo texto é dialógico (ver Perelman e Tyteca, op cit), porque
“As barreiras políticas estão associadas não apenas ao já conhe- é sempre uma interação, um diálogo com o outro, com o auditório;
cido coronelismo, voto de cabresto, mas também à incapacidade dialético, porque reflete e revela as contradições inerentes a essas
das principais instituições de agir em benefício dos pobres” interações; e ideológico, porque histórico e socialmente marcados,
Assim, depois de mostrar que FHC já fez muitos projetos, em por isso, nunca neutros.
seu governo, o orador apresenta uma de suas principais teses de seu
discurso: o Nordeste não se desenvolve devido a “barreiras políti- Referências bibliográficas
cas”, tais como “coronelismo”, “voto de cabresto”, e a “incapacidade
ABREU, Antônio Suárez. A arte de argumentar: gerenciando razão e
das principais instituições agir em benefício dos pobres” que, para
emoção. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999;
respaldar este “fato”, o orador cita, como ilustração, o caso hipotéti-
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Ediouro,
co do gerente do banco que desvia os recursos dos pobres. Como se
1998;
pode observar, no texto escrito na região Sudeste sobre o Nordeste, e
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand
que é direcionado, primeiramente, aos leitores paulistas, portanto
Brasil, 1998;
habitantes do Sudeste, a região Nordeste não se desenvolve devido
BRANDÃO, Helena H. N. Introdução à análise do discurso. 7 ed.
problemas como o coronelismo, o voto de cabresto e o desvio de
Campinas-SP: Ed. da UNICAMP, 1998;
recursos.
BRETON, Philippe. A argumentação na comunicação. Bauru/SP:
EDUSC, 1999a;
Observações finais
BRETON, Philippe. A manipulação da palavra. São Paulo: Edições
Entre outras questões, pôde observar-se que, no T1, “Pobre Loyola, 1999b;
região rica”, publicado pelo jornal do Nordeste, dirigido a nordesti- CARMAGNANI, Anna Maria Grammatico. A argumentação e o
nos, as causas do não desenvolvimento desta região foram focaliza- discurso jornalístico: a questão da heterogeneidade em jornais
das a partir das interferências políticas externas, que impedem a sua ingleses e brasileiros. Tese de Doutorado. São Paulo: PUC, 1996;
autonomia regional, além de, através de vários exemplos, o orador CD ROM - FOLHA DE SÃO PAULO. A indústria da pobreza no
ressaltar a riqueza da região, o que, inclusive, aparece como tese prin- caminho de FHC. Seção: Economia, de 05/06/98. Edição 1999.
cipal no seu texto, desde o título. E essa é uma tese muito aceita, São Paulo: Publifolha, 1999;
também, pelos leitores desse jornal, ou seja, pelos norte-rio- FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática,
grandenses, uma vez que esta questão é discutida abertamente por 1996;
essas pessoas. Enquanto instância de enunciação (Fiorin, 1996), o PERELMAN, Chaïm; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado de
jornal no qual este texto foi publicado, o Tribuna do Norte, está vin- argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1996;
culado ao grupo político que governa o Rio Grande do Norte, o que REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes,
revela, também, a sua vinculação ideológica, portanto, de não neutra- 1998;
lidade. Ao contrário, é um jornal controlado pelo próprio governo, SOUZA, Gilton Sampaio de.O discurso sobre o Nordeste na Folha
podendo estar aí o motivo do orador/enunciador não focalizar, tam- de São Paulo: do processo argumentativo à manipulação da pa-
bém, as causas locais do não desenvolvimento do Nordeste. Já no T2, lavra. Trabalho apresentado na XVIII Jornada de Estudos
“A indústria da pobreza no caminho de FHC”, publicado no Sudeste, Lingüísticos/GELNE, em Salvador/BA, de 03 a 06/09/2000;
em São Paulo, o não crescimento econômico do Nordeste se deve, TRIBUNA DO NORTE. Jornal. Pobre região rica. Seção: Opinião,
principalmente, a barreiras políticas, como o coronelismo e o voto de de 27/08/98, Natal/RN.
cabresto, “que já é conhecido da própria região”, sendo, portanto, um

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 507


Considerações sobre o caráter
coercitivo da linguagem
Maria Medianeira de Souza
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte/Pau dos Ferros - RN

ABSTRACT: Man, power and language. Different histories? No. All those elements seem to be related in such a way that is impossible to isolate them. This
work intends to reflect on “man, language and power’, as an omnipresent and omnipotent trinity in all socially organized situations.
PALAVRAS-CHAVE: Homem, linguagem, poder.

0 - Introdução ser social, capaz de modificar esse mundo de acordo com suas neces-
sidades e/ou suas aspirações.
Homem. Poder. Linguagem. Histórias diferentes? Ou uma Por razões históricas, culturais, psicológicas, políticas, entre
mesma história fortemente entrelaçada, de forma que é quase im- outras, as necessidades e aspirações humanas são, geralmente, diver-
possível isolá-los e abordá-los distintamente? Onde está o homem, sas e é nessa busca de realização de seus diferentes desejos que nas-
está a linguagem; onde está a linguagem, está o poder. Tem-se as- cem as lutas sociais e surge assim o ambiente propício para o exercí-
sim uma trindade onipresente em qualquer situação socialmente cio do poder. Intrinsecamente ligado à linguagem, o poder se apro-
organizada, por mais corriqueira que está possa parecer. Inevitável veitará do signo para se fazer eterno. Como “um signo não existe
então será falar de qualquer um desses três elementos sem aludir, apenas como parte de uma realidade, ele também reflete e refrata
ainda que de forma indireta, aos outros. Assim será a proposta des- uma outra. Ele pode distorcer essa realidade, ser lhe fiel, ou apreendê-
se estudo: um percurso por esta via tripartida - homem, linguagem la de um ponto de vista específico”, (Bakhtin, 1995: 32) o poder se
e poder – buscando, não só apresentar e discutir algumas questões beneficia dessas possibilidades fazendo do signo (e conseqüentemente
que definem o caráter coercitivo da linguagem, mas também res- da linguagem) um instrumento de sua expressão e expansão.
saltar determinadas formas de poder que se manifestam através da E isso é possível porque, segundo Bakhtin (1995: 46) “clas-
linguagem - como o silêncio e a censura - e que afetam diretamen- ses sociais diferentes servem-se de uma só e mesma língua”. O signo
te, e de certa forma determinam, as relações entre os indivíduos na ideológico, que emerge do processo de interação de uma consciência
sociedade. Servirá de suporte teórico para esta breve incursão teó- individual e uma outra, torna-se assim o lugar onde se dão as lutas de
rica, os pensamentos de Bakhtin (1995) e de Barthes (1978; 1993) classes . E a classe dominante, valendo-se do caráter deformador do
como principais fios condutores deste trabalho, além da contribui- signo, tenta torná-lo monossêmico - possuidor de um significado
ção de outros estudiosos como Orlandi (1987; 1995), Rodrigues único, no caso aquele que mais lhe convém - e colocá-lo acima das
(1985) e Citelli (1991), entre outros. diferenças de classe como uma das formas de preservar o seu poder.
Mas o que torna o signo, ou a palavra, tão importante e necessária à
1 - Linguagem: reduto e instrumento do poder manutenção e à difusão do poder nas relações sociais, em geral? Sem
Presente em todos os mecanismos de intercâmbio social como dúvida, é a sua ubiqüidade social, ou seja, sua capacidade de pene-
os grupos, as modas, os espetáculos, as relações familiares, o poder trar em todas as relações entre indivíduos.
é plural no espaço social e perpétuo no tempo histórico. Por mais
que se combata, ele nunca perece porque vive (ou sobrevive) associ- 2 - O poder e a censura
ado, de forma simbiótica, a um objeto ligado a toda história humana Se o poder é perpétuo e está presente na mais simples das
que é a linguagem (Barthes: 1978). situações quotidianas, pode-se dizer que, por mais democrática que
É possível inferir que só a extinção da linguagem faria desa- seja uma sociedade, ela conviverá, em maior ou menor intensidade,
parecer o poder. Por ser isso uma utopia e por fazer uso contínuo da com essa filha legítima do poder - a censura. Segundo Rodrigues
linguagem, como falante ou ouvinte, o homem está sempre exposto (1985): “A censura é uma das dimensões intrínsecas de qualquer
ao poder: seja ao poder político-econômico-ideológico que tem como sistema de poder” e enfatiza “... não existe sociedade sem censura”.
canal de expressão a linguagem; seja ao poder da própria linguagem Assim ela é instrumento dos regimes totalitários e o é também dos
na sua expressão obrigatória, a língua. regimes democráticos. Se em nenhum desses regimes ela é benéfica,
Falar de linguagem e poder implica falar em signos e ideolo- penso que a censura do poder totalitário é mais fácil de ser enfrenta-
gia, fato este que, neste quadro teórico, remete a Bakhtin (1995: 31) da, driblada, vez que ela é visível e sem máscaras. Já nos regimes
quando afirma: “Tudo que é ideológico possui um significado e re- democráticos ela é sutil, “difusa e amorfa, legitimada pelo rosto anô-
mete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é nimo das maiorias, pela categoria moderna do povo” (Rodrigues:
ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia”. Por essa 1985). É a censura que não faz calar determinadas vozes que inco-
afirmação pode-se perceber quão íntima e profunda é a relação lin- modam, mas é aquela que obriga a dizer.
guagem/ ideologia; relação esta que vai definir e/ou delimitar a for- Tanto é assim que o poder sobrevive atualmente da falsa liber-
mação da consciência individual do homem que, segundo o pensa- dade de expressão. Ele fala sempre em nome de uma maioria e dessa
mento bakhtiniano, “é um fato sócio-ideológico, ou seja, ela não forma exerce e expande seu controle e seu domínio. E faz isso através
pode derivar diretamente da natureza... A consciência adquire forma dos programas de TV, dos grandes acontecimentos esportivos, das gran-
de existência nos signos criados por um grupo organizado no curso des concentrações populares, como shows de cantores famosos e car-
de suas relações sociais”(1995: 35). E são esses, os signos constitu- navais fora de época, no caso do Brasil. A censura das sociedades
ídos num terreno inter-individual, socialmente organizado, que per- democráticas é uma censura que abomina o silêncio, justamente por-
mitem ao homem perceber o mundo ao seu redor e se definir como que ele é pleno de significação, como veremos mais adiante.

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No tocante à relação censura/linguagem, diz Orlandi que sua veis, mas indesejáveis” (1995; 75), em uma determinada situação; é
proposta é: quando “se fala para não se dizer certas coisas” (1987: 264).
A política do silêncio, segundo Orlandi, tem dois modos de
“compreender a censura enquanto fato de linguagem que se existência: o silêncio constitutivo e o silêncio local. O primeiro
inscreve em um política da palavra que separa a esfera públi- envolve o fato de que um enunciado apaga necessariamente outros
ca e a esfera privada, produzindo efeitos de sentido pela enunciados (ou outros sentidos possíveis); o segundo é o da inter-
clivagem que a imposição de uma divisão entre sentidos per- dição do dizer e tem como grande exemplo a censura, compreendi-
mitidos e sentidos proibidos produz no sujeito” (1995: 97). da como a produção do interdito, do proibido. O silenciamento pode
dentro da perspectiva da Análise do Discurso para a qual não há ser visto como uma maneira não de calar, mas de dizer uma coisa
discurso sem sujeito nem sujeito sem ideologia. E outra vez tem-se o para não dizer outras; é a censura do obrigar a dizer, bem presente
entrelaçamento: homem, linguagem e poder. no atual contexto histórico-social que teme o silêncio e que nos
A autora acima mencionada define censura como: “a interdi- incita a emitir sons continuamente por considerar o silêncio como
ção da inscrição do sujeito em formações discursivas determinadas, vazio, como falta ou, mais provavelmente, por saber que quando
isto é, proíbem-se certos sentidos porque se impede o sujeito de ocu- estamos calados, estamos pensando e refletir pode fazer o homem
par certos lugares, certas posições”(1995: 107). questionar, discutir e contestar o poder legitimamente estabeleci-
Dessa forma, impedindo os sujeitos de assumirem determi- do. Dessa forma interessa mais ao poder falar continuamente do
nados papéis (de autoria, por exemplo), de assumirem determinadas que calar, embora nesse contexto também se possa dizer que falar é
vozes, fazendo-os dizerem certos discursos para calarem outros, a igual a ‘calar outros sentidos’.
censura é utilizada pelo poder e expressa através da linguagem para Assim silêncio/censura, na perspectiva aqui abordada, nada
coagir, controlar e limitar os indivíduos. mais são do que instrumentos do poder manifestos através da lingua-
Mesmo sendo controlada e imposta por um tipo de poder, ela gem, seu habitat natural. É possível até afirmar que não temos mais
deixa marcas, lacunas que podem ser percebidas e por isso mesmo uma via tripartida - homem, linguagem e poder - mas uma encruzi-
combatidas. Ilustre-se com o exemplo de certos jornais brasileiros lhada onde se defrontam silêncio/censura; linguagem/poder; e, no
que, na época da ditadura, publicavam receitas culinárias ou poemas meio dela, o homem. Um fio de esperança, uma luz no fim do túnel
no lugar de seus editoriais. Nesse caso, ela é, como diz Orlandi (1995: ainda existe? Onde? Nos sentidos que se transmudam, que escapam,
130), “um sintoma de que ali tem um problema com o dizível. Ali o que nos pegam a seu modo, pois “não há censura completamente
sentido seria outro”. Ainda relacionando sentido e censura, ela res- eficaz”. (Orlandi, 1995:134).
salta: “os sentidos reproduzidos em condições ‘particulares’ tal como
o da censura, podem ser carregados de outros sentidos, de transfor- 4 - A coercitividade da linguagem
mações, de outros sentidos possíveis e não ditos” (1995:115). Que o homem possui a faculdade da linguagem é ponto pací-
A sorte é que os sentidos não são de todo controláveis, eles fico entre os estudiosos e pesquisadores, embora não o seja o fato de
deslocam-se, migram, transformam-se, de forma a deixar sempre uma ela ser nata ou inata, porém não é mérito deste estudo discutir essa
possibilidade de resistir, de rebelar-se e de instaurar uma nova or- questão. Interessa que o homem possui a linguagem e esta tem sua
dem, ainda que esta venha revestida de outras formas de poder e de expressão obrigatória que é a língua.
outras formas de censura. Pode-se pensar então que por se ter a faculdade da lingua-
Mas desde que o homem está condenado a significar (Orlandi: gem, se é dono da língua e pode-se usá-la ao bel-prazer, manipulan-
1995) e a falar, vai viver por toda a sua história exercendo o poder e, do-a de acordo com interesses individuais. Isso pode ser possível,
ao mesmo tempo, querendo livrar-se dele; censurando, sendo censu- mas apenas em parte: pode-se, por exemplo, escolher entre as pala-
rado e querendo fugir das garras da censura, não tendo senão peque- vras garoto e menino para referir-se a uma criança do sexo masculi-
nos momentos de êxito; aqueles em que consegue lograr a língua no. Mesmo assim, já se fica preso aos morfemas e aos fonemas que
através da literatura. as acompanham, pois não podemos combiná-los à vontade. Esse fato
configura a primeira imposição da língua. Acrescentem-se outros
3 - O poder e o silêncio como: colocar-se como sujeito antes de enunciar a ação; escolher
Em sua Gramática do poder, Epstein (1993: 10) questiona: “... sempre entre o masculino e o feminino; marcar a relação com o outro
é possível imaginar qualquer tipo de exercício de poder não agenci- através do tu do você ou do vós; e colocar os termos das orações
ado por alguma forma de comunicação, inclusive o silêncio?” dentro das ordem ditada pela sintaxe específica de cada língua. Esta
Obviamente o que já foi discutido até aqui mostra que sem a lista, que não é exaustiva, caracteriza a natureza coercitiva da língua
comunicação, sem a linguagem, não se exerceria o poder. O silêncio e prova que dela só se pode ser, no mínimo (e paradoxalmente), mes-
e o modo como ele é utilizado pelo poder, é o que se pretende discutir tre e escravo.
agora, tomando como suporte os estudos de Orlandi sobre o tema. Mas segundo Barthes (1978: 12.3), não se percebe “o poder
Segundo ela “a relação silêncio/linguagem é complexa... o silêncio que reside na língua porque esquecemos que toda língua é uma clas-
não é mero complemento de linguagem. Ele tem significado pró- sificação, e que toda a classificação é opressiva (...). Falar(...) não é
prio” (1995: 23). E este pode ser de dois tipos: o silêncio fundador e comunicar(...) é sujeitar...
o silenciamento: uma política do sentido. Ressalte-se ainda que uma outra determinante do caráter co-
O silêncio fundador não significa ausência de sons ou de ercivo da linguagem é a sua indissociabilidade com o social, ou seja,
palavras porque “o silêncio não é vazio, o sem-sentido, ao contrário, sua vinculação com a ideologia, pois um sistema de signos só se
ele é o indício de uma totalidade significativa” (Orlandi, 1995: 70). constitui onde existe indivíduos socialmente organizados. E sendo
Ele é a condição da produção de sentido, ele não fala, ele significa, um instrumento que possibilita, que permite a interação entre esses
ele é. E esse silêncio não é físico, mas o silêncio como sentido, como indivíduos, a língua associa-se assim: a - à situação social na qual
história, como matéria significante; é esse que se faz necessário para está inserida no momento de sua realização; b - ao outro, ou outros,
que o sujeito possa falar, pois é ele o instaurador dos sentidos. que participam na enunciação como ouvintes, isto é, aos interlocutores;
O silenciamento: uma política de sentido “se define pelo fato c - à intertextualidade, pois um discurso sempre cita outro discurso;
de que ao dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos possí- e d - ao que o grupo ao qual o indivíduo pertence pensa, pois, o

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 509


indivíduo, conforme Fiorin (1995: 42) Não é livre para dizer, mas tal forma que passam a ser consideradas como legítimas e naturais.
coagido a dizer o que seu grupo diz”. No entanto, como todo exercício de autoridade, desperta uma
Tudo isso “deve desfazer a ilusão idealista de que o ho- vontade de se contrapor a ele, é também no léxico que vai aparecer
mem é o senhor absoluto do seu discurso. Ele é antes servo da uma reação a esse poder é o “uso de formas alternativas de lingua-
palavra...” (Fiorin, 1995:77) e deve confirmar que não existe li- gem que funcionam como instrumento de contestação nas normas
berdade total dentro da linguagem, pelo menos em se falando do lingüísticas vigentes” (Maia, 1995: 102). São as gírias que servem ao
não - literário, pois vai ser a literatura, segundo Barthes (1978: grupo que as utilizam como fator de auto-afirmação, de realização
16.7), a forma utilizada para “trapacear com a língua”; quer dizer, pessoal e de originalidade e se contrapõe às imposições da chamada
a literatura vai ser o espaço possível para que a língua seja comba- língua culta, aquela prescrita como correta e, portanto, a que todos
tida e desviada de seu próprio interior. Combater o poder da língua devem usar para se comunicar. A transgressão dessa forma lingüísti-
é sobretudo deslocar os sentidos, já que as forças de liberdade que ca não se faz gratuitamente; o grupo, ou os elementos do grupo
residem na literatura dependem do trabalho de deslocamento que o transgressor, sofre “sanções sociais, como a rejeição ou a
escritor exerce sobre a língua. Essas forças são: o fato de a literatu- ridicularização (...) a quem resta como alternativa a adoção dos
ra assumir muitos saberes; a sua força de representação; e o fato de estereótipos da linguagem marginal” (Maia, 1995: 130).
jogar com os signos ao invés de destrui-los (Barthes, 1978: 18-22- Diante de tudo que foi exposto, linguagem e liberdade apa-
28). São elas que contribuem para que se tenha, pelo menos, uma recem como inconciliáveis e, para não se tornar impotente perante
liberdade vigiada dentro da língua, uma vez que temos que nos tal situação, resta ao homem “essa trapaça salutar, essa esquiva,
render a verdade barthesiana de que: esse logro magnífico que permite ouvir a língua fora do poder, no
esplendor de uma revolução permanente da linguagem (...)” a lite-
“Não são somente os fonemas, as palavras e as articula- ratura (Barthes, 1978: 16). Nem todos têm acesso a ela, é verdade,
ções sintáticas que estão submetidos a um regime de liberda- e assim nada há a fazer, se não aceitar a viver em “liberdade condi-
de condicional, já que não podemos combiná-los de qualquer cional”. E se “a regra é o abuso, a exceção é a fruição” (1993:51),
jeito: é todo o lençol do discurso que é fixado por uma rede de como diz Barthes, que se use dessa liberdade condicional para se
regras, de constrangimentos, de repressões...” (1978:31). abusar da exceção.

Procurou-se apresentar, pelo que foi dito até aqui, o poder 5 - Considerações finais
da língua, isto é, o poder existente na estrutura da língua, não, po-
Como em todo trabalho investigativo, neste também
rém, desligada do contexto social e seus elementos, pois como foi
há falhas, há lacunas e, inevitavelmente, em virtude do assunto trata-
visto anteriormente, essa ligação é intrínseca e inata. Mas quero tra-
do, há silêncios, há censuras e há poder, pois se trata de um ser hu-
tar ainda de outra forma de poder que a língua impõe ao homem, ou
mano falando da linguagem e do poder através da linguagem e a
seja, uma determinada visão de mundo que cada língua contém e que
imbricação desses elementos é tamanha que, se há delimitações entre
determina a maneira de o homem perceber e conceber a realidade
eles, são tão tênues que não as percebo mais. Percebo, porém, que
pois “cada língua ordena o mundo a sua maneira” (Fiorin, 1995:52).
eles existem porque eu (homem) existo, assim se eles se reúnem em
Dessa forma até a nossa consciência é imposta pela língua
mim, se sou a sua síntese, sou mais que todos eles e posso, no míni-
na medida em que ela nos impele a ver o mundo dentro dos seus
mo, questioná-los, de vez em quando.
moldes. Assim, uma mesma realidade pode ser percebida de manei-
ras diferentes por homens que falem línguas diferentes; o que em
Referências bibliográficas
português pode ser visto como duas cores distintas, em japonês po-
dem ser matizes de uma mesma cor. Corrobora esse ponto de vista BAKHTIN, Mikhail (V. N. Volochinov). Marxismo e filosofia da
Barthes (1978: 141), quando afirma que “... é precisamente por in- linguagem. 7. ed., São Paulo: Hucitec, 1995.
termédio de seus signos que nós percebemos esse mundo, e a nossa BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1978.
percepção é por isso deformada, orientada, guiada pela ideologia _________. O prazer do texto. 3 ed., São Paulo: Perspectiva, 1993.
da classe dominante”. E como se não bastasse, a língua tem também CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. 6. ed., São Paulo: Ática,
a capacidade de influenciar o comportamento humano através dos 1991.
estereótipos que a sociedade transmite ao homem e que determinam EPSTEIN, Isaac. Gramática do poder. São Paulo: Ática, 1993.
certos modos de pensar e agir, como o preconceito contra os negros, FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. 4. ed., São Paulo: Ática,
os pobres, as prostitutas, por exemplo. 1995.
É o que permite que certas palavras admitam conotações ORLANDI, Eni P. A linguagem e seu funcionamento: as formas do
positivas ou negativas: branco, rico, educado são exemplos de valo- discurso. Campinas: Pontes, 1987.
res positivos e por isso largamente utilizados nos mais diversos con- ________________. As formas do silêncio: no movimento dos sen-
textos; já negro, comunista, empregada, terceiro mundo têm fortes tidos. 3 ed., Campinas: Editora da Unicamp, 1995.
sentimentos negativos e são usadas, muitas vezes para hostilizar e RODRIGUES, Adriano Duarte.”As máquinas censurantes modernas”.
discriminar. Parece correto, então, afirmar que o poder da língua Revista de comunicação e linguagem. Lisboa: Nº 1, 1985.
manifesta-se também no léxico quando impõe uma valorização posi- VASCONCELOS, Otília Maia. Dinâmica da relação linguagem x
tiva ou negativa às palavras. Isso as tornam presas fáceis dos deten- poder: a linguagem enquanto forma de autoritarismo e repres-
tores do poder sócio-político-econômico para as manipularem de são. Graphos. Revista de Pós-graduação em Letras da UFPB,
acordo com seus interesses e assim transmitirem as suas visões de João Pessoa: Ano I, Nº 1, 1995, p. 101-4.
mundo, que acabam por entranharem-se na consciência de todos, de

510 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A contribuição do professor de português na
formação de habilidades de pensamento
Maria Lúcia Pessoa Sampaio
Universidade Estadual do Rio Grande do Norte - UERN/Pau dos Ferros
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN/ Natal

ABSTRACT: This work analysis teacher/mediator’s contribution to form thinking abilities during reading activities in first language teaching. The observation
in classroom shows that the teacher assumes a relevant role in the process of learning development.
PALAVRAS-CHAVE: Educação, Linguagem, Leitura

Considerações iniciais A segunda concepção vê a “linguagem como instrumento de


Objetiva-se, aqui, fazer uma relação entre a filosofia e as teo- comunicação, como meio objetivo para a comunicação”. Nessa pers-
rias lingüísticas aplicadas ao ensino de leitura em língua materna. pectiva, a língua é vista enquanto código, ou seja, como um conjun-
Nesta tentativa, propõe-se analisar o contribuição do professor de to de signos que se combinam de acordo com as regras, onde o emis-
língua materna no processo de desenvolvimento de habilidades de sor transmite uma mensagem ao receptor e, através da codificação,
pensamento, em aula de leitura, no ensino fundamental. se transforma em nova informação. Segundo Travaglia (1996) “Essa
Para isso, partindo-se do que há em comum entre a Lingüísti- é uma visão monológica e imanente da língua, que a estuda segundo
ca e a Filosofia, busca-se, a princípio, em Wittgenstein (1999), uma perspectiva formalista - que limita esse estudo ao funcionamen-
referencial para essa discussão, uma vez que uma das suas preocupa- to interno da língua - e que a separa do homem no seu contexto
ções era discutir a relação entre o pensamento, a linguagem e o papel social” (p. 22).
da Filosofia em explicar suas mais diversas manifestações. Essa discrepância, que permite isolar o homem do contexto
Wittgenstein defende a idéia de que não existe apenas a linguagem, social, expressa os objetivos do estruturalismo e do
mas múltiplas linguagens, de modo que preferiu utilizar a expressão transformacionalismo e leva alguns estudiosos a defenderem essa
jogos de linguagem, referindo-se ao seu aspecto funcional, do seu visão formalista da língua. Neste sentido, à medida que a escola es-
uso, na prática. Ao declarar que um jogo de linguagem não pode ser tuda a língua numa perspectiva de, apenas, comunicar, está restrin-
definido por si só, mas comparando-se suas semelhanças numa série gindo o seu papel ao simples sistema de normas a decorar, de modo
de jogos, é que ele afirma que “a linguagem engendra, ela mesma, que não passa do mero papel de reproduzir informações, dissociado
superstições das quais é preciso desfazer-se, e a filosofia deve ter de toda uma realidade histórico-social, na qual o indivíduo atua di-
como tarefa primordial o esclarecimento que permita neutralizar os retamente num determinado contexto de interação. Aparentemente,
efeitos enfeitiçadores da linguagem sobre o pensamento (...) Em suma, este tipo de linguagem se apresenta com a função maior de organi-
a Filosofia é uma permanente luta contra o enfeitiçamento da lingua- zar, articular ou orientar o pensamento de quem a usa.
gem (1999: 13-15). A terceira e última concepção é aquela que concebe a “lingua-
No uso da linguagem é sabido que, ao chegar à escola, o aluno gem como forma ou processo de interação” e, que, de acordo com
já é capaz de entender e falar a sua língua, podendo ser considerado Travaglia (ibid.), essa visão da linguagem é representada por todas
um falante nativo, ou seja, dispõe de um vocabulário próprio para as correntes da Lingüística que, agrupadas, denominam-se Lingüís-
demonstrar tudo aquilo que pensa e precisa para interagir social- tica Textual, Análise do Discurso e Análise da Conversação. Optan-
mente. A escola, na maioria das vezes, desconsidera o repertório do por esta última, Travaglia (1996) aponta que essa concepção tem
lingüístico trazido pelos seus alunos, esquecendo-os enquanto sujei- como premissa maior a interação humana. Defende-se, aqui, o fato
tos falantes e pensantes, para ensinar normas gramaticais, sem per- de que, ao usar a língua, o indivíduo não apenas exterioriza ou
ceber que o aporte verbal do aluno é a via mais segura para tal con- traduz um pensamento, mas estabelece sentido a partir da atuação
quista e para muitas outras. É justamente nas teorias lingüísticas apli- entre os interlocutores. Desfaz-se a idéia de que é apenas o cognitivo
cadas ao ensino, tendo como preocupação compreender a forma como que organiza a expressão, mas é a expressão que irá organizar a ati-
se concebe a linguagem na escola, para que melhor se compreenda o vidade mental do sujeito, dependendo do contexto em que este se
processo de ensino-aprendizagem, que Travaglia (1996) mostra, em encontra. Neste sentido, a língua é vista sob a ótica de sua função e
seus estudos, que há três diferentes maneiras de se conceber a lin- adequação dentro de uma interação comunicativa.
guagem, caracterizando-as como concepções. Conforme Geraldi (1996), a escola é um espaço propício para
A primeira concebe a “linguagem como expressão do pensa- se dar continuidade ao processo de interlocução que se inicia bem
mento”. Nesta, passa-se a idéia de que existem regras a serem segui- antes do aluno freqüentar o ambiente escolar. Trata-se de se estender
das, para que se organize coerentemente o pensamento e, com efeito, o uso e a função da linguagem diante de tantas possibilidades de
possa-se usar adequadamente a linguagem. São essas regras que se interação que se apresentam na escola. Segundo ele, há uma mudan-
constituem as normas gramaticais, as quais determinarão o escrever, ça de natureza entre as interações que se estabelecem, dentro e fora
o falar bem. Para isso, o recurso utilizado é a gramática normativa. da escola, uma vez que o uso ora “privado”, no contexto, escolar,
Portanto, a partir dessa concepção, pode-se deduzir que as pessoas torna-se “público”, advertindo que não é a linguagem que passa de
se expressam mal justamente por não pensarem bem, ou seja, a lin- privada para pública, e sim, as instâncias de uso da linguagem, que
guagem resulta do pensamento expresso. Associada a esta concep- são distintas. Nesse caso, o que é considerado “erro” passa a ser
ção está a crença de que uma das primeiras funções da linguagem é a considerado “diferente”; e os usuários da língua são vistos como
de permitir a expressão do pensamento, a transmissão de informa- sujeitos do falar e do ouvir, que atendem aos fenômenos sociais da
ções produzidas ao longo dos anos e, em conseqüência, a assimila- interação verbal, estabelecidos pela sociedade, para interagirem de
ção de uma infinidade de conhecimentos. acordo com o ambiente no qual estejam. Portanto, nessa perspecti-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 511


va, a linguagem é vista enquanto um produto inacabado e em perma- a aluna tenta definir além do que é um amigo o que significa também
nente evolução, num processo ininterrupto dentro de um contexto não ser amigo. Entre essas tentativas de definições sobre o que é a
sócio-histórico e ideológico. amizade os alunos costumam apontar sempre um outro colega para
Lipman (1997), aproximando-se dessa mesma compreensão, que fale, para que não sejam convocados pela professora, a falar.
desenvolveu um programa de habilidades de pensamento, na educa- Enquanto isso, a professora afixa, no quadro, sete frases (cartazes)
ção, que tem como objetivo principal fazer com que as crianças, ao sobre a amizade, informando que os alunos deverão opinar sobre as
usarem efetivamente a linguagem, aprendam a pensar mais e melhor, mesmas, se concordam ou não.
ou seja, que atinjam o que ele chamou de “pensamento de ordem
superior ou um pensamento excelente”. Conforme Lorieri (1998), Exemplo 02 -
essas habilidades ou capacidades podem ser apresentadas em quatro (S. 35) Profª Laura - nós temos aqui ... sete frases num é? a
grandes grupos, que se dividem em sub-habilidades: a) “habilidades primeira diz “o amigo é um tesouro raro” (...) “o amigo verda
de investigação”, que implicam na capacidade da criança em formu- deiro ama em qualquer tempo”, o que Eduarda.,colocava né?
lar questões e hipóteses, observar, construir verificações, auto-corri- “a amizade é um bem que não se pode desprezar”, “a amizade
gir-se etc, b) “habilidades de formação de conceitos”, que ocorrem é um bem imprescindível.
através do explicar, definir, analisar e sintetizar, c) “habilidades de (S.46) Henrique – eu (inaudível) essa primeira “um amigo é
raciocínio”, pela quais a criança pode estabelecer relações, produzir um tesouro raro” ((lendo)) essa parte quis dizer que nem todo
conclusões, identificar pressuposições, provar pela argumentação, e mundo é um amigo de verdade.
d) “habilidades de tradução”, em que é necessário se estar atento ao
que é dito, perceber implicações e suposições, parafrasear etc. Santana Como na questão anterior, mais uma vez os alunos utilizam os
(1998), discutindo a operacionalização deste programa em sala de mesmos procedimentos para tentarem explicar as frases. Através de
aula, resume a sua metodologia em cinco passos: 1) Leitura do texto; exemplos, provavelmente, extraídos de situações reais do cotidiano,
2) perguntas feitas pelos alunos; 3) agrupamento das perguntas; 4) das suas relações pessoais. Considera-se, aqui, a relevância dessas
escolha do tema ou assunto para discussão; e 5) a investigação reflexões, o que demonstra que os alunos conseguiram fazer uma
dialógica. relação texto-vida, ponto fundamental para dar significação as suas
A importância de desenvolver um trabalho dessa natureza está leituras. Após vários comentários feitos pelos alunos, a professora
no fato de que “a fala opera o pensamento. A linguagem vai ajudan- propôs a leitura de cinco textos sobre a amizade em grupos e, em
do a estruturar este pensamento” (Santana, 1998). Partindo desse seguida seria a apresentação dos grupos, momento este que culmi-
enfoque como ponto central, neste trabalho, é que pretendemos ana- nou com a maior dificuldade apresentada pelos alunos, devido a in-
lisar uma aula de leitura, onde a professora, mesmo sem trabalhar capacidade de ouvir com atenção a fala do outro, tornando esta a
com essas terminologias e esta sistematização, tenta, na prática, fazer parte mais prejudicada nessa atividade.
um trabalho com leitura, na perspectiva de desenvolver, nos seus
alunos, a capacidade de pensarem por si mesmos, a partir de um texto Exemplo 03 -
fonte, tendo, como suporte maior, a diversidade textual. (S.90) Profª Laura – pronto ... qual é o título do texto e o que
vocês entenderam? ((muito barulho, alunos falando ao mes
O CORPUS mo tempo))
O corpus deste trabalho se constitui de uma aula de leitura em (S.117) Suzy - que a amizade que fala aí ele ... era como/ deve
ria ser como um diamante ... porque a gente devia zelar como
língua materna, gravada em áudio e em vídeo, numa turma de 5ª série
se fosse dinheiro
(3º ciclo) do ensino fundamental, de uma escola pública, em Pau dos
(S.123) Daniela – eu entendi que ... por mais que a gente tenha
Ferros – RN, em que vinte alunos, advindos de bairros populares da
um amigo esse amigo seja FALSO e agente não queria mais
cidade, na faixa etária entre 10 e 14 anos, participavam da aula. A
ele, ele ou ao contrário, ele não queira mais a gente ((risos dos
professora dessa turma tem formação em Letras, com especialização
colegas)) agente nunca vai ficar sozinho ((sem concentração
na área de Lingüística Aplicada, e é considerada, pela escola, uma
na atividade, muito barulho e risadas na sala))
excelente professora.
A aula, em análise, com a duração de mais ou menos 35 minu-
Como se vê, novamente, os alunos aos se apropriarem dos tex-
tos (transcrição) tem como temática “A amizade”, haja vista ter sido tos se valeram de suas experiências pessoais (abstrações), para faze-
realizada no dia 20/07/00, dia da amizade. A aula foi marcada pelo rem suas sínteses (generalizações) apesar da insatisfação da profes-
estilo pergunta-resposta, sendo iniciada por uma pergunta, como de- sora pelo fato de relevarem o conteúdo formal do texto, para apenas
nominou Coracini (1995) de “pergunta iniciativa”, a seguir: exemplificarem, através dos seus próprios argumentos. A professora
continua insistindo para que todos façam uso da palavra, apesar da
Exemplo 01- resistência de alguns grupos. Finalmente ela faz uma síntese do con-
(S.07) Profª Laura - o que vocês pensam, o que é amizade pra teúdos de todos os textos, comentando-os e, na última parte da aula,
cada um de vocês? a professor sugeriu que os alunos utilizassem o correio da escola
(S.16) Ruth – amizade pra mim ... é uma coisa muito boa, agente para enviar uma mensagem ou uma carta a um amigo. Ainda fazendo
sem amizade de alguém agente num é nada essa atividade, a aula termina.
(S.19) Eduarda – amizade pra mim é quando a pessoa tá nas
horas certas e nas horas erradas amigo num é aquele que tudo A intervenção pedagógica e o desenvolvimento de habilidades
que a gente conta vai contar aos outROS ... e também ... é ... Trabalhando num processo de educação para o pensar, desen-
assim ... sempre tá com agente nas horas certas e nas horas cadeado pela intervenção pedagógica, segundo Theobaldo (1998):
erradas.
“O que importa no pensar bem é que agente consiga promover
Percebe-se que os alunos tentam definir o que á a amizade, a uma reflexão acerca da realidade em que nós vivemos, das
partir dos conhecimentos prévios, advindos de suas experiências pes- questões que nos incomodam, das angústias que temos; pensar
soais, como esclarecem: “amizade pra mim” (S.16/19). Ainda no S.10, bem não é só você ter capacidade de sistematizar idéias. En-
tão, nesses elementos, entram a experiência vivida por cada

512 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


um, entra, também, a capacidade de organizar pensamentos, e No entanto, além dessas questões outros pontos poderiam ser
entram, também, uma série de capacidades que vão além da levantadas, como, por exemplo, se de posse dessas frases, não seria
pura organização de pensamentos”. interessante que houvesse questionamentos sobre as verdades que
aparecem como naturais nesses textos, pois não houve nenhuma re-
Partindo-se desse princípio, na aula em análise, percebe-se flexão sobre o conteúdo das frases, nem levado em conta as condi-
claramente que há uma tentativa da professora, na condução da aula, ções de produção, bem como a negatividade dos provérbios que em
em desenvolver uma reflexão junto aos alunos sobre uma das ques- alguns momentos foram silenciados.
tões que muito os afligem, nessa faixa etária, que são as relações
com os amigos. Através das respostas dos alunos, há indícios de Considerações finais
que algumas habilidades já parecem estar sendo desenvolvidas pe-
los alunos, à medida que, através de suas experiências pessoais, Algumas considerações parciais, podem ser apontadas para
estes conseguem estabelecer relações, explicar ou definir, com suas concluir este estudo sobre a aula de leitura e o papel do professor no
próprias palavras o que é amizade; em alguns casos, parafrasear, desenvolvimento de habilidades de pensamento: a) está claro que um
como no (S.19) “a pessoa tá nas horas certas e nas horas erradas” novo fazer pedagógico, uma nova relação já se fez presente nos avan-
(adágio popular). ços que se apresentam como notória contribuição do papel da profes-
Por outro lado, uma questão que ainda parece mal resolvida, sora enquanto mediadora da prática de leitura nesse processo, uma
nesta aula, é que a sala de aula não se transformou numa comunidade vez que não há, por parte desta, um controle cerceador do sentido
de investigação, de modo que os alunos não se sentem seguros, ao nos textos estudados; b) ao insistir que o aluno pense sobre o que leu
exporem seus pontos de vista, e a professora não chegou a conduzir e que atribua significado, a partir dos conhecimentos prévios dos
o processo de reflexão, através da problematização, como desejava, seus alunos, permite que estes desenvolvam determinadas habilida-
uma vez que não conseguiu sensibilizá-los no sentido de fazer com des. Há uma diferenciação entre a compreensão literal do texto e
que se apropriassem do problema e nele mantivessem o interesse,
interpretação, tendo a professora optada obviamente pela segunda;
durante a discussão. Entretanto, apesar dos esforços da professora,
c) percebe-se também um incentivo a oralidade dos alunos como prin-
os alunos ainda não entenderam que a fala do outro é tão importante
cipal meta no trabalho pedagógico, além de privilegiar o trabalho
quanto a sua própria fala, pois a aula foi marcada por freqüentes
com os gêneros textuais, o que demonstra a opção teórica da profes-
interrupções, insinuações de toda ordem, preponderando o desres-
peito pelo outro, sendo necessário várias intervenções da professora, sora pela Lingüística textual.
para que pudesse dar continuidade na abordagem da temática. Ga- Diante dessas considerações, é importante ressaltar que o pro-
rantir as falas e manter-se na temática tornaram-se os principais pro- fessor de língua materna, ao organizar/planejar a aula de leitura, deve
blemas enfrentados pela professora, o que irá exigir desta um traba- sempre estar atento para levar em consideração a formação de habili-
lho mais consistente, no sentido de conduzir uma possível investiga- dades de pensamento, pois estas permitirão uma eficaz interlocução
ção dialógica com seus alunos, uma vez que: no processo de produção e compreensão de qualquer texto, favore-
cendo, assim, uma relação ativa entre aluno/texto/vida, que, segura-
“Na escola de educação tradicional o que importa são respos- mente, marcarão as experiências significativas de qualquer leitor em
tas. Nas comunidades de investigação em sala de aula o que mais formação.
importa são as questões. E os erros são muito importantes, porque
quando cometemos um erro temos a oportunidade de vermos onde e Referências bibliográficas
como erramos e nos auto-corrigir. Geralmente, a partir dessa forma
de investigação surgem novas formas de percebermos as coisas em CORACINI, Maria José (org.). O jogo discursivo na aula de leitura:
geral” (Sharp, 1998). língua materna e língua estrangeira. Campina/SP: Pontes, 1995.
GERALDI, J.W. (Org.) O texto na sala de aula. São Paulo:Àtica,
Se se considerar que a professora trabalha numa “concepção 1997.
de linguagem como forma ou processo de interação social”, como _____________. Linguagem e ensino: exercícios de militância e di-
defende Travaglia, em que a linguagem se manifesta dependendo de vulgação. São Paulo: Mercado de Letras, 1996.
quem, quando e como se costuma utilizá-la, é possível acreditar-se LIPMAN, M.; Oscanyan F.S.; Sharp, A. M.. Filosofia na sala de
que, através da exteriorização, da expressão desses alunos, estes vão aula. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
adequando-se ao contexto escolar que se estabelecerá de fato, a ___________.A filosofia e o desenvolvimento do raciocínio. www.
interlocução, ou seja, não é fazendo calar aqueles que socialmente filosofiaparacrianças.com.br
não tem direito a voz que a escola vai organizar as interações comu- LORIERI, Marcos. Habilidades de pensamento. In: Educação para
nicativas, mas orientando-os, fazendo-os compreender que é neces- o pensar. São Paulo: Atta Mídia e Educação (VHS), 1998
sário desenvolver certas habilidades para que se fortaleça as relações SANTANA, Isabel Cristina. Metodologia. In: Educação para o pen-
de ensino-aprendizagem. Nesse caso, sem desprezar a abordagem sar. São Paulo: Atta Mídia e Educação (VHS), 1998
teórica que privilegia a linguagem enquanto interação social, talvez THEOBALDO, Cristina. Habilidades cognitivas. In: Educação para
uma metodologia de trabalho alternativo, como propõe Lipman, se- o pensar. São Paulo: Atta Mídia e Educação (VHS), 1998.
guido dos passos anteriormente citados, pudesse ajudar a professora
TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta
a organizar sua aula de forma que invertesse a ordem apresentada:
para o ensino de gramática no ensino de 1º e 2º graus. São Pau-
em vez das perguntas por ela encaminhada fossem elaboradas pelos
lo: Cortez, 1996.
alunos, pois: “A educação é uma experiência que precisa ser atrativa
WITTGENSTEIN, Ludwig. Os pensadores. São Paulo: Editora Nova
e apreciada. Ela pode ser muito estimulante quando é feita correta-
mente. Isto quer dizer que um novo relacionamento entre professores Cultural, 1999.
e alunos, um relacionamento mais colaborativo, mais eficiente, mais SHARP, Ann. Comunidade de investigação. In: Educação para o
cuidadoso do que vimos no passado” (Lipman, 1998). pensar. São Paulo: Atta Mídia e Educação (VHS), 1998.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 513


Lingüística e Filosofia da Linguagem:
uma relação de (des)encontros
José Roberto Alves Barbosa
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte

ABSTRACT: This paper aims to discuss the way Linguistics and Philosophy of Language are related along language studies.
PALAVRA-CHAVE: Filosofia da Linguagem, Lingüística, uso, ideologia.

0 – Introdução
1.4 – Filosofia Analítica
A relação entre a Lingüística, enquanto ciência da linguagem,
e da Filosofia da Linguagem, enquanto abordagem reflexiva em tor-
A Filosofia Analítica aponta para perspectivas deferentes de
no do significado destaca-se por uma série de acepções concernentes
perceber a linguagem. Em alguns casos sugere a analise introspectiva
ao alcance tanto de uma como de outra. O objetivo desse estudo é
dos conceitos, conforme defende Frege (1971), a ponto de se consta-
ressaltar as semelhanças e diferenças entre a Lingüística e a Filosofia
tar uma conceitografia matematizável da língua natural. Mas os prin-
da Linguagem, ressaltando as contribuições que cada um desses cam-
cipais estudos no âmbito analítico consideram os uso e funções da
pos de estudos têm dado às reflexões sobre os usos e funcionamentos
linguagem no contexto. Como aponta Wittgenstein, a linguagem é
da linguagem.
uma atividade que se realiza na compreensão que os usuários têm do
mundo, e conseqüentemente, dos jogos da linguagem.
1 – O Interesse do filósofo pela linguagem
2. Filosofia da linguagem e lingüística
Independente do campo de estudo, os filósofos, ao longo da
história do pensamento humano sempre demonstraram interesse pelo
Diante da diversidade e complexidade no âmbito dos campos
estudo da linguagem. Dentre esses ramos, Alston (1972) destaca:
dos estudos filosóficos, direciona para a utilização do termo “Filoso-
fias”. Essa postura evita a restrição da filosofia e reconhece suas
1.1 – A Metafísica
múltiplas funcionalidades no processo de construção do conhecimen-
Os filósofos sempre tiveram uma preocupação com os fatos to. No que diz respeito aos estudos lingüísticos, existe dificuldade
fundamentais dos aspectos básicos da linguagem que usamos para para a delimitação de investigação no próprio contexto filosófico.
falar a respeito do mundo. Para explicar tal relação, os pensadores Alguns estudiosos defendem fazer Filosofia da Linguagem, outros,
tentaram categorizar as entidades com suas respectivas representa- Filosofia Lingüística. Da mesma forma que a Filosofia, o termo “Lin-
ções. Platão (1973), em Crátilo, por exemplo, reflete sobre a naturali- güística”, talvez, merecesse o acréscimo do “s” de plural face às suas
dade e a convencionalidade dos nomes. Na República, ele diz: “sem- alterações e ramificações que se aviltaram ao longo da história.
pre que um determinado número de indivíduos tem um nome co- Abaixo, foram destacadas algumas definições de dicionários
mum, supomos que tenham também uma idéia ou forma correspon- terminológicos das áreas específicas da Filosofia e da Lingüística.
dente”. Esse problema acompanha todo o percurso da história filosó- As entradas apresentadas mostram a complexidade na definição do
fica, passando pelas diferentes acepções do modo de se ver o mundo, escopo dessas áreas de conhecimento:
pendulando da perspectiva idealista para a materialista, incluindo as
contribuições fenomenológicas. a) Filosofia da Linguagem – nome dado à tentativa geral de
compreender os componentes de uma linguagem efetiva
1.2 – A Lógica mente usada, a relação que o locutor discernente tem com
seus elementos e a relação que estes têm com o mundo (cf.
No estudo das inferências, a validação e o falseamento dos ar- Blackburn, 1997).
gumentos retóricos receberem tonalidade contundente, principalmente b) Filosofia Lingüística – designação não muito satisfatória
nos estudos de Aristóteles. Nos seus argumentos sofísticos, ele res- do método filosófico que consiste em tomar a linguagem, e
saltava a necessidade do reconhecimento da validação dos enuncia- não aquilo sobre o que a linguagem fala diretamente, com o
dos. Esse processo dependia da análise das premissas e de suas con- dado primitivo. A idéia chave é que só através de uma apre
clusões. Esse tipo de análise aponta para uma abordagem crítica no ciação correta do papel e dos objetivos dessa linguagem
tocante aos usos da linguagem. podemos vir a ter uma melhor concepção daquilo de que a
linguagem fala, evitando assim as simplificações e distorções
1.3 – Conhecimento apriorístico (cf. Blackburn, 1997).
c) Lingüística – Estudo da linguagem humana, mas considera
A Epistemologia tenta explicar a possibilidade e as formas de da na base da sua manifestação como língua (cf. Câmara,
conhecer ou apreender a realidade. Nesse contexto, há uma tendência 1977). É o estudo da língua com um sistema de comunica
de alguns filósofos para aspectos inatos do conhecimento. Descartes ção humano. A lingüística abrange um campo variado com
foi um árduo defensor da inerência exclusivamente humana da lin- diferentes abordagens e áreas de investigação, tais como a
guagem. Esse tema foi posteriormente ressaltado por Chomsky (1972) fonética, fonologia, sintaxe, semântica, pragmática, funções
numa abordagem gerativista, na qual a linguagem, caracteriza-se pelo da linguagem (cf. Richards et alli., 1996). Nos dias
seu aspecto produtivo, portanto, inato ao ser humano. atuais, após um período de fundação caracterizado por uma

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limita ção estreita e rigorosa do objeto “língua” e atuais percorreu caminhos diferentes daqueles trilhados pelo mestre
um recuo para aquém de fronteiras precisa, anexar genebrino e seus seguidores. Na medida em que as posturas pós-
agora a fala, o discurso, as relações da língua como o modernas invadiram as ciências, a Lingüística retornou às investiga-
indivíduo e o mundo, graças a métodos explícitos ções filosóficas. Esse retorno contribuiu para a humanização da ci-
rigorosos. Observa-se, portanto, em nossa época, a ência e para a percepção dos aspectos sociais da linguagem.
tentativa de elaborar modelos de produção, comuni A contribuição de Wittgenstein foi decisiva nos arraiais da
cação e compreensão dos discursos (cf. Debois et alli., 1973). comunidade científica no âmbito dos estudos da linguagem. Filóso-
fos lingüistas como Austin (1955) e Searle (1969) sofreram direta ou
De alguma forma, o percurso histórico da lingüística parte da indiretamente a influência da Filosofia Analítica. A língua não é só
publicação do Curso de Lingüística Geral de Ferdinand de Saussure descrição, a língua realiza, concretiza, faz. Através dos atos de fala,
(1916), o que demarca a inserção da Lingüística no rol das ciências. o homem revela sua intencionalidade para comunicar.
A preocupação de Saussure, inicialmente, era oferecer à Lingüística O etnógrafo Hymes (1972) expandiu essa noção através da
o estatuto de Ciência. Conseqüentemente, percebe-se, ao longo da chamada competência comunicativa, que concebia não só a compe-
obra que na verdade foi compilada pelos seus alunos, uma tendência
tência gramatical e inata de Chomsky, mas principalmente, a compe-
positivista/estruturalista, na qual, a linguagem é percebida como um
tência do usuário da língua fazer significar através da língua. Para
sistema de regras semelhantes, por exemplo, às do xadrez.
Wittgenstein (1985), a linguagem, enquanto atividade de ‘jogos’, é
Com Chomsky (1972), a Lingüística passa por um processo de
redirecionamento nos seus estudos. A partir dos princípios idealistas aquilo que o usuário percebe no seu mundo. Nessa perspectiva, cabe
de Platão, e do racionalismo de Descartes (1986), Chomsky advoga ao Filósofo da Linguagem e ao Lingüista descrever o que se pode
o inatismo da linguagem, e especialmente, a capacidade gerativa dos fazer com e através da língua.
falantes da língua. Nesse sentido, a linguagem é um atributo, exclusi- Nessa acepção fenomenológica, os atores sociais, intuitiva-
vamente, humano, demonstrado através da capacidade inata do fa- mente, constroem os significados na interação, na atualização do uso
lante, para gerar, a partir de um número finito de regras, um número da linguagem. Conforme aponta Marcondes (2000), o método do
infinito de frases. filósofo pode ser caracterizado pelo exame do uso da linguagem; as
Tanto no foco lingüístico de Saussure quanto no de Chomsky dificuldades que o filósofo enfrenta têm sua origem na linguagem e
havia uma preferência à abstração da linguagem. Para Saussure, a podem ser compreendidas em termos lingüísticos e resolvidas a par-
langue, o sistema da língua era passível de descrição, a parole, fala tir do esclarecimento da linguagem.
individual, constituía-se um problema insolúvel, uma vez que para o Por isso mesmo, a Lingüística hoje, resolve diferentes tipos de
estruturalismo lidar com a fala, que era o caos, o insustentável. Para o quebra-cabeças (cf. Kuhn, 1970). A Lingüística Aplicada, por exem-
gerativismo de chomskyano, interessava a competência gramatical do plo, que não arvora ser apenas uma aplicação da Lingüística, é defi-
falante, não o desempenho ou atuação no uso. Para Chomsky, as regras nida como a ciência que se preocupa com a resolução de problemas
da competência poderiam ser passíveis de categorização, no que diz de uso da linguagem (cf. Kaplan, 1980). Percebe-se, portanto, cada
respeito ao desempenho, ter-se-ia, porém, muito pouco a dizer.
vez mais, a preocupação, de cunho filosófico, lingüístico e/ou
Desde Saussure, considerado o pai da Lingüística Moderna,
lingüístico aplicado, com o processo de construção dos significados
os estudos da linguagem adquiriam uma tonalidade científica. Essa
em contextos institucionais ou fora dele.
preocupação científica em torno da linguagem produziu uma preo-
cupação em estabelecer respostas para quebra-cabeças no âmbito Mas a Lingüística e/ou Lingüística Aplicada não se restrin-
da comunidade científica de estudos lingüísticos (cf. Kuhn, 1970). gem somente à solução de problemas de cunho fenomenológico. O
A abordagem saussuriana, concernente à linguagem, enfoca as es- caráter dialógico e ideológico da linguagem tem suscitado vários
truturas do sistema lingüístico, relacionando a língua às regras do questionamentos por parte dos pesquisadores nessas áreas. Para
jogo de xadrez. Bakhtin (1997), defende que tudo que é ideológico possui um signi-
A Filosofia da Linguagem devido o seu compromisso com a ficado e remete a algo situado fora de si mesmo, tudo que é ideológi-
elaboração de questionamentos, atreveu-se a trabalhar com áreas de co é um signo e que sem signos não existe ideologia. No marxismo
pouco interesse para a Lingüística. Através dos estudos semânticos, filosófico/lingüístico de Bakhtin, a inquietação do filósofo e do lin-
a Filosofia da Linguagem trilhou percursos e pôs como estudo güista é dar conta de todas as profundidades e de todas as sutilezas
referencial àquilo que era desmerecido pela Lingüística. Néf (1995) das estruturas ideológicas “imanentes”, partindo da filosofia da lin-
ressalta que só a filosofia se interroga sobre as condições de possibi- guagem concebida como filosofia do signo ideológico.
lidade de significação. Por isso, a Filosofia da Linguagem se insere
numa dimensão crítica, na qual, esse tipo de semântica filosófica re- 4. Considerações Finais
flete sobre os laços entre o pensamento, a verdade e a significação.
Nesse sentido, Marcondes (2000), afirma que a Filosofia tem Como se pôde perceber da breve incursão anteriormente ex-
como tarefa central, embora não única, a análise do significado e
posta, há sempre uma inter-relação entre o pensamento filosófico e o
porque para que esta análise possa ser realmente elucidativa faz-se
lingüístico, enquanto áreas que buscam a construção do conheci-
necessário uma definição geral do significado – um modelo do que é
mento. Embora essa relação não seja assumida explicitamente, por
compreender o significado de uma expressão – que uma teoria do
razões metodológicas, na medida em que há uma tendência à
significado que estabeleça um tal modelo tem uma importância fun-
damental para a Filosofia. desmatematização da lingüística, percebe-se, conseqüentemente, uma
influência cada vez maior das reflexões filosóficas sendo inseridas
3. Usos da linguagem e ideologias nos campos dos estudos da Lingüística. Essa ciência, que se caracte-
rizava, inicialmente, por suas análises descritivas de estruturas da
É inegável o débito da Lingüística moderna a Ferdinand de linguagem, retorna à “casa materna”, absorvendo interesses semân-
Saussure. Não é por acaso que ele é considerado o pai da ciência ticos que anteriormente eram inerentes à Filosofia. Nesse prisma, o
moderna dos estudos da linguagem. Contudo, a Lingüística dos dias contexto imediato tende a ser considerado para a resolução de pro-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 515


blemas de uso da linguagem, bem como o contexto dialético para a HOLMES, J. (eds.) Sociolinguistics. Hardmondsworth: Penguin,
elucidação de ideologias socialmente construídas. 1972.
KAPLAN, R.B. (org.) On the scope of Applied Linguistics. Rowley,
Mass.: Newbury House, 1980.
5. Referências Bibliográficas KUHN, T. The structure of scientific revolutions. Chicago: The
University of Chicago Press, 1970.
ARISTÓTELES. Works. Oxford, Claredon Press, 1928-1954. MARCONDES, D. Filosofia, linguagem e comunicação. 3ª ed. São
ALSTON, W. P. Filosofia da linguagem. Rio de Janeiro: Zahar, 1972. Paulo: Cortez, 2000.
AUSTIN, J.L. How to do things with words. Oxford: Oxford NÉF, F. A linguagem: uma abordagem filosófica. Rio de Janeiro:
University Press, 1955. Zahar, 1995.
BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. 8ª ed. São Pau- PLATÃO. Teeteto/Crátilo. Vol. IX de Diálogos. Belém: Ed. Univer-
lo: Hucitec, 1997. sidade Federal do Pará, 1973.
BLACKBURN, S. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2000.
Zahar, 1997. RICHARDS, J. Dictionary of Language Teaching & Applied
CÂMARA, M. Dicionário de Lingüística e Gramática. Petrópolis: Linguistics. 6th. London: Longman, 1996.
Vozes, 1977. SAUSSURE, F. Course de Linguistique Générale. Paris: Payot, 1916/
CHOMSKY, N. Language and mind. New York: Harcourt Brace 1972.
Jovanovich, 1972. SEARLE, J.R. Speech acts: an essay in the philosophy of language.
DEBOIS, J. Dicionário de Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1977. Cambridge: Cambridge University Press, 1969.
DESCARTES, R. Discurso do método. São Paulo: Abril Cultural, SEARLE, J.R. (ed.) The philosophy of language . Oxford: Oxford
1986 University Press, 1971.
FREGE, G. Estudios sobre semantica. Barcelona: Ariel, 1971. WITTGENSTEIN, L. Investigações Filosóficas. São Paulo: Abril
HYMES, D. ‘On communicative competence’. In. PRIDE, J.B. and Cultural, 1985.

516 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Editoriais: polêmica versus ponderação
Helenio Fonseca de Oliveira
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Este trabalho pretende contribuir para o estudo da argumenta- Charaudeau (1992:779-838) –, a interpretação mais plausível, a nos-
ção na imprensa brasileira. Visa especificamente: (1.o) a demonstrar so ver, é que falta informação ao locutor para tomar posição. É como
que é cada vez menor a preocupação dos editorialistas do JORNAL se a esse tipo de argumentação faltasse um dos ingredientes da argu-
DO BRASIL e da FOLHA DE SÃO PAULO em persuadir os leito- mentação completa, a saber, a tomada de posição. É de esperar que
res da “veracidade” das teses “defendidas” em tais textos; (2.o) a a atitude “ponderada” (de quem fica neutro em relação á proposta,
identificar – ou pelo menos hipotetizar a respeito – do significado pesando “prós” e “contras”) seja a exceção, e não a regra.
dessa tendência.
Ora, os editoriais dos órgãos de imprensa de nível nacional
Segundo Charaudeau (l992: 783), para que haja argumenta- – tanto na França quanto no Brasil, a julgar pelo que diz
ção é preciso que exista: Charaudeau e pelo que observamos no JORNAL DO BRASIL e
na FOLHA DE SÃO PAULO – caminham ou para uma
• “uma proposta cuja legitimidade seja possível pôr em questão”; peseudopersuasão em defesa de teses ora consensuais ora vagas,
• “um indivíduo que tome posição relativamente a esse ou para a pura e simples ponderação: atitude, como vimos, de
questionamento”; pesar “prós” e “contras”, sem tomar posição. Repetimos:
• um indivíduo, grupo, instituição etc. – “alvo da argumenta problematizam sem verdadeiramente persuadir.
ção” – a quem o primeiro deseja persuadir.
No editorial do LE MONDE de 19 de janeiro de 1998, intitulado
Em outro trabalho – Charaudeau (1997) – aponta o autor a “L’urgence sociale”, para citar um exemplo francês, a tese é que “di-
natureza paradoxal no contrato comunicativo da mídia, resultante ante da urgência social, os que nos governam estão intimados a in-
de um triplo compromisso: com a “veracidade” da informação, com ventar [uma solução para o problema do desemprego]” [“Face à
a cidadania e com a faceta comercial da máquina midiática. l’urgence sociale, ceux que nous gouvernent sont sommés
d’inventer.”]
Com a “veracidade”, porque o público espera que haja uma
ralação de transparência entre a “realidade”, isto é, os fatos em esta- O alvo da crítica – aliás uma crítica tão branda que não chega
do bruto, e o conteúdo da informação veiculada. Faltar a esse com- a comprometer a face do criticado – é, nesse caso, uma entidade vaga
promisso é comprometer a confiabilidade do órgão veiculador. e abstrata chamada “governo”, a qual, embora como instituição não
Distorcer é diferente de mentir. Se morreram três pessoas num aci- possua os atributos de abstração e vaguidade, como actante, no dis-
dente e o noticiário diz que morreram trinta, trata-se de informação curso jornalístico, com freqüência os adquire.
falsa, e não da distorção “natural” da mídia. Distorcer é permitido,
mas dentro de certas regras, uma das quais, é claro, é não assumir Nos editoriais do JORNAL DO BRASIL da FOLHA DE SÃO
que se está distorcendo. PAULO se nota, ainda que de maneiras diferentes, uma tendência ao
que estamos denominando pseudopersuasão.
O compromisso com a cidadania – diz o autor – decorre do
fato de a imprensa (seja a televisiva, a radiofônica ou a escrita) ter Rosa (1999) registra nos editoriais do JB que analisou (de no-
uma “missão” educativa, isto é, ser porta-voz da moral social. vembro e dezembro de 1994) uma incidência significativamente maior
do que nos da FOLHA (do mesmo período) do que ele denomina
Quanto ao compromisso comercial, é evidente: a mídia léxico engajado, ou sejam, itens lexicais pejorativos e meliorativos.
radiofônica e a televisão vivem de audiência e o jornal, de seus anún- Nascimento (1999) constata uma baixa incidência de concessões e
cios, que sem leitores deixarão de existir. restrições em editoriais do JB cujas datas vão de outubro de 1996 a
novembro de 1997.
Ainda segundo Charaudeau (1997), nos comentários da im-
prensa francesa hodierna de nível nacional (isso não vale para os Imaginemos uma escala que vá da argumentação tipicamente
órgãos midiáticos de província) existe problematização sem que demonstrativa à tipicamente polêmica, segundo a classificação de
exista persuasão, o que se deve, segundo ele, ao triplo compromisso Charaudeau (1992:779-838), que entende como demonstrativa a que
de que acabamos de falar. A mídia se vê numa espécie de dilema. apresenta um alto grau de apelo à razão do interlocutor (compromis-
Informar por informar não faz sentido. O comentário da informação so com a “paralogicidade”), como faz o geômetra ao demonstrar um
é a razão de ser desta e comentário implica juízos de valor (cf. preo- teorema, e como polêmica a que, ao contrário, embora apelando
cupação com a moral da sociedade), logo é preciso problematizar. também à razão (pois do contrário não seria argumentação) o faz de
modo menos intenso, com forte dose de emocionalização dos argu-
Ocorre que, quando problematizamos, isto é, quando enunci- mentos, num clima mais passional.
amos aquela “proposta cuja legitimidade seja possível pôr em ques-
tão”, o normal é tomarmos posição com relação a ela. É próprio da Os editoriais do JORNAL DO BRASIL se aproximariam mais
comunicação humana – lembra o autor – que o locutor procure trazer do extremo “polêmico”, ao passo que os da FOLHA DE SÃO PAU-
para seu universo mental o interlocutor. Quando isso não ocorre, LO ficariam, comparativamente, mais próximos à extremidade “de-
como no tipo de argumentação que ele denomina ponderada – cf. monstrativa”. Note-se que a menor incidência de léxico engajado é

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 517


um índice de “demonstratividade”, ao passo que um baixo índice de as que costumam ser proferidas em enterros, cerimônias de formatura,
concessões e restrições passa a impressão de atitude “convicta”, pou- de casamento e outras, sentimo-nos tentados a perguntar “muito bo-
co dialética, própria de uma argumentação mais passional. nito, mas e daí?”. Em tais textos haveria argumentação apenas no
sentido de que contêm uma tese e argumentos orientados para ela,
Embora com estilos diferentes, no entanto – repetimos – os mas não se percebe neles um esforço de persuasão.
dois órgãos tendem a praticar a pseudopersuasão.
A tese se enquadra, nesses casos, numa visão generalizante,
O JB – altamente comprometido com o governo federal – de- sendo, portanto, muito abstrata e por isso fácil de a ela aderirmos sem
fende teses governistas, não propriamente para persuadir o leitor, pelo nos comprometer. Trata-se muitas vezes de asserções de que se espe-
menos não prioritariamente para isso, e sim para marcar sua posição ra que nenhuma pessoa de bem discorde, não preenchendo, por con-
pró-governo. O baixo índice de concessões e restrições é um sinal de seguinte, uma das condições para que haja a verdadeira argumenta-
pouco diálogo. É estranho que quem deseja persuadir – e seria de ção segundo Charaudeau (1992), ou seja, a existência de uma pro-
esperar que um argumentador o desejasse – não procure criar a empatia posta a cujo respeito possa haver questionamentos. É o que se obser-
com o interlocutor que o recurso da concessão proporciona. Um tex- va, por exemplo, neste fragmento antológico de Rui Barbosa:
to pobre em tal recurso passa a impressão de que pretende persuadir
quem já está persuadido, o que é o mesmo que não querer persuadir A PÁTRIA
ninguém.
A pátria não é ninguém: são todos; e cada qual tem no
Quanto aos editoriais da FOLHA, têm um modo de argumentar seio dela o mesmo direito à idéia, à palavra, à associação. A pátria
que lembra um pouco os do LE MONDE, ora defendendo teses não é um sistema, nem uma seita, nem um monopólio, nem uma for-
consensuais e voltadas para o bem comum (lugares-comuns), ora mos- ma de governo: é o céu, o solo, o povo, a tradição, a consciência, o
trando adesão limitada a uma proposta, chegando quase à argumenta- lar, o berço dos filhos e o túmulo dos antepassados, a comunhão da
ção ponderada – como no editorial de 13.04.1995, intitulado “O Di- lei, da língua e da liberdade. Os que a servem são os que não inve-
ploma”, que começa citando a opinião do Ministro Paulo Renato de jam, os que não infamam, os que não conspiram, os que não suble-
que não há necessidade de diplomas e ao final conclui que essa tese de vam, os que não desalentam, os que não emudecem, os que não se
modo geral é válida, exceto “em uma área como a saúde”: acobordam, mas resistem, mas ensinam, mas esforçam, mas pacifi-
cam, mas discutem, mas praticam a justiça, a admiração, o entusias-
O DIPLOMA mo. Porque todos os sentimentos grandes são benignos e residem
originariamente no amor. No próprio patriotismo armado, o mais
O ministro da Educação, Paulo Renato Souza, defende difícil da vocação, e a sua dignidade, não está no matar, mas no
uma tese polêmica para melhorar o nível de ensino das uni- morrer. A guerra, legitimamente, não pode ser o extermínio, nem a
versidades: acabar com a exigência de diploma para o exercí- ambição: é simplesmente a defesa. Além desses limites, seria um
cio de todas as profissões. flagelo bárbaro, que o patriotismo repudia.
(... ) por ser tão polêmica, a tese do ministro merece uma
reflexão mais detida. É evidente que um simples pedaço de Apud LIMA, Rocha & CÂMARA JR., J, Mattoso. Cur-
papel com algumas inscrições em letras góticas e um carimbo so da língua pátria: antologia. 7. ed. Rio de Janeiro, Briguiet,
do ministério não garante que determinado profissional está 1959. p. 222.
capacitado a exercer suas funções. Diplomas podem ser obti-
dos por meio dos mais diversos estratagemas. Já o conheci- O tipo de argumentação praticado pela FOLHA (bem como pelo
mento, este só pode ser obtido com muito estudo. E conheci- LE MONDE), distingue-se dessa oratória vazia apenas pela visão
mento é o que importa. particularizante, mas assemelha-se a ele pela ausência de verdadeira
(... ) persuasão. O denominador-comum entre os dois casos está na
A proposta, por outro lado, também encerra certos ris- vaguidade. Vaguidade da tese num caso e do alvo da crítica, no outro.
cos que devem ser ponderados. A extinção da exigência de
diploma em uma área como a saúde, por exemplo, pode abrir A julgar pelo que aconteceu com a velha retórica, por culpa de
ainda mais espaço para o charlatanismo, com risco de vida sua faceta “ornamental”, podemos afirmar que o editorial é um gêne-
para a população. ro em crise, arriscando o prognóstico de que tende ou a desaparecer
De qualquer forma, no país das regulamentações e de- ou a transformar-se radicalmente. Uma pesquisa interessante (fica a
cretos que é o Brasil, desburocratizar um pouco as normas sugestão para quem quiser fazê-la) seria o levantamento do número
relativas ao exercício das profissões seria um belo avanço. de leitores que efetivamdente lêem os editoriais, dentro do universo
de leitores de cada órgão de imprensa.
Esse processo lembra um pouco o mecanismo que provocou o
desprestígio da retórica. Com o tempo a faceta da retórica como “arte Estaria esse fenômeno da baixa “persuasividade” dos editori-
de convencer” foi dando lugar à sua faceta de “arte de bem falar” ais ligado a uma possível homogeneização cultural no universo das
(estilo ornado), de modo que esta acabou prevalecendo e caindo no empresas midiáticas de grande porte (de alcance nacional), à seme-
discurso pelo discurso. Como o que não tem função tende a desapa- lhança do que ocorre, como diz Bernárdez (1982:149-150), nas cha-
recer, a retórica acabou caindo no descrédito e, em grande parte, no madas “sociedades em pequena escala”?
esquecimento, até ser reabilitada, há poucas décadas.
Existe, segundo ele, uma correlação entre homogeneidade cul-
Boissinot (1994:15) lembra que no verbete “Colégio” da Encyclopédie tural e baixo uso de itens lexicais como as conjunções adversativas,
Française, escrito por d’Alembert, a retórica é tratada de maneira por exemplo, sabidamente “argumentativas”, a ponto de no léxico de
pejorativa. certas línguas ágrafas elas simplesmente não existirem.

Diante de uma peça de oratória do tipo “discurso ornado”, como “...cuando una lengua de este tipo sufre un cambio cultu-

518 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


ral importante [acrescenta ele] por influencia de otra cultu- Lacoste, 1994.
ra más compleja, entre los elementos que se toman en CHARAUDEAU, Patrick. Grammaire du sens et de l’expression.
préstamo suelen estar, precisamente, las conjunciones Paris, Hachette, l992.
coordinativas. Así sucede el la historia del quechua, del –––. Le discours d’information médiatique. Paris, Nathan, 1997.
swahili, etc.” NASCIMENTO, Karina Chrysóstomo de Sousa. A macroestrutura
argumentatriva de editoriais do JORNAL DO BRASIL. Rio de
Referências bibliográficas Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 1999. Dissertação de
Mestrado.
BERNÁRDEZ, Enrique. Introducción a la lingüística textual. Madrid, ROSA, Paulo César Costa da. Pejorativos e meliorativos no “JB” e
Espasa-Calpe, 1982. na “Folha”. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 1999.
BOISSINOT, Alain. Les textes argumentatifs. Toulouse, Bertrand- Dissertação de Mestrado.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 519


“É agora ou já” – a disjunção
no texto publicitário
Rosane Santos Mauro Monnerat
Universidade Federal Fluminense

ABSTRACT: Considering the semantic notion of connection (Van Dijk:1977) as a fundamental topic for the construction of propositions, this work - based
on advertising texts taken from written media – analyses disjunction mechanisms under Ducrot’s argumentative macrosyntax (1977) and Charaudeau’s
semiolinguistic logic relations (1992), focusing not only inclusive and exclusive, but also argumentative and logic disjunction.
PALAVRAS-CHAVE: Conexão, Disjunção, Texto Publicitário

1. Considerações iniciais Presentes (CLÁUDIA, maio de 1999)


(2) “Para um investimento seguro assine com a Globo. Ou
Este trabalho apresenta os resultados do projeto de pesquisa
você prefere assinar um contrato de risco?” (ÉPOCA, 07-06-99)
Estudo das relações interfrásticas na construção do texto publicitá-
rio – Implicações semântico-discursivas, realizado na Universidade
2.2 A disjunção lógica
Federal Fluminense (UFF).
No estudo das relações interfrásticas, analisa, dentre os meca- Os operadores de disjunção lógica introduzem argumentos
nismos de junção, o recorte disjunção, apoiando-se na Macrossintaxe alternativos que levam à mesma conclusão1 : ou, ou então, quer...quer,
Argumentativa (Ducrot,1977) e no Estudo Semiolingüístico das Re- seja...seja etc.
lações Lógicas (Charaudeau,1983, 1992). Privilegia o relator ou, no Como se sabe, os lógicos propõem uma distinção entre
estudo da disjunção, focalizando o ou inclusivo e o ou exclusivo e disjunção exclusiva e disjunção inclusiva. Esta admite três interpre-
destaca, ainda, a diferença entre a disjunção lógica e a argumentativa, tações, de acordo com a verdade de cada uma das asserções postas
para revelar os efeitos semântico-discursivos que se depreendem em presença: a primeira é verdadeira, a segunda é falsa / a primeira é
desses enunciados e que contribuem para a construção da mensagem falsa, a segunda é verdadeira / a primeira é verdadeira, a segunda é
de sedução/persuasão do discurso publicitário. verdadeira; aquela admite duas interpretações: a primeira é verda-
deira, a segunda é falsa / a primeira é falsa, a segunda é verdadeira.
A disjunção, como mecanismo de conexão interfrástica, reco- A distinção, tal como é proposta pelos lógicos, não pode ser
bre uma área sintático-semântica de interesse para os estudos da aplicada à linguagem, já que esta é estudada em seu funcionamento
Análise do Discurso. real de comunicação2 .
A operação lógica da disjunção designa, portanto, o tipo de
2. Mecanismos de disjunção junção que articula seqüencialmente frases que exprimem conteúdos
alternativos. Combina proposições por meio do operador ou, que
Ducrot, em sua Semântica da Enunciação, distingue dois tipos
pode ser inclusivo, correspondendo ao latim vel, e significando um e
básicos de elementos de conexão interfrástica: os conectores de tipo
outro, possivelmente ambos (= e/ou), ou exclusivo, quando
lógico e os encadeadores de tipo discursivo.
corresponde ao latim aut, excluindo necessariamente a verdade de
A função dos conectores lógicos é apontar o tipo de relação
uma das proposições, em proveito da verdade da outra.
lógica que o locutor estabelece entre o conteúdo de duas proposi-
ções. Nesse caso, trata-se de um único enunciado, resultante de um
A disjunção inclusiva só é verdadeira se uma das proposi-
ato de fala único, já que nenhuma das proposições constitui objeto
ções, ou ambas, forem verdadeiras (p V q). Emprega-se nos casos
de um ato de enunciação compreensível independentemente da ou-
em que os fatos são apresentados como compatíveis. Trata-se de uma
tra, ou seja, as duas orações estão ligadas num único ato de enunciação,
asserção em que, pelo menos, um item de uma série foi, ou pode ser
correspondente a uma única intenção - é um caso de subordinação
realizado:
semântica. Trata-se do que Ducrot considera frases ligadas.
(3) “Viver ou sonhar? Viver e sonhar.” Casa Cláudia (VEJA
Os encadeadores discursivos, por sua vez, caracterizam o que
RIO, 17 - 05 99)
Ducrot chama de coordenação semântica. São responsáveis pela
(4) “Peugeot 405. Mais barato ou mais carro? (Jornal do Bra-
estruturação de enunciados em textos, por meio de encadeamentos
sil 10- 11– 98)
sucessivos, cada um dos enunciados resultante de um ato de fala
diferente. O que se afirma não é a relação do tipo lógico existente
entre o que é assegurado por duas proposições; produzem-se, isto
sim, dois ou mais enunciados distintos, encadeando-se o segundo
1 Em “(ou) A ou B”, há uma terceira asserção (geralmente implícita) com
sobre o primeiro, considerado tema.
uma adversativa: “mas C”. A e B podem ser mutuamente exclusivos, mas
orientam-se ambos, argumentativamente, para C, ou para uma conclusão
2.1 A disjunção argumentativa apoiada em C: “Entre ou saia, mas não fique aí parado na porta”.
2 Não se pode explicar o comportamento discursivo de um conector como
Trata-se da disjunção de enunciados resultantes de dois atos
ou...ou, com base em operações lógicas. Uma seqüência absurda como “Ou
de fala distintos, em que o segundo procura provocar o leitor/ouvinte São Paulo é o maior parque industrial da América Latina, ou Fernando
para levá-lo a modificar sua opinião ou, simplesmente, a aceitar a Henrique Cardoso é o presidente da Argentina” é logicamente perfeita, já
opinião expressa no primeiro, e não da disjunção lógica entre o con- que a primeira proposição é verdadeira e a segunda é falsa, entretanto, o
teúdo de duas proposições: enunciado em questão é inaceitável, pois não atende a uma condição
(1) “Na sua lista de presentes, não esqueça de incluir um lindo discursiva elementar: a de que pelo menos um elemento de cada uma das
vaso. Ou você não pretende continuar ganhando flores?” H Stern asserções seja SEMANTICAMENTE IDÊNTICO a um dos da outra.

520 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


(5) “O que você prefere: o verde ou a praia? Em Itaipu, fique ções discursivas. Como na conjunção, é preciso que haja duas
com os dois” Patrimóvel (O Globo, 15-11-98) asserções e que, pelo menos, um elemento de uma das asserções seja
Nesses casos, o alocutário interpreta a pergunta como uma semanticamente idêntico a um dos da outra. Esses elementos podem
série de alternativas compatíveis. Esse sentido é explicado pela ex- ser ações, características, ou seres. Pressupõe a existência de uma
pressão e/ou. asserção genérica (geralmente implícita e suscetível de ser introduzida
por uma adversativa) que constitui um eixo semântico sobre o qual
A disjunção exclusiva indica que somente uma das proposi- se encontram os termos disjuntos, os quais devem pertencer ao mes-
ções é verdadeira, nunca ambas (p≠q). Os fatos devem existir em mo domínio semântico (que corresponde à asserção genérica, pres-
mundos diferentes, podem ser similares, no sentido de que são “al- suposta em toda a operação da disjunção) e devem-se apresentar numa
ternativas” (daí a nomenclatura da Gramática Tradicional) com rela- relação de oposição paradigmática. O eixo semântico sobre o qual se
ção ao mesmo “tópico de conversação”: dá a oposição pode ser de natureza lexical, cotextual, ou contextual.
O sujeito falante ignora a seleção a operar, ou seja, o
(6) Irei ao cinema ou à casa de minha tia. enunciador deve ignorar alguma informação, ignorância essa que pode
(7) Você vai viajar de avião ou de navio? manifestar-se lingüisticamente, através do emprego da interrogação
Segundo Van Dijk (1977:64), a exclusão pode ser acidental (direta, ou indireta), do imperativo, de uma construção hipotética, ou
ou necessária. Essa última é baseada na inconsistência conceptual ou de construções com valor declarativo, que exprimem alternância no
lógica, ou seja, referindo-me a (7), é impossível viajar de avião ou tempo:
navio simultaneamente. O mesmo aplica-se a propriedades contradi- (10) “Foi o pão que diminuiu ou a salsicha que cresceu?”
tórias. A exclusão acidental, por sua vez, baseia-se em intenções in- Longuete Salsicha Seara (CLÁUDIA, outubro de 1998)
compatíveis, com respeito a ações, mas apenas durante um certo pe- (11) Eu me pergunto se foi o pão que diminuiu ou a salsicha
ríodo de tempo, como ocorre em (6): durante à tarde, por exemplo, que cresceu.
“eu posso ir ao cinema e à casa de minha tia”, contanto que o faça em (12) “Me ame ou me odeie. Mais ou menos é que
diferentes períodos de tempo. A exclusão, portanto, deve ser inter- incomoda”Free (VEJA, 25-11-98)
pretada em relação ao mesmo ponto na linha de tempo. (13) Quer você queira ou não, vai ser assim.
(14) Por uma razão ou por outra, eu espero um sim ou um não.
Nos exemplos apresentados até agora (em relação à disjunção A terceira asserção, geralmente implícita e que pode ser
lógica), a ordenação das orações é livre, ou melhor, a disjunção é explicitada através do relator mas, corresponde ao argumento mais
comutativa. No entanto, há um tipo de disjunção que tem a mesma forte, exercendo papel secundário a parte explícita do enunciado, como
estrutura assimétrica das condicionais: ocorre, por exemplo, em (12): “Me ame ou me odeie” (MAS exprima
algum sentimento, a indiferença é que me incomoda).
(8) “Ou você dá Keds. Ou ela troca de par.”
(CARAS, 04-06-99) São conectores que marcam a disjunção:
ou (hierarquia entre os elementos):
Com efeito, (8) pode ser parafraseada por uma condicional e (15) “Agora ou nunca”. Toque a campainha (JORNAL DO
a negação: “Se você não der Keds, ela troca de par”. Assim, a inter- BRASIL, 09-11-98)
pretação do ou assimétrico baseia-se no fato de que o conseqüente é (16) “É agora ou já”. Banco Real (VEJA, 25-11-98)
dependente da negação do antecedente. (17) “É agora ou agora”. Banco Safra (ÉPOCA: 07-06-99)
Vale observar, ainda, que há casos de disjunção em que os ou...ou (efeito de focalização sucessiva, autonomização dos
fatos propriamente ditos podem ser desconhecidos, devendo ser in- elementos):
feridos a partir de outra informação, como ocorre em: (16) “Caspa. Ou você encara o problema de frente. Ou carre-
ga o problema nas costas” Triatop Johnson (VEJA, 28-11-98)
(9) Pedro está em casa, ou as luzes não estariam acesas. Para exprimir a disjunção sem hierarquia, têm-se as marcas
A leitura desse enunciado permite chegar a duas conclusões seja...seja, ora...ora, por vezes...por vezes, quer...quer, de que não
inferidas das evidências apresentadas: trataremos neste trabalho.

(a) Pedro está em casa para acender as luzes, Para Charaudeau (1992:799), o emprego de ou...ou insere-se
(b) ou alguém acendeu as luzes. num raciocínio dedutivo ou explicativo, que coloca em oposição duas
relações argumentativas, deixando a possibilidade de escolher entre
Sweetser (1990:94) considera epistêmico o emprego de ou, as duas, ou mostrar a incompatibilidade que resultaria da conjunção
em frases como (9). A compreensão do enunciado envolve a noção das mesmas.
de “conhecimento de mundo partilhado”, isto é, a noção de tópico de
conversação, ou tópico de discurso necessária para a conexão de Pode referir-se:
sentenças: enquanto um dos elementos disjuntos deve ser verdadeiro - a uma simples incompatibilidade:
(em algum mundo atual, ou pretendido), ambos disjuntos devem es- (17) “Celulite. Ou você cuida. Ou esquece...” Ana Pegova
tar conectados com o mesmo tópico de conversação (Van (CARAS, 04-06-99)
Dijk,1977:66). - a uma escolha entre positivo e negativo:
(18) “Ou você tem ou não tem”. Chivas Regal scotch (VEJA,
2.3 A disjunção na ótica de Charaudeau 21-11-98)
- a uma escolha entre duas negativas (dilema negativo):
A disjunção não é focalizada pela Tradição Gramatical. Fala- (19) Ou reduzimos seu salário, ou você aumenta sua carga
se na conjunção ou, incluindo-a entre as coordenativas, para expres- horária de trabalho.
sar alternância. No entanto, a disjunção é uma relação que possui - a uma escolha entre dois positivos (dilema positivo):
características próprias. (20) Ou aumentamos seu salário e você passa a ganhar mais,
Para que a disjunção ocorra, são necessárias certas condi-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 521


ou reduzimos sua carga horária e você disporá de mais tempo livre. no conteúdo significativo da mensagem. Há uma relação de causali-
O valor positivo ou negativo da “escolha” dependerá, evi- dade implícita. Nesses casos, a disjunção tem a mesma estrutura
dentemente, do ponto de vista dos interlocutores. Na propaganda assimétrica das condicionais, já que as asserções em contato podem
comercial, por exemplo, propõe-se sempre uma escolha entre positi- ser parafraseadas por uma condicional e a negação. A interpretação
vo e negativo: “Compre seu carro novo agora, ou pagará mais caro do ou assimétrico baseia-se no fato de que o conseqüente é depen-
com a nova tarifa”, o que equivale a dizer: “se você comprar agora, dente da negação do antecedente.
terá benefícios, o que não ocorrerá se deixar para depois”. Os enunciados não comutativos são mais freqüentes que os
comutativos, em função da escolha entre positivo e negativo, tão
O relator ou apresenta outros valores semânticos (efeitos marcada nos textos publicitários. Essa escolha obviamente é
contextuais): direcionada para o pólo positivo, ancorado na expectativa de con-
(21) Proposta indecente ou indecente proposta. (equivalência) quista dos “sonhos de consumo”.
(22) Para a carreira que escolhi, acho que havia 20 ou 30 Assim, ao aproveitar-se dessa necessidade instintiva do ser
vagas. (aproximação) humano de “busca” do que lhe dá prazer, bem-estar e saúde, a publi-
(23) No vestibular, acho que é tudo ou nada. (oposição) cidade projeta o receptor num mundo imaginário e não real, próximo
(24) Destruímos a inflação ou ela nos destrói. (conseqüência) ao sonho, condizente com a ideologia da publicidade - Contrato do
Maravilhoso - que sugere a mudança de perspectiva do pólo do fa-
zer-crer para o do dever-fazer.
3. Conclusão
4. Referências bibliográficas
Nessa pesquisa, privilegiamos a relação interfrástica expres-
sa por meio da disjunção. CHARAUDEAU, P. Une analyse semiolinguistique du discours. In:
Como marca formal da expressão da disjunção, a pesquisa re- Langages no 117, Les analyses du discours en France, Paris,
velou a prevalência absoluta do ou, que se apresenta isolado ou repe- Larousse, mars, 1995.
tido. O ou isolado demonstra a hierarquia entre os elementos disjuntos ———. Les discours publicitaire, genre discursive. In: La publicité:
e o ou repetido, o efeito de focalização sucessiva, autonomização masques et mirrois, Mscope no 8, CRDP de Versailles, 1994.
dos elementos. ———. Grammaire du sens et de l’expression. Paris: Hachette,1992.
A disjunção argumentativa apresenta índice de ocorrências DUCROT, O. O dizer e o dito. Campinas: Pontes, 1987.
inferior ao da disjunção lógica. Isso talvez se explique pelo caráter ———. Dizer-não dizer, princípios de semântica lingüística. São
manipulador e de persuasão/sedução do texto publicitário, em que Paulo:Cultrix, 1977.
não convém polemizar com o destinatário, mas sim “capturá-lo”, para FÁVERO, L. O processo de coordenação e subordinação - uma pro-
levá-lo a adquirir o produto. Esse tipo de disjunção caracteriza-se posta de revisão. In: Lingüística aplicada ao ensino do portu-
por ser sempre assimétrica, ou seja, nunca é comutativa, já que se guês. 2ª ed., Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992.
trata de duas proposições, resultantes de dois atos de enunciação KOCH, I. V. A articulação entre orações no texto. In: Cadernos de
diferentes, em que a segunda toma a primeira como tema. estudos lingüísticos, Campinas, (28):9-18, Jan./Jun. 1995.
A disjunção lógica apresenta-se em suas duas modalidades: a MONNERAT, Rosane S. M. Uma leitura semiolingüística dos
inclusiva e a exclusiva, com uma ligeira preponderância da exclusi- conectores e e se no texto publicitário. Tese de Doutorado apre-
va sobre a inclusiva, o que já era de se esperar, dado o caráter do sentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação em Le-
texto publicitário, que coloca sempre o receptor diante de uma esco- tras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1998.
lha entre positivo e negativo, ressaltando o aspecto positivo (obvia- OLIVEIRA, Helênio Fonseca de. Os conectores da disjunção. In:
mente o ponto onde a escolha recairá), através dos benefícios e van- Cadernos de estudos lingüísticos, Campinas, (28): 45-58, Jan./
tagens que o produto pode oferecer. Jun. 1995.
Observa-se que a disjunção inclusiva é sempre comutativa, SWEETSER, E. From etymology to pragmatics. Cambridge:
simétrica, ou seja, as duas partes do enunciado são cambiáveis, sem Cambridge University Press, 1990.
prejuízo do sentido. Já a disjunção exclusiva pode ser comutativa, VAN DYJK, T. A. Text and context. Explorations in the semantics
ou não. Não é comutativa quando a disposição das partes interfere and pragmatics of discourse. London: Longman, 1977.

522 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Análise do discurso publicitário no gênero feminino
Sumaia Sahade Araújo
Faculdade Integrada da Bahia-FIB
Universidade Salvador-Unifacs

ABSTRACT: Publicity discourse aims at promoting interaction in which present ideology is reproduced in a social sample, reflecting the process and
conditions of the production of enunciation. The choice of linguistic forms and arguments is determined by the image which the speaker makes of the
receiver. The intent is to identify the constitution of this discourse.
PALAVRAS-CHAVE: Lingüística - análise - discurso - argumentação

A teoria da Análise do Discurso surgiu em uma conjuntura seus componentes uma ou várias formações discursivas; essas, por
política, filosófica e psicanalítica que permeava as regiões do conhe- sua vez, provêem de condições específicas e determinam o que pode
cimento na França dos anos 68-70. Esse projeto de análise se inscre- e o que deve ser dito. O sentido de uma palavra se constitui no inte-
via em um objetivo político que utilizou o arcabouço científico da rior da formação discursiva em que ocorre, de acordo com as rela-
lingüística como meio para abordagem da política. Pêcheux e Fuchs ções que mantém com outras palavras da mesma formação discursiva.
(1990) apontam para as seguintes regiões do conhecimento sobre A Análise do Discurso, portanto, postula a inconsciência dos sujei-
cuja articulação a Análise do Discurso se institui: a) o materialismo tos envolvidos em uma interação discursiva, porque os sujeitos ocu-
histórico, como teoria das formações sociais e suas transformações, e pam posições pré-estabelecidas pela formação social a qual perten-
da ideologia; b) a lingüística, teoria dos mecanismos sintáticos e dos cem, e enunciam um discurso já dito, não sendo eles a origem do seu
processos de enunciação; c) a teoria do discurso, como teoria da discurso o qual é produzido segundo as condições sociais e ideoló-
determinação histórica dos processos semânticos. Pêcheux (1990) gicas determinantes e dominantes.
sintetizou em três etapas o percurso evolutivo da Análise do Discur- Para ilustrar a constituição de um processo enunciativo, esco-
so: a primeira procura definir o caráter institucional do discurso; as lhemos o discurso publicitário que por representar um aparelho ide-
seqüências discursivas são analisadas a partir de um espaço discursivo ológico institucional e por ser um veículo de comunicação social,
que são as condições de produção. A segunda etapa caracteriza-se busca a interação, reproduzindo a ideologia vigente em um recorte
pela introdução do conceito de formações discursivas oriundas de social, refletindo, dessa forma, o processo e as condições ideológicas
Michel Foucault. Pêcheux define uma Formação Discursiva como de produção da enunciação discursiva. O texto publicitário, pela sua
aquilo que numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma finalidade específica de atingir um determinado público com o obje-
posição numa conjuntura específica, delimita o que pode e o que tivo de passar uma imagem e uma idéia e, consequentemente, fazer o
deve ser dito. A terceira traz para a Análise do Discurso o sentido de consumidor adquirir certo produto, se constitui como um discurso
heterogeneidade enunciativa, considerando o discurso uma arena de persuasivo, de convencimento, formado a partir de representações e
vozes que interpelam o falante como sujeito, assujeitando-o por pen- de valores imaginários de uma sociedade, procurando interpelar o
sar dizer o novo , o inusitado quando , na verdade, ele repete o dis- seu interlocutor, transformando-o em sujeito conduzido pelas nor-
curso instituído pelo interdiscurso. Segundo Maingueneau (1987), a mas sociais, culturais e ideológicas vigentes. Para esse fim, o discur-
Análise do Discurso francesa se relaciona com textos produzidos no so publicitário além de manipular estratégias visuais, de imagem, de
quadro de instituições, e os interesses da Análise do Discurso cor, de formatação, entre outras, utiliza de estratégias lingüísticas e
correspondem ao que se denomina por formações discursivas, con- argumentativas. A escolha das marcas lingüísticas e da composição
ceito que Michel Foucault (1969) entende como sendo um conjunto dos argumentos é determinada pela imagem que o locutor faz das
de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no convicções do seu interlocutor, a imagem que ele possui do outro.
espaço que definiram em uma época dada, e para uma área social, Essas escolhas, portanto, são determinadas pelas condições de pro-
econômica, geográfica ou lingüística dada, as condições de exercício dução do discurso: a instância discursiva em que o discurso ocorre, a
da função enunciativa. Nessa perspectiva, segundo Maingueneau formação ideológica do locutor, a situação comunicativa onde ele se
(1987), entende-se a enunciação do sujeito de um discurso como a encontra, em que momento histórico se fala, qual a imagem que o
locutor faz do seu interlocutor, de sua formação ideológica e
representação de a uma certa posição sócio-histórica onde os
discursiva.
enunciadores se mostram cambiáveis; o discurso institui-se no interi-
Neste trabalho, o interlocutor ou co-enunciador (Maingueneau,
or de relações ideológicas, que, segundo Althusser (1989) constitu-
1998) é o público feminino, que se constitui em um gênero específi-
em-se em Aparelhos Ideológicos de Estado que manifestam cons-
co do discurso publicitário, com representações ideológicas própri-
truções imaginárias que procuram representar a relação do indiví-
as, estabelecidas pelo percurso histórico, social e cultural da mulher
duo com as suas relações reais de existência. A ideologia, portanto, é
na sociedade brasileira contemporânea. Através da análise de alguns
uma das formas de assegurar a reprodução das condições de produ-
textos publicitários voltados para o público feminino (confirmados,
ção, seu papel é manter os sujeitos comportando-se segundo a ordem
também, pela imagem da mulher impressa no texto), propagandas do
estabelecida e as normas vigentes ou seja a ideologia dominante, isto sabão em pó Ariel, visamos a identificar como esse discurso
acontece através dos Aparelhos Ideológicos do Estado como o apa- institucional se constitui a partir da identificação dos valores, dos
relho religioso, o da escola, o político, o familiar, e o da imprensa. A acordos ideológicos, dos lugares sociais, das crenças e das marcas
ideologia age transformando indivíduos concretos em sujeitos, con- lingüísticas que participam do jogo argumentativo discursivo.
forme Althusser (1989) a ideologia interpela os indivíduos enquanto
sujeitos. Pêcheux retoma e estende as idéias de Althusser para integrá- Texto publicitário nº 1
las a uma teoria do discurso segundo a qual as formações ideológicas
se constituem por representações e atitudes que se confrontam em “Com a virada do milênio, certas coisas deveriam ser tomba-
uma formação social, refletindo as lutas de classes e tem como um de das pelo patrimônio histórico. Seu tanque, por exemplo.”

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 523


“Você não precisa esperar o calendário para entrar no ano 2000. Texto Publicitário nº 3
Dê a virada agora mesmo com Ariel. Ele limpa melhor porque tem o
poder de tudo o que você usava antes. Assim, você coloca a roupa na “Lembra quando você morava com a sua mãe e nem se preo-
máquina e fica livre para aproveitar a vida. Depois de Ariel, cada vez cupava em lavar sua roupa ? Esse tempo voltou.”
mais mulheres do Brasil inteiro sabem que a vida é muito mais que
lavar roupa. Pense limpo. Pense Ariel” (sabão em pó Ariel, Revista Chegou o sabão em pó que é uma homenagem às mães.
Nova 2000)
“Ariel ajuda você na tarefa mais importante da sua vida: ser
mãe. Enquanto Ariel trabalha na sua máquina, você tem todo o tem-
Nesse texto, estabelece-se como sentido comum aos
po livre para dedicar à sua família, à sua casa e a você mesma. Pense
interlocutores, ou pressuposto, o fato de que o milênio mudou; ini-
cia-se o texto com a anteposição de uma expressão suposta de ocor- nisso e mude para melhor: mude para Ariel.
rer no final, ela marca a posição de algo acordado entre os Pense limpo. Pense Ariel.” (Sabão em pó Ariel, Revista
interlocutores, como sendo um tópico; surge, em seguida, uma mar- Caras, 2000)
ca de indefinição e multiplicidade manifestada em “certas”, impli-
cando em se pensar que algumas coisas não foram tombadas pelo Percebe-se que:
orgão que arquiva a história de um povo, o tanque da mulher não foi 1º Unidades lexicais indicam que os mesmos valores sociais e
tombado, por exemplo. A mulher espera algo para entrar no ano 2000 ideológicos são passados de geração para geração, mantendo-se as
e ainda não deu a virada, o momento é agora. A mulher não é livre mulheres nos mesmos lugares institucionais:
nem aproveita a vida, mulheres do Brasil inteiro não sabem que a “lembra” (relação de passado com presente), “você morava com
vida é muito mais que lavar roupa. sua mãe” (relação de passado com presente), “e” (combinação de
Os argumentos definidos pelas formações discursivas que re- “status” iguais), “nem se preocupava em lavar roupa” e “esse tempo
velam os acordos sociais, a ideologia, as condições de produção do voltou” (ocupação idêntica por gerações).
texto são:
2º A tecnologia contribui para a manutenção dos mesmos pa-
1º O tempo passa, mudam-se as décadas mas a posição da mulher, o péis sociais da mulher :
seu lugar doméstico se mantém. Considere-se, por exemplo:
“Ariel trabalha na sua máquina , você tem todo tempo livre
“coisas deveriam ser tombadas”, “pelo patrimônio histórico ”, “seu
para dedicar à sua família, à sua casa e a você mesma ”, “ mude para
tanque ”, “dê a virada com Ariel”, “você coloca a roupa na máquina
e fica livre para aproveitar a vida”, “depois de Ariel, cada vez mais melhor: mude para Ariel”.
mulheres do Brasil inteiro sabem que a vida é muito mais que lavar
roupa”. Conclui-se que os discursos são processos imbuídos de um
entrelaçamento de fatores lingüísticos, ideológicos e sócio-histórico
2º Indefinição ou insegurança do papel da mulher manifestadas atra- culturais responsáveis pelos sentidos dos textos. Há nos textos publi-
vés de marcas lingüísticas como: citários analisados uma ideologia que os permeia de que a mulher
“certas coisas” (indefinição), “deveriam” (futuro do pretérito = pertence a um lugar social caracterizado pelo trabalho doméstico,
indefinição), “não precisa esperar” (ordem = definição), “dê a vira- havendo possibilidade de alteração dependendo dos avanços
da” (ordem = definição), “agora mesmo” (definição), “pense limpo” tecnológicos, permitindo que ela tenha mais tempo livre, porém, para
(imperativo = definição), “cada vez mais” (indefinição), “ mulheres realizar as outras atribuições que foram designadas pela sociedade,
do Brasil inteiro” ( indefinição ) como cuidar da sua beleza, ser mãe, cuidar da família. Esse discurso
publicitário, portanto, mantém o instituído que sob aparência de
Texto publicitário nº 2 mudança, reforça o já estabelecido, o lugar social da mulher é no lar,
no serviço doméstico, na família.
“Aproveite que os ventos da nova era já estão soprando e voe para
fora da sua área de serviço” (sabão em pó Ariel, Revista Caras 2000)
Referências bibliográficas
Encontram-se implícitos, nesse texto, os valores ideológicos
ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos de estado: notas sobre os
de que a mulher não tinha oportunidade já que os ventos antigos não
sopravam, o seu espaço era limitado, definido e estático, ela está dentro aparelhos ideológicos de estado. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
da área de serviço que é seu lugar, seu espaço. Ela não voava. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense
Os argumentos que revelam os acordos sociais são: universitária, 1969.
MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. São
1º O lugar da mulher é no trabalho, mas doméstico, como: Paulo: Pontes, 1987.
“voe para fora da sua área de serviço”. _________________. Analyser les textes de communication. Paris:
Dunod, 1998.
2º Há uma luta entre o instituído e o novo, a mudança: ORLANDI, E. (org.) Gestos de leitura : da história no discurso. São
“aproveite que os ventos da nova era já estão soprando e voe para Paulo: Ed. da UNICAMP, 1994.
fora” PÊCHEUX, M. “A análise do discurso: três épocas” In: GADET, F.
& HAK, T. (org.) Por um análise automática do discurso : uma
3º A mudança está condicionada à tecnologia moderna e ao âmbito introdução à obra de Pêcheux. Campinas: Ed. da UNICAMP,
doméstico: “os ventos da nova era”, “dê a virada com ariel”, “você 1990
coloca a roupa na máquina e fica livre para aproveitar a vida”. ———————& FUCHS, C. “A propósito da análise automática
Algumas escolhas lexicais indicam estado provisório, tempo- do discurso: atualização e perspectivas”. In : GADET, F. & HAK,
rário, como: “ventos”, “era”, “fica livre”, outras indicam estado fixo,
T. (org.) Por uma análise automática do discurso: uma introdu-
lugar (social da mulher), como : “área de serviço”, outras indicam
ção à obra de Pêcheux. Campinas: Ed. da UNICAMP,1990
movimento, mudança como : “estão soprando”, “aproveite”, “voe”.

524 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


As perguntas retóricas no discurso
pedagógico: uma estratégia de poder?1
Edna Ribeiro Marques
Universidade Federal da Bahia
Universidade Federal de Feira de Santana

ABSTRACT : This paper, based on the French Discourse Analysis, examines rhetorical questions collected from teachers from a public (state) school and
from a private one. The aim is to verify to which extent these questions function as a sort of power strategy determined by an authoritarian discourse.
PALAVRAS-CHAVE : Discurso, interação, perguntas retóricas.

Introdução discurso. É justamente através de seu discurso que ele controla a sua
classe e, com ela, todas as manifestações orais e até não orais dos
Nesta comunicação, pretende-se analisar o discurso do pro- alunos, podendo decidir o que é possível de ser dito e o que não é
fessor em sua interação de sala de aula, a partir das perguntas que ele possível.
faz ao aluno sem esperar respostas: as perguntas retóricas. A pesqui- O discurso do professor em sua sala de aula é um discurso de
sa é feita em duas turmas de sexta série do Ensino Fundamental Me- poder, pois ele funciona como agente repassador das normas veicu-
nor, no município de Maceió, estado de Alagoas, sendo uma turma ladas pela instituição escolar e, para tal, encontra-se investido de
da rede pública e outra da rede particular de ensino. uma autoridade que lhe outorga o papel de difusor das idéias domi-
Para efeito deste trabalho, considerou-se um corpus com- nantes na sociedade da qual faz parte, além de lhe atribuir a função
posto por quatro aulas de Ciências escolhidas aleatoriamente. Nes- de controlador das atividades do aluno.
sas aulas, foram levantadas cento e sessenta e nove perguntas, cento Gnerre (1998:05) afirma que as pessoas falam pelos mais
e trinta e sete referentes à rede particular e trinta e duas referentes à diversos motivos: para serem ouvidas, respeitas e até para exercer
rede pública. influência no ambiente em que realizam atos lingüísticos. Assim,
Este estudo tem suas bases centradas na linha francesa da quando o professor fala, comunica não apenas conteúdos, mas rea-
Análise do Discurso, que trabalha com as condições de produção da firma sua posição de autoridade e esse discurso influencia o seu
linguagem, vinculada a instituições sociais. interlocutor, o aluno.
O discurso das salas de aulas observadas é baseado numa
relação hierárquica em que o professor possui a maior quantidade de
Pressupostos Teóricos turnos, além destes serem mais extensos que os turnos dos alunos.
Essa posição assumida pelo professor desenvolve no aluno “ (...)
Segundo Orlandi (1996:29), o discurso pedagógico é visto uma atitude passiva e subjuga as suas falas a respostas sobre o que
como científico e se mascara sob a forma de transmissor de informa- lhe é autorizado falar (...)” (Uchôa, 1996:113).
ção. Além disso, tal discurso se caracteriza como um discurso auto- Nas interações observadas, o diálogo entre os interlocutores
ritário perpassado de poder, poder esse que é garantido pela institui- (professor e aluno) vai sendo construído aos poucos, perpassado aqui
ção que o financia: a escola. Daí porque o professor é visto quase e ali por uma pergunta retórica isolada ou por várias delas ao mesmo
sempre como “(...) agente exclusivo e direcionador do saber, além de tempo. A pergunta retórica se configura como um tipo especial de
responsável pelo controle da interação” (Santos, 1999:07). pergunta, pois, pelo menos em tese, toda pergunta é feita esperando
Marcuschi (1995:86) lembra “que as relações de poder entre resposta geralmente de outrem. Neste trabalho, tais perguntas apare-
os indivíduos na vida social não são um fator genético, (...) mas um cem como um artifício usado pelo professor para encaminhar o raci-
fato empírico, uma realidade social, desenvolvido histórica e cultu- ocínio do aluno, para despertar a sua atenção, como se poderá obser-
ralmente”. var nos exemplos que seguem.
Orlandi (2000:21), retomando Pêcheux (1969 apud A aula destacada ocorreu na escola pública observada, na qual
Orlandi,1996), concebe o discurso como “efeito de sentidos entre o professor questiona sobre um ponto do conteúdo e depois olha
interlocutores”. Para a autora, este conceito rompe com o esquema para a turma esperando por uma resposta. Alguns alunos se calam,
de comunicação tradicional em que cada elemento do processo tem mas o aluno L5 responde algo considerado inadequado e é corrigido
um papel determinado a exercer de forma estanque. Assim, o discur- por um colega e pelo professor. Após a correção, L5 assume uma
so vai além da mera transmissão de informações, pois os sujeitos, no posição de defesa curvando-se para a frente e inclinando um pouco a
complexo processo de construção do sentido, são afetados pela lín- cabeça para baixo:
gua e pela história (Orlandi, Idem).
Entende-se por interação “(...) uma ação entre o produtor e o (01) “L1 – (...) Como característica deste reino... nós veremos O
receptor do texto” Travaglia (1997:69). A interação tratada nesta pes- QUÊ? só organismos unicelulares...o que são organismos
quisa se caracteriza como assimétrica, uma vez que o professor pos- UNIcelulares? ((olha a turma no geral.))
sui mais espaço nas trocas dialógicas com o aluno, o que sinaliza o L2 L3 L4 – ( )
seu poder sobre aquele. L5[ mais de uma célula

Análise dos dados


1 Este trabalho se baseia na Dissertação de Mestrado em Letras e Lingüísti-
A figura do professor em sala de aula representa a autoridade, ca a ser defendida na Universidade Federal da Bahia com o título O papel
manifestada para o aluno de diversas maneiras, inclusive pelo seu das perguntas retóricas no discurso pedagógico: Um estudo em
aulas de ciências no ensino fundamental.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 525


L6 – um:a ce::lula ...((L6 corrige L5 mostra o seu dedo indi escola, copiando um modelo de sucesso, que é aceito ideologica-
cador da mão direita para que L5 entenda que o termo UNI mente na sociedade.
significa o numeral um.)) No discurso autoritário, o professor – munido do status de
L1 – UNI:celulares ...UNI:celulares uma ÚNIca célula/.../ (( cientista – tem a sua fala reconhecida como válida. Ele fala com a
a professora também corrige L5 enfatizando o termo UNI, e voz do saber de que se constitui o repassador oficial. Daí a idéia de
caminhando em sua direção aponta-lhe o dedo para que ele que aquilo que ele diz foi experiência dele, nasce como fruto da ob-
tenha a noção de uma unidade. Após a correção de L1 e L6, servação e da pesquisa por ele realizada, por isso o professor pode
L5 põe-se numa postura de defesa e volta seu corpo para frente dar conta do que diz sem ser constrangido a explicitar o processo
inclinando um pouco a cabeça para baixo.)) são organismos pelo qual se apropriou do saber ao ponto de ser reconhecido pela
heteRÓtrofos ... o que são organismos heterótrofos? Não pro instituição e, posteriormente, pela comunidade escolar. O docente
duzem seu próprio alimento ...certo? está autorizado a ensinar, a “inculcar” e o aluno está autorizado a
L2 L3 [ não produzem seu próprio alimento”. dizer que aprendeu, já que cursou, ou seja, passou pelo crivo do
professor e, por este motivo, se encontra apto para fazer a sua estréia
(Corpus, Aula 01, p.64) na sociedade. Observe-se o exemplo abaixo:

Esse tipo de problema decorre do tipo de discurso assimétrico (03) “L1 – (...) os nomes não são escolhidos à toa ...quem
que permeia a sala de sala. Na verdade, o professor precisa ser um escolhe esses nomes científicos? São os cientistas que primei
bom articulador para dar conta de uma tarefa tão delicada: passar o ro desco:brem ...”
conteúdo de modo eficiente e conduzir o seu relacionamento com
vários alunos ao mesmo tempo. (Corpus, Aula 01, p.10)
O professor desempenha o papel de repassador da “verdade”.
Verdade esta que é construída ideologicamente, senão forjada, pelo Aparentemente, o exemplo parece negar o que se disse aci-
poder da própria instituição social escolar. Na amostra analisada, ma, entretanto o que fica evidenciado, na verdade, é que o professor
todo o tempo o seu discurso traduz um esforço para repassar o con- valoriza a sua fala ao fazer referência a uma informação dita científi-
teúdo programático (visto como verdade absoluta e incontestável), ca, mas, ao mesmo tempo, não se compromete tanto, pois cita possí-
tentando conferir-lhe a marca de autenticidade ao buscar definir e veis autoridades que se constituem de modo universalizado e pouco
explicar tais conteúdos, efetuando o que Orlandi (1996:17) denomi- palpável. Afinal, quem são estes cientistas? Tal informação não é
na de “inculcação”. É o que ilustra o exemplo seguinte: explicitada.
Ao se analisar as pergunta retóricas, é preciso distinguir en-
(02) “L1 – é ...((depois da intervenção de L2, a professora fará a tre as que já são formuladas para serem respondidas pelo próprio
introdução da aula do dia recapitulando a aula anterior.)) na professor e aquelas que se tornam retóricas ocasionalmente, através
aula passada fizemos O QUÊ? A leitura de reconhecimento da não participação dos alunos por meio de respostas. Certamente
SOBRE divisão dos seres vivos ...CERTO? VOCÊS ...grifan isso acontece porque o aluno não está motivado a participar oral-
do...(( neste momento L1 faz uma pausa e procura algo mais mente do momento da interação ou mesmo porque não sabe a res-
específico no material que arrumava anteriormente. Durante posta esperada pelo mestre e tem medo de ser inadequado. Sobre
este tempo os alunos conversavam entre si e, dois dos alunos isso, observe-se o exemplo abaixo:
que se encontram mais próximos da professora brincam todo
o tempo trocando bolinhas de papel.)) grifando as estrutu 04) L1 – sim ...bom... o primeiro reino ...nós vimos o quê? que
ras... ou/.../ as informações que consideram O QUÊ? que con era o reino... ( ( L1 não faz uma pergunta direta. Ela espera
sideram importantes...certo? que os alunos completem sua frase.)) MONERA né isso”
L3 – que pá:gina professora? (( L3 faz a pergunta e a profes
sora parece não ter ouvido ou não deu importância à sua inda (Corpus, Aula 08, p.84)
gação.))
L1 – PARTIN:DO ...pssiiuu ... (( a professora pede silêncio O uso intenso de perguntas retóricas durante a aula, direta ou
usando um som onomatopaico e dirige-se para o fundo da indiretamente, provoca o assujeitamento do aluno ao que está sendo
sala, olhando fixamente para alguns alunos como se os ob dito ou proposto, pois ele não escolhe o que vai dizer (quando lhe é
servasse.)) PARTINDO da idéia de que para classificar os se permitido dizer alguma coisa), mas a escolha é determinada pelo
res ...certo? para entender melhor os seres ...” interlocutor que faz as perguntas. Por isso, ao respondê-las, o pro-
(Corpus, Aula 03, p.64) fessor tolhe a oportunidade de o seu interlocutor agir na interação.
Daí o assujeitamento.
O que se pode perceber é que há, inclusive, a tentativa de
reforçar o significado da aprendizagem, firmando ainda uma espécie Conclusão
de parceria ao utilizar o verbo na primeira pessoa do plural “fize-
mos”. Há ainda a suposta delegação ao aluno da responsabilidade Assim, o professor se constitui na autoridade que administra
pela seleção do material que seria importante, uma vez que este, ao o desenvolvimento das atividades de sala de aula. Ele está quase
grifar as estruturas, tornou-as importantes. É a parcela de status de sempre ocupado em repassar o conteúdo das aulas de Ciências,
que o estudante precisa para se pensar com poder suficiente, a ponto usando estratégias, como as perguntas retóricas, para manter o tur-
de participar diretamente de tarefas importantes delegadas a ele pelo no em seu poder a maior parte do tempo, a fim de garantir o que foi
professor. O fato da tarefa importante ter sido delegada pelo profes- planejado e acelerar o ritmo da aula – o que pode despertar ou não
sor já assegura a afirmação de seu poder. É sabido que o professor a atenção do aluno.
também já assimilou essa estrutura de poder, adotando-a, muitas ve- O discurso dos professores das salas de aulas observadas se
zes, até de forma inconsciente, sendo seduzido pelo prazer de efetuar caracteriza como um discurso de poder, poder esse que não se cons-
bem o seu papel e de provocar a adesão e o reconhecimentos pacífi- titui em algo inerente ao ser, como se fosse gerado por algum fator
cos do aluno. Dessa forma, a estrutura de dominação se reproduz na genético (Cf. Marcuschi, 1995:86), mas provocado pelo tipo de rela-

526 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


ção cultivada nesse contexto escolar e desenvolvida histórica e cul- ORLANDI, Eni Pulccinelli. Análise do discurso. Princípios e pro-
turalmente na sociedade. cedimentos. 2ª edição. Campinas: Pontes, 2000.
O uso de perguntas retóricas no discurso pedagógico é uma ______________________. A linguagem e seu funcionamento.As
estratégia defensável dentro de um discurso que deseja persuadir, formas do discurso. 4ª edição. Campinas, Pontes,1996.
deve-se, entretanto, evitar a sua utilização abusiva e irrestrita sob SANTOS, Maria Francisca Oliveira. Professor-aluno. As relações
pena de não viabilizar adequadamente a troca de informações que de poder. Curitiba: HD Livros Editora, 1999.
caracteriza o diálogo. TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta
para o ensino de gramática no 1º e 2º graus. 2ª edição. São
Referências bibliográficas Paulo: Cortez, 1997.
UCHÔA, Susan Mary de Mendonça. O papel das perguntas e res-
GNERRE, Maurizio. Linguagem, escrita e poder. 4ª edição. São Pau- postas em aulas de leitura: análise no contexto de 5ª série. Ori-
lo: Martins Fontes, 1998. entado pela Profª Drª Rita Maria Zozzoli. Maceió, Programa de
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Assimetria, poder e adequação na Pós-graduação em Lingüística e Letras da Universidade Federal
interação verbal. Investigações:lingüísticas e teoria literária, de Alagoas, 1996. Dissertação de mestrado. mimeo.
Recife, (5): 80-93, 1995.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 527


O discurso escolar tradicional sobre o ensino de
português, em enunciados de alunos do ensino médio
Odilon Pinto de Mesquita Filho,
Universidade Estadual de Santa Cruz(Ilhéus-Ba)

ABSTRACT: According to the French Discourse’s Analysis Theory, the traditional scholar discourse about how teaching Portuguese is analysed in
high school students’ enunciations. This traditional discourse governs the greater number of the students and has his knowledge’s domain increased
by the authoritarian pedagogical discourse.
PALAVRAS-CHAVE: discurso, formação discursiva, norma normativa.

Introdução domínio de saber, como traço principal, a descoincidência dessas nor-


mas. Isto é, permite que uma norma seja distinta da outra, proibindo
Este trabalho analisa o discurso escolar tradicional sobre o sua coincidência, ou seja, que possam ser relacionadas por sinonímia
ensino de Português em enunciados de alunos do ensino médio. O ou por paráfrase
objetivo é explicitar aspectos do funcionamento desse discurso que Segundo Coseriu (1979: 49), “é importante distinguir entre o
possibilitem uma melhor compreensão do seu papel no Aparelho Ide- que é simplesmente normal ou comum (norma) e o que é oposicional
ológico de Ensino Escolar de Português, (daqui em diante, AIE de ou funcional (sistema).”:
Português), cuja função é dissimular, justificar e reproduzir a ordem
social que o sustenta. ...pode-se dizer, pois, que uma língua funcional (língua que se
pode falar) é um ‘sistema de oposições funcionais e realizações nor-
Pressupostos teóricos mais’, ou melhor, sistema e norma. O sistema é ‘sistema de possibi-
lidades, de coordenadas que indicam os caminhos abertos e os cami-
Na perspectiva teórica da Análise de Discurso, de linha fran- nhos fechados’ de um ‘falar’ ‘compreensível’ numa comunidade; a
cesa, (daqui em diante AD) podemos distinguir o discurso escolar norma, em troca, é um ‘sistema de realizações obrigatórias’, consa-
sobre o ensino de Português do discurso escolar de ensino de Portu- gradas social e culturalmente: não correspondente ao que ‘se pode
guês efetivo em sala de aula. O primeiro tem como objeto a maneira, dizer’, mas ao que já ‘se disse’ e tradicionalmente ‘se diz’ na comu-
como deve ser o ensino escolar de língua materna. O segundo tem nidade considerada. O sistema abrange as formas ideais de realiza-
como objeto o próprio ensino, é o discurso do professor ensinando ção duma língua, isto é, a técnica e as pautas do correspondente fazer
Português. Aceita essa distinção, tomamos como objeto desse traba- lingüístico; a norma, os modelos já realizados historicamente com
lho o discurso escolar sobre o ensino de Português, isto é, sobre o essa técnica e segundo essas pautas. (COSERIU, 1979: 50).
modo como deve ser o ensino de Português em sala de aula.
O ensino de língua materna no Brasil, constitui, atualmente, Norma Normativa é assumida aqui como as regras da gramá-
uma formação ideológica, isto é, “constitui um conjunto complexo tica normativa; Norma Culta é a norma falada pelas pessoas que têm
de atitudes e representações que não são nem individuais nem uni- curso superior; Norma Padrão é uma norma de avaliação-correção de
versais mas se reportam, mais ou menos diretamente, às posições de enunciados , orais e escritos, imposta legitimamente à sociedade, ensi-
classe em conflito umas com as outras” (Haroche, apud ORLANDI, nada como tal pela Escola e exigida em concursos para a universidade
1996: 27). Por exemplo, deve-se ensinar gramática normativa ou não? e para empregos. Norma Oficial é a norma lingüística utilizada nos
Leitura é reconhecimento de um sentido único ou construção de sen- órgãos oficiais do governo. Norma Escrita é a modalidade escrita, em
tidos? Os exercícios escolares de produção textual devem centrar-se oposição à oral. E Normas Vernáculas ou Populares são as normas
na correção ortográfica e gramatical ou devem centrar-se na produ- faladas pelas classes populares.
ção de textos adequados a situações reais de comunicação? A suposta coincidência da Norma Normativa com a Norma
Podemos considerar, na formação ideológica do ensino esco- Padrão, com a Norma Culta, com a Norma Escrita e com a Norma
lar de Português, o afrontamento entre a posição das classes domi- Oficial é negada por estudos lingüísticos e sociolingüísticos. (Ver:
nantes, que transforma tal ensino em um instrumento de dissimula- MATTOS E SILVA, 1995; BRITTO, 1997; SCHERRE, 1997; 1998;
ção, justificação e reprodução da estrutura social, e a posição das SCHERRE e NARO, 1998 a; 1999. CÃMARA JR., 1970;)
classes populares, de resistência a esse ensino institucionalizado, com
novas demandas culturais. As condições de produção dos dados
O afrontamento dessas posições ideológicas vai resultar em
duas formações discursivas: a do discurso escolar tradicional sobre São tomados aqui enunciados de 32 alunos de um cursinho
o ensino de Português, ligada à posição ideológica das classes domi- pré-vestibular e de 10 alunos concluintes do curso de magistério numa
nantes; e a do discurso escolar inovador, baseada nos estudos cientí- escola pública. Os enunciados de alunos do Cursinho são respostas a
ficos da lingüística, e ligada à posição das classes populares. quatro perguntas de um questionário, aplicado pelo professor de re-
A formação discursiva tradicional sobre o ensino escolar de dação da turma, num total de 128 enunciados; e os enunciados de
Português tem, em seu domínio de saber, como traço principal, a alunos do magistério são respostas ao mesmo questionário, aplicado
coincidência entre Norma Normativa, Norma Padrão, Normal Culta, por um professor capacitador, em palestra para professores, a que
Norma Oficial e Norma Escrita. Isto é, permite que uma norma seja foram especialmente convidados alunos do terceiro ano de magisté-
paráfrase ou sinônimo da outra, proibindo sua descoincidência, ou rio, num total de 40 enunciados. Observa-se que, embora os dois
seja, proibindo que constituam termos distintos, não-parafrásticos questionários tenham sido aplicados pela mesma pessoa física, os
ou não-sinonímicos. A formação discursiva inovadora tem, em seu interlocutores, a quem são dirigidas as respostas, são diferentes: os

528 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


alunos do cursinho produziram enunciados dirigidos ao professor de A quarta pergunta relaciona gramática normativa e língua/cul-
redação, com quem tinham aulas semanais; os concluintes do magisté- tura nacionais, uma relação que, implícita ou explicitamente, é afirma-
rio produziram enunciados dirigidos a um professor “de fora”, em da pelo discurso pedagógico autoritário. Enquanto a maioria dos alu-
palestra especial, estando colocados numa mesma sala com os pro- nos do cursinho não filiam-se ao discurso tradicional, os concluíntes
fessores da escola, de quem eram ou tinham sido alunos. Portanto, do magistério, já talvez na preocupação de mostrar que realmente são
são condições de produção discursiva bem distintas, apesar de os competentes para assumir as funções pedagógicas, especialmente na
alunos estarem na mesma série do ensino médio e se dirigindo ao presença de seus professores, filiam-se totalmente ao discurso escolar
mesmo indivíduo, mas não ao mesmo interlocutor. tradicional sobre o ensino de Português.
Feita essa análise quantitativa inicial, vamos examinar ou-
tros aspectos dessa filiação discursiva dos alunos ao discurso escolar
tradicional sobre o ensino de Português. Conforme já visto, o discur-
so tradicional caracteriza-se, principalmente, pela coincidência ideo-
lógica de normas lingüísticas e é apropriado pelo discurso pedagógi-
co autoritário. Os alunos, portanto, sofreram, no mínimo, onze anos
de inculcação-recalque da coincidência entre a Norma Normativa, a
Norma Padrão, a Norma Culta, a Norma Oficial e a Norma Escrita.
O eco desse discurso tradicional dos professores pode ser visto tam-
bém nas respostas comentadas dos alunos, manifestando a eficácia
do Aparelho Ideológico de Ensino Escolar de Português.
Os alunos do cursinho e do magistério, assujeitados ao dis-
curso escolar tradicional sobre o ensino de Português, defendem o
ensino de gramática normativa porque esta coincide com: o ensino
escolar de língua materna, com a aquisição da linguagem, com a
Norma Padrão, com o único estudo científico da linguagem, com a
Norma Escrita, com a pronúncia correta, com a Norma Culta, com o
combate aos “erros” das Normas Populares, com a preservação da
língua e da cultura nacionais, com a preparação para o vestibular e
concursos, com a obediência ao que é ideologicamente dominante e,
finalmente, com a competência comunicativa.
Tal processo de ampliação das coincidências da Norma
Normativa, no discurso escolar tradicional sobre o ensino de Portugu-
ês, atesta a eficácia do Aparelho Ideológico de Ensino de Português,
em sua função de dissimular, justificar e reproduzir a ordem social que
o sustenta. Destacam-se, nesse sentido, as coincidências da Norma
Análise dos dados Normativa com o combate aos “erros” das normas faladas pelas
classes populares e com a obediência ao que é ideologicamente domi-
Identificando as respostas afirmativas com o discurso escolar nante.
tradicional sobre o ensino de Português, observa-se o evidente domí- Manifesta-se também a eficácia do AIE de Português na forma-
nio do primeiro. Tendo em vista que esses alunos sofreram, por mais ção dos seus agentes, isto é, na sua própria reprodução. Os alunos
de onze anos, a influência do discurso autoritário dos professores, concluíntes do Magistério, destinados à carreira de professor, de-
somos levados a acreditar que, entre estes últimos, predomina tam- monstram um assujeitamento mais completo ao discurso escolar tra-
bém, com a mesma diferença esmagadora, o assujeitamento ao dis- dicional dominante sobre o ensino de Português:
curso tradicional. a) 100% afirmam a coincidência entre Norma Normativa e Nor-
Embora tenha variado o número obtido, as respostas à segun- ma Padrão, contra 71,88% dos alunos do Cursinho;
b) 100% afirmam que a escola deve ensinar a gramática normativa
da pergunta manifestam a mesma tendência observada na primeira.
contra 86, 67% dos alunos do Cursinho;
Observa-se que 28,12% dos alunos do cursinho responderam que o
c) 100% afirmam que falar obedecendo às regras da gramática
português correto não é o da gramática normativa. No entanto, so-
normativa ajuda a preservar a língua e a cultura nacionais contra ape-
mente 13,33%, responderam que a escola não deve ensinar o portu-
nas 39,28% dos alunos do Cursinho;
guês correto, obedecendo às regras da gramática normativa. Isto sig-
d) existem quatro enunciados submetendo explicitamente o en-
nifica que para 14, 79%, dos alunos, o português correto não é o da sino de Português ao que é socialmente estabelecido, ou seja, ao que é
gramática normativa, mas, mesmo assim, consideram que a escola ideologicamente dominante, (10%), contra apenas um enunciado dos
deve ensiná-lo. Essa aparente contradição pode ser explicada, se ad- alunos do Cursinho (0,78%)
mitimos que a opinião dos alunos é um eco do discurso pedagógico e) Existem sete enunciados afirmando a coincidência entre Nor-
autoritário: a primeira pergunta não leva em conta a escola, o que ma Normativa e competência comunicativa, (17,5%), contra três
deixa o aluno mais “livre” em relação à gramática normativa. No enunciados dos alunos do Cursinho, (2,34%).
entanto, quando a segunda pergunta estabelece a ligação direta entre
escola e gramática, a influência do discurso pedagógico autoritário Considerações finais
torna-se mais pesada e o assujeitamento do aluno ao discurso tradici-
onal manifesta-se com maior intensidade. O assujeitamento dos alunos ao discurso escolar tradicional
A terceira questão relaciona a gramática normativa e a fala sobre o ensino de Português, após onze anos de inculcação-recalque
cotidiana das pessoas cultas, isto é, das pessoas que têm curso supe- do discurso pedagógico autoritário, confirma o assujeitamento da es-
rior, sem uma ligação direta entre gramática e escola. Nesse contexto, magadora maioria dos professores do ensino fundamental e médio a
diminui a influência do discurso pedagógico autoritário. esse discurso escolar tradicional.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 529


Os enunciados dos alunos apontam, não só para uma reprodu- deveria ser um discurso científico transforma-se em dogmas absolutos
ção do discurso escolar tradicional sobre o ensino de Português, mas e eternos; o que deveria ser uma representação do objeto de estudo
também para uma ampliação do seu domínio de saber. A coincidência transforma-se em coincidência com esse objeto, passando a substitui-
da Norma Normativa com outras normas lingüísticas é estendida a lo. (cf. ORLANDI, 1996:85; BOURDIEU e PASSERON, 1975: 122).
limites extremos, como a aquisição da linguagem, a pronúncia correta,
etc.. Por isso, talvez se possa afirmar que o discurso pedagógico Referências bibliográficas
autoritário tenha o poder, não só de reproduzir os discursos “tradici-
onais” que integram seu conteúdo, mas, também, de ampliar o domí- BOURDIEU, Pierre. PASSERON, Jean-Claude. A reprodução. Trad.
nio de saber desses discursos, estendendo sua aplicação a territórios Reynaldo Bairão. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.
vizinhos, em círculos concêntricos, a partir de um núcleo básico de BRITTO, Luis Percival Leme. A sombra do caos. Ensino de língua x
valores ideológicos. Assim, ao reproduzir um discurso “tradicional” tradição gramatical. Campinas,SP: ALB: Mercado deLetras,
sobre o ensino de história, baseado na ação de “heróis”, o discurso 1997.
pedagógico autoritário pode estar ampliando o domínio de saber desse CÂMARA Jr. J. M. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis:
discurso a outros campos, como a literatura, a música e a ciência, que Vozes, 1970.
passam a ser vistas como resultado apenas da ação de “gênios”. Ao COSERIU, Eugenio. Sincronia, diacronia e história: o problema da
reproduzir um discurso “tradicional” sobre o ensino de matemática, mudança lingüística. Trad. Carlos Alberto da Fonseca e Mário
baseado em algoritmos, o discurso pedagógico autoritário pode estar Ferreira. Rio de Janeiro: Presença, 1979.
ampliando o domínio de saber desse discurso a todas as outras áreas MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Contradições no ensino do portu-
do pensamento, limitando o raciocínio lógico à aplicação de fórmulas guês. A língua que se fala x a língua em que se ensina. São Paulo/
já prontas, cujas origens são apagadas. Salvador: Contexto/EDUFBa, 1995.
O discurso pedagógico tem como domínio de saber outros dis- ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento. As
cursos “tradicionais” sobre o ensino das disciplinas escolares, apro- formas do discurso. 4a ed. Campinas, SP: Pontes, 1996.
priados de forma autoritária. Essa apropriação autoritária é que pos- SCHERRE, M. M. P. “Concordância Nominal e Funcionalismo”. In:
sibilita a ampliação do domínio de saber dos discursos apropriados. UNESP, Alfa, 41 (nº esp.) , 181-206. São Paulo: Unesp, 1997
Em outras palavras, o discurso pedagógico autoritário tem a caracte- ______“Variação da Concordância Nominal no Português do Brasil:
rística de ampliar o domínio de saber dos discursos “tradicionais” de Influência das Variáveis Posição, Classe Gramatical e Marcas
que se apropria.. Quanto maior a ampliação desses domínios de sa- Precedentes” In GROBE, Subille & ZIMMERMANN, Klaus
ber, maior a eficácia do Aparelho Ideológico Escolar, em sua função (eds.) <<Substandard>> e mudança no português do Brasil.
de dissimular, justificar e reproduzir a ordem social que o sustenta. Frankfurt am Main, TFM, 1998. pp. 153-188.
Uma Norma Normativa coincidida com um amplo espectro de áreas ______ & NARO, A. J. “Sobre a Concordância de Número no Portu-
como aquisição da linguagem, ensino escolar de língua materna, pro- guês Falado do Brasil. In: RUFFINO, Giovanni. (org.)
núncia correta, etc. aumenta a distância entre a Norma Padrão e as Dialettologia, geolingüística, sociolingüística. Centro de Studi
Normas Populares, dissimulando a diferença de classes sociais em Filologici e Linguistici Siciliani, Universitá de Palermo.
avaliação pedagógica da disciplina Português; uma história, arte e Tübingen: Max Niemeyer Verlag. 5:509-532, 1998
ciência vistas apenas como resultado da ação de “heróis” e “gênios” _______ & _______ “A Hierarquização do Controle da Concordân-
encobre as determinações histórico-sociais sobre criadores e criações cia no Português Moderno e Medieval: o Caso de Estruturas
artístico-científicas; um pensamento lógico reduzido à aplicação de de Sujeito Simples”. Comunicação Apresentada no Internatio-
algoritimos nega acesso à reflexão crítica. nales Kolloquium/ Colóquio Internacional – projetos de I n -
Ao se apropriar, de forma autoritária, de outros discursos “tra- vestigação lingüística sobre o português do Brasil – (Texto envi-
dicionais”, sobre o ensino das disciplinas escolares, o discurso pe- ado pelos autores em 1999.)
dagógico age como um câncer: multiplica descontroladamente o do-
mínio de saber da formação discursiva apropriada. Desta forma, o que

530 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A língua portuguesa no nível médio: o que ensinar?
Maria Lúcia Souza Castro
Universidade Federal da Bahia - Doutorando
Universidade Estadual da Bahia

ABSTRACT: This paper, based on the French Discourse Analysis, examines statements collected from teachers from a public (state) school in Salvador,
Bahia. The aim is to verify which aspects of the Portuguese teaching are considered important for the student’ formation as competent users of their native
language.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino de Língua Portuguesa. Análise do discurso

Introdução enunciação. O locutor é aquele responsável pelo enunciado, o


enunciador é a voz que se faz presente na enunciação produzida pelo
Muito se tem discutido sobre a ineficácia do ensino de Língua locutor. O locutor, nessa condição, pode se apossar do discurso alheio,
Portuguesa tanto nas escolas públicas como nas particulares, sobre do lugar do enunciador, assumindo-o como próprio.
a necessidade de reformulação do ensino dessa disciplina: o que, Essa relação de autoria e posse caracteriza as crenças de gru-
para que e como ensinar. pos ou classes sociais, ou seja, a ideologia presente em determinado
Antigamente a escola pública era um modelo a ser seguido por grupo ou classe social geralmente parte de um ou de alguns
escolas particulares. Hoje, nossos alunos, independentemente do tipo enunciadores e passa a refletir/representar os anseios dos demais mem-
de escola que freqüentam, concluem seus cursos sem dominar “os bros de uma comunidade/sociedade. Os locutores reproduzem ou se
segredos” de sua própria língua. O resultado dessa falta de domínio apropriam do discurso disseminado por determinados enunciadores
é a propagação de uma enorme confusão em torno dos mecanismos e passam a utilizá-lo como se no seu lugar estivessem, por se identi-
que norteiam as modalidades e usos da língua materna, notadamente ficarem com as idéias veiculadas e/ou por necessidade/interesse pes-
no que diz respeito à norma culta. A dificuldade de argumentação, a soal. Podemos confirmar essa teoria ao analisarmos os discursos dos
falta de coerência discursiva e o uso de normas desprivilegiadas so- sujeitos desta pesquisa e compará-los com aqueles divulgados em
cialmente contribuem para o baixo rendimento em outras disciplinas obras que discutem questões relacionadas ao ensino de Língua Por-
e lhes criam obstáculos profissionais e sociais. tuguesa.
O ensino de língua materna, no nosso entender, pressupõe o Os depoimentos aqui apresentados destacam, sobretudo, deter-
tratamento de conteúdos e a adoção de práticas que permitam aos minados aspectos da disciplina a serem considerados em sala de aula,
alunos adquirirem conhecimentos que promovam o entendimento da a saber: o respeito às variedades lingüísticas dos alunos; a necessidade
língua não simplesmente como um código, mas como instrumento de se enfatizarem atividades que desenvolvam habilidades de leitura e
de comunicação que lhes possibilite desenvolver o pensamento de escrita; a consideração do ensino de gramática como de menor impor-
forma coerente e a capacidade argumentativa. Além disso, deve pro- tância para a formação dos estudantes. Observa-se que esses discursos
mover o domínio das modalidades de uso da língua de acordo com condizem com aqueles registrados na literatura disponível sobre o as-
as necessidades sociais e profissionais dos seus falantes. Infelizmen- sunto. Em alguns momentos, porém, as declarações dos professores
te, o ensino de Língua Portuguesa em nossas escolas não tem, na denotam apenas uma concordância aparente, posto que seus discursos
prática, observado a necessidade de se atingirem esses objetivos. contrariam as ideologias por eles enunciadas.
Diante da situação em que se encontra o ensino de Língua Vejamos o que dizem nossos informantes sobre as variedades
Portuguesa, o que pensam os professores desta disciplina? Estarão do português do Brasil.
eles conscientes da necessidade de se considerarem conteúdos e prá-
ticas que realmente promovam o alcance dos objetivos referenciados? (1) – O ensino da língua materna não pode desprezar esse
A partir de depoimentos registrados a professores de Língua Portu- componente social, sociocultural [a variação lingüística]. En-
guesa de uma escola pública de Salvador-Ba, buscaremos respostas tão, nós não podemos, de jeito nenhum, ensinar uma língua
para essas questões, analisando os discursos que os caracterizam e portuguesa, aquele português castiço de Portugal, porque não
verificando as suas relações com a ideologia que circunda o meio faz mais sentido pra nós, e ela não existe mais. Ela, hoje, já é,
sociocultural em que estes estão inseridos. A pequena amostra aqui como nossa raça, é uma fusão de diversas raças, e nós tivemos
analisada é parte integrante de um corpus que está sendo constituído muita contribuição do, dos imigrantes, Nós também temos que
para elaboração da tese de Doutorado intitulada O que se pensa e o ter essa consciência de que o português de Portugal, aqui no
que se espera do ensino de Língua Portuguesa, a ser apresentada ao Brasil, não se fala. É impossível isso. (...) O..., no ano 2000,
Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística do Instituto de no início já do, do milênio, do próximo milênio, não há mais
Letras da Universidade Federal da Bahia. como a gente ensinar a língua portuguesa e sim uma língua
Objetivando o desvendamento das exposições, dos enuncia- brasileira, conforme a nossa raça. (Inf. 1)
dos que foram produzidos no momento das entrevistas, a teoria da
Análise do Discurso se faz presente neste trabalho, como instrumen- (2) – E com relação a... ao ensino da língua materna, é como
to para a interpretação e comparação dos discursos registrados aos A. falou também, tem que ser aproveitado esse conhecimento
informantes. que um indivíduo já traz, pra desenvolver isso na, nas escolas;
que muitas vezes a gente despreza esse conhecimento, até cri-
Análise dos dados tica é... a... essa variação lingüística que existe dentro de uma
escola e acha que tudo o que é certo é o que você ensina e o
Ducrot (Apud Maingueneau, 1977: 76-7) destaca locutores e que eles falam é o errado. Isso deprime muito o indivíduo e
enunciadores como personagens presentes em um processo de muitas vezes impede que ele evolua na sua linguagem, porque

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 531


a gente critica. Então a gente deveria ensinar pra eles o quê? (6) – Já, já se falou que, mais importante do que conteúdo é o
Que aquela, aquilo é uma variação e existe uma comunicação, aluno aprender escrever, a se expressar oralmente. No entanto,
embora fuja um pouco da estrutura formal da língua. (Inf. 2) o vestibular está aí a cobrar ainda conteúdos gramaticais, con-
teúdos, inclusive que, muitas vezes, os alunos não utilizam no
As idéias acima destacadas condizem com aquelas veiculadas seu dia-a-dia mas que são cobrados no vestibular. Então, como
por Travaglia (1995), Possenti (1996), Faraco & Tezza (1996), Perini é que a gente pode deixar de dar determinados conteúdos, se,
(1997), entre outros. Para esses autores, a proposta de ensino de lín- mais adiante, vai, vão ser cobrados? Em qualquer concurso é...
gua portuguesa não deve ter como modelo de língua a variedade eu- em qualquer concurso. É preciso que se, realmente, reveja uma
ropéia do português, que, afinal, é a que consta nas gramáticas série de coisas pra poder exigir do professor mudanças na sala.
adotadas em nossas escolas, mas, sim, a variedade culta falada no (Inf. 1)
Brasil e aquela utilizada em textos escritos. O ensino de língua portu-
guesa deve incluir também o tratamento de normas diversas: as soci- (7) – Então, é incoerente usar determinadas ações, tomar, to-
almente desprestigiadas e as prestigiadas, como forma de chamar aten- mar a dianteira, fazer um trabalho de vanguarda muito bonito
ção para os seus “domínios próprios”. mas que pode repercutir em sérios prejuízos para a própria
Sobre a necessidade de se promoverem atividades que permi- linguagem. E como nossa colega falou aí, na hora de prestar
tam aos alunos desenvolverem as habilidades de leitura e escrita, afir- um concurso, um vestibular ou para emprego, o empregador
mam os professores que estas são atividades da disciplina que se ou a instituição que vai fazer o concurso não quer saber se ele
relacionam estreitamente e devem ser prioritariamente trabalhadas não, se ele fez parte de um grupo vanguardista que abandonou
em sala de aula. Essa prioridade se justifica pelo fato de o trabalho (risos) a gramática normativa. Ele quer que o estudante seja
com o texto (interpretação e produção) proporcionar aos alunos um completo. E nós não podemos fugir disso. (Inf. 2)
bom desempenho nas outras disciplinas.
Contudo, enquanto um professor apresenta um discurso que
(3) – Eu sempre digo pra meus alunos: “A gente só aprende a considera a necessidade de ensinar gramática, por imposição das ins-
escrever escrevendo! Eu sou professora de Língua Portugue- tituições sociais, outro vai descartá-la quando afirma ser este conhe-
sa, não vou dizer pra vocês como é que escreve.” Eu dou os cimento desnecessário para o aprendizado de interpretação e produ-
pontos da redação, entendeu?, e digo pra eles. Mas eu não pos- ção textuais.
so chegar, entrar na sua cabeça e dizer como é que você vai
escrever. Então você só tem que saber escrever escrevendo. E (8) – Menina, eu peguei duas turmas de oitava, o diabo dos
como é que você vai escrever/ Você tem que ler! Porque você meninos não sabiam nem se expressar! Não sabiam, tinha al-
lendo...(inint.)... Você lendo, você vai ter o quê? Você vai con- guns que nem sabiam emitir sons! Grunhido! Parecendo Fabi-
versar bem, você vai se comunicar bem, você vai fazer tudo ano, de Vidas Secas! Menina, eu comecei trabalhando com
bem! (Inf. 5) Racionais, MC, com Zeca Baleiro. Tá? E fazendo só interpre-
tações! Era o que me interessava! Eu disse: eu não vou pensar
(4) – (Inint.).. que a leitura é essencial, não só pra você estar na agora em gramática! Que eu não vou salvar a pátria de gramá-
sala de aula fazendo uma prova de Língua Portuguesa, mas, tica, nem me interessa que eles saibam que isso é um substan-
sim, uma prova de Geografia, História, Matemática, Física e tivo e aquilo é um adjetivo! O que eu quero é que esses meni-
as demais. E até no seu dia-a-dia, você namorando, você con- nos interpretem! Senão eles vão procurar emprego, vão ver lá
versando no telefone com uma pessoa... E isso é essencial! uma placa: “Necessita-se de operário!” Por não saber que ope-
(Inf. 6) rário é o empregado, ele passa e diz: “Aqui não tem emprego
não! Porque está ali operário, eu sou empregado, se tivesse
Essas idéias estão presentes em obra de Possenti (1996 :32- empregado eu entrava.” Quer dizer, porque não sabem
48), por exemplo. Para este autor, se atinge um elevado “grau de decodificar a mensagem. (Inf.3)
utilização da língua escrita” com a prática constante da leitura e da
escrita. O desenvolvimento da capacidade de leitor e escritor dá-se Pode-se observar que este discurso reflete opiniões presentes
da mesma forma que o desenvolvimento da fala, isto é, aprende-se a em obra de Perini (1997:27) no que se refere ao objetivo do ensino
falar falando e ouvindo, na interação cotidiana com a família e os de gramática como forma de capacitar os alunos a “ler e escrever
demais grupos sociais a que pertence o indivíduo. Assim, também a razoavelmente”. Perini diz desconhecer que esse conhecimento pos-
leitura e a escrita devem ser desenvolvidas lendo-se e escrevendo-se. sa dotar alguém dessa capacidade, que um aluno possa melhorar seu
Sobre o ensino de gramática, os professores fazem referências desempenho na leitura e na escrita por conhecer bem a gramática. Ao
à não aplicabilidade dos conhecimentos que se tenta inculcar nos contrário, o conhecimento da norma padrão e a leitura fluente é que
alunos. As formações discursivas em que estes se inserem nos reve- são pré-requisitos para os estudos gramaticais. Sendo assim, seria
lam que os professores estão divididos entre duas diferentes posturas dispensável esse estudo na sala de aula? Para o autor, não, pois a
que, aparentemente, se chocam: ou se ensina aos alunos a ler e a gramática tem algo a oferecer, especialmente no que se refere à for-
escrever, no sentido mais amplo possível desses termos, ou se ensina mação de “habilidades intelectuais”.
gramática, posto que este conhecimento continua sendo exigido em Os professores entrevistados não demonstraram reconhecer nos
vestibulares e outros concursos. Declaram os professores: estudos gramaticais essa última utilidade destacada por Perini. Dos
seus discursos depreende-se que a ênfase, em sala de aula, deve ser
(5) – (...) Então eu acho que, através do texto, o estudo fica dada à formação de leitores-escritores competentes; os conteúdos de
assim mais completo. Porque daí a gente também vai ver essa gramática sobrevivem em suas práticas apenas por imposição social
parte toda gramatical aí, que muitas vezes não tem, né?, a de- e, certamente, por não possuírem autonomia bastante para decidir o
pender da aula, não precisa ele saber se é substantivo, se é que devem ou não ensinar.
verbo, mas ele entender o que ele leu, não é? O importante é Ao afirmar (8), o professor nos remete às idéias de Faraco &
ele entender! (Inf. 4) Tezza (1992: 59-60) sobre a necessidade de se adquirir a norma

532 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


culta. Isso porque a norma culta nos põe em contato com estruturas partir de que, para que e como ensinar Língua Portuguesa. Os profes-
mais elaboradas do que as da fala e, se não dominamos essa norma, a sores estão esperando que alguém lhes diga que conteúdos devem
nossa compreensão da sociedade em que vivemos será prejudicada, trabalhar, que pressupostos teóricos podem adotar, e quais métodos
posto que não estaremos dotados do conhecimento lingüístico ne- devem aplicar, considerando as condições que lhes são oferecidas
cessário à sua interpretação. De acordo com a formação discursiva nas nossas escolas e as reais necessidades dos alunos.
apresentada em (8), o aprendizado, a compreensão da norma culta Deve-se principalmente considerar qual a utilidade do conhe-
não inclui o ensino de gramática. cimento que se pretende inculcar nos alunos. Mey (1998: 335) desta-
Apesar de atribuírem aos estudos gramaticais uma menor im- ca a compreensão do conhecimento como de maior importância no
portância para a formação de seus alunos, as declarações em (6) e processo de aprendizagem, pois “o conhecimento sem compreensão
(7) denotam a preocupação dos professores no que se refere a mu- não serve, na verdade, para muita coisa”. É necessário, sobretudo,
danças no tratamento dos conteúdos programáticos da disciplina. que, além do sentido, se saiba também qual a aplicação (“direção”)
Como essa responsabilidade é demasiadamente pesada para ser as- do conhecimento que se adquire. A utilidade da disciplina Língua
sumida por eles, deverá partir de órgãos superiores que esclareçam Portuguesa perdeu-se, já há algum tempo, num emaranhado de dúvi-
objetivamente as novas posturas a serem adotadas, os conteúdos a das geradas por práticas e resultados ineficientes.
serem considerados nas diferentes séries. Os discursos dos sujeitos que participaram da nossa pesquisa
Uma das soluções para os problemas enfrentados no ensino da refletem as representações que estes possuem sobre a disciplina que
disciplina estaria na mudança das práticas em sala de aula. Uma pro- lecionam, as dúvidas que os perseguem, a confusão teórica e
fessora, com 24 anos de experiência, admite que a adoção de novas metodológica em que estão mergulhados.
abordagens e novos métodos, bem como a consideração da realidade Abordam-se, nas declarações destacadas, especialmente em (9),
dos alunos despertam o interesse e promovem um real aprendizado. vários aspectos a serem considerados na resolução dos problemas en-
frentados em sala de aula: a adoção de práticas motivadoras, o trabalho
(9) Então é preciso que a gente trabalhe com músicas, contex- com a realidade do aluno, o contato com tecnologias atuais, a “educa-
tos pertinentes à atualidade, com problemas sociais de nossa ção para a vida” (Freire: 1997) e o envolvimento do professor. Passa-
cidade, os problemas econômicos. Se a política está aí, vamos se, assim, da discussão sobre conteúdos programáticos específicos de
trabalhar em política, eleição, mostrando sempre os vários la- uma disciplina para discussões que abrangem todo e qualquer proces-
dos da moeda para o nosso aluno. Eu acho que a gente... Mui- so de ensino-aprendizagem. A crise no ensino de Língua Portuguesa,
tas vezes eu me pego assim repetindo um exemplo, sabe, N.?, então, precisa também ser avaliada e discutida em um plano mais am-
pra um sujeito, pra um predicado, um exemplo que eu usei há plo: o da crise no sistema educacional como um todo.
vinte anos atrás e que eu decorei. Entendeu? (Risos) Tem um
exemplo aí, quando eu trabalho vocativo, eu me lembro que
tem um assim: “Estavas linda!” Olhem!! “Posta em sossego.” Referências bibliográficas
Meu Deus, que diabo é posta? Qual é o aluno que fala em
sossego? Quem é o aluno que vai dizer: “Oh, Inês!” Quer DUCROT, Oswald. Princípios de semântica lingüística (dizer e não
dizer, é o vocativo... É um exemplo tão distante, que eu me dizer). São Paulo: Cultrix, 1977.
dano! Mas quando eu dou por mim eu já coloquei esse “Esta- FARACO, Carlos Alberto, TEZZA, Cristóvão. Prática de texto: lín-
vas linda! Oh, Inês!” Né? Trazer a televisão pra sala de aula, gua portuguesa para nossos estudantes. 5 ed. Petrópolis: Vo-
trazer o filme pra sala de aula! Entende? É... A própria Internet, zes, 1996.
o computador! Quer dizer, tudo o que ele tem lá fora eu devo FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 33 ed. São Paulo: Cortez,
trazer pra cá. Eu acho que é uma maneira de atrair, de prendê- 1997.
lo. Porque eu sei que, quando eu dou minha aula com a moti- GERALDI, João Wanderley (Org.). O texto na sala de aula: exercí-
vação plena, o diabinho presta atenção e eu tenho um bom cios de militância e divulgação. Campinas: Mercado de Letras,
retorno! (Inf. 1) 1996.
MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do dis-
As declarações dos sujeitos da pesquisa, aqui analisadas, rati- curso. 3 ed. Pontes: Campinas, 1997.
ficam as discussões que vêm sendo efetivadas sobre o ensino de lín- MEY, Jacob L. As vozes da sociedade: letramento, consciência e
gua materna em nossas escolas e consideram não apenas questões poder. In: DELTA, v. 14, n. 2. São Paul; Educ, 1998. p. 371-
relacionadas a “o que ensinar”, mas também “como” e “para que 347.
ensinar”. ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento: as
formas do discurso. 4 ed. Pontes: Campinas, 1996.
Conclusão PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação
do óbvio. 3 ed. Editora da Unicamp: Campinas, 1997.
Para os professores entrevistados, o ensino da disciplina Lín- PERINI, Mário. Sofrendo a gramática. São Paulo: Ática, 1997.
gua Portuguesa, como também das demais disciplinas, envolve a con- POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Cam-
sideração de uma série de fatores. O que está em discussão, portanto, pinas: Mercado de Letras, 1996.
não são apenas os conteúdos a serem trabalhados em sala de aula, TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Gramática e interação: uma proposta
mas a premência em se refletir e decidir sobre algumas antigas e para o ensino de gramática no 1º e no 2º graus. 2 ed. São Paulo:
necessárias questões que devem ser levadas em conta: o que, a Cortez, 1997.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 533


Entre a luz e a sombra do silêncio
discursivo da charge/humor
Ivone Tavares de Lucena
Universidade Federal da Paraíba - UFPB

ABSTRACT: The speech humoristic that revests of signification the Bundas Magazine’s texts, brings in its salience of silency a denunciation, a critique, an
irony that are said in no-said, doing the production of various senses in the movement to say and to no-say.
PALAVRAS-CHAVE: memória discursiva, silêncio, discurso, sentido.

Considerando o papel da linguagem como criadora da imagem divisões, de disjunções, de conflitos de regularização.... Um
do mundo, do produto social e histórico, e enxergando-a como ativi- espaço de deslocamentos, réplicas, polêmicas e contra-dis-
dade prática do homem e ainda que contém a capacidade de veicular cursos.
o componente de visão de mundo, procuramos descobrir os sentidos
que circulam num texto. Estes sentidos que se fazem opacos porque É, pois, nas bordas do transcendental histórico que os sentidos
se ocultam na linguagem, devem ser investigados com olho plural; são móveis e podem significar e resignificar através do movimento
sentidos estes que a linguagem omite em sua opacidade. Ler e com- de deslocamentos, de retomadas do pré-construído, do já-dito que se
preender um texto é ir à procura dos processos de produção de senti- instalam na base do dizível, para disponibilizar dizeres novos; dize-
dos que nele circulam. Isto porque entendemos que é no texto que se res estes que simulam a maneira como o sujeito significa em nova
encontram um conjunto de relações significativas situação discursiva. E é no jogo do dizer e do silenciar, no interior da
interdiscursivamente. linguagem, que os sentidos se instauram e fazem a significação. Se-
Ao conceber, a Análise do Discurso (AD), a linguagem como gundo Orlandi (1997:23), a linguagem implica silêncio porque atra-
não transparente, procura enxergar os sentidos que se escondem e vés do não-dito surge a significação: um silêncio significante. Diz
circulam no texto e sua relação com a exterioridade, não atravessan- ela que “ele é sim, a possibilidade para o sujeito de trabalhar sua
do o texto apenas para encontrar um sentido, mas procura atravessá- contradição constitutiva, a que se situa na relação do “um” com o
lo em busca da opacidade do(s) sentido(s) que se entranha(m) na múltiplo”, a que aceita a reduplicação e o deslocamento que nos dei-
linguagem; sentidos que são tecidos na teia constitutiva do texto. xam ver que todo discurso sempre se remete a outro discurso que lhe
Dessa forma, sob a luz da AD, vamos em busca do(s) sentido(s) dá realidade significativa”.
múltiplo(s) que se embrenham no texto. E, para tanto, partiremos do Segundo esta autora, nas palavras há silêncio e, porque silen-
discurso enquanto seu funcionamento e considerando-o como o “lu- ciam, este silêncio fala por elas. E, por considerar as palavras como
gar em que se pode observar a relação entre língua e ideologia, com- cheias de sentidos a não se dizer, assevera ainda, que colocamos muitas
preendendo-se como a língua produz sentido por/para sujeitos” delas no silêncio. Isto quer dizer que o silêncio que atravessa as pala-
(Orlandi,1999:17). Trata-se de observar o discurso como conjunto vras é “fundante” porque podem fazer o sentido ser outro, e que os
de práticas que estão armazenadas numa memória institucionalizada. vários modos de existir dos sentidos e do silêncio podem ser o prin-
O processo constitutivo do discurso está na memória, no domínio do cípio da significação.
saber, dos dizeres já ditos. Analisando o discurso de Revista Bundas, observamos que
Sob essa ótica, a AD procura “escutar” o já dito no dito e no as palavras são atravessadas de silêncio e que, por este olhar, pode-
não-dito o que significa dizer que existe uma relação significativa
mos enxergar que o sentido pode ser outro. O jogo de palavras cria
entre o dizer e o não dizer, noção que encampa o interdiscursivo, a
sentido(s) que se instaura(m) entre a luz e a sombra do dizer e do
ideologia, a formação discursiva, a memória. A AD parte do dizer, de
não-dizer. É preciso “escutar” os sentidos não-ditos como condi-
suas condições e da relação estabelecida com a memória, com o que
ção de significar no discurso humorístico que se faz presente nas
se chama de “saber discursivo”, e vai em direção à significação do
charges de supracitada Revista. O humor que reveste o seu discurso
não-dito, daquilo que é silenciado e que constitui sentido(s): busca
é uma forma de esconder “o dizer”, de omitir, de burlar ou brincar
os múltiplos sentidos que se instauram, no texto: o que está entre a
com a denúncia, uma vez que os sentidos construídos pela charge/
luz e a sombra do dizer e do não-dizer. O que está sempre lá, nas
humor são produzidos em uma outra direção, conforme uma me-
“profundezas de um paradigma que estrutura o retorno do aconteci-
mento sem profundidades” (Pêcheux, 1999:55). É o que acontece mória discursiva, significando através de outros dizeres ditos em
com o remanejamento do(s) sentido(s) que se silenciam na memória outros lugares. As mensagens que circulam nesta revista não são
discursiva dos sujeitos-enunciadores e que reaparecem para dar nova mensagens para serem apenas decodificadas, mas devem ser
significância aos novos dizeres. Assim, a memória exerce um papel descortinadas através do funcionamento dos discursos que se apre-
fundamental no processo de discursivização cujo(s) sentido(s) são sentam como um conjunto de práticas discursivas que se armaze-
“repetições” de pontos de vista da memória que guarda, no seu “si- nam numa memória institucionalizada e que tais mensagens devem
lêncio” marcas reais do real histórico e que, com sua remissão a este ser vistas como “efeitos de sentidos que são produzidos em condi-
outro exterior, traz desdobramentos, réplicas, polêmicas, contra-dis- ções determinadas e que estão de alguma forma presentes no modo
cursos numa resignificação constitutiva de novos dizeres. Segundo como se diz” (Orlandi,1999: 30). Os sentidos construídos na revis-
Pêcheux (1999:56) ta são vestígios de outros discursos ditos em outras condições de
produção e que são retomados em outro contexto sócio-histórico-
...uma memória não poderia ser concebida como uma esfera ideológico convocados por uma discursividade construída por um
plena, cujas bordas seriam transcendentais históricas e cujo sujeito que faz significar em uma situação.
conteúdo seria um sentido homogêneo, acumulado ao modo Numa leitura mais profunda de algumas charges discursivas
de um reservatório: é necessariamente um espaço móvel de de Bundas, detectamos que aquilo é silenciado, que permanece na

534 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


“sombra”, no não-dito constitui o sentido fundamental do que a re- gou durante seu desempenho como trabalhador, uma vez que ela só
vista pretende veicular. Entre o dizer e o não-dizer (ou o silenciar), se efetiva quando o indivíduo morre. O que quer dizer da lentidão do
desenvolve-se uma significação construída com o jogo lúdico das andamento burocrático que assola todos os setores deste país. A “brin-
palavras que remetem a outros dizeres produzindo efeitos de senti- cadeira” ou o recurso da charge silencia, no interior da linguagem do
dos especiais: a denúncia, a censura sem dizer: é o não-dizer no dito. texto, construindo a significação e garante o movimento do sentido
que sai do “brincar”, do riso para dizer uma verdade que se faz cons-
O que caracteriza o discurso da citada revista é seu modo de funcio-
tatada pela memória discursiva do enunciador.
namento, seu processo discursivo que usa do recurso do riso, do
humor, da charge para denunciar o que é o Brasil, seus políticos, sua CHARGE 02
corrupção, sua “cara”. Com esses procedimentos discursivos, a re-
vista Bundas procura apresentar um retrato do Brasil: silenciando
através do humorismo e retomando discursos e situações ditas e
vivenciadas em outros momentos: um saber discursivo armazenado
na memória sócio-histórico-ideológica de um país que sofre de uma
corrupção que envergonha o país.
Para averiguação do funcionamento discursivo, selecionamos
algumas minicharges do Jaguar do Almanaque Bundas (Ano 2- nú-
mero 80- 20 de fevereiro de 2001). As articulações discursivas, que
estão na tessitura do texto, entremeadas pela charge-humor mostram,
através do riso, da “brincadeira” a denúncia, a corrupção que assola
o país e o estado deplorável em que se encontra o Brasil: um país que
se afoga num mar de corrupções, de políticos corruptos, de um go-
verno politicamente desmoralizado e que afunda o país na miséria,
na fome, no desemprego. Um país que não respeita a Educação, a
Saúde, o idoso, o aposentado. As denúncias que nos fazem ver este
retrato do Brasil estão não retratadas de forma tão transparente por-
que elas se “escondem” no humor que compõem as estruturas dos
textos. Elas vêm de forma “silenciada”, não-dita, “escondidas” pela Neste quadrinho o humor “esconde” o significado real da de-
construção do discurso humorístico, pela discursividade, núncia: o governo acusa os trabalhadores de agiotas, enquanto estão
intertextualidade, por vozes que bradam por um Brasil melhor. Elas na ativa, e de vagabundos, enquanto aposentados. Isto nos remete ao
estão numa memória sócio-histórico-ideológico-discursiva que re- discurso do FHC que, em outro momento, destratou o professor,
veste o texto da referida revista. Esta memória busca o sentido que quando este lutava, em 1998, por melhores salários, por uma Univer-
sidade pública e gratuita e por melhorias para a educação. O governo
está “lá” no que Pêcheux chama de “profundezas de um paradigma”.
usou de seu lugar social e tachou o professor de vagabundo deixando
Os sentidos são remanejados de outros lugares. Eles estão silencia- sua marca de antidemocrata, repressor e ditador. Discurso este que
dos na memória e reaparecem para dar novo significado aos novos até hoje é retomado e resignificado em outros textos. A ironia que é
dizeres. Vejamos as charges: revestida pelo humor faz a constituição da significação: o não-dizer,
que se esconde na “brincadeira”, é revestido pela charge e pelo valor
CHARGE 01 da piada, é uma forma de silenciar a denúncia, e a crítica se constrói
sob a estrutura da piada e do riso. Esse brincar com o discurso do
trabalhador que interdiscursa com o do FHC quer dizer que o Presi-
dente do Brasil não respeita seus trabalhadores e ainda os acusa, irô-
nica e anti-eticamente, de vagabundo, como se a aposentadoria fosse
ilegal e o trabalhador tivesse fugindo dos seus afazeres. Com esse
discurso, o presidente “pinta” sua imagem de governo Neo-liberal,
demagogo e nos passa uma ideologia anti-socialista, antidemocrática.

CHARGE 03

Neste quadrinho temos um processo discursivo humorístico


que denuncia o descaso do governo com os aposentados. A ironia,
que reveste de sentido o texto, acusa o governo FHC de não valori-
zar os trabalhadores que já deram sua quota de contribuição para o
desenvolvimento e crescimento do país. Ao chegar a idade de apo-
sentadoria, ela não de realiza por causa da desatenção com que são
tratados todos os casos. O “brincar” com o aposentado que é para-
benizado pelo amigo ou parente no cemitério, constrói a significa-
ção do descaso e do abandono do governo referente à aposentadoria.
O que a charge quer dizer é: no Brasil, o aposentado não pode usu-
fruir dos benefícios da aposentadoria a que tinha direito porque pa-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 535


O humor que esconde o significado real da denúncia deste qua- ciar, não o usuário, mas a empresa. Há, ainda, uma denúncia por trás
drinho, está na opacidade da linguagem do discurso humorístico e se do humor, construída pelo discurso do enunciador que, na verdade,
constrói no conjunto de relações significativas que se relacionam com quer dizer: no Brasil não existe assistência médica; a saúde neste país
o dizer dos enunciadores do quadrinho e o brincar da charge que na é uma farsa e aqueles que têm recursos podem recorrer aos planos de
“sombra” do humor denuncia a situação do professor no país; a des- saúde e estes, por sua vez, não atendem às necessidades a que se
valorização do governo que caminha para a extinção do professor. prestam. O enunciador zomba, critica e faz “ver” que a saúde neste
Essa denúncia vem registrada no discurso do enunciador da piada país não é abraçada pelo governo. O que significa dizer que esta
que responde pelo discurso do professor. É neste brincar que o(s) verdade da mensagem se faz silenciar pelo discurso humorístico que
sentido(s) circula(m) num movimento de ir e vir, interdiscursivamente, reveste de significação específica o texto.
fazendo entrever a significação construída entre o dito e o não-dito Diante desta leitura, podemos concluir que o dizer humorísti-
trazida por uma memória discursiva capaz de deslocar, remover sen- co constitui efeito de sentido que está por trás do texto e que já foi
tidos e construir contra-discursos. dito em outros lugares e por outros sujeitos e respondem por uma
ideologia que se conserva na memória discursiva. É o processo
CHARGE 04 discursivo da piada o responsável pela construção dos sentidos que
se movimentam entre o dizer e o não-dizer veiculado pelo jogo de
palavras, pelo humor, pela crítica que se esconde, na charge/humor,
definindo então o silêncio como a garantia desse movimento de sen-
tidos. E é neste “silêncio fundante” que os sentidos tornam-se outros
e são estes vários modos de existir dos sentidos que se constitui a
significação do discurso da revista Bundas: procura dizer através
do não-dizer, brincando com a opacidade da linguagem todavia tra-
zendo, nas suas entranhas, o significado do não-dizer.

Referências bibliográficas:

ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria e efeitos do trabalho simbó-


lico. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
_______. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campi-
nas, SP: Pontes, 1999.
_______.As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 4. ed.
Neste quadrinho, há um enunciador que denuncia, por trás da Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997.
brincadeira, do humor, uma prática vergonhosa no tangente à Saúde PÊCHEUX, M. in ACHARD, Pierre...[et al.] Papel da
do Brasil. É uma crítica ao sistema de planos de saúde brasileiro que, memória.Campinas, SP : Pontes, 1999.
sem controle das autoridades, fixam suas normas de forma a benefi- Almanaque Bundas. Ano 2 - N. 80 - 20 de fevereiro de 2001.

536 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Na teia discursiva da fábula: procedimentos
semânticos de tematização e/ou figurativização
Maria Angélica de Oliveira
Universidade Federal da Paraíba - UFPB

ABSTRACT:Through discoursive perspective, we pretend in this work to identify the relations of power in the fables ant the social context that it went
produces, analysing relations of power presents into discourse of fables.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso, tematização, figurativização, sentido.

Os procedimentos semânticos de tematização e de para a justa partilha do nosso esforço conjunto. Compadre burro, por
figurativização são responsáveis pela construção dos sentidos do dis- favor, você que é o mais sábio de nós três (com licença do compadre
curso. Existem discursos predominantemente temáticos, os quais or- rato), você, compadre burro, vai fazer a partilha desta caça em três
ganizam-se com temas e os discursos figurativos construídos basica- partes absolutamente iguais. Vamos, compadre rato, até o rio beber
mente por figuras. Nos primeiros, a ideologia apresenta-se através um pouco de água, deixando nosso grande amigo burro em paz para
dos temas, enquanto que no discurso figurativo, a ideologia instaura- deliberar.”
se a partir da relação entre temas e figuras. Portanto, é através dessa Os dois se afastaram, os dois foram ao rio, beberam água e
íntima relação entre tema e figura que é manifestado o universo ide- ficaram um tempo. Voltaram e verificaram que o burro tinha feito
ológico no qual fundam-se os vários discursos. Dentro desta pers- um trabalho extremamente meticuloso, dividindo a caça em três par-
pectiva, desenvolvemos uma breve análise dos processos de tes absolutamente iguais. Assim que viu os dois voltando, o burro
tematização e/ou figurativização das relações de poder presentes na perguntou ao leão: “Pronto, compadre leão, aí está – que acha da
fábula: “O leão, o burro e o rato” de Millôr Fernandes (1978) e seu partilha?” O leão não disse uma palavra. Deu uma violenta patada na
intertexto “La Génisse, la Chèvre et la Brebis, en société avec le Lion” nuca do burro, prostrando-o no chão, morto.
de La Fontaine (séc. XVII). Sorrindo, o leão voltou-se para o rato e disse: “Compadre rato,
Para efeitos estruturais denominamos: lamento muito, mas tenho a impressão de que concorda em que não
podíamos suportar a presença de tamanha inaptidão e burrice. Descul-
La Génisse, la Chèvre et la Brebis, en société avec le Lion pe eu ter perdido a paciência, mas não havia outra coisa a fazer. Há
(F1) muito que eu não suportava mais o compadre burro. Vou até o rio,
O leão, o burro e o rato (F2) novamente, deixando-lhe calma para uma deliberação sensata.”
Mal o leão se afastou, o rato não teve a menor dúvida. Divi-
Vejamos os textos que servirão à análise: diu o monte de caça em dois. De um lado toda a caça, inclusive o
corpo do burro. Do outro apenas um ratinho cinza morto por acaso.
La Génisse, la Chèvre et la Brebis, en société avec le Lion (F1) O leão ainda não tinha chegado ao rio quando o rato o chamou:
“Compadre leão, está pronta a partilha!” O leão, vendo a caça dividi-
La Génisse, la Chèvre et leur soeur la Brebis, da de maneira tão justa, não pôde deixar de cumprimentar o rato:
Avec un fier Lion, seigneur du voisinage, “Maravilhoso, meu caro compadre, maravilhoso! Como você che-
Firent société, dit-on, au temps jadis, gou tão depressa a uma partilha tão certa?” E o rato respondeu: “Muito
Et mirent et commun le gain et le dommage. simples. Estabeleci uma relação matemática entre seu tamanho e o –
Dans les lacs de la Chèvre un cerf se trouva pris. meu – é claro que precisa comer muito mais. Tracei uma comparação
Vers ses associés aussitôt elle envoie. entre a sua força e a minha – é claro que você precisa de muito mais
Eux venus, le Lion par ses ongles compta, volume de alimentação do que eu. Comparei, ponderadamente, sua
Et dit: “Nous sommes quatre à partager la proie”. posição na floresta com a minha – e, evidentemente, a partilha só
Puis en autant de parts le cerf il dépeça; podia ser esta. Além do que, sou um intelectual, sou todo espírito!”
Prit pour lui la première en qualité de Sire: “Inacreditável, inacreditável! Que compreensão! Que argúcia!” ex-
“Elle doit être à moi, dit-il; et la raison, clamou o leão, realmente admirado. “Olha, juro que nunca tinha no-
C’est que je m’appelle Lion: tado, em você, essa cultura. Como você escondeu isso o tempo todo,
À cela l’on n’a rien à dire. e quem lhe ensinou tanta sabedoria?” “Na verdade, leão, eu nunca
La seconde, par droit, me doit échoir encor: soube nada. Se me perdoa um elogio fúnebre, se não se ofende, aca-
Ce droit, vous le savez, c’est le droit du plus fort. bei de aprender tudo agora mesmo, com o burro morto.”
Comme le plus vaillant, je prétends la troisième.
Si quelqu’une de vous touche à la quatrième, Moral: Só burro tenta ficar com a parte do leão.
Je l’étranglerai tout d’abord”.
1. A conjugação de esforços tão heterogêneos na destrui
O leão, o burro e o rato ção do meio ambiente é coisa muito comum.
2. Enquanto estavam bebendo água, o leão reparou que o
Um leão, um burro e um rato voltaram, afinal, da caçada que rato estava sujando a água que ele bebia. Mas isso é ou
haviam empreendido juntos e colocaram numa clareira tudo que ti- tra fábula.
nham caçado: dois veados, algumas perdizes, três tatus, uma paca e 3. Os ratos devem aprender a se alimentar de ratos. Como
muita caça menor. O leão sentou-se num tronco e, com voz tonitruante diziam os latinos: “Similia similibus jantantur.”
que procurava inutilmente suavizar, berrou: “Bem, agora que termi-
namos um magnífico dia de trabalho, descansemos aqui, camaradas, De acordo com Foucault (1999) o poder é exercido por dife-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 537


rentes comadas sociais, em qualquer tempo e espaço, transitando entre Em (F2), o leão dirige-se aos seus “camaradas” sempre empre-
os sujeitos. Caracterizado como um conjunto de relações que circula gando palavras cordiais: compadre burro, nosso grande amigo, des-
por toda parte do corpo social, o poder não deve ser visto como um culpe eu ter perdido a calma, meu caro compadre, através de um
objeto que pertence a determinados sujeitos, pois estes não são de- discurso altamente enaltecedor, transparecendo amizade e admiração:
tentores do poder, ao contrário, são efeitos do poder, o qual passa “compadre burro, por favor, você que é o mais sábio de nós três”,
através deles e os constitui. Não sendo sobreposto aos sujeitos, o “com licença do compadre rato”, “que argúcia”, “que compreensão”,
poder transita por eles, funcionando e exercendo-se em rede, em procurando mascarar a sua crueldade que é tão grande quanto aquela
micro-relações de poder. do rei em (F1). Através do comportamento desta personagem, o autor
Tais relações de poder, as quais transitam pelos sujeitos, que figurativiza, de forma irônica, as relações de poder da sociedade mo-
ora estão na posição de desempenhar o exercício do poder, e ora derna, que, apesar de se dizer democrática, seus governantes assumem
estão na posição de sofrer sua ação, não são relações análogas, ao o poder de uma forma não tão democrática, governando a partir de um
contrário, são relações desiguais, implicando, diríamos, numa suposta autoritarismo disfarçado de Democracia, espelhando assim não ape-
escala de níveis de exercício do poder, ou seja, de acordo com o lugar nas a interdiscursividade com o contexto sócio-histórico de (F1), como
social ocupado pelo sujeito, o poder transita sobre ele com um maior também o contexto a partir do qual esta fábula fora produzida. A todo
ou menor grau de intensidade. instante, como já foi dito, o rei de (F2) elogia seus “camaradas”, pro-
Podemos verificar tal hierarquização do poder na relação move até um certo diálogo entre eles, dando-lhes a responsabilidade
entre o leão e os outros animais de (F2) e seu intertexto (F1). Em da partilha da caça lhes delegando este exercício do poder, no entanto,
ambas as fábulas, compete ao leão a “organização” da partilha da quando estes não fazem exatamente aquilo que era desejado pelo mo-
caça, fazendo ele mesmo a patilha ou delegando o exercício do po- narca, pagam com a vida. Tal atitude do rei leão confirma as palavras
der aos outros animais. Na maioria das fábulas, o leão figurativiza de Poulantzas (1985) quando fala sobre o poder moderno. Segundo
a força, a coragem, a autoridade, ocupando o lugar social de mo- este, o poder moderno não deve ser caracterizado simplesmente atra-
narca na representação da organização do corpo social. Tal lugar vés do binômio repressão-interdito, ignorando assim o papel da vio-
social confere ao leão o poder de mando, de dominação, podendo lência física da sociedade moderna. Assim, “concluir que o poder e o
este, além de determinar a partilha da caça, como já foi dito, decidir domínio modernos não se baseiam na violência física é a ilusão atual.
também sobre a vida dos que a ele estão subordinados, no caso, os Mesmo que essa violência não transpareça no exercício cotidiano do
herbívoros. Vejamos: poder como no passado, ela é mais do que nunca
(F1) Si quelqu’une de vous touche à la quatrième, je determinante.”(Poulantzas, 1985: 90)
l’etranglerai tout d’abord. Em (F2), a figura do burro mantém, assim como a figura dos
(F2) O leão não disse uma palavra. Deu uma violenta patada outros herbívoros em (F1), os temas de docilidade, de ingenuidade e
na nuca do burro, prostrando-o no chão, morto. de submissão, o que, de certa forma, legitima o exercício do poder
Este gesto brusco de dar patada, também figurativiza o poder do rei leão, pois as relações de poder se manifestam de diferentes
do leão: o poder matar o burro confere-lhe seu lugar social de “rei”. formas em todo e qualquer lugar, são micro-relações nas quais um
Como sabemos, a figura é um elemento semântico que repor- sujeito assume o papel de autoridade e um outro legitima essa auto-
ta-se a um elemento do mundo natural que por sua vez está associado ridade. Enquanto a figura dos herbívoros mantém esse traço de sub-
a um tema. O tema dominação associado à figura do leão (carnívoro) missão e docilidade a figura do rato traz consigo a sagacidade que é
e o tema subordinação associado à figura dos demais animais das um outro traço fundamental em sua relação de dominado com o leão,
duas fábulas (herbívoros), com exceção do rato que é onívoro, estão o que lhe garante também um certo exercício do poder que vai lhe
relacionados ao lugar que ambos ocupam na própria cadeia alimen- salvar a vida. Podemos perceber tal exercício do poder através de
tar, na qual os últimos (herbívoros) servem de alimento aos primei- seu discurso persuasivo e de atitude “correta” ao dividir a caça de
ros (carnívoros). forma tão “justa” aos olhos do rei leão.
O lugar social ocupado pelo monarca (o leão) é determinante
para justificar o seu poderio sobre os outros animais. Isto fica evi- (F2) “Muito simples. Estabeleci uma relação matemática
dente através do discurso do narrador em (F1) e do discurso do rato entre seu tamanho e o – meu – é claro que precisa comer muito mais.
em (F2). Vejamos: Tracei uma comparação entre a sua forca e a minha – é claro que
você precisa de muito mais volume de alimentação do que eu. Com-
(F1) Prit pour lui la première en qualité de Sire. parei, ponderadamente, sua posição na floresta com a minha, evi-
(F2) Comparei, ponderadamente, sua posição na floresta com dentemente, a partilha só podia se esta.”
a minha – e evidentemente, a partilha só podia ser esta.
Apesar da ingenuidade do burro, considerada inaptidão e
O possuir o primeiro pedaço, na qualidade de “Senhor” tam- burrice pela leão, é através de sua ( do burro) experiência e sabedoria
bém lhe dá o status de poderoso. Aqui temos, novamente, o poder que o rato consegue se livrar das garras do rei. Ao observar o que
figurativizado na figura do leão, “o rei da floresta”. acontecera ao “compadre burro”, o rato dividiu a caça de forma jus-
Em (F1), o monarca manifesta seu poderio sem nenhum tipo ta, aos olhos do “compadre leão”, é claro: “Na verdade leão, eu nun-
de adorno, de forma imediata, sendo, portanto, o único que na fábula ca soube nada. Se me perdoa um elogio fúnebre, se não se ofende,
tem o direito ao discurso, realizando o exercício do poder de forma acabei de aprender tudo agora mesmo, com o burro morto”. O dis-
absoluta, sem limites, revelando assim as características próprias do curso persuasivo do rato também é responsável em livrá-lo do mes-
poder absolutista, no qual a autoridade pertence a uma única pessoa, mo fim que o burro. A partir de seu discurso, o rato nos mostra que a
o monarca. Através do seu discurso e de suas atitudes, podemos iden- verdade e a justiça são sempre a verdade e a justiça do mais forte,
tificar a interdiscursividade com o discurso do poder do contexto pois o discurso é o lugar em que as formações ideológicas se materi-
sócio-histórico, no qual esta fábula fora produzida. No século XVII, alizam, organizando e determinando o próprio discurso. Ao ser or-
a França vivia a Monarquia Absoluta. Neste sistema de governo, o ganizado pelas formações ideológicas, o discurso cita outros discur-
monarca “tem” poderes absolutos, sem barreiras determinadas por sos, instaurando a interdiscursividade. Podemos perceber através do
um parlamento ou constituição. discurso de suas personagens que ambas as fábulas interdiscursam

538 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


com os discursos do contexto histórico a partir dos quais foram Levando-nos a concluir que não importa em que sociedade seja, sem-
produzidas, e de forma particular, podemos perceber que (F2), como pre encontraremos relações de poder múltiplas, as quais cruzam, fun-
discurso irônico, não só interdiscursa com seu contexto histórico, dam e determinam as particularidades do corpo social, e é, pois, atra-
como também, com os discursos presentes em (F1), pois vés do discurso que os sujeitos exercem o poder e são submetidos a
ele. Seria impossível pensar estas relações de poder dissociadas do
“a ironia é surpreendida como um procedimento intertextual, funcionamento discursivo, pois sem este funcionamento, sem sua
interdiscursivo, sendo considerada, portanto, como um pro- circulação e essa produção discursiva as relações de poder não se
cesso de meta-referencialização, de estruturação do fragmen- estabeleceriam. Não existe probabilidade do exercício do poder dis-
tário e que, como organização de recursos significativos, pode tante, dividido, desmembrado da prática discursiva. Segundo Foucault
provocar efeitos de sentido como a dessacralização do discur- (1999:179), “somos julgados, condenados, classificados, obrigados
so oficial ou o desmascaramento de uma pretensa objetividade a desempenhar tarefas e destinados a um certo modo de viver ou
em discursos ditos com neutros.” (Brait, 1996: 15) morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem consigo efei-
tos específicos de poder.” E é sob estes efeitos específicos que os
As notas de rodapé presentes em (F2) são extremamente res- procedimentos semânticos de tematização e/ou figurativização ma-
ponsáveis pelo procedimento irônico desta fábula, confirmando a terializam o poder na teia discursiva da fábula.
relação intertextual e interdiscursiva imprescindíveis a este tipo de
discurso. A primeira nota ao referir-se à união dos personagens para Referências bibliográficas
a caçada traz consigo a interdiscursividade com o discurso ecológi-
co: “a conjugação de esforços tão heterogêneos na destruição do meio BRAIT, Beth. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas: Unicamp,
ambiente é coisa muito comum”, apresentando assim uma denúncia 1996.
à relação do homem moderno com o meio ambiente. A outra nota FERNANDES, Millôr. Novas fábulas fabulosas. 5 ed. Rio de Janei-
dialoga com o discurso de uma outra fábula, “O lobo e o cordeiro”, ro: Nórdica, 1978.
na qual também o poder do mais forte é o que vale, de forma mais FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução por: Roberto
específica, poderíamos dizer que essa nota nos apresenta a Machado. 14 ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
intertextualidade, pois mostra claramente na superfície textual mar- ___. Vigiar e punir. Tradução por: Raquel Ramalhete. 20 ed. Petrópolis:
cas do outro texto, o que se situa no campo da heterogeneidade mos- Vozes, 1987.
trada, apresentado também as várias vozes constitutivas do discurso POULANTZAS, Nicos. Poder político e classes sociais. Tradução
irônico do poder. de Francisco Silva; revisão de Carlos Roberto F. Nogueira. 2 ed.
A moral de (F2) confirma-nos a sua interdiscursividade não São Paulo: Martins Fontes, 1986.
apenas com o contexto histórico-social dela mesma, mas também ___. O Estado, o poder, o socialismo. 2 ed. Rio de Janeiro: Graal,
com o discurso do poder do contexto sócio-histórico de (F1), como 1985
já havíamos salientado: “Só burro tenta ficar com a parte do leão”.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 539


Discurso religioso:
vox dei ou vox homini ?
Cláudia Rejanne Pinheiro Grangeiro
Universidade Regional do Cariri - URCA

Se Deus descesse à terra,


haveria silêncio grande
(Clarice Lispector)

ABSTRACT:This paper is a chapter of our master´s dissertation entitled: the religious discourse in the cordel literature from Juazeiro do Norte. Leaving of
the theoretical presuppositions of the french Discourse Analysis, we discussed some characteristics of the discourse Christian religious.
PALAVRAS-CHAVE: religião, subsunção, silêncio.

Há uma ligação estreita entre a linguagem e a religião. Desde Entretanto, há, na humanidade, uma eterna angústia com a tran-
os rituais mágicos das religiões primitivas até os ritos sagrados das sitoriedade da vida, onde habita o sentimento religioso. A própria
religiões contemporâneas, a linguagem tem uma função essencial. palavra religião vem do latim religare, que significa exatamente
Tanto é assim que nos sacramentos (batismo, casamento), efetiva-se religação. Mas religação do quê com o quê? Analisando a mitologia
a transformação dos estados a partir da dicção de palavras por um de várias culturas, Marcelo Gleiser, em seu livro A Dança do Univer-
sujeito autorizado - o padre ou pastor. A própria Bíblia sagrada dos so (1997) afirma que, em geral, todas as culturas atestam a existên-
cristãos é um grande livro de Lingüística, no qual se verifica o papel cia de uma realidade absoluta ou de um Absoluto. E que a solução
criador da linguagem. Segundo ela, a própria Criação ocorreu quan- desse problema, em todas elas, é religiosa:
do Deus disse: “exista a luz e a luz existiu.” (Gen 1,3).
Quanto ao fenômeno “religião”, está no cerne de uma diver- Esse Absoluto é o elemento central na estrutura de todas as
gência secular na humanidade, por ser, também um sistema de expli- religiões, dando assim um caráter religioso aos mitos da cria-
cação da origem do mundo e do homem, pois há os que defendem a ção. O Absoluto, então, incorpora em si a síntese de todos os
tese da origem animal da humanidade, dentre os quais, Engels. Em a opostos, existindo por si só, independente da existência do
origem da família, da propriedade privada e do estado (1978), reto- universo. Ele não tem uma origem, já que está além de rela-
mando a teoria evolucionista de Darwin (para quem, o homem teria ções de causa e efeito. Esse Absoluto pode ser Deus, ou o do-
evoluído de uma espécie superior de símios antropomórficos) e as mínio de vários deuses, ou o Caos Primordial, ou mesmo o
pesquisas antropológicas de Morgan, Engels afirma que a religião, Vazio, o Não - Ser. (Op.Cit.: 25).
nasce concomitante à exploração do homem pelo homem, como ide-
ologia legitimadora dessa exploração. Para ele, o sentimento religio- Temos, assim, segundo a Bíblia dos cristãos, a origem do
so originava-se do medo que o homem primitivo sentia das forças da mundo: “no princípio, Deus criou o céu e a terra” (Gênesis 1,1)
natureza desconhecidas. (...); e a origem do homem: “e criou Deus o homem à sua imagem
Marx em Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel (...) e criou-os varão e fêmea” (Gen, 1,27). Esse Ser que, segundo
(1979) expõe o seu pensamento sobre a religião, o qual desenvol- a Bíblia criou o universo, foi chamado pelos judeus de IAVÉ. Eduard
veu-se em meio a uma luta política que travou não com qualquer Scouré (1985: 156) em Os grandes iniciados - história secreta das
instituição religiosa, mas com os chamados hegelianos de esquerda, religiões, citando o grande pesquisador francês Fabre d’ Olivet
que atribuíam à religião a responsabilidade pelas mazelas da socieda- explica o nome IAVÉ:
de e propunham um programa educativo, cujo objetivo era fazer as
pessoas abandonarem as suas idéias religiosas. Para Marx, a religião Este nome oferece primeiro o sinal indicador da vida, duplo e
não era culpada pela simples razão de que ela era apenas uma som- formando a raiz essencialmente viva EE (Rp). Esta raiz jamais
bra, um eco, um reflexo. Se as pessoas possuem religião é porque sua é empregada como nome e é a única que goza desta prerroga-
situação assim exige. Estava em busca do que, para ele, eram as ver- tiva. Ela é desde a sua formação, não somente um verbo, mas
dadeiras forças que movem a sociedade. Se não é a consciência que um verbo único, do qual os outros são derivados. Em uma
determina a existência, mas é essa que determina a primeira ... é o palavra, o verbo tp (Eva) ser sendo... Aqui, o sinal inteligível
homem que faz a religião, a religião não faz o homem. Para Marx t aparece no meio da raiz de vida. Moisés, tomando este verbo
(1979: 90,91): por excelência para com ele formar o nome próprio do Ser dos
seres, a ele acrescentou o sinal da manifestação potencial e da
O sofrimento religioso é, ao mesmo tempo, expressão de um Eternidade, (I), obtendo ptp (IEVA), no qual o facultativo sen-
sofrimento real e um protesto contra um sofrimento real. Sus- do se encontra colocado entre um passado sem origem e um
piro da criatura oprimida, coração de um mundo sem cora- futuro sem fim. Esse nome admirável significa exatamente: o
ção, espírito de uma situação sem espírito: a religião é o ópio Ser que é, que foi e que será.
do povo.
É assim que a religião aparece para o homem: como um siste-
Ópio, aqui, deve ser entendido como o sol ilusório que gira em ma que lhe ativa os esquemas de sentido. Aparece como um código,
torno do homem à medida em que ele não gira em torno de si mesmo. uma fala, um discurso, que promoverá a religação com o seu Criador.
Para Marx, os homens criam seus deuses à sua imagem e semelhança. Como exemplificação da estrutura formal de qualquer ideolo-

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gia, Althusser (1974: 73) coloca a ideologia religiosa cristã. Como, Nesse sentido é que existem milhares de religiões, reivindi-
para ele, o termo central decisivo é a noção de sujeito, define o dis- cando para si a interlocução de Deus. Só religiões e seitas que se
curso religioso como “aquele em que fala a voz de Deus.” Segundo autodenominam cristãs, existem mais de duas mil, todas postulando
esse autor, “Deus define-se a Si mesmo como sujeito por excelência, a autoridade de falar em nome do Criador, instalado a disputa pelos
aquele que é por si e para si (Sou Aquele que É) e aquele que interpe- bens simbólicos da salvação. Pelo fato de Deus não falar, pelo menos
la seu sujeito (...) “eis quem tu és: és Pedro.” Orlandi (1986: 244), não diretamente, por meio de um mecanismo diretamente apreensível,
acrescentado a essa definição, afirma que, no discurso religioso, ocorre todas essas instituições, essas formações sociais, produzem discur-
a “subsunção de uma voz por outra (estar no lugar de) (...). Assim, sos, segundo as próprias, representando a Voz de Deus, como sujei-
quando digo que a voz de Deus se fala no padre, é como se Deus tos religiosos.
falasse: a voz de padre é a voz de Deus. Essa é a forma da represen- Assim, no discurso religioso, o homem é um sujeito interpela-
tação (...), a relação simbólica”, ou seja, é uma voz que se fala na do por um Sujeito superior a ele, e O reconhece como tal, reconhece
outra da qual é representante. que Deus tem condições de mandar, de ordenar, de determinar, por-
Portanto, nessa formação discursiva, Deus é o Sujeito Abso- que Ele tem o poder de punir. Ele é que decide sobre a vida e a morte,
luto, o Sujeito por excelência, é a origem e a finalidade do verbo e é sobre a felicidade e o infortúnio. E o homem é o ser pecador, que já
o próprio verbo. Aquele que é, que foi e sempre será e os homens são nasceu com um dever-fazer e um dever não-fazer, é naturalmente
os sujeitos interpelados. Jesus Cristo é o verbo encarnado, aquele culpado: “mea culpa, mea maxima culpa”, pois já nasceu de um pe-
que, por ter sido também homem, é a face humana de Deus, o medi- cado, de um ato de desobediência, é um ser indigno - “não sou digno
ador mais direto entre a humanidade e o Criador. “Eu sou o cami- de que entreis em minha morada”, (Mt:8,8), o que necessita batizar-
nho, a verdade e a vida, ninguém vai ao Pai senão por mim.” se, para tirar a mácula do pecado original. Quando criança deve co-
(Lc:10,22). mungar. Na adolescência, crismar-se. Para praticar o ato sexual, deve
Desta forma, observa-se uma nítida distinção ente o Sujeito e novamente ser autorizado pelo representante de Deus na terra que é o
os sujeitos vulgares: Deus é o Sujeito e os homens são os seus padre ou o pastor. Quando morre, deve, também, receber a extrema-
interlocutores interpelados, os seus espelhos, os seus reflexos, os que unção, ou seja, a encomenda da alma pelo padre, para que possa ser
foram criados à Sua imagem e semelhança. recebido no Reino Eterno.
Sobre essa questão, afirma Orlandi (1996: 243): É desta forma que a maior parte da humanidade vive em busca
de “ouvir” a voz de Deus para poder segui-la e encontrar, assim, a
Há um desnivelamento fundamental na relação entre locutor e salvação. E justamente aqui reside, então, um problema: Deus não
ouvinte: o locutor é do plano espiritual (O Sujeito, Deus) e o fala. Pelo menos, não, empiricamente, assim, falar, como a Lingüísti-
ouvinte é do plano temporal (os sujeitos, os homens). Isto é, ca, a Fonoaudiologia, a Pragmática, etc, concebem o ato de falar.
locutor e ouvinte pertencem a duas ordens do mundo comple- Segundo a crença religiosa, o homem não tem condições de ouvir
tamente diferentes e afetadas por um valor hierárquico (...) o diretamente a voz de Deus ou mesmo vê-Lo, pois seria insuportável
locutor é Deus, logo, de acordo com a crença, imortal, eterno, para as suas parcas capacidades racionais. “É impossível ver a minha
infalível, infinito e os ouvintes são humanos, logo, mortais, face e viver” (Ex,33:20-23), disse, segundo a Bíblia, Deus, a Moisés,
efêmeros, falíveis, finitos (...) na desigualdade, Deus domina no Monte Sinai.
os homens. Assim, pelo fato d´Ele não falar, diretamente, surgem, na terra,
os Seus representantes, os que falam em nome Dele. Muitos desses
Assim, os agentes da interpretação, na ordem temporal, por exem- representantes juntos formam uma instituição, uma Igreja, uma seita,
plo, no catolicismo, são os representantes da Igreja: o Papa, o Bispo, com todo o seu conjunto de crenças, seus valores, seus rituais, suas
os Padres e na ordem espiritual, a relação se faz por mediadores como práticas, seus símbolos. Essas instituições são formações sociais, e,
Nossa Senhora e os santos. E essa dicotomia original ocasiona várias como tais, aparelhos ideológicos, segundo Althusser (1974: 72).
outras, pois a imortalidade/mortalidade instala, para os homens a rela-
ção vida/morte e dessa relação nasce a necessidade de salvação para a Só existe prática através de uma ideologia e esta está inscrita
vida eterna, cujo instrumento necessário para tal é a fé. em aparelhos ideológicos. Portanto, ele reúne em um discurso
É a própria Orlandi (1997: 30), em As formas do silêncio no fictício não só o que se diz nos testamentos, nos teólogos, nos
movimento dos sentidos, que vai rever essa questão de o discurso sermões, mas também nas suas práticas, nos rituais, nas ceri-
religioso ser “aquele em que fala a voz de Deus”. Segundo a autora, mônias e nos sacramentos.
essa definição pode ser interessante para o teólogo, mas não o é para
o analista de discurso: E como, para toda formação social há uma formação discursiva,
essas formações discursivas produzem os seus enunciados que serão
Na perspectiva da análise de discurso, o que funciona na reli- atualizados, na linguagem, por um sujeito e advém de uma deixis
gião é a onipotência do silêncio divino (...) Deus é o lugar da fundadora definida por Maingueneau (1989: 42) como: “a(s) situa-
onipotência do silêncio. E o homem precisa desse lugar para ção (ões) de enunciação anterior(es) que a deixis atual utiliza para a
colocar sua fala específica: a de sua espiritualidade. No discur- repetição e da qual retira boa parte de sua legitimidade.”
so religioso, em seu silêncio, o homem faz falar a voz de Deus. Desta forma, cada sujeito que fala em salvação/perdição, céu/
(grifos nossos). inferno, em nome de Deus, está assujeitado pela instituição que re-
presenta e em nome da qual, enuncia. A crença nesses enunciados,
Isso significa dizer que é no silêncio divino que o homem ins- nesses princípios, não depende, como no discurso científico, de com-
creve o seu próprio discurso, pois, através das práticas, dos rituais, provações empíricas, de demonstrações palpáveis, à luz de alguma
dos gestos, dos textos, ele constrói uma cenografia e um ethos que teoria. As verdades são eternas, são dogmas, nos quais apenas se crê
atribui a Deus e passa a denominá-los “vontade de Deus”. No prefá- ou não, baseadas apenas na fé. “Felizes os que crêem mesmo sem
cio da Ideologia Alemã (1998: XII) Gorender afirma que “o homem ver”. (Jo 20,29).
se objetiva em Deus e nele projeta suas melhores qualificações: amor, O discurso religioso, como toda ideologia, é um conjunto or-
bondade, sabedoria, justiça (...)” denado de representações, que tem as suas próprias demonstrações,

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 541


suas próprias interpretações da realidade. As dezenas de centenas de obedecê-la. Há, na Bíblia, várias parábolas em que Deus é simboliza-
instituições diferentes existem porque relacionam-se de forma dife- do por um pai, conforme o próprio Cristo O denomina: “Eu e meu
rente com a sua deixis fundadora, seu discurso fundador. A dêixis pai somos um” (Lc:10,22); a parábola do filho pródigo, em que Deus
discursiva consiste num primeiro acesso à cenografia de uma forma- é associado ao pai que recebe o filho de volta (Lc:15,11). Deus está,
ção discursiva. No caso do discurso religioso cristão, um dos seus portanto, no lugar reconhecido pelos filhos, pelo “princípio da auto-
discursos fundadores é a Bíblia, um conjunto de livros, que não fo- ridade”, assim definido por Maingueneau (1989: 37):
ram escritos por uma só pessoa, mas por muitas, de diferentes épo-
cas, além de ter passado por inúmeras traduções. E como o texto O princípio da autoridade é um princípio, segundo o qual a
sagrado também é texto, está sujeito a inúmeras interpretações, me- noção de contrato pressupõe uma espécie de ritual social da
diante as quais, surgem os diferentes aparelhos. Há enunciados auto- linguagem, implícito, partilhado pelos interlocutores. O sujei-
rizados e outros desautorizados, pelos diversos aparelhos religiosos to que enuncia é reconhecido pelo Outro (o não-eu) como de-
em que se inscrevem. tentor do saber. Por exemplo, em uma instituição escolar, qual-
É, assim, o religioso, um discurso, cujo Sujeito Maior fala do quer enunciação produzida pelo professor é colocada em um
alto da onipotência do silêncio, sendo, para Orlandi (1996:48) essa a contrato que lhe credita o lugar de detentor do saber, segundo
forma da mistificação: em termos de discurso é a subsunção de uma o princípio da autoridade.
voz pela outra sem que se mostre o mecanismo pelo qual essa voz se
representa na outra”. Ou seja, o apagamento da forma pela qual o É assim que o discurso religioso tece a sua teia significativa:
representante se apropria da voz é que caracteriza a mistificação. apropriando-se de outros discursos e sedimentando-se em suas pró-
No entanto, esse apagamento, do ponto de vista discursivo, prias cenas fundadoras para legitimar a autoridade suprema do seu
tem uma roupagem, uma forma de falar, representada no ethos religi- Sujeito Absoluto: aquele que é o início do verbo, o fim, e o próprio
oso, social e historicamente constituído e construído. verbo da vida. Os homens são os sujeitos interpelados, que devem
Sabemos que o co-enunciador tem acesso ao “dito” através de ouvir esse verbo e segui-lo, para a sua própria salvação, para a vida
uma “maneira de dizer”, que está enraizado numa “maneira de ser”, eterna, pois Ele é o único sujeito da história: “se Deus quiser”, “Gra-
as quais são relacionadas a estereótipos que circulam em uma cultura ças a Deus”. No entanto, pelo fato de Deus não falar, surgem os
determinada. Essa maneira de dizer e o dito não devem ser mecanica-
aparelhos ideológicos religiosos, reivindicando para si a autoridade
mente separadas como “forma” e conteúdo”. Segundo Maingueneau
de falar em Seu nome. Esses aparelhos relacionam-se, cada um à sua
(1989: 45):
maneira com as cenas fundadoras religiosas, construindo, eles pró-
prios, através de diferentes interpretações do discurso fundador, a
O discurso é inseparável daquilo que poderíamos designar
muito grosseiramente de uma “voz”. Esta era, aliás, uma di- vontade de Deus. Assim, cada sujeito religioso, que fala em “vontade
mensão muito bem conhecida da retórica antiga que entendia de Deus”, está falando pela voz de um desses aparelhos. Pôr isso,
por ethé as propriedades que os oradores se conferiam implici- baseados em todos esses aspectos, é que julgamos mais convenien-
tamente, através de sua maneira de dizer: não o que diziam a te, definir o discurso religioso, não como aquele em que fala a voz de
propósito deles mesmos, mas o que revelavam pelo próprio Deus, mas, aquele em que, na onipotência do silêncio divino, o ho-
modo de se expressarem. Aristóteles distinguia desta forma mem instala o seu próprio discurso.
phrônesis (ter um aspecto de pessoa ponderada) areté (assu-
mir a atitude de um homem de fala franca, que diz a verdade Referências bibliográficas
crua) eunóia (oferecer uma imagem agradável de si mesmo).
ALTUSSER. Aparelhos ideológicos do estado. Trad. de J.J. Moura
Para esse autor, a fé em um discurso, a possibilidade de que os Ramos. Rio de Janeiro. Graal, 1974.
sujeitos neles se reconheçam presume que ele esteja associado a uma BÍBLIA SAGRADA. Trad. Padre Matos Soares. Rio de Janeiro:
certa “voz”, que o mesmo prefere chamar de “tom”, considerado Gamma Editorial, 1980.
como uma das dimensões da própria discursividade: ENGELS. Friderich. A origem da família, da propriedade privada e
do estado. 4 ed. Trad. H. Chaves. Portugal: Editorial Presença.
O que é dito e o tom com que é dito são igualmente importan- Livraria Martins Fontes. Brasil, 1979.
tes e inseparáveis. Eles se impõem àquele que, no seu interior, ocupa GLEISER, Marcelo. A Dança do Universo. São Paulo. Civilização
um lugar de enunciação, fazendo parte integrante da formação Brasileira,1997.
discursiva, ao mesmo título que as outras dimensões da discursividade. ORLANDI, Eni Pulcinelli. O discurso religioso in A linguagem e
seu funcionamento – as formas do discurso. 4 ed. Campinas:
Assim sendo, há lugares discursivos bastante delimitados, uma Pontes, 1996.
hierarquia bem definida. Deus é o criador do céu e da terra. O ho- ————————————————. As formas do silêncio no movi-
mem é a criatura. O discurso religioso, para se legitimar apodera-se,
mento dos sentidos. 4. ed. Campinas: Editora da UNICMP, 1997.
interdiscursivamente, do que podemos chamar de “o discurso fami-
MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso.
liar”, na sua forma patriarcal, cuja estrutura hierárquica baseia-se na
Campinas: Pontes/Editora da UNICAMP, 1989.
autoridade paterna, que no direito romano denominava-se pater
MARX, Karl. Crítica à Filosofia do Direito do Hegel. 2 ed. Lisboa:
familae, ou seja, aquele que possuía o pátrio poder, o qual, naquele
Presença, 1978.
contexto, significava direito de vida e morte sobre o filho. O Pai
gerou o filho, deu-lhe o que lhe é mais precioso - a própria vida. O GORENDER In MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A ideologia
filho deve-lhe, portanto, obediência, deve fazer a sua vontade. No alemã. Trad. Luís Cláudio de Castro e costa. São Paulo. Martins
discurso religioso, Deus é o Pai Todo Poderoso, o que criou o mundo Fontes, 1992.
e o homem, e que detém, portanto, o poder de determinar a vida de SCURÉ. Edouard. O Séfer Bereschit In Os grandes iniciados - his-
todos, é “O que há de vir a julgar os vivos e os mortos”. O homem, tória secreta das religiões. Trad. De Augusta Garcia Dorea. São
por sua vez, é o filho, a criatura que deve ouvir a palavra do Pai e Paulo: IBRASA, 1985.

542 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Orações de finalidade: um caso de gramaticalização?
João Luiz Ferreira de Azevedo
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro

ABSTRACT – In this paper it is evaluated the use of grammaticalization as an adequate tool to explain the occurrence of the different structures to
convey the idea of purpose in Brazilian written Portuguese.
PALAVRAS–CHAVE: Funcionalismo – Gramaticalização – Orações – Finais.

1. Introdução - A idéia de finalidade pode ser representada em entendem que o paradigma da gramaticalização pode ser utilizado
português por três estruturas básicas. A estrutura desenvolvida que para o estudo de articulação de orações3 . O fato de haver três estru-
tem o verbo numa forma finita e é introduzida por uma locução turas diferentes leva a estudá-las a partir da premissa que reduzidas
conjuntiva: e nominalizações representam um contínuo no caminho da
dessentencialização. Vai-se tentar mostrar que os diversos forma-
(1) ... aqui me pronuncio, trazendo à Casa o testemunho da tos sintáticos e diferentes graus de relacionamento ou integração
população carioca e fazendo, em seu nome, um apelo para da estrutura com a sua matriz pressupõem um contínuo ou cline.
que os representantes dos outros Estados hoje restituam ao Bybee et alii (1994:21) utilizam o termo layering para se referir à
orçamento da Prefeitura a sua integridade, a sua validez, a existência de estruturas superpostas partilhando ou competindo num
sua autenticidade, ... (Lacerda, 73) mesmo domínio.4 Enfim, vai-se procurar determinar se há uma ten-
dência para a gramaticalização, considerando o enxugamento na
O tipo mais freqüente que apresenta o verbo no infinitivo e sua representação.
apenas preposição. É fundamental no contínuo ou percurso da gramaticalização a
existência de alguns pontos de foco onde os fenômenos devem agru-
(2) ... Dom Pedro I nomeou um Conselho de Estado composto par-se. Estes pontos são, num certo sentido, arbitrários, mas, no caso
por dez homens, escolhidos por ele, para elaborar a versão das finais, pode-se desdobrar a proposta de Mathiessen e Thompson
final da Constituição ... (Silva, 12) (1988), para representar o cline das estruturas de finalidade:

Ainda há casos em que a finalidade se manifesta numa Combinação > Encaixe no verbo > Encaixe no nome
nominalização: Tabela - Influência da forma de vinculação no tipo de estrutura final
onde se vê o contínuo “estreiteza de ligação” se correlacionando com
(3) ... o patrimônio histórico e cultural parece estar ganhando, a dessentencialização:
enfim, seu sentido verdadeiro e dinâmico: (...). Nesse ciclo
virtuoso se insere o convênio assinado com o BID pelo gover-
no do Maranhão, para a recuperação do patrimônio
arquitetônico de São Luís e de Alcântara, que retoma e am-
plia projeto anterior. (O Globo, 6/8)

Neste trabalho, verifica-se a adequação do paradigma da


gramaticalização para uma explanação da natureza sintática e semân- 1 “Grammaticalization can be viewed on the one hand as cognitive activity
tica destas estruturas. A análise quantitativa tem como suporte o pa- mapped onto language structure. This activity is accessible to a diachronic
cote computacional Varbrul e os exemplos são de vários gêneros de analysis once it is “structuralized,” that is, ends up in a conventionalized or
discurso formal escrito. “frozen” form. It is also accessible to synchronic analysis in the form of language
2. A gramaticalização e os estudos de articulação de orações - use patterns or in assessments of conceptual/semantic relation, …” (Heine et
Na caracterização sintática e semântica destas estruturas, conside- alii, 1991:259)
rando o processo de dessentencialização (Lehmann, 1988) por que 2 Hopper e Traugott (1993). P. 168
3 “If grammaticalization is defined broadly so as to encompass the motivations
passam, o paradigma da gramaticalização, conforme Heine et alii
for and development of grammatical structures in general, then processes of
(1991) e Hopper e Traugott (1993), poderá fornecer subsídios para clause combining clearly fall within its domain,”(Hopper e Traugott, 1993:168)
uma distinção mais refinada. A justificativa para um tratamento ex- 4 Referindo-se especificamente ao domínio do futuro e da modalidade, as-
clusivamente sincrônico das estruturas é oferecida por Hopper e sim se expressam os autores: “In fact, especially in domains such as the
Traugott (1993:2) ao afirmarem que a “gramaticalização pode ser expression of future and modality, it is not unusual to find an array of
vista primeiramente como um fenômeno sintático, pragmático e grammaticized and grammaticing constructions of different ages and sources
discursivo, a ser estudado como padrões fluidos de uso da lingua- sharing or competing for overlapping territories. […]. Such richness of
gem”. Além destes, Heine et alii (1991:259) observam que a alternatives is akin to the way in which referential space may be shared by
clusters of lexical items in a given domain, by alternative phrasal idioms, and
gramaticalização também pode ser acessível a uma análise
even by alternative syntactic structures.
sincrônica..1 A possibilidade de se estudar a articulação de orações Nor does the existence of multiple grams depend on the grams’
dentro do quadro da gramaticalização remete a Givón, que apresen- having developed from distinct sources. The presence of one marker of a given
tou as alterações sofridas pelo discurso no caminho de uma origin does not prevent the rise of another along the same pathway.[…]
morfologização, através de fenômenos como, por exemplo, a passa- It should be clear now that rather than studying the ‘structure’ of
gem de orações finitas em estruturas concatenadas para estruturas grammatical expression in a language, we advocate the study of the way that
infinitas de complemento2 . Assim, Hopper e Traugott (1993:168) grammatical meaning and expression are attained across languages as a way
of understanding the inherent properties of natural language.” (Páginas 21/2)

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 543


3 – Gramaticalização das estruturas de finalidade (10) Alguns projetos vitais para a recuperação do Estado do
Rio de Janeiro só sairão do papel se contarem com medidas
Orações desenvolvidas podem estar degradadas hierarquica- articuladas dentro de uma programação (..). (O Globo, 10/4)
mente, partindo do modelo de combinação de orações para o
encaixamento, no nível do verbo ou do nome. Desenvolvidas finais A idéia de um contínuo com focos de agrupamento entre as
representam, portanto, a primeira etapa no processo de estruturas é percebida nos vários tipos de estruturas que foram capta-
gramaticalização. Há uma tendência mais acentuada de as desenvol- dos na análise. As orações desenvolvidas estão no ponto inicial do
vidas ocorrerem em combinação (.578) ou, pelo menos, ligadas a um contínuo e apresentam as características de relativa independência
SV (.472), contrastando com sua pouca afinidade para um encaixe em relação à sua matriz, verificada pela ausência de traços que confe-
no SN (.085). Embora exista um pequeno número de desenvolvidas rem uma ligação mais estreita. Considerando os critérios de redução
diretamente ligadas no SV, o peso relativo indica que a probabilidade e expansão, apresentam como pontos de foco no contínuo da
gramaticalização o fato de seu tempo e modo serem determinados
de ocorrência desta ligação não é pequena. Isto talvez se explique
pelo núcleo da matriz e pela presença mais explícita do conectivo.
porque, ligando-se ao SV, embora encaixada, a desenvolvida vai es-
Estas orações estão menos gramaticalizadas do que as reduzidas, mas
tar ainda presa a um item central da oração matriz. Pode-se avaliar, a
se apresentam em estágio mais avançado que outras adverbiais, como
partir dos dados da tabela 2, que o uso de uma oração desenvolvida as temporais, por exemplo (Cf. Braga, 1995). As reduzidas com sua
para expressar finalidade vai estar influenciado, entre outras razões, diversidade de possibilidades se situam em seguida num contínuo de
pelo fato de ela aparecer perifericamente à sua matriz. Ou seja, ora- gramaticalização. Mesmo nas orações em que se considera que não
ções finais desenvolvidas parecem estar numa primeira etapa do ca- há encaixamento, alguns traços colaboram para estreitar a ligação
minho da gramaticalização. É preciso notar que as desenvolvidas com a principal: compartilhamento de sujeito, ou, pelo menos, não
apresentam restrições de modo, sendo o subjuntivo obrigatório (ser- apresentação de um sujeito próprio, indicando uma maior dependên-
vidão gramatical). cia e integração. Esta maior integração se reflete na ligação que se
Há, na tabela 2, uma polaridade entre desenvolvidas e faz com um número menor de conectores e de operações sintáticas
nominalizações: quando a ligação é menos estreita, o peso relativo de transferência, conforme a proposta de Hopper e Traugott. Como
da desenvolvida se torna mais alto, havendo uma inversão de pesos um complemento do verbo da oração matriz, estas orações atingem
no caso das nominalizações, com .597 nos casos de ligação mais um ponto de maior perda de autonomia semântica e sintática. Como
estreita. Contudo, considerando-se apenas o nível de encaixamento, complemento circunstancial de um verbo, a oração final tem a sua
os dados mostram que as diferentes estruturas podem estar encaixa- independência e o escopo de suas relações diminuídos. Quando a
das em todos os níveis examinados, criando dificuldade para se apontar oração final se liga a um adjetivo na matriz, encontrou-se um ponto
diferenças no grau de gramaticalização. de indefinição. Estas orações indicam um alto grau de encaixamento
e dessentencialização:
A – Desenvolvidas encaixadas:
(4) (...). Só lhes é vedado, em nome do espírito público, con-
(11) Sua imagem junto à opinião pública era a de um homem
tribuir para que episódios separados produzam desconfian-
despreparado para governar o país. (Silva, 129)
ça generalizada, seja no sistema financeiro, seja no próprio
Plano Real. (O Globo, 15/8) Um exame destas construções revela, contudo, que estes adje-
tivos a que as orações finais se ligam também podem ser tomados
(5) A détente (...) deve ser a oportunidade para que, enfim, se como particípios; ter-se-ia, então, uma oração final ligada ao verbo
implantem os propósitos e princípios da Carta e para que principal de uma construção passiva:
as Nações Unidas resgatem a dívida ética que têm para con-
sigo mesmas: a erradicação do subdesenvolvimento.
(Itamaraty, 291)

B – Reduzidas encaixadas:

(6) Excentricidade? Não; a arte sempre serviu para liberar e


sublimar as tensões mais violentas. (O Globo, 18/11)

(7) Nele figuram desde a identificação de crianças que estejam (12) O álcool também substituiu o perigoso e altamente poluente
chumbo tetraetila, usado para elevar a octanagem da gasoli-
fora da escola e as providências para assegurar sua matrícu-
na. (O Globo, 1/11)
la e freqüência, até a existência de organizações para desen-
volver atividades articuladas com o palco. (O Globo, 30/8)
A principal característica sintática e semântica destas ora-
ções seria não definir a natureza da sua integração, apresentando
(8) Os órgãos de segurança passaram a ter plena liberdade de um ponto intermediário no contínuo de integração, situação con-
prender, interrogar e tornar incomunicáveis os suspeitos de dizente com os pressupostos do paradigma que prevê que o contí-
ligação com a subversão. (Silva, 115) nuo da gramaticalização se constitui de pontos não discretos. As
orações encaixadas no SN também evidenciaram que os pontos
C – Nominalizações encaixadas do contínuo não são discretos: há um grupo de orações que po-
dem ser equivalentes às adjetivas, ou receber uma interpretação
(9) Os dois padres, Nóbrega e Anchieta, muito contribuíram de completivas nominais.
para a expulsão dos franceses, que haviam ocupado o Rio de
Janeiro. (Hermida, 75) (13) Mais plausível seria uma tentativa de desacelerar as refor-

544 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


mas; ou, para além disso, um esforço para reabilitar o que se gramaticalização vai estar mais avançada nos casos de encaixamento
chamava de “terceira via”. (O Globo, 5/11) no nome, em que se tem a preposição de.

(14) Trata-se, no entanto, de evitar uma inversão na escala de 4 – Conclusão


prioridades e de fugir a uma tendência para reduzir a Orga- O estudo das estruturas da ótica do paradigma da
nização às dimensões mais exíguas de uma espécie de Insti- gramaticalização mostrou que elas configuram um layering, nos ter-
tuto Internacional de Tecnologia. (Itamaraty, 252) mos de Bybee et alii (1994) e Hopper e Traugott (1993). Retoma-se
a proposta de um contínuo de ligação entre matriz e oração final, e
Um entendimento destes pontos de indefinição pode ser al- observa-se que a afinidade entre a noção de cline e a de
cançado com a utilização da noção de “cadeias de gramaticalização” dessentencialização é bastante acentuada. Esta dessentencialização,
em Heine et alii (1991). Para os autores, quanto mais próximos na ou cline, já está presente na subordinação, característica de todas as
cadeia estiverem os focos de gramaticalização, mais semelhanças vão estruturas de finalidade estudadas. Contudo, embora os autores aci-
apresentar no grau de gramaticalização. A representação por cadeias ma considerem que o estudo da articulação de orações pode ser feito
permite também que se perceba a indefinição nos pontos limítrofes com base no paradigma da gramaticalização, há um problema de di-
dos focos de gramaticalização. A acomodação das reduzidas nas ca- fícil superação, quando se confrontam as estruturas de finalidade. Na
deias de Heine et alii pode ser visualizada a seguir: perspectiva da gramaticalização, a estrutura que se apresenta mais
dessentencializada (a nominalização) é também a que apresenta a
Observa-se a imprecisão dos limites e os pontos de indefinição, menor freqüência, talvez devido ao seu grau de compactação de in-
sobretudo em relação às reduzidas que se ligam a um particípio (ou formação. Se a gramaticalização apresenta, como uma das caracterís-
sintagma adjetival).Existe um grupo de orações que se pode enten- ticas fundamentais, o fato de as estruturas se cristalizarem por força
der como integrados num verbo, tomado como o particípio de uma da continuidade de uso, não há como justificar, do ponto de vista
voz passiva, ou, então, a um adjetivo, estendendo o predicativo da funcional, a gramaticalização destas estruturas. Nesse sentido, con-
oração matriz. Nos dois casos a oração está encaixada na oração matriz firma-se a afirmativa de Braga (1999) de que o parâmetro da
e perde a sua autonomia e a condição de estabelecer uma relação gramaticalização parece estar mais adequado à explanação de fenô-
retórica, restringindo-se a uma coesão mais local. Em outro caso, a menos no nível morfológico das alterações na estrutura dos vocábu-
oração pode ser tomada como uma completiva ou como uma adjetiva. los e de mudança de classe.
O cline, portanto, deve ser visto como um processo em que a
integração das formas passa por um estágio de acomodação. 5 – Referências bibliográficas
A análise das nominalizações indica que estas construções são
um aprofundamento sintático na direção do nome, embora mantendo AZEVEDO, João L. F. de. A Expressão da Finalidade no Português.
certas características de oração. Estão completamente Tese de Doutorado. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras/UFRJ.
dessentencializadas pela perda dos vestígios verbais de seu núcleo e 2000.
tendem a ajustar-se melhor àquelas funções em que a expressão de BRAGA, M. L. As Orações de Tempo no Discurso Oral. In KOCH,
finalidade vai atuar como complemento de verbo ou nome, sobretu- I. G. V. e BRAGA, M. L. (Orgs.). Cadernos de Estudos
do este último. Pode-se considerar que uma nominalização Lingüísticos. (28). Campinas, UNICAMP/IEL. Jan-Jun. 1995.
complementando o sentido de um nome com a idéia de finalidade é a P. 85-97.
expressão máxima do cline na expressão da finalidade. _______ . As Orações Encaixadas no Dialeto Carioca. Conferência
Na análise das estruturas, mostrou-se apropriado associar o para professor titular de lingüística. Rio de Janeiro, Faculdade
conceito de cline, aos parâmetros de Lehmann (1988). Comparadas de Letras/UFRJ. 1999.
a outras orações como as independentes e as justapostas, as desen- BYBEE, J et alii. The evolution of grammar: tense, aspect, and
volvidas finais apresentam o primeiro estágio de rebaixamento: fal- modality in the Languages of the world. Chicago, The University
ta-lhes a estreiteza na vinculação e a sua perda na autonomia não é of Chicago Press. 1994.
tão perceptível. O pólo mais acentuado do cline entre as reduzidas CUNHA, C. e CINTRA, L. F. L. Nova Gramática do Português Con-
que completam o verbo (complementos circunstanciais) e as que temporâneo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira. 1985.
completam o nome (completivas), evidencia um enfraquecimento GIVON, T. Syntax: a functional-typological introduction. Amsterdam/
da idéia de finalidade. Prova disso é que a preposição de vai estar Philadelphia, John Benjamins. Vol. 1. 1984
presente somente nos casos em que a oração esteja degradada e HEINE, B. alii. Grammaticalization: a conceptual framework. Chi-
ocupando um ponto mais à direita no contínuo das construções. É cago, The University of Chicago Press. 1991.
complexo definir se o processo de aglutinação da preposição vai a HOPPER, P. e TRAUGOTT, E. C. Grammaticalization. Cambridge,
termo, porque a idéia de finalidade precisa do concurso de uma Cambridge University Press. 1993.
preposição com significado, e não apenas de instrumento de rela- LEHMANN, C. Towards a typology of clause linkage. In HAIMAN,
ção, para a sua ocorrência. Os casos mais próximos de aglutinação J. e THOMPSON, S. (Eds.) Clause combining in grammar and
da preposição se dão com vocábulos que têm um sentido de finali- discourse. Amsterdam/Philadelphia, John Benjamins. 1988. P.
dade, intenção, ou objetivo. Nestas circunstâncias, o valor semân- 181-225
tico destes vocábulos vai ser em parte responsável pela indicação MATHIESSEN, C. e THOMPSON, S. The Structure of Discourse
da idéia de finalidade. Estes seriam os casos em que a representa- and ‘Subordination’. In HAIMAN, J. e THOMPSON, S. (Eds.)
ção da idéia de finalidade estaria mais gramaticalizada, porque o Clause combining in grammar and discourse. Amsterdam/
conjunto verbo preposição é tomado como um único vocábulo. A Philadelphia, John Benjamins. 1988.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 545


Cláusulas de finalidade: hipotáticas
discursivas e parentéticas
Nilza Barrozo Dias
Universidade Federal de Juiz de Fora - UFJF
Universidade de Campinas - UNICAMP

ABSTRACT: This paper focuses two purpose clauses. The hypotactic discourse clauses can occur either before or in between the main clause with which
they are associated. They select the information within the context of expectation raised by the preceding discourse. The parenthetic clauses represent the
interactional - formulative process on the text’s linguistic surface.
PALAVRAS-CHAVE: finalidade, hipotaxe, discursiva e parentética.

0. Introdução As hipotáticas de finalidade discursivas sobrepõem, ao va-


lor semântico de finalidade, a função discursiva, no sentido de que
As cláusulas de finalidade expressam o objetivo pretendido servem para conectar a informação que as antecede com a informa-
por um sujeito normalmente agentivo e controlador. O movimen- ção que as sucede, mantendo o tópico discursivo. Elas salientam uma
to da finalidade pressupõe uma trajetória de X a Y, no mundo das peça de informação do material que as antecede ou que seja inferível
intenções. pelo próprio contexto. Podem ainda, na posição medial, constituir,
A investigação das cláusulas de finalidade levou-nos a postu- junto com a cláusula núcleo, a informação central que sustenta o
lar, de acordo com a análise dos dados, os seguintes tipos de cláusu- parágrafo do qual façam parte.
las de finalidade: (i) as cláusulas hipotáticas – canônicas, delimitadoras Segundo Thompson & Longrace (1994: 206), as cláusulas
de resultado e discursivas -, e (ii) as parentéticas e as de adendo. As hipotáticas auxiliam na manutenção da coesão do discurso, pela aju-
cláusulas hipotáticas têm como escopo a(s) cláusula(s) núcleo(s); da na articulação de partes do discurso. Elas funcionam como tópico
enquanto as cláusulas parentéticas e as de adendo têm como escopo em relação às cláusulas a que estão ligadas, quando na posição ante-
o próprio ato comunicativo, no qual estejam inseridas. posta; elas expressam ainda a estrutura espacial, temporal ou indivi-
Este trabalho tem como objeto de estudo dois tipos de cláusu- dual da cláusula núcleo.
las de finalidade, as hipotáticas discursivas e as parentéticas. O obje- Os exemplos (01) e (02) representam a cláusula de finalidade
tivo é mostrar as características sintático-discursivas nas primeiras e discursiva anteposta.
as características de parênteses nas segundas. As hipóteses de traba-
lho são que: (i) a cláusula hipotática discursiva sobrepõe, ao valor (01) O cônsul japonês em São Paulo, Nobuo Okuchi, é se-
semântico de finalidade, um função preponderantemente discursiva; qüestrado por membros da VPR. Para libertá-lo, os guerri-
e (ii) a cláusula parentética convive, na desvinculação tópica, com o lheiros exigem a soltura de cinco presos políticos, entre eles
movimento da finalidade. madre Maurina.
O material selecionado para análise compreende 452 cláusu-
las hipotáticas e 01 cláusula parentética, extraídas das transcrições A cláusula independente que antecede a cláusula destacada
da fala informal, Projeto Censo/RJ; e 454 cláusulas hipotáticas e 06 representa uma consideração geral acerca do seqüestro do cônsul
parentéticas, extraídas de textos da língua escrita, publicados no japonês. A cláusula hipotática de finalidade discursiva, na posição
Encarte MAIS!, da Folha de São Paulo. Os textos das transcrições de anteposta, representa a especificação de um problema inferível pelo
língua falada compreendem um período de 15 minutos por falante, contexto e a cláusula núcleo representa a solução do problema. Des-
de um total de vinte falantes. se modo, a hipotática de finalidade discursiva dá sustentação ao dis-
As cláusulas hipotáticas discursivas serão analisadas curso pela articulação da informação que a antecede- o seqüestro dos
quantitativamente, com base em parte do programa estatístico do pa- guerrilheiros - com a informação que a sucede – exigência dos guer-
cote Varbrul. Utilizarei os conceitos de grupos de fatores e variável rilheiros -, auxiliando a coesão discursiva.
dependente, que remetem à Teoria da Variação. Contudo, ressalto Nesta posição, Para libertá-lo funciona como um quadro de
que as cláusulas analisadas não constituem legítimo exemplo de va- referência a partir do qual discorrerá o restante da informação. Esta
riação lingüística e os pressupostos inerentes às análises variacionistas informação representa a solução encontrada pelos guerrilheiros e, do
foram adotados apenas como recurso heurístico. As parentéticas se- ponto de vista sintático, é codificada por uma única cláusula núcleo.
rão analisadas apenas qualitativamente, devido ao número pequeno Thompson (1985) encontrou várias núcleos como solução.
de ocorrências. Uma adaptação da proposta de Braga (1984)) dos fatores
discursivos, que podem ser responsáveis pela topicalização de um
1. Desenvolvimento SN, leva-nos a considerar os seguintes recursos discursivos como
As cláusulas hipotáticas apresentam maior número de ocor- contumazes nas cláusulas antepostas: (a) o falante retorna a um tópi-
rências e podem ocupar as posições posposta, anteposta e medial em co ou aspecto de tópico mencionado imediatamente antes e (b) o
relação à(s) sua(s) núcleo(s), conforme (Dias,2001) e Azevedo (2000); falante usa a topicalização após uma consideração geral, atenuan-
as cláusulas parentéticas ocupam a posição intercalada em relação à do as expectativas sugeridas pelo enunciado anterior.
informação na qual estejam inseridas (Dias, 2001). As análises de
Thompson (1985) e Backlund (1988) acerca do inglês escrito levam
em contas apenas as posições anteposta e posposta. As cláusulas
hipotáticas discursivas, objeto de nosso estudo, podem ocupar as
posições anteposta e medial. As cláusulas de finalidade parentéticas
se articulam ao próprio ato de fala, e constituem, no que diz respeito
à posição, uma informação intercalada em outra informação. 1 Este trabalho faz parte da Tese de Doutorado, Unicamp/Campinas.

546 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


No exemplo (02) mações. Ela focaliza a integração do leitor ao texto, já que faz parte do
trecho em que se instancia o diálogo do escritor com o leitor. O trecho
(02) Tudo isso talvez aconteça em 2004 ou 2008, mas na noite que a antecede marca o suspense de descrição do personagem. A
de terça-feira, 27 de janeiro de 1998, depois da apresentação cláusula hipotática discursiva funciona como elemento coesivo entre
de Hillary na manhã do mesmo dia, Bill proferiu seu discurso as informações acerca do personagem e a interação entre o leitor e o
sobre o Estado da União para uma vasta audiência de america- escritor. A cláusula núcleo, que a sucede, representa a explicação da
nos -e não foi diferente dos seus outros grandes discursos ao cláusula destacada.
longo dos anos. Este durou mais de uma hora e tocou em cerca Os resultados estatísticos das cláusulas hipotáticas de finalida-
de 50 problemas nacionais e internacionais. Para cada um, ele de discursivas podem ser visualizados no gráfico (01).
tinha uma solução social específica. Para melhorar a educa- Gráfico (01)
ção, ele reduziria de 22 para 18 o número médio de alunos nas
classes de escolas públicas. Todo o nosso superávit futuro, re-
sultado de um orçamento enxuto, ele transferiria para a
seguridade social. (Encarte MAIS!, Folha de São Paulo),

a cláusula hipotática de finalidade discursiva identifica uma peça de


informação dentre os cinqüenta problemas arrolados por Clinton. A
informação retomada constitui o tópico, a melhora da educação, a
partir do qual o Presidente discorrerá sobre a solução, a redução do
número médio de alunos nas classes públicas. A cláusula destacada
articula a informação que a antecede com a informação que a sucede,
estabelecendo a coesão do discurso.
As cláusulas hipotáticas de finalidade discursivas na posição
medial sofrem restrições de ordem sintática. A função discursiva é
análoga nas posições anteposta e medial, mas estas ocorrem normal-
mente após sintagmas nominais, algumas conjunções e advérbios de Os percentuais mostram que as cláusulas hipotáticas discursivas
tempo e modo, palavras de inclusão e exclusão. Estes últimos ele- antepostas são mais recorrentes na escrita, enquanto as mediais são
mentos gramaticais bloqueiam o deslocamento da cláusula hipotática mais usuais na fala. Este resultado é esperado porque os textos do
medial para a posição anteposta. Todos os elementos bloqueadores Encarte MAIS! são densos de informação e a posição anteposta dá
pertencem à cláusula núcleo da sentença de finalidade. Na posição pistas ao leitor acerca do material que vai ser discutido, já que não há
medial, estas cláusulas não exercem papel e posição de tópico em gestos, entonação, velocidade de fala ou expressões faciais que auxili-
relação às cláusulas núcleos a que estão articuladas, mas, por terem em o leitor na compreensão da mensagem, mecanismos comuns na
uma posição privilegiada, elas focalizam a informação veiculada. modalidade falada.
As cláusulas de finalidade parentéticas representam a fala
No exemplo (03). do escritor, que sai do texto, acrescenta alguma informação relevante
para algum sintagma utilizado por ele, e volta ao texto, retomando o
(03) (Marilene) Felinto, que nasceu em Recife, diz não ter fluxo discursivo. Ele utiliza tal recurso por não ter certeza de que o
método para escrever. ‘De repente me vêm partes inteiras do interlocutor compartilhe a informação veiculada. Com esta atitude, ele
livro e eu consigo desenvolver o eixo central. Mas, para bro- corporifica a própria fala e manifesta o domínio do conhecimento
tar, a narrativa leva um tempo que nunca é determinado por sobre o assunto enfocado.
mim. É o tempo do próprio livro, sobre o qual não tenho domí- A informação veiculada pela cláusula de finalidade parentética
nio’.” (Encarte MAIS!, Folha de São Paulo ), tem um papel muito importante na significação, pois ajuda a elaborar
a centração temática do segmento- contexto. O falante se introduz no
a cláusula para brotar aponta uma especificação de informação – o texto, registrando representações suas a respeito de seu papel
começo da inspiração narrativa – num processo mais geral de criação discursivo de locutor gerenciador do discurso, bem como circunscre-
literária. A cláusula núcleo e todas as cláusulas que a sucedem funci- vendo o foco enunciativo a partir do qual é perspectivado o tópico
onam como uma explicação do nascimento da narrativa e constituem discursivo em pauta (Jubran, 2000:114). Estas características
a construção do próprio texto narrativo. Embora a cláusula hipotática instanciam o caráter acentuadamente pragmático dos parênteses e
não tenha função tópica como as antepostas, ela auxilia na manuten- representam um dos recursos de explicitação de dados do
ção da coesão discursiva. O conectivo mas bloqueia o movimento de processamento discursivo, o que põe à mostra a dinâmica da atuação
para brotar para a posição anteposta. interacional.
O exemplo (04) Esta explicitação verbal do processamento discursivo e do qua-
dro sócio-comunicativo de onde ela emerge (Jubran, 1996), representa
(04) Aqueles grãos só podiam ser vegetais a ponto de florir. a integração da desvinculação. Desse modo, a cláusula de finalidade
Descubro isso quando ela se detém à beira de outro canteiro e, instancia a fala do locutor, que projeta o desvinculação como um
encontrando coisinhas minúsculas, leva-as à boca. E, desta vez, movimento no mundo das intenções e, com este recurso, estabelece
não há árvores por perto. É, os grãos deviam ser gérmens de uma relação mais direta entre ele e o interlocutor. Ao findar a informa-
trigo, o que explica sua pele delicada e saudável. E seu andar ção da cláusula parentética, o locutor volta ao tópico suspenso.
orgulhoso. E isso é mais importante que a fome da menina. A Algumas cláusulas de finalidade parentéticas podem, sintatica-
cada passo seu vejo esse orgulho. Você nunca a viu, não é mente, ser equivalentes a uma relativa explicativa. Mas, através deste
mesmo? Não se irrite, então, se, para lembrá-lo, eu me repito. recurso, o falante suspenderia o movimento peculiar das cláusulas de
finalidade e a conseqüente ausência de deslocamento, já que não se
mostra que a cláusula destacada aponta a causa da repetição de infor- introjetaria no texto.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 547


No exemplo (05) Sintaticamente, o exemplo (06) não tem equivalência com uma
clásula relativa explicativa, conforme o exemplo (05).
(05) Quando alude ao fim da tradição colonial de raiz portugue-
sa, ferida de morte pela Abolição, ele desloca o foco de interes- 3. Conclusões
se do passado para o Brasil de seu tempo, marcado pela urba-
nização que dissolve os valores e os hábitos rurais próprios da As cláusulas hipotáticas de finalidade discursivas exercem
tradição colonial. Ora, esse novo Brasil, que ele chama ‘ameri- um papel preponderantemente discursivo. Elas, quando na posição
cano, para indicar uma especificidade que o afasta do tron- antepostas, funcionam como quadro de referência a partir do qual se
co ibérico, era sobretudo o Brasil meridional transformado discorrerá sobre o assunto. Na posição medial, a informação fica em
evidência, mas não tem função e posição de tópico. As cláusulas
pela imigração, sendo curioso que não tenha feito referência ao
hipotáticas de finalidade discursivas mediais apresentam restrições
imigrante para caracterizar uma nova era devida em parte à de ordem sintática. Elas não podem ocupar a posição anteposta, por-
influência deste., que algum elemento sintático impede que elas sejam deslocadas.
As cláusulas de finalidade parentéticas representam a fala do
o escritor interrompe o fluxo discursivo para acrescentar um esclare- escritor, que interrompe o fluxo discursivo, para dar algum informa-
cimento do emprego do sintagma americano, na cláusula imediata- ção que ele julgue ser relevante ou desconhecida do interlocutor. Com
mente anterior. A cláusula destacada representa o motivo pelo qual o este recurso, ele projeta o domínio do conhecimento do assunto
autor chama o Brasil de americano: este é o resultado da transforma- enfocado. Nesta cláusula, o deslocamento momentâneo de tópico é
ção pela imigração e aquele corresponde à tradição colonial portugue- representado pelo movimento do mundo das intenções, o que dá um
sa. A cláusula para indicar uma especificidade que o afasta do maior engajamento entre o locutor e o interlocutor.
tronco ibérico exemplifica a desvinculação do tópico um novo Brasil
americano. A seguir, o escritor retoma o tópico suspenso e continua 4. Referências bibliográficas
o fluxo discursivo.
AZEVEDO, João Luiz F. de (2000). A expressão da finalidade no
Sintaticamente, o exemplo (05) pode equivaler à cláusula rela- português. Tese de Doutorado, UFRJ.
tiva: que é uma especificidade do tronco ibérico, embora, com esta BACKLUND, Ingegerd. Initial infinitives as cues to the reader.
opção de estrutura gramatical, o autor não estabeleça uma relação Proceedings from the Fourth Nordic Conference for English
mais direta entre ele e o leitor, e não se introjete no texto, para mani- Studies. Vol.I, University of Copenhagen. 1989.
festar o conhecimento do assunto enfocado. BRAGA, Maria L. Tópico e Ordem Vocabular. Pragmatics. 1984.
No exemplo (06) DIAS, Nilza B. A articulação das cláusulas finais. Trabalho apre-
sentado na ANPOLL, Unicamp/SP. 1998.
(06)Trata-se da dialética da ordem e da desordem, a do ‘a ___________. As cláusulas de finalidade. Tese de Doutorado,
favor’e a ‘do contra’, “Na descoberta precoce do movimento UNICAMP, Campinas. 2001.
que gera os conflitos da ‘antítese estilizada’ talvez esteja aí JUBRAN, Clélia. Parênteses: propriedades identificadoras. Gramá-
uma das razões pelas quais Lobato tenha sido sempre tão sen- tica do Português Falado, volume IV. Ed. Unicamp/SP. 1996.
sível e pouco paciente diante de qualquer parada (ou de qual- _________.Funções textuais- interativas dos parênteses. Gramática
do Português Falado, volume VII, Ed. Unicamp/SP. 1999.
quer abandono, de qualquer paralisia, ou de qualquer
_________. Marcas formais da emergência da atividade discursiva
‘caquexia’, para usar o seu vocabulário precioso, tão fora de no texto falado. Estudos Lingüísticos, volume 29. São Paulo.
moda na estética minimalista hoje dominante)., 2000.
THOMPSON, Sandra. Grammar and written discourse: initial vs.
a cláusula destacada funciona como um mecanismo de justificativa do final purpose clause in English. Text 5,1985: 55-84.
sintagma nominal caquexia. O escritor suspende o fluxo discursivo, LONGRACE, R. & THOMPSON, Sandra. Adverbial Clause. In:
mas o retoma ao término da explicação da causa de tal escolha. Esta Language, typology and syntactic description. Complex
reflexão em voz alta representa uma quase- digressão. constructions (vol. II) Edit. Timothy Shopen. Cambridge. 1994.

548 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


As construções para+infinitivo
em contextos de encaixamento.
Vanda Cardozo de Menezes
Universidade Federal Fluminense

ABSTRACT: The aim of this paper is to describe the contexts of the embedded infinitival constructions introduced by the preposition para in Brazilian
Portuguese in order to identify the degree to which the infinitival clause is expanded or reduced.
PALAVRAS-CHAVE: Construções infinitivas, encaixamento, dessentencialização.

Introdução (5) Porque ele não quer ter hora pra chegar em casa... (Inq.
373)
Este estudo focaliza alguns contextos em que as construções (6) e os carteiros, eu acredito que cada um deve ter uma zona
infinitivas iniciadas por para admitem ser interpretadas como encai- para entregar os, as cartas (Inq. 232)
xadas no Nome ou no Adjetivo. O corpus é constituído por amostras (7) você vê que esses regimes pra emagrecer, agora, são tão
de língua oral culta, coletadas pelo Projeto NURC/RJ. complicadas as dietas... (Inq. 002)
O fenômeno que se está observando nessas construções é o da (8) tinha o piano... um piano... me lembro muito bem que tinha
dessentencialização da oração infinitiva; ou seja, o fenômeno em que um abajur de pé... sabe abajur de pé? E uma mesa... uma mesinha
a oração infinitiva apresenta perda das propriedades de oração e se de centro baixinha pra colocar cinzeiro essas coisas... (Inq. 11)
aproxima de uma construção nominal, tanto estruturalmente, quanto
em sua distribuição. Nesse processo, observa-se que alguns compo- Nos exemplos 1 a 4, temos construções fechadas. Em (1), (2) e
nentes da oração deixam de fazer referência a um “estado de coisas” (3) os sujeitos estão explícitos. Em (4), o infinitivo está flexionado, o
específico. O “estado de coisas” referenciado é tomado mais generi- que garante um certo grau de oracionalidade para a construção
camente (Lehmann 1988:193). infinitiva e mantém a construção fechada (Dik, 1997: 147).1
A abordagem teórica é funcionalista, o que significa dizer que Nos exemplos 5 a 8, temos construções abertas. Notem que
entendemos contexto como um domínio funcional complexo que re- nos exemplos (5) e (6), o sujeito foi apagado por correferencialidade
sulta de motivações sintáticas, semânticas e pragmáticas. Também sig- com o sujeito da oração matriz e pode ser interpretado como zero
nifica dizer que cada ocorrência lingüística deve ser examinada com anafórico.
atenção e que qualquer diferença entre duas construções gramaticais Já nos exemplos (7) e (8) não há possibilidade de se resgatar
aponta, em princípio, para uma possível diferença funcional. um sujeito para a construção infinitiva a partir de uma relação anafórica
com um referente da oração matriz. O contexto não apresenta um
A classificação das construções infinitivas proposta por Dik (1997) antecedente que permita estabelecer a relação e o sujeito zero do
infinitivo tem um valor genérico.
Para a distribuição das ocorrências em três graus de Para Dik, nos dois casos temos construções infinitivas abertas.
dessentencialização, valemo-nos de uma classificação binária pro- Nós levamos em conta a diferença observada e, com base nessa dife-
posta por Dik (1997:147). O autor distribui as construções infinitivas rença, propomos os graus 2 e 3 de dessentencialização. Considera-
em construções infinitivas fechadas e construções infinitivas aber- mos, portanto, dois graus de “abertura”, em que as construções
tas. O que fizemos foi subdividir as construções abertas em dois ti- infinitivas com sujeito zero genérico se apresentam como constru-
pos que corresponderão a dois pontos diferentes no continuum de ções mais abertas, o que significa, segundo nossa análise, mais
dessentencialização. dessentencializadas.
O autor considera fechadas aquelas construções infinitivas em Observamos que as construções infinitivas já partem do grau 1
que está preenchida a posição de todos os argumentos e abertas aque- de dessentencialização. Com grau 0 ficam as construções com verbo
las construções em que uma ou mais posições argumentais não estão na forma finita.2
preenchidas. Resumindo nossa proposta, temos a seguinte escala:
Embora Dik considere a predicação nuclear da construção Grau 0: construções com verbo na forma finita.
infinitiva, que consiste do verbo e de seus argumentos, notamos, pelos Grau 1: construções infinitivas fechadas.
exemplos que apresenta, que ele dá maior importância à posição Grau 2: construções infinitivas abertas com sujeito zero
argumental de sujeito. Não poderia ser de outra forma, pois esse é o anafórico.
termo primeiramente afetado no processo de dessentencialização da
oração infinitiva.
Examinemos, agora, alguns exemplos extraídos da amostra que 1 Observamos já certo grau de generalidade em alguns sujeitos explícitos
estudamos, seguindo essa classificação proposta por Dik. nas estruturas fechadas que examinamos (exemplos 2 e 3), o que já pode-
(1) tinha que ser um mobiliário simples, eram banquetas pra ria ser interpretado como uma construção “menos fechada”, quer dizer,
gente sentar em volta da mesa. (Inq. 153) com um maior grau de abertura em relação à antecedente. Neste traba-
(2) mas achava que Mauro devia comer, que era uma coisa lho, porém, não levamos em conta essa diferença entre um sujeito explíci-
boa pra criança comer.(Inq. 11) to mais específico e um sujeito explícito mais genérico. Mantivemos a aná-
(3) Rio de Janeiro é uma cidade adorável pra você bater perna lise proposta por Dik e consideramos fechadas todo esse grupo de cons-
truções com sujeitos explícitos ou com infinitivo flexionado.
né. (Inq. 11)
2 Mackenzie (1987) propõe uma hierarquia de dessentencialização em que
(4) eu acho que agora tem até menos, porque a, o telefone as construções se situam entre o grau 0 que indica “completamente ver-
enguiça à beca e, às vezes, fica difícil pra virem consertar.(Inq. 308) bal” e o grau 4 que indica “completamente nominal”.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 549


Grau 3: construções infinitivas abertas com sujeito zero genérico. Entre os casos de construção infinitiva de Grau 3 e oração
As construções infinitivas iniciadas por para encaixadas no SN e matriz com sujeito argumental estão aqueles em que nem o sujei-
no SAdj to, nem qualquer outro antecedente da oração matriz conferem
referencialidade ao sujeito do infinitivo (exemplo 10) e aqueles
Partimos da observação de que os contextos de encaixamento em que o sujeito argumental da matriz tem um valor genérico
favorecem graus avançados de dessentencialização, devido ao alto (exemplo 11).
grau de integração requerido pela função de complementação nomi-
nal e adjetival; ou seja, uma redução da autonomia da construção (10) Brasília é ótima cidade para morar (Inq. 52)
infinitiva está relacionada com a dessentencialização da estrutura. (11) você fica salgado... você quer tomar banho... e já é mais
Azevedo (2000:147) mostra que as reduzidas encaixadas no SN, em difícil pra tirar o sal... (Inq. 13)
confronto com as reduzidas hipotáticas e as encaixadas em SV, so-
frem o mais alto nível de degradação hierárquica e se colocam pró- Já a oração matriz com sujeito vazio favorece as construções
ximas ao último estágio de dessentencialização, que é representado abertas de Grau 3. Não sendo possível a correferencialidade e não
pelas nominalizações. havendo outro termo da matriz que seja promovido a sujeito do
O exame da distribuição das ocorrências segundo os graus de infinitivo, a construção infinitiva assume um valor genérico.
dessentencialização estabelecidos neste trabalho confirmam a alta
freqüência de encaixadas em SN e SAdj nos graus 2 e 3 (construções (12) ...aí... tem um lugar pra botar a ficha... né...(Inq. 308)
abertas).
O exemplo abaixo mostra a construção infinitiva em um con-
texto em que um outro termo da matriz é promovido a sujeito. A
construção é considerada aberta de Grau 2.

(13) ... e preciso ter correspondentes, né, no, no estrangeiro,


pra documentar os acontecimento que estão ocorrendo no estrangei-
ro (Inq. 308)

3.2- Possibilidade de alternância entre as preposições para e de.


Observada a alta freqüência de construções abertas (89%) em
relação às fechadas (11%), com maior concentração no grau 2, cabe Quanto à alternância entre as preposições para e de, verifica-
identificar esses contextos, particularmente os que caracterizam os mos que ela é mais freqüentemente registrada nos contextos em que
dois estágios mais avançados, uma vez que função de complementação a construção infinitiva se encontra em um estágio mais avançado de
nominal e adjetival não é suficiente para explicar as diferenças já dessentencialização. Lehmann (1988:198) observa que a possibili-
observadas. dade de uma construção ocorrer com outras preposições aumenta à
Na análise dos dados, alguns fatores se mostraram relevantes medida que essa construção se apresenta mais dessentencializada.
na definição dos contextos das encaixadas em SN e SAdj nos graus Em se tratando de uma alternância com a preposição de, cabe ainda
mais avançados de dessentencialização. Neste trabalho, abordaremos observar que, segundo estudo realizado por Poggio (2000), “entre as
apenas os seguintes: preposições, de é a que se encontra em maior grau de abstração”.
1. Status do sujeito na oração matriz;
2. Possibilidade de alternância entre a preposição para e a pre
posição de;
3. Elementos intervenientes entre a construção infinitiva e o
Nome/Adjetivo.

3.1- Status do sujeito na oração matriz.


Vemos na tabela acima que, quando há possibilidade de subs-
Quanto ao status do sujeito na oração matriz, as orações foram tituir para por de, as construções infinitivas têm freqüência mais
analisadas como tendo sujeito argumental ( com ou sem realização alta no Grau 3 (60%).
lexical) ou tendo sujeito vazio. Alguns exemplos já apresentados podem ser usados para mos-
trar essa possibilidade de alternância. O exemplo (11) é um deles.
No inquérito 11, de onde extraímos o exemplo (8) com a prepo-
sição para, encontramos um exemplo com uma estrutura semelhante,
mas com a preposição de.

(13) ... acho que tinha uma mesinha que e...sabe...de esticar
massa de pastel...essas coisas... (Inq. 11)
Constatamos que a oração matriz com sujeito argumental fa-
vorece as construções abertas de Grau 2. A referencialidade do sujei- 3.3- Elementos intervenientes entre a construção infinitiva e o
to da oração infinitiva pode ancorar-se anaforicamente no sujeito da Nome/ Adjetivo.
oração matriz.
A ocorrência de elementos entre o Nome/Adjetivo e a constru-
(1) eu tinha de estar sempre disponível pra carregar as crian ção infinitiva também é relevante para definir os contextos das cons-
ças e assim...(Inq. 84) truções infinitivas nos Graus 2 e 3. Se a construção infinitiva está
contígua ao Nome/ adjetivo há uma distribuição quase que equilibra-

550 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


da das ocorrências nos Graus 2 e 3. Mas se entre a construção infinitiva sujeito neutro ou paciente, também não-controlador, a que é atribuída
e o nome ocorrer um ou mais elementos intervenientes, as constru- uma propriedade expressa pelo predicativo.
ções tendem a estar no Grau 2 de dessentencialização. O verbos ter e ser com sentido existencial não selecionam um
argumento sujeito, o que, como vimos, favorece a dessentencialização
da construção infinitiva encaixada.
Considerações finais

Ao examinarmos os contextos em que as orações encaixadas


infinitivas iniciadas por para se aproximam de um estágio avançado
Muitos exemplos dados mostram construções infinitivas con- de dessentencialização, observamos que existem duas forças_ opos-
tíguas ao Nome ou ao Adjetivo, sem elemento interveniente, que se tas entre si _ que trabalham na dessentencialização da construção
distribuem nos graus 2 e 3. No exemplo (4) a construção infinitiva infinitiva.
está contígua ao adjetivo e é de grau 3; no exemplo (10) a construção A integração à matriz favorece, por um lado, um determinado
infinitiva está contígua ao nome e é de grau 3. O ponto relevante para tipo de dessentencialização. “O entrelaçamento das orações quando
análise é, portanto, quando a interveniência de elementos é positiva. feito por controle do sujeito acarreta dessentencialização” (Lehmann,
Nesse caso, poucos serão os casos de construções mais 1988:215).
dessentencializadas, apenas 14%. A desvinculação da construção infinitiva em relação ao sujeito
O exemplo (8) mostra um contexto em que, apesar de ocorre- da matriz, por outro lado, também favorece a dessentencialização,
rem dois elementos intervenientes modificadores do nome “mesa”, a pois a construção infinitiva tende a avançar para uma estágio de qua-
construção infinitiva mantém-se vinculada ao núcleo do SN e é aber- se-nominalização, caso não tenha uma estrutura argumental que a
ta de grau 3. sustente como oração.

4- Uma observação sobre os verbos mais freqüentes na oração matriz. Referências bibliográficas

Antes de concluir a apresentação deste trabalho, resta fazer AZEVEDO, J. L. . de. A expressão da finalidade em português. Tese
uma observação sobre os tipos de verbos mais freqüentes na oração de doutorado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000.
matriz. É alta a freqüência do verbo ter na oração matriz das encaixa- DIK, S. C. The theory of functional grammar. Parte 2: Complex and
das no SN (60%) e a do verbo ser na oração matriz das encaixadas no derived constructions. New York: Mouton de Gruyter, 1997.
SAdj (69%). LEHMANN, C. Towards a typology of clause linkage. In: Clause
Essas estruturas têm características específicas e devem Combining in Grammar and Discourse. Haiman J. & Sandra A.
ser estudadas separadamente, mas, considerando o papel da es- Thompson (eds), Amsterdam/ Philadelphia: John Benjamins,
trutura argumental do verbo da oração matriz, fazemos aqui al- 1988.
gumas observações. MACKENZIE, J. L. Nominalization and basic constituint ordering.
In: Van der Auwera _ Goossens (eds), 93-105. Dordrecht:Foris,
O verbo ter com valor de posse e o verbo ser copulativo inclu-
1987.
em-se na classe de predicadores relacionais (Mateus,1989: 48). Nes-
MATEUS, M. H. M & BRITO, A. M. & DUARTE, I. & FARIA, I.
sa função o verbo ter se caracteriza por selecionar um sujeito não-
H. Gramática da língua portuguesa. 3a. ed., Lisboa: Caminho,
controlador, que compartilha com o objeto o traço afetado, o que
1989.
permite a vinculação semântica da construção infinitiva com o nú-
POGGIO, R. M. G. F. Relações expressas por preposição no período
cleo do objeto direto (Exemplo 5). O verbo ser copulativo tem um arcaico do português. Tese de doutorado. Salvador: UFBA, 1999.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 551


A ilustração: uma dupla
leitura de imagens?
Roselene de Fatima Coito -
Universidade Estadual de São Paulo - Unesp/Araraquara

ABSTRACT: We intend to discuss the illustration in the Child Literature. The illustration is considered as a complement of the verbal discourse. We answer:
is the meaning of the illustration illimitable when the verbal discourse stir up some images? We will make use of child texts by Clarice Lispector for this
discussion.
PALAVRAS-CHAVE: Sentido, ilustração, discurso verbal, literatura infantil.

Quando se trabalha com texto de literatura, especificamente essas expressões da realidade que possuem uma outra sintaxe?
de literatura infantil, não se pode descartar o papel da ilustração, que Pensando na ilustração e no texto em prosa, trataremos agora
desde o século XVIII, com as Fábulas de La Fontaine, vem acompa- da sintaxe sob a ótica de Donis A. Dondis e Roland Barthes.
nhando o discurso verbal infantil, embora a fábula nessa época não Dondis parte dos fundamentos da psicologia de linha gestaltiana
fosse necessariamente destinada a crianças. No entanto, não pode- para avaliar a composição do que ele chama dos “fundamentos sintá-
mos nos esquecer de que a especificidade das linguagens verbal e ticos do alfabetismo visual”.
visual existem. Por isso, temos como intuito levantar uma reflexão Segundo Dondis, “(...) o modo visual, porém, não oferece sis-
sobre cada qual e sobre ambas nos textos literários A vida íntima de temas estruturais definitivos e absolutos. (...). Em termos lingüísticos,
Laura, Quase de Verdade e A mulher que matou os peixes, todos sintaxe significa disposição ordenada das palavras segundo uma for-
escritos por Clarice Lispector. ma e uma ordenação adequadas. As regras são definidas. (...). Mas,
Sabendo da complexidade do texto literário diante de outros no contexto do alfabetismo visual, a sintaxe só pode significar a dis-
textos, da especificidade da literatura infantil e da diferença entre posição ordenada de partes, deixando-nos com o problema de como
ilustração e imagem suscitada pela palavra, tentaremos abordar o sen- abordar o processo de composição com inteligência e conhecimento
tido que as imagens verbal e visual provocam ou podem provocar no de como as decisões compositivas irão afetar o resultado final. (...)”
leitor mirim. (1991:29).
Para essa reflexão pautar-nos-emos em teorias variadas, pois No entanto, essa problemática aparece porque a psicologia
o texto literário, considerado por Mikhail Bakhtin como gênero se- Gestalt vê o sistema como um todo formado por partes interatuantes,
cundário devido à sua complexidade discursiva, exige que vários olha- que podem ser isoladas e vistas como inteiramente independentes e
res sejam enfocados, sem contudo desprezar o próprio fato literário, depois reunidas num todo. Aplicadas ao nosso propósito, qual seja, a
ou seja, sua especificidade. ilustração do livro infantil, o processo composicional visa o todo
Octávio Paz, ao tratar da imagem na poesia, diz que “a pala- como uma formação do sentido, já que podemos considerar as ilus-
vra imagem apresenta diversas significações como: vulto, represen- trações como uma narrativa paralela - complementar ou não - à nar-
tação, figura real ou irreal que evocamos ou produzimos com a ima- rativa do discurso verbal. Para nós, o problema se dá num outro nível
ginação”. (1972:37). de percepção, que é a busca do sentido “total” na interpretação des-
Esse poeta e teórico busca na palavra imagem um valor psico- sas imagens constitutivas do texto literário infantil.
lógico, ou seja, trata as imagens como produtos do imaginário e aten- O próprio Dondis aborda a questão verbal e não-verbal (dife-
ta para o fato de que a forma verbal que se realiza na produção de rentemente de Paz que sugere a verbal imagética) apontando as dife-
imagens foi classificada pela retórica como comparações, símiles, renças e semelhanças entre as linguagens, dizendo que “Saber escre-
metáfora, jogos de palavras, símbolos, alegoria, mitos, fábulas, ver oferece maiores oportunidades de controlar os efeitos e restringe
paranomásia, etc, e muito embora apresentem diferenças, elas pre- a área da interpretação. O mesmo ocorre com a mensagem visual,
servam “a pluralidade de significados da palavra sem quebrar a uni- apesar das diferenças existentes. A complexidade do modo visual
dade sintática da frase ou do conjunto de frases” (1972:38). não permite a estreita gama das interpretações da linguagem. Mas o
Essa não ruptura da unidade sintática preservada pela forma conhecimento em profundidade dos processos percetivos que regem
verbal imagética, no caso da poesia, atribui ‘a imagem a função de a resposta aos estímulos visuais intensifica o controle do significa-
transmutadora da realidade que resulta no indizível que cria realida- do” (1991:49).
des que possuem uma verdade só dentro do seu próprio universo, ou Esse autor parte do pressuposto de que o controle do significa-
seja, a imagem na poesia, um discurso específico dentro da do deve-se ao fato de que “nossa compreensão de uma cultura de-
especificidade literária, é o próprio sentido; o nome e o nomeado são pende de nosso estudo do mundo que seus membros construíram e
a mesma coisa, enquanto que na prosa, “a imagem recolhe e exalta das ferramentas, dos artefatos e das obras de arte que criaram” (1991:
os valores das palavras, sem excluir os significados primários ou se- 30). Na realidade, ele se pauta na percepção do mundo sob a ótica
cundários” (1972: 45), pois o sentido da imagem, na poesia, é a gestaltiana e o sentido é atribuído pela resposta do espectador, pois o
própria imagem e o sentido na prosa é um querer dizer, “um dizer espectador, segundo ele, “modifica e interpreta através de seus crité-
que pode dizer-se de outra maneira” (1972: 47), já que “(...) a lingua- rios subjetivos” (1991:31). Contudo, se partirmos dessa ótica caire-
gem indica, representa; o poema não explica nem representa: apre- mos num sem fim de interpretações e muito embora a imagem pictó-
senta” (Paz, 1972: 50). rica seja uma “mensagem sem código”, para Roland Barthes, “a ima-
Como vimos, Paz fala da imagem na poesia como uma sintaxe gem é, de uma certa maneira, limite de sentido” (1990:27).
própria, específica, em que imagem e sentido se fundem e diz o indi- Roland Barthes não ignora o fato de a imagem ser polissêmica,
zível numa forma verbal que se diferencia de outras formas de ex- de pressupor subjacente a seus significantes uma “cadeia flutuante”
pressão da realidade. Seria, então, a ilustração e o texto em prosa de significados e nem destitui o leitor de seu poder de escolha, mas,

552 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


mesmo tendo a polissemia como “algo que leva a uma interrogação duas conotações, seria a ilustração do livro infantil apenas um com-
sobre o sentido” (1990:32), atribui à sociedade a função de cerceadora plemento - relais - da forma verbal?
- ou não - do sentido, pois segundo ele “a diversidade de leituras não Tratando-se da ilustração nos três livros, citados no início des-
é, no entanto, anárquica, depende do saber investido na imagem, sa- se artigo, de Clarice Lispector, vamos analisar as ilustrações das ca-
ber esse prático, nacional, cultural, estético; (...)” (1990: 38). pas e suas possíveis ligações com as ilustrações nucleares, as ilustra-
Diferentemente de Dondis, Barthes vê a sintaxe visual tam- ções nucleares e as ilustrações intertextualizadas no livro A mulher
bém como um saber construído historicamente e não como algo que que matou os peixes, buscando o sentido delas com os efeitos de
parta exclusivamente do sujeito-leitor empírico. Esse saber construído sentido verbais.
historicamente determinará o sentido na leitura, pois a “significação Porém, antes de entrarmos na análise propriamente dita, gos-
é, em suma, o movimento dialético que resolve a contradição entre o taríamos de levantar alguns pontos que achamos pertinentes para tais
homem cultural e o homem natural” (1990: 21). análises. A palavra ilustração era usada no contexto da linguagem
Roland Barthes está tratando da fotografia jornalística e como verbal até que Caldas Anlete (1881) a define como “desenho grava-
tal não despreza o conhecimento de mundo do leitor para uma inter- do e intercalado no texto de um livro. (...)”, conforme Luís Camargo
pretação em que o sentido seja polissêmico mas ao mesmo tempo (1995:29). Além disso, nos estudos atuais, a ilustração apresenta fun-
limitado. No entanto, não se prende ao leitor (ou espectador) como ções, estilos, dimensões e técnicas variadas. Também importa na aná-
um sujeito fora da história, um sujeito não-social, e sim como um lise das ilustrações a posição em que elas aparecem, isto é, vem pri-
sujeito empírico e ao mesmo tempo histórico, aquele que apreende, meiro do que o texto escrito, vem depois, colorido ou não, tudo isso
no ato da leitura, a conotação perceptiva (aquela que só é percebida parece assumir um significado que faz diferença na análise, mas nos
se verbalizada), a conotação cognitiva (aquela que depende do co- prenderemos ao que acharmos necessário ao nosso propósito no
nhecimento de mundo e da cultura do leitor) e a conotação ideológi- momento.
ca - no sentido mais amplo (aquela que introduz na leitura da ima- Iniciando nossa análise, começaremos com A vida íntima de
gem razões ou valores). Laura (1991) - ilustrado por Gian Calvi, depois com Quase de Ver-
Essas três apreensões resulta das indagações sobre o sentido, dade (1993) - ilustrado por Pink Wainer e, finalmente, com A mulher
pois Barthes, ao refletir sobre o limite do sentido que a imagem pode que matou os peixes (1999) - ilustrado por Flor Opazo.
impor ao leitor, toma como ponto de partida a origem da palavra Em A vida íntima de Laura temos:
imagem como imitari, tomada como cópia ou analogia. Por esse viés,
a palavra apresenta dois problemas: de um lado a lingüística “elimi- I-
na da linguagem toda comunicação por analogia” e de outro, tomar a
imagem como representação propicia uma certa idéia mítica da vida,
fazendo com que “uns pensam que a imagem é um sistema rudimen-
tar em relação à língua; outros, que a significação não pode esgotar a
riqueza indizível da imagem” (1990: 27).
Barthes está tratando da imagem fotográfica (e jornalística) e
não da imagem suscitada pela palavra e/ou por uma gênero específi- Como podemos ver, na capa há uma galinha puxando algo
co como o fez Octávio Paz. Para Barthes, “o texto é realmente a pelo bico com um olhar voraz de quem devora tudo o que encontra
possibilidade do criador (e, logo, a sociedade) de exercer um contro- pela frente. Essa imagem se relaciona com uma das características de
le sobre a imagem: a fixação é um controle sobre a imagem, frente ao Laura: comer tudo o que vê pela frente, aliás uma característica tida
poder de projeção das ilustrações; o texto tem um valor repressivo como negativa da galinha, mas que comparada ao ser humano acaba
em relação à liberdade dos significados da imagem; compreende-se sendo melhor do que ele, que ama e mata o que ama para satisfazer
que seja ao nível do texto que se dê o investimento da moral e da seu instinto: a fome, pois um dos dilemas dessa narrativa acontece
ideologia de uma sociedade” (1990: 33). porque Laura tem medo de gente - por suspeitar do que o ser humano
Segundo Barthes houve uma inversão no tratamento que se dá é capaz de fazer, como demonstra a ilustração abaixo:
ao texto e à imagem, pois “(...) ontem a imagem ilustrava o texto
(tornava-o mais claro); hoje o texto torna a imagem mais pesada, II -
impõe-lhe uma cultura, uma moral, uma imaginação (...)” (1990: 19).
Realmente houve uma inversão, principalmente porque os ilustrado-
res de hoje são especialistas (artistas plásticos, designers, especialis-
tas em computação gráfica) e, normalmente, a ilustração é realizada
após o texto escrito. Isso faz com que, ao passar de uma linguagem
para outra, significados segundos apareçam, porque para Barthes é
A capa antecipa a narrativa nuclear de A vida íntima de Laura
“impossível à palavra ‘duplicar’ a imagem” (1990:21), porque “a
e as ilustrações concomitantes à capa acabam por revelar a superiori-
‘feitura’ de um desenho já é uma conotação [e ao mesmo tempo]
dade do ser irracional sobre o racional, já que Laura come cada por-
exibe sua codificação” (1990:36). Para Roland Barthes, a moral da
caria!, mas não come aqueles que ama. Além disso, a leitura da ima-
fotografia não é a moral do desenho, mas seria a moral do desenho a
gem (colorida e não colorida) nos permite fazer a seguinte interpre-
mesma moral do texto escrito? Seria possível a ilustração duplicar a
tação: quando há um mistério que envolve o problema, a ilustração
leitura de imagens (verbal e não-verbal)?
vem numa espécie de grafite, o que demonstra o mistério subenten-
Essa resposta merece uma reflexão mais demorada e com mais
dido e, o contrário se dá quando a ilustração vem colorida, como
elementos do que aqueles que apresentaremos aqui. No momento,
podemos notar no exemplo II.
preocupar-nos-emos apenas com alguns apontamentos com a finali-
dade de atingir o intuito aqui proposto, qual seja, discutir o sentido
Em Quase de Verdade, também a capa antecipa a história nu-
suscitado pelo verbal e o não-verbal amalgamados no texto infantil.
clear que é a opressão que as galinhas vão sofrer de uma figueira que
Se a fotografia jornalística é um suporte complementar do tex-
por não dar frutos, sente inveja daqueles que produzem. Essa histó-
to escrito, se a fotografia jornalística não é passível de apresentar

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 553


ria é contada por um cachorro chamado Ulisses, que é uma espécie plemento do sentido do texto, mas além disso, temos imagens que
de voz onisciente e ao mesmo tempo personagem, como podemos permitem à criança construir conotações que vão além do verbal,
ver no exemplo abaixo: revelando que a ilustração, no texto em prosa, não só duplica a leitu-
III- ra das imagens, como permite que o sujeito que está sendo
construído pela(s) história(s), crie novas histórias a partir do não-
verbal, histórias essas que serão menos cerceadas do que as histó-
rias apenas verbais.
Portanto, o sentido se realiza pelo sentido das ilustrações e
pelos efeitos de sentido do texto verbal, que mesmo repreendendo os
possíveis sentidos despertados pelo não-verbal, revelam as surpresas
do sentido, fazendo com que a interpretação da história por meio da
Em nenhum momento Ulisses aparece colorido. Isso permite ilustração amplie os sentidos suscitados pelo verbal, confirmando a
com que façamos a seguinte interpretação - limitada pelo discurso complexidade do literário como um gênero que comporta imagens
verbal: Ulisses é uma voz presente e ausente, isto é, ele narra a sua variadas e por meio delas instaura um feixe de interpretação múlti-
história pessoal mas a finalidade é narrar uma história de opressão, a pla; não inesgotável.
história das galinhas, que é a história nuclear de Quase de Verdade.
Esse momento de tensão da narrativa vem colorido.
Já em A mulher que matou os peixes, lançado cronologica- Referências bibliográficas:
mente antes de A vida íntima de Laura e Quase de Verdade, mas
relançado agora pela Rocco, todas as ilustrações vem coloridas, e a BAKHTIN, M. Questões de Literatura e de Estética - A teoria do
primeira ilustração da narrativa é da escritora como veremos no Romance. Trad. Bernardini, A. et. all. 4ª ed. São Paulo: Ed. da
exemplo abaixo: Unesp, 1998.
BARTHES, R. O óbvio e o obtuso - Ensaios críticos. Trad. Lea
IV - Novaes. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 1990, p. 1 - 39.
CAMARGO, L. Ilustração do livro infantil. Belo Horizonte, Minas
Gerais: Ed. Lê, 1995.
DONDIS, D. A. A sintaxe da linguagem visual. Trad. Jefferson Luís
Camargo. 1ª ed. brasileira: maio de 1991. São Paulo: Livraria
Martins Fontes Ed. Ltda, 1991.
LISPECTOR, C. A vida íntima de Laura.12ª ed. Rio de Janeiro: Fran-
cisco Alves, 1991.
___. Quase de Verdade. 5ª ed. São Paulo: Siciliano, 1993.
Dessa figura que parece estar no escuro, pelo fato de não apre- ___. A mulher que matou os peixes. Rio de janeiro: Rocco, 1999.
sentar traços nítidos, há já os primórdios dos intertextos da própria PAZ, O. Signos em rotação. São Paulo: Ed. Perspectiva S.A, 1972,
Clarice: a barata dessa história e de A paixão segundo G.H, o pinti- p. 37 -50.
nho - de A vida íntima de Laura e de Quase de Verdade, e o rabo do
macaco prenunciando uma nova história com bichos. Embora esse
texto seja a remissão do pecado da escritora - matar os peixes por
distração - a narrativa mais tensa dentre as narrativas que constituem
essa história é a de Bruno, um cão que mata o próprio amigo para
defender seu dono, Roberto. Aqui, o animal mata por amor ao dono
e morre pelo mesmo amor, demonstrando, mais uma vez, a superiori-
dade do irracional sobre o racional. Na realidade, a grande culpa da
escritora não vem do fato de ter se distraído e matado os peixes, mas
a culpa vem de ser Ser Humano e as ilustrações aliam e transcendem
o sentido do verbal na angústia de se saber humano.
As ilustrações desse texto retomam e intertextualizam várias
ilustrações das outras histórias - retomam porque estamos seguindo a
data das edições de nosso acervo. Se seguíssemos a data de lança-
mento, poderíamos dizer que as ilustrações desse texto se desdobra-
rão em ilustrações dos textos posteriores A vida íntima de Laura e
Quase de Verdade.
A seguir estão as ilustrações que selecionamos para mostrar a
intertextualidade dos textos de Clarice Lispector:

V-

Para concluirmos, cremos que nas ilustrações aqui brevemen-


te tratadas, não temos só um esclarecimento, um reforço e um com-

554 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


As malhas discursivas da crônica
verbo-visual da mídia jornalística
Ismara Eliane Vidal de Souza Tasso
Universidade Estadual de Paulista - UNESP

RÉSUMÉ: Ce travail a l’intention de montrer les mailles discoursives de la chronique verbe-visuel. Reglé sous les presupposés théoriques de l’Analyse du
Discours française, l’étude réfléchit sur les principes relatifs aux conditions de production et dialogicité circonscripte dans les procès intertextuels et
interdiscoursives de ce texte.
MOTS-CLÉS : lecture, chronique, charge journalistique.

1. Introdução de tempo e espaço previamente determinados, ou seja, o cronista tem


horário determinado para entregar a crônica à publicação, assim como
Este trabalho tem o objetivo de explicitar os mecanismos tem de adequar o texto produzido ao espaço da página do jornal,
discursivos da charge jornalística, apontando as especificidades e as respeitando a diagramação previamente estabelecida. A crônica tam-
funções que possibilitam elegê-la crônica verbo-visual. Nessa pers- bém deve ater-se ao fato noticioso, já explorado pelo jornal ou por
pectiva, o estudo compreende uma abordagem de ordem teórico-ana- outras fontes, bem como à apresentação de seus comentários. Con-
lítica, envolvendo dois textos referentes a um mesmo acontecimento: dições as quais o contista não está sujeito.
as declarações da ex-primeira dama do município de São Paulo, Nicéia Pelo fato desses acontecimentos estarem relacionados ao con-
Pitta, à Rede Globo de televisão, no dia 10 de março, sobre um es- texto social e, ao mesmo tempo, histórico, esse gênero textual faz, na
quema de corrupção envolvendo o ex-esposo e prefeito, Celso Pitta, verdade, o registro do movimento dos homens na construção da sua
e políticos de expressão nacional, dentre os quais Paulo Maluf e história, via discurso. Por isso, o estatuto de um fato histórico é ad-
Antônio Carlos Magalhães, publicados nos dias 18 e 20 de março de quirido levando em consideração o contexto e o sistema de referên-
2000, na Folha de S. Paulo. cia em que se encontra inserido. Dessa forma, a história é tanto o
À luz da Análise do Discurso francesa, o estudo empreendido discurso histórico, o texto que organiza um determinado modo de
levou em consideração as relações interdiscursivas e intertextuais entender os acontecimentos, como a práxis da qual ele é componen-
existentes nos dois textos que correspondem, respectivamente a: uma te e resultado (Baccega, 1995: 65).
imagem fotográfica publicada na Primeira Página do jornal, doravante Portadora de um estatuto cristalizado, a crônica ganha, na mídia
denominado “texto suporte ou fonte” e uma charge, publicada no jornalística impressa, elementos caracterizadores e de
caderno 1¦ 2, seção Opinião. referencialização próprios, compreendidos no entrecruzamento do
Considerando a leitura um processo pelo qual o leitor constrói acontecimento/história/memória, cujos sentidos são depreendidos
os sentidos de um texto, elegemos três os princípios que determina- através da interpretação dos recursos lingüístico-discursivos nela
ram a forma de encaminhamento e de abordagem do trabalho pro- empregados. A materialidade lingüístico-discursiva que a constitui
posto: (i) os sentidos são sobredeterminados pela tipologia textual, sobredetermina uma tipologia singular por apresentar marcas e pro-
(ii) os discursos são portadores de uma memória e (iii) a história é cedimentos que tornam esse gênero uma arqui-representação dos
materialidade do discurso de um sujeito, que se constitui por um pro- lugares em que os interlocutores se colocam comunicativamente no
cesso dinâmico, resultado da interação e do diálogo estabelecidos discurso acionado (Gregolin, 1997), uma vez que os sentidos nela
com outros discursos. veiculados revelam-se polifonicamente no interdiscursivo e na
intertextualidade com outros textos de mesma ou não tipologia, inse-
2. Entre a crônica e o conto ridos no mesmo veículo de comunicação. A crônica comporta, nessa
perspectiva, uma das principais características desse meio de comu-
Ao empreender um estudo sobre a crônica, constata-se, de
nicação impresso - a questão do valor temporal de cada publicação.
imediato, que essa produção discursiva, se comparada a outras, com-
Como se sabe, o valor de um jornal tem a duração de 24 horas, e esse
preende uma tipologia híbrida e complexa, porque apresenta
é um aspecto relevante na consideração das condições de produção
especificidades de um gênero que recria um discurso sobre um fato
da crônica jornalística. Assim, se de um lado, constatam-se elemen-
ou acontecimento sob determinada perspectiva e condições de pro-
tos como agilidade, criatividade e humor, de outro, são imprescindí-
dução discursiva.
veis os traços da memória discursiva que se fazem presentes nessa
De simples registro formal do acontecimento, a crônica, se-
produção.
gundo Sá (1987), passa a comentário desse acontecimento pelo ân-
O nível qualitativo dos efeitos de sentido decorre, então, do
gulo da recriação do real. Isso permite estabelecer uma distinção en-
entrecruzamento do discurso atual com o discurso histórico. O cro-
tre a crônica e o conto. Neste, os elementos da narrativa — persona-
nista é, nesses termos, aquele que traz o passado ao presente e recor-
gens, ações, tempo e espaço — são trabalhados numa perspectiva de
re, para esse fim, às marcas lingüístico-discursivas deixadas por ou-
caráter mais profundo e detalhado, de tal modo que permitem a ela-
tros (Baccega, 1995: 88) e estabelece pelo dialogismo a interação
boração de um percurso narrativo completo. Além disso, os temas e
entre ele (enunciador) e leitor (enunciatário).
as figuras do conto não necessitam estar relacionados ao contexto ou
Outro componente relevante na constituição do discurso da
ao acontecimento do momento vivido por uma determinada socieda-
crônica é o humor. Esse recurso, numa perspectiva reflexiva e como
de. Enquanto a crônica, na definição de Sá (1987), trabalha na super-
traço de linguagem, pode revelar um ponto de vista, um olhar sobre
fície dos próprios comentários.
o mundo que requer tanto do enunciador quanto do enunciatário uma
Dadas as limitações impostas pelo veículo de comunicação
competência discursiva especial (Brait, 1996). São vários os artifíci-
utilizado, a produção de uma crônica jornalística possui condições
os expressivos que podem contribuir para esse fim, dentre eles, a

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 555


ironia. Na crônica jornalística, a ironia é articulada como estratégia leitor e a leitura de implícitos significa realizar um ato de recordação
de linguagem que se revela tecnicamente eficaz porque estabelece, que, por sua vez, compreende o ato da repetição3 . Os efeitos de sen-
nessa tipologia, relações interdiscursivas e intertextuais, podendo tidos de um texto chárgico resultam, portanto, da junção da imagem
dessacralizar o discurso oficial ou efetuar o desmascaramento de pictórica com a memória coletiva.
uma pretensa objetividade em discursos tidos como neutros (Brait,
1996: 15). 4. Desvelando a malha discursiva
Num primeiro “olhar”, a ironia apresenta-se como fenômeno
A análise desenvolvida a seguir procurou explicitar os meca-
de ordem referencial, porque pode designar-se tanto metáfora, quan-
nismos discursivos presentes nos textos que compõem o arquivo deste
do corresponde à semelhança de dois objetos, quanto metonímia,
trabalho, buscando evidenciar os três princípios, mencionados na in-
numa relação de contigüidade espacial ou temporal. Brait (1996)
trodução, que nortearam o estudo aqui empreendido.
assinala que a presença da ironia na crônica implica actantes em re-
O primeiro texto analisado é a fotografia estampada do lado
lação dual. Ao se referir aos aspectos não-verbais, o primeiro desses
direito, na parte superior da Primeira Página (ilust. 1), na qual apare-
actantes (A1) é o suporte da ironia que tanto pode se referir a uma
ce a figura do Prefeito de São Paulo, Celso Pitta, segurando um car-
situação quanto a uma atitude comportamental; e o segundo (A2) é o
taz que é exibido de dentro do carro que ocupa (banco dianteiro do
observador que percebe como ironia essa atitude ou esse comporta-
passageiro). O cartaz estampa o seguinte enunciado: NEGRO, HU-
mento. Quanto ao verbal, a autora menciona a implicação de três
MILDE E TRABALHADOR CONTRA A PODEROSA GLO-
actantes: o locutor (A1 ) dirige um certo discurso irônico para um
BO. A legenda que acompanha essa fotografia enuncia: Pitta exibe
receptor (A 2), para caçoar de um terceiro (A 3) que é o alvo da ironia
cartaz contra a Globo, que ele acusa de ter interesse em prejudicá-
( Brait, 1996: 61-2).
lo com as denúncias de sua ex-mulher, Nicéa.
Assim sendo, os principais marcos de referencialização e ca-
racterização da crônica, seja ela essencialmente verbal ou não, são:
os acontecimentos, a história, a memória e os traços lingüístico-
discursivos.

3. Cartaz, fotografia e charge jornalística


A explanação sobre as especificidades do cartaz, fotografia e
charge jornalística aqui realizada trata apenas dos aspectos compre-
endidos na análise desenvolvida posteriormente. (Ilust. 1)
Pelo cartaz, considerado um recurso eficaz na comunicação, (Ilust. 2)
pode-se estampar diferentes tipos de enunciados e discursos, empre-
gando-se um número reduzido de palavras1 . Os discursos nele vei- O primeiro ponto a ser levantado pela análise refere-se à rele-
culados podem evocar imagens memorizadas e, por isso, sugerir vância de ser essa e não outra a fotografia selecionada para figurar
mais do que dizer e, ao apresentar um campo estético sobreposto ao nessa seção. A justificativa pela publicação dela encontra-se no ca-
semântico, pode seduzir e/ou convencer seus interlocutores. Daí, a derno 1 + 8 brasil, do mesmo dia, na matéria intitulada “Prefeito
importância de o cartaz contemplar, essencialmente, o que for de usa tática de Jânio e Collor”, pois, segundo a Folha, o prefeito estaria
domínio dos enunciatários alvo. usando “factóides” para chamar a atenção da mídia. Nessa mesma
A fotografia desempenha papéis similares ao do cartaz, já que página, o jornal mostra três fotografias emolduradas num quadro único
é dele uma extensão. Evoca, no enunciatário, a sensação de estar que correspondem a três diferentes momentos em que o prefeito re-
diante da cena enunciada, garantindo, reforçando, reafirmando e/ou corre a mesma estratégia de marketing político, exibir cartazes de
explicando as coisas do e no mundo exterior, através de uma lingua- “manifesto”4 .
gem dêitica (Barthes, 1984). O homem, por esse outro recurso, de
acordo com Aumont (1993: 80), pode se relacionar de modo
epistêmico com o mundo, já que a fotografia comporta informações
sobre ele e pode, ainda, relacionar-se de forma estética, quando a
1 A capacidade humana de percepção visual é de 5 a 10 palavras por segun-
imagem agrada ou não a seu espectador. A essência da fotografia do, conforme Moles (1987).
consiste, pois, na sua condição de reproduzir infinitamente aquilo 2 A imagem de que se trata neste estudo compreende duas perspectivas:
que corresponde a um momento, ou seja, reproduz sem repetir o que uma delas é a que se refere à materialidade discursiva complexa, resultan-
foi produzido, ratifica o que ela representa. O discurso fotográfico te do acontecimento memorizado por um grupo social e que pode resistir
narrativiza a ação dos sujeitos marcados no tempo e em lugar de- ao tempo e tornar-se elemento da memória coletiva desse grupo; e outra
terminado, mesmo desprovido de futuro (Tasso & Barbosa, 1999). que compreende o pictórico, representação da realidade, processo que
Dotada de propriedade similares ao cartaz e à fotografia, a requer menos tempo para sua realização e é uma das maiores exigências
do mundo moderno.
charge, predominantemente não-verbal, é um texto que emprega re-
3 Efeito material que funda comutações e variações e assegura - sobretudo
cursos lingüísticos e pictóricos. Marcado por condições espaço-tem- ao nível da frase escrita - o espaço de estabilidade de uma vulgata parafrástica
porais determinadas, abordam, em geral, temas relativos a aconteci- produzida por recorrência, quer dizer, por repetição literal dessa identida-
mentos sociais, políticos, culturais e econômicos, sobretudo, porque de material ( Pêcheux, 1997).
despertam, no leitor, maior interesse, proporcionando-lhe mais pra- 4 O cartaz exibido pelo jornal refere-se ao fato ocorrido no dia 16 de
zer na leitura. Em contrapartida, requerem um leitor elitizado, já que março de 2000 e faz parte de uma seqüência de três cartazes utilizados
o nível qualitativo da produção e da recepção dessa tipologia advém pelo Prefeito para dialogar com o adversário ou manifestar indignação.
da interação e manipulação simbólica dos signos empregados. Além Pitta havia mostrado, no dia 14, um cartaz no qual se lia “ CHEGA DE BATE
BOCA CHEGA DE INSEGURANÇA GOVERNADOR COVAS VAMOS SALVAR SÃO PAULO” e
disso, a leitura diária de crônicas verbais e verbo-visuais contribui ,
outro, no dia seguinte, com o enunciado: “SÃO PAULO NÃO É QUINTAL DA
de modo significativo, para que o leitor seja capaz de construir um GLOBO” . Há, portanto, uma seqüência cronológica desses cartazes, que
painel temático e cronológico dos fatos. A memória é, nesse caso, revela uma estratégia de marketing político, o que teria provocado o des-
responsável pela imagem2 singularizada construída de cada fato pelo taque em Primeira Página.

556 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Pelo cartaz, o enunciador deixa entrever a imagem que faz de si Pitta, um cartaz de manifesto, com estrutura lingüística idêntica a do
e do seu interlocutor. Vale-se da condição de negro e dos sentidos texto suporte. O chargista, ao dispor essas figuras em perspectivas
construídos historicamente sobre sua raça como grupo social excluí- diferentes e em número infinito, faz com que o enunciatário co-
do e resistente. A imagem do interlocutor é construída no cartaz pelo participe da cena, de modo que perceba a complexidade da leitura de
adjetivo “poderosa”, que indica a força política que a emissora exer- um texto que é ao mesmo tempo irônico e crítico. Dados que justifi-
ce. Observa-se, por essas formações imaginárias, o interdiscurso da cam os procedimentos e/ou condições de produção, como o de emol-
resistência do negro contra a dominação branca. durar também em forma de cartaz o enunciado “AGORA É MODA”
A adjetivação presente no cartaz não apenas circunscreve a e a sua assinatura, justamente para marcar o seu lugar no discurso e
imagem do lugar que se faz dos interlocutores, como também visa o seu ponto de vista sobre as conseqüências da corrupção generali-
desviar a atenção da sociedade das denúncias de corrupção na Prefei- zada no país.
tura de São Paulo para as perseguições que o prefeito paulistano es- Vimos pelos apontamentos feitos que a leitura de uma charge
taria sofrendo da Rede Globo. implica compreender e interpretar a materialidade discursiva de um
A charge de Angeli (Ilust. 2) mantém com o texto suporte dado sujeito que passa à condição polifônica, na medida em que a
(ilus.1) uma relação direta, devido às especificidades que lhe são ine- subjetividade do seu próprio discurso é formada pela reelaboração
rentes. Apresenta-se num único plano5 , tal como a fotografia; difere- de outros discursos, marcados pela história e pela memória. Realizar
se desta, no entanto, por reconstruir a realidade pictoricamente, ao a leitura da charge jornalística sob o enfoque de crônica verbo-visual
passo que a fotografia a reproduz iconicamente. é proporcionar ao leitor elementos para o desvelamento das malhas
A leitura desse texto requer um leitor atento ao contexto históri- discursivas desse texto.
co-social, mas, acima de tudo, um leitor conhecedor do cartaz de Pitta,
publicado dois dias antes. Em outras palavras, o leitor precisa ter co- Referências bibliográficas
nhecimento dos fatos veiculados, em razão de ser a charge um texto
crítico que se vale da relação intertextual para criar significação. ACHARD, P. et alii. Papel da Memória. Trad. J. Horta Nunes. Cam-
Por meio de recursos verbais e visuais, o chargista estabelece pinas, SP: Pontes, 1999.
uma relação com o cartaz de Celso Pitta. O enunciado “AGORA É AUMONT, J. A Imagem. Trad. E. dos S. Abreu. Campinas, SP:
MODA” enquadra a charge no mesmo contexto de produção do cartaz Papirus, 1993.
e imprime uma orientação argumentativa, ao ironizar a atitude do BACCEGA, M.A. Palavra e Discurso: História e Literatura. São
Prefeito. As figuras humanas com cartazes nas mãos representam Paulo: Ática, 1995.
diversos grupos sociais e carregam os traços da memória discursiva BARTHES, R. A Câmara Clara: nota sobre a fotografia. Trad. J.C.
do texto incorporado. A alusão ao cartaz de Pitta, feita pela recorrência Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
à estrutura sintática da frase nominal, composta por adjetivos que BRAIT, B. Ironia em perspectiva polifônica. Campinas, SP: Unicamp,
indicam grupo e condição social, produz efeito de sentido contrário 1996. Viagens da Voz.
ao manifesto do Prefeito, pois não reproduz o discurso da resistência FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense-
social, mas o da exclusão. O que o chargista faz é deslocar o sentido Universitária, 1972.
que é dado à palavra “negro” para o seu discurso, imprimindo-lhe GREGOLIN, M. do R. V. Análise do discurso: articulações do sujei-
outro sentido. Esse deslocamento ocorre porque os enunciadores fa- to na língua e na história. In: Gladis M. de B. Almeida et alii.
lam de formações discursivas diferentes. O enunciador do cartaz ba- “Revista Corpo e Voz”, Série Encontros, Ano XV nº 1, 1997. P.
seia o seu discurso na figura do negro que resiste à dominação bran- 11-21.
ca, já o cronista/chargista vale-se da figura do negro excluído que MANY, J. Sociologia da História aos Quadrinhos. Trad. M. F.
sofre, juntamente com os demais grupos sociais representados, devi- Margarido Correia. Porto: Livraria Civilização-Editora, (s/d).
do às injustiças sociais e à crise político-econômica do país. Para MOLES, A. O Cartaz. Trad. M. G. Mendes. São Paulo: Perspectiva,
construir esse sentido, o enunciador instaura a polifonia, dando voz a 1987.
diversos grupos sociais como, por exemplo, à “mulher”, ao “amare- PÊCHEUX, M. O Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni
lo”, ao “asiático”, ao “nordestino” e à “criança”. P. Orlandi. 2. ed. Campinas, SP : Pontes, 1997. 68 p.
Para depreender esse efeito de sentido divergente, é necessário SÁ, J. de. A crônica. 3. ed. São Paulo: Ática, 1987. Princípios.
que sejam explicitados os recursos pictóricos e gráficos que fazem TASSO, I.E.V. de S. & BARBOSA, P. L. N. Do Foco ao Enfoque: a
dessa charge o registro de uma realidade socioeconômica e que pos- imagem e a memória construindo os sentidos na mídia.
sibilitam a expressão de idéias, de sentimentos e de informações, UnespAra, nov/1999 (mimeo).
com tempo e lugar determinados. FOLHA DE S. PAULO nº 25.917, Ano 80, de 18/03/2000, Primeira
Nesse contexto, os signos não-verbais são identificados por- Página.
que representam, pelo traçado artístico, os elementos (seres humanos _______. nº 25.919, Ano 80, de 20/03/2000, Caderno 1 + 2 opinião.
e objetos) do mundo exterior. Pelos elementos constitutivos dessa
charge, é possível constatar que o texto faz alusão ao acontecimento
do dia 16 de março, noticiado dois dias depois, dados aos seus refe-
rentes: cidade de grande porte e população.
Há, pelo menos, dois percursos de leitura possíveis de serem
realizados desse texto: um que considera referir-se aos paulistanos
ou àqueles que lá vivem e/ou trabalham. Nesse gesto de leitura, o
espaço e o acontecimento estariam delimitados à cidade de São Pau-
lo; o outro, dada a onda de corrupção que envolve o país, remete-se a
qualquer cidade e cidadão brasileiro.
Podemos observar que a maneira como as figuras humanas
apresentam-se trajadas denuncia as condições socioeconômicas em 5 Plano deve ser entendido, com base nos apontamentos elaborador por
que elas se encontram. Os homens ali representados exibem, como Marny (1970), como a distância existente entre o leitor e o quadro que
delimita o texto chárgico.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 557


Lendo a configuração fílmica
Nádea Regina Gaspar
Universidade Estadual de São Paulo - UNESP
Universidade Federal de São Carlos / Pós-Graduação

ABSTRACT: The aim of this study is to focus on the issue of the reading of a still little explored type of text: film. Structural elements allied to the linguistic
enunciations create certain effects of sense in the filmic reading, that give rise to questionings regarding the gestures practised in the act of reading. This
paper seeks to establish parallels between certain aspects of the French line of Semiotics and Discourse Analysis, in the practical analysis of Walter Salles’
film, Central do Brasil..
PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Semiótica; Leitura; Filmes.

A posição de trabalho que aqui evoco em referência à análise Christian Metz (1972: 121) afirma: (...) “a semiologia do ci-
do discurso (...) supõe (...) que, através das descrições regulares de nema é muitas vezes levada a colocar-se mais do lado do espectador
montagens discursivas, se possa detectar os momentos de interpre- do que do cineasta. A distinção (...) entre o ponto de vista fílmico e o
tação enquanto atos que surgem como tomadas de posição, reco- ponto de vista “cineástico” (...) é que, a semiologia do cinema é
nhecidas como tais, isto é, como efeitos de identificação assumidos principalmente um estudo fílmico. E um pouco adiante (p.143), acres-
e não negados.(Pêcheux) centa: (...) a semiologia deve se amparar duplamente: por um lado
na lingüística, por outro na própria teoria do campo estudado.
1. Analisar a estrutura ou o acontecimento? Embora estes dois grandes teóricos discordem de vários con-
ceitos relacionados à semiologia fílmica – objeto de uma pesquisa
Pêcheux (1990: 57) em Estrutura ou acontecimento, não nega futura – o que é importa ressaltar, é a distinção, concordada entre os
o trabalho do analista do discurso que adote concepções estruturais dois, entre o código cinematográfico e o fílmico. Desta forma, cenas;
na análise. Ao contrário. Quando ele evoca, como citado acima, as planos; montagem; seqüências; o som ambiente (ruído do vento, ou
descrições regulares de montagens discursivas, adota como primei- de um copo caindo, por exemplo); o som do off (geralmente inseri-
ra exigência no ato da leitura e nos gestos de descrição, a manipula- dos na montagem); dentre outros termos específicos no momento da
ção de significações já estabelecidas e normalizadas, em algum dis- produção de um filme, se inserem na proposta de um código cinema-
positivo analítico.Ou seja, no momento da leitura e da descrição, ele tográfico, e, portanto, de uma -metalinguagem cinematográfica-, uma
sugere que o analista do discurso se aproprie inicialmente, de algum linguagem construída historicamente pelos cineastas.
método já consolidado e estruturado.No entanto, o autor adota tam- A análise fílmica, como veremos na prática, se apóia por um
bém - principalmente-, a postura de que há pontos de deriva no ato lado, neste código cinematográfico, para explicitar noções da semiótica
da leitura, que escapa muitas vezes a normalização, mas que possibi- fílmica, e por outro lado, nos métodos já consolidados da semiologia
lita, via interpretações, transformações do objeto lido. Um novo acon- lingüística. É neste intermeio que acontece a semiologia fílmica. As-
tecimento se instaura neste momento de produção. Neste sentido, o sim, a análise semiológica de um filme e, portanto, não do cinema, é
texto não seria observado, somente pelas vias de um dispositivo ana- uma tarefa bastante pretensiosa e ainda em construção, pois o filme
lítico, mas, teria que se recorrer também, a outros dispositivos teóri- trabalha com inúmeros códigos lingüísticos atuando articuladamen-
cos. A proposta deste autor então, é a apropriação da teoria da aná- te, como sugere Eco (1976: 140): “na análise da comunicação
lise do discurso, desenvolvendo um trabalho nos entremeios da lin- audiovisual estamos diante de um fenômeno comunicacional com-
güística, da história e da psicanálise. plexo que põe em jogo mensagens verbais, mensagens sonoras e
A complexidade do assunto supera as intenções deste traba- mensagens icônicas”.
lho. A pretensão de ele ser enunciado, é no sentido de tentarmos Destacando as mensagens icônicas, analisamos a apresentação
buscar na teoria discursiva, conceitos derivados destes dois aspectos de um quadro geral da grande sintagmática da faixa–imagem, estuda-
-as descrições regulares e a interpretação- para a análise da leitura da em Metz (1972). Neste quadro, ele expõe oito segmentos autôno-
na configuração fílmica. mos para a análise de uma imagem – Plano autônomo; Sintagma pa-
Recorremos, para o trabalho com o dispositivo analítico, da ralelo; Sintagma em feixe; Sintagma descritivo; Sintagma (narrativo)
teoria da Semiótica, e especificamente à Semiologia, consideradas alternado; Cena; Seqüência em episódios; Seqüência habitual. Na
hoje, por teóricos como NÖTH (1995: 25), por exemplo, como “ci- impossibilidade de explorarmos todos os tipos sintagmáticos, elege-
ências mais gerais que estudam os signos animais, da natureza, hu- mos o Plano autônomo para a análise.
manos e culturais”. Dois autores estiveram presentes, neste momen- Um plano é definido no cinema, como sendo cada fragmento
to: Umberto Eco (1976), semiótico estruturalista, em-A estrutura filmado - o resultado é o fotograma-. No filme, o plano é mais difícil
ausente; e na área do cinema, Christian Metz (1972), teórico do ci- de ser percebido, pois, como sugere Aumont (1995): a) ele não é
nema, em-A significação no cinema. único, isto é, ele é sempre analisado no meio de muitos outros pla-
Para o dispositivo teórico, recorremos a Pêcheux, no livro já nos; b) ele não é independente do tempo, isto é, tal como é percebido
citado, e em Foucault (1997)- Arqueologia do Saber. na tela, é um encadeamento muito rápido de fotogramas sucessiva-
mente projetados, definidos por uma certa duração; c) ele está em
2. Do acontecimento a estrutura movimento, tanto em relação ao quadro (personagens se movimen-
tando, por exemplo) como também os movimentos da própria
Umberto Eco,(1976:139) expõe: “o código fílmico não é o câmera.Eco (1976) e Barthes (1990), por exemplo, analisaram
código cinematográfico; o segundo codifica a reprodutibilidade da fotogramas “fixos” ou “parados”. Neste contexto, é possível falar em
realidade por meio de aparelhos cinematográficos, ao passo que o signo. No entanto, a nossa proposta é compreender os vários códigos
primeiro codifica uma comunicação ao nível de determinadas regras de significação atuando simultaneamente, e em movimento. Por isso
narrativas. Não há dúvida que o primeiro se apóia no segundo”. elegemos a proposta de Metz (1972:145) quando sugere os segmen-

558 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


tos autônomos como o menor nível de análise, no filme.Para ele: “o posição onde se encontra a foto do pai de Josué, tira da bolsa a outra
segmento autônomo é a subdivisão de primeiro nível do filme; é uma carta (redigida por ela mesma, ainda no Rio de Janeiro), e a coloca ao
parte do filme, e não uma parte de parte do filme”. lado da carta do pai, na posição que indica a foto da mãe, e sai de
Metz (1972: 147) expõe: O plano autônomo admite vários cena. Neste momento, a câmera, em efeito de zoom, novamente dan-
subtipos: de um lado, o famoso “plano seqüência” (...) o plano se- do o efeito ótico na luz verde, numa inserção explicativa, lentamente
qüência se configura como uma cena inteira tratada num plano úni- vai destacando não mais a foto, mas, os envelopes encostados na
co, é a unidade de ação que confere ao plano sua autonomia; de parede. Isso indica o fim do plano-seqüência.
outro lado, diversos tipos de planos que devem sua autonomia ao Metz (1972) sugere que, esta análise dos segmentos autôno-
seu estatuto de interpolações sintagmáticas e que poderíamos agru- mos, com as subdivisões, fossem aplicadas no filme todo, pois seri-
par sob a denominação de inserções. Metz esclarece que, se a esco- am destes procedimentos, que a significação fílmica se revelaria ao
lha do princípio de inserção for a causa do caráter inserido, no cine- analista. Não há dúvida, como vimos, que esta análise é
ma, até hoje, só existiram quatro tipos de inserções: a) a não- reveladora.Pensamos mesmo que, são estas práticas metodológicas
diegética1 (imagem cujo valor é comparativo, apresentando um obje- de análise estruturais, que Pêcheux (1990) evocava, como descri-
to exterior à ação,ex: numa seqüência onde crianças estão cortando ções regulares. Porém, ele sugere também, que através destas des-
cana, uma imagem de outras, numa escola); b) a subjetiva (imagem crições, se detectaria e fossem reconhecidos momentos de inter-
apreendida como ausente,ex:lembranças,sonhos, medos,etc); c) pretação, enquanto efeitos de identificação assumidos, do analista
diegética deslocada (imagem que, embora perfeitamente “real”, é com o texto.
tirada da sua colocação fílmica e inserida intencionalmente num Na impossibilidade para este momento, de explanarmos um
sintagma que lhe é estranho, ex:numa seqüência onde dezenas de pouco mais sobre esta concepção de Pêcheux, e adotando este
pessoas estão caminhando, uma imagem de uma delas é destacada); posicionamento sugerido por ele no que concerne ao dispositivo teó-
d) explicativa (detalhe ampliado, efeito de zoom, ex: um rosto, ou, rico da análise do discurso, é que, faremos a seguir, uma rápida aná-
os olhos). lise do plano-seqüência exposto acima, no que se refere à inserção
No filme Central do Brasil, de Walter Salles, destacamos o explicativa relacionada à sexta cena, ou seja, o destaque dado aos
plano autônomo em que a personagem Dora (Fernanda Montenegro) envelopes na parede.
está se levantando da cama, bem cedo, para sair da casa onde moram
os irmãos do personagem Josué, em Bom Jesus do Norte-PE. Há 3. Da estrutura ao acontecimento
“marcas” no filme que revelam o início, o meio e o fim de um dos
subtipos deste plano autônomo, observados em Metz: o Plano-se- Este plano-seqüência exposto acima, via dispositivo analíti-
qüência. Há uma unidade de ação que confere ao plano-seqüência, co da semiologia fílmica, nos levou a perceber que o diretor inicia e
sua autonomia. termina a seqüência, com a imagem da fotografia pendurada na pare-
Inicialmente podemos observar que há seis planos (no sentido de, dando um destaque para os envelopes. Observado neste plano-
de cortes, e também de inserções) nesta seqüência.A primeira cena seqüência, os envelopes poderiam ser analisados como signos ou ele-
inicia com um efeito ótico; ou seja, está escuro, então, uma luz verde mentos, isolados do contexto narrativo. Contudo, priorizamos aqui,
é introduzida para iluminar uma fotografia que está pendurada numa o posicionamento de Foucault (1997: 113), em relação à função
parede. Esta foto é de Jesus e Ana, pai e mãe de Josué.Surge então, enunciativa: “pode-se dizer, de modo geral que uma seqüência de
uma outra luz, logo a seguir, no final do corredor, a câmera neste elementos lingüísticos só é enunciado se estiver imersa em um cam-
momento, sai da sala, em direção ao interior da casa. Só então vemos po enunciativo em que apareça como elemento singular”. E comple-
o cenário completo de uma sala. Neste início da seqüência, sem dúvi- ta: “qualquer enunciado se encontra assim especificado: não há
da a posição da luz, embora revele um plano geral, destaca principal- enunciado em geral, enunciado livre, neutro e independente; mas
mente esta fotografia na parede.É o início do plano autônomo. Na sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjun-
segunda cena, podemos perceber a inserção diegética deslocada, pois to, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando
aparece só a imagem de uma cama desarrumada, sugerindo alguém e deles se distinguindo”.
que acabou de acordar. É como se fosse uma comparação, que se Neste sentido, é interessante observarmos que o diretor Walter
faz, via imagem, entre a cena anterior, e a que virá. Na terceira cena, Salles destacou em seis cenas, os envelopes. É uma série, num cam-
percebemos uma inserção explicativa, pois é quando uma mão abre po enunciativo, em que os envelopes se distinguem como elemento
um pacote, e este plano aparece, num detalhe ampliado na seqüência singular. Isto demonstra que os envelopes,são enunciados. Mas, o
do filme.Só então é que a imagem de Dora é apresentada, seminua, que este enunciado quer enunciar?
colocando o vestido na sua frente, numa atitude que lembra, isto é, Um envelope significa que há um remetente e um
reporta à cena anterior, (a da cama desarrumada), levando o especta- destinatário.Ele tem a função de embalar, mas também, de proteger
dor a imaginar que ela tenha acordado, e está se arrumando.Na quar- mensagens, correspondências, documentos ou objetos.
ta cena, podemos perceber a inserção subjetiva, pois Dora está em Muito mais do que uma mensagem codificada a ser entregue
frente ao espelho, balança levemente a cabeça, e parece sorrir. Por para um remetente, esta carta envolta pelo envelope, revela a própria
que os gestos de parecer “estar bem consigo mesma?” De estar se história dos migrantes que chegam na modernidade urbana das gran-
achando bonita?Na quinta cena, também poderíamos considerar como des cidades brasileiras, e não encontram condições sociais e morais,
uma inserção diegética deslocada, pois é quando aparece Dora abrin- dignas de sobrevivência.
do a porta, e observando os três irmãos dormindo.No filme, esta ima- Central do Brasil é o nome de uma ferrovia, que hoje, ficou
gem aparentemente deslocada, intui também, além de uma compara-
ção com cenas próximas futuras (se não o espectador poderia esquecê-
la), uma inserção subjetiva, pois Dora, simplesmente observa o per-
sonagem Josué dormindo, entre os dois irmãos mais velhos, e fecha a 1
A noção de diegese, para Metz (1972: p.118) é:“ o conjunto da denotação
porta. O que significa esta inserção, nesta cena? Uma despedida? A fílmica: o enredo em si,(...) o tempo e o espaço implicados no e pelo enredo,
última e sexta cena desta seqüência, completa e integra a ação. É portanto, as personagens, paisagens, acontecimentos e outros elementos nar-
quando Dora vem do corredor para a sala (filmada na primeira cena), rativos, desde que tomados no seu estado denotado, isto é, revelado, manifes-
observa a foto que está na parede, arruma a carta de envelope azul, na tado.”

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 559


reduzida ao transporte de cargas e à ligação com os subúrbios cario- estabelecida: “aqui é o Brasil velho que dita, generosamente, as re-
cas, mas antigamente, era o principal meio de transporte para a popu- gras humanas, a um novo Brasil.”
lação pobre, entre as grandes cidades e o centro do país. Entre o
Brasil “novo” e o Brasil “velho”. O percurso da ferrovia, na atualida- 4. Analisar a estrutura e o acontecimento
de, foi reaproveitado para o transporte rodoviário.
Na narrativa fílmica, a personagem Dora é uma escrevente de Este trabalho se amparou teoricamente em Pêcheux, que adota
cartas para analfabetos, e trabalha na Central do Brasil, no Rio de a postura da análise do discurso. Este autor, como constatamos, pro-
Janeiro. Ela é solicitada por Ana, (mãe de Josué) a escrever uma põe que haja dois dispositivos na análise: o teórico, onde o analista
carta para Jesus (pai de Josué), que se encontra em Bom Jesus do teria subsídios epistemológicos; e o dispositivo analítico, onde
Norte-PE. Dias depois, Ana morre, deixando o menino sozinho na metodologias já tradicionais de análise fossem observadas. Devido a
Central.Ele procura Dora, para que ela pudesse escrever uma carta isso é que nos apropriamos, para o dispositivo teórico, da teoria da
ao seu pai, solicitando que ele viesse buscá-lo no Rio de Janeiro. análise do discurso francesa, e, para o dispositivo analítico, segui-
Depois de várias tentativas de se “livrar” do garoto, ela resolve levá- mos as orientações da Semiótica – especificamente da Semiologia
lo para o pai, juntamente com o envelope contendo a carta da mãe. do cinema. Há todo um campo de noções, específica da teoria cine-
Nessa volta “ao Brasil velho”, percorrido inversamente, por matográfica, construída historicamente, que se baseou nos modelos
esta mesma rodovia, que outrora trazia os migrantes via trem, Dora e da semiologia lingüística. Explicitamos, neste sentido, a noção de
Josué descobrem, de maneiras distintas, valores tradicionais da vida: um Plano-autônomo, no filme Central do Brasil. Contudo, somente
a importância da família, a dignidade de um trabalho honesto, a reli- esta análise semiológica, não permitia que uma outra voz fosse enun-
giosidade, as relações de amizade, a exposição dos sonhos, dos dese- ciada -a da pesquisadora. Onde, o espaço para a interpretação, ele-
jos. São pequenas manifestações encontradas no filme, durante o re- gendo somente a estrutura? Onde, a representação de um novo acon-
torno de Josué ao norte do país, que podem ser constatadas, por exem- tecimento? Passemos a palavra a Pêcheux (1990: 55):
plo, nos nomes bíblicos dos personagens: Jesus, Ana, Isaías, Moisés,
Josué; ou então, no tratamento dos adultos (Isaías e Moisés) para Esse discurso-outro, enquanto presença virtual na materialidade
com as crianças, (no caso, as brincadeiras de Moisés, com Josué); ou descritível da seqüência, marca, do interior desta materialidade,
na confiança depositada nos seres humanos, mesmo sem nunca tê- a insistência do outro como lei do espaço social e da memória
los visto antes, é o caso, de quando Moisés convida Dora e Josué histórica.
para passar a noite na sua casa. São inúmeros gestos, falas,
posicionamentos dos personagens do Brasil “velho”, que reverenci-
5. Referências bibliográficas
am valores perdidos pelo “novo” Brasil. Valores estes, realmente
destoantes da modernidade da cidade grande, onde a corrupção e a
AUMONT, Jacques [et al] – A estética do filme. São Paulo, Papirus,
busca pelo dinheiro, levam a extremos de crueldade e miséria, como
1995.
na cena em que Josué ia ser vendido para comércio de órgãos huma-
BARTHES, Roland – O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III.Rio de
nos, ou numa outra cena em que um adolescente é morto pelo perso-
Janeiro, Nova Fronteira, 1990.
nagem Pedrão (tipo de policial local da Central) por ter roubado um
ECO, Umberto - A estrutura ausente: introdução à pesquisa
radinho de pilha.
semiológica.São Paulo, Ed. Perspectiva, 1976.
Essa volta do menino Josué para o interior do Brasil, represen-
FOUCAULT, Michel – A arqueologia do saber. 5.ed. Rio de Janei-
ta bem mais que uma mensageira que ajuda a entregar um garoto
num determinado destino.Ou seja, Dora não é só uma escrevente, ro, Forense Universitária,1997.
que está entregando uma mensagem de um remetente para um deter- METZ, Christian – A significação no cinema. São Paulo, Ed. Pers-
minado destinatário, via a apropriação que ela tinha adquirido de um pectiva, 1972.
código lingüístico.Os envelopes, apresentados seis vezes em cenas NÖTH, Winfried – Panorama da semiótica: de Platão a Pierce.São
diferentes do filme, revelam por um lado, o despertar de Dora para Paulo, Annablume, 1995.
outros valores sociais e morais, que foram sendo “esquecidos” ao PÊCHEUX, Michel – O discurso: estrutura ou acontecimento. Cam-
longo de sua vida, e por outro lado, o retorno de um filho de migrantes, pinas, Pontes, 1990.
encontrando as suas verdadeiras raízes culturais no sertão SALLES, Walter – Central do Brasil [Filme]. São Paulo, Europa
pernambucano. O filme, propositalmente, inverte a ordem discursiva Filmes, 1999.

560 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Categorização em pré-escolares: o que revelam suas
justificativas a respeito de suas categorias?
Ana Cristina Pelosi Silva de Macedo

ABSTRACT: This paper evaluates, in the light of evidence from our research on categorization in pre-schoolers, two models of semantic development:
Nelson’s (1974, 1982) which proposes that concepts exhibit a functional core based on contexts experienced by the child and Clark’s (1973, 1974, 1975),
which posits that the child abstracts from the objects perceptual semantic features and then extends them to new referents.
PALAVRAS-CHAVE: categorização em pré-escolares, desenvolvimento semântico, núcleo funcional, traços semânticos.

Introdução Dessa forma, a estrutura dos conceitos pré-lingüísticos da cri-


ança consiste de duas partes primárias: um núcleo funcional e traços
Este trabalho objetiva avaliar criticamente a validade de dois formais de identificação. Além desses dois aspectos básicos, outras
modelos explicativos do processo de desenvolvimento semântico na informações a respeito da situação ou do contexto, aos quais se atre-
lam os primeiros conceitos, também são tomadas em consideração
criança pré-escolar: o modelo do núcleo funcional proposto origi-
como fazendo parte do mesmo. Por exemplo, atores e locais ligados
nalmente por Katherine Nelson em 1974 e revisitado, posteriormen-
aos roteiros experienciados pela criança. Estes, contudo, não são con-
te, em 1982 e o modelo do traço semântico proposto por Eve Clark siderados tão importantes para a formação da estrutura conceitual,
em 1973 e 1974 e revisto em 1975. assumindo-se que tal conhecimento específico, porém auxiliar, a res-
Apontamos também, com base na evidência provida pela pes- peito de situações vividas tende a se extinguir restando apenas fen-
quisa por nós empreendida sobre desempenho categorizacional em das a serem preenchidas em contextos específicos.
pré-escolares, para o fato de que embora tradicionalmente tidos como A referência a um núcleo funcional diz respeito à proposta de
mutuamente exclusivos, tais modelos, ao contrário, podem ser vistos que a criança forma conceitos a partir das funções mais salientes (i.e.
como complementares na explicação dos processos cognitivos en- as funções mais centrais) desempenhadas por objetos em contextos
volvidos na formação de conceitos pela criança. significativos para ela. Tais funções seriam primordiais no desenvol-
A seguir, expomos de forma resumida o que cada um destes vimento conceitual da criança e formariam a base ou âmago do con-
modelos propõe e os avaliamos à luz da evidência provida pelas ceito. Portanto norteariam significativamente seus agrupamentos
justificativas produzidas por quarenta e uma crianças na fase pré- categorizacionais durante a fase pré-escolar.
escolar ao agruparem itens pertencentes às categorias: animal, brin- Os traços ligados a aspectos formais dos objetos só teriam va-
quedo, alimento e vestimenta. lor secundário na identificação de exemplares do conceito.
Assim, segundo Nelson (1973) os conceitos seriam formados
O modelo do núcleo funcional com base na função e generalizados com base na forma. Embora
traços semânticos de natureza formal são admitidamente tomados em
consideração na generalização do conceito, a diferença básica entre
O modelo do núcleo funcional de Nelson (1974, 1982) busca
o posicionamento de Nelson e o de Clark reside no fato de que para
explicar o desenvolvimento de conceitos de objetos na criança a par- a primeira autora são os contextos de vida da criança e a saliência de
tir da interação desta com os objetos no mundo. funções desempenhadas pelos objetos em tais contextos que consti-
Essencialmente, Nelson propõe que a criança desenvolve a lin- tuem a base conceitual e não abstrações com base em traços semânti-
guagem a partir de uma bagagem de conceitos familiares a respeito cos perceptuais pertinentes aos objetos, conforme proposto por Clark.
de pessoas e objetos organizados com base nas suas experiências A estrutura do conceito BOLA formado pela criança foi ilus-
com os mesmos. Por ser ativa tal interação, os aspectos dinâmicos de trada, por Nelson (1982), da seguinte maneira:
tais experiências são considerados mais importantes e constituem o
que a criança sabe sobre as coisas experienciadas. É, portanto, de se Relações nucleares: rola, pula
esperar que a criança organize o conhecimento a partir do que ele/ela Relações implícitas não-nucleares: ator (X1),
pode fazer com os objetos com os quais interage e a partir do que ação (Ak), local (P1 L1)
estes próprios objetos fazem (i.e. as funções associadas com os mes- Relações opcionais: possuidor(Ow)...
mos). Em outras palavras, segundo esta visão, o conhecimento a res- BOLA
peito do mundo é funcionalmente organizado a partir do ponto de Traços descritivos: forma (redonda...),
vista da criança. Quando esta inicia o aprendizado da língua, os sig- rigidez (...), textura (...), tamanho (...)
nificados atrelados às palavras aprendidas são significados que re- cor (...)
fletem tal organização funcional. Assim o modelo de Nelson propõe Nomes: “bola”, “bola de baseball”
que a criança vai do significado à referência ao invés do oposto como Segundo Lucariello, Kyratzis e Nelson 1992, é só com a ins-
propõem outros modelos de desenvolvimento semântico como por trução formal provida pela escola que a criança começa a se distanci-
exemplo, o modelo de Clark sobre o qual discorreremos na seção ar dos contextos que influenciam seus agrupamentos conceituais e
seguinte. Portanto, ao invés de abstrair um conjunto de traços perti- começa a priorizar traços de natureza formal compartilhados entre os
nentes a objetos para os quais os adultos aplicam um nome em parti- objetos em suas decisões categorizacionais. Isso, segundo eles, co-
cular e daí inferir uma intensão ou significado para a palavra, o mo- meçaria a ocorrer notadamente por volta do início da escolarização
delo do núcleo funcional propõe que a criança combina seus concei- formal (6/7 anos). Ora se este é o caso, esperaríamos encontrar evi-
tos ao uso que o adulto faz de uma palavra num contexto em particu- dência para tanto nas justificativas para agrupamentos de itens reali-
lar e daí estende o uso desta palavra para outros objetos que se ajus- zados por pré-escolares. Segundo a proposta teórica de Nelson e seus
tem ao conceito pré-formado. colegas (op. cit.) tais justificativas deveriam estar notadamente pre-
sas a contextos. As análises qualitativa e estatística que realizamos

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 561


das justificativas providas por nossos sujeitos confirmam, em parte, ção de traços de natureza perceptual ao dar razões para seus agrupa-
tal posicionamento. Sobre estas discorreremos mais adiante após mentos.
explicitarmos o ponto de vista de Clark. Como exemplo poderíamos destacar que para a categoria ali-
mento, a criança estaria justificando a categorização de itens tais como:
O modelo do traço semântico café e pão com base na internalização de um dado evento se ao dar
uma razão para o agrupamento que fez, dissesse: é porque eu tomo
O modelo do traço semântico proposto por Clark 1973, 1974 café com pão de manhã, ou antes de ir para a escola, ou ainda,
e 1975 se contrapõe ao de Nelson por propor que o fenômeno da porque minha mãe me dá isso para comer.
hiperextensão, no qual a criança bem jovem emprega uma forma Por outro lado, a criança estaria dando evidência que agrupa
semelhante a uma palavra utilizada pelo adulto na nomeação de por atentar para atributos de natureza perceptual, favorecendo assim
vários referentes, evidencia que esta abstrai dos objetos com os a visão de Clark, se dissesse: eu acho que coca-cola e café combi-
quais se depara no mundo, um conjunto de traços semânticos de nam porque são pretos, ou, porque são líquidos, ou alguma outra
natureza perceptual e daí estende tal conjunto na nomeação de no- resposta que destacasse que a criança se apega às características for-
vos referentes. mais dos objetos em si e não se prende a um contexto vivenciado ao
Segundo este modelo, são as características de natureza agrupá-los.
perceptual dos objetos que determinam a base para formação dos Apresentamos, a seguir, a uma breve descrição da pesquisa para
primeiros agrupamentos conceituais por parte das crianças. em seguida expor os resultados das análises qualitativa e estatística das
Esclarecendo a respeito do desenvolvimento de conceitos na justificativas dadas pelas crianças que participaram da pesquisa.
criança, Clark (1973, 1974, 1975), propõe que num primeiro estágio
a criança aprenderia, a partir de experiência com um exemplar ou Procedimento
exemplares, digamos, da categoria cão, a palavra au-au, e a aplicaria
corretamente para nomear cães com os quais se deparasse. Num se- Quarenta e uma crianças, meninos e meninas, de três a quatro
gundo estágio porém, a criança utilizaria o termo para nomear todos anos e onze meses freqüentadoras de creches e escolas públicas e
os animais quadrúpedes com os quais viesse a se deparar. Segundo particulares de Fortaleza participaram de uma tarefa de categorização
Clark, esta hiperextensão evidenciaria que a criança abstraiu um que envolvia o emparelhamento de itens pertencentes às categorias
traço pertimente à forma (digamos o fato de que os referentes possu- animal, brinquedo, alimento, vestimenta, comuns às suas experiên-
em quatro pernas) como base para suas generalizações. Assume-se cias diárias.
assim que, do conjunto total de traços perceptuais disponíveis na Foram utilizados dezoito cartões com tríades de figuras traçadas
ocasião, a criança selecionou esta característica em particular (i.e. ter dos vários objetos a serem agrupados quer de forma delimitada por
quatro pernas) como base para a hiper generalização. Num estágio um contexto de experiência diária, quer pelo compartilhamento de
seguinte a criança poderia, com base em traços pertinentes ao som atributos de natureza perceptual existentes entre os pares de itens.
distintivo feito por outro quadrúpede (por exemplo, o som mom, Dois dos dezoito cartões serviram apenas como treino e portanto não
feito por vacas) reestruturar seu sistema conceitual o que resultaria foram computados para fins estatísticos. A criança era solicitada a
numa redução da hiperextensão associada ao termo au-au. Ainda num responder a pergunta: qual combina mais este com este (item central
quarto estágio, ocorreria uma reestruturação adicional o que levaria com o item disposto abaixo à direita) ou, este com este (item central
a outra redução no uso hiper generalizado de au-au, desta feita o com o item disposto abaixo à esquerda). Depois de fazer sua opção,
traço criterial abstraído seria a dimensão perceptual referente a dife- a criança era solicitada a responder porque havia feito tal escolha.
rentes tamanhos de animais quadrúpedes.
Dessa maneira o modelo do traço semântico assume que a cri- Análise qualitativa
ança estrutura seu sistema conceitual ao expandir seu inventário de
traços semânticos sem ir além daqueles de natureza perceptual. Foi produzido um total de 547 justificativas válidas. Deste to-
Em síntese podemos dizer que enquanto Clark (op. cit.) apre- tal, 280 (51%) justificativas se apoiavam em contextos experienciados
goa que a criança forma seus primeiros conceitos com base na pelas crianças. As 267 (49%) justificativas restantes enfocavam atri-
abstração de traços de natureza perceptual pertinentes aos obje- butos de similaridade perceptual entre os itens agrupados.
tos experienciados, Nelson (1982) propõe, em contra partida, que
na base das formações conceituais operam funções centrais de Verificamos nas justificativas providas pelas crianças, respos-
natureza dinâmica presas às estruturas dos eventos experienciados tas que apontavam tanto para contextos de experiência diária, apoi-
pela criança. ando assim o posicionamento de Nelson quanto a respostas que apon-
Justificativas em apoio dos modelos tavam para o fato de que as crianças igualmente atentavam para atri-
butos de natureza perceptual (i.e. forma, tamanho, textura, etc.), se-
Como dito anteriormente, neste trabalho nos propomos a veri- gundo a perspectiva de Clark, ao formarem os pares de itens.
ficar tais assertivas por analisar qualitativa e estatisticamente as jus- Alguns exemplos dos dois tipos de justificativas produzidas
tificativas de quarenta e uma crianças na fase pré-escolar para seus pelas crianças são elencadas a seguir:
agrupamentos de itens nas categorias semânticas: animal, brinque- Por contexto (i.e. eventos experienciados, ações típicas que se
do, alimento e vestimenta. pode realizar com os objetos ou funções dinâmicas associadas aos
Caso a visão de Nelson (op. cit.) se sustente primordialmente, objetos) :
poderíamos esperar encontrar evidência qualitativa e estatisticamen-
te significativa nas próprias justificativas das crianças para tanto. 1. Escolha: refrigerante e bolo.
Nesse respeito, esperaríamos que as crianças apontassem especial- Justificativa: É que já foi meu aniversário.
mente para os aspectos funcionais dinâmicos de eventos nas justifi-
cativas elaboradas por elas para seus agrupamentos. 2. Escolha: blusa e calção.
Por outro lado se a visão de Clark (1973, 1974, 1975) é a mais Justificativa: A gente veste a blusa de cima e o calção a gente
viável, esperaríamos igualmente encontrar evidência significativa que veste de baixo.
apontasse para o fato de que a criança estaria apoiando-se na abstra-

562 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


3. Escolha: gato e onça. Referências bibliográficas
Justificativa: Porque a onça come o gato.
BLEWITT, P. e TOPPINO, T. (1991). The development of taxonomic
Por compartilhamento de atributos semânticos de natureza structure in lexical memory. Journal of experimental child
perceptual (por inclusão ou exclusão de atributos): psychology, vol. 51, 296-319.
CLARK, E. (1973). What’s in a word? On the child’s acquisition of
1. Escolha: carro e caminhão.
Justificativa: Porque têm pneu. semantics in his first language. In: T. E. Moore (Ed.) Cognitive
development and the acquisition of language. New York:
2. Escolha: elefante e cachorro. Academic Press.
Justificativa: Porque tem um rabo igual ao do elefante. CLARK, E. (1974). Some aspects of the conceptual basis for first
language acquisition. In: R. L. Schiefelbush and L.L. Lloyd
3. Escolha: a galinha com o tucano. (Eds.), Language perspectives-Acquisition, retardation, and
Justificativa: Porque a vaca não tem pena. intervention. Baltimore: University Park Press, 105-128.
_______. (1975). Knowledge, context and strategy in the acquisition
Analise estatística of meaning. In: D. P. Dato (Ed.), Georgetown University. Round
table on Language and Linguistics, Washington, D. C.:
A média de respostas por contexto foi 6,7 enquanto que a mé-
Georgetown University Press, 77-98.
dia de respostas por similaridade foi 6,4. Utilizamos o coeficiente de
Spearman para testar se havia diferença significativa entre tais mé- LUCARIELLO, J.; KYRATZIS, A. e NELSON, K. (1992).
dias. A correlação entre as médias (r = 0,6 para ns = 0,05) não foi Taxonomic knowledge: what kind and when? Child development,
significativa indicando não haver predominância de um tipo de res- vol. 63, 978-998.
posta sobre o outro. NELSON, K. (1974). Concept, word and sentence: interrelation in
acquisition and development. Psychological review, vol. 81, 267-
Conclusão 285.
Os resultados das análises qualitativa e estatística sugerem que _______. (1977). The syntagmatic-paradigmatic shift revisited: a
os modelos avaliados não são mutuamente exclusivos. Isto é de- review of research and theory. Psychological bulletin, vol. 84,
monstrado pelo fato de que pré-escolares fazem uso significativo No. 1, 93-116.
das duas modalidades de categorizar aqui estudadas (i.e. _______. (1982). The syntagmatics and paradigmatics of conceptual
categorização por contexto e categorização por similaridade). O que development. In Stan Kuczay (Ed.) Language development, vol.
nos leva a crer na existência concomitante, no sistema conceitual da 02, Language, thought and culture, 335 – 364.
criança, destas duas formas de organizar seu conhecimento.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 563


Oralidade e escrita – o que pensam
e dizem os professores
Liomar Costa de Queiroz
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

RÉSUMÉ: L’analyse des concepts que les professeurs de l’École Berilo Wanderley avaient à propos de langue parlée/écrite. Pour ce but, nous avons
appliqué um questionnaire qui nous a emmené à réaliser un atelier concernant ces modalités et, nous l’avons appliqué de nouveau, après l’atelier, pour
identifier des progrès de ces professeurs.
PALAVRAS-CHAVE: Língua falada/Língua escrita. Conhecimento lingüístico. Formação de professor.

Este texto tem a finalidade de analisar que conceitos tinham as nhecimento sobre especificidades das modalidades, não acreditando
oito professoras1 dos primeiros ciclos do Ensino Fundamental da nessa representação. Outras acharam que sim, e uma última respon-
Escola Estadual Berilo Wanderley, em Natal, em 1997, sobre as mo- deu que não “quando a escrita assume uma padronização” e sim “quan-
dalidades de língua falada (LF) e língua escrita (LE) e que relação do ela é fiel a forma falada”. Isto indica, primeiro, que desconhece a
estabeleciam entre elas. padronização da LF em algumas situações e, segundo, a tomada da
Partimos da compreensão de que a língua falada e a escrita são defesa de momentos de fidelidade da LE em relação à LF.
duas modalidades de uso de uma mesma língua com suas Detalhando um pouco o conhecimento das professoras sobre
especificidades, mas dentro de um “contínuo tipológico”. as especificidades das modalidades focalizadas e sobre característi-
cas que pudessem considerar comuns, observamos que algumas rela-
Segundo Marcuschi, (1995:358): cionaram LE com forma “mais correta” e com “norma padrão” pre-
conceito lingüístico corriqueiro, que deve ser evitado, pois reflete
O contínuo tipológico distingue e correlaciona os textos de cada uma postura ideológica, que privilegia a escrita em detrimento da
modalidade quanto às estratégias de formulação textual que fala. Outras viram a LE como representação da fala, e apenas uma
determinam o contínuo das características que distinguem as professora enumerou como especificidades da LE o planejamento, a
variações das estruturas, seleções lexicais etc. Tanto a fala como sistematicidade e a possibilidade de reestruturação antes da produ-
a escrita se dão num contínuo de variações, surgindo daí seme- ção chegar ao leitor. Sabemos que essas peculiaridades também ocor-
lhanças e diferenças ao longo de dois contínuos sobrepostos. rem na LF, sendo concomitantes à fala do outro, ou anteriores a ela,
no caso da fala planejada antes da efetivação da comunicação, po-
Para nos familiarizarmos com as concepções dessas professo- dendo ser replanejada no momento da interlocução, o que não é pos-
ras sobre LF e LE, foi aplicado um questionário2 , e a análise de suas sível no uso da LE.
respostas nos levou a realizar uma oficina, tendo como objetivos, Como pontos comuns entre as duas modalidades, as entrevis-
basicamente, ajudá-las a reconhecer as modalidades de língua oral e tadas indicaram a comunicação, a compreensão e o seu processo de
escrita e a analisar algumas interferências da oralidade na escrita. aquisição, quando uma das professoras afirma sim pois ambas são
Posteriormente à oficina, reaplicamos o questionário para detectar- processos que as crianças van (sic) construindo pouco a pouco.
mos as possíveis mudanças de concepções das professoras quanto às No final dos trabalhos da oficina, notamos, por parte das pro-
modalidades estudadas. fessoras, uma maior compreensão dessas duas formas de expressão.
De modo geral, para responderem ao que entendiam por LE, Incorporaram a noção de formalidade e informalidade nas duas mo-
algumas professoras a relacionaram à representação “gráfica” do pen- dalidades; a existência de planejamento prévio também na fala, ape-
samento, outras ao “meio de comunicação” ou à forma de “registro” sar de ser replanejada localmente; passaram a destacar o valor social
da escrita; ampliaram o contexto de uso dessa modalidade além dos
da fala, como se as sociedades não letradas não pudessem registrar
limites da escola, apesar de destacarem o seu papel fundamental; o
suas tradições pela oralidade.
caráter de antecedência e universalidade da fala em relação à escrita,
Nesse mesmo questionamento, agora sobre LF, as professoras
já que esta veio depois daquela, e também porque ainda existem so-
relacionaram essa modalidade aos termos “símbolos verbais, verbal e
ciedades sem escrita; e finalmente, a visão de que são duas modalida-
verbalmente”, postura que achamos natural, pois faz parte do senso
des com suas especificidades e aproximações, conforme Koch (1997),
comum não incluir a língua escrita nesse campo semântico, o que
ainda neste texto.
demonstra o conhecimento não sistemático dessas professoras quan-
A importância desse avanço está na compreensão que devem
to a essa ou essas modalidades de língua. Outra professora confun-
ter das particularidades existentes e das possibilidades de se traba-
diu-se, queremos assim crer, quando disse que nessa modalidade “não lhar tanto uma quanto a outra modalidade em sala de aula, sem
entra gestos”, quando sabemos que eles complementam a comunica- preconceito e sem defender a supremacia de uma modalidade sobre
ção nessa modalidade. Outras destacaram a LF como forma de comu- a outra.
nicação, definição ampla que não se restringe a essa modalidade e É importante também avançar nas definições sobre fala e es-
sim também à LE; outra referiu-se ao momento da produção da LF crita, como fez Marcuschi (1995:351):
quando destacou as “cordas vocais” nesse processo de compreensão
sobre essa modalidade e, uma última, considerando a LF “no cotidi-
ano das crianças “...” cada pessoa tem a sua fala desenvolvida na
comunidade de origem”, o que, inicialmente, limitou a modalidade a 1 Nessa Escola existem apenas professoras lecionando nos dois primeiros
ciclos do Ensino Fundamental.
uma faixa etária e, posteriormente, a um contexto específico e não
2 Questionário aplicado como parte da minha tese de doutorado intitulada:
múltiplo. O conhecimento lingüístico dos professores de 1º a 4º níveis do Ensino
Na relação da LE com a LF, no item em que questionamos se a Fundamental: uma intervenção pedagógica, defendida em 26/06/2000.
primeira representa a segunda, algumas respostas demonstraram co- Orientadora: Profª. Drª.: Maria Bernadete Fernandes de Oliveira/UFRN.

564 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A fala seria uma forma de produção textual-discursiva oral, Reforçando a postura de Marcuschi (1995) sobre a noção de
sem a necessidade de uma tecnologia além do aparato disponível “contínuo tipológico” e situando os exemplos acima, Koch (1997:61/
pelo próprio ser humano. A escrita seria, além de uma tecnologia de 62) verifica que
representação abstrata da própria fala, um modo de produção textu-
(...) existem textos escritos que se situam, no contínuo, mais
al-discursiva com suas próprias especificidades.
As definições de fala e de escrita como produção textual- próximos ao pólo da fala conversacional (bilhetes, cartas fa-
discursiva reforçam a concepção de língua em seu funcionamento: miliares, textos de humor, por exemplo), ao passo que existem
um sistema em uso, e não a língua como código, como sistema abs- textos falados que mais se aproximam do pólo da escrita for-
trato, sem a consideração de qualquer circunstância de fala ou de mal (conferências, entrevistas profissionais para altos cargos
escrita, independente dos interlocutores. administrativos e outros), existindo, ainda, tipos mistos, além
Estabelecendo um paralelo entre as duas modalidades, sem o de muitos outros intermediários.
intuito de incentivar a dicotomização, reelaboramos juntamente com As marcas da fala em um texto escrito ainda são vistas como
as professoras, o quadro abaixo: um aspecto negativo a ser refeito para a forma padrão escrita, além
de a fala ainda ser considerada inferior em relação à escrita. Os pre-
conceitos existem porque aquela é vista tomando-se como referência
o padrão ideal da língua escrita. Esses preconceitos refletem uma
postura ideológica, que privilegia a escrita em detrimento da fala.
Ainda sobre as duas modalidades referidas, Kato3 (1987) faz
uma revisão das diferenças formais e funcionais entre as modalida-
des da fala, e Marcuschi (1995:351-356) apresenta uma classificação
que demonstra a falta de consenso sobre essas modalidades, quando
discorre sobre: a)Fala x escrita: a perspectiva das dicotomias; b)
Oralidade x Escrita: tendência fenomenológica de caráter
culturalista; c) Fala x Escrita: a perspectiva variacionista; e d)
Oralidade x escrita: a perspectiva interacional
Após todas essas considerações, é fundamental enfatizar que a
escola deve valorizar a experiência prévia do aluno nas modalidades
falada e escrita, desenvolver uma pedagogia voltada para as duas
modalidades, cada uma delas com suas variáveis formais e informais
e compreender que existem características específicas e aproxima-
ções entre a fala e a escrita, conforme já foi mencionado.
Faltam cursos de atualização e/ou aperfeiçoamento ou uma
“educação” continuada para os professores, que atendam as lacunas
de conhecimentos disciplinares que existem nos seus cursos de for-
mação. Nesse sentido, podemos relacionar esses conhecimentos dis-
ciplinares ao que Tardiff et alii4 (1991:220) denomina de saberes
disciplinares: Esses saberes integram-se igualmente à prática do-
cente através da formação (inicial e contínua) do(a)s professore(a)s
nas diversas disciplinas oferecidas pela universidade. Podemos
chamá-los de saberes das disciplinas
Finalizando nosso texto, gostaríamos de concluí-lo com as pa-
lavras de Bagno (1999:83) que sintetizam e reforçam as idéias ex-
postas sobre as duas modalidades de língua tratadas, quando diz que

O importante “...” é a gente ter sempre em mente que ‘nem


tudo o que se escreve se pronuncia’, assim como ‘nem tudo o
que se pronuncia se escreve’. A língua escrita serve como regis-
tro permanente... scripta manent... é usada para a transmissão
do saber e da cultura, e muitas vezes é até interessante que ela
permaneça sem muitas mudanças, para que a gente possa ler
com facilidade documentos antigos e livros impressos há muito
tempo. O que não podemos admitir é que ela seja usada como
um ‘instrumento de tortura’ ou uma ‘prisão’ para a língua fa-
lada. Nunca é demais lembrar que o homem fala há milhões de

3 KATO, Mary A. No mundo da escrita – uma perspectiva psicolingüística.


2.: ed., São Paulo: Ática, 1987. p.10-41: A natureza da linguagem escrita.
(Série Fundamentos)
4 TARDIFF, Maurice, LESSARD, Claude, LAHAYE, Louise. Os professores
face ao saber - esboço de uma problemática do saber docente. Trad. por
Léa Pinheiro Paixão. Rev. da trad. Maria Alice Nogueira. Teoria & Educa-
ção. n. 4, p.215-233, 1991. Original em francês.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 565


anos e que as primeiras formas de escrita datam apenas de ed., São Paulo: Contexto, 1999.
3.500 antes de Cristo. Cada uma das duas modalidades de lín- KOCH, Ingedore G. V. O texto e a construção dos sentidos. São
gua tem suas funções próprias, sua lógica de funcionamento, Paulo: Contexto, 1997, p.61-62: A natureza da fala. (Caminhos
suas regras específicas, e ambas são meios igualmente válidos da linguagem)
de expressão. MARCUSCHI, Luiz A. Oralidade e escrita. In: I COLÓQUIO FRAN-
Referências bibliográficas CO-BRASILEIRO SOBRE LINGUAGEM E EDUCAÇÃO, 1.
Natal, 26-28-06 de jun. de 1995. p.346-361.
BAGNO, Marcos A língua de Eulália: novela sociolingüística. 3.:

566 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Traços do francês falado: exercícios de jeux de rôles
Marília Cabral de Azevêdo1
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

RESUME: La langue parlée apparaît dans des exercices de jeux de rôles. Elle est l’objet d’étude de ma recherche de Mestrado, en cours, en
Linguistique Appliquée, dont les données empiriques ont ses origines dans le cours pour les débutants à l’Alliance Française de Natal.
PALAVRAS-CHAVES: expressão oral, francês falado.

Origens da pesquisa que ele deixa a sua marca, sua individualidade, suas escolhas. Momen-
to de sua expressão oral, de sua vez, de sua palavra. É a hora do teatro
Sentindo a necessidade de como fazer para os alunos falarem na sala de aula, onde o improviso e o desejo de brincar com as palavras
melhor o francês e de como melhorar minha prática de ensino na classe, ganha vez, transformando a sala num palco e as pessoas em outras
pensei em fazer a pesquisa de mestrado na própria sala que ensinava. identidades.
Haviam dezessete estudantes, adolescentes e adultos. A duração desta É um exercício de expressão oral da abordagem comunicativa,
turma de francês para iniciantes, na Aliança Francesa de Natal, é de normalmente chamado de teatro na sala de aula, onde o improviso é
cinco meses. Foram analisados três meses - março, abril e maio de bem-vindo. O objetivo do exercício é “soltar a língua”, aproveitar
2000. O primeiro mês - fevereiro - foi dedicado ao conhecimento dos desta ocasião para sistematizar de forma um pouco caótica as idéias
alunos e a ser pensada a metodologia da pesquisa. Foi preciso este que surgem. Geralmente o jeu de rôle tem como suporte um ato de
tempo, de uma lição do livro, para constituir um grupo coeso. Esperar fala, que tem sua origem teórica na Pragmática e a palavra rôle, papel,
que todos os alunos chegassem das férias e começar com a tranqüilidade vai vir da Psicossociologia, interessando muito a Didática de Línguas
necessária que se pede a pesquisa de mestrado. Dentro de cada lição Estrangeiras. Segundo o dicionário de Didáticas de línguas de Galisson
aparece um ou dois exercícios de expressão oral, aqui por nós designa- e Coste (1976) este tipo de exercício favorece a idéia do grupo-classe,
dos de jeu de rôle. A partir do segundo mês - março -, comecei a fazer os aspectos sociolinguísticos da língua que se está aprendendo, além
a coleta de dados com a gravação dos jeux de rôles e as transcrições dos dos papéis dramáticos que estão ligados aos papéis sociais na cultura
mesmos. Utilizamos as Unidades 1 e 2, com três lições cada uma, do estrangeira.
livro didático francês: Panorama de la langue française 12 para con-
cluir o curso de francês para principiantes. A sala de aula que vira palco
Surgiu a idéia de gravar as produções orais dos alunos, de fazer
transcrições dos jeux de rôles e com este material começar uma análise O jeu de rôle tem a encenação como um “faz de conta que você
lingüística. Perceber se existiam marcas da oralidade nesta produção, está num palco de teatro” e a sala de aula se transforma. Ela muda de
se estas marcas vinham dos diálogos do livro, se ele fornecia explica- significação, deixa de ser um lugar onde as pessoas têm que ficar
ções voltadas para a oralidade e ver como o livro do professor orien- comportadas e sérias ao receberem os ensinamentos e passa a ser um
tava este tipo de exercício. Para esta comunicação, nos deteremos lugar de vida, onde a livre expressão tem vez, ocupando um bom
apenas a tentativa de esclarecimento sobre o que venha a ser o jeu de espaço lúdico . A sala vai tomando aquele aspecto de lugar de jogo,
rôle, a algumas considerações sobre as instruções no livro do profes- ficando mais parecida com a vida na sua forma divertida. Durante a
sor e ao comentário das transcrições de diálogos de dois grupos que pesquisa, o lugar dos jeux de rôles aconteceram em salas diferentes
fizeram um mesmo exercício de jeu de rôle. para facilitar este desprendimento necessário com a idéia da sala de
Também foi percebida, a pequena quantidade de expressões da aula como sala de trabalho sério, incutida no imaginário de brasileiros
oralidade estudadas no método. Talvez pela importância que dão, os que passaram por uma ditadura, por um ensino repressor. Esta
metodólogos franceses, à expressão escrita, ou à idéia estereotipada proposta, de mudança de lugar, estava nos planos da pesquisa, porém
que o mundo letrado faz questão de transmitir a seus estudantes - de os alunos pediram para permanecerem na sala na primeira gravação,
que o saber escrever é mais nobre que o saber falar. fato curioso para a pesquisa. Eles sempre eram consultados antes de
Claire Blanche-Benveniste (1997: 147-148), cita o antropólo- escolhermos formas de trabalhar. No primeiro jeu de rôle gravado, foi
go americano Jack Goody (1994: 288) que afirma a respeito da unifi- perguntado aos alunos se eles prefeririam ficar na sala de aula ou sair.
cação lingüística da China contemporânea, apontando sobre a organi- Eles preferiram ficar na sala de aula deles, no lugar que eles já conhe-
zação social do poder da escrita, reproduzida igualmente pelos fran- ciam. Quanto a organização das pessoas, também foi perguntado se
ceses: eles prefeririam fazer a encenação com todos os outros alunos na sala
L’effet en retour de l’écrit sur l’oral, dont la recherche
linguistique fournit de nombreux témoignages signifie que le discours
de l’élite lettrée ira inévitablement vers les formes écrites (quelle que
soit l’origine de celle-ci) facilitant ainsi l’apprentissage de la langue 1
Mestranda do curso de Pós-graduação em Estudos da Linguagem –
écrite par ses enfants. C’est un aspect de la reproduction de l’élite.3 UFRN. Orientadora: Profª. Drª. Maria Bernadete Fernandes de Oliveira.
2
GIRARDET, Jacky ; CRIDLIG. Jean-Marie. Panorama de la langue française
O que é o Jeu de Rôle? 1 : méthode de français, Paris, Clé International, 1996.
3
«A repercussão da escrita sobre a oralidade, cuja pesquisa lingüística
fornece numerosas testemunhas significa que o discurso da elite letrada
É um contato consigo mesmo e com o outro, uma oportunida- irá inevitavelmente em direção às formas escritas (quaisquer que seja a
de de comunicar o que se sente e se pensa na língua estrangeira de origem desta) facilitando assim, o aprendizado da língua escrita pelas suas
forma lúdica. Momento de reunião dos conhecimentos aprendidos e crianças. É um aspecto da reprodução da elite.» (tradução livre da cita-
tentativa de sistematização deste saber pelo aprendiz. Momento em ção, Jack Goody,1994, p. 288).

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 567


presenciando o exercício ou não. Houve muita confusão neste mo- expressão oral, deve estar atrelado a preparação escrita? Por que dar
mento, uns queriam ficar outros queriam sair, enfim, foi decidido por exemplos no livro do professor se o jeu de rôle é um exercício de
todos, para chegar a um consenso necessário, que as duplas a serem criatividade? Acredita-se que o modelo seja importante, mas será que
gravadas permaneceriam somente com a professora na sala. Até este ao dar o modelo o aluno não ficará com sua criatividade cerceada?
ponto, a função social do jeu de rôle não tinha sido atingida, de forma Neste primeiro jeu de rôle transcrito, os grupos prepararam
plena, porque como era a primeira gravação, os locutores ficaram por escrito, mas na hora de encenar foi pedido para que não utilizas-
inibidos com a idéia de todos assistirem ao “espetáculo”. Além de ser sem o papel. Como no livro do professor a instrução era outra, não
um exercício, onde não tinha “ensaio” oficial, antes de apresentar a houve preparação prévia da parte da professora para dar a consigne,
encenação em um lugar “oficial”, que seria o espaço da sala de aula. instrução, desde o começo do exercício e orientar os alunos para fica-
No entanto, ao final das gravações em dupla, todos ouviram, na fita rem longe do papel escrito. Porém, o pedido para que os alunos não
gravada, as produções de cada grupo. E o resultado desta experiência lessem, na hora da encenação foi um golpe de sorte para esta pesquisa.
foi muito engraçada, muitos risos e constatações de que eles precisa- No sentido de que se percebeu uma falha, digamos assim, na forma de
vam estudar mais - constatação de um aluno que faltava as aulas. As se conceber o exercício de jeu de rôle, no livro do professor. Ao
formas, construções de frases, não tinham a estrutura ‘certinha’ da favorecer e valorizar a escrita, quando se sugere a preparação por
escrita, porém a comunicação passava, era efetivada. A natureza da escrito dos diálogos, no lugar de enfatizar a oralidade no exercício que
oralidade combina com esta flexibilidade da expressão. é próprio para a expressão oral. Trata-se de uma falha?
Um dos interesses deste exercício é o encontro com o idioma, Alguns grupos pediram para ler, deixamos que eles ficassem à
uma forma de ficar a vontade com o uso da palavra, errando ao falar, vontade, porém foi avisado que nos próximos jeu de rôle faríamos um
brincando com os sons e se apropriando da oralidade . Com o objetivo esforço para não ler e sim improvisar. Algumas pessoas conseguiram
de comunicação, através dos atos de fala, o falar se desloca daquele fazer o exercício sem ler o diálogo preparado previamente por escrito,
lugar ‘certinho’, aprendido pelo rigor da escrita e ganha outros hori- o que não foi o caso de outras.
zontes, seu próprio espaço. Sentimos que estamos frequentando uma Esta maneira de proceder chamou atenção da pesquisadora e ao
outra face do idioma, uma outra forma de comunicar-se com caracte- longo da pesquisa questionamos se a preparação escrita, como instru-
rísticas próprias e diferentes da tão tradicional escrita que exige ção final sugerida pelo livro, desvirtuou a idéia do exercício oral desde
parâmetros outros. As produções individuais, os esforços, que cada o começo. Quando citamos começo, nos referimos ao primeiro jeu de
um enquanto ser que comunica o que sente, o que pensa, os valores da rôle transcrito. Lembramos que o primeiro jeu de rôle gravado, da
sua própria cultura são estes novos horizontes, limites traçados e apresentação, não houve preparação escrita.
galgados por eles próprios, aprendizes de uma língua estrangeira.
O jeu de rôle é uma espécie de fotografia do processo de Comentário do Jeu de Role 1.1
estruturação da fala. Ele não deve ser avaliado com se fosse um
exercício escrito. O objetivo deste exercício é justamente não se pren- Segundo a consigne, instrução, - salutation / acheter / prendre
der a estruturas, a gramática tradicional da língua e sim comunicar com congé -, este grupo cumpriu a tarefa em termos, porque não se sabe se
os recursos que o aluno assimilou. É um fazer-se e não um feito. O jeu elas compraram o perfume ao ler a transcrição. Porém, vendo a situ-
de rôle precisa desta característica para se tornar lúdico e leve, onde o ação na sala de aula, sabe-se que o perfume foi comprado pelos gestos
erro é visto e aceito como elemento principal do processo de aprendi- e pela atitude da aluna quando levava consigo um perfume “invisível”
zagem. O importante é que o aluno atinja a tarefa delineada. No nas mãos ao se despedir. Nesta pesquisa, não iremos dar conta do
primeiro jeu de rôle transcrito da pesquisa (Exercício 2 p.20, Unidade estudo dos gestos.
1, Lição 2) o objetivo era comprar alguma coisa. Para chegar nesta Percebe-se duas coisas relevantes neste exercício: a marca do
tarefa, o aluno passa por vários caminhos até comprar algo. Esses “ça”5 e a leitura feita pela locutora 2; na linha 6, podemos ver a
caminhos escolhidos, por ele mesmo, vão possuir a marca dele, de hesitação no começo da frase. Foi pedido para não ler o que tinham
como ele fez para conseguir comprar. Uma das belezas deste exercício preparado, porém a locutora 2 , levou o caderno com ela e o colocou
é o não saber por onde o aluno vai caminhar para conseguir chegar ao na mesa da encenação. As alunas usaram a mesa da professora como
final da tarefa que é comprar algo. balcão de venda e o gravador permaneceu sobre a mesa. A professora
ficou ao lado, sentada numa carteira de aluno.
Primeiro Jeu de Rôle transcrito A palavra “ça” é uma marca da oralidade. É a redução da
palavra “cela” que significa isso ou isto, aparecendo geralmente, nesta
O segundo jeu de rôle experimentado na sala e primeiro a ser forma maior, de quatro letras, em textos escritos. No entanto, no livro
transcrito, foi gravado no dia 5 de abril de 2000, com o exercício 2 p. Panorama 1, no diálogo C, já aparece o “ça” e o livro não dedica
20: a. Imaginez les dialogues correspondant aux photos de la page nenhuma explicação ao fenômeno. Os alunos perguntam: “— Como o
suivante et jouez les scènes. b. Imaginez et jouez d’autres scènes “ça” é uma marca da oralidade e aparece na escrita?” . Outro dado
d’achat (des fleurs, un parfun, une cravate, etc.)4 importante, o livro não explica a questão dos registros - discurso
Este exercício tinha como objetivo comprar. Estava localizado formal ou informal. Durante todas as unidades 1 e 2, que são os
na parte de Civilização do livro. O Panorama 1 está dividido em três primeiros cinco meses de francês para os principiantes na Aliança
grandes partes: Gramática, Vocabulário e Civilização. Neste dossier Francesa de Natal, os textos são diálogos, exceto na unidade 1, na
de civilização o tema é a compra e o jeu de rôle se desenrola nesta parte A que têm três modelos de cartas escritas. O diálogo 1.1 produ-
perspectiva. O livro acompanha uma fita de vídeo, onde trás várias zido pelas alunas, foi curto e sucinto.
situações de acordo com os temas das lições. Vimos uma situação de
compra: uma estudante estrangeira que comprava legumes numa feira
parisiense. Passei o vídeo antes de fazer o exercício de expressão oral,
o jeu de rôle. 4
“ a. Imagine os diálogos correspondentes às fotos da página seguinte e
Ao analisar o livro do professor, percebe-se instruções de como faça as encenações. b. Imagine e faça outras encenações de compra -
o professor deve proceder. Aparecem dados que devem ser discuti- flores, um perfume, uma gravata, etc.”. (tradução livre do exercício 2,
dos e nos questionamos: Por que o jeu de rôle, sendo um exercício de Panorama 1, p. 20).
5
Ça é isso ou isto. (tradução livre).

568 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Comentário doJeu de Role 1.2 uma segunda solicitação. A primeira foi feita pelo locutor 3 e a pro-
fessora não atendeu, deixando que os aprendizes sentissem que era
Na segunda transcrição do jeu de rôle 1 aparece uma caracterís- um tipo de exercício onde não cabia uma terceira voz. No entanto o
tica marcante da oralidade, o pensamento vai se costurando a medida diálogo “empacou” e foi necessário uma orientação. Houve um pedi-
que os locutores vão falando, ou seja, é como se pudéssemos ver a do de ajuda na língua portuguesa.
parte de trás e da frente do tecido. Na linha 35, a palavra vem primeiro
em português para depois vir em francês: As palavras novas que o locutor 3 sabia foi fruto da segunda
aula quando esteve presente e que coincidentemente foi a aula deste
35. Loc. 3 Comment s’appelle senh- oh - monsieur?6 exercício de jeu de rôle. Frases como:
19. Loc. 3 Ça coûte have...
Vemos a linha do discurso ser preparada para aparecer em um 27. Loc. 3 En espèce. Avec mon espèces, non? Avec des
mesmo plano, no eixo sintagmático. Claire Blanche-Benveniste e sua espèces...8
equipe do G.A.R.S.7 , faz um longo estudo sobre a questão de como
transcrever a oralidade. Uma de suas afirmações sobre esta reflexão é O jeu de rôle não foi terminado de forma lógica: salutation /
a aparição da oralidade no eixo paradigmático, como os poetas moder- acheter / prendre congé, apesar do locutor 3 ter comprado o livro. A
nos fazem na disposição dos seus versos. Utilizarei algumas conven- pesquisa busca aproximar os aprendizes da situação real de uso da
ções da sua equipe para transcrever os jeu de rôle, porém não todas. língua oral, através da desvinculação da preparação escrita, dos jeux de
Além de não desenvolver, neste trabalho, a idéia quanto aos eixos e a rôles e das improvisações.
forma de transcrever a oralidade.
A espontaneidade ao moldar o discurso está às vistas, mesmo Referências bibliográficas
apesar de sabermos que existe uma preparação cognitiva, interna,
antes de oralizar a frase. Este grupo fez o exercício sem ler nada. A BLANCHE-BENVENISTE, Claire. Approches de la langue parlée
consequência da instrução - falar sem ler o que preparou por escrito - en français. Paris: Ophrys, 1997.
foi, primeiramente, visual: o diálogo, jeu de rôle 1.2, é bem mais BLANCHE-BENVENISTE, Claire et alii. Le Français parlé : Études
extenso que a trascrição anterior, jeu de rôle 1.1. O “ça” também grammaticales. Paris : CNRS, 1990.
aparece nesse texto reafirmando os traços da oralidade. BLANCHE-BENVENISTE, Claire; JEANJEAN, Colette. Le Français
O locutor 3, do diálogo, faz um “papel de papagaio”, repete parlé. Transcription et édition. Paris : Didier- Erudition, 1986.
tudo. Palavras e idéias do locutor 4. O ato de fala “se apresentar” está DUFEU, B. Qu’est-ce que le jeu de rôle. Table ronde. Le F.D.L.M.,
bem aprendido. De forma que, o locutor 3 se dando conta de ter falado nºavril, 1983.
pouco ou sentindo vontade de continuar no jogo, insiste em voltar a GALISSON, R.; COSTE, D. Dictionnaire de didactique des langues.
cena para falar o que ela sabia, ou seja, repetir a apresentação. Paris, Hachette, Coll. F., 1976.
Diante desta constatação, acredito que tenha falhas no méto- GOODY, Jack. Entre l’oralité et l’écriture. Paris : PUF, 1994.
do, assim como , percebe-se a falha do locutor 3, por ser um aprendiz Tradução de The interface between the written and oral,
que faltou o primeiro mês de aula inteiro, exceto no primeiro dia do Cambridge University Press, 1993.
curso. O dia do jeu de rôle era seu segundo dia de aula. HAGEGE, Claude. L’homme de paroles. Paris : Fayard, 1985.
Nesse diálogo, houve a intervenção da professora depois de

6
“Como se chama senh- oh - senhor?” (tradução livre da transcrição).
7
G.A.R.S. Groupe Aixois de Recherche en Syntaxe; “Grupo de Aix-en-
Provence de Pesquisa em Sintaxe” (tradução livre da abreviatura, Blanche-
Benveniste, 1990, p.14 )
8
19. Loc. 3 Isto custa tem (palavra em inglês, ter) ....
27. Loc. 3 Em dinheiro. Com meu dinheiro, não? Com dinheiro...
(tradução livre da transcrição).

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 569


Oralidade e estrutura argumentativa em sala de aula
Guilherme Afonso1
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

ABSTRACT: The aim this work is to point out that the choice of rhetorics components creates an argumentative process in classrom. This softens the distinct
relationship between theacher and student, as well as it helps the construction of shared meaning.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso; Diálogo; Argumentação; Ensino

O objetivo desse trabalho é mostrar que se utilizando elemen- comum ao mundo greco-latino. O estudo dessa gramática era bastante
tos retóricos, como as concepções de diálogo heurístico, de transpa- funcional, pois servia para fundamentar os oradores em seus debates
rência e de reciprocidade, podemos criar um processo argumentativo públicos. No entanto, com o passar dos tempos, esses debates
que auxilia na construção de significados compartilhados em sala de tornaram-se exíguos, o que fez do estudo da gramática uma disci-
aula, envolvendo, assim, professores e alunos numa atividade plina escolar normativa, artificial e autônoma, provocando um
dialógica e amenizando as coerções institucionais da escola que faz obscurecimento de suas origens retóricas e, consequentemente,
da relação professor -aluno assimétrica. condenando o espaço da oralidade e da interação dialógica em
sala de aula.
Oralidade e discurso em sala de aula Não obstante a implantação desse quadro, acreditamos que ele
está sujeito a modificações e ajustes, desde que nos mobilizemos
Foi apenas na década de 60 que a língua falada passou a pos- para uma “ação junto aos professores”, às escolas e aos alunos.
suir um tratamento científico. Até então, lingüistas, norteados por É preciso, antes de mais nada, vermos uma aula como um con-
Saussure e Chomsky, consideravam a fala “o lugar do caos”, dada a texto e um quadro de práticas cuja construção deva ser uma ação
ordem dos inúmeros elementos pragmáticos que colaboram com a social conjunta dos participantes (Kleiman 1993:423). Para isso,
construção do texto falado. devemos conceber o discurso escolar como um diálogo, não em sua
Com a mudança de paradigma, o escopo das pesquisas passa acepção formal2 , mas num sentido filosófico, retórico e pedagógico,
do produto lingüístico para o processo interacional. A linguagem como como o fazem Ehlich e Tilburg (1986), Perelman e Tyteca (1999) e
mera verbalização deixa de possuir relevância investigativa, tornan- Reboul (1998).
do-se, assim, as condições de produção de cada atividade de interação, Esses autores, apesar das formações heterogêneas, trabalham
um aspecto a ser incorporado nas análises discursivas e textuais. com uma idéia de diálogo que propicia a construção de significados
O conceito bakhtiniano de enunciado nos faz vislumbrar as compartilhados e de processos argumentativos em sala de aula: res-
vozes, os enunciados alheios que perpassam os nossos, estabelecen- pectivamente, temos o diálogo de uso enfático, o diálogo heurístico
do relações de sentidos (...) ( Oliveira, 1998). A linguagem, mesmo e o que podemos chamar de diálogo pedagógico. Assim, entendemos
em sua modalidade escrita, é, então, vista como essencialmente esses diálogos como procedimentos dialógicos cuja finalidade é en-
dialógica. volver os participantes para encontrar “uma verdade”, uma solução
Na língua falada, no entanto, o dialogismo é mais notório, já para um problema. Em sala de aula, esse discurso dialogal vem, jus-
que locutor e interlocutor são co-autores do discurso, inscritos, de tamente, para amenizar a relação desigual entre professor e aluno.
imediato, pelo processo de comunicação, o que gera conseqüências Dessa forma, percebe-se que na construção de significados
formais, semânticas e cognitivas, caracterizadoras da linguagem oral compartilhados em sala de aula, o discurso tem um papel destacado,
e da interlocução. já que possibilita, aos participantes da interação, a exposição, a com-
Apesar da natureza dialógica da oralidade, observa-se que, em paração, a negociação e, consequentemente, a modificação de idéias
sala de aula, muito raramente, ocorre uma construção cooperativa do e representações da realidade. Isso faz com que, antes de mais nada,
texto oral. Isso porque o estilo discursivo do professor é determina- os participantes tenham de explicitar seus significados, para assim,
do pela escrita; sua fala é predominantemente referencial e planeja- utilizando-se de dispositivos e recursos de acompanhamento mútuo,
da, o que determina a existência de uma unidade que é anterior ao detectarem rupturas e mal-entendidos, objetivando resolvê-los em
processo interpretativo do outro ( Kleiman 1993:420). Assim, ficam prol comum e de acordo com os objetivos instrucionais da situação
notórios, o distanciamento do professor em relação ao aluno e a difi- (Coll e Onrubia 1998).
culdade de negociação dos sentidos. A seqüência didática analisada por nós revela a formação de
Além disso, as relações de poder em sala de aula, que privile- um contexto argumentativo através dessa interação compartilhada.
giam apenas o conhecimento de um grupo cultural, limitam os direi- Por sua vez, esse contexto fomenta um processo retórico cuja dispo-
tos do aluno, desconsiderando suas individualidades, e fazem do pro- sição oferece meios aos alunos e aos professores de controlar e acom-
fessor o único responsável pela construção de um texto, tornando o panhar a construção dos significados, ou seja, esse contexto desen-
discurso em sala de aula, altamente assimétrico. cadeia uma situação heurística, um quadro que se transforma em um
Dessa maneira, Kleiman ( 1993:422), devido às restrições instrumento a serviço do processo dialético (Ramirez e Wertsch
institucionais, não considera o texto produzido em sala de aula fruto 1998:205), reconciliando opostos em uma síntese final.
de um diálogo cooperativo. O que nós temos, então, é, como conce-
be Perelman e Tyteca (1999), um diálogo erístico, em que o profes-
sor utiliza seu saber como poder de dominação perante o aluno.
1 Mestrando em Lingüística Aplicada do Programa de Pós-graduação em
Significados compartilhados e contextos argumentativos Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Orientação da Professora Doutora Maria Bernadete F. de Oliveira.
A história da lingüística nos revela que a gramática surgiu da 2 Entendido como uma conversa entre duas pessoas e definido em termos
retórica, da apreciação dos processos argumentativos e oratórios, de tomadas de turno

570 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


O processo argumentativo em sala de aula tação ... olhe o que ele diz ... “Mas deixe isso para depois o
mais o mais importante é que a senhora fale com tio Mazinho”
A seqüência didática a ser analisada é fruto de uma aula cujo A3. Tá bom:::
objetivo era promover uma discussão acerca da estrutura narrativa
do conto Paloma de Álvaro Cardoso Gomes. Essa atividade impli- As passagens acima revelam que, apesar do clima de competi-
cou em uma aproximação do aluno com o conteúdo, em uma relação ção, a professora e os alunos transcendem as suas posições indivi-
de cooperação entre professor e aluno, bem como uma disponibilida- duais em prol de uma resolução para o impasse estabelecido, dando
de dos participantes para explicitar suas idéias e seus significados. ao discurso dialogal um caráter argumentativo de natureza heurística.
Observemos um primeiro fragmento de nossa seqüência3 : Um outro fator que nos chama a atenção é os alunos, geral-
mente dominados no processo educativo, expressarem livremente,
I. P. O que que os dois grupos fizeram? dentro desse contexto retórico, suas opiniões e refutarem o ponto
A1. O nosso grupo colocou que o conflito da ( ) (entre) o profes de vista dos colegas e, inclusive, da professora, demonstrando au-
sor da escola que é o que está preso e o diretor ( ) porque tonomia e contribuindo, assim, para a constatação do contexto e
através de toda a discussão (dele ter uma mulher a mesma dos significados.
mulher) que (o diretor queria) ele foi preso ... e que por tudo É notado que, mesmo quando há a intervenção da docente no
isso desencadeou a história diálogo, a favor de uma das complicações, o debate não é encerrado
P. Que vocês acharam? (frag. II.). A professora aparece, então, como mais um parceiro na
A2. Nós discordamos de Priscila professora ... porque (...) ele tava elaboração dos significados. Prova disso é o fato de ela adotar uma
contando (...) o motivo dele estar na cadeia ... mas o conflito perspectiva (frag. II.) e após a interposição, primeiramente, de A2 e,
lá que ele tá querendo (expressar) ( ) é convencer a mãe a posteriormente, de outros alunos (frag.III), haver por sua parte duas
falar com o responsável que pode tirá-lo de cadeia (...) mudanças de parecer, uma em favor de A2 e outra atenuadora, já que
ela considera os conflitos complementares.
Como constatamos no fragmento acima, através do contexto Outro fator relevante é o fato de, após a adoção definitiva de
de análise do conteúdo adotado pela professora, duas perspectivas uma perspectiva por parte da docente, os alunos não manifestarem
entram em conflito: há a produção de dois diferentes significados concordância ou discordância com a professora, muito menos, qual-
que se baseiam na interpretação do texto adotado para discussão. quer sinal de estarem persuadidos por ela. Isso faz com que A2 (frag.
Assim, temos na seqüência acima, o desencadeamento de um proces- IV) retome a discussão, apresentando uma passagem do texto como
prova irrefutável de sua tese, provocando, com isso, o reconheci-
so argumentativo que tem sua origem em um conhecimento compar-
mento, por parte de A3, da tese e do significado elaborado por A2 e
tilhado, o conto Paloma, e em uma formulação conceitual, também,
pela professora.
conhecida por todos os participantes, o conceito de complicação em
Isso revela a importância do texto-fonte para esse tipo de diá-
uma narrativa.
logo, pois ele é um dispositivo de acompanhamento mútuo e um
As indagações feitas pela professora suscitam diferentes inter-
utensílio retórico a favor dos participantes. Observemos que a passa-
pretações do fenômeno estudado. Além disso, essas perguntas funci-
gem do texto Paloma utilizado por A2 funciona como um discurso
onam como um dispositivo de acompanhamento mútuo. Para que se
de autoridade: antes de seu uso, ninguém manifestou estar persuadi-
construam significados compartilhados e se resolvam problemas de
do, nem quando a professora adotou explicitamente uma tese.
interesse comum, é preciso a fiscalização, por parte dos professores e
dos alunos, dos significados criados em torno do objeto de estudo, Conclusão
para com isso, captar-se divergências, no intuito de resolvê-las, utili-
zando-se de elementos retóricos como transparência e reciprocida- As nossas análises comprovam que a instauração de um dis-
de (Reboul, 1998). curso dialogal em sala de aula propicia o desenvolvimento da cons-
Vejamos outros fragmentos da seqüência analisada: trução compartilhada de significados e do surgimento de um contex-
to argumentativo.
II. P. E eu concordo com todo os dois (...) posicionamentos (...) Esse quadro abre espaço para que os alunos expressem as suas
isso não é uma narrativa convencional ... é uma carta dentro convicções e opiniões, para compará-las com aquelas de seus cole-
da carta ele nos conta ... uma história (...) aí ele viveu um gas e para modificá-las diante de um argumento convincente ou da
conflito anterior que gerou outro conflito (...) então na verda aquisição de maiores informações. ( Wells, 1998:139)
de tem ( ) os dois conflitos Isso prova que, através de um diálogo heurístico, se cria opor-
tunidade de amenizar a assimetria no discurso em sala de aula e a
III.A2. O que predomina é (o que eu falei) ( ) convencer a mãe relação de dominação do professor perante o aluno. O espaço da
P. O principal é convencer a mãe (( vários alunos protestam o oralidade, da interação e do dialogismo é, com isso, recuperado nes-
parecer da professora. Ela, então, adota sua posição inicial)) se ambiente institucional.
P. (...) eles são ...com-ple-men-ta-res ... complementares um ge Estamos cientes de que o estudo do processo argumentativo
rou o outro em sala de aula, bem como da estrutura argumentativa do discurso
que compõe esse processo, tem a ainda muito a revelar, tem a nos
((a professora, posteriormente, abandona essa tese, lembrando aos mostrar traços importantes da oralidade nesse ambiente e da capaci-
alunos que o primeiro conflito havia sido solucionado, restando o dade de autonomia e de crítica dos nossos alunos.
segundo que é, portanto, o que está em questão. Os alunos não se É preciso, para isso, nós inscrevermos esse ambiente de coo-
manifestam nem a favor nem contra à decisão da professora que, peração nos meios pedagógicos, usufruindo de concepções e ele-
então, muda o foco da discussão para outro fenômeno))

IV. ((o aluno A2 retoma a discussão sobre o conflito))

A2. Pra complementar hein ... pra complementar minha argumen 3 A discussão dos fragmentos analisados gira em torno do conflito do conto
Paloma.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 571


mentos retóricos: se for o caso, resgatando as praças como espaços de escolar: diálogo?. Cadernos de estudos lingüísticos, 11: 145-
debates e de ensino e nos livrando da salas de aula e de suas coerções 172, 1986.
institucionais. KLEIMAN, Angela B. Interação e produção de texto: elementos para
uma análise interpretativa crítica do discurso do professor.
Referências bibliográficas D.E.L.T.A, 9: 417-435, 1993
OLIVEIRA, M. Bernadete de. Escrita e ensino: questões teóricas e
AFONSO, Guilherme. Perspectivas acerca dos estudos da argumen- metodológicas. In: PASSEGGI, L (org.). Abordagens em lingüís-
tação. Trabalho apresentado no Gelne - Salvador/Ba, 2000. tica Aplicada. Natal: EDUFRN, 1998
PERELMAN, Chaim e OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da
CANDELA, Antonia. A construção discursiva de contextos
argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
argumentativos no ensino de ciências. In: COLL, César e
RAMÍREZ, Juan D. e WERTSCH, James V. Retórica e alfabetização:
EDWARDS, Derek (orgs.). Ensino, aprendizagem e discurso as funções do debate na educação de adultos. In: COOL, César e
em sala de aula. Porto Alegre: Artmed, 1998. EDWARDS, Derek (orgs.). Ensino, aprendizagem e discurso em
COLL, César e ONRUBIA, Javier. A construção de significados com- sala de aula. Porto Alegre: Artmed, 1998.
partilhados em sala de aula: atividade conjunta e dispositivos REBOUL, Olivier. Introdução à retórica. São Paulo: Martins Fontes,
semióticos no controle e no acompanhamento mútuo entre pro- 1998.
fessor e alunos. In: COOL, César e EDWARDS, Derek (orgs.). WELLS, Gordon. Da adivinhação à previsão: discurso progressivo no
Ensino, aprendizagem e discurso em sala de aula. Porto Ale- ensino e na aprendizagem de ciências. In: COOL, César e
gre: Artmed, 1998. EDWARDS, Derek (orgs.). Ensino, aprendizagem e discurso em
EHLICH, Konrad e TILBURG, Katholieke Hogeshool. Discurso sala de aula. Porto Alegre: Artmed, 1998.

572 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Formas de manifestação de poder
no discurso da sala de aula
Luiz Freire Ribeiro
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

RÉSUMÉ:, Nous objetivons réflechir sur les relations de pouvoir en salle de classe. On travaille avec une perspective d’interaction vue comme étant une
action conjointe, conflictuese et/ou cooperative où on a, au moins, deux ou trois participants. L’analyse des donnés aura comme point de départ le concept
de pouvoir adopté par Foucault.
MOTS CLÉS: interaction, salle de classe, relations de pouvoir.

A escola, contrariamente ao desejo de muitos que a apregoam não busca minimizar o papel do Estado nas relações de poder exis-
como neutra, harmoniosa e imutável, é um organismo vivo, e, como tentes em uma determinada sociedade e sim se insurgir contra a idéia
tal, reflete em seu interior as desigualdades, os conflitos e os proble- de que o Estado seria o órgão central e único de poder; agindo assim,
mas que a sociedade vivencia no seu dia a dia, pois, “uma sala de entendia Foucault, destruir-se-ia a especificidade dos poderes que se
aula, com efeito, é uma pequena sociedade” (Durkheim, 1922, Apud pretendia focalizar. Deste modo, ele propõe uma inversão no proces-
Sirota, 1994), é “uma cena social em miniatura” ( Monnish, 1975). so investigativo: partir da especificidade da questão colocada, isto é,
Partindo deste pressuposto, pretendemos, num primeiro mo- dos mecanismos e técnicas infinitesimais de poder que estão intima-
mento, refletir sobre as práticas discursivas utilizadas pelos sujeitos mente relacionados com a produção de determinados saberes e anali-
envolvidos no processo interacional da sala de aula para, a partir daí, sar como esses micro-poderes se relacionam com o nível mais geral
identificar através das estratégias discursivas utilizadas pelo profes- do poder constituído pelo aparelho de estado. Este tipo de análise –
sor aspectos reveladores da especificidade das relações de poder en- abordagem ascendente – estuda o poder não como uma dominação
volvidas num evento desta natureza. As relações de poder são ine- global e centralizada que se pluraliza, se difunde e repercute nos
rentes ao discurso da educação (Deacon e Parker, 1995); Afinal, como outros setores da vida social de modo homogêneo, mas como tendo
diz Foucault (apud Gore,2000), uma sociedade sem relações de po- uma existência própria e formas específicas ao nível mais elementar.
der só pode ser uma abstração Para isso, trabalharemos com concei- Assim, pode-se trabalhar com a perspectiva de que ,muitas vezes, as
tos como relação de poder e discurso - da/na sala de aula. Em segui- relações de poder se instauram e se instituem fora do Estado. Contu-
da, faremos uma análise preliminar dos dados coletados numa turma do, é importante assinalar que Foucault , com esta proposta de análi-
do 3o ano do curso técnico do CEFET/RN (língua inglesa). se ascendente, não quer situar o poder em outro lugar que não o
Estado. O aspecto mais relevante dessa abordagem é a percepção de
Sobre a questão do poder que os poderes não estão localizados em nenhum ponto específico
da estrutura social. Funcionam sim como uma rede de dispositivos
Foi a partir dos estudos sobre a arqueologia do saber (1969) – ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa, a que não existe exte-
entendimento sobre o como os saberes apareciam e se transformavam rior possível, limites ou fronteiras. Daí se dizer que o poder não é
– que Foucault resolveu buscar o entendimento do porquê do apare- algo que se detém como uma coisa, como uma propriedade. Não há,
cimento destes mesmos saberes. Nesta busca ele se deu conta da ne- de um lado, os que têm o poder e, de outro, os que não o têm, posto
cessidade da compreensão da questão do poder. que, a rigor, o poder não existe; o que existem são práticas ou rela-
Para que se tenha um entendimento claro sobre a questão do ções de poder.
poder em Foucault, é preciso ter em mente que, para o pensador fran- Um outro aspecto a se destacar se refere ao modo de ação
cês, não existe uma teoria geral e universal do poder, ou seja, o poder do poder. A genealogia desenvolve uma concepção não-jurídica
não deve ser considerado como uma realidade que possua uma natu- do poder. Assim agindo, Foucault busca mostrar que as relações de
reza, uma essência que possa ser definida por suas características uni- poder não se passam fundamentalmente nem no nível do direito,
versais. O poder não é um objeto natural, uma coisa. É uma prática nem no da violência, nem são basicamente contratuais nem unica-
social constituída historicamente.Um dos aspectos a se destacar nas mente repressivas. Com isso, ele busca demonstrar que é falso defi-
pesquisas do filósofo sobre a genealogia do poder é a evidência mani- nir o poder como algo que diz não, que impõe limites, que castiga.
festa pelo material pesquisado de que Estado e poder não são neces- A essa concepção negativa, que identifica o poder com o estado e o
sariamente sinônimos, ou seja, não há uma relação direta e exclusiva considera essencialmente como aparelho repressivo, ele acrescenta
entre poder e Estado. O que aparece evidenciada é a existência de uma concepção positiva, que busca dissociar os termos dominação
formas de exercício de poder diferenciadas e distintas do Estado, mas e repressão. O que a consideração dos micro-poderes revela é que
a ele articuladas de maneiras variadas e que são indispensáveis inclu- o aspecto negativo do poder não é tudo e talvez não seja o mais
sive à sua sustentação e atuação eficaz. Este “poder que se expande” fundamental. Ë preciso refletir sobre o seu lado positivo, produti-
,e que assume formas mais regionais e concretas, intervém material- vo, transformador. O poder possui uma eficácia produtiva, uma ri-
mente, atingindo o indivíduo e penetrando em seu cotidiano. É carac- queza estratégica uma positividade que se manifesta através do apri-
terizado como um micro-poder ou sub-poder. Ele não é necessaria- moramento, do adestramento. Nessa perspectiva, o poder busca gerir
mente criado pelo Estado, podendo, portanto, existir de forma inte- a vida dos homens, controlá-los em suas ações para que seja possí-
grada ou não ao mesmo. vel e viável utiliza-los ao máximo, aproveitando suas potencialidades
Do ponto de vista metodológico, é interessante ressaltar a pre- e utilizando um sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de
caução de Foucault em procurar dar conta deste nível molecular de suas capacidades. Agindo desse modo, conseguir-se-ia uma
exercício de poder, micro-poder, sem partir do centro para a perife- maximização da capacidade produtiva e uma minimização da capa-
ria, do macro para o micro – abordagem descendente. Com isso, ele cidade de revolta do homem.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 573


Dentro da visão não englobante, não universalizante com que como, reconhecer naquele que ensina a posse de uma maior quantida-
trabalha, Foucault, em suas pesquisas, aborda e analisa mais particu- de de conhecimento, além de estar disponível para superar essa dife-
larmente um tipo específico de poder: A disciplina ou poder disci- rença de conhecimento através da adesão ao processo ensino-aprendi-
plinar como costuma chamar. Este tipo de poder se apresenta como zagem.
uma técnica, um dispositivo, um mecanismo, um instrumento que O discurso de sala de aula, por sua vez, à primeira vista, apre-
permite “o controle minucioso das operações do corpo, que assegu- senta características que se assemelham às do discurso ensino-apren-
ram a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação dizagem. Existe uma disparidade de conhecimento entre membros de
de docilidade-utilidade” (Foucault,1975,139). dois grupos: o dos professores e o dos alunos. Os professores têm o
As características básicas desse poder disciplinar seriam: em conhecimento; os alunos carecem desse mesmo conhecimento. To-
primeiro lugar, a disciplina na organização do espaço – fechado ou davia, uma observação mais atenta revela uma primeira diferença:
não - de modo que os indivíduos sejam distribuídos no mesmo em geral, os professores são treinados pedagogicamente; isso impli-
espaço de forma a desempenhar funções diferentes segundo o obje- ca adquirir um conhecimento que, espera-se, ajude-os - abstratamen-
tivo específico que deles se exige. Em segundo lugar, a disciplina do te – a compensar sua própria falta de conhecimento acerca dos pro-
controle do tempo. O indivíduo se sujeita ao tempo com o objetivo cessos de aprendizagem dos alunos .
de produzir o máximo com rapidez e eficácia. Em terceiro lugar, a Uma outra diferença identificável entre os dois discursos, o
disciplina na vigilância. Vigilância essa com caráter contínuo, per- da sala de aula e o ensino-aprendizagem, é o fato de que o discurso da
manente, ilimitado, onipresente. Em último lugar, a disciplina impli- sala de aula, contrariamente ao ensino-aprendizagem, exibe, em ge-
ca um registro contínuo do conhecimento, ou seja, ao mesmo tempo ral, uma multidireção numérica para um grupo: o dos alunos. Há uma
em que exerce um poder, produz um saber. É importante assinalar dificuldade ou até mesmo um impedimento de se atender e de se
que estas características são aspectos que se apresentam inter- atentar para as experiências individuais de aprendizagem de cada um
relacionados.Observados estes aspectos básicos, o poder disciplinar dos alunos. Outra característica observável no discurso da sala de
não destrói o indivíduo; ao contrário, ele o fabrica. aula é a perda da natureza voluntária do discurso ensino-aprendiza-
Um último aspecto importante observado nas pesquisas de gem. A vontade dos aprendizes de superar seu déficit de conheci-
Foucault sobre o poder é a não consideração de pertinência na aná- mento não está mais necessariamente presente. Essa vontade, que, a
lise da distinção entre ciência e ideologia. Assim fazendo, ele anula princípio, seria divertida, lúdica e prazerosa, pode se tornar algo for-
a idéia que faz da ciência um conhecimento neutro, objetivo e uni- çado, compulsório e indesejável. A falta de vontade, quando se ins-
versal. Não há saber neutro, todo saber é político, visto que tem sua taura, provoca no aprendiz um não reconhecimento no sentido de
gênese em relações de poder. É fundamental se entender que saber e uma não disponibilidade para aderir ao processo ensino-aprendiza-
poder se implicam mutuamente: não há relação de poder sem consti- gem. Desse modo, o aprendiz individual permanece apenas parcial-
tuição de um campo de saber, assim como, todo saber constitui novas mente “presente”no discurso da sala de aula, só tomando parte ativa-
relações de poder. mente esporadicamente.
Essas especificidades supracitadas diferenciam o discurso
Sobre o discurso da/na sala de aula ensino-aprendizagem do discurso de sala de aula. Contudo, é impor-
tante assinalar que essas diferenças não impedem nem significam que
Partindo-se do pressuposto de que as atividades escolares não possa haver discurso ensino-aprendizagem na sala na escola. No
são, em grande parte, lingüísticas – Ehlich e Rehbein (1977) consi- entanto, geralmente, são ocorrências raras. O discurso que se verifica
deram a escola como uma “instituição lingüística” – pode-se enten- com maior freqüência é o tido, neste estudo, como discurso de sala
der o interesse que os processos comunicativos na escola – os discur- de aula.
sos escolares – despertam nos pesquisadores da área. Dessa forma, Considerados todos esses aspectos retrocitados, avaliamos ser
Ehlich e Tilburg (1986), na discussão relativa a interação escolar, relevante trabalhar com a interação em sala de aula, buscando iden-
propõem uma distinção entre dois tipos de discurso, quais sejam, o tificar estratégias discursivas no contexto institucionalizado da sala
discurso de ensinar e aprender, a que eles se referem como “discurso de aula e, através da análise dessas estratégias, identificar as relações
ensino-aprendizagem”, e o discurso de sala de aula. de poder manifestas no evento.
Mesmo reconhecendo que, institucionalmente falando,
o discurso de sala de aula se iguala ao discurso ensino-aprendiza- Um primeiro olhar
gem, os autores ( Ehlich e Tilburg ) avaliam que efetivamente há
diferenças entre ambos. O discurso ensino- aprendizagem, para eles, Como sujeito social que somos, estamos, na qualidade de
é um tipo de discurso em si mesmo. Acontece não só na escola mas pesquisador, inexoravelmente “marcados” – assim como os outros
também em muitas outras situações. Para ilustrar sua assertiva, eles sujeitos envolvidos neste processo (professor e aluno) - pela relação
lembram o caso de uma mãe que ensina novas habilidades para o poder-saber aflorada na sala de aula. Desta forma, reconhecemos ser
filho. Exemplos como esse se revelam como discursos do tipo ensi- ilusória a imagem de neutralidade e de isenção do pesquisador em
no-aprendizagem fora do espaço escolar. Reconhecidas as diferen- relação ao objeto de sua pesquisa. Afinal,como postula Foucault
ças, consideremos as características de cada discurso. (apud Gore, 2000), cada sociedade tem seu regime de verdade, ou
O discurso ensino-aprendizagem é realizado numa série de seja, os tipos de discurso que ela –sociedade - acolhe e faz funcionar
esquema de ação lingüística com base numa distribuição desigual de como verdadeiros.
conhecimento. Assim, o discurso ensino-aprendizagem pressupõe a Feitas algumas considerações, passaremos a dirigir um “pri-
existência de dois grupos diferentes: os que possuem conhecimento meiro olhar” sobre os dados de que dispomos. Considerando que, na
e os que não o possuem mas desejam possui-lo. O sucesso dessa sala de aula, o sentido é produzido intersubjetivamente entre profes-
prática discursiva pressupõe, por parte de ambos os grupos, o reco- sor e aluno, buscaremos observar através das estratégias discursivas
nhecimento recíproco dessas características, ou seja, é necessária a utilizadas, principalmente pelo professor, em sala de aula, como efe-
aceitação pelas parte dos elementos básicos característicos desse tipo tivamente são construídos estes sentidos (conhecimento). Contudo,não
de discurso. Quem ensina deve estar pronto para passar seu conheci- podemos esquecer que historicamente o discurso pedagógico tem sido
mento. Quem aprende deve admitir sua falta de conhecimento, bem reconhecido como um discurso autoritário (Orlandi,1983), bem como

574 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


que a imagem constituída de que o bom professor é aquele que expõe senvoltura do discurso formal para o informal sem, com isso, chegar a
o seu saber de forma a poder saciar aquele que dele precisa é muito ser inadequado para a situação de sala de aula ( .. então vocês têm que
forte (Coracine, 95) . Por sua vez, o aluno “legitima” esse imaginário ir à luta...). Há um uso freqüente de diminutivos ( ..uma fusão de duas
sobre o professor a partir do momento em que ele – aluno - se vê letrinhas iguais..) ( ..quando a gente acha que não as regrinhas ..) (...no
como alguém que ouve e assimila o que o mestre tem a dizer ao ponto caso é cozinhar né?/ o quadrozinho (( no livro)). Esta postura, enten-
de se o professor não satisfizer a sua expectativa ele reclamar, repro- demos, funciona,em certos aspectos, como forma de minimizar o es-
var e criticar o mesmo. paço entre os sujeitos, como um convite para a partilha de um saber,
Não podemos perder de vista que as relações de poder estão de uma tentativa de despertar um desejo. “Afinal, o desejo é tudo, ou
na base de toda relação social: ao mesmo tempo em que asseguram a quase tudo na vida” (Moita Lopes, 1996).
homogeneidade nas regularidades, oportunizam os conflitos gera-
dos pelos sujeitos nos momentos em que questionam a posição que Esboçando uma conclusão
ocupam no discurso e as relações sociais. Deste modo, são peque-
nas revoluções quotidianas as responsáveis pelas mudanças. Apesar da prévia demarcação dos sujeitos na ocupação do
Abordados estes aspectos teóricos, passemos aos espaço social (sala de aula), observa-se ser possível uma maleabilidade
dados.Considerada a relação que o professor mantém com a língua na ocupação do mesmo. Por ser previamente reconhecido como pos-
enquanto objeto do saber, observa-se que o mesmo “transgride” a suidor de um saber/poder mais acentuado neste processo – o proces-
representação da teoria como fonte de verdade absoluta à medida so pedagógico corporifica relações de poder entre professores e apren-
que, não se subjugando ou não se submetendo a ela – língua -, assu- dizes com respeito a questões de saber (Gore,2000) -, parece-nos
me com freqüência uma postura de criticidade frente a este objeto razoável afirmar que cabe ao professor uma parcela maior de respon-
(..então essa referência não tem jeito/ isso tudo vai ocorrer e às vezes sabilidade no sentido de facilitar e exercitar uma prática discursiva
demanda um certo tempo para que a pessoa perceba essa variante/ pautada na busca de uma temperatura afetiva, como diz Vasconcelos,
então isso é importante/ é .... o livro/ obviamente como ele é didático para iniciar a construção do conhecimento na sala de aula .
ele vai... ele não entra nesses detalhes/ ele faz essas colocações sim-
plesmente....),( / na verdade você acrescenta mesmo é ed tá?/ ocorre Referências bibliográficas
que como há uma fusão dos dois és então os gramáticos tendem a
facilitar o entendimento fazendo o quê?/ caracterizando de maneira BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo :
mais simples como é que isso é feito/ como é que isso é feito?/ se ele Hucitec, 1979.
terminou em é você em vez de acrescentar ed você acrescenta ape- CORACINI, Maria José R. Farias (org.) O jogo discursivo na sala
nas d/ então deixa de explicar que há aí uma craaase né?/ uma fusão de leitura. Campinas: Pontes,1995.
das duas letrinhas iguais/). Agindo assim, o professor expõe o fato DEACON, Roger e PARKER,Bem.Educação como Sujeição e como
científico como um saber questionável, parcial, desmistificando a Recusa. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.) O sujeito da educa-
idéia cristalizada de ciência como saber inquestionável e ção – estudos foucaultianos. São Paulo: Vozes, 1994.
imparcial,portanto, neutro. Ele exercita a visão bakhtiniana de que a EHLICH, konrad e TILBURG, Katholieke Hogeschool. Discurso
linguagem é um fenômeno profundamente social e histórico. Escolar: diálogo? . Trad. Lúcia Bastos, Cadernos de Estudos
No que se refere à sua relação com o aluno, o professor Lingüísticos, nº 11, (pp 145-172). 1986.
surpreende mais uma vez assumindo uma atitude colaborativa no FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal,
sentido de acatar a fala do aluno ( ..é uma saída, entendeu?/) e, 1982.
quando necessário, complementando sua fala sem abandonar a pos- FOUCAULT, Michel. L’Archéologie du savoir. Paris: Gallimard,1969.
tura de construção do conhecimento com o mesmo (... Ahan/ tudo FOUCAULT, Michel. Surveiller et Punir. Paris: Gallimard, 1975.
bem/... em inglês você tem um pequeno detalhe..). Apesar de no GORE, Jennifer. Foucault e a educação: fascinantes desafios. In: SIL-
discurso de sala de aula haver o componente numérico que dificulta VA, Tomaz Tadeu da (org.) O sujeito da educação – estudos
o atendimento e a atenção do professor para as experiências indivi- foucaultianos. São Paulo: Vozes, 1994.
duais de aprendizagem de cada aluno, observam-se trocas de turno MOITA LOPES, L.P. Oficina de lingüística aplicada. Campinas:
em que se revelam verdadeiras parcerias entre os sujeitos discursivos Mercado de Letras, 1996.
na construção do conhecimento. Em alguns momentos, o professor MORMISH, I. Sociologia da Educação. Rio de Janeiro: Zahar Edi-
como que concede ao aluno a possibilidade de ele aluno revelar-se tora, 1975
como alguém que possui habilidade e engenhosidade enquanto pos- ORLANDI, Eni Pulcinelli. A Linguagem e seu funcionamento: As
suidor de um saber ( Qual é o truque?/).Encontramos no Aurélio um formas do discurso. São Paulo : Brasiliense, 1983.
das acepções para truque como sendo uma maneira habilidosa ou SIROTA, R.A. Escola primária no cotidiano. Porto Alegre: Artes
sutil de fazer uma coisa. Médicas. 1994. Trad. Do Orie. Francão.
Um terceiro e último aspecto que julgamos digno de registro VASCONCELOS, Celso dos S. Construção do conhecimento em sala
neste olhar primeiro é o fato de o professor transitar com certa de- de aula. São Paulo: Vozes, 1994.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 575


O emprego de construções apositivas como
estratégia de formulação textual
Márcia Teixeira Nogueira
Universidade Federal do Ceará (UFC)

ABSTRACT: The aim of this paper is to demonstrate, in a general way, the use of the appositive constructions as strategy of textual formulation.
PALAVRAS-CHAVE: aposição, referenciação, reformulação.

1. Considerações iniciais tégias de referenciação. De acordo com essa nova perspectiva, assu-
me-se, como sugere Mondada e Dubois (1995: 276), a referenciação
O presente artigo tem o propósito de apresentar, em linhas como a “construção de objetos cognitivos e discursivos na
bastante gerais, o valor textual-discursivo das construções apositivas, intersubjetividade das negociações, das modificações, das ratificações
demonstrando de que modo o emprego de tais construções está asso- de concepções individuais e públicas do mundo”. Além disso, como
ciado a estratégias de formulação textual. Para destacar o caráter ressaltam Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995: 227-229), os refe-
multifuncional da aposição não-restritiva, aqui serão apontadas algu- rentes devem ser concebidos como objetos de discurso, “modalizáveis
mas de suas funções concernentes aos planos textual, cognitivo e sob a forma de um conjunto – por definição evolutivo – de informa-
argumentativo-atitudinal. ções inclusas no saber partilhado pelos interlocutores”. Desse modo,
Nas gramáticas e no ensino tradicional, o termo denominado entende-se que os objetos de discurso não pré-existem “naturalmen-
aposto é estudado apenas com o propósito de uma análise sintática de te” à atividade cognitiva e interativa dos sujeitos falantes, mas são
natureza estritamente taxionômica, que não transcende os objetivos produtos dessa atividade. Segundo esses autores, aos lingüistas cabe
de identificá-lo, nos limites da oração, e de classificá-lo segundo investigar não as transformações que incidem sobre o estatuto ontológico
tipologias em torno das quais há bastante divergência. dos objetos do mundo extralingüístico, mas “aquelas que afetam a
Não existem muitos estudos sobre a construção apositiva, prin- bagagem de conhecimento de que dispõem, a cada momento do discur-
cipalmente em língua portuguesa. De um modo geral, os que foram so, os interlocutores a propósito de um referente dado, bagagem de
desenvolvidos voltaram-se, não sem motivos, para a investigação dos conhecimento que constitui, propriamente falando, a identidade do
limites conceituais dessa categoria de construção. Nesses, predomina objeto de discurso”. (Apothéloz e Reichler-Béguelin, 1995: 239-240).
uma preocupação terminológica e tipológica na busca por identificar É fácil estabelecer uma relação entre o emprego de construções
critérios que justifiquem a atribuição de um rótulo categórico único a apositivas e uma concepção construtivista e estratégica dos proces-
uma variedade de construções ditas apositivas. A esse respeito, No- sos de referenciação. A aposição constitui expediente por meio do
gueira (1999) mostrou ser mais adequado ao tratamento conceitual da qual um objeto de discurso pode ser construído segundo diferentes
aposição o enfoque de uma gramática não-discreta. perspectivas, de acordo com diferentes propósitos comunicativos.
Ultimamente, alguns poucos trabalhos têm-se voltado para uma Por ser uma construção tipicamente caracterizada pela condição de
análise das propriedades semânticas, sintáticas e pragmáticas da estabilidade referencial entre os itens que a integram, a aposição mos-
aposição em situações reais de uso da língua. Esses trabalhos (Senna: tra-se como importante mecanismo de recategorização de um mesmo
1986, Meyer:1992, Posse: 1994) têm, de fato, o mérito de ampliar o objeto de discurso.
campo de estudo da aposição. No entanto, as investigações que proce-
dem consistem, na maioria das vezes, de uma extensão de descrições 2.1. Construções apositivas e estratégias de referenciação textual
formalistas, como aplicação, ao estudo da aposição em textos especí-
ficos, de formulações feitas no âmbito de uma sintaxe imanente e de Na dinâmica de uma estrutura apositiva, as unidades podem
uma semântica de natureza extensional. estar relacionadas anafórica ou cataforicamente. Em referenciações
catafóricas, a primeira unidade opera como um expediente de
2. Aposição e referenciação focalização para a informação contida na segunda unidade.
Essa referenciação catafórica nas construções apositivas asse-
Nos estudos que buscam estabelecer os possíveis limites melha-se ao que Apothéloz e Reichler-Béguelin (1995: 248) descre-
conceituais da aposição, a correferência entre as unidades costuma ser vem como um tipo particular de recategorização lexical explícita em
apontada como um dos critérios mais seguros para a identificação de que o objeto de discurso designado por uma expressão referencial
uma construção apositiva. Todavia, possivelmente porque a maioria não foi ainda categorizado, a não ser de forma vaga. A primeira uni-
desses estudos sobre a aposição se limita ao nível da sentença, essa dade da estrutura apositiva dá início a um ambiente de expectativa e
noção de correferência prende-se a uma concepção realista da lingua- direciona a tensão para o conteúdo da unidade que a sucede, tal como
gem, segundo a qual há uma correspondência direta entre as palavras e no exemplo a seguir1 :
as coisas. De acordo com Lago (1991), por exemplo, a aposição con-
siste em uma modificação em que dois membros podem referir, inde-
pendentemente, uma mesma realidade extralingüística. A especificidade
desse tipo de modificação, de caráter necessariamente não-restritivo,
segundo Lago, consiste no fato de o termo aposto e o núcleo serem 1 Os exemplos apresentados ao longo do texto foram obtidos a partir do
banco de dados de língua escrita contemporânea que se encontra na Fa-
nocionalmente equivalentes e, desse modo, apresentarem o mesmo culdade de Ciências e Letras da UNESP-Araraquara-SP. Nesse banco de
poder designativo. dados, os textos encontram-se classificados em literatura romanesca (LR),
Nogueira (1999) propõe uma nova perspectiva para os estudos jornalística (LJ), oratória (LO), técnica (LT) e dramática (LD). As abreviatu-
sobre aposição, de modo que tal processo passe a ser visto como um ras após cada exemplo correspondem ao título da obra seguido do tipo de
mecanismo textual-discursivo que cumpre relevante papel nas estra- literatura em que ela se enquadra.

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(1) Usei mesmo, para tornar mais acessível à inteligência da para mim, o título de Marquês das Minas, caso viesse a descobri-las.
situaçäo, da imagem de que, nas condiçöes em que vivemos, nosso (VP-LD)
país era uma espécie de grande edifício apoiado numa só coluna: o
café. (JK-LO) Além do objetivo puramente referencial, em referenciações
anafóricas a expressão nominal empregada na segunda unidade pode
Cumpre salientar que, além de constituir um modo particular traduzir uma manifestação da atitude do falante/autor em relação ao
de introduzir e focalizar uma informação nova, esse tipo de constru- referente discursivo apresentado na primeira unidade:
ção apositiva fornece, a partir da expressão utilizada na primeira uni- (8) A política, isto é, o sentimento do perigo e da glória, da
dade, uma orientação argumentativa: grandeza ou da queda do país, é uma fonte de inspiraçäo de que se
ressente em cada povo a literatura toda de uma época, mas para a
(2) Eram, pois, “homens de valor”, por possuírem riqueza, e, política pertencer à literatura e entrar na Academia, é preciso que ela
por conseguinte, “homens de posição”, por integrarem o governo das näo seja o seu próprio objeto; (...) (TA-LO)
Vilas e poderem dispor de um instrumento de repressão: a Milícia.
(CRO-LT) É freqüente o emprego de rotulações em que uma expressão
(3) Nós estamos mexendo com um dos pilares do sociedade nominal resume, na segunda unidade da construção apositiva, todo o
capitalista: a propriedade privada ! (IN-LD) conteúdo de uma proposição tópica contida na primeira unidade. O
objetivo é tornar este conteúdo alvo de predicações, isto é, de um
Nas construções apositivas com referenciação catafórica, é fre- comentário por parte do falante/autor:
qüente o emprego de uma expressão que antecipa e resume o conteú-
do proposicional de um segmento discursivo, instituindo-o como (9) À meia-noite, numa cerimônia de macumba carioca ou
objeto de discurso. Tal emprego assemelha-se às estratégias de paulista, todos os crentes são possuídos por Êxu - uma prática que
rotulação antecipada descrita por Francis (1994). Trata-se de uma constitui um verdadeiro absurdo para os fregueses dos candomblés
nominalização (Apothéloz e Chanet: 1997, 160), estudada como fe-
da Bahia. (CAN-LT)
nômeno textual-discursivo, e não morfológico, já que o substantivo
empregado não é necessariamente derivado de um verbo presente no
3. Aposição e reformulação
segmento encapsulado.
O emprego de aposições não-restritivas também pode ser ana-
(4) Seu pai lhe fazia esta chantagem: se näo comparecesse lisado como estratégia de reformulação textual. É, de fato, muito co-
regularmente aos cultos, näo lhe daria a mesada para custear seus mum a utilização estratégica de expressões apositivas para fazer uma
estudos. (LE-LO) reformulação do conteúdo ou da expressão lingüística dos mais dife-
rentes tipos de segmentos discursivos. O falante/autor busca garan-
Note-se que o falante/autor, além de instituir como referente tir, por meio de paráfrases e correções, que o leitor/ouvinte compre-
uma determinada porção de texto a que dá foco, ele a categoriza enda, satisfatoriamente, o que foi formulado.
mediante uma denominação que marcará uma perspectiva para a in- As aposições podem operar metalingüistica ou
terpretação da informação nela contida. Por meio desse procedimen- metadiscursivamente, em definições ou em redenominações. Em
to, o falante/autor expõe seu ponto de vista, razão por que esse tipo explicações definidoras, busca-se esclarecer o significado de pala-
de estratégia tem caráter fortemente argumentativo. vras ou expressões empregadas na primeira unidade da construção
Nas rotulações, a combinação do substantivo com apositiva. Dessa forma, observa-se um deslocamento de sentido do
determinantes como o artigo definido e os pronomes demonstrativos geral para o particular (especificação) e uma expansão, ou seja, o uso
dá à expressão rotuladora o caráter de coesão gramatical, permitindo de uma unidade léxica e sintaticamente mais complexa do que a pri-
que o conjunto opere, no texto, como um item de referência. No en- meira (Hilgert: 1996):
tanto, no emprego de construções apositivas com referenciação
catafórica, a primeira unidade, por estar criando um foco de referên- (10) Sendo indicadores dessas relações, os restos materiais
cia, apresenta, freqüentemente, a forma de um sintagma nominal in- exigem, para que a proposta de Weeler se concretize, uma leitura
definido, tal como se vê no trecho a seguir: específica, arquelógica, das coisas, que não devem ser tomadas como
dados - “fatos” ou informações em estado bruto - mas como algo a
(5) Agora só tem uma coisa: onde está o novilho malhado? ser interpretado pelo arqueólogo. (ARQ-LT).
(PEL-LD)
Nas redenominações, verifica-se, a partir da segunda unidade
Em referenciações anafóricas, com o referente já apresentado
da aposição, um procedimento metalingüístico de busca de uma ex-
na unidade imediatamente anterior, a aposição pode ser utilizada,
pressão mais apropriada para designar um conteúdo. Emprega-se uma
com grande liberdade, para operar recategorizações que modulam a
expressão sinônima, com o intuito de fornecer um termo mais fami-
expressão referencial em função de diferentes objetivos.
liar, mais técnico, ou mesmo a tradução de uma palavra em língua
Freqüentemente, o emprego de uma expressão apositiva obje-
estrangeira:
tiva favorecer a atribuição de referência, fazendo evocar algum tipo
de conhecimento supostamente partilhado para levar o interlocutor à
(11) Nem todos os crentes se satisfazem com esta designação
identificação do referente discursivo designado na primeira unidade.
Tal referente é mostrado segundo uma nova perspectiva, por meio de tradicional - e os cultos mais modernos, tocados de espiritismo, já se
uma redenominação ou da predicação de alguns atributos, tal como intitulam de Umbanda, em contraste com quimbanda, ou seja,
se observa a seguir: macumba.(CAN-LT)
(12) Antes de nomear um embaixador, é necessário obter a
(6) O quarto e último fala da diplomacia brasileira, cujo patrono aprovaçäo da pessoa indicada pelo governo, que vai recebê-lo. Faz-
é José Maria da Silva Paranhos Junior, o baräo do Rio Branco (...) se o pedido de agrêment, ou anuência.(DIP-LT)
(DIP-LT)
(7) D. Luiz de Sousa, o novo Governador, trazia para ele, e näo São também muito comuns as aposições parafrásicas que têm o

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objetivo de esclarecer o conteúdo de uma predicação ou de um enunci- (18) Essas coisas, ou melhor, essas construções baseadas na
ado inteiro, tal como se exemplifica a seguir: melhor utilização possível dos blocos de mármore, aliavam a
tecnologia apropriada a uma indiscutível intenção plástica, que ia até
(13) A alternativa única é admitir que tais diferenças são atri- os requintes das deformações corretoras das ilusões ópticas, definin-
buíveis ao meio ambiente em que crescem os membros das diversas do, assim, a criação artística. (AQT-LT)
sociedades. Isto é, que o desenvolvimento da personalidade do indi-
víduo esta condicionado pela cultura... (AE-LT) 4. Considerações finais
Uma construção apositiva pode operar como uma paráfrase Uma análise funcionalista do emprego de construções apositivas
referencial (Fuchs: 1982), ou uma reorientação (Meyer: 1992), quan- em textos reais assume que a diversidade formal de tais estruturas
do o objetivo é reapresentar um referente discursivo de uma perspec- está relacionada com a sua multiplicidade funcional, isto é, com as
tiva diferente, não apenas para evocar alguma característica suposta- diferentes funções textual-discursivas que elas atualizam. Com essa
mente partilhada que favoreça a identificação desse referente pelo perspectiva, em que se busca descrever e explicar, de um modo inte-
interlocutor, mas também para recategorizá-lo e fornecer informa- grado, os aspectos formais e funcionais desse tipo de construção, é
ções que o falante/autor considera novas: possível revelar muito das características de determinados gêneros
textuais. Tal fato foi verificado por Nogueira (1999) na caracteriza-
(14) Aqueles täo repetidos versos de Castro Alves, irmanaçäo ção de textos técnico-didáticos, oratórios e dramáticos.
do livro ao sabre, vinham em negrito na capa da “Aspiraçäo”, a
revista do Colégio Militar de que fui, quando menino, um dos direto-
5. Referências bibliográficas
res. (CAR-LO)
APOTHÉLOZ, D. e REICHLER-BÉGUELIN, M. Construction de
Uma construção apositiva parafrásica pode, ainda, envolver uma la reference et stratégies de désignation. TRANEL (Travaux
fragmentação do referente do discurso (Apothéloz e Reichler- neuchâtelois de linguistique), n. 23, 1995, p. 227-271.
Béguelin, 1995: 258). Isso ocorre em paráfrases que se prestam às APOTHÉLOZ, D. e CHANET, C. “Défini et démonstratif dans les
funções de exemplificação e de particularização (Quirk et al:1985). nominalisations.”, in: MULDER, W. et alii, eds. Relations
Com a função de exemplificação, as expressões apositivas es- anaphoriques et (in)cohérence. Amsterdan: Rodopi, 1997, p.
pecificam uma primeira unidade tipicamente mais genérica, tal como 159-186.
em (15): BARROS, Diana L. P. Procedimentos de reformulação: a correção.
In: PRETTI, D. (org). Análise de textos orais (Projeto NURC/
(15) Cada estrato pode ser delimitado pela sua composição
SP). São Paulo: FFLCH/USP, 1993
material particular e correspondente a uma determinada atividade
FRANCIS,G. Labelling discourse: an aspect of nominal-group lexical
humana, realizada pelos usuários originais desse espaço físico, ou a
cohesion. In: COULTHARD, M. (org.) Advances in written text
uma ação natural (depósitos de aluvião, inundações etc.). (ARQ-
analysis.Londres: Routhedge, 1994.p. 83-101.
LT)
FUCHS, C. La paraphrase. Paris: Presses universitaires de France,
Já com a função de particularização, a segunda unidade desta- 1982.
ca como proeminente uma parte do conjunto de referentes designa- HILGERT, J. G. As paráfrases na construção do texto falado. In:
dos na primeira unidade. Para essa focalização, são empregadas ex- KOCH, I.G.V. (org) Gramática do Português Falado VI. Cam-
pressões como em particular, particularmente, em especial, especi- pinas: FAPESP/Unicamp, 1996, p. 131-147.
almente, sobretudo, principalmente, inclusive, etc: LAGO, J.. A special type of nonrestrictive modification: the
apposition. Santiago Compostela, Verba, 18, 1991, p. 487-520.
(16) Todos, sobretudo os que têm uma parcela de liderança, MEYER, C. F. Apposition in contemporary english. New York:
estäo convocados para a obra comum (...) (G-LO) Cambridge University Press, 1992.
MONDADA, L e DUBOIS, D. Construction des objets de discours
Em uma operação inversa, a segunda unidade da aposição, por et catégorization: une approche des processos de référenciation.
meio de uma reformulação parafrásica de generalização, pode reu- TRANEL (Travaux neuchâtelois de linguistique), n. 23, 1995, p.
nir, sob uma só expressão referencial, objetos não referidos na pri- 273-302.
meira (Apothéloz e Reichler-Béguelin: 1995, 261): NOGUEIRA, M. T. (1996). A aposição em língua portuguesa. For-
taleza, 1996. 100p. Dissertação (Mestrado em Lingüística e Lín-
(17) Afinal, em termos de injunções empresariais - o pedido de gua Portuguesa)–Universidade Federal do Ceará.
um banqueiro, de um político, enfim, de uma pessoa influente - , a POSSE, E. S. Characteristics of apposition in The Great Gatsby. In:
ediçäo de um livro nem sempre atende aos interesses específicos de Revista Alicantina de Estudios Inglese. Universidad de Santia-
uma editora. (CAR-LO)
go de Compostela, v. 7, 1994, p. 171-184.
QUIRK, R. et al. A compreensive grammar of the english language.
Uma expressão apositiva utilizada como uma correção tem o
London/New York: Longman, 1985.
objetivo de fazer um ajuste do que foi formulado na primeira unidade
da construção. Na correção, o locutor enumera alternativas lexicais SENNA, M. D. G Apposition in english: a linguistic study based on
possíveis na busca por uma melhor adequação em relação àquilo que a literary corpus. In: Revista Alicantina de Estudios Ingleses,
tenta dizer, tal como em (18): Universidad de Santiago de Compostela, v. 7, 1986, p. 83-95.

578 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A predicação da língua portuguesa:
um reflexo do modo de ação dos predicados
Célia Brito
Universidade Federal do Pará

ABSTRACT: The predication (States-of-Affairs) is examined in the Portuguese language, with base in Dik (1989). Is considered that the clause is structured
in underlying layers; that the predication i one of the levels of that structure; that the “Modes-of-action” of the predicates determine the semantic functions
of their arguments and the predication types.
PALAVRAS-CHAVE: predicado, predicação, modos de ação.

Com o intuito de examinar a predicação da língua portuguesa, – predicação nuclear (nuclear predication), formada do
como reflexo da semântica interna dos predicados, realiza-se uma predicado e seus argumentos;
pesquisa considerando um corpus de 500 enunciados selecionados – predicação central (core predication), formada da predicação
de textos escritos. Esclarece-se que as incursões teóricas aqui feitas nuclear e estendida por operador de predicado p1 (localiza um EC em
sobre esses aspectos têm por base a orientação funcionalista de Dik um tempo) e satélites de nível 1 s1;
(1989). – predicação estendida (extended predication), formada da
Em primeiro lugar, define-se o que seja uma predicação; em predicação nuclear acrescida por uma variável do EC (e1)1 e modifi-
seguida, vêem-se os Modos-de-Ação do predicado (Aktiondart) Ver- cada por operador de predicação p2 (localiza um EC em um intervalo
bal (V) – não se consideraram os predicados Nominal (N) e Adjetival de tempo) satélites de nível 2 s2.
(A) – bem como as funções semânticas dos termos da predicação;
depois, analisa-se o corpus, observando como as predicações de um, Dik (1989, 67) representa esses três níveis de predicação assim:
dois e três termos, e as funções semânticas desses se relacionam com
os Modos de ação. p2 e1 :[[[p1 pred (arg)n] (s1)n] (s2)n] (e1)
As considerações aqui apontadas acerca da predicação verbal ________
na língua portuguesa fazem ver que o tratamento desse fenômeno nuclear
reflete, muito mais que o relacionamento entre predicado e termos, o __________________
envolvimento pragmático da língua em situação interlocutiva. central
________________________________
1 A Predicação estendida

Considerando-se que a cláusula apresenta uma estrutura em


camadas, Dik (1989) aponta quatro níveis de estrutura de cláusula Verifica-se que o predicado distribuir, no nível da predicação
subjacente: nuclear expressa uma relação de três lugares que podem ser preen-
chidos por termos que expressam as entidades (reais ou imaginárias)
Nível 1: predicado (e termos); exigidas por aquele predicado. Há, assim, alguém que distribui (o)
Nível 2: predicação; diretor, alguma coisa que é doada brinquedos e um alguém a quem
Nível 3: proposição; algo é doado (a) crianças do bairro. Os termos exigidos pela semân-
Nível 4: ato de fala. tica de um predicado são denominados argumentos.
No nível da predicação central e estendida, há itens lexicais
Pelo fato de, nesta pesquisa, se examinar a predicação da lín- que ampliam a informação da cláusula. São os termos chamados sa-
gua portuguesa, apenas os dois primeiros níveis são considerados, télites. Há satélites de nível 1 e de nível 2. Os de nível 1 (indicam
porquanto o estabelecimento do número de argumentos de uma frase modo, velocidade, instrumento) contribuem para definir melhor uma
é definido no primeiro nível e o preenchimento dos lugares vazios aí predicação nuclear e expandi-la em uma predicação central. Os de
determinados dá-se no segundo nível. nível 2 (localizam o EC no tempo e espaço) contribuem para definir
O que é uma predicação? Se é possível, por exemplo, um dire- melhor uma predicação nuclear e expandi-la em uma predicação es-
tor distribuir brinquedos a crianças do bairro, é porque esse gesto tendida. Em (3), a seguir, com alegria é um exemplo de satélite de
do diretor ocorre em algum mundo e, assim sendo, corresponde a um nível 1 e, em (4), a seguir, no domingo é um exemplo de satélite de
Estado-de-Coisas (EC). Segundo Dik (1989), um EC é “algo que nível 2.
pode ser em algum mundo”, real ou imaginário. Todo EC é expresso
por uma predicação e essa, por sua vez, resulta do relacionamento de (3) O diretor distribuiu com alegria brinquedos a crianças do bairro.
um predicado com seus termos. Em (1), a seguir, tem-se um EC, ou (4) O diretor distribuiu com alegria brinquedos a crianças do
seja, uma predicação. bairro, no domingo.

(1) O diretor distribuiu brinquedos a crianças do bairro.


distribuirv (x1: <+anim> (x)Ag (x2)Met (x3: <+anim> (x3))Rec

Uma predicação, por sua vez, também se apresenta por meio 1 Dik usa o símbolo ei para representar o EC encaixado.
de níveis. São três os níveis de uma predicação: 2 Pass é um operador de predicação que indica o tempo em que foi realiza-
do o EC.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 579


Observa-se que uma predicação pode apresentar-se de forma Apontam-se como funções semânticas assumidas pelo segun-
tanto absoluta (predicação matriz), no nível da predicação nuclear e do argumento: meta, recipiente, localização, origem, direção e re-
central, quanto encaixada (predicação encaixada), no nível da ferência. O terceiro argumento pode ter todas as funções semânticas
predicação estendida. A predicação correspondente à expressão lin- do segundo argumento, exceto meta.
güística (3), acima, por exemplo, apresenta-se encaixada, na expres- Diferentes considerações3 são feitas sobre a função meta. Para
são lingüística (5), a seguir, em uma predicação matriz cujo predicado Dik, é a entidade afetada ou efetuada (o termo problema, na ocor-
corresponde ao item lexical dizer. rência (11), a seguir) por um controlador (o termo Joana, na ocorrên-
cia (11), a seguir) e tem, portanto, o sentido de paciente.
(5) O secretário disse que o diretor distribuiu com alegria brin-
quedos a crinças do bairro. (11) Joana expôs o problema sem receio.

Pass1 [dizer (o secretário) (ei)] Definem-se e exemplificam-se, dessa feita, as funções semân-
ei = Pass [[dizer (o secretário) (brinquedos) (a crianças do bair- ticas que A2 pode assumir juntamente com A3: recipiente (é a entida-
ro)] (com alegria)] de para a qual alguma possessão é transferida); localização (é o lugar
onde alguma coisa está localizada); direção (é a entidade para a qual
Na ocorrência (5), a predicação encaixada corresponde àquilo alguma coisa se move); origem (é a entidade de onde alguma coisa
que o secretário disse. O primeiro argumento do predicado dizer é o
se move); referência (é a entidade que possibilita uma relação ser
termo secretário e o segundo argumento é toda a predicação corres-
mantida).
pondente à expressão lingüística (3).
(12) O Papa acenou para os fiéis. (A2 recipiente)
2 Os Modos-de-ação do predicado
(13) Muitos livros serão doados às escolas estaduais.
(A3 recipiente)
As propriedades semânticas do predicado, ou seja, os diferen-
tes Modos-de-Ação, determinam a natureza dos argumentos e satéli-
tes de um EC. Considerando que a semântica interna do predicado (14) Saltamosmos no Havaí. (A2 localização)
reflete as diferentes interpretações da realidade ou visão de mundo (15) A mãe foi com a filha ao comércio. (A3 localização)
de seus falantes, Dik (1989) estabelece uma tipologia de EC e não (16) O vento sopra para a continente. (A2 direção)
uma tipologia de predicados, com base em cinco parâmetros: dina- (17) O trem transporta os operários para a fábrica. (A3 direção)
mismo, controle, telicidade momentaneidade e experiência. Apenas
os três primeiros, no entanto, são indispensáveis à classificação dos (18) A confusão surgiu de uma simples conversa. (A2 origem)
tipos de EC na língua portuguesa. A combinação desses três (19) O governo expulsou os sem-terra da invasão. (A3 origem)
parâmetros resulta em seis tipos de EC (Dik, 1989: 88).
(20) O assunto se refere à política. (A2 referência)
Tipos de EC Traços semânticos dos predicados (21) Oferecemos todo o conforto possível a nossos clientes.
1 evento-ação-realização [+din] [+con] [+tel] (A3 referência)
2 evento-ação-atividade [+din] [+con] [-tel]
3 evento-processo-mudança [+din] [-con] [+tel] 4 Análise da predicação verbal na língua portuguesa
4 evento-processo-dinamismo [+din] [-con] [-tel]
5 situação-posição [-din][+con] Analisar a predicação verbal na língua portuguesa, nesta pes-
6 situação-estado [-den][-con] quisa, significa:
a) verificar a estrutura de predicado, o que implica examinar o
número de argumentos projetados pelo predicado;
3 As funções semânticas dos argumentos b) considerar os tipos de EC que correspondem às predicações;
c) conceber as funções semânticas dos argumentos.
Toda estrutura de predicado, necessariamente, apresenta, pelo Ressalta-se que, na classificação dos ECs, não se considera o
menos, um argumento, e qualquer argumento não pode desempenhar parâmetro [± tel], tendo em vista que o aspecto temporalidade não se
mais que uma função semântica. relaciona com o número de argumentos dos predicados bem como
As funções semânticas do primeiro argumento (A1) expressam com a função semântica desses argumentos e, sim, apenas com a
uma informação a mais que as funções do segundo (A2) e do terceiro subclassificação dos ECs. Então, a análise não se pauta por seis tipos
(A3) argumentos: além de informar sobre o papel semântico do único de EC, conforme classificados acima, e, sim, por quatro: situação-
argumento, informa sobre o tipo de EC, ou seja, se este é de Ação, de estado, situação-posição, evento-ação e evento-processo.
Processo, de Posição ou de Estado. Determina-se que todos os predicados são transitivos, porquanto
São as seguintes: agente (a entidade que controla uma ação), todos comportam, no mínimo, um argumento e, no máximo, três ar-
posicionador (a entidade que controla uma posição), força (a enti-
dade não-controlada que instiga um processo), processado (a entida-
de que experimenta um processo) e zero (a entidade envolvida em
um estado).
3 Dik (1989, 105) distingue meta de processado. Em ocorrências como:
(6) Eu (agente) as repito com prazer. John (Ag) moved the rock (Go) e The rock (Proc) moved, considera que
(7) Eu (processado) envaideço-me do meu filho. the rock, na primeira frase, é meta e, na segunda, é processado. Fillmore
(8) Essa câmera (força) projeta luz. (1968), Chafe (1970) e Jackendof (1972) consideram que the rock, em
(9) Meu pleito (zero) está garantido. ambas as frases, tem uma só função, assim, para Fillmore, é objetivo, para
(10) As crianças (posicionador) esperam a professora no jardim. Chafe, é paciente e, para Jackendof, é tema. Para Bloomfield (1933) meta
tem o mesmo sentido que tem para Dik.

580 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


gumentos. Decorre dessa orientação que até mesmo verbos copulativos junto adverbial e que é condicionada pelos fatores pragmáticos dina-
apresentam transitividade. mismo e controle;
Lembra-se, por outro lado, que os lugares vazios dos predicados – todos os predicados são transitivos, pois não há predicado
podem ser preenchidos não só por termos que se relacionam com sem relacionar-se com pelo menos o primeiro argumento;
papéis sintáticos que a tradição gramatical concebe como sujeito, – os itens lexicais correspondentes a adjuntos adverbiais que
preencherem lugares vazios na estrutura de predicado constituem
objeto direto e indireto, mas podem ser preenchidos, também, por
argumento do pedicado;
termos que se relacionam com o papel sintático que a tradição gra- – não se tem a priori tipos de predicado segundo o número de
matical concebe como adjunto adverbial. argumentos que projetam, porquanto os fatores pragmáticos [±din]
[±con] dos ECs é que determinam a sua natureza argumental;
Conclusão – não há predicado de sentido completo ou incompleto, bem
como de ação ou de estado, mas, sim, há predicado que projeta um,
Verificou-se que nem todo tipo de EC se relaciona com os dois, ou três argumentos, segundo os Modos-de-ação dos predicados
tipos de predicado copulativo, intransitivo e transitivo. O verbo nas predicações na língua em uso.
copulativo ocorre apenas em EC situação-estado. O verbo intransitivo – os termos que correspondem a A2 e A3 não completam o
ocorre em EC situação-estado, situação-posição, evento-ação e evento- sentido do predicado, mas, ao contrário, é esse que projeta termos
processo com primeiro argumento processado. O verbo transitivo que desempenham aqueles papéis sintáticos;
direto ocorre com todos os tipos de EC. O verbo transitivo direto e – o pronome se compõe com o predicado um todo lexical quan-
indireto ocorre com EC evento-ação e evento-processo com primei- do o EC é [-din] [-con] e [+din] [-con] e, assim, esse predicado apre-
ro argumento processado ou força. senta apenas um argumento;
– o pronome se compõe com o verbo um todo lexical, quando
Viu-se que a teoria de Dik (1989), no que se refere ao estudo
o EC é [+din] [+con], mas o evento-ação não se reflete no primeiro
da predicação, possibilita dar novo tratamento à transitividade ver- argumento;
bal na língua portuguesa, conforme se verifica a seguir:
– a transitividade não deve ser vista como a relação semântica Referências bibliográficas
de complementaridade do verbo, mas, sim, como a relação que o
predicado mantém com os argumentos que desempenham papéis se- DIK, Simon C. The theory of functional grammar. Holland/Providence:
mânticos e sintáticos de sujeito, objeto direto, objeto indireto e ad- Foris Publications, Dordrecht, 1989.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 581


Aspectos de um estudo funcionalista
da modalidade evidencial
Vânia Cristina Casseb Galvão
Universidade Estadual Paulista (UNESP/Ar)

ABSTRACT: The aim of this work is to analyze aspects of the functionalist approach of the layered structure of linguistic representation to the study of the
evidential modal category
PALAVRAS-CHAVE: funcionalismo, modalidade epistemológica, evidencialidade.

1. Considerações iniciais direcionam a classificação dos operadores e satélites, conforme os


seus níveis de atuação e a função que exercem. Classificação que é
A consideração da sentença como mensagem e como evento
explicitada no quadro a seguir:
da interação (Halliday, 1985) é básica na proposta de constituição
dos enunciados em camadas. Para Dik (1989:45-46), toda oração deve
ser descrita em termos de uma estrutura subjacente abstrata, que é
projetada na forma atual da expressão lingüística correspondente por
um sistema de regras de expressão, as quais determinam a forma, a
ordem e o padrão de entonação dos constituintes da estrutura oracional
subjacente.
O reconhecimento dessa constituição autoriza a análise dos
enunciados a partir de dois níveis: o nível representacional e o nível
interpessoal (Hengeveld, 1988, 1989). No nível representacional um
estado de coisas é descrito de maneira tal que o destinatário seja ca-
paz de compreender a que a situação real ou hipotética se refere. Este
é o domínio do evento narrado. No nível interpessoal a situação é
apresentada de maneira que o destinatário seja capaz de reconhecer a
intenção comunicativa do falante. É o domínio do evento de fala.
A estrutura oracional subjacente é uma estrutura abstrata com-
plexa na qual podem ser distinguidos vários níveis ou camadas da
organização formal e semântica. Para a Gramática Funcional, prati-
cada por Dik (1989), Hengeveld (1988, 1989), entre outros, esses
níveis são os seguintes:

Nesta oportunidade, enfocaremos os operadores e satélites


modais atuantes no nível da proposição indicadores de especificações
sobre a origem da informação veiculada, integrantes do domínio modal
da evidencialidade.
A base da estrutura oracional é um predicado, que designa pro- Neves (no prelo) observa que as especificações de modalidade
priedades ou relações, ao qual se aplica um determinado número de instanciam a oração quanto à ancoragem na enunciação, ou seja, dizem
termos (argumentos), que se referem a entidades. Essa aplicação re- respeito ao falante, ao ouvinte, e ao momento da enunciação.
sulta a predicação, que designa estados-de-coisas. Uma predicação Evidenciais geralmente podem ser definidos como marcadores
pode ser construída em uma estrutura de ordem mais alta: a proposi- que indicam algo sobre a fonte da informação da proposição
ção, que designa um conteúdo proposicional ou fato possível. A pro- (Bybee et all,. 1995:184).
posição, por seu lado, é construída dentro de um frame ilocucionário, Pretende-se mostrar os postulados que direcionam um estudo
que diz respeito ao estatuto do ato de fala, ou seja, às forças declara- sobre a modalidade evidencial na perspectiva da GF. Explicitaremos
tiva, interrogativa, imperativa etc que se aplicam ao conteúdo algumas questões que envolvem essa temática e apresentaremos uma
proposicional. alternativa de investigação que tem por hipótese o provável desen-
Subjacentes ao modelo das camadas estão quatro processos volvimento do sistema evidencial gramaticalizado no português do
básicos de constituição do enunciado: predicação, referenciação, Brasil (PB).
modalização e junção. Na camada mais profunda está o predicado,
com o preenchimento das “casas argumentais” dá-se a referenciação, 2. A modalidade evidencial na GF
operadores e satélites qualificam , e as porções que dão seqüência aos Independentemente de outras perspectivas, na GF, considera-
enunciados são conectadas através de juntores (Neves, 2000). se a Modalidade como o domínio da veiculação das atitudes do
Dik (1989:50) diz que uma das vantagens do modelo de cama- falante em relação ao que é asseverado (Hengeveld, 1988, 1989; Dik
das é permitir uma correta especificação do escopo de operadores e 1989, 1997). Três principais subdomínios são identificados na tipologia
satélites atuantes em cada um desses níveis. Operadores e satélites modal da GF: Modalidade Epistemológica, Modalidade Objetiva e
são aqueles elementos que resultam em uma expressão lexical e em Modalidade Inerente.
uma expressão gramatical, e que qualificam as modificações e modu- A Modalidade Epistemológica abrange todos os meios
lações nos níveis da estrutura clausal, respectivamente. lingüísticos pelos quais o falante pode expressar seu comprometi-
Os postulados de Hengeveld (1988, 1989) e de Dik (1989), mento em relação à verdade da proposição, comprometimento que

582 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


pode ser revelado a partir da especificação da origem da informação iv. Evidenciais não podem estar no escopo de um elemento negativo.
contida na proposição, ou seja, a partir de elementos evidenciais. Dentre os aspectos que estamos investigamos, atentamos para
Os modalizadores epistemológicos evidenciais são, portanto, a descrição de usos evidenciais no português do Brasil desenvolvi-
especificadores da fonte do conhecimento asseverado na proposição. dos a partir da gramatizalização da construção matriz que introduz
Ao fazer a especificação evidencial, o falante pode ou não se uma oração encaixada construída com o predicado dizer, primeira
apresentar como essa fonte. Hengeveld distingue a modalidade pessoa singular, presente, modo indicativo.
epistemológica evidencial em inferencial, citativa e experiencial . Trabalhamos com dados de língua escrita que integram o corpus
Nos termos de Dik (1989:251) os aspectos semânticos mais pertencente ao projeto Gramática de Usos do Português e Dicionário
importantes no campo de ação dos modalizadores epistemológicos de Usos do Português (GUP/DUP), da UNESP/Araraquara.
evidenciais (a origem da proposição) são distinguidos como:
Experiência: O falante conclui que Xi baseado em prévia expe- Considerações finais
riência pessoal;
Inferência: O falante infere Xi a partir de evidência disponível; A aplicação do modelo da GF nos permite perceber a atua-
Hersay (boato): O falante assinala que ouviu Xi a partir de ção de elementos evidenciais a partir dos níveis de constituição do
alguém. enunciado. Pretendemos ratificar o processo de mudança do item
diz que em direção ao domínio gramatical modal.
Os estudos sobre a evidencialidade são recentes e, esse não é
Considerando-se os critérios definidores de De Haan, temos
um domínio cujas fronteiras têm sido fáceis de delimitar, por esse e
fortes indícios de que a construção diz que vem desenvolvendo um
outros motivos, não há ainda um consenso sobre o estatuto semânti-
processo de gramaticalização no domínio da modalidade evidencial.
co/sintático da evidencialidade. A perspectiva da GF está longe de
Isso significa que há grandes possibilidades de um sistema modal
ser unânime. O reconhecimento da evidencialidade como um
evidencial gramaticalmente expresso estar sendo construído no PB.
subdomínio da modalidade epistemológica é apenas uma das con- É o que pretendemos continuar investigando.
cepções dessa categoria. A unanimidade relaciona-se apenas ao as-
pecto modal da categoria. Referência bibliográfica
Podemos citar três das diferentes perspectivas correntes na li-
teratura lingüística: uma que reconhece evidencialidade e modalida- ANDERSON, Lloyd B. (1986). Evidentials, Paths of Change, and
de como duas categorias semânticas independentes (Nuyts, 1992, Mental Maps: Typologically Regular Asymmetries. In Chafe and
1993, 1993); outra que identifica a evidencialidade como um subtipo Nichols, 273-312.
de modalidade epistêmica (Palmer, 1986; Bybee, Pagliuca & Perkins, BYBEE, J., PERKINS, R., PAGLIUCA, W. (1994). The evolution of
1994); e, uma terceira, que reconhece a evidencialidade como uma Grammar: Tense, Aspect and Modality in the Languages of the
categoria modal que pode ou não estar gramaticalizada nas línguas World. Chicago: Chicago University Press.
(Anderson, 1986; Willett 1988; De Haan, 1997, 1997a, 1997b, 1998, BYBER & FLEISHMAN (eds). (1995). Modality and Grammar and
1998a). Discourse. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins
Outra questão diz respeito à origem de marcadores evidenciais. Publishing.
A língua pode ter um sistema evidencial original ou, dependendo, DE HAAN, Ferdinand (1996). Evidentiality in Dutch. (Unpublished
dentre outras coisas, da necessidade comunicativa, esse sistema pode Ms).
vir a desenvolver-se no decorrer do tempo. _________ (1997). The place of inference within the evidential
Entre os postulados do modelo funcionalista está a relação gra- system. (Unpublished).
mática e discurso e a explicação do comportamento sintático, semân- _________ (1997). Evidentiality and the Inferential Evidential.(
tico e pragmático dos itens, levando-se em consideração a confluên- Unpublished).
cia de forças internas e externas ao sistema. ________ (1997d). Evidentiality and Epistemic modality. Paper
Para Dik (1989), um exemplo da previsão desse dinamismo e presented at the 2nd ALT meeting, Eugene, OR. (Unpublished)
da atuação de fatores de ordens pragmática e cognitiva na formação _________ (1998a). The Category of Evidentiality. (Unpublished)
das expressões lingüísticas é o desenvolvimento da gramaticalização, ________ (1998b).Visual evidentiality and its origins. (Unpublished)
um dos processos constitutivos das línguas. A gramaticalização des- DIK, S. C (1989). The theory of Functional Grammar. Foris
creve o desenvolvimento unidirecional itens do domínio lexical, Publications: Dordrecht.
conceitualmente mais concretos em itens do domínio gramatical, DIK, S. C (1997). The theory of Functional Grammar - Part 2:
conceitualmente menos concretos ou mais abstratos, Complex and Derived Constructions. Berlin/New York:. Mouton
A GF prevê a gramaticalização atuando de maneira geral nas Gruyter.
línguas, não faz estudos específicos sobre o desenvolvimento desse NEVES, Maria Helena M. (no prelo). A Modalidade: um estudo de
fenômeno lingüístico. base funcionalista na língua portuguesa. In: Revista Portuguesa
Acontece que uma das vantagens do modelo funcionalista é a de Filologia (no prelo).
sua capacidade de conciliação com outras perspectivas, desde que _______ (2000). Gramática de usos do português. São Paulo: Edi-
estas considerem a língua em uso e o dinamismo lingüístico. Nesse tora da UNESP.
sentido, e, levando-se em consideração que uma das hipóteses de NUYTS, Jan (1992). Subjective vs Objective Modality: What is the
nossa investigação atenta para o surgimento de marcadores evidenciais diference? IN: Fortescue, M. et al. Layered Structure and
a partir de processos de gramaticalização, pretendemos aliar a pers- Reference in a Functional Perspective. Amsterdam/Philadelphia:
pectiva da GF à proposta de De Haan. John Benjamins Publishing.
De Haan (1997, 1997a, 1997b, 1998, 1998a), reconhece a ________(1993). Epistemic modal adverbs and adjectives and the
evidencialidade como uma categoria modal que pode ou não estar layered representation of conceptual and linguistic structure.
gramaticalizada nas línguas. Ele critica as propostas de definição da Linguistic, 31, p. 933-969.
evidencialidade por critérios puramente semânticos e, a partir de __________(1993a). From language to conceptualization: The case
Anderson (1986), reformula aqueles que ele considera como os cri- of Epistemic Modality. In: CLS 29, v. 2.
térios definidores evidenciais: PALMER, Frank . R. (1986). Mood and Modality. Cambridge:
i. Os evidenciais não são a parte principal da cláusula. Cambridge University Press.
ii. Evidenciais não apresentam concordância com o falante. WILLET, T. A. (1988). Cross-linguistic survey of grammaticalization
iii. A evidencialidade é o significado primário desses elementos. of evidentiality. Studies in Language, v. 12, nº. 1, p. 51-97.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 583


Topicalização: as dimensões referenciais
do planejamento discursivo
Marcos Antonio Costa
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ

ABSTRACT: The aim of this work is to argue that topicalized structures are associated to communicative strategies that show evidence of a
continuum between oral and written registers. The relative independence from syntactic restrictions allows us to relate those structures to the level
of discursive planning.
PALAVRAS-CHAVE: Topicalização, planejamento discursivo, fala e escrita.

Apesar da existência de um representativo número de trabalhos aumentando, dessa forma, a escala potencial de estruturas disponíveis
abordando o fenômeno da topicalização no português do Brasil1 , para uso. Entre as estratégias comunicativas que emergem mais tarde
parece continuar prevalecendo o entendimento tradicional de que as no discurso do adulto provenientes de estágios anteriores, Ochs faz
estruturas topicalizadas nada mais representam senão realizações lin- referência àquelas em que, mais do que por meios sintáticos, os argu-
güísticas mal formuladas próprias do universo caótico da oralidade. mentos e seus predicados são ligados através de sua posição na
Se, por um lado, a análise que a gramática tradicional faz das estrutu- sentença. Percebemos, nessa análise, uma aproximação teórica com as
ras de tópico e comentário se limita a aspectos formais, propostas formuladas por Givón (1979), para quem a linguagem hu-
desconsiderando a função discursivo-pragmática desse tipo de cons- mana teria evoluído do modo pragmático para o sintático e, por isso
trução, por outro, a perspectiva dicotômica que separa com rigidez as mesmo, a sintaxe teria evoluído a partir do discurso. A diferença entre
modalidades oral e escrita deixa de levar em consideração significati- os autores, ao que nos parece, fica unicamente por conta do foco
vos aspectos da língua, os quais consideramos, ao lado de muitos adotado: enquanto a hipótese de Givón para a evolução da linguagem
autores, indispensáveis ao entendimento das diferentes estratégias engloba tanto a filogenia quanto a ontogenia, Ochs trabalha numa
empregadas durante o ato de fala. perspectiva ontogênica.
Neste trabalho, interessa-nos, particularmente, dois tipos de A distinção terminológica utilizada pela autora entre discurso
topicalização: planejado e discurso não planejado se opõe à perspectiva tradiconal
que dicotomiza as modalidades oral e escrita e procura dar conta de
a) aquele em que os papéis de tópico e de sujeito são codificados por certas situações comunicativas em que a confiança em determinados
itens distintos, mas correferentes, como no seguinte exemplo: padrões lingüísticos se vê afetada. O conceito de planejamento tem
como base a idéia de premeditação e de propósito de organização.
(01) ... a casa de minha avó... ela é grande sabe? Desse modo, diferentemente do não planejado, o discurso planejado é
(Língua falada, 8a série, p. 347)2 compreendido como sendo aquele que foi pensado e organizado antes
de ser produzido. Obviamente, essas são formulações extremas, uma
b) aquele em que esses papéis são codificados por itens distintos vez que em nosso dia-a-dia nos deparamos com situações discursivas
tanto do ponto de vista morfossintático quanto semântico, como ocorre relativamente planejadas ou não planejadas. O planejamento discursivo,
no exemplo abaixo: em seus extremos, poderia, assim, ser exemplificado com a produção
escrita acadêmica e a conversa espontânea, respectivamente.
(02) ... esse acampamento todos os meus amigos foram. Dos quatro traços apontados por Ochs para distinguir o dis-
(Língua falada, 8a série, p. 303) curso relativamente não planejado do planejado, interessa-nos par-
ticularmente dois, uma vez que nosso objetivo, como já afirmado
O que nos parece evidente é que qualquer classificação sintática anteriormente, é estabelecer relações entre o nível de planejamento
tanto para o SN a casa de minha avó em (01) como para o SN esse discursivo e o recurso da topicalização. Segundo o entendimento da
acampamento em (02) se torna um tanto forçada. Esses SNs se mos- autora:
tram relativamente independentes da oração-comentário que os segue,
sem desempenharem nela qualquer função sintática. Antes, são toma- 1) No discurso relativamente não planejado, mais do que no planeja-
dos como ponto de partida da porção do discurso que os seguirá. O do, os falantes confiam no contexo imediato quando expressam as
informante os seleciona como o elemento central a partir do qual a proposições.
informação será transmitida. Trata-se, portanto, de SNs marcadamente
discursivos que recebem o rótulo de “tópico”. Conforme Chafe (1976) Esse traço remete-nos às relações argumentos-predicado sem
e Li e Thompson (1976), o que caracteriza o tópico é ele estabelecer uso de meios sintáticos e ao apagamento de referentes. O exemplo a
um quadro de referência para o que vai ser dito a seguir. seguir, encontrado em nosso corpus, ilustra essas características:
Partindo das idéias propostas por Ochs (1979), pretendemos
estabelecer relações entre o nível de planejamento discursivo e o
recurso da topicalização. Em seu trabalho, a autora procura mostrar 1
Merecem ser destacados, aqui, os trabalhos da professora Eunice Pontes
que as estratégias lingüísticas adquiridas em um momento anterior do Sujeito: da sintaxe ao discurso, de 1986 e O tópico no português do Brasil,
desenvolvimento da linguagem não são abandonandas, conforme o de 1987.
2
entendimento de algumas propostas, mas ficam disponíveis e emer- Nossos dados são provenientes do Corpus Discurso & Gramática – a língua
gem sob certas condições comunicativas. Ou seja, os padrões comuni- falada e escrita na cidade do Natal (D&G), publicado pela Editora da
UFRN.
cativos anteriores coexistem com os adquiridos mais recentemente,

584 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


(3) ... a árvore... todo mundo teve a sua hora de almoço... (5) E: Solange... você poderia descrever um lugar que você
(Língua falada, 8a. série, p. 322). goste de ficar ou até que você não goste... um lugar que você já foi...
qualquer lugar...
Essa estrutura torna-se estranha sem seu contexto discursivo- I: É... o meu colégio... o Ferro Cardoso né... ele.. eu gos-
situacional. Argumento e predicado são altamente dependentes do to... eu gosto de ficar lá né... apesar de ser um prédio pequeno... mas
discurso e, por isso mesmo, é impossível interpretá-los fora desse eu gosto e.... também porque eu já passei muito tempo estudando lá e
contexto. Em (3), a informante narra um passeio realizado quando eu já me acostumei né... com o prédio... (Língua falada, 3a. série, p.
criança e faz o seguinte comentário: 283).

(3’) ... todo mundo tomou banho de piscina... depois teve a Nesse exemplo, a informante, ao iniciar sua fala, aponta, pri-
hora do almoço... cada um tinha a su/sua mesa... né... na sombra... a meiramente, o referente sobre o qual todo o restante do texto irá tratar.
árvore... todo mundo teve a sua hora de almoço... almoçamos e de- A função comunicativa básica dessa estratégia discursiva é abrir espa-
pois... continuamos à tarde... jogando bola... ço para um tópico contrastivo, já que ele é selecionado entre todas as
outras possibilidades oferecidas na solicitação do entrevistador. Aqui,
De uma maneira econômica, informante e entrevistador se enten- a função contrastiva é ainda salientada pelas três diferentes formas de
dem, não explicitando o que pode ser suprido pelo todo do discurso. codificação utilizadas pela informante para o mesmo elemento tópico:
No trabalho de Li & Thompson (op.cit.) sobre a ordenação primeiro o SN o meu colégio é contrastivo com todos os outros luga-
vocabular e especialmente sobre topicalização, os autores identificam res possíveis de serem descritos; o segundo SN, o Ferro Cardoso,
as construções de “duplo sujeito” como sendo os casos mais claros de representa mais um recorte, uma vez que determina de qual colégio se
estruturas de tópico-comentário. Isso porque, conforme observado, fala; por fim, o pronome ele, anafórico, funciona como reforço na
todas as línguas com proeminência de tópico têm construções desse indicação do elemento escolhido para ser o tópico. A sequência se-
tipo, enquanto nenhuma língua com proeminência de sujeito as tem. guinte, eu gosto... eu gosto de ficar lá né..., representa o comentário
Como exemplo, citam a seguinte estrutura do japonês: que é feito sobre o tópico selecionado (repetido no advérbio lá). As-
sim, a ordenação dos constituintes no início da resposta da informante
(4) Gakkoo-wa buku-ga isogasi-katta ilustra, antes de mais nada, uma construção de tópico-comentário, de
“Escola, eu estava ocupado” nível pragmático-discursivo.

Note-se que o exemplo retirado de nosso corpus e o citado por (6) ... há uma... é... a religião verdadeira né... que é o amor... o
Li & Thompson apresentam características semelhantes. amor que você tem a Deus... o amor que você tem a seu próximo...
agora... geralmente as seitas... elas não têm interesse de mostrar...
2) No discurso relativamente não planejado, mais do que no planeja- de... de mostrar... a verdade... não é... de mostrar Deus...
do, os falantes confiam em estruturas morfossintáticas adquiridas nos (Língua falada, 3a. série, p. 292).
primeiros estágios de desenvolvimento da linguagem. No planejado,
fazem uso de estruturas que emergem relativamente mais tarde. No exemplo (6), a seqüência em negrito representa uma que-
bra da expectativa natural decorrente do fluxo do texto, uma vez que a
informante vinha falando da “religião verdadeira”. A entrada de um
Aqui, além dos aspectos relacionados às vozes e aos tempos novo tópico - “as seitas” -, altamente contrastivo com o anterior,
verbais, Ochs (op. cit.) salienta os modos de referência para caracteri- requer uma abertura de espaço especial, o que é garantido pela cons-
zar os níveis de planejamento. Segundo os achados da autora, no trução de tópico-comentário.
discurso relativamente não planejado sobressaem-se as construções
em que primeiro o falante nomeia um referente para depois apresentar As estruturas que estão sendo aqui examinadas são produzi-
uma proposição completa acerca daquele referente. Ochs nos lembra das, predominantemente, na oralidade. Entretanto, em nossos dados
ainda que um tipo particular de construção com referente mais propo- de material escrito, encontramos o seguinte exemplo:
sição é mais comumente discutido pela lingüística: o deslocamento
para a esquerda. Pontes (1987) atribui a Ross (1967) a distinção entre (7) Quando eu e os meus amigos chegamos ao local de partida,
topicalização e deslocamento para a esquerda. Para Ross, essa distin- todos estavam alegres pensando que tudo não ia passar de um sim-
ção se baseia essencialmente no fato de que, no caso de deslocamento ples piquinique. Todos nós trouxemos uma mochila, dentro dessas
para a esquerda, aparece um pronome que o autor chama de pronome- mochilas havia mais comida do que utensilios pessoais. Mas, ainda
cópia. No caso de topicalização, esse pronome não vai aparecer. Como no local de partida teve um momento em que o tenente do curso
podemos observar nos exemplos apresentados, quando o tópico e o começou a revistar nossas mochilas. As mochilas que tinham comi-
sujeito são correferentes, estamos diante de um deslocamento para a da dentro, foi revistada toda a comida. Algumas pessoas até protes-
esquerda, ex. (1), quando não, temos topicalização, ex. (2). Com rela- taram.
ção a essas estruturas, esclarece Votre (1992) que (Língua escrita, 8a. série, p. 315).

ambos os processos estão estreitamente associados a estraté- A estrutura em negrito, ao que nos parece, apresenta todas as
gias discursivas para atrair a atenção do interlocutor, e atuam características de uma construção de tópico-comentário. Tem-se, pri-
dentro de um domínio funcional complexo que podemos rotu- meiramente, um tópico (as mochilas que tinham comida dentro) -
lar de contrastividade. É essencialmente a função contrastiva, com um grau maior de complexidade estrutural em relação aos exem-
com todos os seus reflexos funcionais e suas contrapartes es- plos precedentes -, seguido de uma oração que funciona como um
truturais, que melhor explica o mecanismo de anteposição para comentário, completando a informação sobre o referente-tópico.
fora dos limites estruturais da cláusula. Entendemos que nossos dados e as considerações aqui apre-
sentadas, necessariamente restritas pelas circunstâncias, reforçam a
Os exemplos a seguir ilustram a afirmativa de Votre: necessidade de uma análise diferenciada para as chamadas estruturas

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 585


topicalizadas. Nessa análise, a relação entre os constituintes deve Referências bibliográficas
ser interpretada, primeiramente, como uma relação discursiva.
Muitas vezes, é a simples justaposição desses constituintes que vai CHAFE, W. Giveness, contrastiveness, definiteness, subjects, topics,
garantir o elo significativo entre eles. A tipologia proposta por Li & and point of view. In: LI, C. N. (ed.). Subject and topic. New
Thompson, baseada no fato de nas línguas predominarem relações York, Academic Press, 1976.
de tópico-comentário ou de sujeito-predicado, representa um avan- GIVÓN, T. On understanding grammar. New York, Academic Press,
ço na investigação dos fenômenos lingüísticos típicos da oralidade 1979.
uma vez que leva em consideração fatores discursivo-pragmáticos, LI, C. N. & THOMPSON, S. A. Subject and topic: a new typology of
e não apenas sintáticos. Os trabalhos de Pontes, na década de 80, language. In LI, C. N. (ed.). Subject and topic. New York,
fornecem evidências do quanto a topicalização representa um traço Academic Press, 1976.
significativo no português do Brasil mas, apesar disso, continua OCHS, E. Planned and unplanned discourse. In: GIVÓN, T. (ed.).
sendo desconsiderada e/ou interpretada preconceituosamente no Syntax and semantics. V. 12 - Discourse and syntax. New York,
processo de ensino-aprendizagem. Academic Press, 1979.
Relacionar as construções de tópico e comentário ao nível de PONTES, E. S. L. Sujeito: da sintaxe ao discurso. São Paulo, Ática,
planejamento do discurso representa uma alternativa, certamente ao 1986.
lado de muitas outras, à abordagem que tradicionalmente é utilizada _____. O tópico no português do Brasil. São Paulo, Pontes Editores,
no tratamento de tais construções. Conforme desejamos ter demons- 1987.
trado, esse caminho evidencia que, se por um lado, o arranjo das ROSS, J. R. Constraints on variables in syntax. Dissertação de PhD,
unidades lingüísticas procura dar conta de determinadas necessidades MIT, 1967.
comunicativas, atendendo a determinados contextos discursivo- VOTRE, S. J. Lingüística funcional: teoria e prática. Québec,
situacionais, por outro, esse arranjo não pode ser interpretado como Université Laval, 1992. (inédito).
uma estratégia exclusiva da modalidade oral.

586 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Análise funcionalista dos mecanismos de
impessoalização no texto argumentativo
Nubiacira Fernandes de Oliveira
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

ABSTRACT: In this paper, I discuss some mechanisms responsible for the inpersonalization process in spoken language. Based on the contemporary
functional linguistics, the aim is to elucidate the iconic relation between the inpersonality notion and its forms of codification.
PALAVRAS-CHAVE: Funcionalismo; iconicidade; impessoalização.

Introdução do possível, que as estratégias de impessoalização podem ser vistas


como icônicas e cognitivamente motivadas.
Neste trabalho proponho-me descrever e interpretar alguns re-
cursos codificadores da função lingüística de impessoalização, cujo
Impessoalização e iconicidade
uso vem se generalizando como alternativas às formas canônicas re-
conhecidas pela gramática tradicional. Em sua versão forte, o princípio de iconicidade prevê uma
A fonte de pesquisa empírica é o Corpus Discurso & Gramá- correlação natural (não-arbitrária) entre o código lingüístico e o seu
tica: a língua falada e escrita na cidade do Natal, do qual foram designatum (Bolinger, 1977). A iconicidade revela-se, pois, na rela-
selecionados doze textos orais do tipo relato de opinião. ção de um-para-um entre função e forma, entre a significação e sua
Entendo que uma forma ou expressão se caracteriza como representação. A realidade lingüística, no entanto, não confirma que
indicativa de impessoalidade principalmente pelo fato de não situar essa relação se dê assim de modo tão absoluto. Encontram-se, na
seres específicos no mundo bio-social, dada a ampliação de sua refe- língua, casos em que uma forma desempenha mais de uma função e,
rência. Ou seja, ao englobar diferentes pessoas, uma expressão pode inversamente, uma mesma função pode ser preenchida ou codificada
tornar-se tão genérica que é impossível precisar qual o seu referente. por mais de uma forma. Além disso, ao lado de estruturas que man-
Esse sentido amplo e generalizante que as formas impessoais exibem têm uma correlação aproximada com o sentido ou a função que elas
se coaduna com o seu comportamento morfossintático, pois a maio- designam, sendo, pois, mais ou menos visível os laços entre forma e
ria delas leva o verbo para a 3ª. pessoa (do plural ou do singular), função, verifica-se também a existência de casos em que essa relação
considerada, tanto pelos gramáticos como por alguns lingüistas, como não é nítida, revelando-se mais ou menos arbitrária, de modo que é
forma impessoal. Assim sendo, acredito que o problema da impossível estabelecer a conexão entre expressão e conteúdo. Nesse
impessoalização requer um tratamento de ordem semântico-pragmá- sentido, a noção de iconicidade na língua deve ser melhor abordada
tica-discursiva; de um lado, porque envolve a consideração do papel na perspectiva de um continuum, que prevê estruturas iconicamente
semântico de agente e não meramente da função sintática sujeito; de motivadas em diferentes graus.
outro, porque o emprego de formas impessoalizadoras no discurso Essas constatações relativizam a idéia de iconicidade e moti-
parece ser determinado pelas relações do enunciador com a língua, varam uma formulação mais branda do princípio por parte dos
com o seu interlocutor e com a realidade. funcionalistas (Givón, 1984). De acordo com essa versão atenuada,
Os manuais de gramática tradicional, em geral, registram duas não se pretende que a função determine a forma de modo absoluto,
formas de expressar essa função no enunciado: a) verbo na terceira nem que esta seja igualmente o resultado dos conteúdos a serem
pessoa do singular acompanhado do pronome se (indeterminador), transmitidos. Encarando a gramática da língua como uma estrutura
como em “Precisa-se de operários” e b) verbo na terceira pessoa do maleável, que se adapta às necessidades comunicativas e expressivas
plural em oração sem sujeito expresso, como ocorre em “Mandaram dos seus usuários, é possível explicar as formas como “recortes” do
chamar Mariana”. Dizem ainda os gramáticos que, nestes casos, o mundo real (ou dos mundos possíveis) operados pelo usuário, a par-
verbo não se refere a uma pessoa determinada ou por se desconhe- tir de pontos de vista ligados à sua percepção, cultura, condição soci-
cer quem executa a ação, ou por não haver interesse no seu conheci- al e interação discursiva.
mento. No caso, dada a impossibilidade de identificação, o sujeito é Como diz Croft (1990:164), “a estrutura da língua reflete de
dito indeterminado. (Cunha, 1976:141). (Grifos meus). algum modo a estrutura da experiência, ou seja, a estrutura do mun-
O exame do corpus revela que, particularmente em sua moda- do, incluindo (na maior parte das visões funcionalistas) a perspecti-
lidade falada, o português registra formas alternativas de va imposta sobre o mundo pelo falante.” (Grifos meus). Assim sen-
impessoalização não previstas pela gramática tradicional, enquanto a do, a escolha das formas do discurso, numa situação específica de
utilização das formas canônicas parece restringir-se à escrita formal. comunicação, vai depender, entre outras coisas, do ponto de vista
A orientação teórica que adoto é a da lingüística funcional, com que o falante impõe àquilo que está querendo representar, dos seus
base no princípio de iconicidade, tal como formulado por Givón (1984). propósitos e das relações interativas que norteiam o ato de fala.
Num estudo recente sobre os mecanismos de impessoalização
em textos dissertativos da comunidade estudantil de Natal (RN), (Oli- A análise
veira, 1999), constatei que, funcionando como estratégias de
impessoalização, concorrem eu, nós, a gente e você; os indefinidos Neste trabalho, examino a relação relativamente icônica en-
não anafóricos todos, ninguém, alguém, uns, todo mundo, qualquer tre a função de impessoalização e as formas que a codificam. Para
um, dentre outros, além de expressões genéricas do tipo, o pessoal, tanto, adoto o princípio de iconicidade em sua versão mais branda e
as pessoas, o povo, o indivíduo, a turma. Neste trabalho, retomo os mais geral, conforme apresentado anteriormente.
resultados do estudo referido, buscando agora redirecionar a análise Do ponto de vista semântico, parece que as formas de refe-
na perspectiva da lingüística funcional, de inspiração em Givón, rência do sujeito/agente que investigo adquirem um valor impessoal,
Hopper, Traugott, entre outros. Assim, tento demonstrar, na medida na medida em que assumem a capacidade de englobar a chamada

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“não-pessoa” (ele/eles), o que pode acontecer inclusive com o eu. No vam o verbo para a terceira pessoa do singular, que se caracteriza pela
nível das relações morfossintáticas, a maioria delas leva o verbo para falta de desinência e é considerada como forma impessoal. A
a terceira pessoa do singular, que se caracteriza pela falta de desinência impessoalidade verbal se harmoniza com a noção de amplitude que
de pessoa. estas formas pronominais manifestam quando são empregadas em
Como resultado de observações assistemáticas, verifiquei que determinados contextos. A referência é de tal modo expandida que
as formas impessolizadoras tendem a aparecer preferencialmente você e a gente passam a equivaler a “qualquer um”.
quando os eventos narrados no discurso referem-se a ações, atitudes Veja a impessoalização expressa por a gente e você em (2) e
e pontos de vista não individuais, mas do grupo. Nesses contextos, o (3), respectivamente.
discurso tende a ser “esvaziado” de pessoa. É o papel social que deve 2) “ ... por que o pessoal num investe na educação ... principalmente
ser enfatizado em detrimento da individualidade. Assim, certamente político né ... começa pelos grandes ... eles querem que a gente num
por força do princípio de iconicidade, o agente das ações, processos tenha capacidade de discernir o que é certo e o que é errado ...”
e/ou atitudes veiculados no discurso vem representado por uma pes- (Epa, 2ºG, M).
soa amplificada, de referência mais ou menos indeterminada, difusa,
genérica. A forma impessoalizadora pode incluir o enunciador, foca- 3) “ ... se hoje você for a um posto de saúde te negam a saúde ...
lizando a participação do “eu” nos eventos descritos. É o caso do então você é obrigado a pagar a saúde ... você é obrigado a pagar
“nós” que equivale a um “eu-ampliado”; pode, também, focalizar o sua segurança ... você é obrigado a tudo ... você não tem direito a
interlocutor como parte de um grupo mais amplo, conforme se veri- nada ...” (Epa, 3ºG, F).
fica, por exemplo, com o “você” genérico. Parece-me que, nesses Em 3) tem-se a descrição de uma situação hipotética, mas o
casos, a impessoalização é parcialmente atenuada, pois a indicação que se afirma também é válido para qualquer indivíduo.
de uma pessoa “eu” ou “tu” (agente) encontra-se aí pressuposta. Em Pode parecer estranho, mas o eu também exibe esse valor
outras expressões, como o povo, o pessoal, o indivíduo, etc.,a refe- impessoal, na medida em que abarca a “não-pessoa”, tendo assim
rência é muito mais vaga. Assim sendo, é possível, eventualmente, alargado os limites de sua referência. No exemplo 4), verifica-se
postular que as formas de referência do sujeito/agente exibem dife- um emprego da forma eu para representar um grupo indistinto de
rentes graus de impessoalização. indivíduos que, estranhamente pode incluir muita gente, exceto o
Outros contextos que parecem favorecer a ocorrência de for- “eu” enunciador, que aliás, não concorda com a ação encabeçada
mas impessoalizadoras são aqueles em que se abordam temas abstra- pelo “eu” neste contexto. No caso, considerando o contexto espe-
tos, como a religião, a fé, etc., ou se descrevem situações conjecturais/ cífico de uso, é possível analisar essa forma como sendo afetada
hipotéticas/imaginárias, em que os participantes são, digamos, “vir- pelo traço impessoal.
tuais”. Predominam, então, as formas verbais não-finitas, por si só
impessoais, as do futuro condicional e/ou as do subjuntivo, destina- 4) “ ...por exemplo tem ... um cara que tá ... fazendo um serviço pra
das à expressão da modalidade do “provável”. Neste último caso, ... um marajá ... daí o cara mata ... aí você mata ... daí quando você
parece ser possível postular a atuação do princípio de iconicidade, a for pra cadeia ... eu faço alguma coisa ... pra tirar você de lá ... isso
partir do ponto de vista que o falante impõe àquilo que está querendo é um exemplo de corrupção ...” (Epa, 8ª série, M).
representar. As formas de sujeito/agente impessoais se coadunam com Os pronomes indefinidos (todos, ninguém, alguém, uns) e
o conteúdo do discurso, que relata eventos hipotéticos, cujos perso- expressões equivalentes (todo mundo, qualquer um, etc.) quando
nagens são, na verdade, fictícios ou irreais. não são anafóricos, também funcionam como recursos para expri-
mir impessoalidade. Aliás, a sua própria designação como indefi-
Recursos alternativos de codificação da impessoalização no nidos já denota essa propriedade. Tanto os gramáticos quanto os
português lingüistas parecem concordar em que, o uso dessas expressões di-
Conforme mencionado anteriormente, no Corpus do meu tas indefinidas, esconde ou torna opaca a origem efetiva do pensa-
estudo preliminar, foram identificadas as seguintes estratégias de mento, da ação ou das atitudes expressas no discurso. Com essas
impessoalização, aqui retomadas: eu, nós, a gente e você; os indefi- formas, o verbo também fica na forma impessoal, o que se harmo-
nidos não anafóricos todos, ninguém, alguém, uns, todo mundo, qual- niza com a vaguidade referencial que elas expressam. Veja-se, a
quer um, dentre outros, além de expressões genéricas do tipo, o pes- esse propósito, o exemplo 5):
soal, as pessoas, o povo, o indivíduo, a turma.
Apresento agora alguns exemplos representativos do que aca- 5) “ ... o nosso país tá atravessando ... essa fase de ... revisão na
bo de expor. constituinte ... ninguém sabe porque ... ninguém tá preocupado ...
O nós que aparece no exemplo (1), representa um “eu-ampli- tá todo mundo ligado ... na copa ... nas novelas ... a gente num sabe
ado”, um sujeito genérico que, abarcando um universo indistinto de onde é que ... essa situação vai chegar ... ninguém confia mais em
indivíduos, equivale a “todos” e torna-se, por isso, relativamente ninguém ... num dá pra se admitir ... se esperar ... não temos mais
impessoal, de acordo com o conceito de impessoalidade que adoto esperança ... (Epa, 3ºG, F).
neste trabalho. Quanto ao conteúdo da mensagem, observa-se que as A impessoalização também pode ser expressa através de
ações/atitudes estão projetadas para o futuro e o que se afirma é váli- sintagmas nominais genéricos que se referem a humanos, tais como,
do para qualquer pessoa indistintamente. o pessoal, as pessoas, o povo, o indivíduo, a turma, etc. De referên-
cia alargada, esses sintagmas ou abarcam um universo amplo de in-
1) “ ... eu acho que tem minado essa questão da estrutura família ... que divíduos, equivalendo a “todos”, ou representam uma porção mais
é uma coisa super importante e que deve ser preservada se nós quiser- ou menos difusa e indistinta desse universo maior, que pode incluir
mos é ... ter noção do que fomos daqui algum ... do que somos a algum ou não o enunciador. Tais expressões são amplamente utilizadas na
tempo ... nós temos que preservar esses laços ...” (Epu, 3ºG, M). linguagem coloquial.
As formas você e a gente são amplamente utilizadas na lin- Veja-se o exemplo (6):
guagem do dia-a-dia com valor genérico e, portanto, impessoal. O
fato de a gente e você genéricos abarcarem a “não-pessoa” (ele/eles) 6) “ ... bem antes ... né ... o pessoal já fazia vestibular ... pra exercer
está indicado na forma verbal a eles associada. Esses pronomes le- um cargo né ... já que a pessoa quer ser alguém na vida como diz o

588 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


ditado ... se a pessoa quer ser alguém na vida a gente deve estudar tuiria o índice máximo de impessoalização, pois, neste caso, o agente
bastante ...” (Epa, 8ª série, F). das ações, processos e/ou atitudes expressas no discurso é totalmente
Finalmente, a impessoalização também se manifestou em nos- apagado, podendo ser apenas eventualmente recuperado no contexto
so corpus através de construções que não contêm marca alguma de pragmático.
pessoa. É o que denominamos, à falta de melhor termo, referência Isto posto, é possível postular que os recursos de
“zero”. A ausência de marca tende a ocorrer novamente em enunci- impessoalização levantados neste trabalho podem ser distribuídos
ados cujas formas verbais estão no infinitivo ou no subjuntivo, como numa escala que vai do pólo [- impessoal], representado pelo nós/a
demonstram os exemplos 8) e 9). As estruturas passivas também se gente (= eu + todos), ao pólo [+ impessoal], representado por zero,
prestam muito bem à expressão da impessoalidade e parece poder localizando-se as demais formas em níveis intermediários, ainda não
ser usada de modo mais ou menos intencional, num discurso mais delimitados neste estágio da pesquisa.
planejado. O deslocamento do agente para uma posição periférica Essas duas observações, particularmente o postulado da exis-
no enunciado favorece o seu apagamento e nem sempre é fácil recu- tência de uma escala de impessoalização, refletem uma manifestação
pera-lo no contexto pragmático, como se pode verificar em 10). É da atuação do princípio de iconicidade, formulado na perspectiva de
interessante notar também que, nos três casos, uma indeterminação um continuum, que prevê estruturas iconicamente motivadas em di-
com o pronome “se” (em vez do “zero”) é sempre plausível. Os frag- ferentes graus.
mentos (7) ,(8) e (9) exemplificam esse tipo de impessoalização. Essa análise não poderia ser realizada à luz da gramática tra-
dicional, que analisa formas isoladas do seu contexto de uso. A teo-
7) “ ... outra coisa pra 0 pensar são os presídios ... o cara fica lá ria funcionalista mostra-se capaz de dar conta dessas questões não só
dentro mofando ... torrando dinheiro ... nosso dinheiro ... o nosso porque se preocupa com a língua em uso, mas sobretudo porque aco-
imposto ... por que num 0 põe o cara pra trabalhar na agricultura? lhe a hipótese de que a linguagem se adapta às necessidades comuni-
0 coloca o cara pra produzir ... 0 faz com que ele aprenda uma cativas dos seus usuários e a gramática deve refletir essas adapta-
profissão?” (Epa, 2ºG, M). ções. Nessa perspectiva, as formas codificadoras da impessoalização
foram analisadas em sua variedade, não enquanto mera mudança
8) “ ...então acho que se tem ... justamente ... é questão de O ter mais “estilística”, mas enquanto produto de estratégias utilizadas para pro-
investimento na educação ... se O investisse mais na educação ... no duzir comunicação eficiente. Ou seja, a variação aparece como pista
ensino público ... obviamente teria:: porque a capacidade desse pes- para se observar algo que vai além do jogo formal, a saber, o atendi-
soal é a mesma do particular ...” (Epu, 2º G, M). mento aos propósitos comunicativos dos usuários da língua.
Como contribuição para o ensino de língua materna, espera-
9) “ ... nós vemos que o nosso país é um país onde mais existe presi- se que os resultados deste trabalho possam suscitar o desenvolvi-
dente ... a política :: num é coisa levada a sério ... onde as pessoas mento de uma postura crítica do professor frente ao ensino da gramá-
não são levadas a sério ...” (Epa, 3ºG, F). tica, mais especificamente no que diz respeito ao uso de formas im-
pessoais, que vêm se generalizando na língua como alternativas às
Considerações finais formas tradicionais.
Os resultados obtidos a partir desta análise preliminar pare-
Referências bibliográficas
cem indicar que:
1º) o uso de formas impessoalizadoras no discurso é motivado, entre
BOLINGER, D. Meaning and form. London: Longmans, 1977.
outras fatores, por necessidades comunicativas e expressivas surgidas
CROFT, W. Typology and Universals. Cambridge: Cambridge
na interação verbal. Nesse sentido, quanto mais impessoal o recurso
University Press, 1990.
de codificação do sujeito/agente, tanto menos transparente a relação
CUNHA, Celso. Gramática da língua portuguesa. Rio de Janeiro:
entre forma e conteúdo;
FENAME, 1976.
2º) a impessolização apresenta-se como um domínio funcional esca-
FURTADO DA CUNHA, M.A. (org.). Corpus Discurso & Gramáti-
lar, uma vez que as formas que a codificam exibem (ou representam)
ca: a língua falada e escrita na cidade do Natal. Natal: EDUFRN,
diferentes graus de impessoalidade.
1998.
Das estratégias examinadas, consideramos nós/a gente (igual
GIVÓN, Talmy. Syntax – a functional-typological introduction. V. I
a eu + todos) como aquelas que exibem um menor grau de
e II. Amsterdam: Jonh Benjamins, 1984.
impessoalização, pois a indicação de uma pessoa “eu” (agente) en-
OLIVEIRA, N.F. de. Estratégias discursivas em relatos de opinião
contra-se aí pressuposta, ainda que diluída na amplitude do “nós” /
oral: a manifestação da subjetividade. Dissertação de Mestrado.
“a gente”.
Natal, UFRN.
Na medida em que se alarga a referência (do agente),
_____. “Limitações da gramática tradicional quanto aos recursos de
indeterminando-a, parece haver uma ascendência progressiva no uso
impessoalização”. In: MOURA, D. (org.). Os múltiplos usos da
de formas de maior grau de amplitude e, portanto, mais impessoais.
língua. Maceió: EDUFAL, 1999, páginas 175-178.
Desse modo, no extremo oposto ao nós, a ausência de marca consti-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 589


Estratégias discursivas de superlativação
José Romerito Silva
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Considerações iniciais Segundo Halliday (1976, 1985), as funções da linguagem estão


divididas em ideacional, interpessoal e textual. A função ideacional
A atribuição de intensidade a adjetivos e a advérbios é um tem uma base experiencial-cognitiva, já que procura refletir, através de
recurso bastante utilizado nas línguas em geral. Em português, os conteúdo proposicional significativo, a concepção do indíviduo acer-
modos mais conhecidos de manifestação desse fenômeno são aque- ca da realidade com que está em contato. A função interpessoal tem a
les oficialmente incorporados à tradição gramatical, a saber: o analí- ver com o estabelecimento e a manutenção das relações sociais. É,
tico e o sintético, conforme os exemplos que se seguem: pois, de natureza intersubjetiva, revelando como se dá o intercâmbio
entre os interlocutores. A função textual aponta para o estabelecimen-
(1) “A torre é muito alta.” (Cegalla, 1984, p. 143); to de vínculos da linguagem consigo mesma e com as características da
(2) “Paulo é inteligentíssimo.” (Cunha & Cintra, 1985, p. 248). situação em que é utilizada.

Por outro lado, existem outras estratégias de expressão super- Análise de alguns dados
lativa notadamente distintas das tradicionais. São as que se codifi-
cam através de mecanismos morfossintáticos extremamente mais Desfazendo-se o credo da maioria dos gramáticos, o superlati-
complexos e incomuns, os quais indicam haver determinados fatores vo intensivo não se refere sempre a algo que está em seu grau mais
que motivam o seu uso. Esses recursos ainda são quase que exclusi- elevado possível; também não significa que deva prescindir de qual-
vos das situações de fala espontânea e informal, em que se observa quer parâmetro comparativo com outra entidade. Ao contrário, pode
alto índice de criatividade e subjetivismo. Eis algumas amostras co- representar diferentes níveis conceptuais de graduação e supõe partir
lhidas do Corpus Discurso & Gramática - a língua falada e escrita de alguma noção que se tome como referencial comparativo. Assim,
na cidade do Natal (Furtado da Cunha, 1998): o exagero na intensividade decorre do fato de que, na concepção do
falante, a partir do contato deste com a realidade, um determinado
(3) “Eu acho isso que o namoro de hoje está muito avançado de-
elemento é julgado como estando em um patamar nocional superior
mais...” (Relato de opinião escrito, aluna da 8a série, p. 363);
ou inferiormente ainda mais estendido em relação a outro. Isso está
(4) “... eu só conheço... quer dizer eu num conheço... só vejo de
vinculado à manifestação de conteúdo semântico-cognitivo, ou seja,
longe... achei [o rapaz] bem bonitão...” (Relato de opinião falado,
à função ideacional da linguagem.
aluna da 8a série, p. 339);
Invocando o subprincípio icônico da quantidade, ao qual se
(5) “... Pelotas é uma cidade quase do tamanho de Natal... linda...
alia a complexidade semântica, é inegável que, mesmo nas constru-
linda... linda... linda...” (Narrativa experiencial falada, aluno do 3º
grau, p. 102)”. ções tradicionais do superlativo, a motivação icônica é, de certo modo,
transparente, uma vez que, tanto na forma analítica como na sintética
Não obstante a essas constatações, as abordagens existentes há um morfema a mais (um advérbio ou um sufixo intensificadores),
sobre isso oferecem pouco esclarecimento, limitando-se a uma des- refletindo o acréscimo de um traço semântico (elevação de grau) à
crição parcial e normativa. Em virtude disso, lanço-me, neste traba- noção básica do vocábulo. Tem-se, assim, a relação motivada entre
lho, a um levantamento e a uma análise desses casos, procurando conteúdo e expressão. Observe-se o fragmento textual a seguir:
identificar as pressões funcionais subjacentes ao seu emprego e for-
necer subsídios para o redimensionamento da ação docente. (6) “... então ele [o floculador] vai girando e isso... essa mistura len-
Utilizo como referencial analítico os postulados teórico- ta... essa velocidade diminuída e essa mistura que ela vai fazendo...
metodológicos do funcionalismo lingüístico contemporâneo, confor- vai ajudando a formar os flocos que eu disse... né... aí... ele passa
me definidos por Halliday, Givón, entre outros. Dentro desse quadro para o segundo floculador... isso ele chama floculador um... floculador
teórico, selecionei o princípio de iconicidade e as funções da lingua- dois em diante... aí ele passa pro dois vai ser menor do que do um...
gem, procurando considerá-los como um conjunto de parâmetros (...) então se reduz a velocidade do giro lá do mecanismo... aí vai pro
analíticos cujos conceitos estão entrelaçados e interdependentes. terceiro floculador... floculador três aí a velocidade é menor ainda...
mas é bem pequena mesmo a velocidade... você mesmo vê assim a
Breves esclarecimentos teóricos água girando bem devagarzinho... certo? (Relato de procedimento
oral, aluno do 2o grau, p. 197).
De uma maneira geral, iconicidade em lingüística é definida
como a correlação natural entre o código lingüístico e seu designatum As expressões gradientes da velocidade dos floculadores, atra-
(Givón, 1995; Haiman, 1980). Portanto, esse princípio vincula-se vés das quais se quer passar a idéia de decréscimo da aceleração até
diretamente à idéia da não-arbitrariedade na linguagem, vista aqui um ponto excessivamente reduzido, partiram de um termo adjetivo
sob uma ótica moderada. Dentro dos subprincípios da iconicidade, de noção básica - “lenta” (ou “diminuída”). Depois intensificou-se
destaco o da quantidade, ao qual também se prende o da complexi- essa noção para menos, codificada com o comparativo intensivo de
dade semântica. Por esse subprincípio, estabelece-se que: quanto inferioridade - “menor do que” - até chegar a um grau de lentidão
maior for a quantidade de informação, maior será a quantidade de superelevado em relação aos seus antecedentes, formatado com ma-
forma para codificá-la (Votre, 1994). Aqui, tomo esse subprincípio terial lingüístico mais extenso e enfático (“menor ainda... bem pe-
também numa perspectiva qualitativa, uma vez que, na manifestação quena mesmo... bem devagarinho”). Significa que os variados está-
de superlatividade, tem-se o acréscimo de um traço nocional ao adje- gios de gradação tendem a ser verbalizados através de recursos
tivo/advérbio em termos graduais, resultando em níveis diversos de morfossintáticos que retratem essas nuances semanticamente escala-
complexidade cognitiva.

590 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


res. Tal fenômeno colabora na confirmação do princípio de iconicidade contra-argumento, ela aponta para o caso de alguém que é extrema-
na linguagem. Nesse sentido, o desejo de superelevar uma determi- mente mau não poder recuperar-se instantaneamente e passar a ser
nada noção muito além da intensidade já referida refletiu-se na cons- bom só porque mudou de opção religiosa. Fica aí implícito, ainda, o
trução verbal acentuadamente majorada. Desse modo, ficou transpa- apelo ao conhecimento de mundo do interlocutor. Quer dizer, a
rente o subprincípio icônico da quantidade, principalmente no que informante recorre à concepção cristã, socialmente partilhada, de
tange à complexidade semântica, no sentido de que, ao intensificar que todos são pecadores, mas há uns que procuram levar uma vida
algo, de certo modo, o falante adiciona informação, uma vez que, equilibrada e outros que vivem dissolutamente. Ora, para aque-
fazendo isso, fornece uma noção a mais sobre algum aspecto relaci- les, segundo ela, a regeneração já é difícil, quanto mais para os
onado a um nome ou um verbo. Tem-se, assim, a combinação acrés- que são extremamente maus! Isso justifica o sobrexcesso no atri-
cimo informacional/ampliação conceitual associada a mais material buto (“ruim... ruim... ruim... ruim”), que serve como ênfase ex-
lingüístico, o que desemboca na relação conteúdo/expressão em ter- pressiva e reforço argumentativo para contradizer a doutrina
mos quantitativos e qualitativos. Esse procedimento, evidentemente, assembléiana quanto ao fato de todo indivíduo poder facilmente
está vinculado a outros fatores cognitivos, como a intenção de tornar ser “salvo” de uma hora para outra.
o item encarecido perceptualmente mais destacado, contrastando-o A aplicação de características sobrelevadas em nomes ou ver-
em relação a outro(s) e, assim, atrair a atenção do interlocutor, em bos tem, ainda, a função de participar na coesividade textual, apon-
especial, para alguma coisa do assunto em foco, realçando o conteú- tando para outras entidades endofóricas circunvizinhas e auxiliando
do principal. Veja-se, ainda, o seguinte exemplo: no estabelecimento das relações co-textuais. Desse modo, um ele-
mento é esclarecido em função do outro, o que os torna
(7) “... parece que é:: eu num sei o nome deles... é da desses rapaz da interdependentes e co-participantes num determinado conjunto de
Kome Kana que dançam... eu nem conheço não... tem uns que chama signos. Conclui-se, então, que a função textual da linguagem se con-
de galego... um de galego... o outro... eu num sei não... eu sei que tem figura na perspectiva de atendimento às demandas das outras fun-
um bem bonitinho... que é parecido com:: com um paquera que eu ções co-irmãs: a ideacional e a interpessoal. Demonstrações disso
tenho... aí tá... aí eu tava sempre olhando... aí chegou... e chegou meu podem ser encontradas nos trechos (9) e (10):
paquera... ô bicho bom danado... bonitão... forte... aí eu sempre
paquero com ele...” (Relato de opinião oral, aluna da 8a série, p. 355). (9) “... você vê que a gente adota um pre/ elege um presidente... ele
não é solução pros nossos problemas... pelo contrário... a gente pen-
Aí também fica evidente o recurso a uma forma de maior rele- sa que vai ser... mas aí dificulta mais as coisas... o salário diminui...
vo intensivo, se comparada com outra também superlativada. Parece as coisa aumenta... a inflação sobe lá pra cima... pronto... sobe lá pra
bastante difícil não reconhecer que o desejo da informante em cima... olha que coisa... vai subir pra onde? pra baixo? mas... a... é
enaltecer as qualidades físicas e o sex-appeal do seu paquera acima uma situação super difícil sabe? super difícil mesmo...” (Relato de
das do outro (apenas “parecido” com ele) motivou a “escolha” de opinião falado, aluna do 2o grau, pp. 255-6).
diferentes estruturas lingüísticas, as quais revelam claramente a alta
intensidade gradual de uma em relação à outra. Quer dizer: o rapaz (10) “... Eu acho isso que o namoro de hoje esta muito avançado
parecido com o paquera da locutora é considerado por ela como pos- demais principalmente esses rapazes que usa brinco, cabelo compri-
suidor de uma beleza além do normal (“bem bonitinho”). Contudo, do e tatuagem... Na minha opinião o namoro não presta tá muito
na referência aos atributos do seu paquera, considerados superiores, tarado os rapazes de hoje só quer fica pegando nos seios na bunda.”
a informante expressa-se de modo mais enfático e extremamente ori- (Relato de opinião escrito, aluna da 8ª série, p. 363).
ginal (“ô bicho bom danado... bonitão”).
A expressão do superlativo absoluto não se limita apenas à No exemplo (9), a marca sobrecarregada do adjetivo (“super
manifestação de conteúdo semântico, mas está também diretamen- difícil... super difícil mesmo”) é uma espécie de retomada avaliativa
te vinculada às potencialidades expressivas da língua, através das de tudo o que a locutora havia dito antes. Esse juízo de valor, de
quais o falante expõe um estado de sua consciência e exerce um natureza anafórica, justifica-se em sua relação com o co-texto, isto é,
juízo de valor. Por outro lado, essa expressividade não é um fim em na manifestação de desgosto e frustração por não se ver nada resolvi-
si mesma, mas encontra-se a serviço de determinadas intenções do após uma eleição presidencial. É, na verdade uma observação que
retórico-argumentativas do locutor; quero dizer, do seu desejo em imprime um tom de resumo e conclusão apreciativa ao que foi ex-
tornar sua informação relevante e, assim, impor-se frente ao posto.
interlocutor, na tentativa de fazer com que este assuma o mesmo No (10), a expressão superlativa “muito avançado demais” tem
ponto de vista. Desse modo, é válido afirmar que o recurso à a função de antecipar o que será dito logo a seguir sobre o “namoro
intensividade é um ato de fala não apenas intimamente ligado à de hoje”, que, na opinião da autora, “não presta”. Desse modo, esta-
função ideacional da linguagem mas também à interpessoal, tal como belece-se uma inter-relação, de cunho catafórico, entre aquele atri-
se pode ver no trecho abaixo: buto superintensificado e as informações esclarecedoras quanto a
pegar nos seios e na bunda, as quais dão sentido ao exagero aplicado
(8) “... o que a gente vê demais e que tá sendo apregoado por aí é que na avaliação introdutória, servindo-lhe como desenvolvimento in-
a pessoa é ruim... ruim... ruim... ruim... aí resolve ficar bom e passa formativo.
para outra religião... né... no caso... tão procurando a Assembléia de
Deus... porque é a única que diz que na hora que você se arrepende Considerações finais
de seus pecados... você passa a ser bom... automaticamente... eu acho
que não é assim... sabe Sheila? Não é você chegar e dizer assim... Com respeito aos mecanismos de superlativo absoluto, é ine-
vou ficar bom agora... e de repente ficar bom...” (Relato de opinião gável que as construções canônicas - analítica e sintética - figuram
oral, aluna do 3º grau, p. 65). entre os casos aceitos como regularizados no sistema lingüístico por-
tuguês. Todavia, a manifestação do grau intensivo é suscetível a vári-
Nesse trecho, a locutora procura desautorizar o discurso da os níveis de elevação e nuances semânticas, em geral, subordinados
Assembléia de Deus quanto à possibilidade de qualquer indivíduo à subjetividade do falante e a seus interesses discursivos. Isto, é ób-
transformar-se numa boa pessoa de repente. Para fundamentar seu vio, não poderia ser realizado através dos mesmos recursos, o que,

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 591


forçosamente, resulta na necessidade de se encontrar outros meios Referências bibliográficas
que o possibilitem. Assim, a ampla variedade de expressões superla-
tivas incomuns, observada nos registros textuais do Corpus, é decor- CEGALLA, D. P. Novíssima gramática da língua portuguesa. 25.
rente da tentativa criadora dos usuários em encontrar a forma mais ed. São Paulo: Nacional, 1984.
icônica e convincente possível de se comunicar e interagir com o CUNHA, C. & CINTRA, L. Nova gramática do português contem-
porâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
outro, presumivelmente, em face da empobrecida funcionalidade das
FURTADO DA CUNHA, M. A. (org.). Corpus Discurso & Gramá-
construções antecedentes.
tica - a língua falada e escrita na cidade do Natal. Natal:
Essas reflexões pretendem contribuir para que se criem situ- EDUFRN, 1998.
ações de ensino-aprendizagem que sejam mais sintonizadas com a GIVÓN, T. Functionalism and grammar. Amsterdam/Philadelphia:
realidade lingüística atual, em particular no que se refere ao empre- John Benjamins, 1995.
go do superlativo absoluto. Não significa, entretanto, que se devam HAIMAN, J. The iconicity of grammar: isomorphism and motivation.
abandonar o contato com os padrões canônicos e o estudo destes. In: Language. v. 56, n. 3, 1980. pp. 515-40.
Pelo contrário, é preciso expor os estudantes à multiplicidade das HALLIDAY, M. A. K. An introduction to functional grammar.
construções existentes, mormente aquelas que eles ainda não domi- London: Edward Arnold, 1985.
nam, em todas as formas de manifestação discursiva, para que pos- ________. Estrutura e função da linguagem. In: LYONS, J. (org.).
Novos horizontes em lingüística. São Paulo: Cultrix, 1976. pp.
sam não apenas perceber as particularidades semânticas e funcio-
134-78.
nais dos diversos recursos, mas, sobretudo, aperfeiçoar sua compe- VOTRE, S. J. Iconicidade, gramaticalização e cognição. Rio de Ja-
tência comunicativa, encarando com sucesso as atividades de leitu- neiro: UFRJ, 1994. (mimeo).
ra e produção textual.

592 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Variação fonética decorrente de interferência em
língua de contato: /R/ em travamento silábico
Januacele da Costa
Universidade Federal de Alagoas - UFAL

ABSTRACT – This paper leads with the phonetic variation in a situation of linguistic contact. We observe the variation of /R/ in the variety of Portuguese
spoken by the Fulni-ô Indians and make two considerations about the phenomenon: the scientific and the social implications.
PALAVRAS-CHAVE – Contato lingüístico, interferência, fonologia, Ya:thê.

Introdução série de fatos observados, como, por exemplo, o fato de que a vogal do
Os Fulni-ô são um grupo indígena brasileiro cuja reserva está núcleo silábico não pode ser longa nem nasal. Desse modo, podemos
localizada no município de Águas Belas, Sul do Estado de dizer que os dois tipos constituem sílaba pesada, dado que v: e vâ não
Pernambuco. Esses índios destacam-se entre os demais povos indí- aceitam uma consoante na coda.
genas do Nordeste por serem os únicos em toda a região a terem Os sons que podem preencher a posição de coda silábica são:
preservado sua língua materna, o Ya:thê. A língua é considerada per- a) não-contínuas surdas, simples e aspiradas:[t], [k], [ ], [th], [kh].
tencer ao tronco lingüístico Macro-Jê, segundo Rodrigues (1986) e b) nasal labial: [m]
isolada em relação a qualquer outra família lingüística. Ela tem sido c) contínuas simples: [f], [s], [S]
objeto de estudo de diversos trabalhos em diferentes perspectivas: d) africadas: [ts] e [t]
Meland (1967); Meland (1968); Lapenda (1968); Barbosa (1991); e) lateral: [l]
Costa (1993); Costa (1994). f) aproximantes; [w], [y] e [h]
Aqui, trataremos de um fato particular: a realização do fonema Todas essas consoantes em coda silábica apresentam transi-
/R/ do Português quando realizado por falantes Fulni-ô, que têm como ção aberta com a consoante seguinte. Na verdade, consoantes em
língua materna o Ya:thê, um sistema diferente do Português. Para coda silábica são, na maior parte, resultado do apagamento de uma
essa tarefa duas causas nos impulsionam. A primeira diz respeito a vogal não acentuada, que, ao cair, deixa um tempo curto, um resíduo
uma necessidade de cunho mais científico, com a tentativa de com- vocálico que passa a se realizar em harmonia: a) com a vogal elidida;
provar como fatos de um sistema – no nosso caso, fonético-fonológico ou b) com a vogal da sílaba seguinte:
– pode interferir em outro sistema com o qual está em contato; a
segunda, de cunho, por assim dizer, social, procura demonstrar que a (6) /dade+ka/ → [dati.ka] “chefe”
estigmatização que se manifesta quando grupos majoritários ou fa- (7) /e kaka+ka/ → [e.kaki.ka] “é bom”
lantes de uma língua ou dialeto de maior prestígio não se justificaria (8) /e to.ka/ → [e.t.kwa] “matar”
se, sobretudo, professores dessa língua conhecessem os fatos (9) /thafa+kee+ka/ → [thafi.kei.kja] “gato”
lingüísticos, a partir de uma argumentação científica consistente, que (10) /ts.ka/ → [ts.ka] “homem”
são as causas dos aspectos de pronúncia desprestigiadores da língua (11) /e ti+ka/ → [e.ti.kja] “chegar”
L (Fishman, 1971)1 . (12) /tuli+ka/ → [tuli.kja] “subir”
(13) /a.we.de/ → [aw.de] “todos”
1. A realização do // na fala Fulni-ô (14) /thayi+saka/ → [thay.sa.ka] “macaco”
Os falantes Fulni-ô, quando utilizando o Português, realizam o (15) /i o+ka+hele/ → [djo.kahe.le] “eu estou indo”
fonema // em travamento silábico, em meio de palavra, do seguinte
modo: Enfatizamos aqui o comportamento de /l/ no sistema fonológico
do Ya:thê, por ser ele a única líquida da língua e a que mais se apro-
Pronúncia regional Pronúncia Fulni-ô xima, foneticamente falando, do fonema /R/ do sistema fonológico
(1) [mhkadu] → [mikadu] “mercado” do Português.
(2) [pohke] → [poike] “porque” Os exemplos seguintes mostram a realização de /l/ quando em
(3) [vhgoa] → [vigoa] “vergonha” posição de coda silábica em Ya:thê:
(4) [phdi] → [pidi] “perdi”
(5) [phtugejs] → [pitugej] “português” (16) /palnoka/ → [palinoka/ “Recife”
(17) /tElne] → [tEline] “desmanchar”
A realização apresentada pelos Fulni-ô pode ser descrita do (18) /kili+ka/ → [kilikja] “subir”
seguinte modo: a pronúncia [h] da fala regional passa a [R] na fala (19) /kfala+ka/ → [kfalÃka] “escutar”
Fulni-ô. A transição entre esse [R] e a consoante em onset da sílaba (20) /kfala+se/ → [kfalÃse] “lembrar”
seguinte, por sua vez, é aberta: uma vogal reduzida, a que Malmberg (21) /e lo+ka/ → [elÃkwa] “defecar”
(1963) chamou som parasítico, é aí introduzida.

2. Alguns fatos do sistema fonético-fonológico do Ya:thê


No inventário de fonemas do Ya:thê, não existe o fonema /R/
. Também não há este som do ponto de vista fonético. O fonema da 1 Fishman (1971:88) define como L (Low), numa situação diglóssica, como é
o caso do contato Ya:thê-Português, a língua de menor prestígio, “emprega-
língua que mais se assemelha foneticamente ao /R/ é /l/.
da para temas cotidianos, para a casa, a família e o meio de trabalho manual”,
O padrão silábico do Ya:thê permite que apenas uma posição em oposição à H (High), que é usada para o ensino e outros aspectos da
da coda silábica seja preenchida. Essa predição é atestada por uma cultura, língua de maior prestígio.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 593


Observamos que, no caso das palavras cuja estrutura interna plos (24), (25) e (26), (Costa, 1993), que ainda permanecem na língua
pode ser recuperada, /l/ em coda silábica em meio de palavra é o da forma como nela entraram:
resultado da queda de uma vogal não acentuada em fronteira de
morfema, como nos exemplos (18), (19), (20) e (21), acima. (24) [kitu] [kliitu] “Cristo”
Nesses casos, um processo morfofonológico apaga a vogal não (25) [igre
a] [klea] “igreja”
acentuada final da raiz verbal na fronteira com o morfema de modo (26) [pbri] [puli] “pobre”
indicativo. Há uma transferência de traço de lugar da vogal elidida
para a consoante /k/ do sufixo, palatalizando-o, (18), ou labializando- Conclusão
o, (21). Ao mesmo tempo, o traço de lugar permanece junto à conso-
ante deixada na coda, que, então, ressilabifica com a vogal da sílaba Resumindo os fatos até aqui discutidos, temos o seguinte:
precedente. Cria-se, assim, uma sílaba fechada, mas a consoante da 1) não há // em contraste com /l/ no sistema fonológico do
coda é pronunciada com esse resíduo vocálico, parecendo, assim, Ya:thê;
velarizada. 2) em coda silábica, /l/, como as demais consoantes do Ya:thê,
Como vimos acima, exemplo (18), se a vogal que cai é coronal, com exceção das aproximantes /w/ e /j/ , apresentam um resíduo
a consoante seguinte é palatalizada, dado que é o traço coronal que vocálico, mantendo a transição aberta com a consoante do onset silá-
espraia; se, porém, essa vogal apresenta o traço labial, a consoante bico seguinte;
labializa-se. Nesse ponto, poderíamos, a título de simples especula- 3) não há sílaba fechada final, novamente com exceção daque-
ção, perguntarmo-nos se é válido postular uma cisão do traço, dado las em que, na coda, aparecem /w/ ou /j/;
que ele é retido junto à consoante precedente, mas também palataliza 4) /l/ substituiu o /R/ do Português no processo de nativização.
ou labializa a consoante seguinte. Ou, em outros termos, se o traço Daí podermos concluir que //, pronunciado [ri] em coda silá-
espraia bidirecionalmente. bica pelos falantes Fulni-ô, é um caso de transferência da língua
Por outro lado, quando a vogal elidida é uma dorsal, (19) e materna – Ya:thê – para a língua de contato – Português. O falante
(20), ocorre apenas a manutenção do traço dorsal junto à consoante Fulni-ô apresenta realizações tais como [pdi] “perdi”, [maiku]
deixada sozinha e que passa à coda da sílaba precedente, mas não a “marco”, [aideja] “aldeia” ou [puritudu] “por tudo” porque trans-
dorsalização da consoante seguinte, a do sufixo de modo indicativo. fere para o Português, teoricamente segunda língua, já que a sua base
A observação desses fatos permite-nos fazer duas predições: articulatória é a do Ya:thê, características do sistema fonológico da
1) um traço pode cindir-se e espraiar em duas direções simultanea- sua língua que parecem confirmar os três componentes básicos dos
mente; 2) as vogais /a/, /u/, /o/ e //, que em trabalho anterior (Costa, sistemas fonológicos de modo geral: o inventário de fonemas da lín-
1999), havíamos considerado a primeira dorsal e as demais labiais, gua; a fonotática (estrutura silábica, restrições de combinação de sons);
deveriam ser agrupadas sob um único traço, já que parecem formar e os processos fonológicos (e morfofonológicos), que produzem ou
uma classe natural desde que atuam juntas no mesmo processo permitem a produção das variações.
morfofonológico, com resultados semelhantes.
Ao dizermos processos semelhantes e não iguais, abrimos a Referências bibliográficas
possibilidade de considerar um certo grau de diferença entre a dorsal
/a/ e as labiais /u/, /o/ e //. Enquanto essas últimas tanto deixam o BARBOSA, E. A. Aspectos fonológicos da língua Yatê. (Dissertação
traço [+posterior] sobre a consoante precedente quanto o traço [labi- de Mestrado). Brasília: UnB, 1991.
al] sobre a consoante seguinte, a primeira apenas efetua o primeiro COSTA, J. F. Bilingüismo e atitudes lingüísticas interétnicas. As-
processo. Isso confirmaria a hipótese de que /a/ não comporta o traço pectos do contato Português-Ya:thê. (Dissertação de Mestrado).
[labial], mas as quatro vogais formam uma classe natural pelo Recife: UFPE, 1993.
compartilhamento do traço [+posterior]. COSTA, J. F. Ya:thê, a última língua nativa no Nordeste do Brasil.
Uma restrição do sistema fonológico do Ya:thê quanto a con- Aspectos morfo-fonológicos e morfo-sintáticos. (Tese de Dou-
soantes na coda silábica diz respeito a sílabas finais. Sílaba C0VC torado). Recife: UFPE, 1999.
não é permitida em posição final de palavra. No único caso em que se FISHMAN, J. Sociolinguistique. Paris: Nathan, 1971.
encontra esse tipo de sílaba, a consoante da coda é /j/. Parece acerta- GUSSENHOVEN, C. e JACOBS, H. Understanding phonology.
do afirmar que /j/, nessa posição, é o resultado de um processo London: Arnold, 1998.
fonológico que apaga vogal final e permite a adjunção da aproximante LAPENDA, G. Estrutura da língua Iatê. Recife: Imprensa Universi-
à sílaba precedente. tária, 1968.
Um argumento para essa interpretação vem dos empréstimos MALMBERG, B. Phonetics. New York: Dover Publications, 1963.
de Português para o Ya:thê. Uma palavra terminada por sílaba trava- MELAND, D. Fulni-ô grammar. SIL, AL 26, 1968.
da em Português passa para o Ya:thê do seguinte modo: a consoante MELAND, D. Fulni-ô phonology. SIL, AL 25, 1967.
da coda ressilabifica pela criação de uma vogal harmônica, produ- RODRIGUES, A. D. Línguas brasileiras. Para o conhecimento das
zindo, desse modo, a sílaba ótima na língua, que é CV, conforme línguas indígenas. São Paulo: Loyola, 1986.
exemplos (22) e (23), abaixo:

(22) /pa.pl/ [wa.p.la] “papel”


(23) /a.hoz/ [a.ho.so] “arroz”

Já vimos que o sistema fonológico do Ya:thê, quando coloca-


do em contraste com os sistema fonológico do Português, apresenta 2 “When faced with the task of pronouncing an expression in a foreign language
uma lacuna notável: a falta de vibrantes, mais especificamente da while using only the phonology of their native language, speakers need to (a)
vibrante simples //. interpret each of the segments in the foreign word in terms of the native segment
No processo de nativização2 , a lacuna no sistema fonológico system; and (b) make sure that no strings arise that break the syllable structure
do Ya:thê foi preenchida com a transferência de /l/, que passou a constraints or any other phonotactic constraints of his language”. (Gussenhoven
substituir //, como mostram os exemplos de empréstimos, exem- and Jacobs, 1998:40).

594 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Slogan político : um gênero
discursivo da modernidade
Roberto Leiser Baronas (UNEMAT/PG-UNESP)

RÉSUMÉ: Ce travail a comme but présenter la constitution historique du genre discusif slogan politique. Pour cela, nous discuterons, tout d’abord, en
nous basant sur les idées de Bakhtine (1992), pourquoi l’on affirme que le slogan politique se constitue comme un genre discursif singulier. Après, en
prenant compte les idées de Berman (1986), e Foucault (1999), nous proposons que le genre discursif slogan politique est un produit tipique de la modernité,
ce qui entraîne dire qu’il se constitue encore comme un des moyens linguistiques qui soutiennent/renforcent l’idée de ce qui est être moderne.
PALAVRAS-CHAVE: Slogan político ;texto ; gênero discursivo ;modernidade

Slogan político : o caminho da pesquisa Escócia ‘o grito de guerra de um clã’. Suas origens, contudo, podem
ser buscadas muitos séculos antes de Cristo. Na cidade italiana de
São relativamente poucos os trabalhos que tomam o slogan Pompéia, destruída por uma violenta irrupção do Vesúvio em 24 de
como objeto de estudo, quer seja de um ponto de vista psicológico, agosto de 79 d. C. era uma prática de seus moradores a grafitagem de
lingüístico, filosófico ou discursivo. O mais conhecido desses estu- propaganda eleitoral e de anúncios de peças teatrais nas paredes exter-
dos é o de Olivier Reboul, cujo título é exatamente O Slogan. Nele, nas de suas casas. Provavelmente, esses grafites estejam nas raízes da
Reboul conceitua e analisa os mais diversos tipos de slogans (publi- árvore genealógica dos modernos slogans políticos e publicitários.
citários, religiosos, pedagógicos, políticos, entre outros), produzi- Somente no século XVI, os ingleses adotam o termo, trans-
dos durante os dois primeiros terços do século passado, em alguns formando-o no século XIX, em enunciado político, muito similar a
países da Europa (França, Itália e Alemanha) e da América do Norte uma palavra de ordem. É nesse momento que irrompe o slogan
(Estados Unidos e Canadá), verificando, principalmente, suas ori- político como um enunciado distinto dos demais. Com o passar dos
gens, suas funções na sociedade, suas relações com os destinatários, anos, o slogan começa a se deslocar do campo da política indo se
suas relações com as figuras da retórica, suas principais diferenças e alojar também no campo da publicidade. Provavelmente, as ra-
similaridades com outros enunciados de curta extensão (provérbios, zões que possibilitaram tal irrupção estejam diretamente relaciona-
palavras de ordem, clichês, divisas, chistes), sua relação com o in- das com o advento da Revolução Industrial, ocorrida na Grã-
consciente dos destinatários e também o seu poder de se fazer crer. Bretanha, entre os séculos XVIII e XIX, uma vez que, com a passa-
O autor conceitua o slogan como : gem da oficina artesanal para a fábrica passou-se a produzir merca-
dorias em larga escala, exigindo um mercado cada vez mais cres-
uma fórmula concisa e marcante, facilmente repetível, polê- cente de consumidores. Com isso, a concorrência entre as fábricas
mica e frequentemente anônima... que age pelo que não diz, desencadeou todo um conjunto de estratégias publicitárias com
por aquilo que lhe permite dissimular sua natureza de slogan objetivo enredar o consumidor, levando-o a comprar. Irrompe en-
e de apelar para o que há de infantil em nós (Reboul, 1975, p. tão, a moderna publicidade como mais um dos instrumentos que
39-40). ajudam na vendas dos produtos.
Interessante que paralelo a esse processo, os candidatos a su-
Pela conceituação que o autor faz do slogan, podemos perce- frágios eleitorais, que na sua grande maioria eram os propietários
ber que seu trabalho está ancorado em duas perspectivas teóricas : dessas indústrias, passaram a adotar em suas campanhas eleitorais as
na Pragmática da escola de Oxford e na Psicanálise freudiana. Nos- mesmas estratégias de marketing de venda de seus produtos. Assim,
so estudo porém, busca subsídios teóricos nas formulações de Mikail seus nomes se transformaram em mais um dos produtos a serem ven-
Bakhtin (1992), de Michel Foucault (1999), e de Marshal Berman didos aos consumidores/eleitores. E o slogan político como mais dos
(1986), uma vez que, diferentemente das perspectivas adotadas por recursos de venda desses candidatos. Irrompe aqui, a economização
Reboul, estas postulações articulam o lingüístico ao sócio-histórico, do slogan, uma espécie de migração do político para o publicitário.
evidenciando que ‘todas as esferas da atividade humana ... estão sem- Em 1927, já com o característico publicitário misturado ao
pre relacionadas com a utilização da língua ... que elabora seus tipos político tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos, o slogan po-
relativamente estáveis de enunciados’ (Bakhtin, 1992, p. 279), o lítico irrompe na França. Seu significado, contudo, possui um valor
que implica em dizer que todo discurso para se legitimar em nossa pejorativo, justamente por estar amalgamado à propaganda. É digno
sociedade deve se inscrever numa determinada ordem discursiva, de nota que essa carga depreciativa do slogan permanece até os nos-
passando por princípios de controle e de delimitação. ‘Sabe-se que sos dias. Para comprovarmos o que estamos enunciando, basta dei-
não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em xarmos as comportas de nossa memória discusiva se abrirem e lem-
qualquer lugar circunstância, que qualquer um, enfim, não pode fa- brarmos, por exemplo da Campanha da Fraternidade, que ao longo
lar de qualquer coisa’ (Foucault, 1999, p. 9). Embora saibamos da de seus mais de vinte anos de existência nunca utilizou o termo slogan
urgente necessidade de se refletir mais acuradamente sobre o slogan como enunciado-tema, o vocábulo escolhido sempre foi lema.
de maneira geral, justamente devido à sua importância na sociedade
da emformação na qual vivemos, por questões metodológicas, Slogan político : um gênero discursivo
centraremos nossa reflexão somente no slogan político.
Antes de explicitar as razões que nos levam a conceituar o
Slogan político : historicidade e economização slogan político como um gênero discursivo distinto dos demais, é
necessário que façamos mesmo que de forma não exaustiva uma dis-
Segundo o dicionário Petit Robert (1994, p. 2099), o tremo tinção entre texto e gênero. Para tanto, buscaremos amparo na teoria
slogan é de origem gaélica: sluagh-ghairm e significava na velha do dialogismo de Mikail Bakhtin.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 595


O primeiro ramo da ciência da linguagem a tomar como ob- É justamente o critério de textualização que vai diferenciar a
jeto de investigação não mais a palavra ou a frase de forma isolada, noção de texto bakhtiniana da Lingüística Textual – pelo menos, a
mas sim o texto, justamente por acreditar que os homens se comuni- vertente postulada por Halliday e Hansan (1975) – e da Semiótica
cam por intermédio de textos, foi a Lingüística Textual. Embora nes- Greimasiana, pois, se para a Lingüística Textual um texto para se
sa perspectiva teórica exista divergência na forma de abordar seu constitur enquanto tal deverá necessariamente possuir duas proprie-
objeto de estudo, existe mais ou menos um consenso no tocante ao dades, a coesão e a coerência. Para a Semiótica, além dessas propri-
conceito de texto : edades, todo texto é constituído por um percurso gerativo do sentido,
que vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto,
o texto consiste em qualquer passagem, falada ou escrita, que produzido a partir do inter-relacionamento de três níveis : o funda-
forma um todo significativo, independente de sua extensão. mental, o narrativo e o discursivo. Para Bakhtin, no entanto, mesmo
Trata-se, pois, de uma unidade de sentido, de um contínuo sem ter desenvolvido uma teoria do texto, o que faz com que um
comunicativo contextual que se caracteriza por um conjunto enunciado – ‘ unidade real da comunicação verbal, cuja fronteira é a
de relações responsáveis pela tessitura do texto (Fávero & troca de interlocutores’- se constitua em um conjunto coerente de
Koch, 1994, p. 25). signos, são os gêneros discursivos e a entoação.
Os primeiros são compeendidos pelo filósofo russo como ti-
Pela citação anteriormente enunciada, podemos apreender pos relativamente estáveis de enunciados, elaborados a partir de uma
que a Lingüística Textual, pelo menos na sua origem, se debruça determinada ordem discursiva, uma espécie de pré- contruído que
sobre textos orais ou escritos, procurando desenvolver uma gramá- delimita o que pode e deve ser dito numa determinada formação
tica do texto, cujo objetivo é explicitar quais os princípios de discursiva e, constituídos por três elementos (conteúdo temático, es-
textualidade que transformam uma sequência lingüística qualquer tilo verbal e construção composicional), ‘fundidos indissoluvelmente
em um texto. E isso será verificado como já dissemos, somente em no enunciado...e marcados pela especificidade da esfera da comuni-
textos verbais, portanto a Lingüística Textual só se preocupa com o cação’. E a segunda como ‘um dos recursos expressivos [que o locu-
texto em sentido sticto. tor utiliza] para expressar a relação emotivo-valorativa com o objeto
É o estruturalismo francês dos anos sessenta que expandirá a do seu discurso’, uma vez que, não existe palavra em uso na comuni-
noção de texto, entendendo-o como qualquer manifestação de lin- cação verbal que não carregue marcas dos juízos de valor inoculados
guagem produzida pelo homem, independente do sistema sígnico em ao longo da sua história. Cumpre enunciar que neste texto, especifi-
que esteja inserida. Desse modo, outras produções culturais como a camente, não nos deteremos na questão da entoação, mesmo sabendo
música, a pintura, a escultura, o filme e outros signos passam a ser dos pejuízos que esse recorte acarreta.
concebidos como textos. Tem-se aqui uma acepção de texto em sen- A concepção bakhtiniana de gênero, no entanto, difere da no-
tido lato. Com efeito, todas essas manifestações sígnicas serão passí- ção aristotélica de gênero, pois enquanto para Aristóteles, o gênero
veis de leitura(s). funciona como uma tipologização rígida, homogênea, estável e defi-
Provavelmente, isso explique a emergência de diversos dis- nitiva, para Bakhtin, o gênero é relativamente estável, não- definiti-
positivos de leitura, na França do final dos anos sessenta. Estão nessa vo, flexível e constitutivamente heterogêneo. A esse respeito deixe-
esteira os trabalhos de Althusser, que se constituem num programa mos o próprio Bakhtin (1992, p. 281) enunciar :
de leitura para O Capital de Karl Marx, os trabalhos de Jacques Lacan,
que se propõem a ler a obra de Sigmund Freud, os trabalhos de Importa, nesse ponto, levar em consideração a diferença es-
Agirdas-Julien Greimas e seu grupo de semioticistas, cuja a preocu- sencial existente entre o gênero de discurso primário (sim-
pação inicial era a de explicar o(s) sentido(s) de uma manifestação de ples) e o gênero de discurso secundário (complexo). Os gê-
linguagem qualquer, partindo de seu plano de conteúdo. Para essa neros secundários do discurso – o romance, o teatro, o dis-
teoria, o texto – nas suas mais diversas manifestações : lingüísticas, curso científico, o discurso ideológico, etc - aparecem em
gestuais, visuais, ou sincréticas – é compreendido tanto como um circunstâncias de uma comunicação cultural, mais comple-
objeto de significação – um todo de sentido – quanto como um obje- xa e relativamente mais evoluída, principalmente escrita...
to de comunicação – produzido por um locutor para um destinador a Durante o processo de sua formação, esses gêneros secun-
partir de determinadas condições de produção. dários absorvem e transmutam os gêneros primários (sim-
Trouxemos as noções de texto da Lingüística Textual e da ples) de todas as espécies... Os gêneros primários, ao se tor-
Semiótica Greimasiana pelo fato de elas se aproximarem da acepção narem componentes dos gêneros secundários, transformam-
que Mikail Bakhtin tem de texto. Diante disso, ousaríamos dizer que se dentro destes e adquirem uma característica
os lingüístas textuais e os semioticistas greimasianos bebem na fonte particular :perdem sua relação imediata com a realidade exis-
do dialogismo bakhtiniano para formular seu conceito de texto. Reti- tente e com a realidade dos enunciados alheios.
rando-lhe, contudo, o que é mais caro no dialogismo, o incessante
atravessamento dos gêneros discursivos, contitutivos de qualquer Podemos depreender dessa última citação, que para Bakhtin
conjunto coerente de signos. Para Bakhtin (1992, p. 340-1), o texto : não existe gênero puro, pois a sua constituição se dá justamente a
partir da interação, do diálogo de outros gêneros. Noutras palavras,
é a expressão de uma consciência que reflete algo. Quando o os gêneros do discurso são o resultado do entrelaçamento dialógico
texto torna-se objeto de cognição, podemos falar do refexo de das diversas filigranas que o constituem, que por sua vez, também se
um reflexo. A compreensão de um texto é precisamente o refle- entrelaçarão e constituirão o tecido do texto.
xo exato do reflexo. Através do outro, chega-se ao objeto re- Pelo que foi enunciado até aqui, podemos, já dando um efeito
fletido... A ação física do homem deve ser compreendida como de fim a este texto, dizer o seguinte : Primeiro, o slogan político se
um ato ; ora, o ato não pode ser compreendido fora do signo constitui em um gênero distinto dos demais, pois é o produto de uma
virtual (reconstruído por nós) que o expressa (motivações, fi- atividade de linguagem específica de nossa sociedade – propaganda
nalidades, estímulos, níveis de consciência)... Quando estu- política - ; possui um conteúdo temático que lhe é peculiar – traduzir
damos o homem, buscamos e encontramos o signo em toda os anseios de uma determinada comunidade - ; possui um estilo ver-
parte e devemos tentar compreender sua significação. bal próprio – enunciado de curta extensão, cujo sentido, geralmente,

596 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


é inseparável da forma, neutraliza a dicotomia existente entre a mo- dida/comprada pela grande maioria das pessoas como uma nessecidade
dalidade falada e a escrita, estando sempre atento às inovações lin- fundamental e/ou como uma modalidade de satisfação de desejos,
güísticas dos mais diversos grupos sociais, geralmente opta por ver- era preciso a criação de uma nova linguagem. É justamente aí que
bos no imperativo, pois cria no destinador um efeito de que ele é o irrompe o slogan político como um dos recursos lingüísticos típicos
responsável ou o maior beneficiado com o que está sendo proposto e, da modernidade, uma vez que está sempre inoculando aos seus sen-
também, possui uma estrutura composicional particular – é um gêne- tidos ‘novos valores, novos produtos, novas atitudes e hábitos’
ro do discurso secundário, construído a partir de diversos gêneros Barzotto (1998, p. 154). Entre outros exemplos que traduzem uma
primários, é atravessado por outros gêneros secundários, o publicitá- idéia positiva de mudança é o slogan político do atual Governo de
rio, a máxima, o provérbio a palavra de ordem, etc, possui um tipo Mato Grosso : Mato Grosso, tempo de crescer. A metáfora biológica
específico de interlocutores, os eleitores, como todo enunciado, se é incorporada dando-lhe um sentido eufórico, crescer é visto como
constitui num ‘elo da cadeia muito complexa de outros enunciados’ sinónimo de progresso, como um ideal a ser alcançado a qualquer
(um bom exemplo dessa retomada de enunciados é o slogan político custo. E, para finalizar, mais um slogan político, que nos fornece
de um dos candidatos a prefeito de Araraquara, nas eleições de 2000 : boas pistas para começar a entender, pelas margens, a nossa própria
Ligue Araraquara ao futuro. Faça um 23, desnecessário enunciar história Ordem e Progresso.
qual seria seu enunciado-fonte.), deve, necessariamente, se inscrever
numa determinada ordem discursiva (por exemplo, se for um slogan Referências bibliográficas
situacionista jamais poderá se inscrever numa formação discursiva
oposicionista) e, por último, tal qual outros slogans, possui uma BAKHTIN, M., Os gêneros do discurso. In : Estética da criação ver-
‘vaguidão específica’ (Fernandes, sd,) de sentidos, ou seja, não dei- bal. São Paulo : Martins Fontes, 1992.
xa explícito na materialidade lingüística, por exemplo, a quem se BARZOTTO, V. H., Leitura de revistas periódicas : um estudo so-
refere o pronome ‘nós’ no slogan político da Prefeitura de Cuiabá : bre a revista Realidade (1966 – 1976), Campinas, SP : 1998.
Cuiabá somos todos nós. Tese de Doutorado.
Segundo, é um típico produto da modernidade, esta entendi- BERMAN, M. Tudo é sólido desmancha no ar : a aventura da
da por Berman (1986, p. 15), ‘ um tipo de experiência vital – experi- modernidade. São Paulo : Companhia das Letras, 1986.
ência de tempo e espaço, de si mesmo e dos outros, das possibilida- DEBORD, G., A sociedade do espetáculo. 2. ed. Lisboa : Edições
des e perigos da vida – que é compartilhada por homens e mulheres mobilis in mobile, 1991.
em todo mundo, hoje’. Mais do que uma mentalidade a modernidade FÁVERO, L. L. & KOCH, I. G. V. Lingüística textual : uma intro-
se constitu num grande cadinho no qual são fundidos os metais que dução. 3. ed. São Paulo : Cortez, 1994.
constituem a grande maioria de nossas práticas discursivas e não- FERNANDES, M. Trintas anos de min mesmo. São Paulo : Círculo
discursivas, cujo objetivo maior é o de‘continuar infindavelmente do Livro, s/d.
criando o mundo de outra forma’ Berman (1986, p. 273), simulando FOUCAULT, M., A ordem do discurso. 5. ed. São Paulo : Edições
a imagem de uma grande ‘festa para os olhos e para os sentidos’, ou Loyola, 1999.
em termos de Guy Debord ‘ uma sociedade do espetáculo’. ROBERT, P., Le nouveau dictionnaire alphabétique el analogique
Para que essa ‘ sociedade do espetáculo’, fruto de um traba- de la langue française. Paris : Dictionnaires le robert, 1994.
lho multissecular tanto da antiga quanto da nova mídia, fosse enten- REBOUL, O., O slogan. São Paulo : Editora Cultix, 1975.

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Palavras entre palavras:
a interpretação como diálogo
Maria de Fátima Cruvinel
Universidade Federal de Goiás - UFG
Universidade Federal Paulista - UNESP/Pós-graduação

RESUMÉ: Sur le point de vue du dialogisme chez Bakhtine et moyennant la lecture du conte “A quinta história” de Clarice Lispector, cet étude se
propose à mettre en débat l’interprétation comme dialogue infini, oú on écoute les paroles et on percevoit vestiges de la mémoire discoursive des
interlocuteurs participants du procès de la lecture.
PALAVRAS-CHAVE: literatura; leitura; interpretação; dialogismo

É comum, diante de um texto cuja leitura nos foi recomenda- do a comunicar-se, já que é essencialmente produtor e consumidor
da, buscarmos sofregamente ouvir os ecos que nos farão sentir o gos- de significados. Na esteira de Bakhtin, Brait (no prelo) afirma: “o
to, ou que seja apenas a ressonância, do prazer da leitura, só possível, diálogo, enquanto estrutura enunciativa e enquanto forma dialógica
evidentemente, quando construímos sentidos. Não é incomum, por constitutiva da existência das atividades de linguagem, atravessa o
isso, adentrarmos os labirintos da palavra, ou, como quer Valéry, a campo de visão e desdobra a possibilidades do ver, incluindo inces-
“floresta encantada da linguagem”, e aí termos de nos perder um santemente a história e a memória na cena de produção de sentidos e
pouco antes de delinear uma trilha própria, possível mediante nossa de seus efeitos”.1
memória da qual vamos puxando fios e associando-os às pegadas do Também pela sua concepção dialógica do ser é que Clarice
autor nas marcas discursivas do texto, aos ecos de leituras anteriores Lispector é convidada a compor a presente comunicação. O conto “A
¾ do próprio autor, nossas e de outros leitores e críticos já feitas do quinta história” pode ser considerado paradigma da leitura como di-
mesmo texto ¾ tudo mediado pelo calor da hora e pelo próprio risco álogo, colóquio infinito cuja tecitura se faz como um tapete é feito de
da palavra que nos lança na ordem arriscada da leitura. Daí quase vários matizes e pontos que se repetem para compor o todo. E a pró-
sempre nos dividirmos entre resistir à tentação de inaugurar novas pria Clarice evidencia a consciência disso: “uma história é feita de
veredas, evitando o perigo dos possíveis precipícios, e ousar novos muitas histórias” ( 1989:12). Trata-se da repetição, mas de uma repe-
caminhos, muitas vezes “loucos e longos” (Rosa), na busca do tênue tição que se abre ao infinito. Para Bakhtin, a palavra terá sempre seu
fio d’água para acalmar a sede dos sentidos. festival de regresso. Com a palavra bakhtiniana ecoando em Foucault
Mais difícil é quando, nas primeiras investidas, não degusta- (1999: 26), temos: “o novo não está no que é dito, mas no aconteci-
mos o sabor prometido. Essa foi minha reação ao primeiro encontro mento de sua volta”. Retomando o ponto tecido por Bakhtin (1997:
com o texto que tomo aqui para ler e refletir sobre leitura e interpre- 335), explico:
tação: o conto “A quinta história”, de Clarice Lispector (1989). Onde
a beleza referida por quem recomendara a leitura? Onde os sentidos? qualquer oração, mesmo complexa, dentro do fluxo ilimitado
Na memória, o mesmo sabor acre da náusea quando da leitura de A do discurso pode ser repetida ilimitadamente e de uma forma
paixão segundo G.H., o mesmo travo sentido na garganta: aceno de perfeitamente idêntica, mas, enquanto enunciado (ou fragmento
possibilidade de diálogo ¾ a escritura clariceana, acenou-me a me- de enunciado), nenhuma oração, ainda que constituída de uma
mória, não é afeita exclusivamente ao belo ¾, mas ao mesmo tempo única palavra, jamais pode ser repetida, reiterada, duplicada:
uma provocação. Quando não há empatia com o que lemos, esforço sempre temos um novo enunciado (mesmo que em forma de
maior nos é exigido para alcançarmos os vestígios que possam nos citação).
acordar a memória. Em leitura, não se trata do enigma da esfinge:
“decifra-me ou devoro-te”, mas de diálogo. E tal como o fio de Ao tratar especificamente do problema do texto, Bakhtin abor-
Ariadne, nossa memória não nos desampara; esse é o consolo: saber da a tradução, afirmando que “um texto (diferentemente da língua
que nunca estamos sós no labirinto. enquanto sistema de recursos) nunca pode ser traduzido até o fim,
Concebendo a linguagem como uma arena, um lugar de emba- pois não existe um texto dos textos, potencial e único” (1997: 333).
tes e debates, Bakhtin assevera a natureza dialógica da palavra, asso- Estendendo essas considerações à leitura, tem-se, aí, a idéia de
ciando-a a uma concepção mais ampla do homem e da vida. Para ele, infinitude da compreensão, incompletude da leitura; a concepção da
“Ser significa comunicar-se dialogicamente. Quando o diálogo ter- palavra sem fronteiras e a confirmação de que o sentido nem é exclu-
mina, tudo termina” (Clark & Holquist: 108). Mas diálogo, na acepção sividade do falante nem de um sistema abstrato pré-existente, mas é
bakhtiniana, é também conflito. O gosto amargo retido na memória
da leitura de A paixão segundo G.H. é um bom exemplo.
Comunico-me, logo existo poderia ser uma máxima a sinteti- 1 No Filme Náufrago (Zemeckis, 2000), a relação que se cria entre o prota-
zar o pensamento de Bakhtin. (Aliás, essa máxima deveria preceder a gonista solitário e a bola que encontra nos destroços do avião é um bom
cartesiana Cogito, ergo sum “Penso, logo existo”, já que se não enun- exemplo do diálogo, ainda que imaginário, como um requesito para a cria-
cio meu pensamento pela minha voz, letra ou qualquer outra lingua- ção. Já dizia Merleau-Ponty que é por meio das fissuras abertas pelas pala-
gem, ele não se tornará expresso). Concebendo a linguagem em sua vras que as potencialidades do homem fluem. Apenas quando cria um
dimensão social, cultural e histórica, o estudioso russo compreende- interlocutor “Wilson”, representado por um rosto que ele próprio dese-
a como produto da interação entre os sujeitos, e por isso postula o nha com sangue de sua mão machucada na bola, quando se sente provodado
por esse interlocutor, na cena em que desesperadamente tenta produzir
dialogismo como princípio de toda a expressão verbal. Mas a interação
fogo, o náufrago consegue entabular um diálogo imaginário e a partir daí
não se configura como uma mera situação de conversação, pois trata- suportar a solidão da ilha e idealizar alternativas para sua “fuga”,, ou, como
se, antes, de aceitar que o homem, como ser de linguagem, está fada- diz o próprio protagonista, “encontrar razões para respirar”.

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produzido na urdidura do discurso, no movimento incessante dos entre a narradora e Xerazade. Esta, conhecida como “a tecelã das
interlocutores. noites”, todos sabemos, utiliza-se de um ardil para salvar a si e outras
O poeta e ensaísta inglês Eliot (1989), a quem também se pode mulheres da morte: narra habilmente a cada noite uma história envol-
chamar para esse diálogo, tratando da relação do escritor com a tradi- vendo em suas malhas seu marido e algoz, e com isso adia para a
ção, pondera que é comum a crítica descobrir que aquilo de melhor noite seguinte a morte anunciada e sempre protelada, até a suspensão
da obra de um poeta, assim como as passagens que marcam o seu do terrível decreto. A narradora d’“A quinta história”, por sua vez,
talento individual, pode estar justamente no que sua obra tem de re- alimenta, aos poucos, o desejo do leitor de alcançar sentidos com a
tomada dos poetas da tradição. O novo, a diferença, que tanto a críti- leitura; aguça-lhe a curiosidade exasperada já com a repetição nause-
ca busca exaltar na obra de um escritor podem estar manifestos justa- ante da morte das baratas. Num segundo plano, na clara referência à
mente no diálogo entabulado com a tradição, cujo sentido histórico natureza infinda da narrativa, com história dentro de história, tal como
pressupõe a percepção da caducidade do passado e ao mesmo tempo a estrutura de encaixe com que se apresentam as aventuras narradas
a sua presença. Isto porque, continua Eliot, “Nenhum poeta, nenhum pela bela Xerazade.
artista tem sua significação completa sozinho”. A primeira história apresenta-se como mera narração do fato,
Isso posto, cumpre ressaltar o propósito desta comunicação: produzindo um efeito de referencialidade no discurso; a narradora
discutir a leitura e interpretação como diálogo infinito, no qual se restringe-se à informação, e o efeito de sentido, referendado pelo tí-
escutam as palavras, através de cujas frestas se percebem vestígios da tulo “Como Matar Baratas”, é de uma receita inseticida:
memória discursiva dos sujeitos interlocutores envolvidos no pro-
cesso. Ao acercar-me de qualquer texto, a pretensão, que deve ser A primeira, “Como Matar Baratas”, começa assim: Queixei-
também a de qualquer leitor, é a de escutar a palavra e ouvir a lingua- me de baratas. Uma senhora ouviu-me a queixa. Deu-me a re-
gem, isto é, ouvir os sentidos presentes nos interdiscursos que a per- ceita de como matá-las. Que misturasse em partes iguais açú-
passam na forma de diálogo com a memória e a história. E a lingua- car, farinha e gesso. A farinha e o açúcar as atrairiam, o gesso
gem fazendo ouvir ecos do já-dito, como quer Bakhtin, ou como esturricaria o de-dentro delas. Assim fiz. Morreram.” (p.81)
“murmúrio de tudo o que é pronunciado”, como quer Foucault (2000),
é o que mais se faz ressoar no conto de Clarice Lispector. Diálogo O enunciado, contudo, acaba por sucumbir às fendas do discur-
explicitado na repetição das histórias, na citação da tradição e no so narrativo, fazendo valer a afirmação de que a literatura “constitui
apelo à interlocução com o leitor. possivelmente a porção mais dúctil, o limite mais extremo do discurso,
Sant’Anna (1989: 4) afirma que a escritura de Clarice Lispector o espaço onde ele se expõe por inteiro, visando reproduzir-se, mas
“interessa-se por descrever a solidão dos homens diante dos animais expondo-se igualmente à infiltração corrosiva da dúvida e da perplexi-
e dos objetos”. Isso pode ser referendado pelo papel de cúmplice que dade” (Sevcenko, 1999: 20). A primeira história “começa assim”. Tra-
o leitor tem de assumir diante de um texto seu. A palavra para Clarice ta-se, portanto, apenas de um começo. Isso porque a literatura não se
é como isca. E “A quinta história” não pede menos, a começar pela limita a contar algo, ela é única e ao mesmo tempo desdobrada; ela é
citação d’As mil e uma noites. Esse será, então, o meu papel, o de “uma fábula que, todavia, é dita em uma linguagem de ausência, assas-
cúmplice, que tentarei desempenhar paralelamente ao de analista do sinato, duplicação, simulacro” (Foucault, 2000: 141).
discurso clariceano para explicitar como eu, leitora-cúmplice, sou Na seqüência do conto, tem-se a correspondência parágrafo-
envolvida no jogo discursivo do conto à medida que minha memória história. Mais quatro parágrafos para as quatro histórias restantes. E
é acionada, apesar do mal-estar inicial. o “modelo discursivo”, que reafirma a concepção de linguagem, tex-
“A quinta história” inicia já apontando o caráter escorregadio, to, obra literária, é o da repetição e diferença, do mesmo no outro: “A
instável, incerto, hipotético, próprio da leitura, ao enunciar os seus outra história é a primeira mesmo” (p.81, grifos meus). Essa afirma-
possíveis títulos, além dos sentidos plurais que o mesmo, o repetível ção, declarada, bastaria para inaugurar sentido novo. E por mais que
pode ter: haja repetição no plano do enunciado, como a expressão “Começa
assim: queixei-me de baratas”, que aparece em todos os parágrafos-
Esta história poderia chamar-se “As Estátuas”. Outro nome histórias, seguida pela repetição das ações da primeira história, o que
possível é “O Assassinato”. E também “Como Matar Baratas”. Farei por si só já denotaria diferença de sentido, há evidentes deslocamen-
então pelo menos três histórias, verdadeiras porque nenhuma delas tos de sentidos. Nessa segunda história, o tom referencial ainda se
mente a outra. Embora uma única, seriam mil e uma, se mil e uma mantém, por exemplo nas expressões “Segue-se a receita” e “E então
noites me dessem. (p.81) entra o assassinato”, mas o discurso começa a se fraturar e se conver-
ter em “linguagem de domingo”. Não se trata mais de matar as bara-
O título do conto refere-se à quinta história; há a promessa tas, mas de assassiná-las. O gênero discursivo literário, já esperado
explícita de pelo menos três; por último, a narradora declara ser a pela inscrição do texto no formato “obra literária” pertencente a uma
história única, podendo ser mil e uma. Ou seja, é a mesma, sendo autora determinada, no caso, conhecida e respeitada como Clarice
várias. O leitor certamente não ficará na primeira tampouco na ter- Lispector, é aí reconhecido; instaura-se novamente a corrente
ceira, tendo a oferta, no título, de uma quinta história. Observe-se dialógica, fazendo se desdobrarem possibilidades do gosto pelo lido;
também a preocupação, freqüente em Clarice Lispector, em enunciar minha memória poética é acionada e encontra ressonância em passa-
o sentido de verdade e ao mesmo tempo o seu deslizamento: as histó- gens como:
rias são “verdadeiras porque nenhuma delas mente a outra”. A verda-
de pauta-se pela não-mentira. Aí, a comprovação de que a leitura se A verdade é que só em abstrato me havia queixado de baratas. (p.81)
configura como “uma tensão nunca resolvida entre o dito e o ainda Ninguém acreditava no mal secreto que roía casa tão tranqüila. (p.81)
não-dito e como uma operação que tem, entre seus componentes, a Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da longa morte. (p.83)
ânsia de desdizer o dito para abrir no seu interior uma possibilidade Um medo secreto excitado e meu próprio mal secreto me guiavam. (p.83)
de novidade” (Larrosa, 2000: 17). Operação que exige sobretudo E eis que a receita estava pronta, tão branca. (p.83)
maleabilidade do leitor. onde o escuro dormia, só uma toalha alerta no varal. (p.83)
Quanto ao diálogo com a tradição narrativa, via As mil e uma
noites, se dá em dois planos. Primeiro, na recuperação da natureza de As histórias seguintes, que somadas às primeiras dão um to-
sedução e enredamento da ficção narrativa, perceptível no paralelo tal de cinco, apesar da promessa de três, como se sabe, repetem as

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anteriores. Tratam da mesma queixa, receita inseticida, morte das sem também tramar seus pontos e amarrar alguns nós. E quantos nós
baratas. Mas ao mesmo tempo que reiteram o arcabouço da primei- não são possíveis já a partir da quarta narrativa, e sobretudo com a
ra história duplicado na segunda, a cada seqüência novos pontos quinta história, intitulada “Leibnitz e a Transcendência do Amor na
passam a compor a trama, acrescentando outros matizes e acentos, Polinésia”, que se atém à citação do título e à repetição de “Começa
forçando novos diálogos. O foco, já um tanto desviado do objeto assim: queixei-me das baratas.”? Atendo-me à referência a Leibnitz,
para o sujeito enunciador, não se coloca mais sobre as baratas, mas matemático alemão que descobre o cálculo infinitesimal, e a apenas
sobre a narradora-assassina. Desde a segunda história, isso já esca- um fio possível dessa meada, entrevejo aí acentuada a idéia, reiterada
pa quando é enunciado: “meu próprio mal secreto”. Aliás, a narra- na escritura clariceana e mote desse conto, da infinitude de tudo.
ção em primeira pessoa é indício de centramento da enunciação Trata-se da literatura se oferecendo ao leitor, reafirmando
sobre o sujeito-enunciador. sua dúctil composição discursiva, passível de se reduzir a fios, esti-
E, como um novo ponto a tecer a escritura, Pompéia entra como rar, distender, sem se romper; em sua natureza flexível, elástica, e ao
algo inusitado na aparentemente simples trama da morte das baratas: mesmo tempo infinita e inacabada à espera de uma contra-palavra do
“Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompéia. Sei como foi leitor. Daí a leitura ser sempre provisória, invisível, cambiante, sem-
esta última noite, sei da orgia no escuro” (p.83). O diálogo, é possí- pre suceder nas fronteiras. Mesmo porque, a literatura, como a vida,
vel dizer, aponta para a erupção do Vesúvio surpreendendo em plena nos coloca questão após questão, num interrogar infindo, como se
atividade cotidiana a antiga cidade de Pompéia; trata-se da “derroca- estivéssemos, a cada passo, diante do breu da noite.
da de um mundo” (p.84) tranformado em pedras. Aí, a repetição.
Mas na história de Clarice, as lavas, que no passado irrompem do Referências bibliográficas
vulcão atingindo o que rodeia seu exterior, num movimento contrá-
rio, vêm reapresentadas como o gesso que mata o “de-dentro” das BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética: a teoria do ro-
baratas, petrificando-as. Doutra perspectiva, pode-se também ler: o mance. São Paulo: Editora da UNESP; Hucitec, 1988.
vulcão habita o íntimo da narradora-assassina, esse o mal secreto. ___. Estética da criação verbal. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes,
Essa antiga cidade romana, contudo, é um dos maiores sítios arqueo- 1997.
lógicos do mundo, sua citação sugere, por isso, outro sentido: a refe- BRAIT, B. O discurso sob o olhar de Bakhtin. In: GREGOLIN, M.
rência à palavra qual “jazida arqueológica”, ou seja, como espaço em R. V. et al. (org.) Olhares oblíquos: Análise do Discurso, inter-
que se encontram vestígios do passado, um sítio oportuno ao ofício pretação e memória. São Paulo: Editora da UNESP (no prelo).
do arqueólogo-leitor, incansável e minucioso escavador de sentidos. CLARK, K., HOLQUIST, M. Mikhail Bakhtin. São Paulo: Perspec-
Na quarta história, reitera-se a renovação incessante, tal como tiva, 1898.
as baratas: “Mortas, sim. Mas olho pelos canos, por onde esta mes- COMPAGNON, A. O trabalho da citação. Belo Horizonte: Editora
ma noite renovar-se-á uma população lenta e viva em fila da UFMG, 1996.
indiana”(p.84). Essa narrativa, entretanto, “inaugura nova era no ELIOT, T. S. Ensaios. São Paulo: Art Editora, 1989.
lar” e novos sentidos: a completa assunção, pela narradora, de que FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 5.ed. São Paulo: Loyola, 1999.
se trata do “de-dentro” dela mesma, não das baratas. E a conclusão ___. Linguagem e literatura. In: MACHADO, R. Foucault, a filoso-
pela negação do vício de viver, em favor do sacrifício da dedetização fia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
do próprio coração. LARROSA, J. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas.
Em Lispector, tem-se a escrita como trabalho de tesoura e cola, 3.ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
como “colagem e glosa, citação e comentário” (Compagnon: 1996), LISPECTOR, C. A legião estrangeira. 8.ed. São Paulo: Ática, 1989.
em que “nada se cria”, tudo se repete e, nesse movimento, já a dife- SEVCENKO, N. Literatura como missão: tensões sociais e criação
rença. Qual um labirinto, a escrita se desenha como uma rede de cultural na Primeira República. 4.ed. São Paulo: Brasiliense,
citações, e o trabalho do leitor é se deixar embrenhar pela rede, não 1999.

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O theatrum philosoficum de Michel Foucault
Marisa Martins Gama Khalil
Universidade Federal de Rondônia
Universidade Estadual Paulista - FCLAr

RÉSUMÉ: Ce travail veut discuter la interpretation d’après la perspective dessinée par Michel Foucault, ayant comme point de partie les textes “Nietzsche,
Freud & Marx” et “Theatrum Philosoficum”, où sont ébauchés les arguments vers une teorie de la interpretation.
PALAVRAS-CHAVE: literatura; interpretação; intérprete

O que é um texto senão um espaço instigador de leituras e têm os seus poderes. Como disse Umberto Eco, além das intenções
interpretações? Esse espaço, manifestadamente labiríntico, apresen- do autor e das do leitor, há a intenção do próprio texto.
ta-se como agregador e dissipador de variadas vozes. No presente Não se descarta aqui a idéia de que o autor predetermina inten-
texto partimos da voz foucaultiana, em seus tons e subtons, e a colo- ções, faz “desenhos em tapetes”, mas o poder desse ato é mínimo se
camos, como num teatro, em diálogo com outras vozes — como as pensarmos que ele é apenas um ponto pequeno na imensa rede que é
de Italo Calvino, Henry James, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa e a interpretação. O autor que tem a ingênua crença de que o “sentido
Camões — para possibilitar não o desvendamento de uma teoria da oculto” é a única perspetiva para a interpretação de sua obra vê no
interpretação, mas a sugestão de uma rede de apontamentos plausí- seu leitor uma “cópia à distância”, um “companheiro” que represen-
veis para uma interpretação da interpretação. ta uma “exigência desmesurada e um peso do qual (...) gostaria de
Baseado num olhar que pressupõe a descontinuidade históri- aliviar-se” (Foucault, 1990: 63). Há autores, porém, que sabem o
ca, Foucault (2000a) mostra-nos que o discurso não deve ser tratado quanto é inusitado o percurso interpretativo e por essa razão dele-
como um jogo de significações prévias, porque o mundo não se ofe- gam ao leitor o direito e o prazer de escolher, ou mesmo inventar, os
rece a nós de uma forma legível. Não se pode, entretanto, considerar caminhos de tal percurso. É o que nos sugere Fernando Pessoa no
a interpretação como um ato que se propõe a revelar um “núcleo poema Isto, do qual transcrevemos as duas últimas estrofes:
interior e escondido” (Foucault, 1999: 53) do discurso, mas como
um acontecimento que, tomando o próprio discurso a partir da sua Tudo o que sonho ou passo,
aparição e da sua regularidade, pode desvelar suas nervuras e suas O que me falha ou finda,
novas e inusitadas máscaras. É como que um terraço
A temática do núcleo escondido, de um sentido oculto que a Sobre outra coisa ainda.
literatura abriga, é planteada por Henry James em “O desenho no Essa coisa é que é linda.
tapete” (1993). Nesse conto é narrada a história de um escritor con-
sagrado, Vereker, que, em diálogos com um jovem crítico, sugere Por isso escrevo em meio
que a sua arte romanesca encerra mais significados do que aqueles Do que não está ao pé,
até então percebidos pela sua comunidade leitora. Revela, para a sur- Livre do meu enleio,
presa do jovem crítico, que a sua obra tem um sentido oculto, sentido Sério do que não é,
este que, apesar de mostrar-se inscrito a cada página dos seus roman- Sentir, sinta quem lê ! (1980: 104)
ces, mantém-se inacessível — nenhum dos seus leitores consegue
desvendar, nem mesmo os mais sofisticados, os críticos literários: O “desenho no tapete”, nesse caso, deve ser inventado pelo
leitor, pois o eu-poético assume a existência do que é dito (“sonho”)
há em minha obra uma idéia sem a qual eu não daria a menor e do que é interditado (“passo”), e reconhece a produção de sentidos
importância a nada do que faço. É a mais bela e mais plena de falhos ou findos, sentidos que se situam num “terraço”, num local de
todas as intenções, e sua aplicação tem sido, creio eu, um tri- produção de outros sentidos. O eu-poético libera-se, destarte, do “en-
unfo da paciência, do engenho. Estas coisas, eu devia deixá- leio” de um sentido único, porque sabe que o dito já prenuncia o
las para que os outros a dissessem; mas o problema é precisa- não-dito e assim o faz porque sabe que a sua voz, ela mesma, é uma
mente o fato de que ninguém as diz. (1993: 151) vertente interpretativa em meio a tantas outras. O texto existe e ins-
creve alguns prováveis canais de interpretação, mas as posições ocu-
Vereker atribui denominações diversas para a idéia que atra- padas pelos intérpretes definem direções dos sentidos. Por isso, cabe
vessa seus romances, como “pequeno trunfo”, “plano sofisticado”, perguntar quem faz a interpretação e em que lugar ele se situa. Foucault
“pequeno segredo”, “o fio em que estão enterradas as pérolas”, “te- nos diz que “o princípio da interpretação não é mais do que o intér-
souro enterrado”, “desenho no tapete”. Todas essas imagens engen- prete” (2000b: 62). Cada intérprete, por sua vez — e agora chama-
dradas por Vereker fazem-nos revisitar a natureza de dois movimen- mos a voz de Italo Calvino —, é “uma enciclopédia, uma biblioteca,
tos: o da escrita literária e o da interpretação da mesma e, nesse mes- um inventário de objetos, uma amostragem de estilos, onde tudo pode
mo sentido, podemos indagar a respeito das intenções do autor, do ser continuamente remexido e reordenado de todas as maneiras pos-
leitor e do texto. Muitos escritores acreditam que tecem sentidos ocul- síveis” (1990:138). Buscando Foucault, novamente, vemos que es-
tos, ou seja, que a sua escrita abriga um “núcleo interior e escondi- taremos decretando a morte da interpretação caso acreditemos que
do”; alguns leitores, fomentados por esse clima místico, concebem a existam símbolos primariamente e que a “vida da interpretação é o
interpretação como uma busca do Graal. Todavia, a linguagem da crer que não há mais que interpretações” (2000b:62).
ficção, como adverte Foucault, “deve deixar de ser o poder que in- Por acreditar na existência dessa miríade de interpretações,
cansavelmente produz e faz brilhar as imagens e converter-se, pelo Fernando Pessoa cria variados poetas-intérpretes para poetizar o
contrário, em potência que as desamarra, (...) as anima com uma trans- mundo, cada qual com um ponto de vista diferente: o olhar comple-
parência interior que pouco a pouco as ilumina até fazê-las explodir” xo do ortônimo Pessoa, o olhar simples do mestre Alberto Caeiro, o
(1990: 29). Nessa perspetiva, podemos entender que o texto também olhar humanista do pagão Ricardo Reis, o olhar caleidoscópico do

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futurista Álvaro de Campos. Assim como ele próprio pode criar uma e, seguindo esse sinuoso percurso, volta-se para si mesma até o infi-
rede de variadas interpretações, os seus leitores podem multiplicar os nito. Já vimos que nossa atenção não deve contemplar tão-somente o
fios dessa rede. Logo, a mudança de posições é decisiva no ato da resultado da interpretação, mas principalmente quem a realizou e
interpretação. Provavelmente Pessoa recolheu a lição da mudança qual a posição que ocupava no momento da interpretação. Contudo,
naquele que ele gostaria de ter reinventado ou mesmo superado — esse intérprete é atravessado por controles discursivos (Foucault,1999)
Camões. que interferem na constituição dos dispositivos interpretativos, tais
como os procedimentos externos ¾ interdição, segregação e vontade
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, de verdade ¾, os procedimentos internos ¾ comentários, autor, dis-
Muda-se o ser, muda-se a confiança; ciplinas ¾, e os procedimentos de rarefação do sujeito ¾ rituais, so-
Todo o Mundo é composto de mudança, ciedades do discurso, doutrinas e apropriações sociais. Ciente da exis-
Tomando sempre novas qualidades. tência de tais controles, o intérprete não deve buscar a universalidade
Continuamente vemos novidades, do sentido, mas procurar apreender os sentidos em seu poder de afir-
Diferentes em tudo da esperança; mação e de rarefação.
Do mal ficam as mágoas na lembrança, Quando trata do conceito de interdição, Foucault explica-nos
E do bem, se algum houve, as saudades. que “não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo
O tempo cobre o chão de verde manto, em qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar
Que já coberto foi de neve fria, de qualquer coisa” (1999, p.9). Portanto, todos nós, intérpretes e in-
E em mim converte em choro o doce canto. terpretados, somos crivados por controles discursivos, controles es-
E, afora este mudar-se cada dia, ses que mudam de acordo com as vontades de verdade em vigência,
Outra mudança faz de mor espanto: e estas, ao atravessarem autor, texto e leitor fazem apagar sujeitos e
Que não se muda já como soía. (1974: 118) significações e destronam a viabilidade tanto da existência de um só
sentido oculto, como também a de uma rede de infinitas leituras.
O eu-poético desse soneto manifesta sua estupefação diante de No palco da interpretação, intérpretes e interpretados vestem
um mundo todo “composto de mudança”, porém aquela que mais o muitas e diversificadas máscaras. A mobilidade da troca de máscaras
impressiona é o fato de a mudança já não ser mais a mesma, ou seja, é assegurada pela destronação do sentido de verdade absoluta e pela
de a própria mudança já ter mudado. Colhendo a interpretação assunção da incompletude do sujeito, da sua rasura, do seu desapare-
camoniana de mudança, Pessoa apercebe-se de que, se o próprio ato cimento enquanto ser concluso. Se o sujeito é constantemente mutável,
de mudar é em si mutável, a voz que fala e interpreta também pode suas interpretações sobre as coisas também o são. É nas palavras de
mudar e até mesmo dissipar-se, quebrar-se para dar lugar a outras Riobaldo, o narrador de Grande Sertão:Veredas, de Guimarães Rosa,
vozes. A voz que Fernando Pessoa escolhe para assumir a que encontramos coro para essa idéia da inconlusão e imagem propí-
inevitabilidade e o prazer da fratura e da dissipação é a de Álvaro de cia para a conclusão de um texto:
Campos:
O senhor ... Mire e veja: o mais importante e bonito, do mun-
A minha alma partiu-se como um vaso vazio. do, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não
Caiu pela escada excessivamente abaixo. foram terminadas ¾ mas que elas vão sempre mudando. Afi-
Caiu das mãos da criada descuidada.
nam ou desafinam. (1965: 20-1)
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Referências bibliográficas:
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por
sacudir. (1980: 262)
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio: lições
americanas. Trad. Ivo Barroso. 2 ed. São Paulo: Companhia das
A fragmentação do sujeito pode ser entendida não pelo viés
Letras, 1990.
negativo, como a perda de um frágil poder, mas, pelo positivo, uma
CAMÕES, Luís Vaz de. Lírica. 7 ed. São Paulo: Cultrix, 1974.
vez que, quando deixa de ser apenas “eu” — um sujeito a ocupar
somente uma posição e a, talvez, descortinar uma só interpretação — ECO, Umberto. Réplica. In: ___. Interpretação e superinterpretação.
, passa a permitir a descoberta de múltiplas sensações. Trad. M.F. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p.163-77.
A problemática do plausível poder do sujeito — intérprete e FOUCAULT, Michel. O pensamento exterior. Trad. Nurimar Falci.
interpretado —relaciona-se à da linguagem interpretada. Sabemos São Paulo: Princípio, 1990.
que a linguagem açambarca o presente e o passado, contudo ela, ___. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga Sampaio. 5 ed. São
fundamentalmente, aponta para o futuro, para a espera. Em “Nem Paulo: Loyola, 1999.
um nem outro”, Foucault afirma que o ser da linguagem é definido ___. A arqueologia do saber. Trad. Luiz F. Baeta Neves. 6.ed. Rio de
pela “pureza da espera”, espera essa que não se ampara de forma Janeiro: Forense Universitária, 2000a.
exclusiva na memória, mas sobretudo no esquecimento. É no esque- ___. Um diálogo sobre os prazeres do sexo; Nietzche, Freud & Marx;
cimento, sugere ainda Foucault, “que a espera se mantém uma espe- Theatrum philosoficum. Trad. Jorge Barreto e Maria Cristina
ra: atenção aguda àquilo que seria radicalmente novo, sem ponto de Cupertino. São Paulo: Landy, 2000b.
comparação nem de continuidade com nada (...) e atenção àquele JAMES, Henry. A morte do leão: histórias de artistas e escritores.
que seria o mais profundamente velho” (1990: 73). No ser da lingua- Trad. Paulo H. Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
gem, que espera e esquece, o poder da dissimulação “mancha” a es- PESSOA, Fernando. O eu profundo e os outros eus. 15 ed. Rio de
tabilidade das significações determinadas e a própria existência do Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
ser que fala. ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. 4 ed. Rio de Janei-
A interpretação, para Foucault, manifesta-se de forma labiríntica ro: José Olympio, 1965.

602 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


O eixo da produção textual na escola:
reflexos da formação de professores
Maria do Socorro Oliveira
Universidade Federal do Rio Grande do Norte–UFRN

ABSTRACT: This work aims to discuss what the teacher “knows” and “does” in the task of producing written narratives. According to this purpose, it is
interesting to emphasize the theoretical and practical relevance of narrative discourse, and to analyse how the teacher conduces the appropriation of
narrative genre by the student..
PALAVRAS-CHAVE: Produção textual; ensino/aprendizagem, formação do professor, gênero narrativo;

0. Introdução das (p. ex., são explícitas quanto ao tempo, ambiente e per
sonagens, mantém-se num único tópico) são avaliadas pe
Este trabalho tem como objetivo depreender o conhecimento los professores como melhores alunos, prometendo ser
teórico que o professor detém a respeito do gênero narrativo e as melhores escritores (v. Snow e Dickinson, 1990);
práticas de ensino/aprendizagem, efetivadas em sala de aula pelo 2) crianças que entendem e produzem narrativas do tipo favo
professor, com vistas à aquisição desse discurso pelo aluno. Julga- recido pelo professor participam mais efetivamente do dis
mos que o “saber” e o “fazer” do professor, certamente, nos dão a curso da sala de aula (Michael e Cazden, 1986);
chance de refletir sobre esse processo de aquisição da linguagem 3) quando o estilo narrativo da criança é uma variante das
narrativa (escrita). expectativas do professor, o processo colaborativo entre
Os dados que orientam nossa reflexão são provenientes de professor/criança se dá sem sucesso, afetando a performance
verbalizações escritas contidas em um questionário, versando sobre e a avaliação escolares. (v. Michael e Collins, 1984).
10 pontos: 1) a inclusão da narrativa como um tipo de “modalidade”
Nos chamados encontros “gatekeeping” – situações típicas de
lingüística; 2) a organização estrutural da narrativa; 3) a consideração
sociedades escolarizadas, nas quais os indivíduos são chamados a
da narrativa como um ato solitário ou dialógico; 4) o tipo de contri-
revelar proficiência lingüística (v. Erickson, 1975 e Gumperz, 1976),
buição que o professor oferece quando co-autor do texto do aluno; 5)
a competência narrativa é um dos fatores determinantes do acesso às
o tipo de instrução de escrita oferecida ao aluno quando da “avalia-
oportunidades educacionais e ocupacionais, de tal modo que a não
ção” das narrativas escritas; 6) a concepção de escrita que orienta o
utilização de estratégias discursivas esperadas pela instituição afeta a
trabalho com narrativas; 7) implicação da relação estabelecida entre
avaliação do indivíduo, podendo negar-lhe o acesso a oportunidades
“escrita produto” e “escrita processual” com o ensino/aprendizagem
sociais.
da narrativa; 8) tipos de narrativas trabalhados em sala de aula; 9)
Se por um lado, estes achados evidenciam a importância do
tipos de atividades desenvolvidas e 10) tipo de habilidade desenvolvi-
discurso narrativo, face às oportunidades educacionais e sociais, por
da pelo aluno através do trabalho com a narrativa.
outro lado revelam a necessidade de se investigar os mecanismos
Responderam a esses questionários 31 professores, estando
interativos processados na relação professor/aluno para a estruturação
18 deles vinculados a 03 escolas da rede privada de ensino e 13 a
de um discurso “apropriado” na escola e fora dela.
uma escola pública municipal. Para uma análise preliminar da ques-
tão eleita como foco de atenção neste trabalho, examinamos apenas
2. Gênero narrativo e práticas de ensino/aprendizagem: uma
as verbalizações escritas, fornecidas por 10 professores, mesmo es-
análise
tando alertas para o fato de que, numa análise global do corpus, os
resultados poderão variar. Evidente está que, dependendo do tipo de
Entre as dimensões lingüísticas caracterizadoras do discurso
formação em serviço que esses professores recebem, variarão os
narrativo, apontadas pelos professores, destacam-se os traços perso-
seus “saberes” e as suas “práticas pedagógicas” relativas ao desen-
nagem, tempo, conflito, desfecho, ambiente que correspondem, de
volvimento da linguagem narrativa. É importante, assim, que se es- forma aproximada, à estrutura geral da narrativa, proposta por Labov
clareça que os professores cujos questionários foram analisados per- (1972), que é formada por seis elementos: resumo, orientação, com-
tencem a duas escolas particulares que se preocupam em fornecer plicação da ação, avaliação, resolução (desfecho), coda. Observa-se,
capacitação contínua aos professores e que possuem coordenador entretanto, que certas categorias apontadas apresentam-se de forma
pedagógico. ambígua. O que significa para o professor a categoria tempo? Signi-
fica dizer que as “ações narrativas” obedecem a uma seqüência lógi-
1. Letramento e linguagem narrativa co-temporal? Significa dizer que as ações do narrador ocorrem no
tempo passado ou se manifestam linguisticamente em várias modali-
Estudiosos que se preocupam em verificar a importância dos dades temporais, p. ex., perfeito, imperfeito, presente? Que diferença
diversos gêneros textuais na educação formal afirmam que a lingua- estabelece o professor entre narrador e personagem? Personagem é
gem narrativa é particularmente relevante para o desenvolvimento um traço definidor (ou típico) do gênero narrativo? Constituem for-
do letramento e para tarefas comunicativas posteriores às iniciativas mas sinônimas os itens: ambiente, lugar, cenário, descrição de ambi-
da escola, exigidas em outras instituições de poder. ente? Desconhecem os professores as categorias avaliação e cada?
No que se refere ao contexto institucional de ensino, a rele- Por que elas não foram referidas? Ao lado destas questões, verifica-
vância teórica atribuída ao discurso narrativo, como gênero textual mos que noções de ordem gramatical, p. ex., parágrafo, pontuação,
estritamente ligado a empreendimentos de letramento, vem sendo relações subordinadas, e de outra ordem, p. ex., idéias do autor, são
discutida por vários estudiosos cujas pesquisas demonstram que: entendidas como fazendo parte da estrutura da narrativa. A confusão
1) crianças cujas narrativas correspondem a formas espera ou a falta de explicitude das respostas do professor conduz-nos à

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 603


conclusão de que o conhecimento que o professor tem acerca da orga- orientação de letramento subjaz uma concepção de língua, mesmo que
nização estrutural da narrativa é bastante intuitivo e pouco fundamen- o professor não tenha consciência dela ou não saiba expressá-la ver-
tado especialmente se apoiado em noções do tipo: começo, meio balmente, como indicam, por exemplo, os nossos dados. Solicitados a
(desenvolvimento) e fim, que me parecem categorias muito pouco apontar qual a concepção de língua que orienta o trabalho deles com
explícitas. narrativas, a maioria dos professores não respondeu ou o fez de
Diante da variação dos gêneros narrativos e dos diversas for- maneira equivocada, o que não quer dizer que eles não possuam uma
mas através das quais eles são estruturados (p. ex., narrativas sem representação do que seja a língua escrita ou como ela pode ser ensi-
começo), a propósito perguntaríamos: como explicar narrativas que nada. As afirmações do tipo: “escrever é colocar em prática um dom
começam na complicação? Ou não são introduzidas pela fórmula que apenas alguns possuem”; “para escrever é preciso organizar o
“Era uma vez”. pensamento”, ditas por um professor ou não, já são reveladoras de
A crença de que a escrita é um ato monológico, já que escritor uma concepção de linguagem. O problema é que nem sempre a escola
e leitor estão distanciados no tempo e no espaço, leva muitos profes- junto com o professor refletem sobre as crenças e opiniões que advo-
sores a não interferirem no processo de escritura do aluno, o que gam acerca de fenômenos de linguagem (e de outros) para que possam
revela que o texto é para ser escrito pelo aluno, cumprindo ao profes- redimensionar o “fazer” pedagógico.
sor a tarefa de avaliá-lo, conforme o caráter por motivo narrativo da Neste sentido, merecem ser avaliadas ou repensadas as três con-
língua. Esta foi a prática a prática que perdurou durante o ensino cepções de desenvolvimento de escrita que a seguir discorreremos.
tradicional. Atualmente, os procedimentos do professor, tais como: A primeira diz respeito aos estudos desenvolvidos pela ver-
fazer indagações, levantar hipóteses sobre o que o aluno está escre- tente associacionista do conhecimento que dá à escrita o estatuto de
vendo, ler o texto para identificar equívocos, dar “dicas” para corri- transcrição da oralidade, o que pressupõe que para cada fonema na
gir, oferecer ajuda quando solicitado, indicam que a tarefa de escre- língua oral existe um grafema correspondente na língua escrita. As-
ver não é uma atividade solitária. Quanto mais compartilhada, mais sim sendo, aprender a escrever significa adquirir a mecânica da
rapidamente chegar-se-á a uma elaboração “apropriada”. O fato é codificação na qual estão em jogo aspectos de ordem motora, visual
que embora os professores (mesmo aqueles que recebem orientação e perceptual . A partir dessa noção de escrita, o aprendiz é apenas o
pedagógica) opinem sobre o texto do aluno ou monitorem a sua pro- receptor, ocupando o professor o lugar de quem detém conhecimen-
dução textual, ainda há um ranço da antiga orientação que gostaria to (v. Prado, 1997)
de dizer “Eu estou ajudando, mas... o texto é seu”. O que as respos- A segunda concepção está associada à perspectiva cognitivista
tas dos item 3 e 4 parecem indicar é que a idéia de escrita como um do conhecimento (v. teoria de Piaget) na qual a escrita é entendida
ato monológico ou dialógico não está bem definida, estando relacio- como um sistema de representação. Os estudos de Ferreiro &
nada a condições de produção e/ou outros aspectos que nada tem a Teberosky (1985), representantes desta vertente teórica, introduzem
ver com a questão. É necessário lembrar que tal indefinição está es- o objeto escrita como fruto de uma construção individual. Noutras
tritamente associada com a falta de clareza (sobre), ou mesmo, o des- palavras, no contato solitário com o objeto escrita, o sujeito
conhecimento da concepção de língua escrita que rege (ou deve re- cognoscente (a criança) estabelece hipóteses sobre esse objeto (a
ger) o processo de produção textual ou de aquisição da língua escrita partir do que Piaget chama de conflito cognitivo) e constrói seu co-
(v. item 6). Se olharmos, inclusive, as respostas de cada professor nhecimento acerca da escrita. Nesta vertente, a criança é um ser ati-
relativas ao item 4, de forma isolada, constataremos que as contribui- vo que promove o seu conhecimento sobre a linguagem a partir da
ções são pobres e pouco revelam acerca dos inúmeros mecanismos modificação de seus esquemas assimiladores.
de que a língua dispõe num dado modo textual. A terceira vertente está representada pelos estudos sócio-
Cotejando-se as verbalizações dos professores, verificados nos construtivistas de inspiração vygotskyana para os quais a escrita é fru-
questionários, com as suas “censuras” ao textos escritos pelo alunos, to de uma construção social – a criança constrói seus conhecimentos
(v. item 5), verificamos que há um descompasso entre o que eles na interação com o mundo, exercendo o outro um papel fundamental,
afirmam e “o que” eles avaliam, afetando, inclusive, o “como” as uma vez que a apropriação da escrita pela criança se dá pela mediação
narrativas são julgadas. Embora os professores afirmem fornecer ins- de alguém mais experiente (o adulto) ou de colaboradores mais capa-
truções de escrita ligados aos aspectos de macroestrutura e superes- zes (os pares). Nesta perspectiva, a interação professor/aluno permite
trutura textuais, as notas feitas ao final dos textos são de natureza a construção de andaimes (scaffold), estratégias potencializadoras para
microestrutural, destacando principalmente os “erros” de ortografia, a aquisição do conhecimento (no caso o da escrita).
pontuação e acentuação e outros aspectos pontuais (p. ex., letra mai- A tomada de consciência ou o despertar para a questão dessas
úscula ou minúscula). Ficam marginalizados, assim, os problemas de concepções de língua escrita dá ao professor o discernimento para
ordem superestrutural ou relativos à estrutura textual da narrativa e optar por uma prática monológica ou dialógica de linguagem, dotan-
de ordem macroestrutural ou ligados ao conteúdo semântico global do-se, inclusive, de uma maneira mais viável e justa de olhar o “erro”
da narrativa (p. ex., coerência semântica, sintática, temática e tempo- nas produções escritas da criança. Note-se que na primeira concep-
ral). No tipo de avaliação focalizado neste estudo, a regulação peda- ção o “erro” é entendido como algo indesejável, que representa “dé-
gógica dos “erros” termina com as notações do professor no texto do ficit” e, por isso, deve ser corrigido. Na segunda, o “erro” tem o
aluno, que nem possibilitam procedimentos de auto-correção (con- estatuto de hipótese, de um conflito cognitivo que deve ser resolvido
forme uma dos professores desejava- rever o erro sozinho), nem o individualmente. Na terceira, o “erro” evidencia um ponto dentro da
refazer contínuo do texto, já que estes não são elaborados em várias chamada “zona de desenvolvimento proximal” (ZDP) – um estágio
versões, revelando, inclusive, as atitudes do professor frente ao “erro” no processo de desenvolvimento da linguagem, que deve ser resolvi-
e uma prática, institucionalizada pela escola, que vê a escrita como do na interação com os mais variados portadores de texto, nas mais
produto acabado. Enquanto o professor não desfizer este mito, o alu- heterogêneas parcerias.
no resistirá a proceder qualquer modificação em seu texto, imaginan- Pensar sobre essas concepções de língua escrita oferece tam-
do-o como uma criação individual e não como um exercício de lin- bém ao professor a oportunidade de refletir sobre a escrita “produto”
guagem socializado, que possa por um trabalho contínuo de (re)facção. ou a escrita “processo”. Se o professor acredita que a escrita é uma
As representações que professores (e aprendizes) fazem do ato atividade solitária, de natureza essencialmente cognitiva e individu-
de escrever resultam das concepções de língua que lhes forem incu- al, o texto do aluno constituir-se-á num produto que deve ser avalia-
tidas durante o processo de escolarização, o que quer dizer que a toda do segundo a norma gramatical. Frente a estes textos o professor

604 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


aponta “erros” e gradua desempenhos, não solicitando dos alunos a FERREIRO, E. e TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita.
reconstrução textual. Se, de outra forma, a escrita for concebida como Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
um processo dialógico, o texto do aluno representará uma busca con- GUMPERZ, J. J. Language, communication, and public negotiation.
tínua da significação pretendida, devendo o professor envolver-se In Peggy Sanday (ed.) Anthopology and the public interest. New
nesse “trabalho” que não depende apenas da habilidade reflexiva do York: Academic Press, 1976.
aluno. Quanto mais intensas e de maior clareza forem as contribui- LABOV, W. (1972). The transformation of experience in narrative
ções do professor no processo de (re) elaboração textual, mais rapi- syntax. In W. Labov (ed.). Language in the Inner City: Studies
damente o aprendiz se apropriará dos mecanismos da língua escrita. in the Black English Vernacular. Philadelphia, PA: University
Sobre a questão 7, os dados indicam que o professor não sabe of Pennsylvania Press, pp. 354-396.
o que quer dizer escrita “produto” ou “processual”. Eles argumen- MICHAEL, S. and COLLINS, J. Oral Discourse Styles: Classroom
tam que o texto do aluno deve ser respeitado e que o professor deve Interaction and the Acquisition of Literacy. In Deborah Tannen
mediar ou monitorar a produção textual do aluno, todavia tecem con- (ed.) Coherence in Spoken and Write Discourse, vol. XII,
siderações, do tipo, “Através da escrita produto analisa se houve Norwood, N. J.: Ablex, 1984.
avanços”; “Quanto a escrita processual vejo a necessidade de MICHAEL, S. and CAZDEN, C. B. Teacher/Child Collaboration as
retrabalhar tanto a gramática quanto a ortografia”. Além de estas Oral Preparation for Literacy. In Bambi Schieffelin and Perry
colocações estarem equivocadas quanto às noções de “produto” e Gilmore (eds.) The Acquisiton of Literacy: Ethnographic
“processo, ficamos nos perguntando: em que ocasião serão Perspectives, vol. XXI. Norwood, N. J.: Ablex, 1986.
retrabalhados os elementos estruturais da narrativa? Se o professor MICHAEL, Sarah. “Sharing time”: Children’s narrative styles and
considera que nas séries iniciais as questões maiores a serem traba-
differential acces to literacy. Language and Society, 10: 423 –
lhadas devem ser ortografia e pontuação (ou os chamados aspectos
442, 1981.
gramaticais), quando serão efetivadas mudanças, no texto do aluno,
que reordenem o todo ou atinjam segmentos do discurso – aquelas OLIVEIRA, Maria do Socorro. A Díade professor – aluno na produ-
que dizem respeito ao desenvolvimento das idéias? ção do texto escrito. Vivência, EDUFRN, 12 (1): 105 – 112,
Solicitados a apontarem os tipos de narração trabalhados em 1998.
sala de aula, os professores revelam ter preferência por aquelas con- PRADO, Patrícia. “Isso tá errado, é assim ó: do lugar da falta ao
tidas nos livrinhos de literatura infantil. A escolha justifica-se em sentido do “Errar”. Intercâmbio, 6: 209 – 221, 1997.
razão de estes textos serem curtos, favorecendo um bom trabalho, SNOW, C. E. & DICKINSON, David K. Social Sources of Narrative
especialmente nas 1as séries. Além destas narrativas, são lembrados skills at home and at school. First Language, 10: 87 – 103, 1990.
também os relatos de experiências pessoais. Embora se observe, pe- VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins
las respostas dos professores, que estas narrativas são ricamente ex- Fontes,1998.
ploradas via a utilização de jornais, gravuras, músicas, textos não VIRTANEN, Tuija. Issues of text typology: Narrative – a “basic”type
verbais, é interessante que o professor se lembre de trabalhar outros of text? Text, 12 (2): 293 – 310, 1992.
gêneros narrativos tais como fábulas, contos, crônicas, estejam eles
vinculados ou não aos “temas geradores” das unidades de ensino.
Além disso, é oportuno lembrar que a narrativa é um tipo de texto Anexos
básico capaz de realizar qualquer tipo de discurso, i. é., a argumenta-
ção, a exposição, a descrição, a instrução, além do próprio discurso QUESTIONÁRIO
narrativo (v. a respeito Tuija Virtanen, 1992)
A narrativa é um tipo de atividade reconhecida como impor- 1) Marque a resposta que lhe parece adequada
tante pelo professor em razão, sobretudo, de desenvolver a habilida- A narração é:
de verbal. Não obstante os professores terem afirmado que o traba- a. ( ) um tipo de texto
lho com narrativas desenvolve a criatividade e o raciocínio lógico, b. ( ) uma atividade discursiva
além de estimular a leitura, a relevância desta atividade apoia-se no c. ( ) um gênero textual
fato de que ela “abre caminho para a escrita com outros textos, no d. ( ) todas as respostas anteriores
dizer da maioria dos professores. Se sente dificuldade em responder, justifique por que motivo.
2) Que aspectos de ordem estrutural e gramatical caracterizam a nar-
3. Considerações finais rativa? Ou seja, o que define um texto como sendo narrativo?
3) A narrativa escrita é um ato solitário ou dialógico? Ou seja, você
A análise das respostas, fornecidas pelos professores, leva-
é de opinião que se o aluno é autor do texto, ele deve escrevê-lo
nos a destacar alguns pontos:
sozinho ou você se coloca como co-autor do texto do aluno?
1. o professor sabe pouco ou de forma intuitiva sobre o dis
curso narrativo; 4) Se você oferece contribuições ao aluno no momento em que ele
2. o professor carece de informações teóricas acerca de ques escreve, qual o tipo de “ajuda” ou informação você presta? Liste-as,
tões de linguagem, incluindo a questão dos gêneros textuais; abaixo:
3. não há um ponto de encontro entre o discurso do professor 5) Que tipo de instrução de escrita você dá ao aluno quando da “ava-
(ou o que ele revela “saber”) e o seu “fazer” pedagógico. liação” das narrativas escritas por eles? Que aspectos de “correção”
Como exemplo, destacamos o conhecimento do professor ou “incorreção” você olha?
sobre a noção de superestrutura e o que ele observa (a título 6) Qual a concepção de língua escrita que orienta o seu trabalho com
de avaliação) nas narrativas escritas pelos alunos; narrativas escolares?
Esses pontos indicam que há uma grande distância entre o co- 7) Qual a implicação que a “escrita produto” ou a “escrita processu-
nhecimento teórico ao qual se deveria dar ênfase no Curso de Letras e al” estabelece com o ensino/aprendizagem da narrativa?
a prática que é desenvolvida por esses profissionais, na escola. Em 8) Que tipo de narração você trabalha com os seus alunos? Que ma-
consequência, o “saber” e o “fazer” do professor seguem direções di- terial didático é por você selecionado?
ferentes, como se fossem duas linhas paralelas, onde não há intersecção. 9) Que tipo de atividade você desenvolve em sala de aula com vistas
Referências bibliográficas: a desenvolver a competência narrativa dos seus alunos?
10) Qual a importância da narrativa em sala de aula? O trabalho com
ERICKSON, F. Gatekeeping and the melting pot. Havard Educational a narrativa favorece o desenvolvimento de que tipo de habilidade no
Review, 45: 45 – 70, 1975. aluno?

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 605


606 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001
Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 607
A intertextualidade em narrativas
escritas por crianças surdas
Célia Maria de Medeiros
Maria do Socorro Oliveira
Universidade Federal Rio Grande do Norte

ABSTRACT: This work has as objective to infer the marks of intertextuality so evident in the written narratives produced by deaf children. Once it is
considered the importance of dual processes constituted on social interaction, the educational work with deaf children should emphasize the language-
context relation for an effective development of this discourse activity.
PALAVRAS-CHAVE: Intertextualidade, signo lingüístico, linguagem escrita, contexto.

0. Introdução Segundo Bakhtin (1995: 106), “o sentido da palavra é to-


talmente determinado por seu contexto. De fato, há tantas signifi-
Meu interesse por questões relativas a processos lingüísticos cações possíveis quanto contextos possíveis”. Portanto, para que
em casos de surdez surgiu em 1997, quando iniciei o trabalho peda- haja diálogo efetivo, é necessário que os interlocutores estejam in-
gógico em sala de recurso para atendimento de Deficientes Auditivos seridos em uma mesma situação social e pertençam à mesma comu-
(DAs), principalmente no reforço das disciplinas: português, inglês e nidade lingüística, o que cria um terreno que torna possível à
matemática. interação. No caso da criança surda, temos a língua de sinais, assu-
Esta pesquisa está sendo realizada na Escola Estadual Tristão mindo a mediação entre os interlocutores, o que solidifica o pro-
de Barros e no Centro de Reabilitação Professora Crindélia Bezerra cesso de construção do conhecimento (por exemplo, os conceitos
(Currais Novos-RN), acompanhando 05 (cinco) sujeitos surdos, por escolares). Esse conhecimento não acontece fora da linguagem. Isso
um período de 01 (um) ano. Estes alunos apresentam perda auditiva porque, conforme explica Bakhtin (1999:112), “...não existe ativi-
profunda em que o resíduo auditivo é mínimo; variam numa faixa dade mental sem expressão, mas, ao contrário, é a expressão que
etária de 10 - 14 anos e estão dentro de uma proposta de educação organiza a atividade mental”.
bilíngüe que inclui o uso de sinais pelos professores ouvintes e a Para a Língua de Sinais, usa-se o termo gestual-visual, no qual
participação de professores intérpretes nas atividades pedagógicas. gestual significa o conjunto de elementos lingüísticos manuais, cor-
Três(03) desses alunos estão concluindo o Ciclo Básico e 02 (dois) porais e faciais necessários para a articulação do sinal. Enquanto o
iniciaram a 5ª série do Ensino Fundamental. emissor constrói uma sentença a partir desses elementos, o receptor
O estudo envolve vídeo-gravação de eventos de escrita nos utiliza os olhos, ao invés dos ouvidos, para entender o que está sendo
quais a professora, que atende em sala de recurso, trabalha a produ- comunicado. Já que a informação lingüística é recebida pelos olhos,
ção textual de narrativas escritas, mediando esta atividade através da os sinais são constituídos de acordo com as possibilidades perceptuais
Língua de Sinais. do sistema visual humano.
Estudos sugerem que pessoas surdas, mesmo depois de terem Segundo Vygotsky (1991), os modos de ser e de agir são
passado por longo período de escolarização, apresentam dificuldades construídos e reconstruídos nas relações sociais. A produção de sig-
no uso da linguagem escrita. Na verdade, as limitações nessa esfera nificados em relação ao mundo da cultura e a si próprio é um proces-
não são exclusivas das experiências escolares dos surdos, nem ine- so necessariamente mediado pelo outro; é efeito das relações sociais
rentes à condição de surdez: um dos principais problemas está na vivenciadas. Logo, essa construção e reconstrução é o que constitui
mediação social dessa aprendizagem, especificamente, nas práticas o intertexto no momento de escritura por parte dos alunos surdos.
pedagógicas utilizadas na alfabetização desse tipo de usuário da lín- Uma vez considerada a importância dos processos dialógicos
gua. Este fato justifica, então, que se olhe mais profundamente para constituídos na interação social, o trabalho educacional com a crian-
este problema. ça surda deverá enfatizar a relação língua/contexto, para que ocorra o
Dentro de uma perspectiva discursiva (v. Bakhtin,1999; efetivo desenvolvimento da atividade discursiva (v. Gesueli, 2000).
Vygotsky, 1991), este trabalho tem como objetivo depreender as mar- No caso dos surdos, sua primeira língua seria sua língua natu-
cas da intertextualidade e polifonia evidentes em narrativas escritas, ral - a Língua de Sinais (ou LIBRAS), e a segunda língua - o portu-
produzidas por crianças surdas. guês. Para tanto, se faz necessário que os surdos sejam inseridos em
um ambiente que proporcione a eles esse contato natural, desenvol-
1. Práticas lingüístico – discursivas: produção escrita dos surdos vendo através dela todas as suas potencialidades.

As práticas lingüístico-discursivas, realizadas pela educação 2. Análise do corpus


escolar, orientam-se, geralmente, por uma concepção homogeneizante
de língua, que desvaloriza os saberes anteriores à escola, desrespeita A produção textual, realizada por um dos informantes (v.
as diferenças e cultura dos grupos não alfabetizados e ignora o valor exemplo (1)), ilustra os procedimentos a que faz alusão Gesueli (1988).
do contexto na construção de significados escritos.
Por essa razão, várias construções atípicas são constatadas Exemplo (1): O CACHORRO
em estudos realizados sobre a produção escrita dos surdos. Gesueli
(1988), ao relatar uma experiência de alfabetização inicial, destacam O cachorro e a cachorra foi passear
algumas características dos textos elaborados por crianças surdas: entre Fez muito porque namorado.
outras peculiaridades, suas construções apresentam uma seqüência A cachorra foi porque filhas cachorros
de palavras que tende a desrespeitar a ordem convencional da língua mamavam muito.
portuguesa, e os enunciados são compostos com predomínio de no- A cachorra foi passear na rua feliz,
mes que, por vezes, substituem verbos. Alegre procurar amigo.

608 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Conforme se observa no exemplo (1), o texto apresenta-se frag- sistema de signos que, embora organizado como uma contraparte da
mentado, estando ausentes os elos e conectivos que relacionam as oralidade, guarda características específicas que permitem sua relati-
palavras e orações. Em razão da linguagem condensada, o texto ca- va autonomia do sistema que lhe deu origem, permitindo sua apro-
racteriza-se como uma mensagem telegráfica. Através da mediação priação por pessoas surdas que desconhecem o valor sonoro das pa-
realizada pela Língua de Sinais, o sujeito surdo traduz os gestos lavras. Nesse sentido, de modo semelhante à oralidade para os ou-
corpóreos em escritos. Esse processo de translação, entretanto, não vintes, a Língua de Sinais organiza de forma lógica as idéias dos
é completo ou perfeito, ocasionando, assim, lacunas ou “irregulari- surdos e acaba tendo sua estrutura morfossintática refletida nas suas
dades” gramaticais. atividades escritas. Como conseqüência, teremos produções textuais
distantes daquelas que são tidas como padrão de normalidade, mui-
3. Considerações finais tas vezes encaradas como dados patológicos de linguagem, que justi-
ficam a marginalização dos surdos no contexto escolar, traduzida por
Diante das observações e coletas realizadas, já é possível práticas avaliativas extremamente excludentes, conforme observa
discorrer sobre alguns aspectos em relação ao tema de pesquisa. con- Skliar (1999).
forme afirma Vygotsky (1991), a linguagem escrita, em seu momen- Lingüisticamente, o surdo é apenas uma pessoa diferente que
to inicial de aquisição constitui-se em um sistema particular de sím- desenvolve capacidades diversas das que desenvolvemos e desen-
bolos e signos de segunda ordem, que não remetem diretamente à volverá plenamente suas capacidades lingüísticas se tiver liberdade e
coisa representada, mas sim designam os sons e palavras da lingua- condições para isso.
gem falada. Dito de outra forma, a linguagem oral será num primeiro
momento, o elo de ligação entre determinado dado da realidade e Referências bibliográficas
sua representação através da escrita. Entretanto, como esse processo
de aquisição não pode ser descrito como uma história linear e BAKHTIN, M. ( Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem.
seqüencial, mas pleno de evoluções e involuções, avanços e retro- 9.ed. São Paulo: Hucitec,1999.
cessos gradualmente, a oralidade desaparece como elo intermediário GESUELI, Z. M. A Criança não ouvinte e a aquisição da escrita.
e a escrita passa a representar o real de forma direta, constituindo-se Dissertação de Mestrado. IEL-UNICAMP, 1989.
em simbolismo de primeira ordem. LACERDA, Cristina & GÓES, Cecília (org). Surdez: processos
Nessa perspectiva, a linguagem de sinais não exerce o papel educativos e subjetividade. São Paulo: Lovise, 2000.
de mero modelo para a escrita; sua função, ao contrário, é a de medi- SKLIAR, Carlos (org. ). Atualidade da educação bilíngüe para sur-
ar a internalização de aspectos de sua aprendizagem, servindo como dos. Porto Alegre: Mediação, 1999. 2v.
substrato para a construção da linguagem escrita, que mais tarde ga- VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. 3.ed. São Paulo:
nha autonomia como um sistema simbólico de primeira ordem, po- Martins Fontes,1991.
dendo operar por si mesmo (Lacerda, 1993). _______________. A formação social da mente: o desenvolvimento
Tais considerações são fundamentais ao analisarmos a fun- dos processos psicológicos superiores.6.ed. São Paulo: Martins
ção da Língua de Sinais no processo de aquisição da escrita pelos Fontes, 1998.
surdos. A internalização de significados, conceitos, valores e conhe- _______________. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem.
cimentos será realizada através do domínio dessa modalidade de lín- 6.ed. São Paulo: Ícone: Editora da Universidade de São Pau-
gua que servirá como suporte cognitivo para a aprendizagem de um lo,1998.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 609


O discurso explicativo na construção
dos conceitos matemáticos
Francisca Maria de Souza Ramos
Maria do Socorro Oliveira
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

ABSTRACT: This paper focuses on interactive strategies used by the Math teacher in the written text oralization process as a mediator element in the
teaching/learning process.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino/leitura; estratégias interativas; discurso; matemática

0. Introdução 1. O discurso explicativo na aula de matemática

A sala de aula é, por natureza, um lugar de desenvolvimento Nesta pesquisa, estamos focalizando o discurso explicativo
do processo de ensino e aprendizagem. Nela os sujeitos discutem, do professor na aula de matemática, cientes de que a dialogia é um
trocam idéias, ensinam e aprendem. Na medida em que isso ocorre, ponto elementar ao convívio social nas nossas salas de aula. Nesse
o professor e o aprendiz interagem e constróem significados. É nesse sentido, adotamos a visão bakhtiniana de linguagem, entendida como
ambiente de constante interação, no qual o professor e o aluno são um fenômeno social. Nessa visão, a constituição do sujeito ocorre a
membros ativos, que surgem, no dia-a-dia, inúmeros questionamentos, partir das palavras do outro, isto é, de maneira responsiva. Este ou-
por exemplo: tro, no contexto escolar, é constituído pelo professor, que, na quali-
• alunos reclamam muito de disciplinas como português e dade de parceiro mais experiente, interfere ou monitora na constru-
ção do conhecimento a partir de procedimentos de ajuda, tal como é
matemática;
entendido pela corrente neovygotskyana (v. Cazden, 1988)
• o ensino tradicional não surte mais efeito;
Menezes de Sousa (1995:24), ao comentar sobre o papel do
• alguns alunos assimilam, de forma mais rápida e eficiente,
professor neste ambiente conflitante de sala de aula, diz:
os conteúdos, enquanto outros não o fazem;
“O papel do professor nesta perspectiva é geralmente o papel
• a evasão escolar ainda permanece acentuada;
do dominante, embora, no caso do ensino centrado no aluno,
• inúmeros estudantes concluem o ensino médio e não che
esse papel seja aceitavelmente negociado...”.
gam ao superior; Em termos de papéis, o que parece convencional é a predomi-
• alguns professores conseguem resultados positivos em uma nância do discurso do professor. No caso, porém, do ensino centrado
turma e não conseguem em outras. no aluno, há necessidade de uma negociação de papéis, já que a co-
De um modo geral, questiona-se, também, o que fazer para operação se estabelece entre os participantes, havendo uma alternância
desenvolver aspectos que contribuam para a formação social, pesso- no discurso e na gestão do poder (cf. PCNs/Matemática: l998).
al e intelectual do educando? O que dificulta a aprendizagem da lei- No caso específico do professor de matemática, D’Ambrósio
tura e da escrita? Qual a forma mais eficiente para se conduzir a (l993:39) afirma que:
construção de conceitos? Como tornar o estudo dos cálculos mate-
“As pesquisas sobre a ação de professores mostram que em
máticos agradável e de fácil compreensão?
geral o professor ensina da maneira como lhe foi ensinado.
Contestando a visão tradicional de ensino na qual tanto os con-
Predomina, portanto, um ensino em que o professor expõe o
teúdos quanto as metodologias são vistos como imutáveis, fixos e conteúdo, mostra como resolve alguns exemplos e pede que os
estáveis, e considerando, por outro lado, uma abordagem de ensino alunos resolvam inúmeros problemas semelhantes (...). Pre-
baseada em concepções mais modernas nas quais o discurso do pro- domina o sucesso por memória e repetição(...).Raramente ve-
fessor na sala de aula pode ser visto como um fenômeno social e mos alunos desenvolvendo modelos matemáticos para inter-
ideologicamente constituído (Bakhtin, l992), pensamos na confusão pretar situações reais.”
que ocorre no momento de o professor e os alunos tomarem deci-
Com essa afirmação, a autora mostra que o professor, em
sões e, especialmente, na hora das discussões destinadas à constru-
alguns casos, é mais um transmissor ou reprodutor do conhecimento
ção de conceitos nas diversas disciplinas do currículo escolar.
do que alguém que participa integradamente do trabalho realizado
Esse é, portanto, o nosso foco de interesse neste estudo – ana-
pelos alunos. Estes, porém, quando estimulados, demonstram, na
lisar as estratégias interativas utilizadas pelo professor de matemáti- maioria das vezes, um potencial surpreendente. É nesse sentido que
ca na construção de conceitos matemáticos, através da oralização de o professor tem muito a aprender com os discentes, ou seja, a nego-
textos escritos nessa área do conhecimento. ciação e a troca de experiências são positivas para ambos.
O recorte feito para esta análise é constituído por três ho- Essa negociação, entretanto, não ocorre de forma pacífica ou
ras-aula, gravadas em áudio e vídeo, nas quais três docentes de natural. Em razão das diferenças individuais, e também do fato de
matemática, da cidade de Angicos-RN, funcionários da rede pú- que o indivíduo é constituído de forma fragmentada, o processo co-
blica estadual e municipal e estudantes do curso de matemática operativo em sala de aula é dificil, embora possível. Nesse sentido,
da UERN/Açu/RN, trabalham os conteúdos matemáticos, fa- Menezes de Souza (1995), baseado numa visão bakhtiniana da lin-
zendo uso do texto escrito. O texto-fonte selecionado é da autoria guagem, comenta que o aprendiz tem dificuldades para se adaptar a
de Amoroso Costa (1996) “A origem dos números fracionários”. metodologias pré-estabelecidas (aqui entendidas como aquelas em
A escola na qual gravamos estas aulas pertence à rede municipal que se espera uma homogeneização), devido ao fato de “ele é um
de ensino da referida cidade. Os alunos são concluintes do quarto ser social, formado hibridicamente por discursos dialogicamente
ciclo do ensino fundamental.

610 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


conflitantes”. Ele esclarece que o sentido de híbrido não é para enfatizar contexto de sala de aula, adquirem uma posição privilegiada por se-
a individualidade do sujeito, e sim as diferenças no conjunto de dis- rem a principal forma de entendimento entre o professor e os alunos
cursos sociais que formam os indivíduos. e entre alunos/alunos, encadeados através de textos, denominados
Conforme observaram Grigoletto (1995) e Kleiman (1993), as por Passeggi, M.C.(1998) texto-fonte ( material escrito), texto-me-
práticas discursivas, estabelecidas entre professor e aluno, podem diador ( intervenções orais feitas pelo professor e os alunos a partir
seguir concepções diferenciadas ou se inserirem ambas numa visão das idéias do texto-fonte) e texto-alvo ( resultado do que os alunos
tradicional de ensino, observando apenas os objetivos institucionais. compreenderam do conteúdo do texto-fonte através das explicações
Pode ainda ocorrer uma prática em que, mesmo respeitando as nor- do professor.
mas da instituição, professores e alunos dialoguem sobre diversos
problemas existentes no contexto escolar e social. Assim, uma das 2. Estratégias interativas: análise
principais questões que pode nortear o trabalho educacional deve ser
a de como o professor e o aluno pode trabalhar de forma integrada Dentre as diversas estratégias interativas identificadas por nós
e participativa, mesmo com a observância das normas neste estudo, comentaremos apenas aquelas que apareceram com mais
institucionalizadas. freqüência, no momento em que os professores fizeram o seu ou-
Medeiros (2000:30), ao discutir sobre a intersubjetividade no vinte (aluno) compreender as informações veiculadas no texto-fonte,
ensino da matemática, prima pelo diálogo como uma das atividades via o texto-mediador.
enriquecedoras na apreensão do conhecimento. No entanto, a autora
comenta que, no ensino de matemática, esta prática não tem sido ESTRATÉGIA 01: Paráfrases adjacentes simples:
muito valorizada. Discordando da visão tradicional de ensino, ela
enfatiza: Seq. 01 (linhas 271-272):
M- Pr. 1: ...com essa necessidade foi que foi surgindo,
“Pensando na educação matemática como comunicação en-
P- foi se originando os números fracionários, né?
tre quem ensina a quem aprende, vejo que o seu lugar é a
Seq.02 (linhas 303-304):
intersubjetividade, o resultado é a compreensão e o meio para
M- Pr.2: ... a gente:: a gente, vive de incertezas,
isso é o diálogo.”
P- a gente vive de dúvidas, né?
Percebemos que, mesmo numa disciplina considerada abs- Seq. 03 ( linhas 242-243)
trata, por causa dos inúmeros cálculos que lhe são peculiares, M-Pr.3: ...as partes que você tem direito,
há a necessidade da substituição do tradicional monólogo, de P- ou que toca para você, certo?
nossas salas de aula, por uma prática discursiva na qual o diálo- Segundo Hilgert (l998), seqüências deste tipo são considera-
go adquira local de destaque. Ainda na visão de Medeiros (2000), das adjacentes e simples porque o segundo elemento reforça a idéia
o diálogo é de extrema necessidade por inúmeros motivos, en- apresentada no primeiro de forma imediata, fazendo a substituição
tre os quais destacamos: de uma palavra por outra.
a) muitas vezes o que o professor pensa estar ensinando alcan
ça um sentido completamente diferente pelos alunos; ESTRATÉGIA 02- Paráfrases complexas
b) uma Educação Matemática libertadora não é atingida atra
vés de qualquer metodologia de ensino; Seq. 04 ( linhas 151-152):
c) o professor precisa apreender a subjetividade inerente a seus M- Pr.1: ele chegou a conclusão,
alunos; P1-  ele chegou ao resultado desse problema, né?
d) o ensino da matemática não deve ser visto como uma impo P2-  quer dizer, ele usou um auxílio,
sição. para encontrar a solução de um problema
Nesse sentido, comungamos com Oliveira (l998 : l76), quan- Seq. 05 (linhas 103-104):
do afirma: M-  Pr.2 ...com sacerdotes,
P1-  com pessoas que eram religiosas,
“A interação refere-se à possibilidade de o ouvinte interagir
P2-  que viviam, quer dizer, exclusivamente, pra que?
com o falante. Na conversação, geralmente, cada participan-
pa/ pra rezar
te tem a oportunidade e o direito de falar e de ouvir, sendo a
Nestas seqüências (04 e 05), a reformulação também ocorre
fala produto de cooperação conjunta.”
de forma imediata. No entanto, esse recurso acontece através de um
Gomes (2000), fundamentando-se em Passeggi e Passeggi encadeamento parafrástico. Observe-se que as duas seqüências apre-
(l998), comenta que nós conhecemos pouco sobre as relações exis- sentam como peculiaridade o uso do marcador de paráfrase (quer
tentes, em sala de aula, no momento de professor e o aluno lidarem dizer).
com a leitura de textos. Nesta linha de pensamento, Passeggi, M. C.
(l998) comenta: ESTRATÉGIA 03- Paráfrases não adjacentes
“ O ato de explicar ou de fazer(-se) compreender inclui-se
entre as atividades de linguagem que praticamos, cotidiana- Seq. 06 ( linhas 254-259)
mente, em diferentes situações de comunicação, por iniciati- M Pr.01 ...então, essa, esse, esse, esse uso de fração
va própria ou por solicitação do outro, para solucionar um ele vem muito de antigamente
problema de intercompreensão. Na sala de aula, essa ativida- mas, só nos dias modernos,
de passa a ser compreendida como ato central do discurso de é que esses números, eles estão sendo considera
ensino/aprendizagem, realizado tanto pelo professor quanto dos verdadeiros, porque o homem tem a necessidade
pelo aluno.” de utilizar agora
P que o estudo deles vem de muito tempo, né?
A comunicação entre os sujeitos ocorre através de atividades Seq.07 ( linhas 454-459)
diversificadas, como gestos, produções escritas, diálogos, solicita- M Pr.01: a matemática é uma coisa pura é:: ou não é?
ções, e diversos atos denominados aqui de explicativos. Estes, no

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 611


A: é:: nentemente interativas. Têm como principal propósito, chamar aten-
(( professor não observa a fala do aluno)) ção do aluno para o conteúdo em discussão. Observem que os pro-
P Pr.1: se dois e dois são quatro, fessores fazem a pergunta e apresentam, a seguir, a resposta, sem
não podemos dizer que dois vezes dois é:: cinco, né? esperar a resposta do aluno. Além desse propósito, funcionam como
tá errado, então na matemática não existe dúvidas, uma tentativa de procurar a adesão do aluno referentemente ao que
não pode haver distinções, está sendo dito. Esse tipo de recurso costuma vir marcado pelo
a matemática é uma coisa exata, né? marcador interacional, né.
Nessas seqüências, a conversação é estruturada, observando- Além das estratégias discutidas, fica explícito que os professo-
se uma abrangência maior. Note-se que o enunciado reformulador res recorrem, freqüentemente, ao uso de expressões “né” e “certo”,
não ocorre logo em seguida ao enunciado de origem (matriz), e sim como uma forma de chamar atenção dos alunos para o conteúdo, em
após tópicos conversacionais maiores, em forma de resumo. discussão.
Numa visão preliminar, percebemos um discurso assimétrico
ESTRATÉGIA 04- Repetição (auto-repetição e alo-repetição) no qual as estratégias de reformulação servem como principal elo,
entre o texto-fonte e o texto-mediador, para a construção dos concei-
Seq. 08 (linhas 32-36) tos matemáticos.
Pr. 01: ...é vamos ter como exemplo uma barra de chocolate,
certo? 3. Considerações finais
então, nós temos aqui uma barra de chocola
te inteira, certo? Os professores no seu discurso operacionalizam vários tipos
só que essa barra, nós podemos pegar ela e::: de estratégias interativas. Nesta pesquisa, identificamos as paráfra-
dividir essa barra, não é? ses adjacentes simples, as adjacentes complexas e as não-adjacentes,
nós podemos pegar essa barra e dividir em três pedaços, além de alguns casos de auto-repetição e alo-repetição e indagação.
Seq.09 (linhas 30-37) Elas aparecem através de um discurso assimétrico, no qual a oralização
Pr.02: ... cinqüenta vaca por três, como que ficaria? (++) do texto escrito serve como principal elemento mediador para a cons-
( ( ruídos)) trução dos conceitos matemáticos.
A ( incompreensível)
Pr.02: como é? Referências bibliográficas
A: é::: ficaria quinze vacas para cada (+) e sobraria cinco,
Pr. 02: ficaria cinco vaca para cada e sobravam cinco, né? BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros
certo, mas se fosse para todos ficarem com a mesma curriculares nacionais: matemática. 3º e 4° ciclos, Brasília: MEC/
quantidade, igual né? SEF, 1998.
Seq. 10 (linhas 43-45) BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo:
Pr.03- ...e de modo que a soma de duas partes, Hucitec, 1992.
de duas partes (++) menores, COSTA, A. A origem dos números fracionários. In: Talhan, M.(ed.)
sejam iguais ao sétimo da soma das outras duas, Matemática divertida e curiosa. Rio de Janeiro: Record. 1996
das outras três, né? D’ AMBRÓSIO, B. Formação de professores de matemática para o
Nas seqüências (08) e (10), temos casos de auto-repetição. Os séc. XXI: o grande desafio. Proposições, 4 (1):10, l993.
professores, na tentativa de se fazerem entendidos, enfatizam sua GOMES, A. S da S. Estratégias interativas no discurso explicativo
explanação, mantendo um grau máximo de equivalência semântica em aulas de língua portuguesa. Dissertação de mestrado, UFRN
entre os enunciados produzidos por ele mesmos. Já na seqüência – Natal /RN, 2000.
(09), temos um caso de alo-repetição. O professor repete o enuncia- GRIGOLETTO, M. Processos de significação na aula de leitura em
do produzido por um dos alunos para confirmar que a resposta está língua estrangeira. In: Coracini M. J. (org.) O jogo discursivo
certa, dando, a seguir, continuidade ao discurso. na aula de leitura. Campinas, SP: Pontes, l995.
HILGERT, J.G. Procedimentos de reformulação: a paráfrase. In: Preti,
ESTRATÉGIA 05- Indagação ( perguntas retóricas) D. (org.) Análise de textos orais. São Paulo: Humanitas, 1997.
KLEIMAN, A. Diálogos truncados e papéis trocados: o estudo da
Seq. 11 ( linhas 261-265) interação no ensino de língua materna, Alfa, : 59-74, l993.
Pr.01: ...an/ antigamente pa/ para o homem saber MEDEIROS, C. F. Por uma educação matemática como
quantas cabeças de gado ele tinha, intersubjetividade, In: Bicudo, M.A (org.) Educação Matemáti-
ele usava o que? pedras, né? ca. São Paulo: Moraes, 2.000.
juntava as pedras, cada pedra daquela significava, o que? MENEZES DE SOUZA, L. M. T. O conflito de vozes na sala de
uma cabeça de boi, né? aula. In: Coracini, M. J. ( org.). O jogo discursivo na aula de
Seq. 12 ( linhas 422-423) leitura. Campinas, SP: Pontes, 1995.
Pr. 02: se um ano são doze meses, OLIVEIRA, M. S. A oralidade e a escrita em interações narrativas.
então, a metade de um ano dá o que? In: Passeggi, L. (org.). Abordagens em lingüística aplicada. Na-
seis meses, né? tal, RN: EDFURN, 1998.
Seq. 13 ( linhas 154-156) PASSEGGI, M. C. O discurso explicativo e o uso do texto didático
Pr. 03: nas frações tem as equivalentes e as irredutíveis, em sala de aula. In: Passeggi, L. (org.) Abordagens em lingüís-
o que é fração equivalente? tica aplicada., Natal, RN: EDFURN, 1998.
frações iguais, né? PASSEGGI, M.C. & PASSEGGI, L. Uma análise da sala de aula
Observando Oliveira (1998), consideramos tais perguntas emi- para a formação do professor. 1998, Inédito.

612 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A relação entre gênero, enunciado e texto:
uma leitura bakhtiniana
Rosângela Hammes Rodrigues
Universidade Federal de Santa Catarina

RÉSUMÉ: Le but de ce travail est de présenter une lecture interpretative de l’articulation des conceptions d’énoncé, de genre du discours et de texte dans
la théorie de Bakhtine.
PALAVRAS-CHAVE: Enunciado, gênero do discurso, texto, Bakhtin

1. Introdução posição valorativa do falante e dos outros participantes da comunica-


ção discursiva. A expressividade sempre está presente, pois não pode
Os estudos de Bakhtin (e seu grupo) constituíram-se como fun- haver enunciado neutro. No próprio processo de construção do enun-
damento para diversas perspectivas teóricas de estudo da linguagem, ciado ele já é expressivo, pois não se costuma tomar a palavra do
podendo-se considerar o autor como um precursor (um antecipador) sistema da língua, mas de outros enunciados (enunciados afins do
de muitas dessas orientações. Nesse diálogo com o teórico russo, em ponto de vista do gênero, alheios etc.). Ele se constrói dialogicamente
consonância com o objeto de pesquisa, essas diferentes orientações com o discurso do outro: ele mesmo é uma reação-resposta face a
privilegiam, põe em foco determinados conceitos discutidos na teo- outros enunciados já-ditos, está orientado para a reação-resposta
ria bakhtiniana. ativa do interlocutor. Se do ponto de vista da alternância e da
Nos estudos de análise dos gêneros do discurso que têm como conclusividade o enunciado se mostra como uma unidade da comu-
fundamento essa teoria, alguns conceitos mostram-se como centrais. nicação discursiva, do ponto de vista da expressividade ele marca a
Neste trabalho, apresenta-se uma análise interpretativa dos conceitos sua característica de elo da comunicação discursiva, o caráter
de enunciado e gênero do discurso, articulando-os com a noção de dialógico da sua constituição: para a sua interpretação, não pode
texto, feita a partir da teoria bakhtiniana. ser separado dos outros elos (os outros enunciados). A
expressividade não pode ser considerada como uma propriedade da
2. A concepção de enunciado como unidade da comunicação língua, que dispõe das formas lingüísticas para manifestar a atitude
discursiva emotivo-valorativa, mas que, vistas apenas como recursos, são des-
providas de acento de valor.
Para Bakhtin, o uso da língua dá-se em forma de enunciados. O c) Conclusividade: Representa a manifestação da alternância
enunciado, como uma totalidade discursiva, não pode ser considerado dos sujeitos discursivos vista do interior do enunciado. O interlocutor,
nem como uma unidade de nível superior e último do sistema da lín- ao ouvir ou ler o enunciado, percebe o dixi conclusivo do falante. O
gua (estruturalismo), nem como uma unidade convencional, pois ele é “cálculo” da conclusividade do enunciado constrói-se através de cri-
concebido em um outro campo de relações, o das de sentido. Ele é a térios particulares, sendo o mais importante a possibilidade de ser
unidade real e concreta da comunicação discursiva, uma vez que o contestado, ou seja, de se poder tomar uma atitude de resposta face a
discurso só pode existir na forma de enunciados concretos e singula- ele, determinada por três fatores: o tratamento exaustivo do sentido
res, pertencentes aos sujeitos discursivos de uma ou outra esfera da do objeto do enunciado, a vontade discursiva do falante e o gênero
atividade e comunicação humanas. “El discurso siempre está vertido do discurso. O objeto do discurso, quando se converte em tema de
en la forma del enunciado que pertenece a un sujeto discursivo deter- um enunciado, adquire caráter de concluído, de acabamento relativo
minado y no puede existir fuera de esta forma.” (Bakhtin, 1985: 260). naquele enunciado, segundo as condições da situação de interação.
No entanto, por mais diversificados que possam ser os enunci- A vontade discursiva, momento subjetivo do enunciado, dentro das
ados, traços da sua relação constitutiva com a sua esfera social de condições particulares das diferentes situações de interação, também
comunicação (esfera cotidiana, do trabalho, científica, religiosa, “molda” o enunciado, determinando seu volume, seus limites. Ela
jornalística etc.), todos possuem certas características em comum, relaciona-se com o gênero do discurso do enunciado, que se define
que lhes conferem o estatuto de unidade da comunicação discursiva. pela situação de interação. É a noção acerca do gênero do discurso
Essas características são: que baliza o falante e o escritor no processo discursivo, que orienta o
a) Alternância dos sujeitos discursivos: Todo enunciado é interlocutor na interpretação do acabamento do enunciado (seu volu-
único, irrepetível, constitui-se como uma postura ativa do falante (ou me, a atitude valorativa). Através da conclusividade também se pode
escritor) dentro de uma ou outra esfera de objetos e sentidos. Como estabelecer a diferença entre o enunciado e as unidades da língua.
unidade singular da comunicação discursiva, possui início e fim, que Para que um enunciado provoque uma atitude de resposta não é sufi-
o delimitam dos outros enunciados, os já-ditos e os enunciados-res- ciente que seja lingüisticamente compreensível, propriedade das uni-
posta. As fronteiras do enunciado se delimitam pela alternância dos dades da língua. Ele precisa ser um todo concluído, constituir-se como
sujeitos discursivos, que se caracteriza pelo fato de que em uma situ- um novo elo da cadeia da comunicação discursiva. O sentido do enun-
ação social determinada, dentro dos propósitos discursivos e das con- ciado interpreta-se a partir do tratamento exaustivo do sentido do
dições daquela situação social de interação, o falante concluiu o que objeto, da vontade discursiva, do gênero do discurso.
objetivara/pudera dizer (dixi conclusivo) e termina (acaba) o seu enun- Essas propriedades do enunciado diferenciam-no das unida-
ciado, “cedendo a palavra” ao interlocutor, para dar lugar a sua pos- des da língua (sistema), que são, para o autor, unidades convencio-
tura de resposta (imediata ou não, verbal ou em outra forma semiótica). nais, resultado do processo de abstração de determinados aspectos
A alternância “emoldura” o enunciado, estabelece suas fronteiras. da comunicação discursiva. Por exemplo, a oração não se delimita
b) Expressividade: O enunciado é a instância da expressão da pela alternância dos falantes, não tem contato direto com a situação
extraverbal do enunciado, não se relaciona com outros enunciados,

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 613


não possui sentido completo e nem a capacidade de determinar por si sim, a noção dos gêneros levanta a questão da articulação entre enun-
mesma uma postura de resposta do interlocutor. Ela possui natureza ciado e gênero na teoria bakhtiniana, que só pode se compreendida
e limites gramaticais. Como unidade da língua, ela é neutra, não pos- na sua relação histórica. Os gêneros não são criados livremente pelo
sui expressividade. Ela adquire matiz expressivo no enunciado. Por falante, mas lhe são dados (embora cada falante também contribua
exemplo, a oração “Que tristeza!”, em diferentes enunciados, pode para a sua continuidade e a sua mudança). Como tipos temáticos,
adquirir um matiz alegre, irônico ou triste. O aspecto valorativo e a estilísticos e composicionais relativamente estáveis dos enunciados
expressividade se manifestam no uso ativo das unidades da língua. singulares, os gêneros constituem-se historicamente a partir de situa-
Ainda, todo enunciado possui autor e destinatário, outra diferencia- ções de interação da vida social relativamente estáveis.
ção, do ponto de vista da expressividade, entre o enunciado e as uni- As diferentes esferas sociais, com suas funções sócio-ideoló-
dades da língua, que são impessoais. Quanto à conclusividade, a ora- gicas e suas condições concretas específicas (organização sócio-eco-
ção possui natureza, conclusividade e unidade gramaticais, mas não nômica, relação entre os participantes da interação etc.) constituem
possui plenitude de sentido, nem capacidade de determinar por si historicamente na/para as suas interações sociais seu repertório de
mesma uma postura de resposta. A oração é uma unidade significante gêneros, que lhes são próprios. Os gêneros correspondem a diferen-
da língua. Nela existe uma potencialidade de sentido, que se concre- tes situações de interação social nestas esferas e, como tal, apresen-
tiza no enunciado. tam, na sua constituição, a finalidade e as condições da esfera a qual
Portanto, a interpretação da totalidade do enunciado, como um pertencem, tem sua própria concepção de autor e destinatário. “Una
todo de sentido, implica considerar, para além da sua dimensão ver- función determinada (científica, técnica, periodística, oficial, coti-
bal, a sua parte extraverbal. Esta, no entanto, não é concebida como diana) y unas condiciones determinadas, específicas para cada es-
algo que “envolve” o enunciado, mas como uma parte que lhe é fera de la comunicación discursiva, generan determinados géneros,
constitutiva. Esse horizonte extraverbal, formado pelos horizontes es decir, unos tipos temáticos, composicionales y estilísticos de enun-
espacial e temporal, temático, axiológico e pelos participantes da ciados determinados y relativamente estables.” (Bakhtin, 1985:252).
interação, constitui-se na situação social de interação do enunciado. Nessa perspectiva, observa-se que a variedade e a diversidade dos
Só se pode interpretar o sentido de um enunciado (ou seja, só se está gêneros é extremamente grande, porque as possibilidades da ativi-
diante de um enunciado) quando se leva em consideração a relação dade e da comunicação humanas são inesgotáveis e porque em cada
inextricável entre as suas dimensões verbal e social. esfera existe um repertório de gêneros que se diferencia e cresce à
Na análise do enunciado e da sua relação comparativa com medida que a esfera se desenvolve e se “complexifica”. Pode-se
as unidades da língua (sistema), pode ser esboçada a posição de falar de gêneros cotidianos, artísticos, jurídicos, científicos,
Bakhtin a respeito das suas concepções teóricas sobre discurso e jornalísticos, escolares, entre outros, como um princípio de agru-
língua, objetos da metalingüística (uma translingüística) e da lin- pamento dos gêneros pelas esferas, lugar da sua constituição e do
güística respectivamente. Estas disciplinas tratam de um mesmo seu funcionamento.
fenômeno concreto, muito complexo e multifacetário, o discurso, Assim, é preciso notar que a definição bakhtiniana de gêneros
mas estudado sob diferentes aspectos e ângulos de visão. A do discurso como tipos relativamente estáveis de enunciados dá-se
metalingüística orienta-se para o discurso, ou seja, “a língua em pelo ângulo histórico, não a partir de um processo de abstração teó-
sua integridade concreta e viva e não a língua como objeto especí- rico. A noção de “tipo” que corresponde a definições e classificações
fico da lingüística, obtido por meio de uma abstração absoluta- de caráter teórico-abstrato não equivale àquela proposta por Bakhtin.
mente legítima e necessária de alguns aspec tos da vida concreta É por outra via de abordagem que ele concebe a noção de tipo: os
do discurso” (Bakhtin, 1997:181). Ela estuda os aspectos da vida gêneros são formas típicas históricas relativamente estáveis de enun-
do discurso que ultrapassam os limites teóricos da lingüística. Essa ciados, articulando as dimensões histórica e normativa. É com a no-
diferenciação teórico-metodológica do objeto de pesquisa desig- ção de gênero histórico e não de gênero teórico-abstrato que ele tra-
nou-se aqui como língua-discurso e língua-sistema. balha, como observa Todorov (1981:142): “Bakhtin, on l’a vu, ne
déduit pas les genres à partir d’un principe abstrait, à la manière de
3. Os gêneros do discurso como tipos de enunciados Shelling ou de Hegel; il les trouve.”

Segundo Bakhtin, a construção do enunciado, apesar da von- 4. O lugar da noção de texto


tade discursiva do falante, não pode ser vista como uso e combina-
ção absolutamente livres das formas da língua. Os enunciados pos- Abordada a relação entre enunciado e gênero, fica a questão
suem formas típicas, relativamente estáveis, para a estruturação da do lugar e do papel do texto. As considerações em torno da noção de
totalidade discursiva, os gêneros do discurso. Para a interação ver- texto permeiam os trabalhos de Bakhtin, podendo ser encontradasem
bal, são necessárias, além das formas da língua nacional (léxico, gra- trabalhos seus publicados na década de 20 ou ainda em Problemas
mática), as formas do discurso, os gêneros, embora estes sejam ape- da poética de Dostoiévski (1997), por exemplo. É no ensaio El pro-
nas relativamente estáveis e mais flexíveis e combináveis, mais sen- blema del texto en la lingüística, la filología y otras ciencias huma-
síveis e ágeis às mudanças sociais que as formas da língua. “Nos nas (1985), publicado em 1949-1960, que o autor centra-se mais es-
expresamos únicamente mediante determinados géneros discursivos, pecificamente na elaboração dos fundamentos da noção de texto. Na
es decir, todos nuestros enunciados posen unas formas tipicas para perspectiva do autor, o texto é a unidade, o dado primário, o ponto de
la estructuración de la totalidad, relativamente estables. Disponemos partida para todas as disciplinas do campo das ciências humanas,
de un rico repertorio de géneros discursivos orales y escritos. En la pois ele é a realidade imediata para o estudo da constituição do ho-
práctica los utilizamos com seguridad y destreza, pero teóricamente mem social e da sua linguagem, que são mediados pelo texto. O ho-
podemos no saber nada de su existencia.” (Bakhtin, 1985:267). mem se “exprime” somente em forma de textos (verbais ou não).
Entretanto, uma análise das particularidades distintivas – como Portanto, o acesso ao homem social e a sua linguagem efetua-se so-
a estabilidade e a normatividade – entre as formas da língua e as do mente pela via do texto.
discurso não deve levar a crer na anterioridade daquelas sobre os A articulação entre as noções enunciado e texto também se
gêneros, como no caso do processo de aquisição da linguagem. Elas encontram trabalhadas no referido ensaio. A distinção teórica que
são adquiridas conjuntamente. Aprender a falar significa aprender a Bakhtin estabelece entre discurso e língua (objeto da lingüística),
produzir enunciados, construídos em um determinado gênero. As-

614 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


que aqui se designou como língua-discurso e língua-sistema, tam- falsos ni bellos, etcétera.” (Bakhtin, 1985: 315-316)
bém pode ser aplicada para a diferenciação teórica entre enunciado e Portanto, quando Bakhtin concebe o texto como o dado pri-
texto. Fazendo-se uma paráfrase, tem-se que o texto, visto na sua mário, o ponto de partida para o estudo do homem social e da sua
integridade concreta e viva, e não o texto como objeto da lingüística, linguagem, o autor está se referindo ao texto-enunciado. Nessa ori-
faz dele um enunciado. Como no caso da dupla orientação para a entação, pode-se também buscar estabelecer a relação entre gênero e
língua, pode-se adotar a dupla orientação para com o texto, que se texto. Se se considera o texto como enunciado, os gêneros do discur-
nomeou como o texto-sistema e o texto-enunciado. O autor salienta so constituem-se como tipos históricos relativamente estáveis de tex-
que dois aspectos determinam um texto como um enunciado: o seu tos. Nesse caso, pode-se falar de gêneros textuais como tipos históri-
projeto discursivo e a realização desse projeto, sendo que a inter- cos de textos, como Bakhtin mesmo o faz: “El problema de los límites
relação entre eles imprime o caráter do texto. Assim, o texto, visto textuales. El texto como enunciado. El problemas de funciones del
na sua integridade, ou seja, visto como enunciado, tem uma função texto y de los géneros textuales.” (Bakhtin, 1985:295).
ideológica particular, tem autor e destinatário, mantém relações Entretanto, na abordagem do texto como objeto da lingüística,
dialógicas com outros textos etc., isto é, ele é um enunciado, pois é a noção de tipo de texto não corresponde à noção de tipo relativa-
visto na sua integridade. mente estável de enunciado, ou seja, ao conceito de gênero defendi-
Nessa orientação, portanto, o texto pode ser concebido de uma do por Bakhtin. Isso porque se abstraem os aspectos sócio-discursivos,
dupla perspectiva: do pólo da língua (língua-sistema) e do texto (tex- estando a noção de tipo textual não assentada em um princípio histó-
to-sistema); e do pólo do discurso (língua-discurso) e do enunciado rico, mas abstrato-formal. Daí que é possível falar em tipos, protóti-
(texto-enunciado). O primeiro pólo do texto, abstraído da sua di- pos de texto, mas não de gêneros.
mensão social, está relacionado com tudo aquilo que é e pode ser Dessa forma, é por essas razões que se considera que se de
reproduzido e repetido no texto, ou seja, a língua como sistema de uma perspectiva de análise se pode considerar o texto como enunci-
signos e o texto também como sistema de signos. Já o segundo pólo ado, por outro lado já não é mais possível, pois se abstraem as rela-
é o do acontecimento irrepetível do enunciado, que pertence ao tex- ções do texto com a realidade, os falantes e os outros textos. Ou seja,
to, mas que só se manifesta na situação, na interação com outros exclui-se da análise do enunciado a sua dimensão social. Por isso, na
textos (enunciados). Dessa forma, do ponto de vista do segundo pólo, relação entre as noções de enunciado, gênero e texto, como no caso
e somente a partir dele, pode-se estabelecer que o texto é enunciado, da língua e do discurso, é preciso manter no horizonte de análise
que a língua é discurso. aquilo que os aproxima e que os diferencia nas diferentes abordagens
Segundo Bakhtin, na análise científica, pode-se ir tanto para o teóricas: tem-se ou o texto-enunciado ou o texto-sistema. Tudo de-
primeiro como para o segundo pólo do texto. Na primeira orienta- pende do olhar do analista.
ção, o foco centra-se na análise da língua do autor, de uma época, do A questão é que, como diria Bakhtin, na orientação para o
gênero, da língua nacional (objetos da lingüística), da potencial lín- objeto do discurso, não dá para não tocar nos outros fios existentes,
gua das línguas (abordagem do estruturalismo ou da glossemática), isto é, nos outros discursos sobre o objeto. A problemática é quanto
do texto como sistema de signos. Na segunda orientação, o foco ori- se fala em texto, tipo de texto, logo se tem várias concepções de
enta-se para a análise do discurso, do enunciado e dos seus diferen- texto, tipologias, o que acaba transformando a polissemia do termo
tes aspectos e dos gêneros do discurso. Essa divisão teórico- em ambigüidade. Misturam-se tipologias, elaboradas a partir de
metodológica pode ser comparada à diferenciação que o autor esta- critérios totalmente diferentes. Fazendo uso das observações que o
belece para os limites e o objeto de estudo da lingüística e da autor tece a respeito de determinadas classificações elaboradas dos
metalingüística. Portanto, constituem-se como objeto da lingüística: estilos da língua, misturam-se os princípios de classificação, não se
a língua, o texto (sistema de signos) e as relações sintático- mantendo o requisito necessário para qualquer classificação, a sua
composicionais, semânticas (lógicas ou dialéticas) no sistema da lín- unidade de fundamento. Por isso, talvez, Bakhtin tenha trabalhado
gua ou nos limites dos textos. Como objeto da metalingüística tem- antes com o termo gêneros do discurso, mantendo, com isso, a sua
se o discurso, o enunciado, os gêneros do discurso, as relações diferença face às concepções que sustentam as diversas tipologias
dialógicas entre o enunciado e a realidade, o sujeito falante e os ou- textuais existentes.
tros enunciados (ou que atravessam o enunciado), a questão da auto-
ria etc. Na percepção bakhtiniana, a lingüística e a metalingüística Referências bibliográficas
(translingüística) estudam um mesmo fenômeno concreto, o discur-
so, mas o estudam sob diferentes aspectos e de diferentes ângulos de BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. 2. ed.
visão, devendo completar-se mutuamente, sem se fundir. rev. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
“Si simplificamos un poco, se podría decir que las relaciones _____. El problema de los géneros discursivos. In.: ___. Estética de
exclusivamente lingüísticas (o sea, el objeto de la lingüística) la creación verbal. 2. ed. México: Siglo Veintiuno, 1985. p. 248-
representan relaciones entre los signos en los límites de la lengua o 293.
de un texto (esto es, se trata de relaciones sistémicas o lineares entre _____. El problema del texto en la lingüística, la filología y otras
los signos). Los nexos que se establecen entre los enunciados y la ciencias humanas. Ensayo de análisis filosófico. In.: ___. ___.
realidad, entre el enunciado e el sujeto hablante real y entre el enun- p.294-323.
ciado y otros enunciados reales (...), nunca pueden llegar a ser obje- TODOROV, Tzvetan. Mihaïl Bakhtine: le principe dialogique. Pa-
to de la lingüística. Los signos separados, los sistemas lingüísticos o ris: Seuil, 1981.
el texto en tanto que unidad sígnica nunca pueden ser verdaderos ni

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Página, seção, notícia, nota:
critérios de identificação do gênero no jornal
Adair Bonini
Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL

ABSTRACT: The present paper deals with an analysis of the structure on “Folha de São Paulo” newspaper. Based on this analisis one tries to do some
generalizations about which are the genres concerned newspapers and what, in terms of structure and function, justify this belonging. Thus, one looks to the
newspaper as genre composed and to the genres as components.
PALAVRAS-CHAVE: gênero textual; jornal; gêneros jornalísticos.

1. Introdução fundamentam; e ii) o papel dos gêneros na estruturação e na organi-


zação do jornal como um hiper-gênero. Nesta perspectiva, é impor-
Muito embora haja trabalhos sobre diversos gêneros do jorna- tante que a teoria de gênero tomada como base apresente uma
lismo (Vasconcelos e Cantiero, 1999), do jornal (van Dijk, 1990, metodologia de identificação de estruturas textuais e dos eventos co-
Guimarães, 1992, Bonini, s. d.) e mesmo sobre componentes do tex- municativos que elas perfazem, para que estes possam ser confronta-
to de jornal (Lonardoni, 1999), tradicionalmente, quando há referên- dos. A noção de gênero tomada como ponto de partida, então, é a de
cia à categoria gêneros jornalísticos, citam-se uns poucos membros Swales (1990, p. 58), qual seja:
mais característicos, sobre os quais se tem certa clareza, tais como a
notícia, a reportagem e o editorial. Há uma carência de trabalhos que Um gênero compreende uma classe de eventos comunicativos,
tratem o todo, de modo que fenômenos de textualização como as cujos exemplares compartilham os mesmos propósitos comunicati-
seções e as páginas de jornal permanecem praticamente uma incóg- vos. Estes propósitos são reconhecidos pelos membros especialistas
nita quanto ao tratamento genérico que devamos dar-lhes, pois se, da comunidade discursiva de origem e, portanto, constituem o con-
por um lado, apresentam certos comportamentos relativos à noção de junto de razões (rationale) para o gênero. Estas razões moldam a
gênero que detemos no momento, por outro, se distanciam bastante estrutura esquemática do discurso e influenciam e limitam (constrains)
dos padrões próprios de membros como notícia e reportagem. a escolha de conteúdo e de estilo.
Embora muitas tipologias tenham sido elaboradas (Melo, 1985),
continua em falta uma explicação geral dos princípios de organiza- 2.2. Gêneros jornalísticos na literatura da área
ção do jornal e dos gêneros que aí se incluem, estando ainda por
serem respondidas questões de base como o que é um gênero Para Swales, um importante critério na identificação e análise
jornalístico e como este se constitui. de gêneros é ater-se à nomenclatura estabelecida na comunidade
No geral, os analistas de gêneros têm compartilhado a noção discursiva de origem, uma vez que seus membros mais aptos tende-
de que um gênero específico seja um elo de uma “cadeia de encaixes rão a reconhecer uma ação retórica recorrente atribuindo-lhe um nome.
sucessivos”. Este tema, contudo, permanece bastante nebuloso, uma Um bom ponto de partida para este levantamento, quanto aos
vez que os pesquisadores não têm optado pela análise de cruzamen- gêneros jornalísticos, pode ser o trabalho de Melo (1998). No capítu-
tos, mas pela dos gêneros específicos, tais como a carta de promoção lo dois deste livro, o autor faz um apanhado das tentativas de se esta-
de vendas (Bhatia, 1993). belecer uma tipologia dos gêneros jornalísticos. Ao todo, levanta 10
Olhar, contudo, para os gêneros jornalísticos a partir do pro- classificações na literatura de vários países.
cesso de textualização do jornal, me parece uma forma produtiva Da análise destas tipologias, três linhas de conclusões podem
tanto para clarear a noção de gênero de um modo geral como para ser esboçadas: i) a noção de gênero provém da teoria da informação
determinar a especificidade dos gêneros do jornal, identificar outras (Shannon e Weaver, 1963, Berlo, 1979); ii) a teoria de gênero toma-
estruturas genéricas e responder intrinsecamente o que vem a ser um da como base não possibilita o levantamento de critérios relativos
jornal. aos gêneros propriamente, mas às funções do jornal; e iii) a
É com base nesta postura, de considerar a totalidade e as rela- inexistência de critérios mais refinados dificulta a visualização dos
ções hierárquicas na textualização do jornal, que tenho desenvolvido limites da categoria que se quer classificar.
o projeto “O encaixe dos gêneros no jornal: a questão do intragêneros”, Os gêneros, nessas tipologias, permanecem praticamente
do qual este artigo é um resultado preliminar. inexplorados quanto a uma caracterização mais especializada. No
Neste texto, atendo-me à estrutura do jornal Folha de São Pau- geral, as funções levantadas dizem respeito ao jornal como um todo
lo, pretendo tecer reflexões iniciais quanto às questões: i) O que pode – informar, interpretar, opinar, entreter etc. –, mas não fica claro o
ser considerado gênero em um jornal?; ii) Quais gêneros pertencem porquê de se ter selecionado exatamente estas funções. Menos cla-
efetivamente ao jornal?; iii) Os gêneros do jornal apresentam um ros, ainda, são os objetivos para estas tentativas de sistematização
mesmo estatuto de constituição? dos gêneros, se para compreender melhor o jornal, para ganhar clare-
za quanto a tais gêneros, para promover recursos didáticos ou outros.
2. Revisão da literatura Mais que explicar os gêneros jornalísticos, as classificações revelam,
em efeito especular, as escolas jornalísticas, as tendências que um
2.1. Conceito de gênero tomado como base jornal pode imprimir em suas páginas – a informativa, a interpretativa,
a opinativa (Amaral, 1982), às quais Erbolato (1991) acrescenta uma
Dadas as questões postas na introdução, os resultados aqui es- quarta, a diversional.
boçados partem de uma reflexão analítica que tenta desenhar: i) a Para Marcuschi (1996), “o desafio não está tanto na classifica-
influência do jornal na determinação dos aparatos genéricos que o ção e sim na proposição de critérios dessa classificação”. Em seu

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trabalho, busca classificar os gêneros que vão da modalidade oral à lado há uma determinação estrutural quanto ao que se quer dizer, há,
escrita, para desvendar os processos que permeiam esta passagem. A por outro, também uma pressão quanto ao espaço de veiculação des-
classificação, então, via comparação dos gêneros, tem um objetivo tas informações. Tornam-se, então, embora imbricadas, duas formas
inequívoco de discernir estas modalidades, levantando critérios que através das quais o jornalista se refere ao jornal.
as diferenciam e as aproximam. Não é o que acontece nas tipologias Em termos da organização temática, dois campos se destacam.
apontadas por Melo e mesmo em sua tentativa, quando (p. 47) seleci- O primeiro envolve a caracterização do jornal como um hiper-gêne-
ona um critério (agrupar os gêneros em categorias que correspondem ro. Nele são construídos os aparatos de identificação do jornal (cabe-
à intencionalidade determinante dos relatos através de que se confi- çalho, expediente, editorial), de sedução do leitor e de viabilização
guram), mas não justifica esta seleção, de esclarecer o porquê de se da leitura (índice, manchetes e textos de chamada) e de feedback
aplicar tal princípio de classificação. (cartas do leitor). É, propriamente, uma moldura que sustenta o se-
De qualquer modo, dessas tipologias podemos recolher, pelo gundo campo: o das ações sociais. Neste campo, ancoram-se os gê-
número de citações, os termos mais e menos convencionais, que se- neros que tratam os dados sociais, seja relatando-os (a notícia e a
rão úteis para a análise da Folha de São Paulo. De fato, os mais cita- reportagem), seja interpretando-os ou tomando posição frente a eles
dos correspondem aos gêneros comumente entendidos como (o artigo, a crítica especializada etc.).
jornalísticos. Chama a atenção, entretanto, o fato de que, mesmo nes-
Quanto à estrutura de loteamento, faz-se mediante o mecanis-
te nível, os rótulos não se distingam nitidamente.
mo básico da seção, estabelecendo-se uma ordem decrescente de en-
Com relação aos critérios aplicados nas distinções dos textos,
caixes. Como seções amplas, no entanto, tanto página quanto cader-
infiro que sejam, mais caracteristicamente, três: a forma do texto, a
especificação funcional e o conteúdo característico. Em uma distin- no disputam um mesmo status. Muito embora a página, como grande
ção pela forma, o que comumente é denominado “nota” pode se es- seção, possa ser incluída em um caderno, é comum que ela constitua
pecificar, nestas tipologias, como “gazetinha” (notícia breve) e espaço individual a partir de onde se constroem seções e colunas
“suelto1 ” (pequeno comentário). Pelo grau de especificação funcio- específicas – caso, na Folha de São Paulo, da página 1 (capa). Nesta
nal, a “notícia” pode aparecer como “nota/gazetinha”, ou a “reporta- distribuição do espaço, conteúdos não regulamentados por uma peri-
gem” como “reportagem em profundidade” e “história de interesse odicidade dada são definidos como encartes e cadernos especiais.
humano”. Pelo grau de detalhamento do conteúdo, a nota aparece Esta dupla caracterização do jornal é que, por vezes (como nas
como “da redação, de esporte, da sociedade e policial” (o mesmo se tipologias citadas acima), faz com que certas seções sejam entendi-
poderia dizer da notícia). das como gêneros. Partindo desse tipo de constatação podemos ago-
ra nos ater aos gêneros, tentando responder as questões postas na
3. Metodologia introdução deste artigo.
Na verdade, a maioria das seções do jornal constitui apenas
Com relação ao presente estudo, ao invés de classificar os gê- espaços para a ancoragem de gêneros, mas existem casos de
neros, procurei descrever o processo que os constitui como gêneros imbricação dessas duas noções (caso, por exemplo, do editorial). Esses
jornalísticos. Para isso, foi realizado um trabalho de identificação da gêneros que correspondem a seções do jornal formam o estofo da sua
estrutura do jornal, tentando discernir o que era gênero efetivamente
organização como gênero. Embora na literatura sobre gêneros textu-
e o que escapava a esta noção. Tais fenômenos, então, foram avalia-
ais o jornal seja caracterizado basicamente como um veículo, vejo
dos com relação a distinções entre si e quanto ao papel desempenha-
motivos para considerá-lo um gênero que abriga outros (ou seja, um
do na constituição do jornal.
Tomei como objeto de análise o jornal a Folha de São Paulo, hiper-gênero), porque preenche quesitos como propósitos comuni-
em um total de 30 exemplares, coletados em janeiro de 2000. cativos próprios, organização textual característica (embora ainda
Como se trata de uma trabalho ainda inicial, os resultados le- desconhecida em seus detalhes) e produtores e receptores definidos.
vantados são gerais – não havendo especificação estrutural dos gêne- Com relação aos fatos de não corresponder a um evento comunicati-
ros – e provisórios – uma vez que a análise dos demais jornais podem vo único e de corresponder (ou não) a um veículo de comunicação,
conduzir a revisões e re-elaborações destes resultados. são questões para um outro momento.
Por ora, os dados me conduzem a pensar três tipos de fenôme-
4. Discussão dos resultados nos genéricos relacionados ao jornal (quadro 1): os gêneros presos,
os gêneros livres e os aparatos de edição. Os primeiros, preenchendo
Com relação à estrutura geral da Folha, apresenta 14 cadernos as seções de base do jornal, têm lugares fixos que estruturam o jornal
que podem ser divididos em três blocos: o básico, o de cadernos fixos como gênero. Os gêneros livres, por outro lado, podem estar em qual-
e o de cadernos alternáveis. Esta divisão segue uma gradação de rele- quer das seções temáticas e são responsáveis propriamente pelo fun-
vância quanto à função central do jornal (relatar acontecimento locais, cionamento comunicativo do jornal. A notícia, neste sentido, com-
regionais e mundiais) e quanto aos demais interesses informativos dos põe um evento comunicativo ancorado em uma das seções temáticas
leitores de um modo geral (de abrangência ampla, como o tema econo- que, dependendo de seu grau de interesse social, é anunciado na pri-
mia, e restrita, como a informação para o público infantil).
meira página do jornal, mediante chamada de capa.
O módulo básico compõe-se das estruturas que caracterizam o
Quanto aos aparatos de edição, muitas vezes concebidos na
jornal, determinando sua utilização (o índice dos cadernos, por exem-
literatura da área como gêneros, correspondem, ao que tudo indica, a
plo), e de seu conteúdo central (as notícias distribuídas por importân-
cia geográfica – Brasil e mundo). Os dois módulos restantes dispõem mecanismos de instauração dos gêneros jornalísticos. Em uma re-
o conteúdo por área de interesse, atendo-se a públicos específicos portagem, por exemplo, podem aparecer, como recursos acessórios,
(ou pelo menos a interesses específicos), constituindo-se os cadernos dependendo do assunto tratado, uma lista de nomes, uma tabela, um
aí encontrados quase que como jornais à parte. Os cadernos alternáveis, gráfico, uma citação, um perfil, etc.
neste sentido, são tanto mais específicos quanto mais de interesse do Determinados os gêneros do jornal, resta tratar a questão de
leitor mais restrito. seus níveis de especificação. Como vimos nas tipologias apresenta-
A distribuição dessas seções me conduziu, no plano da estru-
tura, a trabalhar a distinção – que talvez sirva para os demais jornais
– entre estrutura temática e estrutura de loteamento, pois se por um 1 Não é um termo característico do jornalismo brasileiro.

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das por Melo, há casos em que um gênero é contado como vários, sencadear processos opinativos); ii) centralidade em relação à
quanto a sua especificidade temática. Penso que temos, nesse nível, estruturação do jornal como gênero.
os fenômenos dos subgêneros e dos pré-gêneros, que podem ter ori- Questão 3: Os gêneros do jornal apresentam um mesmo esta-
gem em diversas causas. tuto de constituição? A princípio pode-se dizer que há duas ordens
de constituição: i) a dos que produzem o funcionamento do jornal; e
ii) a dos que o estruturam como hiper-gênero.
Levantadas estas respostas, podemos tentar ainda postular al-
guns critérios de identificação do gênero no jornal. Como há o risco
de nos perdermos em especificações extremas (notícia de futebol, do
campeonato tal, escrita pelo jornalista tal) e entre estruturas que não
produzem textos minimamente identificáveis em suas fronteiras (se-
ções do jornal), convém levantar, como gêneros do jornal, aqueles
padrões de textualização convencionais que: i) produzem textos rela-
tivamente autônomos; ii) preenchem propósitos comunicativos
identificáveis; e iii) são relativamente genéricos, de modo a serem
perceptualmente salientes aos membros da comunidade discursiva.

Referências bibliográficas
Se olharmos para os aparatos genéricos do jornal a partir do
grau de convencionalidade, poderemos conceber três níveis: o das ADAM, J-M. Les textes: types et prototypes. Paris: Nathan, 1992.
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gerais – como modalidades que estruturam a linguagem em um sen- As técnicas do jornalismo, 1990.
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um determinado discurso ou grupo deles – no presente caso, estrutu- prática. Trad. de Jorge Arnaldo Fortes. São Paulo: Martins Fon-
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vencionalmente mais estável na notícia, por exemplo, corresponde (des)conhecido ou problemas comunicativos na variação do gê-
ao que me permite transportá-la para um outro gênero, ou fazer dela nero. Revista de Letras, Fortaleza. No prelo.
uma paródia. van DIJK, T. A. La noticia como discurso: compreensión, estructura
Todos os elementos que caracterizam um gênero, contudo, y producción de la información. Trad. do inglês por Guillermo
podem servir a variados propósitos, tanto a necessidades expressivas Gil. Barcelona: Paidós, 1990.
imediatas quanto, a longo prazo, para a elaboração de um novo gêne- ERBOLATO, M. L. Técnicas de codificação em jornalismo: reda-
ro. Um escritor pode, por exemplo, elaborar um romance que tenha ção, captação e edição no jornal diário. 5 ed. São Paulo: Ática,
os capítulos começando por manchetes e lides de notícia. Nesse sen- 1991.
tido, tanto os aspectos temáticos de um gênero quanto os estruturais GUIMARÃES, D. M. Considerações sobre o esquema de editoriais.
apresentam certa saliência que os aproximam em termos dos propó- In: SEMINÁRIO DO CENTRO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS
sitos que realizam, de autênticos gêneros. A estes elementos, estou E LITERÁRIOS DO PARANÁ, 5, 1991, Guarapuava, Pr. Anais...
atribuindo o rótulo de gêneros semi-formalizados, quais sejam: Maringá: Universidade Estadual de Maringá. p. 179-184, 1992.
subgêneros temáticos (pela especificação do tema); o subgênero en- LAGE, N. Ideologia e técnica da notícia. Petrópolis: Vozes, 1979.
caixado (pela especificação de um aspecto estrutural); e o pré-gênero LONARDONI, M. A submanchete em foco: suas funções no discur-
(pela realização de um evento comunicativo específico, mas sem de- so jornalístico. In: VASCONCELOS, S. I. C.C. (org.). Os dis-
ter status convencional). cursos jornalísticos: manchete, reportagem, classificados e ar-
tigos. Itajaí: Ed. da Univale; Maringá: Eduem, 1999.
5. Considerações finais MARCUSCHI, L. A. Por uma proposta para a classificação dos
gêneros textuais. Recife, 1996. Trabalho não publicado.
Dada a exposição acima, podemos retomar as questões MELO, J. M. de. A opinião no jornalismo brasileiro. Petrópolis:
introdutórias, pontuando, assim, os resultados aqui tratados. Vozes, 1985.
Questão 1: O que pode ser considerado gênero em um jornal? SHANNON, C. E., WEAVER, W. The mathematical theory of
A princípio, podemos dizer que se trata de um conjunto de parâmetros communication. Urbana: The University of Illinois Press, 1964.
de textualização que, em função do hiper-gênero (o jornal), estruturam SWALES, J. M. Genre analysis: english in academic and research
um propósito comunicativo (noticiar, opinar, criticar, localizar), settings. New York: Cambridge University Press, 1990.
linearizando uma unidade textual identificável como totalidade. VASCONCELOS, S. I. C.C., CONTIERO, S. Um exame da organi-
Questão 2: Quais gêneros pertencem efetivamente ao jornal? zação do discurso jornalístico: a reportagem televisiva. In: VAS-
Nesta perspectiva, os gêneros do jornal, por excelência, são aqueles CONCELOS, S. I. C.C. (org.). Os discursos jornalísticos: man-
que, em relativa estabilidade e autonomia, respondem aos critérios chete, reportagem, classificados e artigos. Itajaí: Ed. da Univale;
de: i) centralidade em relação aos propósitos comunicativos do jor- Maringá: Eduem, 1999.
nal (relatar fatos e informações recentes, interpretar a realidade, de-

618 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Notícia e reportagem: uma proposta de distinção
Mirna Gurgel Carlos da Silva
Universidade Federal do Ceará

ABSTRACT: The present work is an investigation about a possible distinction between the genres “news” and “reportages” for newspaper’s journalists.
For that, was created two organization´s models, one for “news” and other for “reportages” , in order to analize the formal and fuctional criteria existing
within a 74 news and 26 reportage’s corpus of Ceara’s newspapers “O Povo” and “ Diário do Nordeste”, during July 2000. The analysis is being developed
based on the Communications and Linguistics theory’s.
PALAVRAS-CHAVES : Gênero textual; notícia; reportagem.

1 Introdução para realizamos um estudo piloto, adaptando o modelo CARS à aná-


lise da distribuição das informações nos dois gêneros. São dois casos
Apesar de bastante difundidos e produzidos largamente no co-
de uxoricídio, veiculados em 1992, nos jornais O Povo e Diário do
tidiano dos jornalistas da mídia impressa, a notícia e a reportagem
Nordeste, sendo denominados por Caso Maria/Francisco, como exem-
não se apresentam como gêneros textuais bem definidos dentro dessa
plo do gênero notícia, com dois dias de inserções na mídia impressa,
comunidade discursiva. Constata-se facilmente que as distinções te-
e Caso Ethel/Flávio, como exemplo do gênero reportagem, com qua-
óricas e, sobretudo, práticas não dispõem de um tratamento mais ci-
tro dias de inserções.
entífico e são delimitadas por normas e regras do mercado empresari-
al. Os jornalistas conhecem e adotam estratégias convencionalmente 2 Revisão da literatura
definidas pela área da imprensa na produção desses gêneros, para
Os estudos sobre gêneros textuais vêm-se desenvolvendo em
atingir quantitativa e qualitativamente a audiência pretendida. diferentes perspectivas, abrangendo variadas produções textuais em
Os leitores da notícia e da reportagem apresentam-se distribu- quadros situacionais diversos. Referência obrigatória tem sido Bakhtin
ídos nos diversos tipos de audiência da mídia impressa: os segmentos (1992[1953]), que aponta diferentes formas de estruturar a lingua-
sociais - A, B, C, D e E1 . Eles costumam reconhecer características gem e a relativa estabilidade de cada gênero. Bakhtin considera três
capazes de distinguir superficialmente o gênero notícia do gênero aspectos caracterizadores dos gêneros: a seleção de temas (conteú-
reportagem. Tais características acabam sendo, em geral, as mesmas do); a escolha dos recursos lingüísticos (estilo); e as formas de orga-
adotadas pelos profissionais para diferenciarem notícia de reporta- nização textual (construção composicional), e define gêneros como
gem, sobretudo as relacionadas à apresentação visual, à distribuição “tipos relativamente estáveis de enunciados”, marcados de acordo
gráfica e à extensão das informações nos dois gêneros. com as diferentes situações sociais a que estão relacionados
O apoio teórico da nossa pesquisa está respaldado em con- Bakhtin trata os discursos orais e escritos de diversas nature-
cepções atuais sobre gêneros textuais, mais especificamente no que zas como gêneros discursivos, subclassificando-os em gêneros pri-
se entende por notícia e reportagem, na área da Comunicação, e nas mários e secundários. Os primários estão presentes no cotidiano das
pesquisas mais recentes em análise de gêneros no campo da Lin- relações humanas, como o diálogo e a carta, e os secundários ocor-
güística. rem em esferas públicas e/ou de maior interação social, como o ro-
Na área da Comunicação, alguns estudos que abordam os gê- mance, o teatro, o discurso científico e o ideológico, entre outros.
neros produzidos na comunidade jornalística não apresentam uma Nesse horizonte, os gêneros vêm sendo entendidos como unidades
distinção precisa para os gêneros notícia e reportagem, o que colo- lingüísticas dinâmicas, estabelecidos com propósitos específicos e
ca os jornalistas à mercê de uma regulamentação convencionada conforme padrões lingüísticos e culturais de cada comunidade
dentro do mercado impresso, ou seja, do que é ditado pelas empre- discursiva.
sas de jornais. Os gêneros textuais veiculados na mídia impressa incluem-se
Dentre os estudos na área da Comunicação, que comentaremos na segunda categoria, a dos gêneros secundários e a sua classificação
a seguir, destacam-se os de Bond (1962), Beltrão (1969), Bahia (1972), vem se definindo pelo uso e por alguns estudos dentro da área
Rabaca et Barbosa (1978), Lage (1981 e 1988) e Amaral (1982). Além jornalística, sem o devido aparato teórico-descritivo para distinguir
disso, consultamos os manuais de redação e estilo do jornal O Estado notícia de reportagem. Segundo Lage (1982:33), a notícia, em seu
do São Paulo (1990) e do jornal O Globo (1992), também em busca sentido mais amplo e sua antigüidade, é um meio de transmissão de
de critérios convencionados na comunidade jornalística para caracte- experiência, possibilitando o relato de fatos a quem não os presen-
rizar os gêneros notícia e reportagem. ciou, correspondendo a relatos importantes para o comércio, a políti-
Na área da Lingüística, vale a pena mencionar os estudos de ca e outros segmentos sócio-econômicos.
Van Dijk (1990 e 1992), que descreve a superestrutura da notícia e O impacto da Segunda Guerra Mundial e a invenção do rá-
traça a sua organização interna e de Swales (1990), que propõe um dio impulsionam um novo conteúdo jornalístico atual e voltado
modelo de análise de gêneros, o modelo CARS (Create a research para a grande massa. As empresas jornalísticas substituem a pro-
space). Este último detalha a distribuição de informações em intro- dução individual, a do escritor, por uma criação coletiva elabora-
duções de artigos de pesquisa e tem se mostrado adequado para a da por uma equipe de repórteres. O aparecimento da reportagem,
descrição de diversos gêneros, por oferecer um arcabouço de movi- todavia, não significa ainda um possível gênero jornalístico dife-
mentos (moves) e passos (steps) que facilita a identificação de unida- renciado dos demais gêneros: notícia, opinião e editorial. Consta-
des de informação em outros gêneros textuais. ta-se que a reportagem e a notícia funcionam como um divisor
Com a aplicação do modelo CARS, foi possível elencar parti- entre a literatura e o jornalismo.
cularidades da notícia e da reportagem que poderão permitir a sua
identificação como gêneros específicos, considerando, especialmen-
te, como se distribuem as unidades de informação em cada um deles. 1 Conforme as classificações adotadas pelas empresas de pesquisa de audi-
Selecionamos uma pequena amostra de notícias e reportagens ência nos media para as mais variadas faixas de audiência.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 619


A reportagem passa a ser reconhecida como gênero, na prática Segundo o autor, a estratégia de produção do discurso noticioso
diária dos repórteres, com a construção da história dos fatos presen- costuma seguir alguns movimentos ou passos capazes de fazer da
tes, mas com maior profundidade das informações trabalhadas antes narrativa do jornalismo algo bastante diferente de outras narrativas.
pelas notícias. Conforme Medina (1988:62), os critérios de conteú- Na realidade, esses movimentos ou passos possibilitam ao jornalista
do, propiciando o aprofundamento e a ampliação das informações e ao leitor reconhecerem que temas e que categorias foram adotadas,
imediatas (características básicas da notícia), são premissas de uma sua ordem e quantidade de informações em cada um dos temas ou
grande reportagem hoje. categorias.
Com o desenvolvimento tecnológico do século XX, diversifi- Van Dijk, entretanto, só contemplou o gênero notícia e, além
cam-se as mensagens veiculadas pela mídia, aparecendo novas for- disso, o esquema que propôs não oferece um maior detalhamento da
mas jornalísticas já em uso em outros países, principalmente nos Es- organização das informações. Por isso consideramos, nesta pesqui-
tados Unidos. Nessa época, o jornalismo possui vários gêneros: no- sa, as contribuições que a proposta de Swales (1990) pode dar não
tícia, reportagem, entrevista, editorial, crônica, dentre outros. Essa somente à caracterização da notícia, como também à descrição do
classificação é baseada no formato das páginas dos jornais. gênero reportagem. Swales (1990) desenvolveu uma nova visão
Na área da Comunicação, existem autores que defendem uma conceitual de gênero, que realça a natureza estritamente social da
estreita ligação entre notícia e reportagem, diferenciando-se ape- linguagem. Os gêneros são entendidos pelo autor como “proprieda-
nas por uma terminologia específica. Para Bond (1962:91), por des de comunidades discursivas, o que quer dizer que gêneros per-
exemplo, a “notícia é uma reportagem oportuna sobre coisa de in- tencem a comunidades discursivas, não a indivíduos, a outros tipos
teresse para a humanidade (...)”. Idêntica visão tem Cardet (1981:38/ de grupos ou a vastas comunidades de fala” (Swales, 1990:09).
42), ao considerar apenas a existência da notícia, preocupando-se A contribuição de Swales para a análise de gêneros se comple-
em defender quatro princípios capazes de melhor caracterizá-la no ta com um modelo de organização das informações em introduções
jornalismo. de artigos de pesquisa, produzidos em comunidades acadêmico-ci-
Há, todavia, outros estudiosos que tentam destacar a notícia e entíficas. Trata-se do modelo CARS (Create a research space), que
a reportagem como dois gêneros distintos. Bahia (1972) classifica a reflete a distribuição de informações em movimentos (moves) e pas-
notícia quanto à ocorrência, à procedência, à seleção e quanto à téc- sos (steps). Os primeiros são considerados obrigatórios e os segun-
nica de tratamento; enquanto a reportagem é considerada como a dos são desdobramentos de cada movimento, divididos entre obriga-
grande notícia. Para Rabaca e Barbosa (1978:324), a notícia é o “re- tórios e opcionais.
lato de fatos ou acontecimentos atuais, de interesse e importância Esse modelo de organização retórica das informações em in-
para a comunidade, e capaz de ser compreendido pelo público”, en- troduções de artigos de pesquisa tem demonstrado sua aplicabilidade
quanto a reportagem, segundo os autores (1978:405), é o “conjunto para a análise de diferentes gêneros, acadêmicos ou não, e mostrou-
das providências necessárias à confecção de uma notícia jornalística: se também adequado para verificar a distribuição das unidades de
cobertura, apuração, seleção dos dados, interpretação e tratamento”, informação em notícias e reportagens, conforme demonstramos a se-
isso tudo conforme as técnicas de um texto jornalístico. guir, num exercício preliminar de análise, em busca das peculiarida-
Lage (1982:35) ressalta dois obstáculos entre notícia e re- des de cada um desses gêneros. Diferentemente do modelo de Van
portagem: 1) a questão polissêmica da palavra reportagem, tanto Dijk (1992), que revela exclusivamente um esquema da notícia, o
designando um gênero jornalístico, como uma seção da empresa modelo CARS propicia verificar, em princípio, a hierarquização das
jornalística, e 2) a própria estrutura adotada pela mídia impressa unidades temáticas em qualquer gênero.
para as notícias e/ou reportagens. Amaral (1982:133) defende os
dois gêneros, vendo a notícia como a essência do jornal, abrangen- 3 Análise e tratamento dos dados
do tudo, desde uma nota a um editorial, e a reportagem como a 3.1 Aplicação do modelo CARS na análise de notícias
“representação de um fato ou acontecimento, enriquecida pela ca- O modelo CARS (Swales, 1990), adaptado para a análise da
pacidade intelectual, observação atenta, sensibilidade e narração organização do gênero notícia, resultou na identificação de três uni-
fluente do autor”. dades básicas e respectivas subunidades. A primeira unidade apre-
Nos dois manuais que consultamos, privilegia-se a distinção senta o fato, anunciando a informação principal da notícia que será
entre notícia e reportagem. No Manual de Redação e Estilo do jornal abordada. Essa unidade possui a subunidade 1, que é obrigatória e
O Estado de São Paulo (1990:67), a reportagem é a essência do jor- compreende o título da notícia, com a informação principal, e a
nal, diferenciando-se da notícia mediante seu conteúdo, extensão e subunidade 2, que é opcional e é preenchida pelo subtítulo, servindo
profundidade, enquanto a notícia, em geral, busca descrever o fato e, para complementar a informação anterior.
quando muito, seus efeitos e conseqüências. Conforme esse manual, A segunda unidade é o corpo da notícia, discorrendo sobre o
a reportagem parte da própria notícia, mas prossegue desenvolvendo fato abordado e tem cinco subunidades. A subunidade 1 é obrigató-
uma seqüência investigativa que vai além da notícia. O Manual de ria, correspondendo ao lead e trazendo um resumo do fato, com os
Redação e Estilo O Globo (1992:27/29) estabelece que a “reporta- personagens principais, o lugar e o acontecimento em si. A subunidade
gem é muitas vezes uma história: fatos que se sucederam até um 2 é o sublead, onde são acrescentados alguns dados relevantes ao
desenlace” e que não existe reportagem se não houver gente. Nesse resumo abordado na subunidade 1, mas que não haviam sido
manual (1992:33), o gênero notícia encontra-se definido como maté- enfocados no lead. Apesar de caracterizadora da notícia, a subunidade
ria leve e frisa-se que “os dados pitorescos e inusitados são os que 2 não costuma aparecer na notícia. Também facultativa, a subunidade
realmente dão interesse à notícia”. 3 é o intertítulo, recurso gráfico com uma ou duas palavras utilizadas
Na área da Lingüística, as pesquisas sobre o gênero notícia e o para tornar o texto de fácil compreensão e proporcionar melhor divi-
gênero reportagem não têm sido muito numerosas, e a mais conheci- são temática da notícia. A subunidade 4 é obrigatória e representa a
da e citada é, sem dúvida, a de Van Dijk (1992), que traçou um es- continuação do corpo da notícia, melhor detatalhado o assunto, seus
quema específico para o texto noticioso, em que propôs uma série de personagens, local(is) e possíveis repercussões e desdobramentos do
categorias típicas do discurso da notícia, defendendo que “a ordem fato abordado. A unidade 3 é a forma de ilustração da notícia, com
das categorias, tal como é especificada pelas regras, determina tam- duas subunidades. A subunidade 1 é a fotografia que mostra o fato
bém, portanto, o arranjo global das respectivas seqüências ou epi- em si ou algo relacionado ao mesmo. A subunidade 2 é a legenda,
sódios” (Van Dijk, 1992:145). detalhando o que vem sendo apresentado na fotografia (subunidade

620 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


1). A unidade 3 pode estar ou não presente no gênero notícia, sendo tração capaz de reconstituir o acontecimento que vem sendo trabalha-
geralmente utilizada conforme a área destinada pela mídia para o as- do na reportagem, enquanto a subunidade 2 exerce o papel de legenda
sunto tratado na notícia. No jornalismo atual, a junção das subunidades ou texto-legenda, o que conseqüentemente possibilita o esclarecimen-
1 e 2 da unidade 3, respectivamente fotografia e legenda, vem exer- to do que está sendo mostrado na ilustração. A seguir, no quadro 2,
cendo um papel fundamental em vários gêneros dessa área, podendo apresentamos a proposta de organização do gênero reportagem, le-
até ser o foco principal da descrição de um acontecimento. vando em conta as seis unidades e as 15 subunidades que identifica-
Enfim, a organização das informações verificadas nas notícias mos na análise de exemplares desse gênero.
analisadas, à luz do modelo CARS, oferece subsídios para o reconhe- A elaboração das duas propostas de organização para os gêne-
cimento desse gênero jornalístico, no que se refere à distribuição das ros notícia e reportagem, com apoio no modelo CARS (Swales, 1990),
informações, com determinadas convenções comuns ao gênero. Con- possibilitou-nos verificar, preliminarmente, dado o tamanho reduzi-
cluímos, preliminarmente, que uma notícia, independentemente de do da amostra, características relacionadas à distribuição das infor-
ser de caráter político, econômico ou policial, apresenta-se com uma mações que evidenciam a distinção entre esses dois gêneros.
estrutura ou organização padrão caracterizadora do gênero notícia. Constatamos que os gêneros notícia e reportagem dispõem de
algumas unidades e subunidades em comum, diferenciado-se uma
3.2 Aplicação do modelo CARS na análise de reportagens da outra principalmente pelo número de unidades e subunidades. A
O modelo CARS (Swales, 1990) também serviu de parâmetro reportagem, considerada na comunidade jornalística um dos gêneros
para elaborarmos uma proposta de organização do gênero reporta- de mais profundidade quanto ao assunto, desdobra-se em maior nú-
gem, com base na análise das reportagens da amostra. Além de abran- mero de unidades e subunidades, além de apresentar conteúdo bem
ger as três unidades e as oito subunidades da organização encontrada mais detalhado do que a notícia.
no gênero notícia, a reportagem apresenta mais três unidades e qua- Na continuidade desta análise, pretendemos testar as duas pro-
tro subunidades. Essa distribuição diferenciada da notícia vem ratifi- postas de organização das informações num corpus maior e aplicar-
car algumas posições na prática atual do jornalismo que estão consi- lhe também outros critérios de natureza formal e funcional, para ob-
derando notícia e reportagem como dois gêneros distintos, embora termos resultados mais significativos que sustentem a distinção que
apresentem algumas características semelhantes. propomos para notícia e reportagem.
A unidade 1 do gênero reportagem é semelhante à da notícia,
diferenciando-se pelo fato de a subunidade 1 – título e a subunidade Referências bibliográficas
2 – subtítulo ocorrem de forma obrigatória e com maior dependência BAHIA, Juarez. Jornal, história e técnica. São Paulo: Ibrasa, 1972.
entre si. Na unidade 2, exceto a subunidade 3 - sublead 2, que é BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: Estética da criação
facultativa, as subunidades 1, 2, 4 e 5 - correspondendo respectiva- verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
mente ao lead, sublead 1, intertítulo e continuação da reportagem - Van DIJK, Teun A. La notícia como discurso: compreensión, estructura
são obrigatórias na matéria principal da reportagem. A unidade 3 tem y producción de la informação. Barcelona: Paidós, 1990.
as mesmas subunidades do gênero notícia (subunidade 1 - fotografia _____. Estruturas da notícia na imprensa. In: Cognição, discurso e
e subunidade 2 - legenda), distinguindo-se por sua relação de depen- interação. São Paulo: Contexto, 1992.
dência com a primeira e a segunda unidades. Na reportagem, a foto- _____. Cognição, discurso e interação. (org. e apres. por Ingedore V.
grafia, como uma das ilustrações, é imprescindível, reforçando a(s) Koch). São Paulo, 1992.
informação(ões) trabalhada(s) e acrescentando dados exclusivamen- LAGE, Nilson. Linguagem Jornalística. São Paulo: Ática, 1988.
te visuais. Na notícia, essa unidade pode ser dispensada. _____. Ideologia e Técnica da Notícia. Rio de Janeiro: Vozes, 1981.
A partir da unidade 4, o gênero reportagem aumenta suas dife- Manual de Redação e Estilo O Globo. ed. 4a . Rio de Janeiro: Globo,
renças em relação à notícia, com um maior aprofundamento do as- 1992.
sunto abordado. As unidades 4 e 5 têm idêntica função e estrutura. Manual de Redação e Estilo do Jornal O Estado de São Paulo, ed.
Como função, cada uma destas unidades fornece informações adici- 1990. São Paulo: O Estado de São Paulo, 1990.
onais à matéria principal. Na estrutura, elas possuem duas subunidades MEDINA, Cremilda. Notícia, um produto à venda: jornalismo na
constituídas respectivamente por título e por um ou mais parágrafos sociedade urbana e industrial. 2a ed. São Paulo: Summus, 1988.
de texto, dependendo da relevância do assunto, dos efeitos de RABACA, Carlos A. et BARBOSA, Gustavo. Dicionário de Comu-
visualização pretendidos e do espaço destinado à reportagem. A uni- nicação. Rio de Janeiro: Codecri, 1978.
dade 6 é uma das grandes caracterizadoras do gênero reportagem, RODRIGUES, Adriano. Estratégias de Comunicação. Lisboa: Edito-
tanto pela produção, como pela função e estrutura. Essa unidade é rial Presença, 1990.
mais uma forma de ilustração adotada nesse gênero, possuindo duas SWALES, John M. Genre analysis: English in academic and research
subunidades. A subunidade 1 é preenchida por um desenho ou ilus- settings. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 621


Condicionais contrafactuais e mesclagem conceptual
Lilian Vieira Ferrari
Universidade Federal Rio de Janeiro - UFRJ

ABSTRACT: This paper analyses counterfactual conditionals in Brazilian Portuguese, from a sociocognitive perspective. It is argued that these constructions
instantiate blending processes associated to desanalogy.
PALAVRAS-CHAVE: condicionais contrafactuais, mesclagem, desanalogia

1. Introdução Ao realizar os dois tipos de mesclagens mencionados acima, a


contrafactual estabelece um raciocínio comparativo, para demonstrar
O processo de mesclagem tem sido apontado na literatura só- que ao se focalizar o mundo como ele não é (“o falante é o ouvinte”) ,
cio-cognitiva como uma operação cognitiva geral, que atua em pro- subfocaliza-se o mundo como ele é (“o falante não é o ouvinte”),
cessos de categorização, no estabelecimento de hipóteses e inferindo-se do contraste que, para os fins em questão, a espaço foca-
inferências, na origem e combinação de construções gramaticais, re- lizado produziria efeitos mais desejáveis (“o ouvinte contratar o fa-
lacionando-se, portanto, a processos de raciocínio, imaginação, ação, lante”). Vale notar que, nesse caso, atua também implicitamente o
emoção e expressão (Fauconnier & Turner 1994, Fauconnier 1997). PRINCÍPIO DA ATRIBUIÇÃO EGOCÊNTRICA normalmente se-
Com base nessa moldura teórica, o presente trabalho analisa guido pelos seres humanos(“O que eu faço é melhor”).
construções condicionais contrafactuais em Português. O argumento
básico é que a seleção do pretérito imperfeito do subjuntivo na prótase 3. Condicionais contrafactuais e mesclagem: Um exemplo
dessas condicionais sinaliza a instauração de processos desanalógicos, jornalístico
associados a processos de mesclagem.
Para ilustrar a instauração de desanalogia e a atuação de pro-
2. Condicionais contrafactuais e desanalogia cesso de mesclagem em condicionais contrafactuais, passo agora à
análise de um trecho que inicia a reportagem intitulada “Vale quanto
De acordo com Fauconnier (1994:109), a contrafactualidade é pesa” (Jornal do Brasil, 7/7/98):
um caso de incompatibilidade forçada entre espaços, em que um es-
paço M1 é incompatível com outro espaço M2, visto que uma deter- (2) Se ganhassem vida, eles já teriam entrado num spa há
minada relação explicitamente especificada em M1 não é satisfeita muito tempo. Mas nos quadros, desenhos e esculturas do colombia-
para os elementos correspondentes em M2. Trata-se de um processo no Fernando Botero, ser gordo é fundamental.
desanalógico, em que são produzidas inferências a partir do contras-
te entre os espaços em questão. Esse processo requer o estabeleci- Como no exemplo apresentado na seção anterior, a
mento de operações cognitivas complexas que envolvem projeções contrafactual acima sinaliza dois tipos de mesclagens: a) mescla de
entre domínios, esquemas genéricos, modelos cognitivos idealiza- enquadre comunicativo, marcando o caráter desanalógico da cons-
dos (MCIs) e mesclagens conceptuais. trução; b) mesclagem de elementos do espaço-base (seres humanos
O exemplo clássico, adaptado de Fauconnier (1997), que ilus- vivos) e do espaço-pictórico (personagens de Botero), estabelecen-
tra essas operações é o seguinte: do-se um terceiro elemento (personagens de Botero vivos).
Estabelece-se um contraste entre domínios conceptuais: foca-
(1) Se eu fosse você, eu me contrataria. liza-se o mundo pictórico como ele não é (personagens de Botero com
vida entrando num spa), criando-se um contraste com aquilo que acon-
A representação dessa sentença requer que sejam explicitados: tece no mundo real subfocalizado (pessoas gordas entrando num spa).
Na sentença subseqüente, o espaço pictórico passa a ser focalizado,
1. Esquema Genérico da Situação Comunicativa, envolvendo destacando-se o caráter natural da obesidade nesse espaço.
EGO, ENQUADRE e SITUAÇÃO; Vale notar que a construção escolhida para iniciar o texto
poderia ter sido algo mais direto do tipo “Os personagens de Botero
2. MCI de Relações Trabalhistas, especificando EMPREGA- lembram pessoas gordas”. Essa escolha, entretanto, não permitiria a
DOR, EMPREGADO, CONTRATAÇÃO, etc. gama de inferências que o raciocínio desanalógico possibilitou. A
contrafactual utilizada informa não apenas que os personagens de
A construção contrafactual reflete, portanto, a ocorrência si- Botero lembram pessoas gordas, mas cria um efeito comunicativo
multânea de dois tipos mais rico ao permitir a inferência de que a obra de Botero adquire
de mesclagens, descritas a seguir: efeito estético particular ao reenquadrar padrões de beleza cultural-
mente privilegiados nas sociedades contemporâneas.
1’. MESCLAGEM ENTRE SITUAÇÃO COMUNICATIVA
MARCADA E NÃO-MARCADA – a contrafactual marca a afirma- 4. Considerações finais
ção sob seu escopo com postura epistêmica negativa (Fillmore 1990),
sinalizando o caráter desanalógico da situação apresentada na prótase. A abordagem das condicionais contrafactuais apresentada neste
trabalho traz contribuições que merecem aprofundamento em pelos
2’. MESCLAGEM DE ELEMENTOS NO ESPAÇO-INPUT menos duas áreas de pesquisa: o estudo da produção de inferências e
– no caso, há uma mescla de falante e ouvinte, de modo que uma a investigação de recursos argumentativos, considerando-se ainda as
projeção parcial de atribuições do ouvinte no falante cria um terceiro interrelações entre esses dois fenômenos.
elemento que é uma mesclagem dos dois. Tais estudos justificam-se na medida em que as contrafactuais

622 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


fornecem evidências para a premissa sócio-cognitiva de que a língua FAUCONNIER. G. 1997. Mappings in Thought and Language.
não é uma representação da realidade objetiva, mas da realidade tal Cambridge: Cambridge University Press.
como ela e percebida e experienciada pelos seres humanos, ou se FAUCONNIER, G. & TURNER, M. 1994. Conceptual Projection
quisermos ir um pouco além, da realidade tal como os seres humanos and Middle Spaces. Technical Report no. 9401, Department of
escolhem representá-la para outros seres humanos. Cognitive Science, University of California, San Diego.
FILLMORE, C. 1990 a . Epistemic Stance and Grammatical Form in
5. Referências bibliográficas English Conditional Sentences. Papers from the Twenty-sixth
Regional Meeting of the Chicago Linguistic Society, 137-162.
CUTRER, M. Time and Tense In Narrative And Everyday Language.
FILLMORE, C. 1990 b . The Contribution of Linguistics to Language
Ph. D. diss., University of California, San Diego.
Understanding. In Bocaz, Aura (ed.), Proceedings of the First
DANCYGIER, B. 1993. Interpreting Conditionals: Time, Knowledge
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Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 623


O texto e a gramática: das relações
do saber e do prazer
Maria Teresa Gonçalves Pereira
Universidade do Estado do Rio de janeiro – UERJ

ABSTRACT: This paper focuses on the real acquisition of knowledge on a linguistic-pedagogic basis, working with the construction of texts, in which
different languages have been used, as a product of the interrelationship of the phonological, morphosynthetical and lexical-semantical levels of the
Portuguese language; thus, the functional and aesthetic character of the text can be noticed.
PALAVRAS-CHAVE: gramática, texto, expressividade, leitura

O ensino de Língua Portuguesa hoje ainda acontece muitas Os alunos não vivenciam a gramática de uma língua. Não fa-
vezes sem nenhuma preocupação com considerações de ordem esté- zem reflexões críticas sobre ela. Não a constroem com o professor.
tica, funcional ou crítica, daí os alunos, de qualquer nível, sentirem- Recebem-na através de verdades absolutas, sem transferirem os co-
se entediados com sua língua materna. Listas de palavras, atividades nhecimentos. A sistematização gramatical é fundamental — a ma-
confusas, ordens herméticas, tudo se permite na crença de que os fins neira não estando aqui em questão —, existindo, porém, a necessida-
justificam os meios para a manipularem “corretamente”. de de se caminhar ao encontro da concretização efetiva dos saberes
Nesse cenário, o pano de fundo privilegia o tradicional (no adquiridos, numa prática lingüístico-pedagógica que mostre a tessitura
mau sentido), o ortodoxo, o estereotipado, constituindo-se em mode- do texto como produto da inter-relação dos planos fonológico,
los a serem seguidos. morfossintático e léxico-semântico da Língua Portuguesa.
Cremos que, como donos e usuários da Língua, temos de Tal atitude requer prioridade, pressupondo-se a
administrá-la com bom senso, sem perder a consistência. Cabe-nos operacionalização lingüística adequada aos que instrumentalizam o
deflagrar um processo e proceder a uma diária celebração de situa- corpus como criadores do material (texto) a ser utilizado, determi-
ções que integrem tal Língua às nossas vidas. nando a sua incorporação ao modus vivendi do leitor.
Não há dúvida de que os estudos gramaticais são básicos e Só que não podemos parar na sistematização, mas continuar,
insubstituíveis. Não para repetirmos e concordarmos com o que os admitindo que esses conhecimentos não são suficientes, isolados e
grandes mestres escreveram; mas, para depois de profundamente distantes que estão da realidade (lingüística) em que nos inserimos
conhecê-los em suas formulações, teorias e conceitos, exercermos a em todos os instantes e contextos da vida e com qualquer registro ou
reflexão crítica. Sempre dizemos que a tradição e a modernidade discurso.
devem andar juntas. A (boa) tradição pavimentou o chão para que O estudante de Letras precisa entender que a língua materna se
os estudos evoluíssem, avançassem, se desenvolvessem. A calca em matrizes especiais que a tornam rica e variada, instigante e
modernidade mantém-nos antenados ao que acontece, mas, em seu criativa e que as mesmas alegações que a rotulam como língua com-
nome não se pode jogar fora levianamente um cabedal inesgotável plicada — com profusão de regras e exceções — servem, vistas sob
de conhecimentos eternos e universais. Apenas se torna fundamen- outro enfoque, para mostrar as infinitas possibilidades de uso e des-
tal, depois de internalizá-los, ir além, em busca de outras alternati- dobramentos, revertendo a “fama” que carrega.
vas, outros caminhos. E o que queremos dizer com “ir além”? É transferir o conheci-
É extremamente pobre, redutor e simplista o que fazemos com mento teórico para qualquer tipo de texto. É perceber que as teorias
o estudo da Língua: os lugares-comuns, as regras, as imposições, os se transformam em prática efetiva quando lemos ou falamos. A gra-
limites de algo que naturalmente não os tem e que pode, pela sua mática de uma língua está no texto, não sob forma de conceitos abs-
invenção e originalidade, proporcionar realmente um conhecimento tratos e distantes, mas concretizada para que a vivenciemos, final-
maior e visceral, não só numa situação escolar, momentânea, mas na mente encontrando a motivação para seu estudo.
própria vida. O professor-orientador tem de estar (cons)ciente do seu papel,
Estudar Língua Portuguesa para conhecê-la não é dividir e da sua responsabilidade em transmitir tal postura aos alunos. Caso
nomear orações, classificar vogais e consoantes, dar a função sintáti- isso não ocorra, o ciclo se repetirá ad aeternum. Os que saem das
ca das palavras, saber se é com s ou ç. É isso tudo, num determinado Faculdades de Letras vão ensinar a Língua como aprenderam e, con-
e necessário momento, mas de maneira nenhuma só isso. Trata-se de seqüentemente, seus alunos assim a receberão, ratificando posturas
total desperdício que um professor permita que fique no seu ouvinte ultrapassadas por não entenderem a razão daquele estudo tão árido e
e/ou expectador (aluno) tal idéia. Acreditamos num olhar inteiro(iço) apartado da realidade.
para os estudos lingüísticos sem intenções ortodoxas. Sempre se tratou a leitura nas escolas como atividade obriga-
Não é de hoje que os alunos da Faculdades de Letras, de ma- tória e/ou enfadonha. Mesmo os que gostam de ler, às vezes, se de-
neira geral, terminam a Graduação com a sensação de que nada sa- sinteressam pela maneira como são orientados para a formação de
bem, tomados de pânico ao se depararem com as turmas sob sua res- “hábitos”. Não nos alongaremos aqui quanto às teorias de leitura,
ponsabilidade. crenças e outras questões muito específicas.
Dentre os motivos possíveis que explicam tal comportamento, Insistimos na idéia de que o ato de ler pode e deve ser prazeroso,
pensamos que um dos mais importantes seja aquele referente ao fato envolvendo a possibilidade de um crescimento sócio-cultural equili-
de como foi ministrada a Língua Portuguesa. O ensino dos conteúdos brado, além do genuíno encantamento que proporciona.
específicos por meio de conceituações, de regras, de teorias dissociadas Então, parece-nos perfeito e mais do que oportuno se, fazendo
do texto, da falta de concretização do que lhes foi passado abstrata- o aluno perceber essa gramática da língua na prática (no texto),
mente contribui para a sensação de vazio, de despreparo para exerce- despertamo-lo para a importância do papel da leitura na sua vida.
rem o seu ofício. Evidentemente que um texto de Guimarães Rosa com suas al-

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ternativas quanto à formação de palavras ou uma música de Chico não há caminho que não comece, passe e nem termine pelo texto.
Buarque quanto às imagens não serão dissecados numa análise a ponto Constitui-se na razão de tudo. As várias tipologias, os gêneros, as
de fazê-los perder a noção de estética. O caminho é levar o aluno a linguagens, tudo se relaciona à Leitura, já que, em última análise, se
se dar conta da existência e do papel do fato lingüístico-gramati- estudamos um fragmento do texto (não nos referimos ao livro de
cal responsável pelo produto final — o texto —, sem deixar de leitura suplementar ou paradidático), se nos empenhamos, realizan-
sensibilizar-se. do uma atividade prazerosa, é lícito supor que aquele fragmento vai
Estamos vivendo um raro e fundamental momento na comuni- servir de “propaganda” para se buscar o original completo a fim de
dade lingüística (acadêmica ou não) de que participamos. Há um cla- saciar a curiosidade e, automaticamente, aumentar o deleite. Assim,
mor generalizado por parte de professores e alunos dos mais diferen- cumprimos dupla finalidade: servir à Língua Portuguesa e à Leitura.
tes níveis para que se mudem os rumos das metodologias e estratégi- O texto é nosso corpus, é nossa vivência, é nosso permanente
as que tratam do ensino de Língua Portuguesa. vir a ser, não deixando de olhar para trás, para os lados, numa atitude
Ninguém pretende ser “contra” a gramática: ela é inerente às de abertura, dispostos a considerar as descobertas do aluno, encora-
línguas. Uma língua é um duplo sistema de sinais (vocábulos, ex- jando-o a prosseguir em suas “travessias” lingüísticas.
pressões, etc.) e de regras de combinações desses sinais, chamados Não há preocupação com nomenclaturas, termos técnicos. Se
de gramática; o que preocupa é a maneira de ensinar a língua mater- o aluno dominá-los, já os tiver internalizado, falará; se não, mostrará,
na, as noções falsas, a visão distorcida de que caso se abandone um à sua maneira, como percebeu o fato. Se for o caso, misturará os dois
posicionamento tradicional, haverá sérios danos à sua estrutura. procedimentos: ora dirá a nomenclatura, ora explicará com suas pró-
Por isso, acreditamos na necessidade de buscar outros cami- prias palavras. Não é relevante. O que nos importa verdadeiramente
nhos que nos levem a estudar (perceber) a língua como organismo é se percebeu o fenômeno lingüístico. Lembramos que essa situação
vivo, com todas as suas idiossincrasias, de modo pleno, manipulan- também dependerá do nível de ensino. A propósito, o poeta Manuel
do-a naturalmente como usuários que somos. de Barros dá sua contribuição quando diz que “A ciência pode clas-
Apostamos na relevância desse tipo de estudo já que tenta sificar e nomear os órgãos de um sabiá, mas não pode medir seus
resolver dois problemas cruciais do ensino de língua materna: pro- encantos. Quem acumula muita informação, perde o condão de adi-
porcionar motivação aos conhecimentos teóricos (gramaticais) que vinhar: divinare. Os sabiás divinam”.
os alunos adquirem por exigência de um currículo que os embase O único procedimento indispensável é o papel de protagonis-
com consistência e profundidade e resgatar o sentido do ato de ler, ta que caberá ao aluno na atividade. Ele falará, ele se manifestará
numa ótica mais atraente, atribuindo ao texto funcionalidade e pra- lingüisticamente sem limitações, sem se sentir obrigado a nada, sem
zer estético. A magia que nos envolve ao lermos se instaura— em- coerções sequer esboçadas. O objetivo prioritário é o estudo lingüístico
bora não nos demos conta — pela estrutura de um texto, pela esco- do texto. Entretanto, o tipo de atividade que propomos — pela total
lha das suas palavras, pelo aspecto formal de seus vocábulos, pela, liberdade de intervenções — dá margem a que outras situações da
em última análise, maneira como o seu produtor (autor) arruma os Língua Portuguesa se manifestem, como interpretações, análises li-
fatos da língua nos planos fonológico, morfossintático e léxico-se- terárias e do discurso ou afins, enriquecendo bastante o estudo pleno
mântico para nos apresentar sua obra. João Cabral de Melo Neto da língua em que acreditamos porque, quase sempre, a explicação
em Escritos com o Corpo diz sobre a língua: “Ela tem tal composi- para determinada forma é motivada por determinado conteúdo. As-
ção /e bem entramada sintaxe / que só se pode aprendê-la / em con- sim, não renegamos quaisquer contribuições, até as incentivamos.
junto: nunca em detalhe”. Evidentemente, o que mostramos é uma mínima parte do pro-
Resumiremos como se realiza uma atividade prática ligada à cesso, gerado espontaneamente ou induzido pelo professor que se
nossa proposta: o professor escolhe um texto, apresenta-o ao aluno, presume com sensibilidade, intuição e conhecimento lingüístico para
sem qualquer tipo de questionamento ou preocupação com objetivos a atividade.
lingüístico-gramaticais a serem alcançados. Orienta-o apenas a que, No início há, sem dúvida, desconfiança por causa do aspecto
após a sua leitura pelo professor, fale sobre ele: as palavras, as frases, informal da situação, mas, após as sessões iniciais, os alunos sentem-
a pontuação, enfim, tudo aquilo que o compõe, atentando para o que se à vontade para “viver” a língua nos dois níveis pretendidos: funci-
lhe chama a atenção e para, enfim, o que entrou na sua elaboração onal e estético, exercendo a condição de usuários na posse total de
funcional ou esteticamente (ou outras palavras que o valham). Sem seus direitos lingüísticos.
perceber, o aluno falará sobre a gramática da língua, o que aprendeu Observarão, por exemplo, que o adjetivo não serve só para
(ou não) sistematizadamente (ou não). Constatará que todos os “fatos qualificar. Terá muitas funções e valores, podendo aparecer até sob a
da língua” presentificam-se na linguagem escolhida pelo produtor forma de um ponto de exclamação. Começaremos nos terrenos gra-
daquele texto. maticais e os expandiremos, extrapolando seus limites.
Acreditamos que, se o aluno sentir-se (e efetivamente sendo-o) Perceberão, enfim, que a abordagem (leitura ou estudo) de um
agente do seu próprio conhecimento, um sentimento de segurança e texto de qualquer linguagem possibilita condições de se perceber o
aceitação lhe dará condições de apre(e)nder a língua materna para a produto final, ou seja, as palavras, frases, períodos e demais elemen-
vida e não para cumprir qualquer atividade do currículo, enfim, por tos lingüísticos em suas escolhas e combinações como determinantes
obrigação. Ser agente do seu próprio conhecimento demanda desco- do caráter funcional e estético do texto. São responsáveis, em última
brir, inquietar-se, refletir, criticar, extrapolar, articular, propor, ousar. análise, pelas relações engendradas nos vários níveis de percepção,
O professor secundará suas ações, sabiamente, deixando-o desabro- envolvendo o leitor que, então, constrói seu conhecimento — e os
char em meio a uma gama de possibilidades lingüísticas e culturais sentidos, por extensão — como usuário da língua, articulando os
infinitas. objetivos da Língua Portuguesa: ser comunicativa e expressiva, de
Procuramos, desde o início, juntar a Língua portuguesa à Lei- preferência, em constante harmonia, numa atividade de educação lin-
tura. Posicionamo-nos firmemente em relação ao ensino da língua: güística plena.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 625


Gramática de usos: para que serve?
Claudio Cezar Henriques
Universidade Estadual do Rio de Janeiro - UERJ

ABSTRACT: Linguistic uses and grammatical correctness. Relationship between grammar of uses and prescriptive grammar. Use and usage as identifiers
of different varieties of discourse.
PALAVRAS-CHAVE: Norma e uso; gramática e linguagem.

“Nós somos todos assim...Eu sou assim... Tu és assim...Dançam guesa atualmente no Brasil. Para isso, ela parte dos próprios
pronomes pessoais: Eu, ele, tu, eles, nós , vós... Que somos itens lexicais e gramaticais da língua e, explicitando o seu
nós?... Pronomes pessoais.” uso em textos reais, vai compondo a “gramática” desses itens,
Assim, Mário de Andrade questionava a pessoa humana, com isto é, vai mostrando as regras que regem o seu funciona-
base na estrutura gramatical, e concluía pela igualdade entre to- mento em todos os níveis, desde o sintagma até o texto. A
dos. Pronomes pessoais são democráticos: podem ser usados meta final, no exame, é buscar os resultados de sentido, par-
em pé de igualdade por todos. Cada um é um eu, qualquer con- tindo do princípio de que é no uso que os diferentes itens
junto de “eus” é um nós. Já outro, o pronome de tratamento, é assumem seu significado e definem sua função, e de que as
diferente. É autoritário: seleciona e classifica para conviver. entidades da língua têm de ser avaliadas em conformidade
com o nível em que ocorrem, definindo-se, afinal, na sua
É com essa referência metalingüística intertextual que Nelly
relação com o texto.
Carvalho começa seu artigo “Quem somos nós?”, onde trata dos usos
das formas e pronomes de tratamento, no Brasil e em Portugal. Faz Observe-se a menção a “textos reais”, que Moura Neves refor-
Nelly comentários esclarecedores acerca dos valores semânticos, das ça com a expressão “língua viva” (“o que está abrigado nas lições é,
situações e contextos em que são empregadas expressões como portanto, a língua viva”). E, num universo tão amplo a respeito do
vocemecê, você e tu / vossência / sitora (= senhora doutora) / senho- que se poderia entender sobre “como está sendo usada a língua por-
ra, dona e senhora dona / esposa, mulher e senhora / esposo, mari- tuguesa”, a autora enfatiza que os usos tomados como base foram
do e homem / doutor e senhor doutor / mamãe e senhora / primo e tirados de um banco de dados de 70 milhões de ocorrências armaze-
doutor / sinhá e senhora / madrinha / dona, moça e menina / compa- nadas no Centro de Estudos Lexicográficos da UNESP, campus de
dre e comadre / seu moço / seu vigário / vós e vosmecê... Araraquara.
E conclui: “Os usos tornam possível estabelecer a ligação en- Trata-se, pois, de um corpus de textos escritos, que abrange
tre os aspectos sociais e a estrutura verbal”, ajudando a responder a literatura romanesca, técnica, oratória, jornalística e dramática. No
questões que de outro modo poderiam ser ignoradas. Para ela, à me- entanto, pela inclusão de peças teatrais, esse corpus resgata um pou-
dida que se aprofunda a compreensão da língua, “mais se percebem co a representatividade da língua falada e dá certa conta de um tipo
as implicações sociais fundamentais na construção do ser humano”, específico de uso lingüístico presente nas situações interacionais,
algo que traz uma resposta para a indagação de Mário de Andrade dando à gramática de Moura Neves um aspecto diversificado quanto
sobre quem somos nós nesse jogo de situações. a gêneros e situações enunciativas.
Pensemos agora no ensino de nossa língua e no tema “prono- Tomando por base essas considerações, podemos examinar
mes pessoais e formas de tratamento”. Como esse assunto tem sido preliminarmente as contribuições científica e didático-pedagógica de
tratado nas aulas de língua portuguesa? Valeria a pena pensar em uma obra de referência com esse título, confrontando as acepções
levar a questão dos usos lingüísticos para dentro da sala de aula? que podem ser dadas aos vocábulos uso e emprego e distinguindo no
É sobre isso que pretendo tratar nesta comunicação. que for possível gramática de usos, gramática descritiva e gramáti-
Mauro Villar, nas “Palavras Iniciais” de seu Dicionário ca normativa. Tal exame poderá chamar a atenção para alguns fato-
contrastivo luso-brasileiro, afirma que um dicionário confrontivo res de risco em sua entronização.
sempre foi “uma grave lacuna e uma prioridade lexicográfica” e Voltemos, porém, ao termo uso e a três referências que a ele
que “os resultados desse trabalho interessam a uma variada gama faz Francisco Gomes de Mattos, em texto divulgado na internet:
de usuários: estudantes nacionais e estrangeiros da língua portu- a) o Dicionário de lingüística, de Zélio dos Santos Jota (1976),
guesa; tradutores, editores e editoras que trabalham visando a mais que contém um verbete sobre “uso lingüístico”;
de um país de expressão portuguesa; lexicógrafos, viajantes, ho- b) o artigo de Francisco Gomes de Mattos para o número 16 da
mens de negócios, sacerdotes, revisores, bibliotecas de obras de revista Littera (Grifo, 1976), intitulado “Usos no português oral do
referência e, em sentido lato, a todos os que escrevem profissional- Brasil: uma lista de referência”;
mente em nosso idioma”. c) o Dicionário de lingüística e gramática, de Mattoso Camara
Pois uma outra obra de referência, recentemente lançada, aca- Jr. (1977), cujo “Posfácio”, escrito também por Gomes de Mattos,
ba de fazer desaparecer outra lacuna nos estudos lingüísticos do por- incluiu verbetes sobre “usos formal, informal e neutro” e uma inte-
tuguês. Refiro-me à publicação da Gramática de usos do português, ressante consideração sobre o que chamou “usuário, gramática do”.
de Maria Helena de Moura Neves, com a qual o termo “usos” ascen- Eu acrescentaria a essa lista inicial o livro Usos da linguagem,
de a uma categoria especial na gramaticografia de nossa língua, trans- de Francis Vanoye, tradução enriquecida e criativa do ótimo original
portado, da posição de verbete de dicionário ou de item de livro es- francês (cujo título é Expression-communication, não contendo a
pecializado de gramática ou de lingüística, para a condição de palavra usos), que tem sido, desde a primeira edição brasileira no
nomeador de um tipo de gramática. início da década de 80, uma referência nas bibliografias dos cursos
Diz a autora no primeiro parágrafo do texto de apresentação: de Letras. Nele se defendem os princípios de que “a linguagem se
A Gramática de usos do português constitui uma obra de aprende pelo seu próprio uso” e de que “não existe apenas um uso
referência que mostra como está sendo usada a língua portu- para a linguagem”.

626 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Voltando mais um pouco no tempo, lembraria Said Ali, cer- tência, ou não, de um adjetivo correspondente é questão do léxico, e
tamente um dos primeiros a valer-se do verbo usar, se bem que não da gramática da língua” (p. 174). Poderíamos acrescentar: a equi-
sinonimizado com empregar e apresentado, descritivamente, como valência porventura existente entre uma locução adjetiva no singular
uma recomendação de uso. Na Gramática secundária, assim ele e um adjetivo não é necessariamente a mesma quando a locução é
começa o capítulo “Emprego do Gerúndio”: “usa-se do gerúndio pluralizada (não há nenhum exemplo disso no corpus?)
ou como verbo absoluto ou em combinação com certos verbos Exs.: dor no pulmão = dor pulmonar // dor nos pulmões = dor
auxiliares”. pulmonar
Aliás, parece estar concentrada nas páginas destinadas a ex- pasta de plástico = pasta plástica // pasta de plásticos = Æ
plicar tempos e modos verbais a maior incidência da palavra usos Isso, ao contrário, comprova que a existência de um adjetivo
em nossas gramáticas e compêndios. Cito a título de exemplificação correspondente não é, apenas, uma questão do léxico, sendo tam-
a Gramática em 44 lições, de Francisco Platão Savioli, obra didática bém uma questão da gramática da língua, que é como se deve colo-
de sucessivas reedições. Nela, encontramos o capítulo “Usos dos car essa questão no entendimento da locução que dá título à obra de
tempos e modos”, no qual um dos itens chama-se “usos especiais” e Moura Neves:
outro, “uso dos modos”. gramática de uso = gramática usual // gramática de usos = ∅
Quanto às obras estrangeiras, não deixaria de citar o clássico Deveríamos, portanto, tratar da definição da palavra usos e
Le bon usage, de Maurice Grevisse, que, na história das idéias sobre abordar o tema da transição conceitual-terminológica de emprego
usos lingüísticos, tem seu lugar garantido. Mencionaria ainda a prá- (do substantivo, do pronome, etc.) – termo bem “sustentável” em
tica da inclusão, em dicionários, das “Notas de Uso”, que já existe – nossa tradição gramatical brasileira – para uso. Melhor seria que
pelo menos – desde meados da década de 50, e algumas gramáticas nossas gramáticas (inclusive as escolares) fizessem essa transição,
um pouco mais antigas, como a American English grammar, de não apenas no âmbito terminológico, mas sobretudo no
Charles C. Fries (1940), fruto de pesquisa sobre inglês epistolar de metodológico, reconhecendo a necessidade de harmonizarmos o
soldados americanos, em cujo primeiro capítulo se lê que “não há descritivo e o normativo como indispensável contribuição aos estu-
correção dissociada do uso”. diosos dessa problemática.
Também destacaria a possível influência da dimensão quanti- Como dissemos, a tradição gramatical tem privilegiado o ter-
tativa na descrição de usos, através de obras inspiradas na Lingüísti- mo emprego e a ele remete quase sempre um único uso, o prescritivo.
ca de Corpus, como as recentes Corpus linguistics: investigating Igualmente é significativa a referência preconceituosa que muitos li-
language structure and use (1998) e Longman grammar of spoken vros deram/dão à palavra uso/usos. Os “guias de correção”, os “ma-
and written English (1999), ambas de Douglas Biber et alii. nuais de redação” ou os “vade-mécuns de correção de frases”, de um
Cito, por fim, notícia recente publicada na imprensa, dando modo geral, utilizam a expressão “uso popular” ou “uso coloquial”
conta de que o governo brasileiro quer unificar o ensino da língua (eufemismo para “uso errado”?) ou mesmo se propõem a tratar dos
portuguesa no exterior e para isso “está montando um novo progra- “usos inadequados” ou “impróprios” – os quais, na verdade, repre-
ma com o uso do português falado no Brasil” (O Globo: 21/01/2001). sentam uma possibilidade real de uso lingüístico. Relembremos, nes-
Como se vê, talvez fosse melhor encaminhar este tema para a te ponto, obras como 100 textos errados e corrigidos, dos irmãos
idéia de que a língua é um produto cultural que engloba tradições Hamilton e Sílvio Elia, que atingiu perto de vinte e cinco edições,
lingüísticas de variadas feições e matizes. Com isso, quero dizer algo entre tantas outras – muitas recentíssimas...
nem sempre lembrado nos compêndios gramaticais, talvez por ser
Não se corrige o estilo, naquilo que é pessoal; corrige-
uma coisa muito óbvia – e tão óbvia que acaba desconsiderada: uma
se a gramática, porque é uma só para todos os que
língua histórica não é um sistema único, é um conjunto de sistemas!
falam a mesma língua. Não podemos obrigar uma pes
E de que sistemas se compõe uma língua histórica, senão de suas
soa a dizer ou escrever deste ou daquele modo; pode
especificidades geográficas (diatópicas), sociais (diastráticas) e in-
mos exigir, porém, que fale ou escreva certo. (Elia, p. 4)
dividuais (diafásicas)?
Por esse motivo, pergunta-se: uma gramática de usos contra- Tais atitudes ficam arraigadas na sociedade e são alimentadas
ria a idéia de que a gramática é produto da descrição de uma das por idéias muito subjetivas acerca da “beleza, da pureza ou da corre-
línguas funcionais de uma língua histórica? Moura Neves afirma ção lingüística”. Cito dois exemplos, separados por quase cinqüenta
que uma gramática de usos não é, em princípio, normativa, mas com anos, que atestam a presença do impressionismo nos comentários
isso nos dá a entender que não é, mas pode ser... Tanto que contra- lingüísticos:
põe aos “determinados usos atestados e vivos” (eufemismo para “des- 1 – Para que haja pureza de linguagem, é necessário, é im-
vios da norma”?) a invocação comparativa da “norma de uso”. prescindível, que o substantivo (...). (Martinz Aguiar, 1953, p.
Retomo, então, o verbete gramática do usuário, do 309)
posfácio do Dicionário de lingüística e gramática. Dele, recor- 2 – É preciso distinguirmos cuidadosamente este feio erro de
to, com grifos meus: uma expressão tradicional e corretíssima que consiste em (...).
Gramática centrada nos usuários de uma língua: em suas ne- (Bechara, 1999, p. 157)
cessidades e interesses. Corresponde a um anseio educacio- Além disso, ainda hoje é habitual sinonimizar as palavras uso
nal. Descreveria e procuraria explicar as opções de que dis- e registro como uma espécie de proteção acadêmica contra a crítica
põe um usuário e as implicações das escolhas feitas por ele da tradição. Só que essa proteção nem sempre é necessária, como se
nos repertórios sociolingüístico e estilístico. Uma gramática poderia deduzir da explicação de Moura Neves sobre um dos usos do
dessa natureza ainda está para/por ser escrita (...). verbo pedir:
O verbo pedir também tem a possibilidade de construir-
Resta saber se o que ainda estava por ser escrito, agora pode
se com oração completiva infinitiva iniciada pela prepo
ser considerado enfim escrito... Isso nos leva, então, a mais algumas
sição para, construção que é condenada pela gramática
reflexões sobre o termo uso, pois uma gramática de usos não é uma
normativa. (p. 347)
gramática usual, o que recomenda uma verificação sobre como são
os usos do adjetivo e das locuções adjetivas em português. A questão é saber de que gramática normativa fala a autora.
Está na Gramática de usos: numa locução adjetiva, “a exis- Pergunto: qual a gramática normativa que “condena” a cons-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 627


trução “elas pediram para eu trazer o livro”? Condenar é sinô- ração menos preconceituosa, cujos direitos lingüísticos – e deveres –
nimo de quê? De ressalvar? Mas não é uma ressalva que se trarão grande contribuição para nossa sociedade.
encontra na Gramática de usos? Bechara, na primeira edição
Referências bibliográficas
de sua Moderna gramática portuguesa (que é de 1961), ex-
plica a construção como resultado de um “cruzamento sintáti- AGUIAR, Martinz (1953). Notas de português de Filinto e Odorico.
co” e reconhece a “insistência com que penetra na linguagem Rio de Janeiro: Simões.
das pessoas cultas”, embora mantenha a restrição ao uso, sob ALI, M. Said (1969). Gramática secundária da língua portuguesa.
a alegação de que há risco de ambigüidade (Antônio pediu a São Paulo: Melhoramentos, 1969.
José para sair). BECHARA, Evanildo (1982). Moderna gramática portuguesa. São
No entanto, mais problemático é encontrar numa Gramática Paulo: Edit. Nacional.
de usos do português a lição de que “num registro mais informal ——— (1999). Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro:
ocorre oração completiva de substantivo sem preposição” (p. 361). Lucerna.
Segue-se o exemplo Não há dúvida que irei embora daqui. BIBER, Douglas et alii (1998). Corpus linguistics: investigating
É uma afirmação equivocada. Extraio do Dicionário de regi- language structure and use. Cambridge: Cambridge University
mes de substantivos e adjetivos (a 1a edição é de 1948) dois exem- Press.
plos que comprovam não ser a elipse da preposição um uso infor- ——— (1999) Longman grammar of spoken and written English.
mal: London: Longman.
1 – Não há dúvida que na comparação de império a império, CÂMARA JR., Joaquim Mattoso (1981). Dicionário de lingüística e
o uso e exercício dele foi muito mais humano e benéfico. (Vieira, gramática. Petrópolis: Vozes.
CARVALHO, Nelly (1999). “Quem somos nós?”
Sermões, IX, 194)
<www.virtus.ufpe.br/clipping/index>. Recife: UFPE, 28 de ju-
2 – Não há dúvida nenhuma que, sob a república atual, as
nho de 1999.
nossas liberdades são incomparavelmente inferiores às que nos res- CHARAUDEAU, Patrick (1992). Grammaire du sens et de
tavam sob a monarquia. (Rui Barbosa, Cartas de Inglaterra, p. 405) l’expression. Paris: Hachette.
Enfim... Parece-me que o volumoso livro de 1037 páginas, CRYSTAL, David (1997). The Cambridge encyclopedia of the
que se organiza segundo a tradicional divisão em classes de pala- English language. Cambridge: Cambridge University Press.
vras, pode ser considerado uma interessante contribuição para os CUNHA, Celso & CINTRA, Luís Filipe Lindley (1985). Nova gra-
estudos gramaticais. Não o apontaria como uma solução, mas como mática do português contemporâneo. Rio de Janeiro: Nova Fron-
uma alternativa pedagógica a somar-se a outras obras referenciais – teira.
sempre utilizadas criticamente e sob a perspectiva do bom senso. ELIA, Hamilton & ELIA, Sílvio (1966). 100 textos errados e corri-
Afinal, ambos os enfoques – descritivo e normativo – são im- gidos. Rio de Janeiro e São Paulo: J. Ozon Editor.
portantes e compartilham mais do que se imagina: um interesse em FERNANDES, Francisco (1987). Dicionário de regimes de subs-
questões de aceitabilidade, ambigüidade e inteligibilidade. Para isso, tantivos e adjetivos. Rio de Janeiro: Globo.
é preciso que os sociolingüistas vejam o normativismo com mais FRIES, Charles C. (1981). American English grammar. Portland:
seriedade, à luz de estudos sobre atitudes, usos e crenças lingüísticos. Irvington Publisher.
Algo como defende David Crystal (p. 2-3), quando fala da represen- GREVISSE, Maurice (2000). Le bon usage. Paris: Duculot.
tação abstrata das características centrais do idioma, as quais se com- HENRIQUES, Claudio Cezar (1997). Sintaxe portuguesa para a lin-
guagem culta contemporânea. Rio de Janeiro: Oficina do Au-
põem de dois modelos: o primeiro revela os três componentes da
tor.
estrutura do idioma (o texto; o signo, a grafia e a fonologia; o léxico
JOTA, Zélio dos Santos (1976). Dicionário de lingüística. Rio de
e a gramática); o segundo aponta para os usos (variações temporal, Janeiro: Presença.
social, regional e individual). E completa, arguto: “o olhar onicurioso LEWANDOWSKI, Theodor (1995). Diccionario de lingüística.
do lingüista observará cuidadosamente toda essa cena” Madrid: Cátedra.
Por isso, acrescento: o normativismo não é o inimigo a derru- MATEUS, Maria Helena Mira et alii (1983). Gramática da língua
bar. Não basta repetir o famoso verso de Manuel Bandeira: Abaixo portuguesa. Coimbra: Almedina.
os puristas ! Ou citar o que Machado de Assis fala sobre a contribui- MATTOS, Francisco Gomes de (1076). “Usos no português oral do
ção da língua do povo em Instinto de Nacionalidade. Ou Alencar no Brasil: uma lista de referência”. In: Littera. Rio de Janeiro, 16:
Posfácio de Iracema; ou Raquel de Queirós numa crônica em que p. 27-31, Grifo.
defende o uso brasileiro da língua portuguesa. Do mesmo modo, é NEVES, Maria Helena Moura (2000). Gramática de usos do portu-
pouco concordar com José Lins do Rego, que diz: guês. São Paulo: Unesp.
É na língua onde o povo mais se mostra criador. Mais do que OSWALD, Vivian (2001). Governo vai unificar ensino de português.
cantando, é falando que o povo nos ensina coisas extraordiná- Rio de Janeiro: O Globo. 21 de janeiro de 2001, 1o caderno.
rias. Por que então desprezar a contribuição que ele nos ofere- PERINI, Mário (1995). Gramática descritiva do português. São Pau-
ce a cada instante? Por que nos metermos em câmaras lo: Ática.
antissépticas para escrever ? REGO, José Lins do (1942). Gordos e magros – ensaios. Rio de
Janeiro: Casa do Estudante do Brasil.
Os puristas que vão àquelas batatas do personagem de Macha-
SAVIOLLI, Francisco Platão. Gramática em 44 Lições. São Paulo:
do de Assis. Nós queremos viver. (p. 328)
Ática, 1992.
O termo uso, não resta dúvida, tem uma rentabilidade semân- TRASK, Robert Lawrence (1993). A dictionary of grammatical terms
tico-pedagógica: uso relembra usuário(a), aquele que usa..., de modo in linguistics. London & New York: Routledge.
usual ou inusual..., etc. VANOYE, Francis (1986). Usos da linguagem. São Paulo: Martins
Levado para os textos gramaticais de referência e para as salas Fontes.
de aula, o termo uso (e sua correta interpretação lingüística) com VILLAR, Mauro (1989). Dicionário contrastivo luso-brasileiro Rio
certeza dará oportunidade de contribuir para a formação de uma ge- de Janeiro: Guanabara.

628 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


O lúdico e o ensino da língua:
um exemplo da telesala
Profª Ms. Marineide Furtado Campos
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN

Introdução to crítico no aluno. Mas, antes, é necessário que o professor desen-


volva esse pensamento, pois só assim acontecerá uma aprendizagem
O presente trabalho é uma experiência de sala de aula, na significativa, na qual, o aluno poderá trocar idéias, levantar questões
qual utilizo atividades lúdicas no processo de ensino da educação e buscar as soluções para as atividades propostas em sala de aula.
de jovens e adultos, numa perspectiva lingüístico-pedagógica, fa- As atividades lúdicas são descritas enquanto instrumento di-
vorecendo um maior rendimento do aluno, para uma aprendizagem dático auxiliar para a definição das categorias gramaticais em Língua
significativa, o que resultou na nossa dissertação de mestrado. re- Portuguesa, mas também, podem ser utilizadas para a retomada de
sultou na nossa dissertação de mestrado. O objetivo principal dessa outros conteúdos em outras áreas. Nossa proposta é descrever e ana-
pesquisa foi adequar as atividades lúdicas para a compreensão das lisar lingüisticamente a atividade lúdica utilizada para a conceituação
categorias gramaticais, bem como do vocábulo, contribuindo para do substantivo a seguir: O passa-passa.
a melhoria do ensino em língua portuguesa, o que exige, funda- O passa-passa, segundo Paulo Nunes (1992) é uma brincadei-
mentalmente, um repensar do nosso fazer pedagógico como profes- ra de salão muito antiga e inteligente. Presta-se a várias aplicações e
sor na interação com o aluno. sem uma análise posterior sobre a mesma, feita criteriosamente pelo
A base do nosso trabalho está nas técnicas apresentadas por mediador da aprendizagem, poderá não passar de uma inconseqüen-
Paulo Nunes e Celso Antunes adaptadas a faixa etária dos alunos, te brincadeira. Usada como técnica, é importante instrumento para
essas técnicas, segundo os autores, mostram que as atividades lúdicas despertar a criatividade e, dessa maneira, muito útil para ser utiliza-
são uma alternativa pedagógica de aprendizagem natural com as quais da em salas de aula, para quaisquer disciplinas e alunos de qualquer
podemos chegar a novos conhecimentos, novos conceitos e vivenciar idade, mas também como instrumento capaz de acentuar a criatividade
fatos ou situações ocorridas no cotidiano de sala de aula ou fora da e, portanto, inteiramente válido para a construção do conhecimento e
a socialização.
escola. O objeto de estudo: Diz respeito ao processo de ensino de
Para trabalhar esta técnica precisei observar suas etapas. Pri-
Educação de jovens e adultos em cursos de Educação à dist»anciã e
meiramente, dividi o grupo em subgrupos de até cinco elementos.
toma como base os desafios do Telecurso 2000, que, segundo Niskie
Como dispunha de 45 (quarenta e cinco) alunos em sala, resolvi
(2000) conjuga o uso de tecnologias avançadas ao esforço individual
dividir a turma em nove grupos de cinco alunos. Nestes grupos,
do aluno em aprender a aprender na interação diária com o outro.
cada participante recebeu papel e lápis. Colocados preferencialmente
Problemática da pesquisa: Está centrada nas seguintes questões: em fila, o primeiro deveria escrever uma palavra relacionada ao
a) Como utilizar atividades lúdicas para minimizar as dificul- tema da aula - Substantivo - na folha de papel e passar para o aluno
dades de aprendizagem em sala de aula de Língua Portuguesa na seguinte, dobrando a parte alta da folha de maneira a não permitir
Educação de Jovens e Adultos? que se pudesse ver o que estava escrito. A folha seria passada ao
b) Qual a possibilidade de se trabalhar categorias gramaticais aluno seguinte que deveria, evidentemente, sem ver o termo escrito
e o vocabulário, ou qualquer outra temática, a partir de atividades pelo colega, imaginar sua continuidade, escrevendo para isso uma
direcionadas à Educação de Jovens e Adultos? outra palavra na mesma folha. Vale salientar que até o momento
c) Que atividades são necessárias para que haja mudança qua- não havia sido expressa nenhuma definição de substantivo ao alu-
litativa no ato de aprender e comunicar do sujeito, observando o lu- no, esperando-se colher informações daquilo que ele trazia de co-
gar do monitores e alunos inseridos no processo de Educação de nhecimentos anteriores, uma vez que os alunos do telecurso pas-
Jovens e Adultos com atividades? sam anos sem estudar.
d) Que materiais poderão ser utilizados para melhorar o pro- O processo é mantido até que todos os participantes do
cesso de ensino numa sala de aula da Educação de Jovens e Adultos, subgrupo tenham apresentado sua contribuição. Em seguida, as fo-
bem como no Ensino Regular? lhas de papel são desdobradas e cabe a cada subgrupo redigir no
Visamos, pois, a partir desses questionamentos, ampliar o po- máximo até dez palavras suplementares, procurando dar sentido às
tencial participativo do aluno, além de tecer considerações do espaço diferentes palavras apresentadas. Torna-se vencedor o grupo que apre-
da sala de aula como o lugar da interação, do saber, do prazer e do sentar maior lógica no seu conceito. Dependendo dos objetivos com
lazer. Contextualizando a pesquisa: A pesquisa foi feita em sala de os quais se programa a atividade, o professor não deverá instruir
aula, com a utilização de atividades lúdicas. Aqui, o professor abor- limites à expansão da criatividade, ficando a critério do aluno apre-
da os assuntos do ponto onde estão os alunos, verificando o que eles sentar seu conceito ideal.
podem fazer, o que estão dispostos a fazer e o que trazem de saberes Para conceituar o substantivo o professor tomou por base as
a serem socializados em sala de aula. O professor direciona a ativida- palavras apresentadas pelos grupos, o que possibilitou visualizá-las
des e o aluno, por sua vez, participa. da seguinte maneira:
É preciso falar da importância de se trabalhar com atividades
lúdicas para a construção do conhecimento e mostrar os jogos como Grupo I
meios para reverter diversas situações de não-aprendizagem, o que nome lugar
estimulará o desenvolvimento intelectual do aluno. Buscamos, se- sentimento nome
Substantivo coisa ação
gundo Kamii, apontar uma nova maneira de pensar sobre o quê, objeto animal
como e porque ensinar, para, a partir disso, desenvolver o pensamen- Pessoa

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 629


Observe-se que apenas “nome” se repete, o que dá ao substan- O conceito de substantivo vai se formando pela apresentação
tivo o conceito de “um nome designando sentimento, coisa, objeto, das idéias dos alunos, entretanto, ele ainda não está claro frente às
lugar, ação ou animal”. palavras usadas para designá-lo: “substantivo é coisa, pensamento,
Na verdade, os termos levantados pelo grupo I reitera a carac- sentimento, idéia, palavra, nação.”
terização dada ao substantivo no livro do telecurso, nas gramáticas Convém, pois, que no geral, os alunos levam em conta o prin-
tradicionais pesquisadas, representando apenas uma relação lexical, cípio de que toda palavra pode ser inserida na classe dos substanti-
onde estão inseridas algumas expressões básicas da língua, vos, desde que essa palavra venha precedida por um artigo ou qual-
nominalizando o substantivo fora de um contexto lingüístico. quer outro elemento que o determine, como pronome indefinido,
por exemplo.

No segundo grupo, dois aspectos novos aparecem com relação


ao substantivo, é o fato de ele ser “tudo” e “variar”, não havendo
ocorrência de repetição das palavras. Os alunos preocupam-se em descrever o substantivo, ponde-
Dessa forma, este grupo explica o substantivo como “tudo que rando as palavras, com um certo medo de errar: “é uma imagem,
dá nome a uma ação, sentimento, coisa, objeto, lugar ou animal, emoção, podendo ser significativo, do tipo comum...” É reproduzida
sendo variável por excelência.” a idéia do substantivo representar “pessoa” e algum estado ou emo-
O elemento novo é a expressão “variável”, mas partindo do ção, conduzindo-nos a idéia de que ele pode representar diversos
pressuposto de que “criança” conecta a característica de masculino e vocábulos dentro de um contexto lingüístico.
feminino para atores de sexos diferentes, a recuperação do problema
de variação não parece coerente para o substantivo, uma vez que o
que vai representar essa variável são os artigos o, a, os, as, um, uma,
uns, uma, reforçando ainda mais as confusões de critérios gramati-
cais que até hoje não foram solucionadas.

Eventualmente as palavras não se repetem e começam a dar


sentido ao contexto a ser trabalhado: Substantivo “é nome, é lu-
gar, é pessoa, é coisa, é a designação de um ser ou sentimento
como a esperança.”
O terceiro grupo começa a determinar o conceito a partir de um
artigo e apenas um dos sujeitos não encontra palavra para expressá-
lo.Assim, o substantivo expressa-se por ser: “um nome dado a uma pes-
soa, ação, um sentimento, uma qualidade, um lugar ou um estado.”
Cabe observar que há uma tendência do aluno em recuperar
outros conceitos para definir o substantivo, na verdade, é convenien-
te em trabalhos posteriores discutir a possibilidade de atualização
dos nomes, uma vez que, conforme Basílio (1980:73), o fenômeno Continuam as dúvidas; no entanto, uma nova abordagem é
de nominalização consiste numa relação paradigmática geral entre dada, a partir do momento em que o aluno designa o substantívo
verbos e nomes no léxico.” Havendo, assim, a necessidade de uma como uma palavra “variável, dando nome a um sentimento, um
análise dos termos dentro de um processo lexical e morfológico, res- estado ou um lugar.
pectivamente.

Este quadro já mostra um aspecto novo, talvez o aluno não A definição vai se articulando como elemento concreto à reali-
saiba, mas ele não parte mais de uma definição, mas de um exem- dade do aluno, contudo, ainda há o que considerar para uma melhor
plo “José”, dentro de um processo de nominalização dos termos, seqüenciação das palavras que o abordam como “um nome, uma
para a definição do substantivo, o que possibilitou conceituá-lo ação, uma palavra ou elemento concreto, coisa ou uma cor.”
como: “uma palavra, uma coisa, uma idéia, um nome, como José O que se observa é que os conceitos de substantivo levantados
ou a própria natureza.” pelos alunos são bastante restritos e bem próximos daqueles apresen-
tados pela gramática tradicional. Percebemos que em quase todos os
grupos aparece o elemento “nome” para designá-lo, mas poucos têm
consciência do lugar do substantivo na língua. Uma vez que “nome”,
conforme Câmara Jr. (1992:87) “funciona como determinado ou
determinante, respectivamente”, e pode tomar a forma de um adjeti-
vo, sujeito, predicativo do sujeito, núcleo, etc.

630 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Com base nos conceitos levantados preliminarmente pelos ALMEIDA, Paulo Nunes de. Educação lúdica, técnicas e jogos
alunos, e depois de compartilhada a experiência com os demais pedagógicos. São Paulo: Edições Loyola, 1990.
grupos, incentivamos as equipes à uma comparação dos “concei- ANTUNES, Celso. Manual de técnicas de dinâmica de grupo
tos” formulados pelos alunos com os que aparecem as diversas gra- de sensibilização da ludopedagogia. Rio de Janeiro: Vozes, 1992.
máticas tradicionais. CADORE, Luís Agostinho. Curso Prático de Português. São Paulo:
Foi feito um levantamento significativo do conceito do subs- Ática, 1999.
tantivo, o que levou-nos a compreender que esses conceitos não têm CEREJA, William R. & MAGALHÃES Thereza Cochar. Gramá-
mudado ao longo dos anos e que, autores como Júlia Geria, Douglas tica reflexiva: texto, semântica e interação. São Paulo: Atual,
Tufano, Celso Cunha, José de Nicola, Ernani Terra, Ulisses Infante, 1999.
Napoleão Mendes, J. D. Maia, Antônio de Siqueira Silva, Rafael CUNHA, Celso. Gramática do português contemporâneo. Rio de
Bertolin, Adriano da G. Kury, Ubaldo Luiz de Oliveira, William R. Janeiro: Padrão, 1989.
Cereja, Thereza Cochar Magalhães, Luís A Cadore e Pachoalin & GERIA, Júlia et alii. Português: educação de jovens e adultos.
Spadoto apresentam conceituações que convergem para um mesmo Curitiba: Educarte, 1998.
sentido, no que tange definirem o substantivo como “a palavra vari- KAMII, Constance. Jogos em grupo na educação infantil: implica-
ável ou invariável que nomeia um sentimento, coisa, objeto, pessoa, ções da teoria de Piaget. São Paulo: Trajetória cultural, 1991.
ação, lugar, pensamento, idéias dentre outros”. Isto mostra a existên- KURY, Adriano da G. & OLIVEIRA, Ubaldo Luiz de. Gramática
cia de uma tendência dos autores a manterem uma mesma posição na objetiva. São Paulo: Atlas, 1986.
abordagem dada ao substantivo. LYONS, J. Introdução à lingüística teórica. São Paulo: USP, 1980.
No livro do telecurso o “substantivo” são palavras que desig- MAIA, J. D. Gramática : teoria e exercícios. São Paulo: Ática, 1988.
nam pessoas animais, coisas, fatos, acontecimentos, situações” cons- MESQUITA, Roberto Melo. Gramática da Língua Portuguesa. São
tituindo uma reprodução do que se encontra na gramática como “pa-
Paulo: Saraiva, 1996.
lavra que dá nome aos seres em geral” idéia repetida em todos os
MIRANDA, Antenor. 200 jogos infantis. Belo Horizonte: Itataia,
autores pesquisados, sem uma preocupação com um referente se-
1987.
mântico, lexical ou sintático ou até mesmo na produção dos enunci-
NICOLA, José de. & INFANTE Ulisses. Gramática contemporânea
ados num determinado contexto.
da língua portuguesa. São Paulo: Scipione, 1995.
Para introduzir este conceito, o telecurso parte do processo de
PASCHOALIN, Maria Aparecida. Gramática: teoria e exercícios.
formação de palavras, marcando as suas terminações e os exemplos
São Paulo: FTD, 1992.
são apresentados a partir da criação de uma situação-problema, para
PASSEGGI, Luís Álvaro Sgadari. Os discursos da sala de aula. Para
daí chegar às noções dadas pela gramática tradicional de forma estri-
uma retórica da interação didática. In: Vivência, v. 12, n. 1,
tamente descritiva, o que não acrescenta muita coisa aos conheci-
mentos já adquiridos em momentos anteriores pelos alunos. jan/jun, Natal: EDUFRN, 1998.
O que ocorre é a repetição de vários conceitos frutos da __________________. O discurso da sala de aula. Aspectos semân-
memorização pura e simples, que nos parece um meio inconveniente ticos e pragmáticos. In: Passeggi, L. (org. Pesquisas em lingüís-
no processo ensino-aprendizagem. tica aplicada, Natal: EDUFRN (em preparação).
Na verdade, era preciso antes de definir o substantivo num PIAGET, J. Réussir et comprendre. Paris: PUF, 1974.
critério semântico, descrevê-lo num contexto frasal e assim conside- PICHON-RIVIÈRE, E. O processo grupal. São Paulo: brasiliense,
rar a palavra representada por ele, pois seu conceito nem sempre tem 1991.
uma coerência significativa, uma vez que, segundo Monteiro PRETTI, Dino. A atitude lingüística do falante. In: A gíria e da con-
(1986:204) “qualquer vocábulo assume a função de substantivo” e, versação. In: s/d. p. 106-123.
é por isso que Lyons (1979:34) diz com certa ironia que “a única RAPOSO, E. P. Teoria da Gramática. A faculdade da linguagem.
razão que temos para dizer que verdade, beleza e eletricidade são Lisboa: Caminho, 1992.
coisas é que as palavras que as exprimem são substantivos,” o que ROBINS, R. H. Lingüística geral Porto Alegre: Globo, 1979.
leva-nos a concordar com o autor uma vez que os modelos de ensi- ROSA, M. M. Marcadores de atenuação. São Paulo: Contexto, 1992.
no-aprendizagem alicerçados no mecanismo de repetição de concei- SARGENTIN, Hermínio. Gramática básica. São Paulo: IBEP, s/d.
tos não conduzem à reflexão nem à pesquisa, sendo necessário um SAUSSURE, Ferdinando de. Curso de lingüística geral. São Paulo:
repensar do nosso fazer-pedagógico quotidiano. Cultrix, 1989.
O importante é destacar que as atividades lúdicas utilizadas SILVA, Antônio de S. & BERTOLIN, Rafael. Língua Portuguesa.
em sala de aula constituem um espaço comunicativo e servem como Linguagem e vivência. São Paulo: IBEP, 1999.
meio para a aprendizagem do aluno e não como fim, como diz Paulo SILVA, Maria Alice Setubal S. e. et al. Ensinar e aprender. Coleção
Nunes. raízes e asas. Vol. 05, São Paulo, 1996.
Esta perspectiva de ensino não invalida outras formas, ao con- TERRA, Ernani. Curso prático de gramática. São Paulo: Scipione,
trário, pode ser conjugada a outros instrumentos que ampliem a possi- 1996.
bilidade da construção de novos saberes e, servem de subsídios para TUFANO, Douglas. Estudos de Língua Portuguesa: gramática. São
repensar o fazer pedagógico de cada profissional em sala de aula. Paulo: Moderna, 1998.
VOGT, C. Linguagem, pragmática, ideologia. São Paulo: Hucitec/
Referências bibliográficas Funcamp, 1990.
VYGOTSKY, L. S. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins
ALMEIDA, Napoleão M. de. Gramática metódica da Língua Fontes, 1989.
Portuguesa. São Paulo: Saraiva, 1992. ________________. A formação social da mente. São Paulo: Martins
ALMEIDA LOPES, Andreia de. Construção do conhecimento nas Fontes, 1989.
aulas de leitura em língua materna: estratégias interacionais WALLON, H. O papel do outro na consciência do eu. São Paulo:
indicadoras de resposta certa. Intercâmbio, vol VI, 1997. Ática, 1987

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 631


Ensino de gramática através da reescrita:
um estudo colaborativo
Andréa Jane da Silva
Universidade Federal do Rio Grande do Norte

ABSTRACT: The focus of this work is the grammar teaching situation and the possibilites for a reflexive teaching/learning process. The paper we now
present was divided into two moments: 1) diagnosis of the classroom situation , 2) discussion with the teacher and an experiment. The aim of this study is to
present the results of the second moment.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino da primeira língua, ensino produtivo, ensino/gramática

1. Ensino de gramática e a produção escrita ação será mais voltada para verificar se o autor/aluno foi capaz de ser
“eficiente” (ser bem compreendido) diante da condição de produção
Um dos questionamentos atuais, refere-se à questão do ensi- que lhe foi apresentada.
nar ou não a gramática. Se devido à fatores vários conclui-se que As condições de produção que são colocadas aos alunos é um
“sim, deve-se ensinar gramática”, tem que se pensar, portanto, par- outro problema a ser enfrentado, já que o leitor do texto do aluno é o
tindo de um ponto de vista de ensino de língua produtivo: que se professor que, como já mencionamos, muitas vezes busca mais a for-
realiza na produção oral e verbal e na compreensão. Como a escola ma que o conteúdo. Assim, a escrita perde uma de suas condições
deve ser o lugar de apropriação da língua padrão e a escrita é a situ- básicas que é dizer algo a alguém (real), o que se apresenta bastante
ação de maior realização dessa modalidade, vamos observar como se distinto do cotidiano, pois ninguém joga conversa fora, tudo tem uma
pode trabalhar com “gramática” no momento da produção escrita função (convencer, informar, convidar, etc.). No entanto, o contexto
dos alunos. Acreditamos dessa forma, que o caminho que parece mais da escrita em sala de aula sempre será – por assim dizer – artificial;
ser o mais coerente para a realização da reflexão com e pela lingua- podendo ser aproximado de situações reais, se os professores fize-
gem é, portanto, na produção escrita. Assim, os trabalhos atuais su- ram dessas produções dos alunos uma atividade social (uma carta a
gerem que essa reflexão aconteça sobre os textos dos alunos pelos uma colega, um artigo para um jornal, conta algo sobre seu cotidia-
próprios alunos. E é exatamente no momento de revisão de seus tex- no, etc); ou seja, com um objetivo comunicativo.
tos que os alunos poderão está lidando com questionamentos que Portanto, retomando o processo de avaliação, concordamos com
referem-se à estrutura da língua; de modo a reconhecerem essa lín- Martins Evangelista et alli (1998:16):
gua como sua, estando a serviço de um uso específico, não como um
As estratégias de escrita, em quaisquer situações escolares,
conjunto de regras que devem ser seguidas ou como uma nomencla-
podem e devem incluir momentos e recursos para que o alu-
tura que deve ser reconhecida, ou seja, como uma língua morta.
no refaça o texto como um todo ou ajuste algumas ocorrên-
Por que é sempre tão difícil ensinar os alunos a escreverem?
cias lingüísticas específicas.(...)Dessa forma, avaliar pode
Primeiramente, porque o desenvolvimento da capacidade de escre-
significar corrigir, reescrever, rascunhar, passar a limpo,
ver envolve processos bastante complexos. Isso decorre da necessi-
confirmar ou negar hipóteses no ato da escrita, o que não
dade que essa modalidade possui de apreensão de regras sociais, não
precisa ser necessariamente realizado apenas na chamada
apenas a aquisição de uma código formal (alfabeto, gramática, etc.).
“aula de redação”.
Em segundo lugar, poderíamos dizer que a maneira como esse ensi-
no tem se dado é responsável por uma dificuldade de produção por Por isso que vimos o momento de avaliação como uma opor-
parte dos alunos. As investigações indicam que muitos professores tunidade para se refletir sobre os recursos lingüísticos, em nosso caso
tratam da escrita como sendo um produto acabado; as pesquisas atu- preocupamo-nos com os gramaticais, embora outros também este-
ais apontam para a necessidade de trabalhar e perceber a escrita en- jam incluídos. Além disso, no momento de avaliação (que teorica-
quanto processo. E que, como processo, é passível de rascunhos e mente é o momento no qual o professor tem oportunidade para tratar
erros; e que esse processo é por vezes “caótico” e, por isso, precisa de questões de gramática no texto), seguindo o ciclo o aluno produz
de revisões; de idas e voltas em busca de uma melhor construção do o professor ler e corrige, percebe-se que geralmente o professor cha-
que se está pensando. Assim, a partir desse ponto de vista, uma com- ma atenção para erros mais salientes referentes às questões da orto-
preensão do que seja “erro” se faz necessária, para que se possa me- grafia e sintaxe. O aluno não tem, dessa forma, oportunidade para
lhor contribuir para o aprendizado do aluno. Já que, no momento de refletir sobre os erros cometidos, os quais acabam repetindo-se. Logo,
avaliação da escrita do aluno, o professor tem que ter clareza do que a reformulação textual se faz necessária após avaliação, pois o aluno
considerar erro e como corrigi-lo. Sabe-se que em uma visão tradici- estará tratando das estruturas da língua à serviço do sentido textual.
onal a avaliação era (é) feita seguindo determinados padrões grama- No momento de revisão (avaliação) do texto inicial do aluno, o pro-
ticais, sem considerar o aspecto social da escrita: os alunos sempre fessor poderá encontrar elementos para refletir sobre as exigências
escreveram textos “artificiais”, para a avaliação do professor e não da língua escrita.
como forma de expressão. Manuela Cabral, em “Avaliação e escrita: um processo inte-
Assim sendo, para uma melhor instrução da escrita em sala de grado” In Pedagogia da Escrita: perspectivas, 1992 chama a aten-
aula não podemos perder de vista a questão da avaliação. Devido à ção para a necessidade de avaliação do texto do aluno por ele mesmo
concepção mais tradicional de língua como sistema abstrato, a avali- o que oportunizará uma reescritura do seu texto. Essa avaliação pode
ação visou (ou visa?) mais corrigir a forma – organização, ortografia, se dar em pares (co-avaliação). A avaliação permitirá que o profes-
concordância, etc - e menos verificar o sentido. Se, por outro lado, sor perceba alguns erros freqüentes e possa, a partir daí, estruturar
pensarmos a língua como um sistema organizado por níveis (gra- um momento para refletir sobre a linguagem em uma fase por ela
matical, semântico e discursivo), nossa compreensão quanto à avali- denominada de estruturação.

632 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Tais questões deverão dar lugar a momentos de estruturação 2. Experimento: Texto dos alunos e co-avaliação
particulares, através de actividades complementares à escri-
Esta fase iniciou com o repasse de textos ao professor para
ta: reflexão sobre o uso de conectores, emprego de tempos
que, como já mencionamos, pudéssemos conjuntamente com ele
verbais, introdução de elementos de coesão ou de restaura-
darmos alguns direcionamentos às aulas. Esses textos seguiram três
ção da coerência do texto ou quaisquer outros aspectos em
linhas: 1. Pesquisa colaborativa (para que pudesse entender melhor
que se manifeste necessária uma intervenção. (p. 122).
sua participação na pesquisa), 2. Problemática de ensino de língua
materna e ensino de gramática e, finalmente, 3. Proposta para o
Garcez (1998:99-173) realiza pesquisa com alunos do segun-
ensino de gramática. A leitura foi realizada, porém no momento em
do grau que lidam com a escrita de modo processual. Os alunos, em
que nos reunimos para discussão do texto, o professor demonstrou
pares, comentam os textos dos outros, para posterior reescrita. O
apatia e desinteresse, logo, pouco ele acrescentou, desta forma as
estudo tem base em Bahktin e Vygostky, especialmente nas conside-
propostas partiram da pesquisadora apenas. Portanto, o que inici-
rações desses autores sobre internalização e fala monologizada,
almente pretendia ser uma pesquisa colaborativa, foi na realidade
uma pesquisa ação (uma ação (meta) proposta por pesquisadora
(...) iluminam o processo que ocorre durante o diálogo entre
para ser aplicada). Essa dificuldade é decorrente de uma “cultura”
os interlocutores diante do texto, objeto de comentário. Por
que não viabiliza e não valoriza a pesquisa enquanto elemento cons-
um processo que parte do social, do interpessoal, do dialógico,
tituinte das práticas docentes.
há uma reelaboração intrapessoal da própria produção, e essa
Decidimos, então realizar o que chamamos de experimento,
reelaboração é verbalizada, parcialmente, por meio de
embora sem o caráter de objetividade dos que ocorrem nos labora-
reversibilidade de papéis. É o parceiro, com suas contribui-
tórios, nas pesquisas positivistas; assim chamamos, pois, pretendí-
ções dialógicas, que ajuda a construir, em conjunto com o
amos observar os resultados obtidos quando da utilização de pro-
redator, uma nova visão dos elementos constituintes do texto e
postas que já foram por vezes sugeridas por pesquisadores, mas
de seu funcionamento real. (Ibid.: 160)
poucas aplicadas e verificada sua eficácia. Assim, foi organizado
em 5 momentos: a) realização de atividade de produção escrita pelo
A autora percebe que no momento em que o produtor e o co-
aluno, b) troca dos textos para que os alunos revisassem os de seus
mentarista reconhecem os problemas, a partir da interação entre am-
colegas, c) comentários das duplas, d) aula dada pelo professor, a
bos, sugere transformações com vistas ao aperfeiçoamento do texto.
partir do que observou como problema nos textos dos alunos, e)
Além disso, o mais interessante é que as sugestões não se prendem a
reescrita dos textos.
questões superficiais, como pontuação e ortografia, mas envolvem
No primeiro momento, deixamos o professor à vontade para
sintaxe, semântica e léxico.
que fizesse a tarefa de escrita, isto é, não indicamos o que fazer e/ou
O tipo de atividade lingüística que ocorre nesse trabalho de
como, já que houve essa dificuldade de trabalharmos conjuntamente.
comentários e reformulação é epilingüística, portanto. Assim, basea-
A instrução dado pelo professor foi escrita no quadro, dizendo: Fa-
dos em Cabral depreendemos um percurso nas atividades processu-
zer redação (livre escolha). Vale = 1,0
ais de escrita (após a planificação e a textualização): avaliação/revi-
O termo “redação” instaura nos alunos um certo bloqueio, os
são ® estruturação®reformulação/reescrita. A primeira fase, de re-
traz para o contexto de sala de aula, já que só é utilizado aqui,
visão, é momento no qual o aluno rever o seu texto, e pode se dá
dificulta que seja percebido como realidade textual. Além disso,
como uma auto-avaliação ou co-avaliação (professor-aluno ou alu-
preparam-se para ter seu texto apreciado, ser corrigido e para voltar
no-aluno). A co-avaliação permite a socialização dos textos, contri-
todo em vermelho. Uma outra questão que evoca essa instrução é o
buindo para uma maior autenticidade da escrita. A fase de
sobre o quê falar/escrever? Já que entraram na sala, não houve qual-
estruturação é destinada a apresentação de um tópico (gramatical ou
quer tipo de discussão ou conversa, simplesmente teria de escrever
textual), o qual tenha sido mais percebido como dificuldade dos alu-
sobre algo. Ora, se já encontramos dificuldades de escrever sobre o
nos quando da escrita de seus textos. Cabral (1992:122) irá acres-
que conhecemos, sabemos, muito mais complicado é escrever so-
centar que o professor deverá eleger pontos a serem trabalhados de
bre qualquer assunto. Os alunos se entreolhavam, perguntando: -
modo que não haja uma sobrecarga de informação trazida. Há de
sobre o que vou escrever? Esbarramos, aqui, com os problemas das
selecionar um ou dois aspectos de maior relevo e fazer com que os
redações escolares: o que dizer, para quê e para quem? Bem, com
alunos trabalhem sobre eles. Finalmente, após as discussões e refle-
todas as dificuldades, escreveram, o professor pediu para que revi-
xões sobre o texto e sua estrutura o aluno poderá voltar ao mesmo –
sassem em casa, para na aula seguinte entregarem aos colegas para
agora com uma outra postura -, para reescrevê-lo.
correção. O que é instigante é que, no mesmo período, os alunos
O que iremos sugerir ao professor colaborador de nossa pes-
estavam elaborando um texto para participação em um concurso de
quisa é que, após um texto requisitado aos alunos, eles passem por
redação, mostravam-se bastante motivados; esse material poderia
um momento de revisão (co-avaliação) – o qual será realizado em
ter sido aproveitado nessa atividade.
pares; aqui, o professor agirá como um supervisor/mediador para
auxiliar os alunos nos comentários e, ao mesmo tempo, captar os
Quanto mistério e suspense parecem rondar a ação de escre-
problemas mais comuns para a fase de estruturação. As observações
ver textos na escola! Não se sabe direito quando se vai escre-
dos textos dos alunos pelos pares deverá seguir uma grade ou um
ver, sobre o quê e para quê. O escrever se submete à progra-
roteiro para que saibam o que é esperado deles, ou seja, o que devem
mação, ao ritmo e à dinâmica escolar apenas porque é uma
observar no material dos colegas. O roteiro pode seguir um modelo
atividade entre inúmeras outras de que se alimenta essa dinâ-
próximo do sugerido por Pica (1982:9):
mica e isto é tudo o que se pode prever. A hora, o assunto e o
1. O que você acha do texto de seu colega? destino da escrita – da minha escrita, da nossa escrita – es-
2. Que modificações faria no texto? tão devidamente previstos e calculados no calendário escolar,
3. Os erros impedem a compreensão do texto? impostos pelo programa e pelos incontáveis bimestres e se-
4. Você aprendeu algo de novo por meio do texto de seu colega? mestres, que marcam o tempo nesta instituição. (Lilian Martin
5.Outros. da Silva, 1986:53).

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 633


Para o segundo momento, elaboramos um roteiro para os alu- cia e coesão, por exemplo); como é sabido, quando o professor ava-
nos saberem exatamente o que observar nos textos dos colegas: liar os textos dos alunos é para destacar erros locais (ortográficos, de
· Leia atentamente o texto de seu colega, seguindo as reco- concordância, etc.). De qualquer modo, o fato de os alunos estarem
mendações abaixo. Faça anotações, pois irá repassá-las para ele/ela. realizando um tipo de atividade que envolve interação, troca de
1. Você gostou do texto de seu amigo? Por quê? informação e de papéis (aqui, ele também tem voz para verificar o
2. De que fala o texto? que seria melhor para a redação do amigo, não só o professor), é
3. Você compreendeu o que seu colega quis dizer? Por quê? relevante para criar uma nova forma de ver e pensar a avaliação dos
4. Que problemas encontrou no texto de seu colega? Marque- textos escolares. A seguir, apresentamos um dos comentários reali-
os no texto, fazendo as correções necessárias. zados pelos alunos:
5. O que faria para melhorar ainda mais a redação do seu amigo?

Assim, os alunos em duplas leram os textos dos colegas e fo-


ram seguindo as instruções e fazendo as correções que achavam ne-
cessárias. Eles estavam ao mesmo tempo empolgados e inseguros, já
que não estavam acostumados com esse tipo de tarefa. No entanto,
comportaram-se muito bem e, como não esperávamos muito devido
à série e ao tipo de atividades que estão acostumados a fazerem, con-
seguiram revisar o texto dos amigos. Sempre que tinham dúvidas se Assim, no momento de realizar os comentários em duplas, os
algum elemento estava errado, chamavam o professor que lhes res- alunos não sabiam como fazê-los, ressaltavam questões superficiais
pondia; como exemplo, citemos a situação de um aluno em dúvida se e preocupavam-se em emitir suas impressões sobre o texto (“eu gos-
entrasse era com dois “s” ou com um, o professor mostrou a diferen- tei”, “seu texto tava muito legal”). No entanto, isso não desfaz a im-
ça dos sons: se fosse só com um “s”, teria som de “z”, etc. Percebe- portância desse tipo de atividade, pois os alunos tiveram uma oportu-
mos, portanto, que, já nesta fase, os alunos estão trabalhando ativa- nidade de reverem seus textos, tê-los apreciados face-a-face, já que o
mente com a língua, pois está a serviço do uso, tem uma função. professor dessa turma, quando corrigia os textos, os alunos apenas os
Além disso, o trabalho em pares dá mais originalidade a escrita, pois guardavam sem buscarem compreender as correções. Dessa forma,
alguém, que não o professor, irá ler; e, ainda, proporciona interação terão mais tempo com seus escritos: revisão e reescrita.
e estimula o respeito mútuo, já que deviam avaliar sem depreciação
alguma, o que de fato ocorreu. 3. Referências bibliográficas
A fase seguinte, devido a vários problemas (doença do profes-
sor, feriados, falta de aula na escola por motivos variados, etc), ficou MARTINS EVANGELISTA, Aracy Alves; CARVALHO, Gilcinei
prejudicada. Muitos alunos já tinham esquecido os textos dos cole- Teodoro e et al. Professor-leitor, aluno-autor: reflexões sobre
gas em casa (por causa da distância temporal, só ocorreu uma sema- avaliação do texto escolar. Belo Horizonte: Formato, 1998. In-
na depois), por isso, o momento de co-avaliação se deu com poucas termédio, vol. III, ano II, out.
duplas. Foram gravados os comentários de três duplas (5 alunos, pois GARCEZ, Lucília Helena. Clareando os horizontes. In: A escrita e o
um não quis gravar), não havendo, no entanto, troca de turno, ou outro: os modos de participação na construção do texto. Brasília:
seja, os pares não pediam explicações sobre as observações. Os co- Editora da UNB, 1998.
mentários sobre os textos, foram bastante resumidos, tratava-se de GERALDI, Jõao Wanderley. Portos de Passagem. 4. ed. São Paulo:
um tipo de atividade com a qual não estão acostumados a praticar, Martins Fontes, 1997. (Texto e Linguagem).
não sabiam o que dizer, nem como. Não ocorreu também pedidos de PICA, Teresa. An Interactional Approach to the Teaching of Writing.
esclarecimentos por parte daqueles que ouviam os comentários. Tesol Convention, Honolulu, p.6-10, 1982.
Além disso, percebemos que os comentários eram superfici- SANTOS, Odete. Um modelo de estratégia de ensino-aprendiza-
ais, geralmente, destacando o que sentiam em relação ao texto e pro- gem da escrita na aula de língua materna. FONSECA, Irene.
blemas mais ortográficos, já que os mesmos não fazem em classe (org.) Pedagogia da Escrita: Perspectivas. Portugal: Porto
tarefas que lidem com “erros” globais (questões referentes à coerên- Editora, 1994

634 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Produzindo resumos no espaço escolar:
um exemplo no ensino de 3º grau.
Lucimar Bezerra Dantas
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Universidade Estadual do Rio Grande do Norte - UERN

Introdução partilhadas pelos textos reconhecidos como pertencentes ao gênero;


3) as configurações específicas de unidades de linguagem, traço, prin-
Este trabalho é parte da nossa pesquisa com vistas à disserta- cipalmente, de posição enunciativa do enunciador e dos conjuntos
ção de mestrado, cujo objeto de estudo é o resumo informativo. Nes- particulares de seqüências textuais e de tipos discursivos que for-
ta comunicação vamos apresentar alguns resumos elaborados por mam sua estrutura.
alunos iniciantes do curso de Física da UERN, para analisar em que Os gêneros textuais são uma referência para a aprendizagem
consistem as maiores dificuldades na realização dessa atividade. da linguagem. Dessa forma, o gênero pode ser considerado um mega-
Antes, porém, apresentaremos considerações rápidas sobre as rela- instrumento que fornece um suporte para a atividade nas situações de
ções entre ensino e gêneros do discurso, enfatizando a abordagem de comunicação e uma referência para os aprendizes.
Schneuwly e Dolz (1999). Em seguida, trataremos das peculiarida- O problema é que na escola, o gênero, além de instrumento de
des do resumo informativo. Nossas reflexões baseiam-se na seguinte comunicação, assume o papel de objeto de ensino. Observando como
pergunta: o resumo informativo, da forma como está sendo traba- se dá, efetivamente essa prática, os autores destacam três maneiras
lhado, realmente se constitui numa estratégia eficiente no ensino e de como a escola trata o ensino da escrita e da palavra tendo o gênero
aprendizagem da análise e da interpretação de textos? como objeto. No primeiro tipo, a comunicação desaparece da esco-
la em favor da objetivação e o gênero torna-se pura forma lingüística
Algumas considerações sobre gêneros e ensino cujo objetivo é seu domínio. Na segunda forma de abordagem, a
escola é vista como lugar específico de comunicação. As atividades
Atualmente, têm-se verificado um grande interesse dos pes- de escrita resultam de situações reais as quais os alunos são subme-
quisadores em estudar gêneros e sua relação com a prática escolar. tidos. O gênero nasce naturalmente da situação criada, descartando-
As formulações de Bakhtin (1997) sobre os gêneros do discurso são se qualquer tipo de modelo externo. Na última abordagem, a escola
referência para muitos estudos preocupados em propor tipologias não é vista como lugar específico da comunicação. Os gêneros que
textuais para serem aplicadas na escola. Como Bakhtin não preocu- funcionam nas práticas de linguagem entram como tais na escola.
pou-se diretamente com questões de ensino, muitos lingüistas estão Situações autênticas de comunicação são criadas para levar o aluno
empenhados em buscar respostas satisfatórias para questões do tipo: ao domínio do gênero, exatamente como este funciona nas práticas
quantos são os gêneros? Como tipificá-los? Como descrever suas de linguagem de referência
variações? Como trabalhá-los na escola? É possível a elaboração de Diante dessa complexa realidade, os autores acenam para a
modelos didáticos dos gêneros? Como lidar com a heterogeneidade necessidade de uma reavaliação que deve ter como ponto de partida
e instabilidade dos gêneros? o conhecimento do verdadeiro papel dos gêneros como objeto e
Os trabalhos de Bronckart (1999), Schneuwly e Dolz (1999), instrumento de trabalho para o desenvolvimento da linguagem.
Van Dijk,(1996) Adam (1993) são apenas alguns dos exemplos de Essa reavaliação deve começar pelas decisões didáticas a serem
estudos empenhados em “didatizar” os gêneros. Apoiados em pos- tomadas. Assim, toda introdução de um gênero na escola deve se
turas teórico- metodológicas distintas, sugerem modelos de classi- basear em objetivos precisos de aprendizagem que conduzam o
ficação dos gêneros, geralmente denominados de tipologias textu- aprendiz ao domínio do gênero e ao desenvolvimento de capacida-
ais. Marcuschi (2000) resenhou cerca de 19 modelos e sugestões de des transferíveis à aprendizagem de outros gêneros. Quando um
tipologias textuais. gênero é introduzido na escola ele passa a ser um gênero escolar,
Com base na abordagem Schneuwly e Dolz (1999) acerca da uma variação do gênero de origem. Assim, para resolver essa com-
relação gêneros e escola, refletiremos sobre a prática do gênero re- plexa relação entre os gêneros escolares e as práticas de lingua-
sumo no ensino de 3º grau. Considerando que os gêneros são unida- gem, a saída é criar situações de comunicação que imitem situa-
des concretas a partir dos quais deve dar-se o ensino, os autores dis- ções reais para que os alunos vejam algum sentido na aprendiza-
cutem a relação entre gêneros escolares, práticas de linguagem e gem do gênero. Além disso os alunos devem estar conscientes de
objetivos de ensino. Para entender essa complexa relação, faz-se que os objetivos visados na escola são diferentes daqueles preten-
necessário a compreensão dos conceitos de práticas de linguagem e didos nas situações reais de comunicação.
de atividades de linguagem. Mas, como saber de que forma as prá-
ticas de linguagem, nas suas diferentes formas, se articulam com a Sobre o resumo informativo
atividade do aprendiz?
Os locutores sempre reconhecem um evento comunicativo, uma O resumo informativo, também denominado de resumo esco-
prática de linguagem, como instância de um gênero. O gênero funci- lar tradicional, é um gênero escolar por excelência. Seus objetivos
ona como um modelo comum. voltam-se para a análise e interpretação de textos. Através do resu-
Os autores (idem: 7) afirmam que para definir um gênero como mo, por exemplo, o professor poderá avaliar a capacidade leitura,
suporte de uma atividade de linguagem três dimensões parecem es- compreensão e síntese dos alunos.
senciais: 1) os conteúdos e os conhecimentos que se tornam dizíveis O resumo informativo não deve ser confundido com as demais
através dele; 2) os elementos das estruturas comunicativas e semióticas variações desse gênero. Assim, os resumos de novelas que apare-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 635


cem semanalmente nos jornais e revistas, os resumos de artigos e globam aspectos diversos, onde os dissociativos constituem tendên-
livros que antecedem esses textos e são elaborados pelos próprios cias diversas quanto à abordagem marxista, neomarxista,
autores, a resenha que apresenta um posicionamento crítico do au- neoweberiana, enfim, enfocando essa diferença ideológica e ativa.
tor são variações de resumo e diferem do primeiro quanto aos obje- Tal tendência, não exclui a possibilidade e torna necessário ao con-
tivos pretendidos, quanto à autoria e destinatários. Enquanto os re- senso que vem amenizar o conflito.
sumos de livros e artigos destinam-se a um público específico de Segundo Marx, a educação é manipulada por fatores econô-
leitores e visam a uma explicação rápida sobre o texto, o resumo micos, que determinarão a ideologia presente e a ser passada a cada
escolar, geralmente, destina-se ao professor. classe social, em resumo, uma dominante e outra dominada. Já Lenine
O fato de o resumo informativo, especificamente, ser uma mostra seu ceticismo em relação a tal influência econômica, pois o
variação de resumo cuja utilização é exclusiva da escola ( fora dela é mesmo acredita ser o nível cultural o mais relevantes dos fatores
pouco provável que alunos elaborem resumos escritos) transforma- ativos na mudança do sistema. Outra opinião se caracteriza pela con-
o numa atividade sujeita às práticas escolares, ou seja, o ensino e tradição, que, Mao Tsé-Tung expressa na oposição entre a capacida-
aprendizagem do resumo informativo depende diretamente da esco- de deste último, bem como sua importância real para a sociedade.
la, a partir de um trabalho progressivo ao longo das séries escolares. A complexidade das questões tratadas tornaram-se tão distan-
No entanto, não é isso que se tem observado. Muitos professores, por te da simplicidade mas é inegavelmente influenciada sua passagem
exemplo, não têm clareza sobre as diferenças entre as várias modali- de conhecimentos de uma geração para outra.” ( M. M. S.)
dades de resumo, nem sobre os objetivos que pretendem quando so-
licitam que seus alunos resumam. Além disso, há exemplos de alu- Resumo 2
nos que chegam à universidade sem nenhuma experiência com esse “De acordo com o texto o paradigma do conflito se dá atra-
gênero. Diante disso, algumas reflexões se impõem: será que a for- vés da luta por recursos limitados dentro de um determinado gru-
ma como o resumo vem sendo trabalhado se constitui numa estraté- po, onde os valores e idéias são levados em conta como armas para
gia eficiente de compreensão e interpretação de textos? Os resumos o conflito e sendo mais importantes que os meios de integração que
dos alunos reconstruem a lógica enunciativa do texto original? Como há entre eles.
deveria ser uma progressão para o ensino do resumo? Existe uma fonte clássica dirigida por Marx para o paradigma
do conflito, na qual a infra-estrutura que influencia a superestrutura,
Dados empíricos
ou seja, a primeira caracteriza-se pela base, onde o capital é o dinhei-
Os três resumos que compõem nossos dados foram produzi- ro que vai dominar a segunda que é o estado e as leis, ambas depen-
dos por alunos iniciantes do curso de Física da UERN como tarefa dem uma da outra.
obrigatória da disciplina Língua Portuguesa Instrumental I, com vis- Para Marx a educação nas escolas é de grande importância
tas à avaliação do professor. Como texto-fonte foi indicado um tre- para transmissão de conhecimentos e técnicas e também normas de
cho do livro “A Educação em Perspectiva Sociológica”, Gomes comportamento. Ele afirma que ela dependerá da classe social do
(1994). Dada a extensão do texto, sua reprodução integral seria aluno, se é da classe dominante aprenderá a manipular, se é da classe
inviável, por isso optamos por elaborar um resumo que servirá como dominada aprenderá a submeter-se à ideologia.” ( C. R.)
referência para as observações a serem feitas.
Resumo 3
Resumo elaborado pela pesquisadora “Revela os processos dissociativos da sociedade, que cria um
“Neste texto o autor apresenta algumas características do sistema d grupos unidos ou competitivos entre pessoas. Todavia,
paradigma do conflito, enfatizando como as políticas educacionais e observa a economia como um processo pela qual, se faz repetir a
certos ideais ortodoxos foram implementados nas sociedades socialis- harmonia entre as classes dominantes e dominadas.
tas. Fazendo um recorte na teoria marxista, o autor seleciona três as- Na teoria de Hawkins em relação a Max, relatou que a educa-
pectos que interessam ao paradigma do conflito: os fatores econômi- ção deve ser controlada pela classe dominante intelectual. E ainda
cos são determinantes fundamentais da estrutura social e da mudança; diferencia as pessoas de ação e aquelas que nasceu para refletir. Mas,
a história da sociedade se faz a partir da história da luta de classes; a acrescenta que a cultura não é bastante para a revolução.
classe social que detém os meios de produção também controla os Marx colaborou para uma educação mental, manual e politéc-
meios de produção e difusão intelectual, legitimados sob a forma de nica. Segundo ele deve-se englobar o conhecimento das escolas em
ideologia. Em seguida, ele apresenta a visão de Hawkins (1974) acer- geral e só assim satisfará a sociedade.” (E.R.R)
ca de três aspectos básicos da teoria de Marx e Lenine sobre a educa-
ção. Numa sociedade onde há diferenças entre as classes sociais, a Análise dos dados
escola é um instrumento da classe dominante. Portanto, numa socieda-
de socialista, o papel da educação deve ser o de condutora do comu- Nesta análise não nos deteremos num exame minucioso das
nismo. O segundo aspecto refere-se ao poder da educação como pro- leituras e dos problemas apresentados pelos textos resumidos de for-
motora de mudança social. Enquanto Marx reconhece uma relação de ma individual. Faremos apenas observações comuns aos três resu-
reciprocidade entre educação e mudança social, Lenine não acredita mos, suficientes aos nossos propósitos.
na mudança política gradual através da educação. O terceiro aspecto Primeiro observamos que, mesmo considerando-se o elevado
enfatiza a visão de Marx sobre a importância de se combinar trabalho grau de subjetividade no trabalho de escolha e seleção, os resumos
produtivo, educação mental, exercício físico e treinamento politécnico analisados pouco dizem sobre o tema central do texto, construído
para compor o modelo de educação socialista. Finalmente, o autor em torno da relação entre os ideais ortodoxos da teoria marxista e a
enfatiza as complexas relações entre política educacional e práticas implementação de modelos de política educacional nas sociedades
políticas nas sociedades socialistas, a partir da seguinte constatação: socialistas. Os resumos refletem dificuldades de leitura e de interpre-
como a educação pode ser transmitida através das gerações, há o risco tação. Em alguns enunciados observa-se interpretações diferentes das
da escolarização perpetuar privilégios.” autorizadas pelo texto. Ainda podemos citar problemas quanto ao
uso do léxico e quanto ao domínio de certas estruturas gramaticais.
Resumo 1
Mesmo que levemos em conta o fato de o texto-fonte indicado ser de
“As característica básicas do funcionamento da sociedade en-

636 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


difícil leitura, em virtude da própria organização do texto, do grande Entre eles está o fato de haver possibilidade de se resumir textos
número de informações e da inclusão do discurso do outro e, princi- pertencentes aos mais variados gêneros, de extensão também variada.
palmente, do desconhecimento dos alunos sobre as teorias apresen- Pode-se resumir parágrafos, artigos, romances, textos científicos, etc.
tadas, não há como negar que muito ainda tem de ser feito a fim de O trabalho de seleção e escolha poderá ser maior nos textos mais
conduzir esses alunos ao domínio do gênero resumo. longos, mas, poderá ser mais complexo num texto científico, por
Quanto às estratégias de elaboração, observa-se claramente que exemplo. Em cada caso, o aprendiz terá que lançar mão de estratégias
os alunos não apresentam uma compreensão global do texto. De acor- adequadas à especificidade da situação. As condições de tarefa, resu-
do com Van Dijk (1996:51) quando se fala sobre tópico, tema, assun- mir na sala de aula ou resumir em casa onde o aluno terá mais possibi-
to, resumo de um discurso a noção de macroestrutura é essencial. A lidade de refletir sobre o texto, podem interferir no desempenho do
macroestrutura portanto “consiste numa reconstrução teórica de no- aluno.
ções intuitivas como a de “tópico” ou a de “tema” de um discurso. Nesse sentido, o ensino do gênero resumo no 3º grau deve ser
Ela explica o que é mais relevante, importante ou proeminente na orientado para que o aluno possa desenvolver competências relativas
informação semântica do discurso como um todo.” Como podemos ao uso do resumo como um tipo de texto acadêmico cujas condições
verificar, por não possuírem essa visão macroestrutural do texto, os formais e funcionais devem ser levadas em conta. Conscientes da
resumos se constituem numa colagem de informações que nem sem- complexidade do gênero resumo, Schneuwly e Dolz (1999) alertam
pre corresponde às encontradas no texto-fonte. para a necessidade de descrevê-lo em sua especificidade com rela-
Com relação à estrutura do resumo informativo, as recomen- ção às outras variações deste gênero. Para que o aluno aprenda a
dações formais que orientam sua elaboração ( Medeiros:1997:118) resumir é preciso que o resumo seja trabalhado progressivamente ao
também não foram seguidas. Os três resumos apresentam mais de um longo dos ciclos escolares. Não é simplesmente pedindo ao aluno:
parágrafo; não apontam o objetivo do texto; não dispensam a consul- “resuma este texto”, que o professor vai transformar a atividade de
ta do original; não apresentam as conclusões do autor; não estão re- resumir numa estratégia em favor do trabalho de análise e de inter-
digidos em linguagem clara. pretação de textos.
O insucesso dos alunos na elaboração dos resumos pode ser Enfim, o resumo informativo é um gênero que se origina na
creditado, principalmente, ao não estabelecimento do tema do texto, escola, seus objetivos e destinatários são definidos pela escola, por-
à dificuldade no trabalho de escolha e seleção das várias informações tanto é na escola que o aluno deve desenvolver capacidades a fim de
apresentadas pelo autor e ao desconhecimento da própria estrutura dominá-lo. No entanto, se tomarmos como referência os três resu-
do resumo. mos analisados, vamos responder à pergunta inicial afirmando que:
o resumo informativo, da forma como está sendo trabalhado, não se
Considerações Finais constitui numa estratégia eficiente no ensino e aprendizagem da lei-
tura com vistas à análise e interpretação de textos.
Resumir, condensar, reconstruir a lógica enunciativa de um
texto pressupõe leitura, compreensão, interpretação e escrita. Por- Referências bibliográficas
tanto deve ser encarado como uma atividade complexa. Sobre as di-
ficuldades que envolvem o resumo escolar, Schneuwly e Dolz BAKHTIN, Mikhail. (1997) Estética da Criação Verbal. São Paulo,
(idem:14) asseguram que resumir implica um trabalho complexo que Martins Fontes.
deixa marcas específicas no texto. Portanto, o resumo MARCUSCHI, Luiz Antônio.(2000) Gêneros Textuais: O que são e
“ longe de se constituir numa atividade que poderia ser reduzi- como se constituem. UFPE, (mimeo)
da à aplicação de algumas regras simples, o exercício resumo MEDEIROS, João Bosco. (1997) Redação Científica: A prática de
deve ser considerado um gênero que leva ao extremo a atitude fichamentos, resumos e resenha. São Paulo, Atlas.
metalingüística em face de um texto em que é preciso SCHNEUWLY, Bernard & DOLZ, Joaquim. (1999). Os gêneros es-
reconstituir a lógica enunciativa, sendo a situação escolar de colares. Das práticas e linguagem aos objetos de ensino. Revista
comunicação, precisamente, aquela que solicita a demonstra- Brasileira de Educação, nº 11, p. 5 – 17, mai/ jun/ jul/ ago.
ção da capacidade desta atitude.” VAN DIJK, Teun A . (1996) Cognição, Discurso e Interação. São
Além das implicações apontadas acima, outros aspectos tam- Paulo, Contexto.
bém podem contribuir para dificultar o desempenho dos alunos.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 637


O saber-poder na construção do sentido
Mirian de Albuquerque Aquino
Universidade Federal da Paraíba - UFPB

ABSTRACT: It approaches the verbal interaction in class room, focussing, the textual scewnes, to discursive practices of a Portuguese teacher in
activity of sense construction is developed, starting from the categories of foucaultian power, from whic the discursive (initiatives, inductive and
seductive) strategies are mobilized by the individuals ( teacher and students) of knowledge.
PALAVRAS-CHAVE: construção do sentido, estratégias discursivas, prática discursiva

1. Introdução mão para levar o interlocutor-aluno a desenvolver ações (iniciar,


A literatura atual aponta inúmeras abordagens sobre a sala de intervir, alternar, desenvolver, sustentar e fechar o turno) na dinâmica
aula, incluindo-se aquela em que se leva em conta a ação discursiva de interacional. Um dos participantes (professor) se acha no direito de
sujeitos que mobilizam estratégias na construção conjunta do sentido iniciar, dirigir e concluir a interação e exercer uma pressão sobre o
(Aquino, 1998). Concebemos a sala de aula como um espaço onde o outro participante (aluno).
professor detém uma pequena margem de autonomia capaz de fornecer b) Incitativas – ação mobilizada pelo interlocutor-professor
condições para rever seu discurso de sala de aula, amenizando a função que se empenha em instigar o interlocutor-aluno a produzir respostas
que a instituição lhe delega. às suas perguntas, com vistas à construção do conhecimento em sala
Nessa sala de aula, consideramos o professor como um profissional de aula. Esta estratégia constitui um ato ilocucionário cuja resposta
que exercita uma prática discursiva que lhe possibilita reunir elementos pode ou não produzir, mas, algumas, reforçando o ato de solicitação,
teórico-metodológicos para refletir sobre os referenciais pedagógicos instigação, incitam o interlocutor a responder (Coracini, 1995, p. 81),
incorporados na sua formação docente. Por prática discursiva a questionar, a debater, a reconstruir.
entendemos uma construção social em que um sujeito possuidor do c) Sedutoras – conhecimento formativo (lingüístico,
conhecimento e experiências, por meio de uma ação discursiva, dialógica psicológico, discursivo, histórico e social) construindo na trajetória
e interativa, propõe-se a compartilhá-la com o outro, tornando-o capaz acadêmica, constituindo, assim, a prática discursiva do professor.
de produzir novos sentidos na tarefa a ser empreendida (Aquino, 1998). Envolve atitudes construtivas que seduzem o interlocutor-aluno a
Na visão de Gore (1994), as práticas discursivas convencionais assumir uma atitude qualitativa e aproxima-se do significado concreto
tendem a ser essencialmente controladoras e reguladoras e, do mesmo da educação, que é o processo de formação da competência humana
modo que as práticas sociais, organizam-se e se constituem em relações histórica ou como prefere entender Demo (1995):a competência que
de desigualdade, poder, saber e controle.Entretanto, essas relações leva alguém a aprender a aprender.
nunca são inteiramente totalizadoras, pois há sempre brechas através A análise que desenvolveremos neste texto priorizará uma aula
das quais o sujeito pode escapar. de Leitura e Redação, gravada numa classe de alunos do Curso de
Essa idéia é compatível com o pensamento foucaultiano, quando Jornalismo, área de Comunicação Social, de uma universidade pública
desloca o poder de sua plenitude e dominação. Para Foucault, o poder do Nordeste.
exerce também uma face positiva, provocativa, estimulante e
desencadeadora de ações libertadoras. O poder/saber incita, induz e 3. Análise
seduz, torna mais fácil ou difícil, amplia ou limita, torna mais provável Cena 1: Abertura da aula - a professora dirigindo-se à classe
ou menos provável a construção do sentido na sala de aula (Foucault No primeiro momento da aula, o ato verbal centraliza-se na fala
apud Gore, 1994). O saber e o poder são correlatos; o poder é luta, da professora. Ela faz uma retrospectiva da aula anterior, deixando
confronto, relação de força, situação estratégica. Ele não está situado em entrever no seu discurso uma relação de poder que se localiza em um
sua universalidade ou num lugar privilegiado, mas é algo que se exerce. ponto específico, ou seja, a autoridade do professor. Trata-se do
O poder forma-se numa rede de relações das quais ninguém pode momento da devolução de textos dos alunos, no qual a fala de professora
desertar. é revestida de um forte matiz professoral, postura que, socialmente,
Na relação professor-aluno, essa compreensão de poder poderá quer significar uma relação de autoridade, previamente instituída,
contribuir para o exercício de uma prática discursiva comprometida aprovada e aceita pelos indivíduos (Furlani, 1995). Observemos a
com o sujeito em sala de aula. Como diz Penin (1994), o professor, no cena 1.
exercício de sua função social, vai construindo um conhecimento sobre P: Foi uma atividade de correção, foi entregue na terça feira.
o ensino (poder/saber) e partilhando, com seus alunos, os saberes a que Vou entregar só os diários, certo? Aqueles outros textos que
tem acesso nas leituras, reflexões e experiências. Sem dúvida, o professor vocês produziram com base na leitura do texto do Bom Conselho
faz parte de uma formação discursiva que determina a sua linguagem e eu não vou devolver agora, porque eu estou pensando em
sua prática na sala de aula. Esta prática traduz o discurso pedagógico desenvolver uma atividade de correção com ele. Como já disse
institucionalizado de uma dada formação social, na qual o sujeito já está da outra vez, eu digito o texto, não coloco nomes, Se o autor
inscrito e orientado para agir e pensar. Entretanto, acreditamos que quiser se identificar se identifica, mas a gente faz uma correção
ainda é possível pensar, nessa formação, a possibilidade de observando todos os aspectos, a questão de conteúdo, da
entrecruzamento de diferentes práticas discursivas. gramática etc... etc... tá? Então eu vou entregar agora só os
diários. Marcos Alexandre, Emanuela...
2. Estratégias Discursivas em Sala de Aula
O que se observa nesse momento inicial da interação em sala de
Abordaremos a seguir as estratégias discursivas que pressupomos
aula é que a professora exercita o seu papel de controle avaliativo das
ser constituintes da interação verbal na prática discursiva de sala de
ações do aluno. Sua prática discursiva parece refletir um dos objetivos
aula. Três são as estratégias discursivas: indutivas, incitativas e sedutoras.
pedagógicos da escola: a construção de um sujeito obediente, produzido
a) Indutivas - procedimentos operatórios que o professor lança

638 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


e sustentado por um poder pouco notado e difícil de denunciar: um aceitando a cultura escolar (Willis, 1991) e reforçando a autoridade do
poder que circula através dessas pequenas técnicas (Pignatelli, 1994, professor que, num ímpeto, define o modo como a construção do
p. 129) Nesse objetivo acadêmico, está prevista toda uma cobrança sentido deve ser organizada.
de tarefas, responsabilidades e resultados do processo ensino- Cena 3 - O desenrolar das falas e textos na sala de aula
aprendizagem. E o professor, certamente, está sempre pronto a cumprir P: Então vamos ver quem gostaria de começar a falar um pouco
esses objetivos, para restaurar o desviante ao estado normal sobre o texto o que é que achou da leitura e da discussão que
(Pignatelli, 1994). a autora faz a Maria Teresa Fraga Rocco faz sobre a
Na seqüência acima, predomina a fala do professor (a voz do televisão... Quem? Quem quer começar a discussão? A gente
discurso, do poder e da autoridade) que gesta as atividades na sala de pode fazer uma discussão primeira sobre o texto como um
aula. Através de tempos verbais (1ª pessoa e pronomes pessoais), a todo e depois particularizar... ir pegando os pontos
voz da professora mantém-se como uma espécie de coerção produtiva específicos, certo?
sobre os corpos (Foucault, 1991). Ela faz com que o aluno cumpra a A: De um modo geral, eu tava até comentando com o pessoal
norma, porque precisa dar conta de suas responsabilidades à formação num canto que ele é tão complicado que em nenhum
discursiva da qual faz parte. momento há exposições claras e definidas né? Ele suscita
O professor, em sua estratégia de induzir o aluno, não consegue algumas discussões no todo, principalmente no poder da
fazer com que ela funcione, sem romper o fio inicial da interação. O televisão, mas deixa sempre no ar essas discussões. Levanta
que se percebe é uma oposição que se manifesta, através de uma dados pró um lado e pró outro e sempre joga o debate pró
atitude silenciosa, tradicionalmente conhecida pelos alunos e ar, nunca tem nada claro, até porque essa discussão está no
professores, em sua prática discursiva escolar. A postura do aluno começo aí. Não existe dados concretos sobre isso, não
pode ser vista como uma forma de controle (indiferença) que utiliza existe pesquisas claras sobre isso. Fala dos prejuízos sobre
para frear a ordem estabelecida, a autoridade instituída, pois não se a televisão, principalmente para a criança. Não tem dados
pode ignorar, completamente, o conflito, as descontinuidades e a concretos sobre isso.
contradição como relações minúsculas de poder que passam por dentro P: E o restante o que acha? Concorda com isso?
da escola. A: Eu acho... ela lembrou que a televisão é uma conseqüência
Cena 2 - Desenvolvimento da aula - a professora dirigindo-se, de aspectos sociais.
novamente, à classe P: Por exemplo, o que é que ela coloca como sendo uma
P: Estou pensando em selecionar uns quatro ou cinco para problemática nessa relação da sociedade com a televisão?
que a gente possa desenvolver um atividade de correção A: É uma questão de diálogo...
em sala de aula, certo? P: E o restante? O que observou mais do texto?
P: Primeiro, espero que todo mundo tenha lido o texto antes. A: Em alguns momentos, ela se coloca por cima do muro ao
É um texto bastante longo e pelo visto a gente não vai... mesmo tempo diz que a televisão é um pleito de informação
ah... digamos assim...dar mais um tempo para que a leitura de divulgação Ela diz que a televisão também pode alienar
seja feita aqui. Eu acho que é, até mesmo, desnecessário as pessoas, pode interromper certos laços até da própria
fazer a discussão em pequenos grupos como a gente vinha família.
fazendo antes. Já que é um assunto tão conhecido, né? P: que eu acho que mais ou menos tem a ver com o que Célia
Acho que a gente pode partir logo para a discussão do colocou
texto. O que vocês acham? A: É, quando começo a ler certas partes a impressão que tenho
A: Eu acho que é melhor, é só uma aula, né? é que o ponto de vista dele é esse. Que ela aprovou. né? Só
P: É só uma aula prá ver se dá tempo de concluir. Então, que em nenhum momento ela deixa isso totalmente claro,
vamos ver se dá tempo de concluir. né?
Na análise desta cena, é possível identificar uma abertura no P: Sim... mas de certa forma acho que a leitura que ela faz
discurso da professora, dentro do qual se reconhece a presença de um também
sujeito que fala, marcada pelo pronome gente (que corresponde ao A: Dá pra gente perceber, mas eu não me convenci.
plural majestático nós). Contudo, o sujeito falante, aparentemente, Para obter as respostas solicitadas pelos alunos, a professora
afetado pelo discurso de sala de aula não reagiu, apenas escutou o abandona o comportamento diretivo e, recorrendo a estratégias
outro (a professora), sem intervir ou revelar o seu lugar social. incitativas, tenta abrir a discussão, ao tempo em que convoca o aluno
O objetivo da aula, entretanto, vai se tornando mais explícito, para que responda às suas perguntas. Nessa cena, dois aspectos
instaurando a interação. Trata-se de uma proposta de discussão do relevantes podem ser observados. Um deles está relacionado às
texto “Poder e Onipotência da Televisão: inquietações no ar”, de Maria perguntas (incitativas) genéricas que são feitas com o propósito de
Thereza Fraga Rocco, escolhido pela professora para a leitura na sala provocar a interação e manter relações sociais na construção do sentido.
de aula. Entretanto, o aluno não consegue o tempo necessário para organizar
Observem que a voz da professora é predominante (final da suas estratégias de intervenção, pois a professora é mais rápida no
Cena 2) na sala de aula. Durante todo o tempo, ela tenta enumerar o gatilho, não permitindo, portanto, construir o sentido.
momento organizacional da leitura do texto. Esta estratégia expressa É possível ver a preocupação da professora em querer dar
uma ordem; e onde esta se instala, a tentativa de uma ação dialógica é satisfações à instituição a que serve, impecavelmente, já que o papel
pouco nítida. A professora insiste no reconhecimento do sujeito do professor é o de reforçar o sempre já-lá (Pêcheux, 1979) no discurso.
(pronome gente), mas é a sua voz que define o modo como a atividade Em outras palavras, a prática discursiva do professor se concretiza na
se desenrolará na sala de aula. imagem funcional que ele tem de si mesmo e do aluno no âmbito da
Na segunda parte da seqüência 2, há uma contradição na fala da instituição. É sempre a professora que determina o modo como as
professora, pois ao estabelecer o diálogo, ela deixa bem marcado o relações sociais (interações) e os sentidos devem ser construídos. O
lugar de quem dirige, de quem dá as ordens. O aluno, por sua vez, outro aspecto observado é que a professora empreende esforços para
parece não se opor à autoridade da professora, mas conforma-se, que o aluno sintonize com as regras interacionais, mas dispensa

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 639


qualquer comentário a respeito da intervenção do aluno. mas também envolve o compromisso político-pedagógico que o
A cena 3 mostra que a professora “ensaia” o início da construção profissional do ensino deve assumir diante de si e do outro. O
do sentido, episódio interrompido, quando ela passa, imediatamente, desenvolvimento de uma prática discursiva dessa natureza coloca
o turno à frente como pode ser ilustrado nessa mesma cena. O como horizonte o propósito de minimizar relações assimétricas na
mecanismo predominante na aula é a interação professor-aluno, na sala de aula, porque estas relações são pouco produtivas; f) O poder/
qual o texto escrito serviu de locus discursivo, fazendo valerem os saber do professor não está limitado à imposição de conteúdos ou
diferentes pontos de vista. A intervenção dos alunos é orientada pela conhecimento científico como verdades universais inabaláveis. Na
professora cuja prática não se encontra nivelada pela objetividade e perspectiva do poder, as relações discursivas de sala de aula não se
neutralidade, mas que intervêm, coordena, estimula, levando em sustentam apenas em mecanismos de repressão. Elas também estão
consideração o dizer de cada um. centradas na reversibilidade de posições, para deslocar o modo de
As estratégias incitativas são retomadas pela professora, não produção textual institucionalizado.
apenas como uma prática discursiva institucionalizada, mas também
como um modo de intervenção que possibilita uma forma de interação Referências bibliográficas
que vai abrindo espaço, a fim de que confrontos plurais se estabeleçam
na sala de aula, expressando as mais diversas posições do aluno e da AQUINO, Mirian de Albuquerque. Prática Discursiva e Construção
professora. do Sentido em Sala de Aula.1998. Tese (Doutorado em Educação)
Esta análise permitiu-nos refletir sobre algumas questões: – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 1998.
A voz do professor ainda é predominante na sala de aula. No CORACINI, Maria José F. (Org.) In: O jogo discursivo na sala de
entanto, essa prática discursiva não se impõe continuamente, porque aula. Campinas, SP: Pontes, 1995. 141 ps.
as relações de poder são relacionais e circulares; Na fala da professora DEMO, Pedro. ABC- iniciação à competência reconstrutiva do
Violeta, é possível capturar uma postura modalizada e, este poder, professor básico. Campinas: Papirus, 1995.
com o qual a professora joga na interação pode ser interpretado como FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro:Graal,
positividade na interação; b) A prática discursiva concebida como 1995.
uma prática social envolve um sujeito (professor) que, em determinadas FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1991.
condições (sociais, políticas, históricas, lingüísticas, afetivas), mobiliza FURLANI, Lúcia M. Teixeira. Autoridade do professor: meta, mito
estratégias com vistas a estabelecer relações sociais, manter a interação ou nada disso? São Paulo: Cortez, 1995. (Coleção questões da
verbal e construir texto (conhecimento). A prática discursiva crítica é nossa época), v. 39.
a própria competência-interativo-discursiva, ou seja, o domínio do GOMES, Helena Maria da Silva. Estratégias Interativas usadas por
conjunto de conhecimentos e saberes que o professor possui e exercita estudantes de PE na interação verbal NN XN: um instrumento
em sua prática de sala de aula; c)O discurso de aula traduz as regras de de análise. Trabalhos de Lingüística Aplicada. Campinas:
uma determinada formação discursiva que orienta o pensamento e a Unicamp, n. 23, 1994, p. 37-53.
ação do sujeito. Mas este discurso também apresenta sua face positiva, GORE, Jennifer. M. Gore. Foucault e a educação: fascinantes desafios.
entrecruzando-se com diversas formações discursivas e diferentes In: SILVA, Tomaz Tadeu da. O sujeito da educação. Petrópolis:
práticas, a partir das quais o sujeito (professor) pode reelaborar o Vozes, 1994.
saber e produzir seu próprio discurso, levando o aluno a construir PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso. Campinas:
novos sentidos na produção textual; d) As estratégias da professora Educamp, 1979.
Violeta estão situadas no domínio do poder/saber (conhecimento PENIN, Sonia Teresinha de Sousa. A professora e a construção do
teórico-metodológico) ou competência discursiva que permite uma conhecimento sobre o ensino. Cadernos de Pesquisa, n. 92. 1994,
compreensão alternativa de diferentes momentos interacionais que p. 5-15.
possibilitem a construção do sentido. O poder é luta, confronto, relação PIGNATELLI, Frank. Que posso fazer? Foucault e a questão da
de força e situação estratégica. Ele não é prisioneiro de poucos liberdade e da agência docente. In: SILVA, Tomaz Tadeu da
privilegiados, mas é algo que se exerce e pratica numa rede de relações (Org.).O sujeito da educação. Petrópolis: Vozes, 1994.
das quais ninguém pode escapar; e) A instauração de uma prática WILLIS, Paul. Aprendendo a ser trabalhador. Porto Alegre: Artes
discursiva crítica envolve a interação professor-aluno como uma opção Médicas, 1991.
que não passa somente pela competência discursiva do professor,

640 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


O movimento carismático: uma leitura
semiótica do discurso do Padre Marcelo Rossi
Ana Lúcia de Sena Cavalcante
Universidade Federal da Paraíba

ABSTRACT: This communication analyses the religious speech, more specificy the history of Carismático Movement and the priest Marcelo Rossi‘s speech.
We will support in the Semiotic and the Analysis of Speech, with the fin to recover the relation text and reality suice the speech and ideology constitute
meanings, resulting in a determined vision of world.
PALAVRAS-CHAVE: Discurso – Sentido – Tematização - Figurativização

Introdução de riqueza ou causa de rivalidades perigosas. É preciso ser muito


consciente desse fenômeno, a fim de buscar e encontrar os atalhos
Nosso objetivo, no presente trabalho, é detectar o funciona- adequados para caminhar na unidade e na diversidade, seguindo as
mento do discurso religioso que ocupa um largo espaço e se faz pre- inspirações do Espírito.
sente em toda a sociedade. Analisamos também a história do Movi- O título Renovação Pentecostal Católica é de grande significa-
mento Carismático segundo sociólogos, teólogos, cardeais e finalmen- ção pois responde aos desejos profundos daqueles que estiveram nas
te o discurso do Padre Marcelo Rossi. origens da própria Renovação Carismática. Ela surgiu da expectativa
Em seguida, serão examinados os princípios fundamentais da de um Pentecostes atual. Por isso, a Renovação pode ser definida em
teoria Semiótica com seus objetivos, enfocando primordialmente a forma sintética como “Um Pentecostes hoje”.
Semântica Discursiva: Tematização e Figurativização que são dois Segundo o pensamento de S.S. Paulo VI, “a grande necessida-
níveis de concretização do sentido. de da Igreja de hoje é o Espírito Santo; a Igreja necessita de seu
Far-se-á necessário apresentar os valores do comportamento Pentecostes perene”(Alday, 1996:30). O papa João Paulo II expres-
humano através de estereótipos veiculados pela linguagem do discur- sou recentemente o mesmo desejo e o mesmo anelo: a necessidade de
so religioso representado no processo de evangelização do Pe. Marce- “um novo Pentecostes” para o mundo, nos umbrais do século XXI.
lo. Neste processo, o Pe. Marcelo utiliza nas megamissas o crucifixo, Segundo Alday é preciso entender, no discurso religioso que:
o terço, o balde d‘água, os santinhos, procurando através desses sím-
bolos persuadire, desta forma, atrair mais e mais fiéis ao Catolicismo. A Renovação promove especialmente a participação na
E, finalmente tenciona-se verificar quais os procedimentos missa da Igreja, proclamando o evangelho com pala-
discursivos que se empregam para criar ilusões de enunciação e de vras e obras, e dando testemunho de Jesus Cristo medi-
realidade e, a partir daí, efeitos de verdade do discurso, buscando a ante a vida pessoal e aquelas obras de fé e justiça às
Semiótica Greimasiana e também a Análise do Discurso, com a finali- quais cada um foi chamado.
dade de recuperar a relação texto-contexto visto que as formações E, finalmente, a Renovação Carismática abre todas as
discursivas / formações ideológicas são constitutivas do sentido, re- suas possibilidades ao convite que o Papa João Paulo II
sultando assim, numa dada visão de mundo. fez à Igreja para uma “Evangelização nova: nova em
Considerando a Renovação Carismática Católica como um pro- seu ardor, em seus métodos, em sua expressão. (9-3 /
cesso de evangelização, buscamos a definição que Alday (1996: 17) 1985 – Conferência Santo Domingo)
que a define como:
Um movimento mundial, mas não uniforme, nem unificado. É Para o Papa, é necessária, portanto, uma evangelização,
uma reunião muito diversificada de indivíduos, grupos e atividades, culturalizante às realidades do mundo moderno. Uma evangelização
com freqüência totalmente independentes uns dos outros em diferen- atual que responda à psicologia do homem de hoje. Uma evangelização
tes graus e modos de desenvolvimento e com diversas ênfases; e que atraia, que entusiasme, pela qual valha a pena dar a vida. Uma
contudo participam da mesma experiência fundamental e perseguem evangelização que, por um lado, ilumine evangelho das culturas e
os objetivos gerais. que, por outro, seja capaz de culturalizar o evangelho, encarnando-o
nessas culturas, isto é: uma evangelização que tome todos aqueles
A Renovação nasceu sob o impulso soberano do Espírito Santo, elementos culturais que sirvam para expor os valores do evangelho:
que lhe deu vida. Não tendo nem fundador, nem fundadores, a Renova- elementos das tradições étnicas, da religiosidade popular, da arte na-
ção no Espírito não é regida por determinados estatutos únicos, de valor tiva, da música local, dos meios modernos de comunicação social
comum e universal. Os grupos de Renovação nascem na Igreja e da como enfatizaremos no corpus em análise, a evangelização do Pe.
Igreja, e brotam por todas as partes com tal espontaneidade que acu- Marcelo Rossi.
sam, aos olhos de uma fé iluminada, uma surpreendente admiração, que Para analisar o tema da evangelização na figura do Pe. Marce-
às vezes chega a certo desconcerto. Isto explica a existência de uma lo Rossi, buscamos os subsídios teóricos da Semiótica Greimasiana
múltipla diversidade de indivíduos e de grupos, com muita freqüência que investiga os sistemas de signos porque reconhece que o mundo é
independente uns dos outros. Como conseqüência normal, seu cresci- semiotizado pelos signos e estes permitem representar o mundo e
mento e desenvolvimento não é homogêneo, nem pode sê-lo. Nos dife- construir sentidos. Seu objetivo não se reduz apenas à descrição do
rentes grupos pode-se facilmente detectar diversos tons e característi- processo comunicativo: transmissão de mensagens entre emissor e
cas, o mesmo que inclinações a variadas atividades. receptor, mas limita-se a explorar o sentido. Significa dizer, que além
Esta grande diversidade se dá em todos os níveis: internacional, da preocupação em estudar o processo de comunicação (a relação eu /
nacional e diocesano. Daqui se depreende uma interessante complexi- tu) ela procura dar conta da significação. A Semiótica procura “preci-
dade nos grupos de Renovação, que pode ser, ao mesmo tempo, fonte sar o ou os níveis de análise em que pretender situar-se”. Para estudar

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 641


o sentido, analisa a significação através de níveis diferentes que são ço, o balde d´água benta, os camelôs, as imagens de Maria (aparecen-
definidos pelo conjunto de traços distintos extraídos dos enunciados do nas mais variadas formas: camisetas, estátuas, santinhos, carta-
básicos. É estudando os patamares em que o sentido foi construído zes, etc.) e os adesivos para carros com a seguinte frase: “Eu sou
que a semiótica encontra o percurso gerativo de sentido, isto através feliz por ser católico”.
do modelo proposto por Greimas, cuja análise procura verificar como É no nível das estruturas discursivas que a enunciação mais se
se relacionam as macro-estruturas e como se organizam para saber o revela, nas projeções da sintaxe do discurso, nos procedimentos de
que o texto diz e como faz para dizer o que diz. Essa investigação argumentação e na escolha dos temas e figuras, sustentadas por for-
torna-se possível através dos níveis ou camadas que constituem este mações ideológicas. (Barros, 1990). È, portanto, através de procedi-
percurso. mentos discursivos que:
À Semântica discursiva cabe examinar a disseminação dos te-
mas no discurso, sob a forma de percursos, e o investimento figura- Pe. Marcelo considera pecado o homossexualismo, con-
tivo dos percursos. dena o aborto em qualquer circunstância e os métodos
Tematizar um discurso é formular os valores de modo abstrato contraceptivos. Também acha que as mulheres não de-
e organizá-los em percursos. É possível, a partir de um mesmo valor, vem ser ordenadas, horroriza-se com o sexo fora do
obter-se mais de um percurso temático. O objeto-valor do poder / casamento e é um defensor intransigente do celibato. Ele
fazer e do poder / ser da dominação ocorre no discurso do Pe. Marce- respeita a liturgia, mas acha que as missas precisam de
lo sob a forma de discurso sócio-histórico-ideológico. um sopro de vida nova. (Veja, 1998: 120)
A tematização assegura a conversão da Semântica narrativa
em Semântica discursiva e poder-se-ia, então, pensar em discursos Tomando por base o discurso da Veja sobre Pe. Marcelo detec-
puramente temáticos ou não-figurativos, como por exemplo os dis- tamos que, mesmo pregando uma nova evangelização, a posição do
cursos científicos. O exercício da análise textual tem mostrado, po- padre tem base fundamentalista com roupagem moderna, o que signi-
rém, que não há discursos não-figurativos e sim discursos de figura- fica dizer que ele assume o papel de um novo evangelizador quando,
ção esparsa, em que assumem relevância as leituras temáticas. na verdade, ele está inserido numa posição social institucionalizada
A figurativização, a qual constitui um novo investimento se- pela Igreja Católica. Não se pode esquecer, porém, que a ideologia
mântico pela instalação de figuras do conteúdo que acrescentam dominante é tão abrangente que torna as demais organizações do sa-
“recobrindo-o”, ao nível abstrato dos temas. O sujeito da enunciação ber, no caso a Igreja (aparelho ideológico de Estado) fragmentárias e
emprega certos procedimentos para figurativizar o discurso, para in- muitas vezes contraditórias, pois incorporam elementos de represen-
vestir os temas discursivos. tação dominante. Vemos que os discursos empregados por Pe. Marce-
lo, tal como se apresenta na mídia e na suas megamissas, é uma prática
O Padre Marcelo encontra-se inserido na prática discursiva da
social determinada por uma formação ideológica a qual ele faz parte e,
Igreja – fazendo o processo de evangelização ou melhor de renova-
ao mesmo tempo, lugar de elaboração e de difusão da ideologia, por-
ção da Igreja Católica como também de revelação pela palavra divi-
que ele ocupa um lugar social enquanto padre que responde por um
na com a intenção de abarganhar mais e mais fiéis.
discurso sócio-histórico-ideológico.
Analisamos discursos retirados da revista Veja que falam so-
Nos discursos extraídos da Revista Veja (novembro 1998) e
bre o Pe. Marcelo Rossi no processo de Renovação Carismática.
em alguns discursos gravados no programa do Pe. Marcelo na Rede
A Tematização é a formulação abstrata dos valores, na instân-
Vida, ressaltamos o que diz:
cia discursiva, e sua disseminação em percursos. Nos discursos
temáticos, os actantes recebem o investimento semântico mínimo, O Padre Marcelo hipnotiza as multidões, por isso é
necessário para se tornarem atores. O Pe. Marcelo figurativizado como um protótipo dos sacerdotes que a Igreja espera for-
“Uma estrela no Altar” e também como “O maior fenômeno do Ca- mar para o próximo milênio.
tolicismo brasileiro”, mostra que como enunciador do evangelho uti-
liza as figuras do discurso religioso para fazer crer, ou seja, para Segundo o cardeal Suenens (Repouso no Espírito, 1991) os
fazer o enunciatário reconhecer “imagens do mundo” e, a partir daí, fenômenos psíquicos extraordinários sempre existiram. Por muito tem-
a verdade do seu discurso. O enunciatário por sua vez, crê verdadei- po foram considerados sobrenaturais ou, às vezes, até diabólicos; só
ramente ou não, graças ao reconhecimento de figuras do mundo na- pouco a pouco foram compreendidos como naturais. Para Mesmer
tural reconhecidas pelo discurso institucionalizado pela Igreja. Há (médico alemão, 1734-1815) e de seus continuadores que se começa a
no texto um processo de simbolização e estabelece-se para a figura reconhecer a radioatividade fisiológica: o mesmerismo contribui para
do Pe. Marcelo uma determinada interpretação temática. O padre o desenvolvimento cada vez maior das energias psicomagnéticas la-
apresenta-se como um símbolo que figurativiza o tema da tentes em cada indivíduo. Diz a ciência atual que o cérebro humano
evangelização. O povo de olhos vendados clamando por dias melho- pôs em exercício até hoje, apenas uma fração de suas capacidades.
res vê na figura do Pe. Marcelo um Deus estereotipado num homem Ela fala do hipnotismo sensorial, sugestão, ação telepsíquica,
que prega a palavra do Senhor, prometendo a salvação. O símbolo é ondulação magnética terapêutica ou experimental, visibilidade dos
um elemento concreto a veicular um conteúdo abstrato. eflúvios humanos, estado cataléptico, letárgico, sonambúlico.
No texto acima, a isotopia temática da evangelização decorre Para o médico alemão, em psicologia, é conveniente examinar
da repetição de unidades semânticas abstratas em um mesmo percur- tudo, que nesse fenômeno, é causado pela sugestão, auto-sugestão,
so temático. Há, dessa forma, uma isotopia temática da água benta hipnose, psicologia das multidões, ação do inconsciente, experiências
jogada nos fiéis durante as celebrações do Pe. Marcelo, resultante da psicofísicas. O padre Maloney, estudioso da hipnose ou auto-hipno-
purificação do pecado, tornando-as pessoas mais novas, divinizadas se escreve:
e menos humanizadas, ao mesmo tempo que as liberta do “mal”, Fui hipnotizado e hipnotizei muitas pessoas. Na hipnose
provocando nelas, terrenos férteis propensos a receber os valores podemos ter uma surpreendente sensação de paz, como
ideológicos cultuados na Igreja Católica Ocidental. se deixássemos o corpo e flutuássemos em direção ao
A isotopia figurativa caracteriza-se pela redundância de tra- céu. Uma pessoa religiosa pode interpretar isso em
ços figurativos, pela associação de figuras aparentadas. Nos comen- função de Deus, mas o resultado provém de um méto-
tários a respeito da atuação de Pe. Marcelo, constroem-se nos dis- do natural, de uma técnica que não deve ser confundi-
cursos diversos, isotopias figurativas, entre elas, o crucifixo, o ter- da com a oração.

642 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Referências bibliográficas
No discurso em análise, percebemos o desconhecimento das
ALDAY, S.C. Renovação Carismática: Um Pentecostes hoje. São
pessoas em relação aos fenômenos relatados acima pelo médico ale- Paulo: Ed. Paulus, 1996.
mão, portanto através da oração Pe. Marcelo arrasta multidões e leva _____________________. A Renovação Carismática e as comuni-
as pessoas a sentirem-se hipnotizadas com a palavra de Deus, através dades religiosas. São Paulo: Ed. Ave Maria, 1999.
da fé, da mídia, da música, da dança e de todos os meios disponíveis
BARROS, Diana L. P. Teoria do Discurso: Fundamentos Semióticos.
para celebrar as megamissas, usando estratégias discursivas capazes 1ª ed. São Paulo: Ed. Atual, 1988.
de produzir efeitos discursivos, convencer o ouvinte / leitor _____________________. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo:
(enunciatário) que há um Deus todo poderoso que tudo pode e que a Ed. Ática, 1990.
Ele devemos louvar e adorar. Este discurso está institucionalizado
FIGUEIREDO, I. de L. Fiando as tramas do texto: a produção de
pelo aparelho ideológico: Igreja e que o reveste figurativamente de sentidos no atelier de leitura e produção textual. Tese de
evangelizador. doutoramento. FCL, ENESP. Araraquara, 1998.

Conclusão FIORIN, J. L. Elementos de Análise do Discurso. São Paulo: Edusp,


1989.
Os mecanismos de discursivização utilizados pelo Pe. Marcelo ___________. Linguagem e Ideologia. São Paulo: Ática, 1988
Rossi não nascem nos aparelhos, surgem das classes sociais, de suas
condições de existência, de suas práticas, de suas lutas, e os aparelhos SUENENS, L. J. O Repouso no Espírito. São Paulo: Ed. Paulus,
1991.
constituem a forma pela qual a ideologia da classe dominante se reali-
VEGAS, J. M. O desafio da Nova Era. 1ª ed. São Paulo: Ed. Ave
za. O Padre Marcelo faz parte dessa classe dominante e responde por Maria, 1996.
uma prática discursiva que está na formação discursiva / formação REVISTA VEJA. CAPA – Pe. Marcelo Rossi - O fenômeno. São
ideológica da Igreja Católica. Paulo: Ed. Abril, 4 de Novembro de 1998.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 643


Personagens femininas nos contos de fadas:
ideologia e comportamento
Maria do Rosário Costa C. da Cunha
Universidade Federal da Paraíba

ABSTRACT: This work tries to develop a critisin reading about the behavious of the feminines characters in the fairy tales and to show the ideology that
intermingles the to unroll of characters actions. We will support in the theories of Analysis of Speech and Semiotic, whichs will furnish assistances for one
new reading of the childshs histories.
PALAVRAS-CHAVE: Ideologia – Comportamento – Discurso – Valores

Introdução estava lindíssima”, “o príncipe chegou ao local onde se encontrava a


princesa e, maravilhado com sua beleza, inclinou-se e beijou-a”, “a
O presente trabalho tem como objetivo desenvolver uma lei- doce princesinha abriu os olhos e sorriu docemente”.
tura crítica sobre os vários comportamentos apresentados pelas per-
sonagens femininas ao longo da narrativa dos contos de fadas, veri- d) É enfatizada a ambigüidade da natureza feminina. Desde as
ficando a relação da linguagem com o contexto sócio-histórico, de narrativas orientais, originais, a mulher é a causa do bem e do mal;
acordo com suas condições lingüístico-ideológicas de produção. tanto pode salvar o homem, com sua bondade e amor, como pô-lo a
Preocupados com a subsistência dessas formações ideológi- perder com seus ardis e traições. Ela tanto pode ser a Amada
cas, sentimos a necessidade de analisar as figuras femininas de A Divinizada, por quem o príncipe luta, como ser apenas o instrumento
Bela Adormecida, por ser um conto “clássico” que se mantém no da procriação desejada pelo homem.
seio da sociedade, e continua influenciando comportamentos através Ilustrando esses valores no conto, a mulher, representada pela
da fantasia, do sonho, da imaginação de um público-leitor infantil. heroína com sua bondade, salva o homem, no caso o príncipe, ao
Para o desenvolvimento desta análise, buscamos apoio nas te- corresponder ao beijo que a tira do estado de letargia, subordinado
orias da Análise do Discurso de linha francesa e da Semiótica ao encantamento. Torna-se sua esposa, a fim de dar-lhe filhos saudá-
Greimasiana, uma vez que os valores ideológicos das historinhas veis, os quais continuarão a linguagem real.
estão ligados a uma formação discursiva que veicula a realidade só- O casamento é freqüentemente utilizado nos contos de fadas
cio-histórica, à qual estão ligados. como um operador para uma transformação ao nível sócio-econômi-
Quanto aos valores ideológicos dos Contos de Fadas, Coelho co. Ele constitui o poder ascender à riqueza e à elevação social. Ele
(apud ALDRIGUE, 1998) afirma haver: tem a função de fim, o objeto visado, segundo Propp. Constitui a
chave da narrativa: é em função dele que tudo se organiza. As Marias
a) Predomínio dos valores humanistas, ou seja, preocupação e os Joãos só terão poder-ascensão à riqueza e à elevação social ao
fundamental com a sobrevivência ou as necessidades básicas do in- casarem com os príncipes e com as princesas. O casamento intervém
divíduo, tais como fome, sede, agasalho, descanso, estímulo à cari- como o fazer transformador.
dade, solidariedade, boa vontade, tolerância ...; Faremos uma análise interna do conto A BELA ADORMECI-
DA com a análise externa do contexto sócio-histórico no qual o texto
Esses valores estão expressos em alguns contos. Como por está inserido.
exemplo, A Bela Adormecida, objeto de nossa análise, quando são Na história, o casamento feliz do rei e da rainha, pais da prin-
atribuídas características à heroína em busca de aventuras e de re- cesa, única herdeira; união legítima, institucionalizada entre um ho-
pente presa a um encantamento: princesa, bela, saudável, caridosa, mem e uma mulher, apresenta-se na narrativa com determinados va-
solidária, meiga, filha única do rei, o qual preocupava-se essencial- lores: predomínio da nobreza no poder, felicidade, realização pesso-
mente com o bem-estar da herdeira. al, reforço do sistema patriarcal, entre outros.
A personagem principal toma a posição de heroína ao tornar-
b) A mediadora, por excelência, da possível ascensão do ho- se “vítima” de uma maldição, em que há a predominância do bem
mem, na escala social é sempre a mulher. Casando-se com a filha do contra o mal no momento do surgimento do príncipe que a salva.
rei ou do nobre abastado, o indivíduo pobre ou plebeu automatica- Tudo isso retrata valores incutidos na nossa vida, em relação à mu-
mente enobrece e se torna poderoso; lher na nossa sociedade como: a ilusão da espera do príncipe encan-
tado, reforçando o patriarcalismo e a determinação biológica do des-
Como ilustração para esse valor tomemos no conto os pais da tino da mulher: um casamento com fins lucrativos, apenas para a
princesa, o rei e a rainha, unidos solidamente num casamento procriação.
inviolável, com o intuito de fortalecer o poderio de um reino, o qual O sujeito-enunciador do discurso é manipulado por valores
continua mais firme com o nascimento da herdeira. ideológicos, cristalizados na sociedade, e deve reproduzi-los, acima
de tudo porque sua narração é ouvida; esses valores ideológicos es-
c) As qualidades exigidas à mulher são: beleza, modéstia, pu- tão desenvolvidos entre ele e o enunciatário, estão construídos atra-
reza, obediência, recato... e total submissão ao homem (pai, marido, vés do sujeito com o objeto de valor. Triunfando esses valores por-
irmão, etc); tanto, quem é a ordem social e a cultura se reafirma. Esse sujeito que
é histórico, social, ideológico, instaurador do discurso, assume as
Qualidades essas expressas na heroína: “linda menina”, “o tem- estruturas narrativas, convertendo-as em discursivas.
po foi passando e a princesa crescia, bela e saudável”, “A princesa Em A BELA ADORMECIDA, a mulher figurativiza-se em

644 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


posição de submissão sem ser dona da sua vida, dependendo da figu- Conclusão
ra masculina, vivendo em total indolência sob a sombra do homem O que podemos, portanto, concluir dessa rápida análise é que
como se ele fosse o seu salvador pois, sozinha, é incapaz de enfren- o discurso concernente aos contos de fadas reflete uma ideologia que
tar o mundo, tornando-se cidadã de segunda classe. O tema da histó- se instala na sociedade. O tradicionalismo formulou um discurso re-
ria portanto, está ligado à “fragilidade” da mulher; aquela que sem- ferente à mulher, impondo modelos de conduta feminina baseados na
pre dependerá do sexo oposto para se auto-afirmar. mentalidade patriarcal, formada ao longo da História: a mulher boni-
A heroína enquadra-se perfeitamente nas normas da moralidade ta, frágil, pura, educada.
Modelos esses impostos por uma ideologia dominante às mu-
feminina impostas às jovens pela igreja: ser pura, dócil, bonita, reca- lheres do passado e às atuais, independente de suas condições sociais.
tada, submissa, bondosa. Tais valores estão ancorados na posição da
VIRGEM MARIA na história da salvação, mulher pura, mãe com- Referências bibliográficas
passiva e universal, a mãe de Jesus e o ideal perfeito da mulher. Idéi-
as produzidas pela classe dominante que não exprimem a verdadeira ALTHUSSER, L. Aparelhos Ideológicos de Estado. 2 ed. Rio de Ja-
realidade e usam as instituições sociais para sua implantação. neiro: Edições Graal, 1985.
BARROS, D.L.P. de. Teoria Semiótica do Texto. São Paulo: Ática,
1990.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 645


Os vários discursos no texto jornalístico
Edjane Gomes de Assis
Universidade Federal da Paraíba - UFPB

ABSTRACT: In the journalistic texts there are several discourses. Actually they make reproductions of dominant ideologies. This we just can discovery with
the French Discourse Analyses. We aim at helping the readers to detect these discourses at “Veja” and “Isto é” magazines.
PALAVRAS-CHAVE: jornalismo, discursos, sentidos

Como professores de língua portuguesa, sabemos da grande E o texto jornalístico reconhece o poder da palavra, usando-a
necessidade em se estudar na sala de aula textos dos mais diversos conforme os objetivos que pretende alcançar. Resta-nos saber: Há na
gêneros, música, poesia, propagandas, jornal, revistas, etc. Sairmos verdade uma neutralidade dos fatos?
do conteúdo puramente lingüístico para percorrer outros caminhos, Para responder a esta questão basta recorrermos à memória.
romper limites e desvendar o texto. Em muitos jornais e telejornais é comum vermos manchetes como:
O mundo está cada vez mais dinâmico e o ser humano não Greve de professores atrapalha o calendário escolar, ou ainda na
pode ficar alheio aos acontecimentos, por esse motivo há uma grande capa da revista Veja de 10 de maio de 2000: A Tática da baderna –
necessidade em se estudar textos jornalísticos na sala de aula, pois os O MST usa o pretexto da reforma agrária para pegar a revolução
meios de comunicação têm a importante tarefa de manter o indivíduo socialista; O pneu já matou 62 pessoas; O feijão é o vilão da infla-
bem informado e estar em sintonia com a realidade que o cerca. Op- ção. Nestas manchetes, oculta-se na verdade, os responsáveis pelos
tamos trabalhar com duas reportagens: O PT cor de rosa da revista fatos e transfere-se a culpa para outrem, sem chegar a fundo no mo-
Veja e o PT de resultados da revista Isto é. As revistas foram escolhi- tivo, a relevância está na conseqüência e não na causa, são telejornais,
das por serem distribuídas semanalmente, por abrangerem todas as revistas e jornais que respondem a partir de uma formação discursiva,
áreas como: esporte, lazer, saúde, educação e cultura e ainda por se- está de acordo com os interesses do governo, mas que percebemos
rem de grande representatividade no seio da sociedade brasileira, no interdiscurso, no não-dito. Quem não se lembra, por exemplo, da
considerando que os textos dessas revistas reúnem tantas informa-
campanha presidencial disputada entre Lula e Fernando Collor? As
ções para a vida social do indivíduo quanto outras espécies de leitura
reportagens da rede Globo em que Fernando Collor aparecia, dura-
como jornais, livros etc. O que nos interessa é seguintes questões: De
vam bem mais tempo do que as reportagens de Lula. E mesmo de-
que forma as notícias e os assuntos são abordados nas reportagens?
pois de eleito, era comum assistirmos ao “estressante” dia de Fernando
Que outros discursos podemos encontrar? Há portanto, uma neutrali-
Collor em seus passeios de Jet esqui, helicóptero, lanchas e outras
dade dos fatos ou uma reprodução da ideologia da classe dominante?
As respostas para esses questionamentos, nós encontramos nos novidades em meios de transportes. A emissora SBT (Sistema Brasi-
pressupostos da Análise do discurso de linha francesa, que considera leiro de Telecomunicações) ainda mostra nos intervalos o quadro O
o sujeito, seja ele autor ou leitor, como pertencente a uma instituição dia do presidente e os encontros do empresário Silvio Santos com
social e a uma história, ao utilizar o discurso, faz na verdade uma Fernando Henrique, o que deixa claro que a emissora está em co-
reprodução de outros discursos, preexistentes em sua memória. Ba- mum acordo com as atitudes do presidente da república.
seando-se no dialogismo e na teoria do inconsciente de Freud, Authier- À neutralidade dos fatos está diretamente ligada a uma outra
Revuz elabora a teoria da heterogeneidade discursiva onde o discur- característica – a objetividade da notícia. O texto jornalístico prima
so, não é mais homogêneo, mas formado por uma diversidade de pela linguagem objetiva dando prioridade aos verbos no futuro do
outros discursos que se entrelaçam no discurso do sujeito. O discur- pretérito do indicativo, por exemplo, para apresentar um
so do outro pode apresentar-se com marcas explícitas (heterogeneidade distanciamento diante do que está sendo relatado. Dessa forma, po-
mostrada) presentes no discurso relatado. É o caso do discurso direto demos perceber como é difícil para o repórter ser objetivo e até
e indireto, aspas, formas de retoques e glosas. E pode apresentar-se mesmo imparcial diante dos fatos, pois antes de tudo ele é cidadão,
também de forma não-explícita, (heterogeneidade constitutiva) pre- eleitor e tem também compromissos acima de tudo com o leitor,
sente no interdiscurso, como por exemplo: o discurso indireto livre, ouvinte ou telespectador. Não devemos esquecer que muitas vezes
ironia, antífrase, alusão, imitação. Essa heterogeneidade discursiva é o jornalista trabalha para uma revista, jornal ou emissora que res-
o que vamos encontrar nas reportagens a seguir. Como falamos em ponde por um aparelho dentro da sociedade, assume um discurso
reportagem, veremos inicialmente como se manifesta a linguagem que pode estar em concordância ou em oposição aos interesses do
jornalística e que elementos são relevantes para a nossa análise. governo. Basta lembrar as dificuldades sofridas pela imprensa na
Primeiramente devemos atentar para o caráter intencional que época da ditadura. Hoje, em qualquer redação de jornal impresso,
se esconde em cada texto, pois seja ele humorístico, religioso, peda- televisivo e em outros veículos de comunicação de massa, a maté-
gógico, político, publicitário entre outros, há uma forma particular ria depois de acabada tem ainda que passar pela revisão de um re-
de apresentar o discurso, a própria escolha das palavras busca persu- dator chefe. Este pode acrescentar ou até mesmo cortar alguns pon-
adir o leitor, influenciando no seu comportamento, mesmo que se tos da reportagem que não estão em concordância com a posição
forma inconsciente. No texto jornalístico isso não é diferente. Como do jornal, revista ou emissora.
afirma o jornalista Erbolato: Primeiramente, vamos observar como a revista Veja se com-
porta diante do sucesso do PT nas eleições de 2000 e a que ela atribui
Os meios de comunicação de massa se destinam, funda- esse sucesso. A partir do título da reportagem COM VOCÊS, O PT
mentalmente, a informar, a influir (ou persuadir) e a diver- COR-DE-ROSA – Com discurso social-democrata, o PT agiganta-
tir. O fato é levado ao conhecimento do receptor, mostran- se nas urnas e entra no clube dos grandes, já observamos que a
do-o em diversos aspectos ou enfoques e há ainda a preo- revista apresenta o tema como se fosse um espetáculo, com a inten-
cupação de motivar o leitor, (ou ouvinte) a seguir uma re-
ção de preparar o leitor para uma grande novidade. O PT apresenta-
comendação, a comprar um produto ou a aceitar um movi-
se com uma nova cara, um novo discurso e uma nova tonalidade. É
mento, campanha ou doutrina. (Erbolato, 1991:30)
interessante observar o jogo de cores utilizado pelas duas revistas,

646 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


mais evidente na revista Veja, pois o próprio nome da revista na capa das duas revistas, alguns estão bem explícitos no texto, outros estão
está em cor-de-rosa. Há num primeiro momento uma forte carga ideoló- no interdiscurso, que podemos encontrar recuperando o contexto. O
gica em que o rosa representa a figura feminina, aqui projetada na primeiro discurso que aparece nas reportagens é o discurso político.
candidata Marta Suplicy, depois vemos que a mudança da cor está Desde a retórica que estudava a força persuasiva do discurso, a for-
no discurso mais suave do PT. Segundo a Veja ao mudar o discurso, ma de melhor argumentar, havia uma preocupação em utilizar a lin-
o PT recebe também outros apelidos como: “PT rosa”, “PT chanel”, guagem para fins políticos. No discurso político, como em outros
“PT burguês” e que tais apelidos não constrangem o partido de for- discursos, há todo um jogo de palavras, encenações que buscam di-
ma alguma já que ele se considera mesmo rosa, chanel e burguês. fundir e defender a ideologia do partido. É o que predomina nas re-
(...) Ao transformar-se em um PT cor-de-rosa, o partido distanciou- portagens. Por se tratar de uma campanha eleitoral, essas caracterís-
se da retórica vermelha e empunhou a bandeira da ética, da moralidade ticas são mais evidentes. Como diz o prefeito (do PT) Luiz Fernando
pública. (...) os petistas de agora dizem que não são xiitas, não estão Mainardi da cidade de Bagé : “Nunca alimentei posição raivosa (...).
interessados em fazer a revolução ou promover disputas de ideologi- Partimos para uma disputa propositiva, para mostrar que podemos
as políticas. Em vez disso, querem dialogar, governar, tratar proble- dialogar com toda a sociedade. Utilizar as palavras certas, o que o
mas reais das comunidades. (...) Ficaram para trás na história deste povo quer ouvir e saber dialogar são requisitos fundamentais para
PT o levante revolucionário, a adoção do socialismo, a ditadura do ganhar a confiança dos eleitores. Um outro discurso encontrado nas
proletariado. Nos últimos dez anos, com clareza crescentemente reportagens é o discurso das histórias infantis este tipo de texto
desinibida, o PT vem adotando a prática que causava tremores de surgiram a partir das lendas e tradições folclóricas de todos os povos.
ojeriza no bolchevique Lênin do início do século XX: a gerência Com isso foi se diversificando e absorvendo as mitologias e costu-
reformista do capitalismo. Sai das urnas portanto um PT social-de- mes de cada povo, fatores que contribuíram para a caracterização das
mocrata. Com isso, aproxima-se do eleitorado de classe média, que personagens. De acordo com a professora Ilíada de Castro que de-
se assusta com os barbudos fazendo pronunciamentos incendiários. fendeu uma tese cobre Contos de Fadas, na Universidade de São
Barbudos aqui como uma referência aos políticos que assumiam a Paulo (USP), no mundo dos contos de fadas, o bem e o mal são
mesma linha do discurso de Lula e agora tomam um outro discurso extremos. Não existe meio termo. Quem é mau é a própria personifi-
no PT cor-de-rosa. cação do mau; enquanto o bom é sempre muito puro, bondoso.
A revista Isto é vem com a seguinte manchete: PT DE Este jogo entre o bem e o mau é retomada na revista Isto é:
RESULTADOS - Partido de Marta Suplicy sai das urnas for- ...Há 11 anos, o barbudo Luiz Inácio Lula da Silva foi preterido no
talecido e com um novo perfil, onde a eficiência e o embate eleitoral que travou com Fernando Collor de Melo, entre
pragmatismo tomam o lugar da ideologia. outras razões, porque assustava, e muito. (...) O eleitor brasileiro
No título da reportagem, a revista deixa evidente o pressupos- descobriu finalmente que político de esquerda não come criancinha
to de que as ideologias e os discursos do partido antes não surtiam e que a competência no governo, e não a ideologia, vale ouro. (...) o
efeito, não obtinha resultados. No decorrer da matéria e já na chama- antigo espantalho apareceu agora ao público com um sorriso sim-
da da reportagem, a revista atribui o sucesso do PT ao novo perfil do pático e doce no rosto.
partido que resultou numa eficiência e pragmatismo, e ainda pela O discurso do PT e principalmente à figura de Lula que era
unificação do discurso de todos os candidatos, como também às ali- tido como o “lobo mau”, “o malfeitor” ou “aquele que come
anças com as legendas de centro para ampliar o leque de apoio e a criancinhas”, a personificação do mal, aparece agora com um sorriso
escolha de candidatos com perfis “lights” com discurso mais ameno. doce conforme os mocinhos, às fadas e príncipes das lendas e dos
Como vemos neste trecho da reportagem: Ao analisar o resultado contos infantis. Além do discurso das histórias infantis, detectamos
das eleições, o presidente nacional do PT, José Dirceu, lembrou que também um outro tipo de discurso– o discurso religioso.
há cinco anos o seu partido vem semeando a poítica das alianças Já falamos no início deste trabalho, que há um caráter intenci-
com as legendas de centro par ampliar o leque de apoio e colher o onal em qualquer texto, como por exemplo, no texto religioso que
fruto nas urnas. Outro segredo do sucesso foi a escolha de candida- durante muito tempo como ainda hoje, é utilizado como forma de
tos com perfis “lights”, com Marcelo Deda, eleito no primeiro turno persuadir e difundir uma doutrina. Basta lembrar os argumentos dos
prefeito de Aracaju, e Tarso Genro, em Porto Alegre, que é favorito, portugueses para ocupar nossas terras – a catequização dos índios,
mas disputa agora com o pedetista Alceu Collares. tudo em nome de Deus e ainda o crescimento de inúmeras seitas não
A revista Veja atribui o sucesso do PT, ao discurso social- só no Brasil, como no mundo. Observando o seguinte trecho da Isto
democrata, a Isto é atribui à mudança do discurso eficiente e prag- é temos: Os que ontem viam no PT a encarnação do demônio verme-
mático. As duas revistas concordam que o PT mudou e com esta lho, hoje não enxergam mais a sombra de Lênin atrás da legenda...
mudança ele conseguiu obter resultados surpreendentes nas eleições Novamente observamos a carga ideológica das cores do partido. O
para prefeitos e vereadores de 2000. Com palavras diferentes as re- vermelho está ligado ao fogo que representa a figura do demônio, o
vistas se posicionaram de maneira semelhante. mal, o discurso agressivo do partido no passado.
Mas o que não podemos deixar de notar é o jogo de cores Vemos também marcas do discurso religioso na Veja ao se re-
tratado pelas duas revistas, mais evidente ainda na Veja, como já ferir à reeleição de FHC: As denúncias de que a emenda da reeleição
falamos antes. Vimos que na Veja o vermelho se transformou em foi aprovada no Congresso deixando um cheiro de enxofre fizeram
cor-de-rosa, um discurso ameno, representando a figura feminina. com que se transformasse em ponto ideológico. O termo cheiro de
Na Isto é o vermelho que lembra a cor do sangue, da papoula e do enxofre está diretamente ligada ao inferno e a figura do diabo. Como
rubi e representado no partido como a cor do socialismo de Lênin e na seguinte passagem bíblica:...O diabo foi lançado para dentro do
seu poder incendiário, agora aparece com uma tonalidade suave, des- lago do fogo de enxofre, onde também se encontram não só a besta
botado: Os que ontem viam no PT a encarnação do demônio verme- como o falso profeta. (Ap.20:10 a). O cheiro de enxofre neste trecho
lho, hoje não enxergam mais a sombra de Lênin atrás da legenda. indica que há alguma coisa de mal, ou coisas que “não cheiram bem”,
(...) o eleitor se deparou nessas eleições com o PT ainda vermelho, que não foram bem explicadas sobre a aprovação da reeleição de
porém desbotado. A cor vermelha que sempre, no partido, teve uma Fernando Henrique.
grande carga ideológica, foi muito bem figurativizado nas duas re- Vemos também nas reportagens a presença do discurso ecoló-
vistas para comparar o discurso do passado e de agora. gico que tem como tema a preservação da natureza, a defesa dos
Veremos outros discursos que estão presentes nas reportagens animais em extinção e discussões sobre questões ambientais, o dis-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 647


curso ecológico é retomado na revista com um outro posicionamento. lista utilizou o discurso de alguém que está diretamente ligado ao
Na lei da natureza, para garantir a sobrevivência, há todo um jogo de partido, para mostrar as alianças que o PT firmou para conseguir
interesses, uma forma de atrair o outro, como por exemplo, na cadeia bons resultados nas eleições.
alimentar, onde sobrevive o mais forte. É o que encontramos na De um modo geral, as duas revistas tiveram posicionamentos
Veja, sobretudo nos argumentos de Maluf sobre o apoio dos tucanos semelhantes. Ambas atribuíram o crescimento do PT a uma mudança
à candidata Marta Suplicy: “Duvido que os racionais tucanos quei- ideológica. A revista Veja se manteve de forma mais aberta ao tratar
ram criar uma cobra dentro de casa”. Neste trecho Maluf já deixa o vermelho do partido com um cor-de-rosa, já a Isto é para se dife-
claro que se os tucanos apoiarem o PT é porque eles não pensam, são renciar de sua concorrente ou por uma certa cautela em relação à
fáceis de serem manipulados. E continua:...Quando chegar a hora da notícia, utilizou o vermelho desbotado. Apesar de tratar do sucesso
eleição presidencial, o gatinho cor-de-rosa que o governador Mário do PT nas urnas, analisando o interdiscurso, vemos que as duas re-
Covas acaricia agora, mostrará as garras de leopardo para depenar vistas conservam sua essência, estão em concordância com o gover-
os tucanos. Primeiramente ele compara a candidata adversária com no, pois ambas citam os empresários e a elite do país, e como foi
uma cobra (animal traiçoeiro), depois com um gatinho cor-de-rosa e mostrado nas reportagens, o PT só obteve sucesso porque PT negou
enfim com um leopardo que pode atacar os tucanos (os políticos do todo o seu passado, ou seja ganhou porque está parecido com a direi-
PSDB). Maluf utiliza um discurso figurativizado, que cria um efeito ta com a ideologia da classe dominante, com isso mostra que está em
de sentido. Compara as atitudes do animal, os artifícios que o animal concordância com as idéias do governo.
utiliza para atrair a presa, às atitudes do homem, ou seja, as “artima-
nhas” do PT para conseguir apoio no segundo turno das eleições e que Referências bibliográficas
depois será um partido que procurará efetivar o socialismo.
Na reportagem aparece ainda o fenômeno das aspas na Veja AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Heterogeneidade(s) discursiva(s).
que utilizou os outros apelidos que o partido recebeu ao mudar o seu trad. Celane M. Cruz e João Wanderley Geraldi. In: Cadernos de
discurso“PT rosa”, “PT chanel”, “PT burguês”. E na Isto é entre ou- Estudos Lingüísticos. 19 Jul./Dez., 1990, p.25-42.
tras palavras temos “light”. As aspas mostram um distanciamento do
enunciador em relação ao que está sendo relatado. Segundo BRANDÃO, Helena Negamine. Introdução à Análise do Discurso.
Maingueneau (1997) as aspas revelam a formação discursiva do su- Campinas: UNICAMP, 1998.
jeito: as aspas estão relacionadas ao conjunto de movimentação e,
além disso, à formação discursiva na qual ele se insere. Essa forma ERBOLATO, Mário L. Técnicas de codificação em jornalismo – re-
de distanciamento do jornalista diante do que está sendo relatado é dação, captação e edição no jornalismo diário. 5ed. São Paulo:
evidente neste trecho da reportagem de Veja: De Berlim, Fernando Editora Ática, 1991.
Henrique não revelou seu voto. Nem precisava. Disse que São Paulo
foi “muito mal administrada”, que “a corrupção esteve muito eleva- MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do dis-
da” e pregou que seu partido apoiasse a alternativa que fosse “melhor curso. Trad. Freda Indursk. Campinas: UNICAMP, 1989.
para a cidade”. Ao utilizar as aspas, ele se neutraliza e atribui toda a
responsabilidade do que está dito, ao presidente Fernando Henrique. ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e Leitura. Campinas: Cortez,
Um outro fenômeno muito comum no jornalismo é a citação, pois 1996.
para conseguir uma maior credibilidade e seriedade nas notícias, o
jornalista utiliza as palavras de outrem, de preferência alguém de __________. Análise do Discurso: princípios e procedimentos. Cam-
renome, (como no exemplo acima onde o jornalista utilizou o discur- pinas: Pontes, 1999.
so citado do presidente da república) ou pessoa especialista em um
determinado assunto ou uma pessoa diretamente envolvida com o Revistas utilizadas:
tema da reportagem. É o que observamos nestes trechos de Veja: Com vocês o PT cor-de-rosa. Veja, São Paulo, 11 de outubro de 2000.
“Perdi as contas de quantas reuniões fiz com integrantes dos clubes Não vá para a cama sem eles! Kalunga, Outubro de 2000.
Rotary e Lions e com empresários dos mais diversos setores durante PT de resultados. Isto é, São Paulo, 11 de outubro de 2000.
a campanha”, diz o deputado José Genuíno do PT paulista. O jorna-

648 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A gramática de Reis Lobato e sua influência no ensino
de língua portuguesa, no Brasil, do século XVIII
Profª Mestre Marilena Zanon
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC

ABSTRACT: This work aims at introducing part of our research about the Teaching of Portuguese Language in Brasil on the XVIII centure and observing
up to what extent the “ARTE DA GRAMMATICA DA LINGUA PORTUGUESA”, by António José Reis Lobato (1771), was important to the teaching of
Portuguese, in Brasil, considering that this work was maintained in the schools for nearly one century, having been the most published grammar in
Portugal (39 editions).
PALAVRAS-CHAVE: Gramática, Língua Portuguesa, Historiografia, Linguística, Ensino, Iluminismo.

Pretendemos, neste trabalho, apresentar parte de nossa pes- erudição ao citar os gramáticos mais destacados do panorama euro-
quisa, cujo tema principal – Ensino de Língua Portuguesa no Bra- peu; 3) A obra apresenta uma perspectiva diacrônica, da gramatologia
sil do século XVIII – surgiu a partir do interesse em estudar o fun- portuguesa. O autor pregava que a gramática da língua materna seria
cionamento do sistema educacional de ensino do português, uma a base para a aprendizagem de qualquer outra língua, idéia já defen-
vez que a educação estava sob a responsabilidade dos religiosos da dida por Roboredo, no século XVII. Justifica a sua gramática, afir-
Companhia de Jesus, desde o século XVI. Foi a partir da segunda mando que, por meio do ensino, seriam evitados os erros cometidos
metade do século XVIII que a Língua Portuguesa passou a fazer pelo desconhecimento das regras gramaticais e para se conhecer os
parte da estrutura educacional, de uma forma mais efetiva, na Me- fundamentos da língua que se falava, era necessário aprendê-la na
trópole e colônias. escola, em todos os anos do curso. Essa prática auxiliaria no apren-
dizado de qualquer outra língua, pois, muitas regras da gramática
A pesquisa se fundamenta nos princípios teórico- portuguesa eram comuns às demais línguas.
metodológicos da Historiografia Lingüística, que visam à reconstru-
ção do conhecimento lingüístico, aliado ao ensino, por meio de do- Conceito de gramática
cumentos passados. Definida como “estudo do saber lingüístico”, a
HL tem como finalidade “descrever e explicar como se adquiriu, Lobato definia Gramática Portuguesa como “a Arte que ensi-
produziu, formulou e se desenvolveu o conhecimento lingüístico em na a fazer sem erros a oração Portugueza”. Observa-se que é a
determinado contexto”(Swiggers, 1990:31). A HL não apresenta ain- mesma definição da gramática Minerva, de Sánchez. No século XVIII,
da parâmetros comuns aos campos de investigação dentro da Lin- em Portugal, nota-se a bipolarização, com relação ao conceito: a
güística. Diversas possibilidades são discutidas pelos pesquisadores gramática como ciência e como arte, embora tenha prevalecido na
da área. Koerner (1989) cita a importância do clima de opinião e de maioria dos gramáticos, quer latinos, ou portugueses, o conceito de
sua utilidade, para a aceitação ou não de idéias que florescem em um gramática como arte, significando arte a faculdade de prescrever re-
dado momento histórico. Buscar o clima de opinião é inserir-se no gras e preceitos, para fazer com correção, as coisas. Lobato dividiu
clima intelectual do período, é compreender o porquê da vigência sua obra em quatro partes (como fizera Manuel Álvares, dois séculos
deste ou daquele paradigma, num determinado campo científico. antes): Etimologia (bem desenvolvida), Sintaxe, embora latina, apa-
rece com algum desenvolvimento; Ortografia, pouco desenvolvida
O Corpus deste trabalho é a “ARTE DA GRAMMATICA e Prosódia – pouco desenvolvida.
DE LINGUA PORTUGUEZA”, de António José Reis Lobato
(1771), autorizada pelas instâncias superiores, políticas e educacio- Observando as condições sócio-históricas do momento que
nais, a fazer parte da proposta de ensino de Língua Portuguesa, no abordamos, encontra-se Marquês de Pombal, Ministro dos Assuntos
Curso Humanista. Estudada durante quase cem anos nas escolas da Exteriores e da Guerra, no governo de D. José I que, durante sua
Metrópole e colônias portuguesas (1771-1869) e, segundo administração (27 anos) foi o responsável pela implementação do
Assumpção (1997: 24) “foi a gramática portuguesa mais editada em ensino de Língua Portuguesa, no Brasil, tornando obrigatório o uso
Portugal” (39 edições). O nosso desafio é avaliar em que medida o do português, com a proibição do Latim ou da Língua Geral. Cabe-
processo de mudança do sistema educacional influenciou a mentali- nos salientar, que nos pautamos na hipótese de que a obrigatoriedade
dade dos governantes portugueses para a inclusão da Língua Portu- do uso da Língua Portuguesa, a partir de 1770, quando o ensino de
guesa como disciplina obrigatória no ensino elementar e secundário, Gramática Portuguesa é institucionalizado, pode constituir uma pe-
em Portugal e no Brasil. culiaridade determinante de uma postura didático-pedagógica do sé-
culo XVIII. Nessa época, a Gramática Geral era altamente difundida
Sobre a vida de Reis Lobato pouco se sabe, até o momento. por toda a Europa e os gramáticos portugueses, apesar de adotarem a
Encontramos, em Inocêncio da Silva, alguns dados e, em Leite de Minerva, imposta pelo Alvará de 28-06-1759, passaram a usar con-
Vasconcelos, apenas um indício. Este último, fornece uma indica- ceitos da matriz de Port-Royal, começando a descaracterizar, em al-
ção temporal a respeito desse gramático: “REIS LOBATO (1721) guns aspectos, a matriz salamanquina.
foi em gramática um instrumento do Marquês de Pombal”. Para As-
sunção (1997:24), a obra de Reis Lobato foi relevante, por três ra- O ensino de gramática portuguesa passa a ser obrigatório no
zões: 1) Lobato faz a apologia da gramática geral e do ensino da Curso Humanista, a partir da promulgação do Alvará de 30-09-1770.
língua materna; 2) Indica as suas fontes e mostra conhecimentos de A classe (disciplina) de Gramática Portuguesa duraria de seis meses

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 649


a um ano e seria ministrada pelo professor de Gramática Latina, que jetivo de instituir o ensino do português, em todas as escolas de
ensinaria os alunos a falar sem “erro”. O livro adotado seria “ARTE Portugal e colônias, em obediência à decisão imposta pelo Reino.
DA GRAMMATICA DA LINGUA PORTUGUEZA”, de António Considerada uma das gramáticas mais didáticas, escrita em língua
José Reis Lobato. portuguesa, pois tinha a intenção de uniformizar o ensino da língua
materna, em Portugal e colônias.E é esta talvez a maior inovação da
obra de Lobato. Apesar do estágio inicial de nossa pesquisa, os resul-
tados parciais demonstraram que a Gramática de Reis Lobato foi re-
levante, tendo contribuído, sobremaneira, para que os estudiosos do
século XVIII e da primeira metade do século XIX, aperfeiçoassem
seu conhecimento da língua portuguesa. O presente trabalho abre
perspectivas para novos e complementares estudos, dada a sua
abrangência.

Referências Bibliográficas

ANDRADE, A. A. B. de. A reforma pombalina dos estudos menores


em Portugal e no Brasil. Revista de História, São Paulo: USP, nº
112, p. 459-98, 1977.
ARNAUD, A, 1612-1694. Gramática de Port-Royal / Arnauld e
Lancelot. Trad. Bruno Fregmi Basseto & Henrique Graciano
Muracho. São Paulo: Martins Fontas, Clássicos, 1992.
ASSUNÇÃO, C. Costa da. Para uma gramatologia portuguesa:
Dos primórdios do gramaticalismo em Portugal a Reis Lobato.
Portugal. Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila
Real, 1997.
_______________________. Reis Lobato Gramático Pombalino.
Lisboa, Associação Portuguesa de Lingüística, 1997.

Comentários conclusivos AZEVEDO, J. Lúcio de. O Marquês de Pombal e sua época. 2 ed.,
com emendas. Rio de Janeiro: s. ed., 1992.
A análise parcial da Gramática de Reis Lobato nos dá conta de FÁVERO, L.L. As concepções lingüísticas no século XVIII: a gramá-
que ela foi uma obra inovadora e contributiva, para sua época, não tica portuguesa. Campinas (SP), UNICAM,P, 1996.
só por fazer uma apologia da Gramática Geral de Port-Royal, já que KOERNER, E.F. K. “Practicing linguistic historiography” : selected
se adotava a Gramática Minerva, imposta pelo Alvará de 28-06- essays. Amsterdam: J. Benjamins, Series III – Studies in the
1759, como também apresentava, numa perspectiva diacrônica, a history of the language sciences, 1989.
gramatologia portuguesa. Foi a primeira que, de forma continuada e REIS LOBATO, A.J. Arte da Grammatica da Lingua Portugueza.
sistemática, serviu de base para o ensino de Língua Portuguesa, no Lisboa. Officina Typografica, 1771.
período de 1771 a 1869, tendo sido a gramática mais editada em SWIGGERS, P. “Reflections on (models for) linguistic
Portugal (39 edições). A obra de Lobato surge em 1771, com o ob- historiography”. In HÜLLEN: (ed.) 1990, p.27-44.

650 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Ensinando metáfora através de provérbios
Carla Gonçalves Meira Arruda
Universidade Estadual do Ceará - UECE

ABSTRACT: The proverbs reflect the cultural imaginary of people, being part of a day-by-day language. They are cultural metaphorical models based on
cognitive structures. I’ve done a research following Lakoff & Johnson (1980) who claim that our thought is metaphorical by nature and The Great Chain
Metaphor Theory.
PALAVRAS-CHAVE: provérbios; A grande Cadeia da Metáfora

1. Introdução uso constante, são evitados por quem os considera falta de habilidade
e pobreza de vocabulário na escrita.
O modelo conceitual de Lakoff & Johnson (1980) colocou em Luria (1986) afirma que Vygotsky dedicou seus primeiros tra-
discussão a definição da metáfora. Ela não é mais vista como um balhos às análises das fábulas, onde a divergência entre o significado
fenômeno lingüístico ou um recurso poético, mas como uma ativida- extremo e o sentido interno do subtexto aparece claramente. Tanto
de cognitiva do dia-a-dia. Lakoff e Johnson (1980:5) definem: “A nas fábulas, quanto nos provérbios, apresenta-se uma conflito entre
essência da metáfora é entender e experienciar uma coisa em termos o texto aberto e o subtexto. Esta capacidade de compreender o
de outra”. subtexto representa um aspecto especial da atividade psíquica. “Os
Saímos da nossa experiência concreta para passarmos às emo- provérbios são uma forma especial de alocução, nos quais a essência
ções abstratas. encontra-se no sentido figurado”( Luria, 1986:196).
Através da frase “Aquiles é um leão”, Lakoff e Turner( Os provérbios são estruturados similarmente aos mecanismos
1988:195) confirmam que a teoria da similaridade caiu por terra, já da linguagem poética, como a rima, a assonância, a aliteração, o equi-
que segundo essa teoria a coragem do leão teria que ter a mesma líbrio, o paralelismo, a elipse, sendo empregados metaforicamente.
propriedade literal da coragem de Aquiles. Sabe-se que um leão age Encerram uma mensagem de advertência ou conselho.
por instinto, portanto, não há similaridade. “Os provérbios evocam esquemas ricos em imagens e infor-
A metáfora é um fenômeno cognitivo-social, que possui um mação: eles evocam o conhecimento de animais comuns, objetos e
papel central na definição das nossas realidades cotidianas. Ela está situações”(Lakoff & Turner, 1988:162). Esses esquemas de nível es-
na linguagem, no pensamento e na forma como agimos. Nosso siste- pecífico incluem informações de nível genérico, assim como deta-
ma conceitual, fundamentalmente metafórico por natureza, é algo do lhes específicos e imagens concretas. Eles citam o provérbio Blind
qual não temos consciência. Muitas vezes, utilizamos metáforas para blames the ditch ( O cego culpa o fosso ), como sendo não só sobre
nos comunicarmos de maneira quase automática. Nossos conceitos pessoas cegas, como também sobre todas as pessoas que possuem
estruturam o quanto percebemos e como nos relacionamos com as alguma incapacidade. Os provérbios usam dois tipos de poder : eles
outras pessoas. nos levam a caracterizações genéricas, que baseiam-se em um caso
A partir de conceitos concretos, estruturamos conceitos mais especial.
abstratos. Quando dizemos que “Tempo é dinheiro” estamos de- Honeck e Temple (1994) basearam seus estudos sobre os pro-
monstrando um conceito metafórico que existe em nossa cultura, no vérbios na teoria da base conceitual estendida (The Extended
nosso sistema conceitual. Através da nossa experiência com o di- Conceptual Base Theory-ECBT). A ECBT compreende os provérbi-
nheiro, recursos limitados e produtos valiosos, formulamos uma os como uma tarefa de resolução de problemas, que não necessita de
metáfora conceitual a respeito do tempo. A teoria da metáfora acessar as metáforas conceituais preexistentes ou qualquer outro
conceitual pode ser representada por X é Y, como forma de nomear o mecanismo especial.
mapeamento de um domínio(fonte) em outro domínio(alvo). A teoria postulada por Lakoff & Turner (1988), The Great
Nossos valores são dependentes e formam um sistema coeren- Chain Metaphor Theory-GCMT, parece-me a mais adequada, por-
te, de acordo com os conceitos metafóricos com os quais interagimos, quanto baseia-se no modelo cultural denominado The Great Chain
conforme nossa cultura. of Being (A Grande Cadeia da Existência). Aparece nos provérbios
Nos anos 70, no Brasil, uma famoso jogador de futebol cha- um sentido de ordenação das coisas. Os provérbios estão relaciona-
mado Gérson protagonizou um comercial de cigarros, no qual a men- dos às pessoas, embora pareça que se referem a outras coisas – vacas,
sagem transmitida era relacionada com a esperteza e inteligência de sapos, cachorros, facas, pássaros etc. Compreendemos os provérbios
um cidadão, que ao fumar a respectiva marca, estaria levando vanta- como caminhos para a compreensão das complexas faculdades dos
gem. O protagonista dizia ao final da propaganda: “Eu gosto de seres humanos em termos dessas outras coisas. Segundo os estudio-
levar vantagem em tudo, certo?”. Foram feitas duras críticas à cam- sos supracitados, para alcançarmos a compreensão dos provérbios
panha publicitária, contudo, não podemos deixar de reconhecer que utilizamos The Great Chain of Being.
esse conceito estava e continua enraizado na nossa cultura: é a metá- A Grande Cadeia da Existência diz respeito a seres diversos e
fora conceitual do jeitinho brasileiro, que ficou conhecida como “a suas propriedades e posições numa escala vertical, com seres superi-
lei do Gérson”. ores e seres inferiores. “É uma escala de formas de existência – hu-
mana, animal, vegetal, objetos inanimados – e consequentemente uma
2. Provérbios escala de propriedades, que caracterizam as formas de existência –
razão, comportamento instintivo, função biológica, atributos físicos”
Os provérbios estão em todos os lugares, tanto na linguagem (Lakoff & Turner, 1988:167). Os autores fazem a distinção entre a
oral, quanto na escrita. Eles estão na literatura, cujos grandes repre- forma básica da Cadeia e a ampliada. A primeira concerne ao relaci-
sentantes mundiais, Shakespeare e Machado de Assis, fizeram uso onamento dos seres humanos com as formas “inferiores” de existên-
deles em seus renomados escritos. Considerados clichês, pelo seu cia. É muito difundida e ocorre em várias culturas do mundo. A

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 651


segunda concerne à relação entre os seres humanos e a sociedade, a língua em sua plenitude.
Deus e ao Universo. Concordando com Maclennam, objetivei ensinar metáfora para
uma turma de 20 estudantes iniciantes, utilizando para tal provérbios
Pensamos nos homens como hierarquicamente superiores aos em Língua Inglesa.
animais, estes superiores às plantas, e estas superiores aos seres ina- Foi utilizada a técnica think aloud ( pensar alto ) para investigar
nimados. Em cada nível existem sub-níveis, ou seja, cães são superi- como os alunos entendiam os provérbios como fenômenos de nature-
ores aos insetos, as árvores são superiores às algas. za metafórica, observando se compreendiam o subtexto inerente aos
Acreditamos que os seres possuem essências e que elas nos provérbios.
levam a comportamentos e funções. Temos uma teoria automática e Selecionei os provérbios abaixo em conformidade com o voca-
inconsciente sobre a natureza das coisas, de como as coisas são e bulário dos alunos:
como se comportam denominada The Nature of Things (A Natureza
das Coisas). Like father, like son. (Tal pai, tal filho.)
Para se compreender os provérbios, há que se combinar a teo- Marriage is a lottery. (Casamento é loteria.)
ria da Natureza das Coisas com A Grande Cadeia, além da metáfora The early bird catches the worm. (O primeiro pássaro pega a
genérico é específico e a Máxima da Quantidade. minhoca.)
A influência da Grande Cadeia ampliada nas nossas crenças Dog does not eat dog. (Cachorro não come cachorro.)
políticas e comportamento é observada atualmente. A divisão de clas- Do as I say not as I do. (Faça o que eu digo, não faça o que eu
ses sociais hierarquicamente definidas, consideradas como perten- faço.)
centes às superiores as pessoas de maior poder aquisitivo, portanto, Lies have short legs. (A mentira tem pernas curtas.)
vistas como melhores e mais poderosas. O terceiro mundo significa
um status inferior ao mundo industrializado, devendo ser subservi- Após explicações iniciais a respeito dos provérbios e das metá-
ente ao primeiro mundo, que é considerado mais capacitado. foras, pedi aos alunos que lessem os provérbios e que comentassem
Na Índia, a Grande Cadeia é estendida ao nível da sociedade como os compreendiam e o que significavam. Pedi também que dis-
de castas, com os Brahmins no topo e os Intocáveis embaixo, e as sessem seus correspondentes semânticos na Língua Portuguesa.
outras castas ficam entre as duas citadas. A versão ampliada da Grande
Cadeia tem implicações éticas, sociais, políticas e religiosas, como 4. Análise dos Dados
no caso da Índia, ou de nações onde homens dominam mulheres,
também nações que dominam outras através de seu poder, dirigindo Os alunos começaram a discutir e chegaram a um consenso a
seus destinos. respeito de cada provérbio. Um dos alunos mencionou que o provér-
Observe este provérbio da Língua Inglesa: bio “The early bird catches the worm” corresponderia a “Deus ajuda,
Better the devil you know than the devil you don’t know. (Me- quem cedo madruga”. Só houve uma falta de compreensão do “Dog
lhor um diabo conhecido que um diabo que você não conhece ). does not eat dog”. Nesse momento houve um certo tumulto que trans-
Se pensarmos num correspondente semanticamente metafóri- creverei abaixo:
co em Língua Portuguesa chegaremos ao clichê:
Ruim com ele, pior sem ele. A1(rindo): Cachorro não come cachorro. É lógico que não.
A metáfora conceitual, que está por trás de ambos, leva-nos a A2: É isso mesmo...
temer o desconhecido, a não nos arriscarmos e a preferir manter um
velho hábito a substituí-lo por outro mais saudável. Por muito tem- Pesquisando nos dicionários de provérbios, verifiquei que a
po, o ditado “Ruim com ele, pior sem ele” foi muito utilizado para expressão dog-eat-dog refere-se a uma competição acirrada. Dog tem
situações de separação de casais, onde a sociedade machista induzia aqui o sentido de pessoa de má-fama. É bastante usado para se referir
a mulher a suportar qualquer sofrimento, como se o futuro sem a a advogados inescrupulosos. Só depois de contextualizar cultural-
presença de um marido fosse uma terrível e perigosa aventura. mente o provérbio é que o mesmo foi compreendido. Disse aos
Consideremos o seguinte provérbio: alunos que esse provérbio poderia fazer uma correspondência com
Cows run with the wind (As vacas correm com o vento, os “People who live in glass houses shouldn’t throw stones” (“Quem
cavalos contra ele.) horses against it. tem telhado de vidro não deve atirar pedras no telhado do vizinho”).
Para compreender o provérbio acima, fazemos uso da Grande A expressão de uma mesma idéia pode assumir formas diferentes,
portanto há possibilidades de várias versões de um mesmo provérbio.
Cadeia, que nos informa que cavalos são superiores às vacas. Meta-
Nem sempre essas versões possuem equivalentes na língua de chega-
foricamente, interpreta-se que é mais nobre lutar contra a sociedade,
da.
do que nos conformarmos com tudo.
Pode-se constatar que os movimentos ecológicos propõem a
Conclusão
inversão da Grande Cadeia, quando falam sobre os direitos da terra,
colocando o homem como dependente da natureza.
A Grande Cadeia é um modelo difundido culturalmente que
parece estar fadado a permanecer. É uma questão política, de domina-
3. A Pesquisa
ção, é uma cadeia de opressão.
O estudo das metáforas nos leva a um confronto com os aspec-
Conforme afirma Maclennan (1994: 106): “Os aprendizes não
tos mais escondidos das nossas mentes e da nossa própria cultura,
deveriam ser protegidos das dificuldades inerentes às metáforas e
gerando reflexão, avaliação e transformações.
outras linguagens não literais”. Observo, como professora, a dificul-
Algumas vezes, os provérbios se contradizem, visto que opini-
dade que os alunos encontram numa situação de uso da língua, pois a
ões e experiências podem ser divergentes.
metodologia usada no Brasil costuma estar voltada para a linguagem
Os provérbios são refletores do imaginário cultural de um povo.
formal. Expressões idiomáticas, metafóricas, gírias, ou seja, clichês
Como um fenômeno cognitivo, que possuem inúmeras aplicações,
são evitados. A aprendizagem “literal” limita a compreensão dos es-
quer na linguagem escrita quer na oral, merecem ser estudados e
tudantes, desmotiva e faz com que se sintam incapazes de aprender a
pesquisados em profundidade.

652 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Referências bibliográficas LAKOFF, George & JOHNSON. Metaphors We Live By. Chicago:
University of Chicago Press, 1980.
MACLENNAN, Carl. Metaphors and Prototypes in the Learning LAKOFF, George & TURNER. More than a cool reason. Chicago:
Teaching of Grammar and Vocabulary. IRAL XXXII/2. May. University of Chicago Press, 1988.
1994. HONECK, R. & TEMPLE, J. Proverbs: The extended conceptual
LURIA, Alexandr Romanovich. Pensamento e Linguagem: as últimas base and great chain metaphor theories. Metaphor and Symbolic
conferências de Luria. Porto Alegre: Artes Médicas. 1986. Activity, 9, 85-112.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 653


Adverbiais espaciais e temporais em Fernão Lopes
Sônia Bastos Borba Costa
Universidade Federal da Bahia

ABSTRACT: This work focus on spacial and temporal adverbial structures in a portuguese text of the 15th century – Crónica de D. Pedro, by Fernão
Lopes -, establishing morphological and synthatical formation process and spacial, temporal and aspectual semantic contents.
PALAVRAS-CHAVE: Adverbiais – Localismo – Gramaticalização – História da língua portuguesa

1. Esta comunicação dá conta do andamento de elaboração de tese de te dialogais, costumam também ancorar-se nessas dimensões, embora
Doutoramento, a ser defendida perante o Programa de Pós-Gradua- comumente se passem no domínio da não-pessoa. Assim, geralmente,
ção em Letras e Lingüística da UFBA, que propõe reflexão sobre constróem-se sobre linhas organizativas que são ou espaciais, ou tem-
itens adverbiais de conteúdo semântico espacial e temporal, recolhi- porais ou linhas de ordenação de proposições, que podemos chamar
dos dos textos dos séculos XIV, XV e XVI, confrontados com seus argumentativas. Quer dizer, construindo seu discurso, solitário ou em
correspondentes atuais. Denomino, conjuntamente, de adverbiais, diálogo, o falante sente necessidade de uma linha organizativa para si
tanto os tradicionalmente chamados advérbios, quanto as também e/ou para o seu interlocutor. A linha a ser escolhida depende de o
tradicionalmente chamadas locuções adverbiais, e me guio por crité- falante estar referindo entidades que se localizam e se deslocam no
rios de distinção entre locuções adverbiais - seqüências em processo espaço; ou fatos que se propõem, se antecedem ou são simultâneos no
de gramaticalização - e SPs ou SNs de função semântica e sintática de tempo; ou estar referindo não propriamente fatos, mas proposições
natureza adverbial que estabeleci em trabalho de 19961 . que não se localizam nem no espaço, nem no tempo, mas que se
Em trabalho publicado em 19972 apresentei todos os itens amarram umas às outras numa certa linha que o raciocínio acompanha.
adverbiais encontrados no texto Crónica de D. Pedro (CDP), sem Chama a atenção o fato de que, dessas três dimensões básicas, a
aplicar-lhes o recorte semântico que vim a eleger para a análise do pessoa e o tempo, nas línguas do mundo, geralmente disponham de
corpus global da tese. Recentemente procedi à adeqüação dos dados expressões lingüísticas do nível mórfico, enquanto o espaço não conta
a esse recorte, do que aqui dou notícia. com categorias lingüísticas privativas.
Como base teórica da análise, pretendo utilizar os pressu- Neste trabalho não invisto nos processos que produzem as
postos da teoria da Gramaticalização, incluindo a proposta localista. extensões semânticas, nem apresento ainda a aplicação sistematizada
Como amplamente difundido, a hipótese localista considera as ex- dos pressupostos da teoria aos advérbios do português. Limito-me a
pressões espaciais como mais fundamentais, gramatical e apresentar as formas que ocorrem na CDP, seus processos
lexicalmente, porque servem de modelo estrutural, cognitivamente morfossintáticos de formação e as nuances espaciais e temporais que
falando, para outras expressões lingüísticas. Baseio-me sobretudo expressam.
em Lyons (1980[1978]), Heine, Claudi e Hünnemeyer (1991) e Considerarei para a minha coleta os advérbios de conteúdo
Svorou (1993). semântico espacial e temporal, simples e locucionais, esses constitu-
Muitos estudos indicam que as línguas são semelhantes no ídos por SNs ou introduzidos pelas preposições a, de, em, por/per,
modo como codificam relações espaciais e como essas são estendi- para, escolhidas pelo seu maior grau de paradigmacidade, no sentido
das semanticamente para expressar outros tipos de relação, além de de Lehmann (1982), a saber, a inclusão dos itens em questão em
serem semelhantes no modo como se estendem. A motivação estaria paradigmas, que se caracterizam por freqüência e coesão interna, re-
em processos cognitivos, portanto universais, que se baseiam no modo fletida na regularidade das distinções intraparadigmáticas, o que pro-
como os seres humanos vivenciam o mundo, restringidos pela sua duz, ao meu ver, um tipo de previsibilidade.
configuração física e pelo seu aparato neuro-fisiológico. Ressalve-
se que Svorou e Heine, Claudi e Hünnemeyer lembram a contribui- 2. Foram encontrados 101 itens adverbiais, cujos processos
ção da cultura da comunidade para o processo, não menos importan- morfossintáticos de formação listo a seguir, acompanhados de alguns
te, embora menos sistemática. Afinal, o espaço é um dos componen- exemplos. Esclareço que não serei exaustiva quanto ao registro das
tes da instância prototípica da linguagem, a dêixis, que ancora o variantes gráficas. Esclareço também que incluo as formas la, aqui, ali,
diálogo, a utilização mais natural das línguas, nas três dimensões alla, allo, i (hi), hu, ca, recentemente recategorizadas como pronomes
básicas: quem fala/onde fala/quando fala, ou seja, categorias se- e que na tese merecerão provavelmente tratamento diferenciado.
mânticas de pessoa/espaço/tempo. Esses três eixos se interseccionam São dezesseis os processos encontrados:
no que Svorou chama centro dêitico e correspondem a três domínios 1. ADV < ADV: antes, cedo, oje, nunca, sempre
cognitivos, dois dos quais mais generalizadamente considerados 2. ADV < N: asinha, logo
básicos, a saber, pessoa e espaço, e o terceiro, tempo, também em 3. ADV < ADJ: alto, primeiro
geral admitido como imediatamente calcado no segundo. Apenas 4. ADV < V(pp): toste
como ilustração desse fenômeno trago dois exemplos da CDP em 5. ADV < ADV + ADV: aqui, nunca mais, ainda nom
que o vocábulo espaço corresponde nitidamente a tempo: 6. ADV < DET + N: agora, cada dia, muitas vezes, este ano
(1) depois tornava asperamente contra elles rreprendendo-os
muito d’o que feito aviam, e assi andou per hu)u grande espaço (113,
62-64) 1 COSTA, Sônia B. B. “Adverbiais”. In MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia (org.).
(2) e era tamanho o medo que quantos esto viiam todos cuida- A ‘Carta de Caminha’: testemunho lingüístico de 1500. Salvador: EDUFBA,
vam de serem mortos, durando esto per mui grande espaço (269- 1996.
270, 73-75) 2 COSTA, Sônia B. B. “Adverbiais na Crônica de D. Pedro”. In: Estudos:
Os discursos, manifestações lingüísticas não necessariamen- Lingüísticos e Literários, nº. 19. Salvador: PPGLL/UFBA, 1997.

654 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


7. ADV < ADJ + MD: antiigamente, brevemente, trigosamente Esses adverbiais expressam ou a anterioridade, a
8. ADV < ADV... ADV: nom... ainda, nom... já posterioridade ou a simultaneidade, além da expressão de atingimento
9. ADV < PREP + ADV: acerca, adiante, ameude, anteagora, de de um ponto previsível, nuance quase exclusiva da forma já.
preto c) permanência: nunca, nunca mais, pera sempre, por sempre, sem-
10. ADV < PREP + N: de dia, per dias, a pressa pre
11. ADV < PREP + DET + N: aa noite, a poucos dias, em este tempo, De denominação auto-evidente, é importante distingui-la de
daquella vegada, per muitos anos manutenção, nuance semântica do âmbito do aspecto. Enquanto a
12. ADV < PREP + PREP + N: adeparte manutenção será sempre de um estado ou de um processo, observan-
13. ADV < PREP + N + SP: a cabo de pouco do, portanto, a configuração temporal interna do fato enfocado, a
14. ADV < PREP + (N) + ADJ: em breve permanência expressa a recorrência do mesmo fato durante lapso tem-
15. ADV < PREP + DET + DET + (N): aa primeira poral frequentemente indeterminado.
16. ADV < PREP + DET + (N) + ADV: ao depois, ao deante d) freqüência: ameude, aas vezes, algu)ma vez, algu)mas vezes,
cada ano, cada dia, cada hu)a vez, de noite, muitas vezes, novamente,
3. Na análise do conteúdo semântico dos itens adverbiais, senti outra vez, por dia, poucas vezes, per vezes, rraramente
necessidade de distinguir a categoria de tempo da categoria de aspecto, São formas que expressam a repetição, a regularidade ou a
e o faço nos seguintes termos: aspecto e tempo são ambas categorias irregularidade.
temporais, no sentido de que têm por base referencial o tempo físico. e) rapidez: a cabo de pouco, a pressa, asinha, brevemente, em breve,
Distinguem-se, contudo, do ponto de vista semântico, basicamente a ligeiramente, logo, toste, tostemente, trigosamente
partir da concepção do chamado tempo interno (o Aspecto) diferente f) direção: adeante, d’hi, pera adeante
do tempo externo (o Tempo). As noções do âmbito do Tempo dizem Como se vê, são formas que expressam direção prospectiva.
respeito à localização do fato enunciado relativamente ao momento da No âmbito do Aspecto, encontrei as nuances:
enunciação; são, em linhas gerais, as noções de presente, passado e a) duração: algu)us annos, algu)us dias, brevemente, em hu)u dia,
futuro e suas subdivisões. Já do âmbito do Aspecto são as noções de muito tempo, per dias, per muitos anos
b) manutenção: ainda, sempre
duração, instantaneidade, começo, desenvolvimento e fim. Assim,
c) fase final: finallmente
enquanto a categoria de tempo trata o fato enquanto ponto distribuído
Este é um trabalho em curso e um dos meus objetivos neste
na linha de tempo, a categoria de aspecto o trata como possível de
Congresso é submeter minhas reflexões às observações dos colegas.
conter frações de tempo que decorrem dentro dos seus limites. O
Para que as formas de adverbiais ganhem alguma concretude para os
Aspecto é, portanto, a categoria lingüística que informa se o falante
ouvintes, listo a seguir alguns trechos do texto de Fernão Lopes em
toma em consideração ou não a constituição temporal interna dos
que ocorrem algumas dessas formas:
fatos enunciados, ou seja, enfoca o tempo no fato e não o fato no
tempo. Assim, considero as categorias semânticas de Espaço, Tempo,
(3) Pois avemos de fazer meençom ao deante da guerra e grande
Aspecto e Discurso, esta subdividida em temporal e espacial que desvairo... (159,4-5)
passo a detalhar abaixo, lembrando que, sendo o advérbio, um satélite (4) e alli o mandou degollar (125, 54-55)
de um elemento sintático (Moura Neves, 2000: 234), atua em conjun- (5) começou de dizer contra o corregedor que hi estava (125, 48-49)
ção semântica com esse elemento, o que justifica que uma mesma (6) e mandou-lhe dizer que nom fosse mais adeante (256, 28)
forma possa ser usada para referir mais de um conteúdo. (7) e el-rrei foi alla com seu poder (204, 25)
No âmbito do Espaço, encontrei formas que expressam as (8) e enviamos allo sobr’esto Joham Fernandez de Mellgarejo (96, 40-43)
seguintes nuances semânticas: (9) ca ssei que mais alto há de montar (276, 23-24)
a) localização: a través, ao deante, adiante, alli, ante, aqui, arredor, (10) e mandou lá galees armadas (161, 60)
ca, deante, dentro, fora, hu, i (hi). (11) que se nom podiam veer salvo de preto (197, 54-55)
São formas que localizam o elemento no eixo horizontal (ou (12) e tomavam barregãas com que adeparte faziam vivenda (108, 44-45)
eixo frente/costas), na região em torno, na parte interior ou exterior (13) he nossa entençom n’eeste prollogo muito curtamente
ou em parte do texto. fallar... (87, 6-7)
b) deslocamento: alli, d’alli, per alli, alla, allo, adeante, alto, fora, lá, (14) e portanto se nom fez d’aquella vegada (201, 52-3)
i (hi), d’hi (15) honde el-rrei e o principe por estonce estavom (272, 21-22)
Essas formas expressam o deslocamento vertical, horizontal, (16) e seeria estonce em mea hidade (119, 16)
a fonte (ponto de partida) ou o alvo (ponto de chegada). (17) pois se el-rrei decia d’o que aaprimeira dissera, que poderia
c) distância: acerca, adeparte, a preto, de preto, la, longe aproveitar (192,77-78)
d) extensão: curtamente (18) e des i mandou deante, pera correger todallas cousas que
No âmbito do Tempo, as formas encontradas expressam: compriam (...), Gomes Perez seu despenseiro-moor (95, 13-14)
a) localização: agora, allo, aaquell tempo, aquell dia, d’esta vez, (19) como anteagora ouvistes (255, 6)
d’aquella vez, d’aquella vegada, de dia, de madurgada, este ano, entom, (20) depois que el moresse nunca os mais podessem aver (223,
estonce, esse dia, em este tempo, em outro tempo, em aquel tempo, 55)
em esse dia, em este anno, hu)u dia, hoje, n’aquell dia, por estonce (21) ja agora som seguro que nunca m’a dará (125, 57-58)
Para esses advérbios entra em causa a distinção entre localiza- (22) sempre em vosso regno ouve taes boliços (140, 24-25)
ção exofórica ou endofórica, distinguindo sobretudo os discursos di- (23) nom compre aqui rrazoar outra vez (91, 7-8)
retos da construção discursiva. Embora para o espaço essa distinção (24) esguardada a benignidade, muitas vezes se tempera per
também possa ser feita, para o tempo ela avulta com mais força. mansidoõe o modo e rrigor da justiça (128, 22-23)
b) ordenação: ante, antes, anteagora, antiigamente, aa tarde, aa noi- (25) e mandava que tall como este nom ouvesse por dia mais que
te, a poucos dias, ao depois, ainda nom, aa primeira, cedo, deante, viintesolldos (105,70-72)
depois, em outro dia, entanto, entom, estonce, item, já, nom... já, (26) e por ter aazo de a rrequerer ameude de seus desonestos amores
nom... ainda, nem... mais, nom... mais, pela manhãa, primeiro, pri- (120, 31-32)
meiramente, tarde. (27) soomente em breve das mortes digamos e mais nom (154, 26-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 655


27) Grammaticalization: a conceptual framework. Chicago and
(28) E passou trigosamente e foi-sse pera Bizcaia (167, 214-5) London: The University of Chicago Press.
(29) e por aquelles que o rrequeriam averem mais toste seu LEHMANN, Chistian (1982). Thoughts on grammaticalization: a
desembargo (104, 40-1) programatic sketch. Köln: Institut für Sprachwissenchaft/
(30) e veendo que nom podia levar adeante aquello que começara University zu Köln (Arberten das Kölner Universalienprojekts,
(236, 32-33) 48)
(31) e esteverom per dias e nom se aveherom (203, 14) LOPES, Fernão (1996). Crónica de D. Pedro. Ed. critica con
(32) Estando el-rrei ainda comendo (181, 4) introduzione e glossario a cura di Giuliano Macchi. Roma:
(33) se mostrou sempre seer fiell catholico (100, 35) Edizione dell’Ateneo.
(34) pero finallmente ouverom acordo de o colher em ella (250, 79- LYONS, John (1980[1978]). Semantique Linguistique. Paris: Larousse.
80) Moura Neves, Maria Helena (2000). Gramática de usos do portugu-
ês. São Paulo: Ed. UNESP.
SVOROU, Soteria (1993). The grammar of space. Amsterdam/
Referências bibliográficas Philadelphia: John Benjamim Publishing Company.

HEINE, Bernd; Claudi, Wrike e Hünnemeyer, Friederike (1991).

656 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Observações sobre as conjunções do século XVI
Therezinha Maria Mello Barreto
Universidade Federal da Bahia – UFBA

ABSTRACT: Based upon the analyses of a corpus formed by different kinds of texts from the XVIth century, this paper presents the conjonctional itens
used in this century studied in five different groups: 1. conjonctional itens that used previously, experienced some kind of change; 2. conjonctional
itens used until this century; 3. conjonctional itens that begin to be used in this century; 4. conjonctional itens only used in this century; 5.
conjonctional itens that not being used any more, reappeared in texts of this century.
PALAVRAS-CHAVE: Conjunções – correlações – século XVI – gramaticalização.

Este trabalho representa a continuação de três pesquisas E caso que estas palavras cõ as obras de que outros podem
anteriores: a dissertação de mestrado intitulada: “Conjunções: dar testemunho, mostrem aver em my a obidiencia que digo,
aspectos da sua constituição e funcionamento da história do português” todavia não me acabo de satisfazer, por que mayor he e muito
(1992), que analisa conjunções e correlações conjuncionais em 3158 mays conte em sy do que posso escrever. (CT, CLXXI, l. 14-7).
períodos retirados de textos de tipos diversos, dos séculos XIII a XV;
o trabalho intitulado “Perseguindo as conjunções”, de Barreto e Olinda 1.3 Que – aditivo, cujo emprego parece ter sido corrente até o
(1992), publicado na revista Estudos lingüísticos e literários, nº 13, séc. XV, pois ainda é empregado sete vezes na Carta de Caminha,
que analisa os citados conectores, num texto de 1500, a Carta de Pero ocorre também na GLP, mas apenas uma única vez, no Diálogo da
Vaz de Caminha (CC); a tese de Doutorado “Gramaticalização das Viciosa Vergonha.
conjunções na história do português” que tenta explicar a origem dos Quanto às conjunções subordinativas, pode-se afirmar que:
itens conjuncionais portugueses, tomando por base um corpus 1.4 A conjunção que empregada, no português arcaico, como
constituído por textos dos sécs. XIII, XIV, XV, XVI e XVII e textos integrante, causal, comparativa, modal, concessiva, condicional,
de língua falada do português contemporâneo. Desse modo, temporal e final, apresenta o seu campo semântico reduzido, ocorrendo
apresentará os itens conjuncionais que: 1. já empregados em séculos apenas como integrante, causal, final e concessiva.
anteriores, experimentaram mudanças no século em estudo; 2. só 1.5 A conjunção como continua a expressar relações de causa,
foram empregados até o séc. XVI; 3. começaram a ser empregados no finalidade, modo, comparação e tempo que já expressava desde o séc.
séc. XVI; 4. só foram detectados em textos do referido século; 5. XIII e passa a expressar também a relação de conformidade:
aparentemente já em desuso, voltaram a ocorrer nesse século.
O corpus escolhido para a pesquisa foi constituído de textos de Como diz David em espirito (sal. XVII): Em toda térra saiu o
tipos diversos, todos do séc. XVI, pertencentes, pois, ao período som deles, e nos fins da térra as suas palavras. (DVV, p. 438, l. 14-5).
moderno da língua, entre os quais estão incluídos: 1. textos de caráter
epistolar: 22 Cartas de D. João III – CDJIII – (1523 – 1557), 173 1.6 A forma segundo que, no séc. XIII, apresentava-se seguida
Cartas da corte de D. João III (1524 – 1562) (30 da Rainha Catarina de que, como ou em como, começa a aparecer isolada nas cartas de D.
– CR, 49 do Infante Luis – CIL, 40 de Jaime, Duque de Bragança – CJ, João III.
41 de Theodosius, filho do Duque – CT, 13 cartas Miscelâneas – No que diz respeito às correlações conjuncionais, pode-se afirmar que:
CM); 2. textos pedagógicos de João de Barros, de 1540: Cartinha – C, 1.7 Das correlações comparativas de superioridade e
Gramática da língua portuguesa – GLP, Diálogo da Viciosa Vergonha inferioridade que ocorrem desde o português arcaico, apenas mais...
– DVV, Diálogo em louvor da nossa linguagem – DLNL); e um texto que apresenta a variante em que o segundo termo é do que ainda nesse
histórico, também de João de Barros: As Décadas da Ásia – D.A. – mesmo período; as demais: maior... que, melhor... que, menos...
1º e 2º volumes (1000 linhas de cada), 1552 – 1553. que e pior... que, só no séc. XVI começam a apresentar esse tipo de
Foram encontrados, no corpus consultado: 29 itens variante.
conjuncionais coordenativos (22 conjunções, 7 correlações) e 63 1.8 A correlaçao proporcional quanto... tanto, utilizada no
subordinativos (43 conjunções, 20 correlações). português do séc. XIII, apresenta, no séc. XVI, as variantes: quanto...
tanto, quanto... tanto mais e quanto... mais... tanto... mais.
1. Itens conjuncionais que, já empregados em séculos 1.9 Do mesmo modo, a correlação aditiva não só... mas
anteriores, experimentaram mudanças no séc. XVI: também, do português contemporâneo, que apresenta, desde o séc.
XIV, quando começou a ser empregada, variantes diversas. Aparece,
Os itens conjuncionais encontrados no corpus, na sua maior no séc. XVI, sob as formas: nam somente... mas, nam... mas, não
parte, já haviam sido detectados em textos mais antigos, entretanto somente... mas ainda.
alguns fatos merecem destaque: 1.10 A correlação ne ... ne que era empregada para ligar mais de
Entre os itens coordenativos: dois sintagmas ou mais de duas sentenças, em textos do séc. XIII e
1.1 E, conectivo aditivo empregado repetitivamente, em textos XIV, tem o uso repetitivo reduzido, passando a ligar, no máximo, três
do século XIII ao século XV e nos Diálogos de João de Barros, já não sentenças ou três sintagmas.
é tão empregado dessa maneira, nos demais textos do século XVI, 1.11 O mesmo ocorre com as correlações ou... ou e quer...
embora ainda apareça repetido em alguns períodos: quer que passam a ligar apenas duas ou três sentenças ou dois ou três
1.2 O item todavia parece ter finalizado, nesse século, o seu sintagmas.
processo de gramaticalização ao nível da escrita e ao nível semântico, 1.12 A forma senão, constituída da justaposição da conjunção
uma vez que já é empregado, nos textos, com a forma justaposta e condicional se à forma negativa não, que ocorre, no português arcaico,
como conjunção, estabelecendo uma relação de contrajunção: expressando uma relação de condição, é empregada, no séc. XVI:

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 657


(i) com valor preposicional de ‘exceto’: 3.3 Aparece, nas CIL, a conjunção modal de modo que, não
encontrada em outros textos do mesmo século ou de séculos anteriores:
... e que ficara o que eu digo – sempre em segredo senã das
pessoas a que eu nã pude deixar de o dizer, que he o que por o E para isto convem, primeiro que tudo, darsse conta ao Reitor
confessor, o Bispo de Portalegre, por que muito disto passou, e ho da rrezão d’esta mudança, de modo que elle a receba e veja
secretario por que passa tudo. (CT, CLVII, l. 33-6). que não tira nada da obrigação... (CIL, XLVI, l. 28-31).

(ii) com valor conjuncional: 3.4 Outra conjunção modal, de feição que, de idêntico teor
- fazendo parte da correlação adversativa nã... senã ~ nõ... semântico, ocorre nas CJ:
senõ ~ não... senão, já empregada no português arcaico, a qual, no
português moderno, assume também as formas: ne huu... senam ~ E se sua alteza tem võntade que eu Receba d’elle esta merce,
ne ... senão ~ sem... senam: seja esta Resposta de feição que me pareça a mi que quer sua
alteza conclusão; (CJ, LXXXIX, l. 71-3).
E porque ysto he cousa tã fora de toda rezam, e mais estamdo
vos no em que estaaes, e tratando negocio tall que ne huu outro fim 3.5 Registra-se a conjunção temporal já que grafada ya que.
teem senam a amizade que eu tanto precuro de ter cõ el Rey de França... 3.6 O advérbio logo ‘imediatamente’ empregado em textos do
(CDJIII, XXI, l. 17-20). séc. XV, aparece, no DVV, como conjunção conclusiva:

1.13 A correlação modal bem como... assi empregada em textos Todo pecádo é obrár e todo obrár é voluntário, quér seja torpe
do século XIII, apresenta, no séc. XVI, a forma como... assi: quer honesto: logo todo pecádo é voluntário. (DVV, p. 433, l.
03-5).
2. Itens conjuncionais que só foram empregados até o séc. XVI
o que parece indicar ter ocorrido, no séc. XVI, o processo de
2.1 Pero e porem ocorrem, no séc. XVI, não só estabelecendo gramaticalização:
relações de conclusão e explicação, mas também já estabelecendo advérbio > conjunção
relação de contrajunção, sendo entretanto, nesse caso, pero ainda a 3.7 Aparecem as concessivas por mais... que e cõ quanto ~
forma mais usada. Nas D.A., as formas péro e porém são empregadas com quãto
apenas como conjunções contrajuntivas. Nas demais obras do séc. 3.7.1 por mais que com a forma ainda não gramaticalizada por
XVI, pero já não ocorre e o item porem é empregado como conjunção, mais... que.
para expressar a relação de contrajunção, sendo, entretanto, ainda 3.7.2 Cõ quanto, com a forma ainda não gramaticalizada ao
mais freqüente o seu emprego como reforço adverbial conclusivo- nível da escrita, ocorre também:
explicativo. (i) ainda não gramaticalizada ao nível semântico, significando
2.2 Pero e empero, isoladas ou associadas à conjunção que, ‘com aqueles que’ e admitindo as flexões do indefinido:
constituem também conjunções concessivas em textos do séc. XIII ao
XV. Como concessivas, empero ou empero que já não aparecem nos Eu, Deos seja Louvado, fico de saude com quãtos as grandes
textos do séc. XVI, pero e pero que, entretanto, ainda são empregadas. calmas e os trabalhosos caminhos forão a isto asaz contrairos.
2.3 A conjunção explicativa ca ~ qua, muito freqüente no (CIL, XLIII, l. 48-50).
português dos sécs. XIII a XV, aparece, ainda, em todos os textos do
séc. XVI consultados para esta pesquisa, porém numa freqüência já (ii) já gramaticalizada, ao nível semântico, significando ‘apesar
bem menor. Nas D.A. o seu emprego já é raro. de que’, ‘embora’:
2.4 Inicialmente uma conjunção temporal, pois ocorre também
como conjunção explicativa. Cõ quanto venho bem desejoso de Repousar, por que desejo
2.5 Desque ocorre uma única vez ainda nas Cartas do Infante mays todos os meyos para a saude e cõte tame to de sua alteza,
Luís, o que parece indicar ser, na época, uma forma já quase em nã me pessara de acõpanhar sua alteza e algu a mays larga
desuso. jornada... (CIL, XII, l. 06-9).

3. Itens conjuncionais que começaram a ser empregados o que comprova datar do séc. XVI o seu emprego como item
no séc. XVI: conjuncional concessivo.
3.8 Conforme, começa a aparecer como locução prepositiva,
3.1 O advérbio somente é empregado como item conjuncional seguida da preposição a e apresentando as variantes gráficas:
contrajuntivo: cõforme a, confforme a e conforme a. Não ocorre, nos textos do
séc. XVI consultados, como conjunção, o que indica ter se
E se ouvere de mudar meus ossos nõ ho ffacã cõ chamame to de gramaticalizado no final desse século ou em época posterior.
gente ne gasto, somente cõ atee mea dozia de crérigos ou Religiosos. 3.9 Ao lado das conjunções conclusivas logo e portanto são
(CJ, CXIX, l. 44-6).1 empregados itens que mais tarde viriam também a ser conjunções e a
expressar idêntica relação:
3.2 Contudo, aparece ainda com a forma não gramaticalizada 3.9.1 per conseguinte, hoje por conseguinte, como reforço
ao nível da escrita, cõ tudo, e até mesmo ao nível semântico, uma vez adverbial, com o valor semântico de ‘em, conseqüência’,
que ainda conserva o sentido original de: ‘com todas as coisas’ou ‘com ‘consequentemente’:
todas essas coisas’. Tudo leva a crer, assim, que só no final do séc.
XVI, ou mesmo no séc. XVII, a forma contudo, já gramaticalizada ao
nível da escrita tenha passado a conjunção e assumido o conteúdo
1 Nesse exemplo, pode-se também admitir que somente esteja empre-
semântico adversativo.
gado com valor adverbial, estando elíptica a conjunção adversativa.

658 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


3.9.2 por isso, que ocorre nas formas por isso ~ por esto ~ por apenas em um texto do século XIII, volta a ocorrer, sob a forma não...
esso, desde o séc. XIII, também como reforço adverbial ou encadeador senão, apresentando também outras variantes, como foi visto
da narrativa: anteriormente. O fato de não ter sido encontrada em textos dos séculos
3.10 Embora aparece como advérbio, nas Cartas do Infante XIV e XV permite supor que, conservada, inicialmente, apenas como
Luis, o que indica ter a gramaticalização do item ocorrido em época um arcaísmo, essa correlação tenha tido, a partir dos séc. XVI, o seu
posterior. emprego generalizado.
3.11 Primeiro que, conjunção temporal, é empregada por João 5.2 Volta também a ocorrer a forma ante, anteriormente só
de Barros, uma única vez, no DVV. documentada em textos do séc. XIII, estabelecendo a mesma relação
3.12 Ora, advérbio, começa a ser empregado repetido, de contrajunção. A conjunção temporal ante que, entretanto, já
empregada desde o séc. XIII continuou a ocorrer normalmente no
constituindo a correlação coordenativa alternativa ora... ora.
português moderno e continua sendo empregada no português
3.13 Canto variante gráfica de quanto ocorre associada ao
contemporâneo.
advérbio mais e correlacionada a nã (não) uma única vez, na carta Resumindo, pode-se afirmar que, no que se refere ao emprego
CLVIII, de Theodosius: de conjunções, caracteriza, de um modo geral, o português do séc.
XVI:
4. Itens conjuncionais que só ocorreram em textos do séc. XVI: 1) o raro uso do ca; 2) a ausência de pois no sentido temporal
etimológico e o seu emprego como item conjuncional explicativo; 3) o
4.1 Encontra-se uma única vez nas CM, especificamente na emprego de pero e porem como conectivos contrajuntivos; 4) a não
carta nº CLXXI, de Frei Duarte, a conjunção final a que. ocorrência das conjunções mas pero, ergo, macar que, que
4.2 O substantivo caso aparece, em um documento do séc. (condicional, modal, temporal, final), fora se, fora que, en / de/, per
XVI, na CT, CXIX, associado à conjunção que constituindo a guisa que, segundo que, segundo como, almeos que, entre que,
conjunção subordinativa condicional caso que a qual, segundo Said cada que, ao tempo que, sol que, e das correlações tãben... como,
Ali (1921: 219) é uma forma reduzida de sendo caso que. No português ante... que, quantos... que, segundo como... assi, assi como... bem
contemporâneo a conjunção caso que reduziu-se a caso. assi, detectadas em textos de séculos anteriores, o que ratifica a
Algumas correlações foram também encontradas, unicamente, afirmação de que esses itens conjuncionais caíram em desuso nos
em textos do século em estudo: séculos XIV ou XV (Barreto, 1992); 5) o aparecimento das conjunções:
4.3 muito... que ‘tão... que’ somente, contudo, de modo que, de feição que, já que, logo, caso
que ocorre apenas nas CT: que, a que, primeiro que; 6) o emprego de algumas novas correlações:
muito... que, mais... que e non... que (contrajuntivas), mais... quanto
Depois de Luis Afõso partido, esteve o duque muito mal que me mais (proporcional), tanto... como se (comparativa), não... quanto
mais (aditiva); 7) o aparecimento das conjunções como e segundo,
pareceo que esta noirte acabasse. (CT,CXXXII, l. 03-4).
para estabelecer a relação de conformidade, antes só expressa através
de correlações; 8) o emprego das conjunções por quanto, cõ quanto
4.4 mais... quanto mais
e eâ quanto, nas formas ainda não-gramaticalizadas; 9) o aparecimento
que aparece também uma única vez na carta XII de D. Jayme, duque de itens adverbiais que, mais tarde, seriam conjunções: por isso, por
de Bragança, estabelecendo uma relação de proporção: conseguinte, embora.
E pouco tempo abastaraa pera me S.A. ouvir, que nom quero mais
que dos negocios; escusado tenho de cuydar mais, quanto mays falhar. Referências bibliográficas

Nota-se que, no exemplo acima, o mais ocorre numa sentença BARRETO, Therezinha Maria Mello. (1999). Gramaticalização das
de sentido negativo, o que parece explicar a forma dessa correlação no conjunções na história do português. Salvador. UFBA. Tese de
português contemporâneo: não... quanto mais. Doutoramento em Letras.
4.5 Nas Décadas da Ásia, uma única vez, encontra-se a CASTILHO, Ataliba Teixeira de. (1997a). A gramaticalização. Estudos:
correlação adversativa mais... que, também não detectada no português Linguísticos e Literários. Salvador. n. 19, UFBA. p. 25-64.
arcaico: CASTILHO, Ataliba Teixeira de. (1997b). Língua falada e
gramaticalização. Filologia e Lingüística Portuguesa, São Paulo,
... e q nã fazia mais cõta q de cõprar e veâder e tornasse a sua n. l, p. 107-20.
natureza. (D.A., cap. III, l. 86-7). COROMINAS, Joan. (1991). Dicionário crítico etimológico de la
lengua castellana. Madrid: Gredos, 4 v.
4.6 Aparece a correlação de valor semântico contrajuntivo nam... HEINE, Bernd, CLAUDI, Ulrike, HÜNNEMEYER, Frederike.
que ‘não... mas’, ‘não... senão’: (1991). Grammaticalization: a conceptual framework. Chicago/
London: The University of Chicago Press.
HEINE, B. (ed.). Approaches to grammaticalization. Amsterdam/
E assi este tel como outras vergas e pontos que tem a nóssa
Philadelphia: John Benjamins. v. 1, p. 17-36.
escritura, prinçipalmente ôs da lêtera tiráda, que máis se pódem
HUBER, Joseph. (1986). Gramática do português antigo. Trad. de
chamar atálhos dos escrivães, por nam gastárem tempo, e Maria Manuela Gouveia Delille. Lisboa: Calouste Gulbenkian.
papél que [por] outra algu a neçessidade. (GLP, l. 1990-3). MACHADO, José Pedro. (1967). Dicionário etimológico da língua
portuguesa. 3. ed. Lisboa: Confluência, 3 v.
4.7 Ocorre ainda a correlação tanto... como se em que o segundo MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. (1984). Pero e porém: mudanças
termo é a conjunção comparativa hipotética. em curso na fase arcaica da língua portuguesa. Boletim de Filologia.
Lisboa, v. 29p., 129-151.
5. Itens conjuncionais que, aparentemente já em desuso, MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. (1989). Estruturas trecentistas:
voltam a ocorrer em textos do séc. XVI elementos para uma gramática do português arcaico. Lisboa:
Imprensa Nacional/Casa da Moeda.
5.1 A correlação nom... senon ~ nom... senam, detectada

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 659


Comparação entre algumas preposições portuguesas
documentadas no século XVI e no século XIV
Rosauta Maria Galvão Fagundes Poggio
Universidade Federal da Bahia - UFBA

ABSTRACT: The purpose of this paper is to analyse the characteristics of the prepositions used by João de Barros (XVIth century) and to establish
a comparison between the form they present in this century and that one they show in texts of the XIV th century previously studied, in order to
investigate synthatic and semantic changes occurred with some of them.
PALAVRAS-CHAVE: funcionalismo – gramaticalização – preposições - português

Este trabalho é parte de um projeto coletivo do Programa para (2) A epístola sinifica o ofiçio de Sam Joám, precursor de Cris
a História da Língua Portuguesa (PROHPOR), intitulado “Português to que veo ante a sua fáce e a dizer: [...] (J.B., p. 268, l. 45)
quinhentista: estudos lingüísticos”, sob a Coordenação da Profa. Dra. CONTRA: ‘noção: oposição’
Rosa Virgínia Mattos e Silva. (3) E non te nembra que o profeta David, por huas paravoas
Nesta comunicação, os corpora básicos analisados constituem- mentideiras [...] contra o filho de Jonata, deu sentença de
se da versão mais antiga, em português arcaico (século XIV), dos dois noite contra el (D.S.G., 1, 8, 5)
primeiros livros dos Diálogos de São Gregório e de algumas obras de (4) [...] e diz-se contra o Aquilám pera evitár os máos espíri
João de Barros (século XVI), a saber: Gramática da língua portugue- tos e imitar os bons, [...] (J.B., p. 284, l. 152).
sa com os mandamentos da Santa Madre Igreja, Diálogo em louvor DE: ‘espaço: afastamento’
de nossa linguagem e Diálogo da viciosa vergonha. (5) [...] viinha cada ano do logar en que morava ao moesteiro
Sabe-se que as preposições já existiam no sistema latino, em- de San Beento (D.S.G., 2, 13, 2)
bora sendo pouco usadas no período clássico, uma vez que a relação (6) E assi se árma com òrações e çerimónias divinas que diz e
entre vocábulos era marcada, quase sempre, pelas flexões casuais. À fáz do prinçipio até o fim dela (J.B., p. 263, l. 22).
medida que os casos morfológicos foram desaparecendo, generali- DES: ‘tempo: afastamento’
zou-se o emprego das preposições, o que se ampliou nas línguas ro- (7) Aqueste des sa mininice sempre ouve coraçon de velho
mânicas. (D.S.G., 2, 1, 3)
Com o objetivo de dar continuidade à pesquisa sobre os proces- (8) A quinta feira das Endoenças, des a quinta feira à missa,
sos de gramaticalização, parte-se da análise das preposições docu- [...] (J.B., p. 286, l. 183)
mentadas nas obras de João de Barros acima citadas, estabelecendo-se EM: ‘espaço: localização’
comparações com esses elementos no português do século XIV (Diá- (9) Tu deves saber [...] que no moesteiro [...] faleceu o azeite
logos de São Gregório), estudado anteriormente, na minha tese de velho (D.S.G., 1, 15, 3)
Doutorado, que tem como corpus os dois primeiros livros dos Diálo- (10) [...] conversám de cinquenta e séte mil álmas na térra do
gos de São Gregório, a fim de investigar mudanças que ocorreram Malabar (J.B.,p. 240, l. 31).
com algumas preposições que introduzem adjuntos adverbiais e com- SEGUNDO: ‘noção: adequação’
plementos locativos de verbos circunstanciais. Conseguiu-se um nú- (11) A lei de Cristo, segundo nóssa fé, é à que [h]á-de salvár
mero significativo de segmentos para a realização deste trabalho: 2.298 a todos (J.B., p.367, l.1431)
segmentos de texto foram selecionados dos Diálogos de São Gregório (12) E esto fazia cada dia segundo o custume que naquel tem
e 2.291 da obra de João de Barros. po era (D.S.G., 2, 23, 14)
No século XVI, João de Barros (1971: 347, 355) define a pre- SEM: ‘noção: exclusão’
posição como uma parte da gramática que se põe entre as outras por (13) [...] pareçe-nos que ficáva ésta sem fundamento, [...] (J.B.,
ajuntamento ou por composição. Além das preposições propriamen- p. 292, l.18)
te ditas, ele considera como preposições aquelas que são usadas como (14) [...] mostrou que o seu recebimento sen culpa non foi
prefixos, no processo de formação de palavras. Observa que esses (D.S.G., 1, 25, 21)
elementos possuem figuras singelas ou simples e dobradas ou com- SOBRE: ‘espaço: situação superior’
postas, salientando que essas últimas são mais eficazes. Também tra- (15) Água benta que se aspérge sobre o povo é [...] (J.B., p.
ta da regência das preposições, focalizando o papel das mesmas na 265, l.17)
marcação dos casos, como: de e do para o genitivo; a, ao e para para (16) Vai e deita desta agua beenta sobrelo corpo daquel que
o dativo; a, ante, diante, antre, contra, per e por para o acusativo; jaz enfermo (D.S.G., 1, 28, 38).
e com, em, no, na e sem para o ablativo.
Ao estabelecer comparação entre os corpora dos dois séculos, A preposição des continuava em uso no século XVI, pois Duarte
observa-se que as preposições podem ser agrupadas de formas diver- Nunes de Leão, na Ortografia e origem da língua portuguesa, publicada
sas. nos inícios do século XVII, corrige desdeque para desque (Leão,
No primeiro grupo, há preposições que aparecem com formas 1983: 164).
e sentidos equivalentes. É o caso, por exemplo, das preposições: ante,
contra, de, des, em, segundo, sem e sobre, exemplificadas a seguir: Algumas preposições apresentam formas equivalentes nos dois
ANTE: ‘espaço: diante de’ autores, porém, em João de Barros, aparecem com novos sentidos. É
(1) [...] apanhou todolos pedaços da lampada que pôde apa o que ocorre com as preposições a, com, per e por.
nhar e pose-os todos ante o altar (D.S.G., 1, 14, 3) Assim, a preposição a, nos séculos XIV e XVI, além de estar

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documentada nos sentidos de “Espaço: direção, localização”, “Tem- Em 1606, Duarte Nunes de Leão, na Ortografia e origem da
po: localização pontual”, “Noções de: modo, fim, lugar abstrato”, língua portuguesa, recomenda o uso de para em lugar de pera (Leão,
aparece, no século XVI, com o sentido de “Noção: meio”, como no 1983: 164), o que comprova que, apesar de, naquela época, as duas
exemplo abaixo: formas coexistirem na língua, já havia indício de mudança. Na obra
(17) [...] como temos África e Ásia, à conquista das quáes nos de João de Barros, encontra-se registrada apenas a forma pera.
máis demos [...] (J.B., p. 401, l. 250).
Do mesmo modo, a preposição com, além de estar documenta- Há preposições documentadas no século XVI, que não foram
da nos sentidos de “Espaço: companhia, oposição” e “Noção: modo, encontradas no século XIV. É o que ocorre, por exemplo, com as
meio, instrumento e oposição”, aparece no século XVI com os senti- formas mediante e conforme, ambas gramaticalizadas, no portugu-
dos de “Tempo: adição” e “Noção: fim”, como nos exemplos: ês, por meio do processo de recategorização sintática.
(18) O Natal, com três dias, jejuar e guardár (JB., p. 287, l. 216) MEDIANTE
(19) I Caridade com Deos e com o próximo (J.B., p. 260, l. 75) Segundo A. G. Cunha (1991: s.v. médio), a preposição medi-
A preposição per, além de estar registrada nos dois séculos ante vem do latim medians,-antis, particípio presente do verbo
citados nos sentidos de “Espaço: percurso”, “Tempo: duração” e no- mediare (‘mediar’) e encontra-se documentada a partir do século
ções abstratas de “modo, meio, instrumento e causa”, aparece no sen- XVI.
tido de “Noção: fim”, como exemplificada a seguir: E. Dias (1970: 165) assinala que a preposição mediante é uma
(20) [...] nam sábem rezár ua oraçám per éla, e pela tirada forma do antigo particípio presente empregado, oracionalmente, com
sem máis correntes [...] (J.B., p. 419, l. 416) um sujeito, que passou a funcionar em português como preposição.
E finalmente, a preposição por, que aparece nos dois séculos Como já se observou, inicialmente, mediante possuía a fun-
estudados com os sentidos de “Espaço: percurso” e noções abstratas ção de particípio, tratando-se, portanto, de um adjetivo verbal. Como
de “fim, instrumento, causa e modo”, apresenta no século XVI o sen- adjetivo, o particípio concorda com o substantivo a que se refere.
tido de “substituição ou permuta”, como no exemplo abaixo: Entretanto, à medida que mediante desempenha a função de prepo-
sição, passa por uma mudança, estabelecendo entre seus comple-
(21) [...] dizemos fidálgo por filho de álgo, a mó de falár por
mentos uma relação não mais de concordância, mas de regência.
a módo de falár (J.B., p. 359, l. 1265).
A preposição mediante é empregada na acepção de ´por meio
de´, ´por intermédio de´, ´com auxílio ou intervenção de´, mantendo
Um terceiro grupo está constituído de preposições que, no sé-
o seu sentido de base do latim, como se vê no seguinte exemplo:
culo XVI, apresentam formas modernas. São elas: depois, entre, até
e após, como se pode observar nos exemplos que se seguem: (32) [...] e que depois de si nam quérem cáso senám mediante
preposiçám [...] (J.B., p. 353, l. 1140).
DEPOIS
(22) [...] ca despolo apostolo San Pedro non ouvira que tal
Como já foi assinalado, ocorreu o processo de recategorização
cousa fosse feita (D.S.G., 2, 7, 7)
sintática, quando foi usada a forma verbal de particípio presente
(23) Todo verbo que sinifica comprazer, obedeçer [...] quér
mediante como preposição mediante.
depois de si dativo [...] (J.B., p. 352, l. 1124)
ENTRE CONFORME
(24) [...] que leixou alguen antre tantos monges que o seguisse Segundo A G. Cunha (1991: s.v. conforme), conforme vem
en fazer vertudes e maravilhas assi como el fazia ? (D.S.G., 1, 5, 22) do latim conformare (´dar forma´, ´conformar´), empregado, em por-
(25) Ésta dificuldáde máis é entre os Latinos e Gregos pola tuguês, como adjetivo de dois gêneros, advérbio e conjunção, no sen-
variaçám dos casos [...] (J.B., p. 314, l. 434) tido de ´conformado´, ´em conformidade´, ´segundo as circunstânci-
as´, desde o século XIV.
ATÉ
C. Cunha e L. Cintra (1995: 543) assinalam que conforme é
No que se refere à preposição até, que, no século XIV, aparece
uma preposição acidental porque, embora pertencendo a uma outra
sob as formas ata e atees, no século XVI, encontra-se uma variação
classe gramatical, funciona, às vezes, como preposição.
entre até e té, sendo essa última a forma mais empregada por João de
Na obra de João de Barros estudada, encontram-se documen-
Barros. Esse autor (1971: 358) defende o uso da forma té, conside-
tados tanto o adjetivo conforme como a preposição conforme, dele
rando até como um tipo de barbarismo que denomina próstesis e
proveniente.
observa que ocorre esse “vício”, quando se acrescenta alguma letra
Como adjetivo, registra-se o seguinte exemplo:
ou sílaba ao princípio de qualquer dicção, como acontece quando se
(33) [...] pois tem preçeitos de vida e lêteras que lhe ordenará
diz até qui em lugar de té qui. Confira os exemplos:
os prinçípios confórmes à sua idade e magestade do seu san
(26) E viindo assi com grandes choros ata o logar hu jazia o gue? (J.B., p. 390, l. 11).
corpo do homen morto (D.S.G., 1, 31, 10) Como preposição, conforme está documentada no sentido abs-
(27) [...] ca viron hua carreira escontra ouriente e começava- trato de ´adequação´, como exemplificada a seguir:
se na cela e estendia-se atee-no ceo (D.S.G., 2, 37, 8)
(34) [...] mas tomarei um meio confórme a tua idáde e minha
(28) E acreçentou daquele lugár laudamus te, até o fim déla
possibilidáde (J.B., p. 444, l. 730).
(J.B., p. 267, l. 19)
(29) É tam grande que chega té o çéo (J.B., p. 367, l. 1436) Todas as preposições provenientes de verbo foram, primitiva-
mente, adjetivos, deixando depois de concordar com o substantivo,
APÓS
ao assumir a função de preposição (Novo manual de língua portugueza
A preposição após substitui a forma empós, documentada no
1926: 506).
século XIV, como se vê nos exemplos abaixo:
(30) [...] querendo tirar o pee empós si, empeçou-lhi o çapato Finalmente, observa-se, na obra de João de Barros, a presença
en huu paao da sebe e jouve assi (D.S.G., 1, 5, 36) de um grande número de locuções prepositivas, o que denuncia, se-
(31) E, a rogo de Sam Jerónimo, Damaso, Papa, instituiu que, gundo S. Svorou (1993: 38) e outros autores, o primeiro passo para
após os sálmos, se repetisse este glória patri [...] (J.B., p. 267, l. 7). o processo de gramaticalização, estágio em que os elementos encon-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 661


tram-se enlaçados. Nesse caso, o morfema lingüístico, na maioria das de sua substância semântica e, por outro lado, adquirem-na no novo
vezes, espacial e o seu complemento constituem unidades fonológicas ambiente sintático. Além do mais, a gramaticalização de tais elemen-
independentes, embora componham uma unidade maior, figurando tos foi seguida de reanálise, pois eles passaram a ser empregados em
em formas estereotipadas com tendência à cristalização. Entre as lo- novo ambiente sintático, assumindo o papel de preposição e estabe-
cuções prepositivas encontradas, no século XVI, algumas já vêm sen- lecendo, então, relação de regência.
do usadas desde o português arcaico. A maioria delas inicia o seu À guisa de conclusão, pode-se dizer que, ao comparar as pre-
processo de gramaticalização através da recategorização sintática, posições documentadas nas obras dos dois séculos estudadas, foram
quando alguns elementos, como nomes ou advérbios, entram na cons- encontrados os seguintes grupos: a) manutenção da preposição latina
tituição dessas locuções. Por um lado, os nomes causa, cerca, destra, (com o mesmo sentido e com extensão de sentido); b) preposições
face, favor, fronte, galardám, maneira, meio, propósito, virtude e com formas modernizadas; c) surgimento de novas preposições; e d)
vontade passam a compor, respectivamente, as locuções por causa formação de locuções prepositivas. Esses fatos observados demons-
de, acerca de, a destra de, em face de, em favor de, defronte de, tram que as preposições continuaram seu processo de gramaticalização
por galardám de, à maneira de, em meio de/ per meio de, a no português arcaico e nos inícios do português moderno, o que con-
propósito de, em virtude de, per vontade de, algumas delas tinua ocorrendo no português atual.
exemplificadas a seguir:
(35) Mas, por cáusa da bõa composiçám das lêteras, o u pe Referências bibliográficas
queno [...] (J.B., 379, l. 1673)
BARROS, João de. Gramática da língua portuguesa; cartinha, gra-
(36) Ésta dificuldáde máis é entre os Latinos e Gregos pola
mática, diálogo em louvor da nossa linguágem e diálogo da vici-
variaçám dos cásos que àcerca de nós e dos Hebreos (J.B., p.
osa vergonha. Lisboa: Publ. da Faculdade de Letras da Univer-
314, l. 435)
sidade de Lisboa, 1971.
(37) Subio aos çéos e está a destra de Deos Pádre todo pode
CUNHA, Antônio Geraldo da. Assistentes: Cláudio Mello Sobrinho
roso (J.B., p. 281, l. 72)
et alii. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portu-
(38) [...] diz éstas palávras a que [h]avemos de responder
guesa. 2. ed. rev. e acresc. de um suplemento. Rio de Janeiro:
suas respóstas que vam de fronte délas: [...] (J.B., p. 273, l.
Nova Fronteira, 1991. 839 p.
75)
CUNHA, Celso, CINTRA, Luis Felipe Lindley. Nova gramática do
(39) E assi temos alguas lêteras dobrádas à maneira dos português contemporâneo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Frontei-
Hebreos: [...] (J.B.,p.296, l. 58) ra, 1985. 714 p.
(40) [...] quando te ocorrerem a prepósito da matéria (J.B., p. DIAS, Augusto Epiphanio da Silva. Syntaxe histórica portuguesa. 3.
415, l. 48) ed. Lisboa: Livraria Clássica, 1954. 442 p.
(41) [...] mas, em virtude déla, respondamos [...] (J.B., p. 276, LEÃO, Duarte Nunes de. Ortografia e origem da língua portuguesa.
l. 130). Introdução, notas e leitura de Maria Leonor Carvalhal Buescu.
Por outro lado, os advérbios debaixo, diante e trás entram, [s. l.]: Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, 1983. 335 p. 1. ed.
respectivamente, na formação das locuções debaixo de, diante de, 1606.
de trás de/ por detrás de, algumas delas abaixo exemplificadas: MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. A mais antiga versão portuguesa
(42) Epíteton quér dizer postura debáixo de nome (J.B., p. dos quatro livros dos Diálogos de São Gregório. Tese de
366, l. 1419) Doutoramento, Universidade de São Paulo, 1971. 4 v. mimeogr.
(43) [...] que iam cantando deante de Cristo o dia de Ramos NOVO Manual de língua portugueza. Grammatica historica.
(J.B., p. 269, l. 61) F.T.D.Rio de Janeiro/São Paulo/ Belo Horizonte: Alves. 1926.
(44) [...] sempre acharemos o artigo detrás do nome que ele p. 506-507.
rége [...] (J.B., p. 379, l. 1664). POGGIO, Rosauta Maria Galvão Fagundes. Relações expressas por
preposições no período arcaico do português em confronto com
A gramaticalização dessas locuções não se dá apenas mediante o latim. Tese de Doutoramento, Universidade Federal da Bahia,
mudança sintática, quando nomes e advérbios passam a ser usados 1999. 3 v.
em novo contexto, mas também através de mudança semântica, uma SVOROU, Soteria. The grammar of space. Amsterdam/ Philadelphia:
vez que, ao comporem as locuções, eles, por um lado, perdem parte John Benjamins, 1993. 277 p.

662 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Demonstrativos, dêiticos e anafóricos no século XVI1
Sílvia Santos da Silva Gonçalves
Universidade Federal da Bahia – UFBA

ABSTRACT: In this paper, it is intended to observe, in three texts from the XVI century, how demonstratives worked, related to the structure of their
system: whether dichotomic or classical trichotomic. The analysis showed that, in those texts, both a dichotomic and a no-classic trichotomic system
were present, varying according to demonstrative function and in relation to the type of text.
PALAVRAS-CHAVE: Demonstrativos, dêiticos, anafóricos, diacronia

0. Introdução
Durante a elaboração da dissertação tentou-se adotar os Através desse gráfico percebe-se que os dois diálogos têm a
critérios e a nomenclatura existente com relação à referência dos mesma disposição, guardadas as devidas proporções, que é distinta da
demonstrativos, a saber: endofórica: anáfora, referência ao que já foi narrativa, cuja curva é muito diferente, podendo-se assegurar, a partir
dito; catáfora, referência ao que será enunciado; exofórica: dêixis disso, que a natureza do texto é um dos fatores condicionantes no
espacial, situação da pessoa/elemento no espaço; dêixis temporal, emprego dos demonstrativos em cada uma das funções encontradas
situação da pessoa/elemento no tempo. Contudo, isso não foi possível, nos textos em estudo. Os diálogos, na dêixis temporal, têm o número de
pois em alguns contextos, em que as formas demonstrativas se ocorrências inferior ao da anáfora-dêitica, contrariamente, ao que ocorre
encontravam, às formulações teóricas existentes e, consequentemente, nas Décadas, em que as ocorrências da dêixis temporal são superiores
suas denominações não se adequavam, por esse motivo foi necessária às ocorrências de anáfora-dêitica, isso mostra que em um diálogo não há
tanta necessidade de se estar utilizando a função dêitica temporal, pois
a criação de uma categoria, anáfora-dêitica, que é a identificação da
os interlocutores compartilham a mesma situação temporal, já nas
referência no próprio texto, mas com expressão semântica dêitica
Décadas o maior número de ocorrências, em relação à anáfora-dêitica,
espacial, e a adoção de uma terminologia de Karl Bühler, dêixis “am se justifica pela distância entre o espaço de tempo do narrador e o
phantasma”, que é a ausência de referência no próprio texto, mas com tempo dos fatos narrados, ou seja, João de Barros não é contemporâneo
referência ao genérico pertencente à memória compartilhada, sabe-se aos fatos que narra, levando-o a ter de valer-se da referida função.
que essa teoria/denominação não é muito bem aceita por alguns Na dêixis espacial o número de ocorrências é igual ao de
especialistas, mas encaixou-se perfeitamente nos casos em que os dêixis temporal no Diálogo em Louvor de Nossa Linguagem, no Diálogo
conceitos, normalmente utilizados, não satisfaziam. Dessa forma da Viciosa Vergonha, já nas Décadas da Ásia, as ocorrências de dêixis
chegou-se ao seguinte sistema de referenciação: espacial são três vezes superiores às ocorrências na função dêitica
temporal, isso pode ser intrigante a partir do momento em que se
visualiza no gráfico a curva parecida para os diálogos também, mas não
se deve esquecer que no caso do Diálogo em Louvor de Nossa
Linguagem é apenas uma ocorrência, isso impede que se saiba qual
seria, na verdade, a tendência curvilínea, já que esses dados mostram a
manutenção em relação à dêixis temporal.
A diferença entre esses dois tipos de textos se faz realmente
presente na função dêitica “am phantasma”, em que o número de
ocorrências dos diálogos cresce sensivelmente, em relação à dêixis
espacial, e nas Décadas ocorre exatamente o contrário, o número de
ocorrências de dêixis “am phantasma” é quase duas vezes menor em
relação à dêixis espacial. A partir desses dados pode-se entrever que na
narrativa-histórica o autor tem maior cautela na utilização de dados
genéricos, pois ele sabe que está escrevendo para um número muito
vasto de pessoas, as quais podem não compartilhar das informações
1. Os demonstrativos no século XVI por ele utilizadas, e nos diálogos o emprego dessa função se faz presente
Nesta comunicação tratar-se-á apenas dos textos que compuse- pelo fato de que, de alguma forma, a “presença” do interlocutor sinaliza
ram o século XVI, são eles: Diálogo em Louvor de Nossa Linguagem, que a referência ao genérico é possível, ou melhor, o locutor sabe quais
Diálogo da Viciosa Vergonha e Livro Quinto da Primeira Década da os elementos fazem parte da memória compartilhada por ambos,
Ásia. Serão discutidos apenas os traços em comum e/ou diferentes que precisamente, pela presença de seu receptor no momento da enunciação2 .
esses textos apresentem, pois pela escassez de tempo e espaço não
poderá ser feita uma análise detalhada de cada um dos referidos textos.
No gráfico 1 pode-se contrapor as ocorrências das funções
desempenhadas pelos demonstrativos: 1
Este trabalho é parte da dissertação intitulada Demonstrativos, dêiticos e
anafóricos: duas sincronias em confronto (séculos XV e XVI), defendida em
agosto de 2000, no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia,
sob a orientação da Professora Doutora Rosa Virgínia Mattos e Silva.
2 Sabe-se que no caso do diálogos em estudo não se tem certeza da
presença ou ausência do interlocutor na situação comunicativa, pois se
trata de uma criação/recriação escrita, o que leva a outro tipo de situa-
ção, todavia, de alguma maneira, essa presença, mesmo sendo um texto
escrito, é marcada porque João de Barros tem de, todo o tempo, escre-
ver ou transcrever a fala do filho, tornando viva a presença do seu
interlocutor.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 663


Tem-se em confronto um diálogo com uma narrativa- demonstrativo é empregado. Na função anáfora-dêitica também só
histórica, em que, no primeiro, a presença do locutor, não se tem como ocorrem as formas de aquele, indicando que João de Barros nessas
saber se é física ou imaginária no caso desses textos, além do fato do duas últimas funções tem preferência por esse tipo de demonstrativo.
assunto ser comum aos dois, favorecem o emprego da dêixis “am Nas Década da Ásia o sistema de demonstrativos quanto à
phantasma” em oposição a uma narrativa-histórica, em que o fato de função anafórica mostrou-se dicotômico, na função catafórica o
ter um interlocutor indefinido, mesmo com um assunto que seja de resultado é dicotômico não clássico, por causa do condicionamento
domínio público, favorecerá menos do que quando se tem um dado pela precedência da preposição à forma demonstrativa esse. Já
interlocutor definido. A relação é de mais ou de menos probabilidade, na função dêitica espacial e dêitica temporal o sistema também é
que será empregada, de acordo com as peculiaridades do texto, e não dicotômico, sendo que no penúltimo caso não há nenhuma ocorrência
apenas natureza do texto, podendo-se, nesses casos, utilizar de esse e nem de sua variante neutra isso. Como se pode depreender
argumentações distintas para explicar o maior ou menor uso da dêixis do exposto, o sistema utilizado no livro quinto da primeira Década da
“am phantasma” no mesmo texto, porém, frente a textos de naturezas Ásia de João de Barros em relação às funções clássicas é dicotômico.
diferentes. Constata-se, também, que a situação em que o texto foi Já com respeito a dêixis “am phantasma” e a anafóra-dêitica não se
escrito pode influenciar mais do que o contexto. pode afirmar se o sistema é dicotômico ou tricotômico, já que o autor
Resumindo, se se fizer uma escala de favorecimento para a utiliza em ambos os casos uma única forma o demonstrativo flexional
utilização da função dêitica “am phantasma” ter-se-ia: aquele, ou seja, no máximo poder-se-ia chamar esse emprego de
1) diálogo; monotômico. Diferentemente dos dois diálogos, tirando a função
2) narrativa-histórica com interlocutor indefinido e anafórica, as maiores ocorrências são de dêiticos; a explicação para o
assunto conhecido; maior emprego dessas função, depois da anafórica, é que o autor narra
3) narrativa-histórica com interlocutor definido e assunto fatos passados e refere-se a lugares distantes, ou seja, constantemente
novo3 . o autor terá que utilizar-se das funções dêiticas para situar os leitores
Após a análise do gráfico 1 viu-se que o tipo de texto aliado no tempo e no espaço.
ao tipo de interlocutor pode favorecer mais ao uso de uma função do
que de outra, agora ver-se-á se isso influencia no tipo de sistema. Os 2.Formas não metafonizadas
sistemas dicotômico e tricotômico que designou-se clássicos são Esse tópico entrou nesta comunicação porque ele mostrará
sistemas se estruturam a partir de outros fatores, e não a distância a diferença existente entre o século XV e o XVI em relação ao processo
textual, como nos clássicos, para a escolha do sistema. Ver-se-ão, a morfológico sofrido por esses elementos, ou seja, o século XVI é uma
partir de então, resumidamente, os sistemas de cada texto: marco em relação a morfofonêmica dos demonstrativos. As formas
No Diálogo em louvor de nossa linguagem pode-se concluir não metafonizadas são aquelas que, na história do português, não
que o sistema de demonstrativos desse texto é: na função anafórica tiveram alteração do timbre da vogal tônica sob a influência de uma
tricotômico não-clássico, grosso modo, utilizando este para referir o vogal final (BUENO, Francisco, 1955:99-100). No caso específico
que já foi dito dentro do discurso do mesmo locutor, esse para referência dos demonstrativos tem-se as seguintes mudanças: 1) O timbre de um
a elemento já citados pelo interlocutor e aquele para se referir ao que e tônico se torna aberto pela influência de um a final: [ε]sta, [ε]ssa,
já foi dito e está mais distante do que nas referências em que se usam aqu[ε]la; 2) A vogal final u fecha o timbre do e tônico até i: [e7]sto >
este e esse. Na função catafórica não se pode afirmar qual o sistema isto – [e7]sso > isso – aqu[e7]lo > aquilo. No gráfico 2, a seguir, só
utilizado pelo autor, já que ele utiliza apenas as formas de este. Na está representado a mudança do tipo 2, porque a do tipo 1 não pode
dêixis espacial, como na catáfora, não se pode fazer uma conclusão ser representada na grafia, veja-se:
segura, porque o autor utiliza apenas a forma este uma única vez,
contudo esse emprego difere das recomendações normativas, ou melhor,
João de Barros usa a forma de primeira pessoa para referir-se ao
reinos que estão fora do seu campo mostrativo. Na dêixis temporal
tem-se também uma única ocorrência com na função dêitica espacial,
o emprego segue as prescrições normativas, ou seja, utiliza a forma
este para se referir ao tempo e ao espaço nos quais está inserido. Na
dêixis “am phantasma”, ocorrem apenas as formas flexionais de aquele,
todas com o traço de generalidade, já na anáfora-dêitica ocorrem,
também, as formas de aquele, mostrando que nessas duas funções a
forma demonstrativa que melhor as representa é a da não pessoa.
No Diálogo da Viciosa Vergonha, João de Barros, na função
anafórica utiliza, na maioria das vezes, este para a referência a algo Através do gráfico acima verifica-se que entre 1418 e 1454, quando foi
anteriormente citado no seu próprio discurso, e esse para a referência escrita a Crônica de Dom Pedro, o número de formas não
a algum elemento da fala do seu interlocutor. Na função catafórica a metafonizadas é quatro vezes maior, que as já metafonizadas, tendo,
preferência, majoritária, é pelas formas de este, com trinta e cinco no referido período, as duas curvas sentidos opostos. Em 1500, ainda
formas, contra três formas de esse. Na função dêitica espacial das dez século XV, mas que se prefere denominar de limiar do século XVI, as
ocorrências, nove são das formas de este e apenas uma é de esse, mas formas não metafonizadas têm apenas uma ocorrência frente a trinta e
essa única ocorrência parece seguir a recomendação tradicional, nove metafonizadas. Veja-se que se está no mesmo século, porém,
entretanto, como já se fez a ressalva, trata-se de uma ocorrência, que essa mudança fonética estava em vias de concretização.
talvez não esteja representando o real uso. Na função dêitica temporal No século XVI, em 1540 e 1552, essa mudança já se mostra
só há dois casos, e ambos ocorrem com as formas de este, não se concretizada, pois não se tem nenhuma ocorrência das formas não
podendo afirmar, dessa forma, qual o tipo de sistema utilizado. Na
função dêitica “am phantasma” o autor só utilizou as formas de aquele,
que se mostraram preferenciais nesse tipo de função, assim, não se
3
pode conjecturar sobre o tipo de sistema, pois apenas um tipo de Nesse tipo de texto tem-se a Carta de Pero Vaz de Caminha, que foi
utilizada na dissertação como parte do Corpus do século XV.

664 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


metafonizadas, pelo menos nos textos sob análise. Em relação à curva períodos feita, também, através de dados intralingüísticos e não apenas
que tem um aumento em 1540 e uma queda em 1552 dando a impressão através de indícios sócio-históricos.
de que se caminha para uma queda no emprego dessas formas, gostar-
se-ia de esclarecer que tal curva deve-se ao fato de se ter juntado os Referências bibliográficas
dados dos dois Diálogos e não, como pode aparentar, uma tendência
à diminuição de uso das formas metafonizadas em 1552. BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral. Trad. Maria
Segundo Mattoso Câmara (1991:165-166), o processo de da Glória Novak e Maria Luiza Neri. 2. ed. Campinas: Pontes,
metafonia na diacronia da língua interferiu com a regularidade da 1988.
mutação das vogais longas e breves latinas para fechadas e abertas no CÂMARA JR., Joaquim Mattoso. História e estrutura da língua
português, e na sincronia do português moderno estabeleceu o processo portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1975.
sub-mofêmico da alternância vocálica. Mattos e Silva (1991: 51-52) CARDOSO, Sílvia Helena Barbi. Demonstrativo, dêixis e
alerta para a separação entre o processo de assimilação chamado de interdiscurso. Campinas, 1994. (Tese de Doutorado).
metafonia, que é a abertura da vogal acentuada, e as inflexões vocálicas, CASTILHO, Ataliba Teixeira de. Os mostrativos no português falado.
cujo resultado é o fechamento da vogal acentuada condicionado pela In: CASTILHO, Ataliba Teixeira de. (org.). Gramática do
contigüidade de determináveis elementos fônicos. Afirma que em português falado. São Paulo: UNICAMP/FAPESP, 1993. v.3.
Corpus analisado por Clarinda Maia, entre o século XIII e o XVI, no CID, Odirce, COSTA, Maria Cristina, OLIVEIRA, Célia T. Este e
fim do século XIII há, esporadicamente, a forma isto e em grande esse na fala culta do Rio de Janeiro. Estudos Lingüísticos e
escala a forma esto. Literários, Salvador, v. 5, dez. 1986.
Amini Hauy (1989: 43) assegura, baseando-se nos limites DUCROT, Oswald. Princípios de semântica lingüística: dizer e não
do período arcaico estabelecidos por Carolina Michaëlis de Vasconcelos dizer. Trad. Carlos Vogt, Rodolfo Ilari e Rosa Attié Figueira. São
e Serafim da Silva Neto, que na primeira fase do período arcaico – Paulo: Cultrix, 1977.
século XII (sic) a 1350 ou 1385 – encontravam-se as formas não LAHUD, Michel. A propósito da noção de dêixis. São Paulo: Ática,
metafonizadas, esto, esso e aquelo, e à segunda fase – 1350 ou 1385 ao 1979.
século XVI – pertencem as formas metafonizadas, isto, isso e aquilo. LAPA, Manuel Rodrigues. Estilística da língua portuguesa. 3. ed. Rio
Essa afirmação da autora não está totalmente de acordo com os de Janeiro: Acadêmica, 1959.
resultados encontrados, pois as formas não metafonizadas ainda são a LYONS, John. Sémantique linguistique. Trad. Jacques Durand et
maioria na Crônica de Dom Pedro, que está inserida, dentro da Dominique Boulonnais. Paris: Larousse, 1980. (Langue et
classificação supracitada, na segunda fase do português. Isso indica Langage).
que para se estabelecerem os limites cronológicos do processo de MONTEIRO, José Lemos. Pronomes pessoais: subsídios para uma
metafonia nos demonstrativos do português é preciso uma seleção gramática do português do Brasil. Fortaleza: UFC, 1994.
maior de textos, para se verificar se a hipótese do limites da autora se NASCENTES, Antenor. Este, esse. In: Miscelânea a Clóvis Monteiro.
confirmam, mostrando que os dados da Crônica ou refletem um Rio de Janeiro: Professor, 1965.
arcaísmo do autor, ou se os limites para o processo de metafonia, no PAVANI, Sílvia. Os demonstrativos este, esse e aquele no português
caso dos demonstrativos, se dá mais tardiamente, pela análise feita a culto falado em São Paulo, 1987. (Dissertação de Mestrado).
partir do final da segunda metade do século XV, não coincidindo, TEYSSIER, P. Le système des déictiques spatiaux en portugais aux
rigorosamente, com as delimitações preestabelecidas. Esses dados XIVe, XVe et XVIe siècles. Cahiers de Linguistique Hispanique
remontam à sugestão dada por Mattos e Silva de uma delimitação de Médiévale. Paris, n. 6, 1981.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 665


A questão da relação entre fala e
canto e a coordenação dos gestos
Beatriz Raposo de Medeiros
Universidade Estadual de Londrina
Universidade de Campinas

ABSTRACT Durations were measured in nonsense words containing the stops /p,t,k/ in both singing and speech . Approximate doubling of overall
duration occurred in singing as compared to speech. However, statistical tests showed that this lengthening does not affect sung stops.
PALAVRAS-CHAVE : fonética acústica, duração, fala e canto.

Introdução
Em um estudo preliminar visando explicar a baixa
inteligibilidade para o canto erudito (v. Medeiros, 2000) verificou-se
que a explosão das oclusivas era diminuta, o que nos levou a pensar
na seguinte hipótese: as consoantes são rapidamente pronunciadas
no canto, independente da duração da vogais. Isto nos levou a com-
por um desenho experimental para toda a tese de doutorado - na qual A gravação foi realizada a 44 kHz, em cabine insonorizada do
se insere o trabalho aqui apresentado - em que a partir do logatoma LAFAPE1 ; utilizando-se uma Fita DAT Sony. A taxa de elocução2
/la‘CV /, além de desvendarmos o padrão formântico das vogais, foi de 92 batidas por minuto, tanto para fala como para o canto3 . Isto
pudéssemos explorar fenômenos de coarticulação e estrutura tempo- resultou numa alteração de andamento em relação à partitura original,
ral da fala e do canto. Este último aspecto é o que nos interessa na que era de 72 batidas por minuto e, portanto, um tanto quanto lento
questão da relação entre fala e canto que ora discutimos. para ser produzido na fala. O andamento escolhido neste experimento
pareceu-nos bastante adequado, pois era natural na fala e não desvir-
Metodologia tuava a composição musical, que pedia um andamento calmo.
Digitalizaram-se os dados a 25.600 Hz , utilizando-se o software de
A frase veículo contendo o logatoma / la’CV/ “Canto /la’CV/ análise de fala Multi-Speech modelo 4300b da Key Elemetrics. Medi-
baixinho numa velha canção de ninar” foi repetida 5 vezes por 5 ram-se o logatoma do (onset de /l/ até o offset da vogal ) e a consoante
cantoras (sopranos) em 2 modalidades diferentes: fala e canto. Obti- (onset do silêncio até o onset da vogal), visualizando-se a forma de
vemos, no total, 1050 ocorrências, nas quais encontram-se as 7 vo- onda e o espectograma.
gais do PB em posição acentual tônica ([a], [], [e], [i], [], [o] e
[u]) e as consoantes [k], [p] e [t], faladas e cantadas. A frase escolhi- Análise estatística
da pertence ao cancioneiro erudito brasileiro e foi extraída da Canti-
Os testes estatísticos comparando fala e canto foram feitos da
ga de Ninar de Francisco Mignone. Tanto o texto da canção, como a
seguinte maneira: 1) a partir dos valores absolutos das medidas de
tessitura em que esta foi composta, eram perfeitamente compatíveis duração do logatoma e da consoante e 2) a partir da razão entre a
com as necessidades do experimento. Uma pequena modificação teve duração da consoante e a duração do logatoma. Os programas de
de ser feita: o logatoma foi inserido na frase da canção, sem alterar análises estatísticas utilizados foram: o Excel, com o qual rodamos
altura, de forma alguma, nem ritmo de forma substancial. A frase testes-t para (1) e o SigmaStat, com o qual foi possível rodar o teste
original é a transcrita abaixo, numa partitura cuja tonalidade é mi Kruskal-Wallis e o teste de análise de variância para medidas repeti-
bemol maior e o tempo é 2/4, um compasso binário. das (Anova) para (2).
Na tabela 1, abaixo, apresentamos o resultado de cada um dos
teste-t em que a duração média dos logatomas falados foi comparada
à duração média dos logatomas cantados e a duração média das conso-
antes faladas foi comparada àquela das consoantes cantadas. Deve-
mos ressaltar, em relação aos logatomas cantados, que a duração mé-
dia destes é o dobro da duração média dos falados. Assim, o esperado
era um resultado de diferença significativa entre a duração do logatoma
O compasso binário é aquele que agrupa duas batidas, as quais falado e a do cantado, o que de fato aconteceu. Por outro lado, embora
podem ser organizadas da seguinta forma: ou subjazem à realização não esperado, obteve-se o resultado de diferença significativa entre
duração das consoantes faladas e cantadas. O que nos leva, por ora, a
de uma nota que dura por todo o compasso, portanto uma nota rela-
reconhecer um ligeiro encurtamento das consoantes cantadas em rela-
tivamente longa, ou agrupam uma ou mais notas. No caso da Cantiga
ção às faladas.
de Ninar, a nota longa é a mínima, e a nota que corresponde a uma
batida é a semínima. Para inserir o logatoma na frase da canção, foi
necessário encurtar a duração da sílaba /can/ de /canto/ a uma semínima
e a sílaba /to/ a uma colcheia; assim, ainda sobrava meio tempo a ser 1 LAFAPE: Laboratório de Fonética Acústica e Psicolingüística Experimental.
preenchido, o que foi feito com a sílaba /la/ e, no compasso seguinte, 2 Taxa de elocução é o mesmo que andamento, sendo este último termo
próprio da Música. Assim, as frases cantadas foram realizadas no andamen-
o primeiro tempo foi ocupado pela sílaba /CV/, mantendo-se o resto
to Andante, ou seja, aquele em que realizam-se 92 batidas por minuto.
deste compasso – assim como o resto da frase – conforme a partitura 3 Isto significou uma frase falada de 4 segundos e uma frase cantada de 8
original. O resultado obtido foi este: segundos, aproximandamente.

666 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


tanto maior a duração do VOT e da vogal, achado que implica no
aperfeiçoamento de testes de percepção e na caracterização acústi-
cas dos sons da fala.
O presente estudo, no entanto, ainda é modesto para abordar
questões como a de percepção e de propriedades acústicas da fala,
por trazer à tona a fala cantada que fica , em muitos momentos, re-
fém das restrições musicais próprias do canto, além do fato de não
contar com estudos antecedentes. Trata-se antes de investigar a fala
cantada em um dos muitos aspectos acústicos que possuem sua
O terceiro teste (Kruskal-Wallis) comparou as informantes contraparte na fala, visando encontrar respostas para as duas moda-
entre si a partir das razões consoante/logatoma e o resultado foi de lidades, ainda que partindo de um aspecto, à primeria vista, bastante
que não há diferença significativa entre elas; o que é um bom resulta- simples como o de duração.
do e nos permitiu dar seqüência à análise estatística. Seguimos então A comparação entre canto e fala envolvendo a razão entre
rodando o quarto teste (Anova, com medidas repetidas) em que consoante e logatoma em cada uma das modalidades revelou que a
comparamos as razões da fala com as razões do canto. Abaixo, uma consoante ocupa uma porção importante do logatoma falado, ao
tabela ilustrativa dos resultados obtidos neste quarto e último teste, passo que, no logatoma cantado, esta importância cai para 15% (ver
que indicam diferença significativa entre fala e canto no tocante à tabela 1). Então concluímos que o enunciado cantado realizado em
duração da consoante. taxa de elocução igual ao mesmo enunciado falado, alonga as vo-
gais5 (sobretudo aquela que é realizada “sobre” a semínima, que no
tempo 2/4 preenche um tempo inteiro), ao passo que reserva à con-
soante oclusiva surda o tempo apenas suficiente para ancorar a fala.
As duas modalidades investigadas apresentam-se bastante
diferentes no tocante à organização da estrutura temporal dos ges-
tos da fala. A coordenação dos gestos cantados minimiza as carac-
terísticas acústicas de silêncio e ruido que marcam a consoante,
pelo fato da voz cantada ser um instrumento musical de alturas e
não rítmico e assim necessitar das vogais, sons da fala que carre-
gam informação de freqüência . Mas não é apenas de vogais quais-
quer que o canto necessita. Como este último requer um trato vocal
O resultado deste último teste é realmente o que deve se desta- livre de maiores constrições, o que já atestamos em estudo prelimi-
car dentre os demais, sem, no entanto, deixar de comentar o resultado nar (Medeiros,op.cit), as vogais não arredondadas tendem a se cen-
tralizar, o que pode afetar a inteligibilidade do texto cantado. A
obtido em relação à duração das consoantes faladas versus as canta-
coordenação dos gestos falados, comparados aos cantados, privile-
das. De um lado temos que a razão consoante/logatoma, na fala, é
gia a consoante; vimos em Kessinger e Blumstein (op.cit) que quan-
maior do que a razão consoante/logatoma no canto, o que indica que
do a vogal se alonga, o VOT também se alonga; isto também deve
as oclusivas em questão (/p, t e k/), quando cantadas, ocupam uma
ocorrer quando há foco ou acento frasal, provavelmente aumentan-
porção não importante do logatoma comparativamente às faladas.
do a duração da consoante.
No canto, a vogal é alongada, o que é necessário para o preenchi-
Diante do que foi exposto no parágrafo acima, a fala falada -
mento do tempo indicado pela partitura musical. De outro lado, te-
para opormos à fala cantada - alonga segmentos consonânticos e
mos um resultado de significância positiva para a comparação entre
vocálicos coordenadamente, o que indica serem ambos importantes
os valores absolutos das durações das consoantes nas diferentes mo-
para a fala. Por sua vez, a fala cantada alonga as vogais, centraliza-as
dalidades - fala e canto - indicando para o fato de que, além de não
- quando necessário - e encurta as consoantes (oclusivas surdas, nes-
serem afetados pelo alongamento da vogal, as consoantes cantadas
te caso), o que indica que despreza os ruídos das constrições bem
são mais curtas que as faladas. Ainda é cedo, porém, para se levantar
como o silêncio dos fechamentos. Mesmo assim, o canto tem de pre-
a hipótese de que se trata, na modalidade cantada, de uma função
servar a fala e tal preservação se dá através da realização das conso-
entre vogal e consoante
antes, ainda que mais curtas.
Para o canto, o achado deste estudo prepara o terreno para
Discussão
estudos futuros sobre inteligibilidade. Para a fala, ressalta a impor-
Estudos envolvendo medidas acústicas de seqüências CV tância de mais estudos sobre produção de fala, em que se altere a
na fala – sobretudo quando a consoante é uma oclusiva – vêm se taxa de elocução do mesmo enunciado, a fim de obter respostas quanto
repetindo há cinco décadas; só para citar alguns exemplos: Halle et ao padrão rítmico e à mudança das línguas, atingindo outros níveis
al., 1957, Blumstein e Stevens, 1979, Forrest et al., 1988, Kessinger de análise lingüística para além do escopo da fonética.
e Blumstein, 1998, Stevens, 2000. A preocupação destes autores é
encontrar uma característica acústica invariante, que permite ao ou- Agradecimentos: à minha orientadora Eleonora Albano, à Vera
vinte reconhecer a consoante, apesar da variabilidade do sinal so- Pacheco, ao Jarbas Queiroz, ao Luís Antônio Santos e às minhas
noro, alguns discutindo efeitos coarticulatórios4 da seqüência CV. talentosas informantes.
Em termos de medidas acústicas de sons da fala cantada, podemos
citar White (1999), que analisa as freqüências formantes de vogais
isoladas, faladas e cantadas por crianças. Não há, no entanto, notí-
cia de estudos envolvendo duração de segmentos no canto. Dentre
os estudos acima citados, o de Kessinger e Blumstein (op.cit), dis- 4 Estes efeitos serão a questão central do estudo de coarticulação na fala e
no canto que fazem parte da tese de doutorado da autora.
cute o efeito da taxa de elocução na produção do VOT, duração da 5 Parece também alongar as soantes como /l/ e /n/, mas para afirmar isso
vogal e a duração do seguimento CV para as oclusivas surdas do seria preciso uma investigação acurada. Agradeço esta observação à Sandra
inglês. O resultado é de que, quanto mais lenta a taxa de elocução, Madureira.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 667


Referências bibliográficas KESSINGER, R. H. e BLUMSTEIN S. E. Effects of speaking rate on
voice onset time and vowel production: some implications for
BLUMSTEIN S. e STEVENS K. Acoustic invariance in speech
perception studies. J. of Phonetics, v. 26, p. 117 –128, 1998
production: evidence from measurements of the spectral
MEDEIROS. B. R. de. Estudo preliminar da inteligibilidade das vo-
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FORREST, K., G Weismer, P. Milenkovic, R. Dougall. Statistical
STEVENS, K. Diverse acoustic cues at consonantal landmarks.
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Phonetica, v. 57, p. 139 –151, 2000.
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WHITE, Peta. Formant frequency analyses of children’s spoken and
HALLE, M., G. W. Hughes, J.P. Radley. Acoustic properties of stop
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Journal of Voice, v. 13, n. 4, p. 570 –582, 1999.
1957.

668 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Realidade e sentidos:
dos jecas aos sem-terra
Sílvia Helena Barbi Cardoso
Faculdade de Americana

ABSTRACT: This work aims at showing throughout discourse two different places of subjectivity: the “caipira” and the “sem-terra” and the importance of
discoursive memory in constructing this subjectivity.
PALAVRAS-CHAVE: discurso, memória discursiva, sujeito, paráfrase.

“O caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silen-


cioso no recesso das grotas” (Monteiro Lobato)

0. Introdução que brota da terra como um urupê”, “predador das aves incautas e de
palmitos e da caça grande quando rareiam os palmitos”, “transgressor
É através de uma memória, chamada “memória discursiva”,
da lei”, “incendiário”, “Nero”, “um urumbeva qualquer, de barba rala,
que os discursos se constituem enquanto pré-construídos ou origem
amoitado num litro de terra litigiosa”, “aquele que se toca (“ao cabo-
de atos novos. A memória, entendida como estruturação de
clo toca-se”) como um cachorro inoportuno ou uma galinha que fare-
materialidade discursiva complexa e estendida numa dialética de re-
ja pela sala”, “semi-selvagem”, “uma quantidade negativa”.
petição e de regularização, “seria aquilo que, face a um texto que
A “cabocla”, mulher do Jeca, não mereceu melhor distinção:”a
surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os “implícitos”
sarcopta fêmea, com um filhote no útero, outro no peito, outro de
(quer dizer mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos cita-
sete anos à ourela da saia”. O “caboclinho”, por sua vez, é o “peque-
dos e relatados, discursos-transversos) de que sua leitura necessita: a
no sarcopte”, “pitinho na boca e faca à cintura”.
condição do legível em relação ao próprio legível” (Pêcheux,
Esses sentidos atribuídos ao trabalhador rural parecem estar
1999:52). “Sob o “mesmo” da materialidade da palavra abre-se en-
dentro da memória do discurso do senso comum, se considerarmos
tão o jogo da metáfora, como outra possibilidade de articulação
enunciados do discurso do cotidiano como: “o caipira é preguiçoso”,
discursiva... Uma espécie de repetição vertical, em que a própria
“tem terra sobrando no Brasil, mas o caipira não quer plantar”, “para
memória esburaca-se, perfura-se, antes de desdobrar-se em paráfra-
quem quer trabalhar, existe terra” etc.
se. (idem: 53). A memória não é, pois, “uma esfera plana”, de “con-
O discurso de Lobato não deve ser tomado como um discurso
teúdo homogêneo”, mas “um espaço móvel de divisões, de disjunções,
novo. Os sentidos de seu “caboclo” puderam significar e produzir
de deslocamentos e de retomadas, de conflito de regularização... Um
outros pela existência de uma memória, condição do dizível. Lobato
espaço de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contra-discurso”
fala de um lugar marcado, de uma certa posição de classe, a privilegi-
(idem:56).
ada classe dos proprietários ou donos do capital, no caso, proprietá-
A obra literária de Monteiro Lobato, escritor lido e relido no
rios de terra, fazendeiros, que, na história do nosso país, detiveram
Brasil, sobretudo pelas crianças, pode ser considerada um dos dis-
por um longo espaço de tempo não somente a posse dos latifúndios
cursos fundadores de uma certa memória, construtora de um certo
como também a hegemonia política do país. Foi um discurso de po-
sentido de “agricultor” e de uma certa imagem do trabalhador rural
der que tornou os sentidos de Lobato viáveis, ignorando-se o longo
brasileiro, se levarmos em conta a popularidade alcançada pelo seu
processo histórico de exclusão social, de que tem sido vítima o traba-
Jeca Tatu, personagem retomada em novos discursos (da imprensa,
lhador rural brasileiro.
do cinema, do cotidiano, da TV, da própria literatura etc.), ainda que
Historicamente, o processo de exclusão social do trabalhador
com óbvias modificações. O discurso do MST, em contrapartida, con-
rural e de expropriação da terra, no país, começou com a história do
forme veremos, pode ser considerado uma ruptura nessa memória.
descobrimento e da colonização e se manteve depois da independên-
cia. Foram dele vítimas os índios - escravizados primeiro e dizima-
1. Os sentidos de “caipira”
dos depois -, os escravos africanos, os mestiços, os imigrantes. As
O “caboclo1 ”, em Urupês de Lobato, é apresentado como o políticas brasileiras sempre favoreceram a hegemonia de pequenos
Jeca Tatu, um “selvagem real”, “feio”, “brutesco”, “anguloso”, grupos, que detêm o poder político e regem os destinos do país, com
“desinteressante” e “fraco”, “adorador da deusa Cachaça, divindade o conseqüente confinamento à marginalidade e à pobreza de um grande
que entre os caboclos não encontrou herético”, o “sacerdote da Grande número de explorados e excluídos do direito à terra (que tinha outras
Lei do Menor Esforço”, aquele que, por ser preguiçoso, não remen- funções que não a social) e sobretudo à cidadania.
da o teto da casa, e, quando a água da chuva pinga pelas fendas da No entanto, a ideologia junta as palavras às coisas, produzin-
palha apodrecida, apara a água gotejante numa gamelinha. do sentidos que passam como sendo a realidade, a coisa em si, uma
Esses sentidos, que nos dão uma imagem até certo ponto cru- evidência inquestionável. Assim é a “evidência” da preguiça natural
el do Jeca, não diferem daqueles que se encontram em outro texto do trabalhador rural brasileiro, a sua indolência congênita, o seu co-
anterior do autor, Velha Praga, onde o Jeca tanto pode ser o Jeca modismo também congênito. A eficácia desses sentidos, que têm
Tatu, como também o Manoel Peroba ou o Chico Marimbondo: um por finalidade manter um certo status quo, se dá quando os próprios
“parasita”, um “piolho da terra”, “espécie de homem baldio”, “sêmi-
nômade”, “inadaptável à civilização”, “nômade por força de vagos
atavismos”, “agregado à terra”, “fazedor de sapezeiros”, “sarcopte
que fica na terra até à completa sucção da seiva convizinha”, “aquele 1 . Lobato ignora que “caboclo” é uma identidade racial, enquanto que
“caipira” é uma identidade cultural.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 669


desfavorecidos, explorados e excluídos se tornam sujeitos do discurso 3. O MST e o novo sujeito sem terra
que os subjuga. Desse modo, a exclusão social do trabalhador rural é
O MST não surgiu aleatoriamente. O movimento nasceu das
sustentada por um discurso em que são ignoradas as condições mate-
injustiças sociais, dentre elas a que excluiu o homem do campo do
riais de existência do lavrador brasileiro, inclusive pelo próprio lavra-
processo social e, sobretudo, do direito à palavra.
dor. Quando esse diz, conformado com as condições materiais em que
Entre o “caipira” e o “sem-terra” existe uma enorme diferença.
vive, “É Deus quem quis assim”, “A gente vai vivendo como pode”,
Sobretudo porque temos diferentes posições de sujeito. Há dizeres
pensando ser ele o autor de seu dizer, está aprisionado por uma
que dão identidade aos sem-terra, integrantes do MST, ao passo que
memória discursiva em que esses dizeres fazem sentido, significam.
os dizeres possíveis de serem ditos pelo caipira estão inscritos no
Ele é sujeito do discurso de sua própria exclusão social.
discurso do poder e das instituições.
Para Pêcheux (1975), não há discurso sem sujeito e não há
O discurso do MST se insere no quadro dos discursos sobre a
sujeito sem ideologia. Sujeito e sentido se relacionam mutuamente.
função social da terra. O seu sujeito é o agricultor que não fica mais
Para um indivíduo ser sujeito é preciso que seja afetado pelo simbóli-
mudo e nem mais repete as “evidências” que promoveram, historica-
co, ou seja, que se submeta aos sentidos da língua, “esquecendo” que
mente, a exclusão social do homem do campo. Possuindo um discur-
esses sentidos são decorrentes de um longo processo histórico. É
so próprio, que consiste numa ruptura com o discurso do poder e das
necessário que acredite que esses sentidos traduzem a relação (natural
instituições, assume, agora, uma voz, enquanto agricultor, que expõe
e verdadeira) entre as palavras e as coisas, ou os fatos da realidade. Os
outros enunciados como novas evidências: “o Brasil tem muita terra,
sentidos dos discursos se afiguram, então, sob a forma de “universa-
sim, mas ela está nas mãos de alguns poucos”, “O homem da roça não
lidade”, “o mundo das coisas”, funcionando como se fosse a realidade
é preguiçoso, ele não tem terra para plantar”, por isso “Temos que
ou um sistema de evidências “em si”.
fazer a reforma agrária”, pois “Só a reforma agrária solucionará os
problemas do campo”.
2. A negação da palavra ao agricultor
Ao dizer, agora, que, como agricultor tem direito à terra, o
A negação do direito da palavra ao agricultor está inscrita no sem-terra ressignifica a “universalidade dos direitos”, prevista em
discurso literário de Lobato. Não será exagero dizer que a negação desse Lei (Estatuto da Terra e Constituição). Estendendo esse direito uni-
direito está inscrita nos discursos fundadores (literário, jurídico, políti- versal ao trabalhador do campo, luta pela reforma agrária: “Como
co, religioso etc.) e em sua memória. Essa negação é tão forte que até agricultor, temos direito a um pedaço de terra2 ”, “Todos têm os
mesmo o discurso marxista dela foi vítima. Em o Manifesto Comunista, mesmos direitos e tudo tem que ser dividido”; “Sem reforma agrária
Marx e Engels (1848) chegam a afirmar que “apenas o proletariado é não há democracia”. Mais do que isso, o MST se organiza enquanto
verdadeiramente uma classe revolucionária”, estando, pois, pressupos- movimento de massa e incentiva as ocupações: “Na luta concreta
to que as demais classes não possuem consciência política, condições pela terra, vamos nos organizar e nos preparar para ocupação
organizacionais, suporte ideológico, prática efetiva e instrumentos teó- massiva”. Numa etapa posterior, chama os trabalhadores da cidade
ricos capazes de oporem-se ao poder vigente, em busca de uma socie- para unirem-se aos agricultores, colocando-se como vanguarda dos
dade igualitária. demais movimentos populares do campo e da cidade: “Trabalhador
O Jeca não fala, como afirma o próprio Lobato no artigo Urupês: rural e urbano, organizem-se”; “Na medida que consolidarmos uma
“O caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no aliança campo e cidade, vamos derrubar os muros da cidade e rom-
recesso das grotas”. Ou ainda: “Só ele não fala, não canta, não ri, não per as cercas do campo”. Proclama finalmente o seu projeto, que é
ama. Só ele, no meio de tanta vida, não vive”. Sem palavra, o Jeca de menos a reforma agrária do que promover a mudança da ordem
Urupês também não tem consciência política: “O sentimento da pátria social, ou seja, construir uma sociedade socialista: “Com esta alian-
lhe é desconhecido”, “Não tem noção do país em que vive”. ça não só implantaremos a reforma que queremos, como também
Nem mesmo a transmutação do Jeca Tutu em Jeca Tatuzinho construiremos a sociedade mais justa e fraterna, a sociedade socia-
devolve a fala ao agricultor. Nesse novo texto de Lobato, o Jeca é um lista”; “Construir com as demais organizações sociais, do movimen-
pobre “coitado”, “bêbado”, “preguiçoso”, “idiota”, “imprestável”, ví- to sindical, das igrejas, dos intelectuais e dos militantes em geral
tima de doenças e “das desgraças da vida”, o qual, ao curar-se pela para a construção de um projeto para o Brasil”.
Ankilostomina e pelo Biotônico Fontoura, se transforma num próspe- Ora, a reforma agrária num país em que o latifúndio sempre
ro fazendeiro. Jeca Tatuzinho é uma propaganda do Laboratório representou o poder das elites é um objeto tabu. A questão da terra
Fontoura, estando bastante comprometido com um certo discurso de desnuda todo um sistema de desigualdades e privilégios, e de leis que
propaganda e marketing. não se cumprem. Exigir a reforma agrária é exigir que o Estado cumpra
Já em Zé Brasil, texto de 1947, Lobato se compromete ideologi- o que ele mesmo determinou em seu discurso como garantias univer-
camente com a revolução comunista. Seu Jeca é, agora, um pobre sais a todo cidadão (o Estatuto da Terra prescreve a reforma agrária e
“coitado”, “agregado”, que é convidado a engrossar as fileiras do movi- a Constituição a confirma). Tabu do objeto, diria Foucault (1971),
mento de Júlio Prestes, a fim de se libertar do regime de exploração em parte da interdição da palavra, que compreende, também, o ritual da
que vive. A voz de Zé Brasil (o Jeca finalmente fala!) não é contudo a circunstância e o direito privilegiado de quem fala. Que direitos têm
voz de uma classe, a dos agricultores. As falas em que Zé Brasil os agricultores, Jecas, “selvagens reais”, “feios”, “brutescos”,
denuncia a exploração de que é vítima parecem ser do próprio Lobato, “desinteressantes” e “fracos”, “sem consciência política”, “adoradores
que fala do lugar de ex-patrão, ex-proprietário de terras, e de sujeito da deusa Cachaça”, “sacerdotes da Grande Lei do Menor Esforço”,
identificado com o ideário comunista: “Se essas terras do Taquaral de exigir que se cumpra o que acham que a lei determina e de propor
fossem divididas por essas cento e tantas famílias que vivem lá, em vez um projeto que distribua riqueza e renda e diminua as diferenças
de haver um rico, que é o Coronel Tatuira, haveria mais de cem arranja- sociais?
dos, todos vivendo na maior abundância, donos de tudo quanto produ- Sabemos que o discurso é controlado, selecionado, organizado
zissem, não só da metade”.
Todavia não foi o Jeca de Zé Brasil que entrou na memória dos
discursos. Parece que o acontecimento desse Jeca não chegou a aí ins-
2 . Esses enunciados foram coletados dos editoriais dos periódicos do MST.
crever-se. Os seus sentidos não puderam ser lidos pela mesma memória Para um conhecimento maior desse corpus, ver a dissertação de Marlon
que tão bem significou os Jecas de Velha Praga, Urupês e Jeca Tatuzinho. L. Rodrigues, Os Discursos do MST (UFMS).

670 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


e redistribuído a partir de determinados procedimentos que colocam O que estamos dizendo é que os sentidos dos discursos do MST,
em jogo seus poderes e perigos (Foucault, 1971). É preciso, então, assim como os sentidos do Fórum, tornam-se inviáveis pela nossa
controlar os discursos e sua distribuição desde que representem qual- história. A formação discursiva, no interior da qual os sentidos do MST
quer ameaça à permanência do poder instituído. e do Fórum Mundial se constituem, foi interditada por procedimentos
Todavia não é possível calar os sem-terra. Cala-se um Jeca, mas de censura, de modo que “ficou-se sem uma memória” (Orlandi,
não um sem-terra, porque o trabalhador rural se fez sem-terra quando se 1999b:66) que facultasse a leitura desses sentidos e que tornasse suas
tornou sujeito de um discurso próprio. A melhor coisa que pode acon- paráfrases possíveis. A possibilidade da formação dessa memória exis-
tecer a um grupo de indivíduos é que ninguém fale em nome deles, mas tiu, na década de 60, na discursividade dos movimentos reivindicatórios
que falem por si mesmos, contem a sua realidade e lutem por suas (religiosos, estudantis, culturais, operários, políticos, etc.) em que havia
causas. No caso do MST, os agricultores vão além, pois, além de todo um processo de produção de sentidos colocados na mudança da
falarem por si mesmos, e lutarem por suas causas num discurso de estrutura social. Todavia esse, ao ser reprimido pelo longo período de
reivindicação e de denúncia, mobilizam trabalhadores de outras classes ditadura militar, vai desembocar na completa dominância do discurso
para a derrubada do poder. (neo)liberal.
Se não é possível ao discurso do poder calar um sem-terra, é O discurso do MST será um indício de uma retomada “pra valer”
possível controlar seus dizeres e a distribuição de seu discurso, através dos anos 60 ou um acontecimento que não chegará a inscrever-se na
de outros processos de interdição. Estamos nos referindo à interdição memória dos discursos?
através do controle dos sentidos. Como diz Orlandi (1999a:66), os
discursos do MST, “que são uma ruptura no discurso político neo- 4. Considerações finais
liberal, têm dificuldade de significar-se nessa margem em que muitos Podemos dizer que os dois sujeitos a que este trabalho visa, o
sentidos não podem fazer o sentido do político, onde as palavras como caipira e o sem-terra, nasceram do longo processo histórico de injus-
“movimento” podem significar algo sujeito a repressão porque resvala tiças sociais, que excluiu do processo social o agricultor brasileiro. O
para o que, hoje, se considera como ilegal”. “caipira” ou “o homem da roça” se faz o sujeito “sem-terra” quando
Os sem-terra são significados, pois, como um grupo de rompe com os mecanismos de exclusão ou interdição, desidentificando-
“baderneiros”, “transgressores da lei”, “aqueles que se tocam”. Chega- se com a formação discursiva que o constituiu, que o fez sujeito, para
mos, novamente, através dos processos parafrásticos, enquanto proce- identificar-se com uma nova formação discursiva. Em outros termos,
dimento de memória, aos velhos sentidos de Lobato. Sabemos que os o lavrador, determinado e constituído pelo discurso da ideologia capi-
sentidos não existem de per si, na língua, mas são constituídos histori- talista, um sujeito com seus direitos e deveres assegurados pela soci-
camente, no interior das formações discursivas. Nos processos edade (muitos deveres e poucos direitos, a bem da verdade), sendo
parafrásticos, os dizeres se mantêm, repetindo-se, enquanto procedi- essa sociedade também ordenada e constituída pela mesma ideologia,
mento de memória. Pode acontecer que, ao se repetirem, acabem por se desidentifica com a “forma-sujeito” (a forma de sujeito de direito,
modificarem-se ou deslocarem-se, pelos processos de polissemia. Se jurídico) produzida historicamente pela ordem do capital (embora se
na paráfrase temos estabilização, na polissemia temos rupturas de pro- apresente como um “sujeito evidente e em si”), para se transformar no
cessos de significação. Na polissemia temos criatividade (Orlandi, revolucionário sem-terra, constituído, agora, por um novo discurso,
1999b:37), pois houve a intervenção do diferente, “produzindo movi- ou uma nova ideologia.
mentos que afetam os sujeitos e os sentidos na sua relação com a histó- O Jeca de Lobato, e muitas de suas paráfrases, representam
ria e com a língua” (idem). uma modalidade de sujeito, que Pêcheux (1975:215) explica pela
O discurso do MST é tido pela mídia como “um caldeirão ideo- superposição entre o sujeito da enunciação (o “responsável” pelo
lógico”, discurso “desfocado”, “anacrônico”. Caldeirão ideológico, por- dizer) e o sujeito universal (o sujeito das “evidências” de uma forma-
que em seu discurso socialista anacrônico há um pouco de tudo: Marx, ção discursiva ou ideológica). A sua “tomada de posição” se realiza
Lênin, Guevara, Mao e tantos outros. Anacrônico, porque os discursos sob a forma de “livremente consentido”, o que caracteriza o discurso
reivindicatórios estão fora de moda - não são próprios do momento do “bom sujeito”. O sem-terra representa uma outra modalidade de
atual. Desfocado, porque os discursos reivindicatórios não são adequa- sujeito, que caracteriza o discurso do “mau sujeito”, porque o sujeito
dos num momento predominante do avanço da globalização, do da enunciação se volta contra o sujeito universal e se identifica com
neoliberalismo, da decadência dos sindicatos, do “fim das ideologias” e organizações políticas “de tipo novo”.
do “fim da história”. Além do mais, não existe mais uma ideologia capaz Resta saber - um bom tema para futura investigação - como a
de unificar as diversas minorias socialmente marginalizadas. memória que permitirá a leitura “correta” do discurso desse “mau
A mesma imprensa “oficial” que noticiou o quanto de anacrônico sujeito” (e esperamos que de fato ela se constitua) significará “ser agri-
e de desfocado há no MST, numa época em que a ideologia é um cultor”.
conceito obsoleto, teve de noticiar, também, há poucas semanas, “a
baderna” do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, constituído en- Referências bibliográficas
quanto uma reunião de movimentos sindicais, ONGs, entidades religio-
sas e lideranças mundiais. As conferências do Forum tiveram por obje- FOUCAULT, M. (1971) A ordem do discurso. São Paulo. Loyola.
tivo buscar propostas alternativas às políticas neoliberais colocadas 1996.
pelo Consenso de Washington através do Banco Mundial e do FMI. O MARX K. E ENGELS, F. (1848) Manifesto comunista. Petrópolis.
Fórum Social Mundial pretendeu ainda demonstrar que o discurso da
Vozes. 1990.
“globalização” é enganador, na medida em que oculta os interesses dos
ORLANDI, E.P. Maio de 1968. Os silêncios da memória. Papel da
países mais ricos. Teve por objeto divulgar as bases de um projeto de
memória. Campinas. Pontes.1999a. pp. 59-67.
sociedade sem centralidade no lucro e no mercado, e fazer ecoar críticas
______ Análise do discurso: princípio e procedimentos. Campinas.
e alternativas ao neoliberalismo, favorecido pela queda do Muro de
Pontes. 1999b.
Berlim e pela hegemonia dos EUA. As conferências do Fórum Social
PÊCHEUX, M. (1975) Semântica e discurso: uma crítica à afirmação
Mundial buscaram resgatar as alternativas que têm sido formuladas nos
do óbvio. Campinas. UNICAMP. 1988. trad. bras.
últimos anos por quem resiste à lógica do mercado, da especulação e da
______ Papel da memória. Papel da memória. Campinas. Pontes.1999a.
desigualdade social.
pp.49-56

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 671


Jeca: da literatura ao cinema
Luzimar Goulart Gouvêa
Faculdade de Americana - FAM

ABSTRACT: The countryman’s image, in Monteiro Lobato’s literary representation, turning him into folcklore, crystallizing an image of inaction. That
image comes from Lobato’s class place. On the other hand, Mazzaropi, in the cinema, is the voice of the countryman and promotes that culture.
PALAVRAS-CHAVE: caipira, Lobato, Mazzaropi, cultura brasileira.

0. Uma história não vista. novamente a mão-de-obra caipira em condições assalariadas próxi-
mas ao escravagismo. Tendo sido as condições não aceitas pelos cai-
A representação artística do homem da cultura caipira vai piras, por aspectos de sua cultura, os proprietários recorrem à impor-
aparecer, na Literatura Brasileira, em diversos momentos. Após o tação externa de trabalhadores. A imigração, além de suprir de mão-
Romantismo, surge uma tendência de valorização do homem da terra de-obra a agricultura, também tinha, segundo Skidmore (1974), a
e instaura-se uma linha regionalista que, entretanto, não consegue pretensão de um “branqueamento da raça”. Então, os caipiras ficam
dar conta de uma representação mais ampla desse homem. Será ape- novamente isolados e sem lugar dentro do momento histórico da cons-
nas com Monteiro Lobato que essa representação terá uma expressão trução da riqueza paulista, rejeitados como trabalhadores.
maior, desnudando uma certa trama injusta de lugares sociais no in- Pertencente à classe dos proprietários, que Gomes (1980) iden-
terior da cultura brasileira. A visão corrente que a Literatura tinha até tifica como a área dos “ocupantes”, em oposição à área dos “ocupa-
então desse homem era superficial e viciada, ainda devedora da tra- dos”, a área em que se situam os caipiras, Monteiro Lobato nunca,
dição romântica, e idealizava esse caboclo ou caipira. Monteiro nos textos iniciais, em que apresenta a figura do Jeca Tatu, viu as
Lobato, ao criar a figura caipira do Jeca Tatu, vai promover uma históricas expropriações a que os caipiras estiveram fadados. O lugar
ruptura com essa tradição romântica, mas, do ponto de vista histórico de classe de Lobato, em 1914, quando escreve os artigos “Velha
e lingüístico, Lobato ainda não vai representar a cultura caipira em praga”e “Urupês” para o jornal O Estado de S. Paulo, era o de um
sua verdade. Lobato não vê o processo histórico que formou essa grande proprietário de terras. A denúncia inicial era contra o
cultura caipira. Não vê a expropriação das formas da economia e da desmatamento e os incêndios na Serra da Mantiqueira. Uma preocu-
cultura sofrida pelo caipira. pação ecológica justa não exime Lobato, entretanto, de fazer desse
O caipira é, antes de tudo, uma identidade cultural e o proces- libelo também uma cartilha de preconceitos pela qual toda a sua clas-
so de formação dessa cultura caipira passa por toda a ordem de priva- se vai ler. Há um imediatismo na declaração de culpados pelas quei-
ções. Do ponto de vista da economia, esse homem caipira vai ser madas da Mantiqueira. Os declarados culpados são justamente os
forjado a partir dos mínimos vitais. Vivendo próximo à anomia, ele caipiras que faziam, certamente, as queimadas como forma de ex-
vai desenvolver modos rústicos de vida. Essa “cultura rústica”, se- ploração rápida do solo pela natureza de sua ocupação – o
gundo Candido (1987), ainda prevê toda sorte de isolamento, uma desbravamento, a abertura de terras novas, por outorga e favor do
vez que a região que se convencionou chamar Paulistânia não ofere- proprietário, a quem ficavam devedores e por quem eram “tocados”
cia, inclusive por seus aspectos naturais, a mesma facilidade de ex- a partir de qualquer desavença ou jogo de interesses. Lobato apaga a
ploração que as capitanias açucareiras nordestinas. A fome, a miséria ocupação das terras pela classe proprietária. Parece não haver nem
e a violência são encontradiças no caminho de sua sobrevivência. lutas, nem embates, nem posses, nem exploração. Os dois textos co-
Quando os paulistas um pouco mais abastados, afeitos ao apresamento locam o caipira como único responsável pela situação da terra e dei-
indígena para a venda deste como escravo às capitanias do nordeste e xam as tensões encobertas. Os jogos do poder e da posse parecem
ao desmantelamento de quilombos também nas capitanias longín- não ter, nesses textos, duas pontas.
quas, para o que eram contratados, vão realizar as entradas e bandei-
ras, deixam na Paulistânia, ao abandono, uma massa de homens li- 1. Lobato e a voz atribuída.
vres, de origem diversa, miscigenados, pobres todos. Essa “ralé”,
como era entendida pela elite colonial exploradora, ficou ao deus- Aliado a esse encobertamento das tensões das relações sociais
dará. Eram homens livres que ficaram fora da aventura da minera- entre essas classes e aliado também à desconsideração de um proces-
ção. so sócio-histórico de ocupação da terra, já descrito anteriormente,
Assim, isolados, desenvolveram formas de convívio e de eco- Lobato utiliza-se de um procedimento muito mais perigoso: ele, na
nomia que vão caracterizar essa cultura caipira: o mutirão, os dias instância da representação literária, deixa emudecido o caipira. Lobato
santos de guarda, os intervalos para caça, pesca e coleta de frutos, a cria um personagem sem voz. O caráter narrativo-descritivo dos tex-
troca de alimentos (carne de porco, caça e pesca), a religiosidade, o tos serve a isso: o personagem transita no texto, e depois nos jornais
grupo familiar, a economia não capitalista, voltada para a subsistên- (Lobato vendeu esses artigos para diversos jornais do país), no livro
cia (até mesmo pela ausência de mercado regular), a organização em (Urupês), no boca-a-boca, sem expressão de si. Ao encontro desse
bairros rurais etc. Quando os paulistas bandeirantes voltam da explo- silenciamento da voz do caipira vem todo um bloco monolítico de
ração das Minas Gerais, encontram os caipiras tomando posse da preconceitos da classe patronal: dá-se, então, a cristalização desse
terra. Pela força e por procedimentos cartoriais ilícitos, retomam as preconceito contra o caipira. É interessante notar que, à época da
terras e impelem os caipiras, segundo Brandão (1983), para os “ser- publicação do texto, não havia muitos leitores: alguns poucos fazen-
tões adentro”, para as franjas dos espaços já explorados. deiros letrados e um público urbano. Isto torna ainda mais inelutável
Após isso, os “proprietários” das antigas terras devolutas, an- a situação do caipira: a ele, pelo analfabetismo quase generalizado,
tes do advento do café, renegam o trabalho dos caipiras para, com a não é dada sequer a chance de ver-se representado, de conhecer a
implantação da empresa capitalista cafeeira e com a conseqüente ne- representação que faz de si a classe detentora da produção de cultura
cessidade de uma grande quantidade de mão-de-obra, que se esvazi- no país de então.
ava com os mecanismos liberatórios do trabalho escravo, requerer O procedimento do qual Lobato se utiliza pode ser descrito

672 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


como um recurso de atribuição de voz. Lobato, ao não deixar seu diante dona Ciência está dizendo, Jeca está jurando em cima!
texto poroso à voz do outro, o caipira, traz para o texto a sua própria Tesconjuro!”. A culminância do processo de negação da voz do
voz. Essa voz atribuída é, pois, a voz da classe de Lobato, distribui- caipira acontece, nesse texto, quando o Jeca ganha uma fala que
dora da acusação e não reflexiva sobre suas próprias ações. É tam- não é a sua. Quando ele pode falar, não fala a sua língua: aprende a
bém a voz do mesmo. Esse mesmo ainda não autoconsciente. Há língua de outro, não mais a sua. Jeca aprendera o inglês: “O Jeca só
uma certa perversidade na acusação e no silenciamento do outro. fala inglês agora”.
Com a retirada da possibilidade de fala do outro, o caipira, fica rebo-
ando no texto somente uma voz. Não há diálogo então. E a voz única 2. Mazzaropi e uma voz para o caipira.
passa, inconscientemente, a fazer a delação de si mesma. Ela delata,
atrás do lugar de inação reservado para o caipira, a sua própria in- O aproveitamento, no cinema de Amácio Mazzaropi, da per-
competência social, a trama injusta das relações praticadas, a históri- sonagem Jeca Tatu da literatura acontece pela primeira vez em 1959.
ca expropriação, a exploração de uma classe por outra, a tibieza e Mazzaropi, com sua produtora, a PAM Filmes, vai utilizar-se da per-
maleficência das instituições políticas, sociais e educacionais que sonagem de Lobato com um propriedade adquirida numa longa car-
engendraram tal situação. reira iniciada, anos antes, nos circos mambembes, nas rádios, na te-
Discursivamente, paira essa cooptação da voz do caipira e, tex- levisão e no cinema. No seu décimo filme, dirigido por Amaral (1959),
tualmente, em “Urupês”, Lobato (1992) arranja toda uma ordem de Mazzaropi trará o Jeca de Lobato para as telas. A inspiração é direta-
recursos narrativos para a consecução de tal emudecimento: o caráter mente localizada no Jeca Tatuzinho do Almanaque Fontoura. Ao fi-
descritivo-narrativo do texto não oferece oportunidades do estabele- nal do filme, há o poético e o lúdico das galinhas com botinhas nos
cimento do diálogo, momento de pontuação das falas, dos discursos pés para sinalizar a necessidade da sanitarização. Mas Mazzaropi
individualizados, das marcações discursivas dos lugares do um e do não ficou nisso.
outro; também a utilização de um falso foco narrativo, em terceira O filme Jeca Tatu traz um pouco mais dos elementos da cul-
pessoa, provoca um distanciamento e, por ser o narrador onisciente, tura caipira. Traz, embora mal construído filmicamente, um pouco
ele pode deter-se e pontuar as características do personagem com do processo de espoliação que o caipira sofre. A inação e a apatia, no
aparente isenção, oriunda de um saber extra. Na verdade, o foco nar- filme, não são mais solucionadas pela sanitarização, mas pelo pro-
rativo é também em primeira pessoa, quando ele diz “por felicidade cesso de construção de uma tomada de consciência que se dá não
nossa”, mas o narrador projeta tanto o outro, está tão focado no outro mais individualmente, mas, sim, pelo grupo social a que Jeca perten-
que só resta ao leitor ser conduzido pelo saber do narrador e, se ce. O Jeca não mais trabalhava, estava desanimado e perdera as ter-
desavisado, cair na trama de acusações, certezas e julgamento implí- ras também pela esperteza e ganância de seu vizinho, o italiano
citos e explícitos que o texto traz. A isenção pretendida pelo Giovani. Aninhado no calor do grupo familiar, Jeca resiste, inicial-
distanciamento, então, cai por terra. Em “Urupês”, há somente seis mente, pela negação do trabalho, embora discursivamente se diga
falas do Jeca, o caipira instituído por Lobato. A jocosidade das falas, trabalhador. A perda das terras leva o grupo a promover um esforço
reduzidas a uma mínima e simplíssima expressão, são também mar- de ajuda vicinal. Coletivamente, é construída uma solução para o
cas da cooptação da voz do caipira. Um único exemplo basta para Jeca: a troca de votos por terras. O recurso à negociação do voto
revelar esse procedimento de cooptação da voz, que emudece o cai- instaura a consciência do poder de troca do voto. Mas o Jeca terá de
pira: a primeira fala do Jeca vem cortada pela interrupção de sua ir a São Paulo, saído do interior, para conversar com o candidato a
expressão e as reticências são as marcas textuais disso. O Jeca, mos- deputado. Na volta, já no palanque eleitoral, é que acontece o maior
trado, descrito, diz apenas “não vê que...” e é retirado para o silêncio, embate entre os da área dos ocupantes e os da área dos ocupados. E
para o seu atávico não lugar de ser. Assim, Lobato garante para o o Jeca vai ter de usar de um recurso de firmação de sua voz para ter
caipira apenas o lugar do não ser. A redução é tamanha que nem ser garantidos sua vez, seu espaço e, mesmo, seu poder de negociação.
o outro esse caipira pode. Neste recurso fílmico-dramático, houve a construção de um momen-
Lobato (1992), no artigo “Velha Praga”, traz apenas uma fala to de legitimação da voz do caipira pouco visto antes em representa-
do caipira: “êta fogo bonito!”. A única voz expressa do caipira é, na ções artísticas brasileiras. O recurso utilizado pelo Jeca de Mazzaropi
verdade, tão construída a favor do autor (o tipo de texto é um arti- é o recurso, sempre, a uma última palavra. Nesse recurso, há o
go, precisamente escrito para publicação em jornal, na seção “car- anulamento da eficácia da voz do outro. O que fica ecoando é sem-
tas e reclamações”) que ela é capaz de causar no leitor uma adesão pre a voz do Jeca. Na verdade, nesse procedimento, há sempre uma
imediata à posição do autor, visto que o artigo é também um libelo desconstrução da voz do outro. E essa desconstrução é conseguida
ecológico. com a superposição de um outro recurso ao já utilizado: o segundo
Um terceiro texto de Lobato, nascido como um conto exem- recurso é o do humor. A surpresa que o humor causa funciona como
plar para a campanha de sanitarização da Escola de Manguinhos, foi uma espécie de desautomatização e os comportamentos viciosos, de
depois vendido para a Editora Medicamenta Fontoura e tornou-se a há muito fixados, acabam por cair por terra pela força desse humor
conhecida peça publicitária para a venda, principalmente, do Biotônico inesperado, que é também de uma natureza poética.
Fontoura. Monteiro Lobato (1971), ao entender agora o Jeca como Ao recurso à última palavra, à superposição do humor, à
um doente, perdoa-lhe a preguiça e não vê no caipira toda a parvoíce desautomatização causada, é acrescida ainda uma outra recorrência:
que, até então, era a única coisa que via. O texto vai chamar-se agora a malandragem. É de caráter malandro o jogo discursivo em que o
Jeca Tatuzinho e a voz do caipira que aparece continua sendo uma Jeca acaba por enredar seus interlocutores fílmicos e, mesmo, os ex-
voz atribuída. A interlocução marcada é com os filhos de fazendeiros tra-fílmicos. Segundo Candido (1978), para definir aspectos do ro-
(“se forem fazendeiros...”), e há ainda o mesmo lugar de classe de mance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de
onde emana a voz. Em outros momentos, há um outro procedimento Almeida, há um “universo sem culpabilidade” . Desse universo sem
agora internalizado pelo personagem e não mais imposto pelo culpabilidade também participa o Jeca do Mazzaropi. Há uma cena,
narrador: a negação da própria voz. E, após negar a si mesmo, o Jeca por exemplo, em que o Jeca, ao sair da cadeia, onde estivera injusta-
sanitarizado assume a voz do outro. Há, com isso, a negação do pró- mente, na conversa com o delegado, ao receber deste uma última
prio ser, que, de ser outro, passa à instância do não ser. Ironicamente reprimenda, é despedido com a seguinte fala do delegado: “Vá com
o remédio, a cura, a Ciência é que participam, é que co-atuam nesse Deus e tenha vergonha!” Ao que o Jeca emenda prontamente: “O
processo de negação do Jeca. Num momento ele diz: “Daqui por senhor também, doutor!” E é justamente com a autoridade constitu-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 673


ída, aquela cuja especificidade é a força constritora e repressora, a lo: Brasiliense, 1983.
serviço da “ordem”, que o Jeca vai se utilizar desse lugar de voz CANDIDO, Antonio. “Dialética da malandragem” in ALMEIDA,
instaurado a partir de um universo sem culpabilidade. Esse exemplo Manoel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias (Ed.
demonstra muito bem todo o medo perdido, toda a conquista e todo a crítica de Cecília de Lara). Rio de Janeiro: Livros técnicos e
possibilidade de resistência de que o ser da cultura caipira é capaz. científicos, 1978.
Mazzaropi, ao fazer a representação do homem caipira, conse- _____ Os parceiros do Rio Bonito. São Paulo: Duas cidades, 1987.
guiu dar um respiradouro a ele e essa possibilidade foi construída, GOMES, Paulo Emílio Salles. Cinema: trajetória no subdesenvolvi-
agora diferentemente de Lobato, pela cessão da voz ao caipira. Lobato mento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
havia folclorizado o caipira, aprisionando-o numa imagem cristali- LOBATO, Monteiro. Jeca Tatuzinho. 34ª ed. São Paulo: Medicamenta
zada, construída a partir do lugar de classe dos ocupantes. O Jeca de Fontoura, 1971.
Lobato é um Jeca celebrado a partir dos elementos da morte, porque _____ Urupês. 36ª ed. São Paulo: Brasilense, 1992.
não mais é um Jeca vivo, dinâmico. Já o Jeca de Mazzaropi continua, SKIDMORE, Thomas E. Black into white: Race and nationality in
com voz, a ser um Jeca vivo. brazilian thought (trad. do original por NETO, Antônio Alves
de Lima). New York: Oxford University Press, 1974.

Referências bibliográficas Referência filmográfica

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os caipiras de São Paulo. São Pau- AMARAL, Milton. Jeca Tatu. Taubaté: PAM Filmes, 1959.

674 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


MST: discurso e ideolgia
Marlon Leal Rodrigues
Universidade Federal Mato Grosso do Sul - UFMS

ABSTRACT: If the discourses for to inscrible in the discoursive memory nud to be important, the popular moviment for to be important and show your
historic and social position, they nud to invest in the mark ideological discourses or to build your own discourse; like is the case of the Landless Rural
Workers (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra – MST).
PALAVRAS-CHAVE: discurso, ideologia, sujeito, paráfrase, movimento social

0. Introdução não em discurso do MST é para marcar a heterogeneidade. Procura-


mos tipificar o discurso do MST com base nas formações discursivas
O fato sócio-histórico, em sua diversidade e complexidade,
(Foucault, 1986) que as constituem e nas posições que os sujeitos
seja contemporâneo ou não, não pode contudo ser analisado sim-
podem e devem ocupar para se constituírem e nas posições que os
plesmente da perspectiva dos acontecimentos em si. A análise dos
sujeitos podem e devem ocupar para se constituírem sua identidade.
acontecimentos dever ser precedida da investigação do “discurso em
Dessa forma, podemos falar em discurso e enunciado de base1,
sua realidade material ou escrita” (Foucault, 1996: 8) e das restrições
que sempre contém a proposta de ação do movimento ou a posição
que se impõem ao discurso e àquele que fala.
que o sujeito sem terra deve assumir, assim: (1) Discurso Institucional
Considerando que os discursos, (Foucault, 1996), constituem-
ou Fundador2, ”como agricultor achamos que temos direito a ter um
se como pré-constituídos, (Pêcheux, 1988), de uma memória
pedacinho de terra para plantar”; (2) Discurso de Reforma Agrária,
discursiva, que não é a memória dos sujeitos enquanto indivíduos,
“a reforma agrária solucionará os problemas do campo brasileiro”;
mas é uma memória em forma de tomadas e retomadas dos discursos
(3) Discurso de Reforma Agrária e Movimentos Populares, “reforma
onde o sentido sofre ressignificações, reformulações e repetições do
agrária: uma luta de todos”, (4) Discurso de Organização e
mesmo discurso, mas ao mesmo tempo sendo também um outro, pois
Estruturação do Movimento, “para vencer é preciso lutar, para lutar é
as condições históricas com os seus sujeitos sempre se dão em forma
preciso organizar”; (5) Discurso Socialista, “todos têm os mesmos
de novos acontecimentos.
direitos e tudo tem que ser dividido”; (6) Discurso de Reforma Agrá-
Para que o sentido se inscreva na memória discursiva, é neces-
ria pela Ocupação, “na luta concreta pela terra, vamos nos organizar
sário que ele possua uma certa relevância histórica, caso contrário, a
e nos preparar para ocupações massivas” e (7) Discurso da União,
não relevância acabará por culminar-lhe o seu fim. Em contra parti-
“nossa meta é chegar a um ajuntamento das lutas entre o campo e a
da, sua inscrição, mediante seu caráter relevante, garante que seja
cidade, vinculadas as greves com ocupações de terra”.
repetido enquanto paráfrase, já com outros elementos discursivos
Esses discursos, e seus enunciados de base, compõem parte do
acrescidos e subtraídos, ou seja, a sua inscrição na memória discursiva
repertório discursivo do MST, no entanto, o discurso de Reforma
é para tão somente ser parafraseado, perder parte daquilo que o cons-
Agrária e o de Reforma Agrária pela Ocupação merecerão nossa aten-
tituiu enquanto sentido, e ganhar elementos dada a conjuntura sócio-
ção em virtude do primeiro ser a referência que constituiu o MST, e o
histórica.
segundo, por constituir-se, talvez, em um novo tipo de discurso fun-
A paráfrase é o processo que garante que o discurso e seus
dado no seio do movimento. Considera-se que os demais são pará-
sentidos sejam retomados e repetidos no eixo vertical da memória e,
frases do eixo paradigmático de memória discursiva.
de acordo com Fuchs (1982: 29), a paráfrase situa-se entre a “língua
e o discurso”, excede “o campo da lingüística não somente pelo nível
2. Discurso de Reforma Agrária
do sentido onde se pode estabelecer a relação semântica em jogo,
mas também pela tensão”. Quando um sujeito enunciador parafra- Convém esclarecer algumas particularidades sobre a distribui-
seia, ele coloca em cena a identidade do sentido a partir de um dis- ção de terras no Brasil, se a considerarmos do ponto de vista históri-
curso-fonte em uma situação-dada, onde o sentido do texto-fonte é co, é possível dizer que as primeiras distribuições de terra no Brasil
“reconstituído pelo sujeito e não é jamais reproduzido idêntico, mas foram marcadas por um processo de violência e usurpação realizado
sempre re-re-constituição” (idem, p. 30). pelo próprio Estado, e depois por seus representantes. A terra signi-
A paráfrase é sempre, pois, um lugar tenso, em virtude de se ficava tão somente posse, poder, dominação, demonstração de rique-
constituir de reformulação ou reconstituição de sentido, de za, etc., uma vez que ela era doado ou concedida pelos reis.
decodificação e leitura, seja por meio de marcas lingüísticas, seja O sentido de função social da terra surgirá somente com o ad-
pelo processo inerente ao leitor no fluxo interativo da linguagem. vento do marxismo, tendo em vista que “função social” será um divisor
A existência do MST está vinculada à reforma agrária que é na passagem do sentido, doação, “cabe ao capitão-donatário doar
reivindicada pelos trabalhadores excluídos do campo, cuja exclusão terras” ( in Gancho et all, 1994), e concessão, “o rei de Portugal
afigura-se como um processo histórico, desde o “achamento” do Brasil concede terras” (idem), para o de reforma agrária. O discurso de re-
pelos portugueses. A exclusão social impõe outras formas de interdi- forma agrária acaba por constituir-se, em parte, pelo avesso dos sen-
ções, como a da palavra, a do direito à terra, entre outros que deter- tidos de doação e de concessão de terra. Se os sentidos de doação e
minam as formas da construção das significação. de concessão marcam um primeiro momento do discurso sobre a ter-
ra no Brasil, o de reforma agrária inaugura um segundo momento,
1. Os discursos do MST
O discurso do MST constituiu-se ao longo da trajetória do 1 Esses enunciados foram coletados dos editoriais dos Boletins e dos jornais
movimento ao mesmo tempo em que foi, também, determinante do do MST (período de 1981 a 1999).
próprio movimento. Esse discurso é heterogêneo de forma que exis- 2 Para maior esclarecimentos a respeitos desses discursos e dos seus enun-
tem diferenças que nos permitem falar, de um certo modo, em dife- ciados, consultar M. L. Rodrigues (1999), Estuda da Ideologia que Susten-
rentes discursos do MST. Se falamos, pois, em “discursos“ do MST ta o MST (UFMS), mimeo.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 675


quando ocorre deslocamento de sentido com a “função social”. de onde advém inúmeras conseqüência sociais, entre as quais, o
Com essas considerações pertinentes, o discurso de Reforma conflito marcado no campo: “cruz: símbolo de luta pela terra” e a
Agrária, já acrescido de sua função social com o advento do marxis- própria existência do MST.
mo, não é um discurso separado dos outros do MST; ele é constituin-
te do discurso Fundador, assim como o discurso da Reforma Agrária 3. Discurso de Reforma Agrária pela Ocupação
e Movimentos Populares. Se o destacamos aqui é devido à sua im-
Se o discurso de Reforma Agrária se revestiu de função social,
portância. É o discurso que confere a razão pela qual o movimento
o de Reforma Agrária pela Ocupação, deu uma ênfase ao sentido de
existe e reafirma sua posição social. Enquanto o discurso Institucional
função social, justiça, igualdade, etc., o que pode configurar como
ou Fundador prescreve a lei que rege sobre a “terra, sua função social
uma superação dos demais discursos dos movimentos pela reforma
e o direito”, o discurso de Reforma Agrária possibilita a materialização
agrária até o final da década de 70.
e prática efetiva do discurso Institucional ou Fundador.
O MST, ao fundar e inscrever o discurso de Reforma Agrária
No discurso da Reforma Agrária, a reivindicação de reforma
pela Ocupação, imprimiu um novo sentido ao discurso de reforma
agrária trata-se de uma questão de cidadania, que implica divisão de
agrária: de afronta, desafio, “luta” declarada às Instituições Oficiais
terra, a partir de sua função social, como em “reforma agrária não é
e, assim, o MST culminou por definir uma “nova” prática social e
crime. A constituição Federal em seu Capítulo III, Art. 184, determi-
forma de luta para os agricultores sem terra, como também para os
na: “compete à União desapropriar por interesse social, para fins de
movimentos populares em geral, anunciadas no discurso e constitutiva
reforma agrária”, de certa forma, pode-se afirmar que se trata do
dele, conforme se lê em “a paciência esgotou e os sem terra partem
mesmo discurso, no entanto com sentidos distintos, desta forma cons-
para iniciativas mais eficazes para garantir seus direitos”, e em “a
tituindo-se também em um outro discurso.
luta pela conquista da terra passa também pela conquista do poder e
Assim, “A reforma agrária solucionará os problemas do cam-
que a reforma agrária é uma necessidade que independe de ser legal
po brasileiro” é o enunciado de base desse discurso. Esse enunciado
ou não. Ela terá que ser feita na lei ou na marra” e em “agora quem
pressupõe que problemas existem no campo brasileiro e, consideran-
deve fazer reforma agrária somos nós”.
do-se os significados que “os problemas do campo brasileiro” podem
Os seus enunciados acima estão em relação parafrástica, na
ter nesse discurso, de acordo com o processo discursivo que aí se
medida que suas significações assumem a configuração de uma to-
instaura, esse enunciado pode ser parafraseado como: a questão da
mada de iniciativa para efetivar a reforma agrária “com as próprias
terra no Brasil é histórica e os problemas são graves; existe conflito
mãos” e, assim, redirecionar a concepção de como se deve fazer re-
no campo; enquanto houver “problema” não haverá paz nem justiça
forma agrária no país. A partir dessas constatações, é possível afir-
no campo; o problema do campo brasileiro é, sim, o latifúndio; não
mar que o discurso posiciona-se entre o “legal” e o “ilegal”, com
existe terra para quem quer trabalhar, ou seja, o lavrador; existe terra
isto, afirmamos que o MST culmina por fundar uma novo tipo de
para se efetivar a reforma agrária; existe trabalhador rural querendo
discurso sobre reforma agrária, sem similar nos movimentos pela
terra para trabalhar; é possível resolver o problema do campo brasi-
reforma agrária.
leiro; é possível transformar a realidade histórica do campo brasilei-
A inscrição ideológica do discurso do MST aparece bastante
ro; a reforma agrária é um grave problema social etc.
ostensiva neste discurso da Reforma Agrária pela Ocupação. Evi-
Os seguintes enunciados “a reforma agrária solucionará os
dencia-se, em “com certeza teremos um ano quente e vermelho”,
problemas do campo brasileiro”, “exigimos reforma agrária. Terra
duas metáforas de valor muito significativo. De acordo com Orlandi
para os sem terra”, “cruz: símbolo de luta pela terra”, “terra só para
(1999: 32), “as cores servem para matizar posições” e, neste caso,
quem nela trabalha e dela precisa sobreviver”, “sem reforma agrá-
posições ideológicas de “esquerda”, pois “quente” refere-se a uma
ria não há democracia”, “é preciso aperfeiçoar a lei de desapropria-
situação repleta de complicações para o governo, que terá que en-
ção e de emissão de posse, para acelerar a solução dos conflitos”,
frentar, manifestações públicas, passeatas, protestos, ocupação de
“a marcha nacional pela reforma agrária, emprego e justiça social,
terra, etc., em decorrência de ele não cumprir os acordos firmados
contagiou a sociedade com o sonho de que é possível mudar essa
com o movimento MST. “Quente” remete, pois, à “ocupação” de
realidade”, “a reforma agrária não terá espaço se não tivermos ou-
terras e de prédios públicos, situação que constrange o governo. Não
tro modelo econômico, outro projeto de sociedade”, parecem estar
se trata mais de apenas conseguir terra, mas de mudar o sistema de
numa relação parafrástica. Se considerarmos o processo discursivo
governo.
do discurso do MST, os sentidos desses enunciados convergem para
“Vermelho” diz respeito ao significado da cor símbolo do co-
um ponto comum: a solução para os problemas ou conflitos dos
munismo, implantando na Rússia. “Vermelho” era ainda era o nome
agricultores sem terra é a reforma agrária.
do exército revolucionário, conforme Lênin (Obras Escolhidas, v. 3,
Cada enunciado, no entanto, acrescenta um elemento novo, o
1980: 350): “Viva nosso Exército Vermelho Operário e Camponês”.
que efetiva a tensão entre o mesmo e o outro, característica da pará-
“Vermelho” indica que o MST continuará criando problemas, da óti-
frase, o que corresponde respectivamente: a exigência do agente, a
ca do Estado, organizando ocupações, dialogando com a sociedade,
luta, a exclusão dos demais, a condição da democracia, o aperfeiçoa-
denunciando a situação em que se encontram os sem terra.
mento das leis e a aceleração do processo, a união, o sonho de mu-
Assim, a partir dessas considerações, podemos afirmar que é
dança, a condição necessária para a mudança.
uma provocação, pois a cor “vermelha” está intimamente relaciona-
A instauração desse novo elemento, sentido, se dá de acordo
da com as concepções marxistas de instauração de uma novo modelo
com as posições que o sujeito ocupa (agricultor sem terra em posição
de sociedade, cuja realização tem-se dado pelas revoluções comu-
de reivindicação), pela conjuntura social (fim da ditadura militar e
nistas. Desta perspectiva, “quente e vermelho” traz em seu bojo uma
início da “democratização” no país), considerando que sua posição
ameaça às instituições que têm no capitalismo seu amparo e modelo
não é um lugar neutro, mas demarcado ideologicamente, pois segun-
ideológico.
do Pêcheux (9188), a ideologia não constitui os sujeitos, mas tam-
O discurso de Reforma Agrária pela Ocupação não deixa de
bém os sentidos e esses (assim como os sujeitos) são constituídos
estabelecer relações de sentido com outros discursos, como a da Re-
historicamente.
volução Cubana: “em um momento, penso que essas mudanças de-
O discurso de Reforma Agrária, em certo sentido,
vem ser realizadas, de uma forma ou de outra” (Fidel Castro, 1986:
consubstancia a problemática da reforma agrária que não se efetiva,

676 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


27) e, “nós nos vimos a fazer uma guerra, não havia outro caminho” considerando que MST se pronuncia dentro do discurso marxista
(idem, p. 128). As unidades “de uma forma ou de outra” e “não havia mais radical, que os próprios partidos de esquerda abandonaram,
outro caminho” são indicativas de que, para o avanço e materialização conforme Eagleton (1997) denunciou como um desserviço as ques-
pelo que se luta, é imprescindível posicionar-se de forma mais deci- tões sociais, e a última traição dos intelectuais.
dida, arrojada, como nos enunciados “a reforma agrária é uma neces- Discurso e ideologia dizem respeito a questão do poder que
sidade que independe de ser legal ou não” e “já que nossos direitos sempre foi condição primordial para a manutenção de qualquer siste-
não vêm, conquistaremos na marra”. ma político e suas concepções ideológicas ou para qualquer movi-
O que o discurso de Reforma Agrária pela Ocupação faz, face mento popular de massa, como para o MST, “terra e poder não se
à problemática da reforma agrária, é sinalizar para o esgotamento das ganha, se conquistam”.
estratégias anteriores, como diálogos, acordos, leis etc. Faz-se neces-
sário “avançar”, tanto no campo discursivo, quanto nas ações. A cau- 4. Considerações finais
sa por que se luta, determinada ideologicamente, é marcada no qua-
dro das instituições sociais. Ou se “avança” com posições mais radi- Essas considerações nos permite afirmar que o MST ocupa de
cais, ou pode-se estar fadado a uma existência política inexpressiva fato um lugar de vanguarda política, quebra a hegemonia política,
A partir dessas colocações, podemos citar, fazendo um tipo de impõe que o Estado o reconheça como o seu outro, dessa forma ins-
paralelo precário, o movimento político cubano, iniciado por José taurando uma nova ordem, a da heterogeneidade discursiva.
Martí, que se transformou em movimento guerrilheiro com Fidel Outro aspecto importante, foi a constatação do nascimento de
Castro. O discurso de reivindicação de reforma agrária dos movi- um novo tipo de discurso nascido no arcabouço ideológico que cons-
mentos anteriores ao MST transformou-se em discurso de “ocupa- tituem o MST. Esse discurso, Reforma Agrária pela Ocupação, é a
ção”, de modo que garantiu um outro sentido à luta pela reforma marca mais contundente da relevância histórica do movimento, a su-
agrária, assim redimensionando, revitalizando, tanto a prática quan- peração, em um primeiro momento, do discurso de reforma agrária
to o discurso. no país, em um segundo momento, a superação fragorosa dos discur-
sos de esquerda no Brasil.
4. Discurso e ideologia Este momento de superação é marcado pelo discurso de Re-
forma Agrária pelo Ocupação que lança o MST na dianteira dos
Esse novo discurso do MST assume diversas configurações,
movimentos populares no Brasil. Tal posição de vanguarda, acredi-
entre as quais está o resgate das grandes mobilizações de massa, uma
tamos, se dá em virtude do MST ser o agente de seu discurso, dessa
retomado do discurso socialista mais contundente (no momento his-
forma, entendemos que o movimento não deixa ou solicita que um
tórico em que há um certo consenso em torno de uma hegemonia do
outro agente fale por ele. O MST fala por si só diante do Estado que
discurso neoliberal. Pode-se dizer, principalmente, que é um discur-
so que tem como o interlocutor o Estado3. O MST questiona não só o é o seu interlocutor afrontado.
processo histórico de distribuição de terra, mas inclusive reforma
agrária que não será viável se não mudar o sistema político e econô- Referências bibliográficas:
mico. Este é o ponto nevrálgico, onde pode-se constatar o confronte
discursivo/ideológico, pois representa a substituição de um poder por FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 3a ed. Rio de Janeiro,
outro tipo de poder, uma ideologia por outra, o que na arena política Forense Universitária, 1986.
acontece de forma traumática. É, ainda, o questionamento e a ruptura FUCHS, Catherine. A paráfrase, entre o discurso e a língua. In:
do discurso hegemônico do neoliberalismo para instaurar, novamen- Languege François, no. 53, Février, 1982.
te, a heterogeneidade ideológica no cenário político. EAGELTON, Terry, Ideologia. São Paulo: Editora da UNESP, 1997.
Essa postura do MST foi possível em virtude de ele se colocar PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso. Uma firmação do óbvio.
como uma afronta diante da “escola do fim da ideologia”, e ainda Campinas: editora da UNICAMP, 1988.
ocupar o lugar ideológico “interditado, proibido” (Foucault, 1986),

3 Isso é significativo, considerando que o movimento operário tinha a elite e


o empresário como interlocutores, de forma que não chegava ameaçar
diretamente o Poder do Estado, ao passo que o MST se coloca diante do
Estado não só para reivindicar, mas sobre tudo para disputar espaço com
ele.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 677


Interferência da oralidade na escrita: o caso do
registro ortográfico do “e, i, o, u” átonos
Fernando Antônio Pereira Lemos
Universidade Federal de Minas Gerais

ABSTRACT – This article discusses how some sound variations interfere with the writing of primary school children. The focus is on the analysis of middle
vowels in Brazilian Portuguese. It is known that middle vowels in Brazilian Portuguese may be raised to high vowels as in “p[e]rigo/p[i]rigo” or “c[o]mida/
c[u]mida”. However, not every middle vowel may be raised. This paper intends to evaluate how the raising of middle vowels is reflected in the writing of
young school children.
PALAVRAS-CHAVE: Oralidade, variação, escrita, alfabetização.

1. Objeto de estudo a) casos que são resolvidos a partir de regras inferíveis pelo
aprendiz.
Quando nos propomos a pesquisar a aquisição da escrita, te-
Por exemplo, o registro do sufixo -e[z]a com a letra s ou
mos que ter claro qual é o papel desempenhado pelo sistema orto-
com a letra z em palavras derivadas. Aqui, o aprendiz poderá veri-
gráfico. A sua principal função é neutralizar as diferenças dialetais
ficar que são escritas com s as palavras relacionadas ao feminino
(e idioletais) presentes em uma determinada língua. Assim, o mate-
de determinados substantivos. Assim, temos duque - duquesa; ba-
rial escrito em uma sociedade pode ser compartilhado por todos os
rão - baronesa; príncipe - princesa. Já as escritas com z estarão
seus membros.
relacionadas àquelas derivadas de palavras que exprimem qualida-
Tomemos como exemplo a palavra pote. Escrita com as le-
de, como belo - beleza; mole - moleza; rico - riqueza. Todas
tras p, o, t, e e. Em um determinado dialeto ela poderá ser pronunci-
correspondendo ao nome da qualidade.
ada como po[te], em outros dialetos, ela poderá ser pronunciada
b) casos que são idiossincráticos, ou seja, onde a depreensão
como po[ti], po[tςi] ou então como po[tς]. Outro exemplo é o da
da forma ortográfica correta é aprendida caso a caso.
palavra menino, escrita com a letra e antes da sílaba tônica formada
Um bom exemplo é a grafia de palavras com a letra x ou com
por -ni-. Essa palavra em alguns dialetos pode ser pronunciada como
ch. Em lixo, bicho, bruxa, bucha e lanche não há a possibilidade da
m[i]nino, como m[ε]nino ou como m[e]nino.
inferência de uma regra que possa auxiliar o aprendiz a solucionar
Assim, nota-se uma distinção entre a forma escrita dessas pa-
o seu dilema ortográfico. Assim, só o contato com cada palavra
lavras e a forma como elas podem ser pronunciadas. Isso ocorre
poderá levá-lo à depreensão da grafia correta. Outro exemplo está
porque o sistema ortográfico é arbitrário. É uma forma convencionada
relacionado com cinema e sinal. O som inicial é o mesmo, mas a
que, como afirmamos anteriormente, objetiva a neutralização das
sua grafia é diferente.
diferentes formas orais na sua “representação” escrita.
O que se apresenta como novidade em nossa pesquisa é que
A presente pesquisa busca identificar os reflexos da interfe-
pretendemos verificar a importância do fator estrutural no estabele-
rência da oralidade na escrita, focalizando o fenômeno do alçamento
cimento ou não de regras que sejam capazes de otimizar o aprendi-
das vogais médias em sílabas átonas. O fenômeno em questão, estu-
zado ortográfico. Por fator estrutural estamos entendendo as posi-
dado por Bisol (1981) e por Viegas (1987), é caracterizado na
ções da sílaba com possibilidade de alçamento [e]~[i] e [o]~[u], na
oralidade pela elevação do ponto de articulação das vogais médias-
oralidade, em relação à sílaba tônica. Ou seja, se anterior à sílaba
altas [e] e [o] para a posição alta, realizando-se como [i] e como [u],
tônica, pretônica: menino, moleque, fogão. Em posição seguinte à
respectivamente. Assim, na fala, as palavras v[e]stido, t[e]soura,
sílaba tônica em palavras proparoxítonas, postônica não-final ou
b[o]tina, t[o]mate, termôm[e]tr[o], búss[o]la e chav[e] podem se
medial: tráfego, árvore, bússola. Se em final de palavra, após a sílaba
realizar como v[i]stid[u], t[i]soura, b[u]tina, t[u]mat[i],
tônica, postônica final: poste, semáforo. Queremos verificar, ainda,
termôm[i]tr[u], búss[u]la e chav[i]. O nosso interesse, portanto, é
se o mesmo erro ortográfico, o som [u] que não é grafado com a letra
investigar como tal variação na fala pode interferir no aprendizado
o e o som [i] que não é grafado com a letra e, deve ser tratado de
da ortografia por alunos das primeiras quatro séries da fase de alfa-
forma igual em todas as situações.
betização.
Finalmente, a nossa pesquisa ajudará na compreensão do pro-
cesso de aquisição da escrita, com foco no registro ortográfico das
2. Justificativa
vogais médias-altas [e] e [o] que, em alguns dialetos, podem ser
Lemle (1995), Cagliari (1995, 1999), Mansini-Cagliari & alçados para as vogais altas [i] e [u], em sílabas átonas. Por exemplo,
Cagliari (1999), Oliveira & Nascimento (1990), Alvarenga et alii em palavras como perigo, começo, quadrúpede, pérola, peixe e pato.
(1989), dentre outros, são exemplos de trabalhos que buscaram
discutir a questão da interferência da oralidade na escrita. Em Lemle 3. A questão do alçamento
(1995), especificamente, quando a autora sugere etapas a serem
Em nossa pesquisa, as vogais médias [e] e [o], em posição
vencidas no processo de alfabetização, fica patente que a aquisi-
tônica, como em p[o]ça e p[⊃]ça, p[e]go e p[]go, foram excluídas
ção da escrita é um contínuo formular e reformular de hipóteses,
da análise. Isso porque, apesar de Alves (1999) comprovar a ocor-
onde o aluno, com base nos seus conhecimentos a respeito da sua
rência de variação lingüística nessas vogais em sílaba tônica, tais
língua, vai, paulatinamente se apropriando da forma ortográfica
ocorrências não afetam o processo de construção ortográfico, pois
das palavras.
não há a troca de letras na escrita.
Nesses trabalhos, as dificuldades elencadas pelos autores po-
Este estudo a respeito do registro ortográfico do “e, i, o, u”
dem ser reunidas em dois grupos:

678 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


átonos fixa sua investigação nas posições pretônica, como em tesou- 4.2 Testes escritos
ra, menino, comida e mosquito; postônica medial, como em pêssego Foram aplicados 3 testes de escrita e um teste de identifica-
e víbora e postônica final, como em quinze e poste. ção de erros.
Como foi citado anteriormente, o alçamento ou a elevação
4.2.1 Produção de texto a partir do tema festa junina
das vogais médias no Português do Brasil tem sido tratado por al-
Objetivou verificar se, na produção escrita da criança, apare-
guns autores. A discussão dessa questão na oralidade tem se fixado
ceria o registro do alçamento das vogais médias nas posições pretônica,
principalmente na sua realização em sílabas pretônicas, como em
como minino, tisoura, fugueira; postônica medial, como árvure e
Bisol (1981), Viegas (1987), Bortoni et alii (1992), Oliveira (1992) e
fósfuro, e postônica final, como posti , fogueti, meninu e fósforu.
Callou & Leite (1996). Vejamos quais são as diversas abordagens
para a questão do alçamento na oralidade. 4.2.3 Ditado de gravuras.
Esse teste foi composto por um formulário contendo nove
3.1 Pretônicas desenhos. A criança deveria escrever o nome dos objetos relaciona-
Três propostas teóricas abordam a questão da variação das dos nele.
vogais médias na oralidade em posição pretônica. Essas linhas teóri-
4.2.3 Jogo de palavras cruzadas
cas podem ser denominadas como a da variação livre, a da variação
O teste foi composto por um formulário contendo 24 dese-
contextualizada e a da difusão lexical.
nhos. A criança deveria preencher as lacunas, completando o nome
Segundo a proposta da variação livre, a alternância, como
de cada figura.
em p[e]rigo e p[i]rigo, não é regulada por nenhum fator.
A proposta de variação contextualizada estabelece que fato- 4.2.4 Jogo dos doze erros
res estruturais, como a presença da vogal alta anterior [i] na sílaba Este teste foi composto por um texto previamente elaborado
tônica da palavra p[e]rigo, podem condicionar a realização de uma onde aparecem doze palavras escritas com o alçamento. Piru, bunito,
mudança sonora em uma determinada língua. Assim, a palavra quadrúpide, agrícula, elefanti e circu são exemplos de palavras que
p[e]rigo poderia mudar a sua pronúncia para p[i]rigo em determina- apareceram no teste. O objetivo do teste foi verificar se a criança era
dos dialetos, a partir de uma regra variável de harmonização vocálica, capaz de identificar os erros ortográficos presentes no texto.
como foi postulado por Bisol (1981). Estabelece, ainda, que fatores
4.3 Gravação da fala dos alunos
não-estruturais, como classe social, sexo e idade, interferem na vari-
Foi feita a gravação da fala dos informantes. Registrou-se a
ação lingüística.
fala formal a partir de um interrogatório sobre o nome das figuras
A proposta da difusão lexical postula que uma mudança sono-
presentes nos testes escritos. Para o registro da fala informal, foi ela-
ra ocorre, inicialmente, em uma determinada palavra e, sendo aceita
borada uma entrevista. Durante a entrevista, os informantes foram
pela comunidade de falantes em que está inserida, ela se espalhará
indagados a respeito de temas como as brincadeiras infantis, os no-
para o restante de palavras que apresentarem o mesmo ambiente foné-
mes de animais e insetos prejudiciais ao ser humano e festa junina.
tico. Essa mudança se implementaria palavra por palavra, sendo con-
dicionada, portanto, lexicalmente. Assim, a regularidade da mudança 4.4 Dados coletados
sonora ocorreria a posteriori e não a prior (Oliveira, 1992: 33-35). Foram coletados 5.431 dados de fala e 3.402 dados de escrita.
5 Análise dos dados de escrita
3.2 Postônicas mediais Os dados foram quantificados, a fim de que pudessem pro-
Segundo Câmara Júnior, na sílaba seguinte à sílaba tônica porcionar uma visão mais clara a respeito dos caminhos trilhados
em palavras proparoxítonas, “a grafia com o o ou com o u é uma pelos alunos para solucionar o problema da transposição da oralidade
mera convenção da escrita, pois o que se tem na verdade é o /u/” para a escrita.
(Câmara Júnior, 1989: 44). Ou seja, o autor postula que palavras As tabelas 1 e 2 apontam tendências interessantes para a nos-
como agrícola, pérola e bússola são pronunciadas como agríc[u]la, sa análise. Elas tratam do registro da letra e e da letra o. Elas mos-
pér[u]la e búss[u]la. tram que, a depender do ambiente e do tipo de letra a ser utilizada, a
tarefa do registro ortográfico será mais fácil ou mais difícil.
3.1.3 Postônicas finais Assim, a posição postônica final aparece como a menos pro-
Em palavras como poste, disse, tudo, mosquito a vogal átona blemática para os aprendizes, com 5% de erros para a letra e e 1% de
final é escrita com as letras e e o, embora os seus sons sejam, na fala erros para a letra o, tomando-se como parâmetro o total de dados
[i] e [u], na maioria dos dialetos do português do Brasil. É isso o que relatados nas séries de alfabetização. Nas posições pretônica e
postula Câmara Júnior ao afirmar que, “no Brasil, houve um postônica medial, a letra a ser utilizada parece determinar o grau de
cerramento variável do /e/, que no Rio de Janeiro, por exemplo, deu dificuldade que o aluno enfrentará. O registro da letra e é mais fácil
francamente /i/. Podemos considerar esta a articulação normal do quando aparece na posição postônica medial, com 9% de erros, do
português brasileiro, em simetria com o /u/, que (...) substituiu muito que quando aparece na posição pretônica, com 19% de erros. O re-
cedo /o/ átono final” (Câmara Júnior, 1979: 45). gistro da letra o é mais fácil na posição pretônica, com 7% de erros,
do que na posição postônica medial, onde aparecem 16% de erros.
4. Metodologia adotada
4.1 Informantes
A pesquisa foi realizada no município de Divinópolis-MG.
Foram escolhidas duas escolas, sendo uma pública, representativa
do que se convencionou chamar de classe trabalhadora, com renda
familiar de no máximo três salários mínimos, e uma escola particu-
lar, representativa da classe média alta. Foram escolhidos 4 alunos
de cada sexo e de cada série dos quatro primeiros anos de alfabetiza-
ção. Foram escolhidos ao todo 64 informantes.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 679


A fim de confirmarmos a veracidade dos fatos, elaboramos a essa regra trará algum inconveniente em palavras do tipo safári que é
tabela 3. Nela, aparece a evolução dos erros, em percentuais, de acor- grafada com i final.
do com o tipo de letra que deveria ser registrado, o tipo de escola e a Finalmente, pelo exposto, concluímos que o mesmo proble-
série do informante. ma, ou seja, o registro ortográfico das vogais átonas, deve ser tratado
Os dados confirmam as tendências que as tabelas anteriores de forma diferente, dependendo da sua posição em relação à sílaba
apontaram. Os alunos, no caso da postônica final, conseguiram um tônica e da letra a ser registrada.
desempenho melhor nessa posição do que em outros ambientes, che-
gando a resolver o dilema da transposição da forma oral para a escrita Referências bibliográficas
já na 2ª série de alfabetização, no caso da escola particular. Nas ou-
tras posições, os números também apontam para uma maior facilida- ALVARENGA, Daniel et. alii. Da forma sonora da fala à forma grá-
de no registro da letra e na postônica medial e da letra o na pretônica. fica da escrita: uma análise lingüística do processo de alfabeti-
zação. Cadernos de Estudos Lingüísticos. Campinas, n.16, p. 5-
30, Jan./Jun.1989.
BISOL, Leda. Harmonização vocálica: uma regra variável. Rio de
Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 1981. 333 p. Tese de
Doutorado.
BORTONI, Stela M. et alli. A variação das vogais médias pretônicas
no português de Brasília: um fenômeno neogramático ou de di-
fusão lexical? Revista de Estudos da Linguagem. Faculdade de
Letras da UFMG, Belo Horizonte, p. 9-31, 1992.
6. Conclusão CAGLIARI, Luiz Carlos. Alfabetização e lingüística. 8 ed. São Pau-
lo, Scipione, 1995. 189 p.
Concluímos, primeiramente, que realmente o alçamento das ____________________ & MANSINI-CAGLIARI, Gladis. Diante
vogais médias [e] [o] para as vogais altas [i] para [u], presente na das letras: a escrita na alfabetização. Mercado das letras, Cam-
oralidade, interfere na escrita, uma vez que apareceram palavras pinas, 1999. 238 p.
grafadas como minino, tisoura, musquito, termômitro, pérula, bússula, ______________________Alfabetizando sem o BA-BE-BI-BO-BU.
posti e mosquitu nos testes escritos aplicados aos alunos. São Paulo, Scipione, 1999. 399 p.
Concluímos também que no caso das sílabas pretônicas, como CÂMARA JÚNIOR, Joaquim. História e estrutura da língua portu-
em menino, tesoura, o registro da letra e é extremamente difícil para guesa. 2 ed. Rio de Janeiro, Padrão, 1979. 264 p.
os alunos. No caso da letra o, a dificuldade permanece para os alunos ______________________ Estrutura da língua portuguesa. 19 ed.
da escola pública, mas é praticamente resolvida pelos alunos da esco- Petrópolis, Vozes 1989. 124 p.
la particular ao longo das quatro séries pesquisadas. LEMLE, Miriam. Guia teórico do alfabetizador. 10 ed. São Paulo,
No caso das postônicas mediais, em palavras como cócegas,
Ática, 1995. 72 p.
abóbora e fósforo, há grande número de casos idiossincráticos, pois
OLIVEIRA, Marco Antônio. Aspectos da Difusão Lexical. Revista
encontramos na oralidade, e na escrita, realizações do tipo cócegas,
de Estudos da Linguagem. Faculdade de letras da UFMG, Belo
cócigas e cosgas; abóbora, abóbura e abóbra; fósforo; fósfuro, fóscoro
Horizonte, p. 31-41, 1992.
e fóscuro. Por sua vez, verificando os dados, verificamos que o regis-
___________________ & NASCIMENTO, Milton do. Da análise
tro da letra o se mostrou muito mais difícil para os alunos. Afinal, os
de “erros” aos mecanismos envolvidos na aprendizagem da es-
dados demonstram que, tanto na escola pública quanto na escola par-
crita. Educ. Rev., Belo Horizonte, n. 12, p. 33-43, dez. 1990.
ticular, o índice de erros se mantém elevado até a 4ª série do período
_________ (1989) Estrutura da língua portuguesa. 19 ed. Petrópolis,
de alfabetização.
Vozes, 1989. 124 p.
Nas postônicas finais, houve a regularidade da presença do
som [i] no final de quase todas as palavras grifadas com e e do som VIEGAS, Maria do Carmo. Alçamento de Vogais Médias Pretônicas:
[u] no final de quase todas as palavras grafadas com a letra o, como uma abordagem sociolingüística. Dissertação de Mestrado.
em poste, disse, tudo, mosquito. Conclui-se, portanto, que há a pos- UFMG, Belo Horizonte, 1987.
sibilidade da inferência de uma regra pelo aprendiz, segundo a qual ______________________ O alçamento das vogais médias
todo som [i] e todo som [u] finais átonos serão grafados respectiva- pretônicas e os itens lexicais. Revista de Estudos da Linguagem.
mente com a letra e e com a letra o. É nesta perspectiva que apontam Faculdade de Letras da UFMG, Belo Horizonte, p. 101 - 122,
os dados das tabelas 1, 2 e, especialmente, da tabela 3. No entanto, jul./dez. 1995. 221 p.

680 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Compreensão de textos: construção de sentido
por meio do desempenho estratégico
Gilberlande Pereira dos Santos
Universidade Federal de Pernambuco
Faculdades Integradas da Vitória de Santo Antão - PE

ABSTRACT: This paper aims at presenting how readers use reading strategies in order to activate different kinds of knowledge (linguistic,
encyclopaedic, pragmatic) when reading as a meaning-construction process. It also discusses how the result of this process is reflected in their
textual production by means of various kinds of genres and discourses.
PALAVRAS-CHAVE: text, understanding, strategies, sociointeracionism.

Apresentação 1978), constituem-se de atividades como: verificar o resultado das


Esse artigo tem por objetivo a discussão do processo de tentativas para solução de problemas na leitura; planejar a próxima
construção de sentido textual por meio do uso de estratégias de leitura ação; avaliar a eficácia de qualquer ação experimentada; testar e revisar
e compreensão, partindo do pressuposto de que a monitoração as próprias estratégias de aprendizagem da tarefa e desenvolver ações
cognitiva contribui para a ativação dos conhecimentos lingüísticos, corretivas diante de dificuldades durante a leitura (cf. Baker & Brown,
enciclopédicos e pragmáticos dos leitores, indispensáveis à conclusão 1984:21-44).
satisfatória de uma tarefa de compreensão. Com esse enfoque, faremos A metacognição refere-se, assim, à monitoração e
um breve histórico do avanço das ciências cognitivas e sua contribuição conseqüente regulação e harmonização dos processos cognitivos em
para o trabalho com o processo de leitura, em seguida abordaremos as relação aos objetos ou dados sobre os quais eles se sustentam,
estratégias de leitura e compreensão. geralmente a serviço de alguma meta ou objetivo concreto. Resume-se
nas estratégias de planejar, monitorar e avaliar a tarefa requerida e as
As ciências cognitivas e o processo de leitura: algumas palavras decisões tomadas para melhor conclui-la.
A influência das ciências cognitivas no campo da pesquisa A maioria das atividades cognitivas usadas tem como meta
em leitura vem fornecendo uma série de dados e medidas mentalistas principal o sucesso da compreensão textual. Assim sendo, a
com os quais pode ser testada a monitoração cognitiva em leitura. monitoração cognitiva em leitura é, de fato, monitoração da
Essa preocupação com os processos mentais dos leitores não é recente, compreensão. Monitorar conscientemente é uma importante ação para
como nos informa Pinto (1994:138), teve início já na relação produto- a eficácia da leitura.
processo referente à noção de leitura, nas concepções distantes de Pelos conceitos mencionados e explicitados acima, podemos
Huey (1908) e Thorndike (1917): “As idéias de Huey e Thorndike, as observar o relacionamento hierárquico existente nessa tríade
quais precederam as noções presentes, refletem a crença de que a terminológica de fundamental importância para a pesquisa em leitura:
leitura requer ambas as informações visual e não-visual. Pode-se a monitoração da compreensão é monitoração cognitiva e esta é um
observar que as posições atuais sobre esta questão não diferem componente da metacognição.
basicamente de suas definições e conceitos. Atualmente, estas idéias Fundamentados, portanto, nessa terminologia passamos a
enfatizam os processos afetivo, cognitivo e psico-motor dos leitores considerar as estratégias de leitura e compreensão.
em suas tentativas para apreender as mensagens escritas.”(id. ibid.)
Uma discussão de leitura na perspectiva de processo não Estratégias de leitura e compreensão textual
pode deixar de considerar as descobertas e os avanços das ciências O termo estratégia é amplamente usado, por exemplo, para
cognitivas. Como nos historiam Baker & Brown (1984:21), as designar tomadas de decisões nos mais diversos campos das atividades
influências dessas ciências nos estudos de compreensão de leitura são humanas. Comumente, encontramos esse termo em expressões do
inegáveis, e podem ser amplamente verificadas a partir da proliferação tipo “estratégia de marketing”, “estratégia política” e outras similares
terminológica encontrada em trabalhos desta natureza. Termos como (Matoso, 1993:78). Diante disto, é notável a relação desse termo com
“metacognição”, “monitoração cognitiva” e “monitoração da a necessidade humana de enfrentar e solucionar problemas.
compreensão” aparecem em diversas obras relativas ao assunto (Just Estratégia desponta como um conceito relevante no que se
& Carpenter, 1977; LaBerge & Samuels, 1977; Spiro, Bruce & Brewe, refere ao processamento da compreensão e interpretação de textos.
1980; Wenden, 1991; Pinto, 1994; Cohen, 1987, 1998, entre outros). Pois, se partimos do princípio de que, diante de uma tarefa de leitura,
Metacognição foi um termo introduzido pelos psicólogos geralmente, o resultado esperado é a compreensão satisfatória, então
do desenvolvimento, especialmente Flavell (1978), para referirem-se essa é uma atividade de solução de problemas que, como qualquer
ao conhecimento e ao controle dos indivíduos sobre seu próprio outra, requer planos, meios de desenvolvimento.
pensamento e suas atividades de aprendizagem. Configurando-se, É nessa perspectiva que o uso de estratégias na leitura por
posteriormente, em uma subdivisão: o conhecimento versus o parte do processador é consenso entre pesquisadores. Também, a
conhecimento do conhecimento. Esse termo envolve, no mínimo, dois escolha seletiva de determinada estratégia pode conduzir o leitor a um
componentes: 1) a consciência por parte do leitor de quais habilidades, resultado satisfatório para os seus propósitos ou falhar nesse objetivo,
estratégias e recursos devem ser usados para desempenhar bem uma o que vai requerer deste uma tomada de decisão consciente
tarefa de leitura e compreensão; 2) a habilidade para usar mecanismos (conhecimento estratégico metacognitivo) para prosseguir
auto-regulatórios que assegurem a conclusão bem-sucedida da tarefa. automaticamente ou não na tarefa requerida.
Tais mecanismos, conhecidos por monitoração cognitiva (Flavell, Nesse processo de leitura e compreensão de textos, o

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 681


aprendiz dispõe de meios estratégicos para facilitar a completude literatura pertinente ao assunto demonstra que os leitores proficientes2
eficiente da tarefa requerida. Tais estratégias envolvem o uso das são mais prováveis usuários das estratégias metacognitivas do que
cognitivas e das metacognitivas; o freqüente uso de umas ou de outras aqueles não-proficientes, e também as usam mais eficientemente.
é determinado por fatores, tais como: habilidades dos leitores, natureza As estratégias do tipo afetivas servem para regular emoções,
da tarefa solicitada, condições de trabalho, contextos lingüístico e motivações e atitudes diante da tarefa (por exemplo: reduzir a ansiedade
situacional, entre outros. e auto-encorajar). As sociais incluem as ações escolhidas pelos
Para Cohen (1998: 3-4)), as estratégias acima referidas aprendizes para interagirem com outros e com falantes nativos (por
podem-se amalgamar no processo de aprendizagem da linguagem. exemplo: fazer perguntas para clarear regras e relações sociais ou
Por “estratégias de aprendizagem” entende o autor “processos de ativar processos de cooperação para completar tarefas).
aprendizagem conscientemente selecionados pelos aprendizes”(grifo O autor nos lembra que, embora algumas vezes as estratégias
nosso!). Estes elementos de consciência e de escolha/seleção são os sejam referidas como “boas”, “efetivas”, “bem-sucedidas”, ou o inverso,
que tornam este processo diferente de outros não estratégicos usados elas por si sós não conduzem essas características, ou seja, não são
pelos aprendizes. Com a inclusão do elemento consciência no uso inerentemente boas ou más, mas têm o potencial para serem usadas
destas estratégias, o autor nos conduz a uma subdivisão plausível efetivamente – se pelo mesmo aprendiz de uma passagem para outra
entre estratégias de aprendizagem da linguagem e estratégias de uso da dentro da mesma tarefa; de uma tarefa para outra ou por diferentes
linguagem definidas como processos conscientemente selecionados aprendizes de uma mesma tarefa. O importante, a nosso ver, é que se
pelos aprendizes que podem resultar em ações desenvolvidas para uma determinada estratégia é usada por um grupo de aprendizes de
realçar a aprendizagem ou o uso da linguagem, através de uma mesma tarefa em um mesmo ponto do material lingüístico e esta
armazenamento, fixação, recordação e aplicação da informação. auxiliou o processo de compreensão daquela passagem, parece-nos
Segundo Cohen (1998:5-6), as estratégias de aprendizagem plausível afirmamos que tal estratégia foi usada efetivamente.
da linguagem incluem, por exemplo, aquelas de identificar a tarefa a Outro ponto a ser lembrado, também mencionado por Cohen
ser aprendida; distinguir esta tarefa de outras, caso seja necessário; (op. cit.), é o fato de que mais não significa necessariamente melhor. O
agrupar os elementos que possam facilitar a aprendizagem (por fato de alguns aprendizes usarem mais estratégias do que outros não
exemplo: agrupar o vocabulário por categorias como nomes, verbos, lhes confere a característica de maior proficiência e, o contrário, de
adjetivos, advérbios, etc.); manter contatos repetidos com a tarefa e menor proficiência. Conforme sintetiza o autor “o número total ou a
internalizar, formalmente, o material a ser aprendido através do uso variedade de estratégias empregadas e a freqüência com que determinada
de técnicas mnemônicas pertinentes e disponíveis. Nesse ponto, o estratégia é usada não são necessariamente indicadores de quão bem-
autor nos alerta para a atenção que deve ser dada ao caso dos aprendizes sucedida será a tarefa de linguagem”. A conclusão eficiente de
adultos que, muitas vezes, têm perspicácia suficiente para distinguir determinadas tarefas pode requerer um número maior e uma variedade
entre aquilo que querem, de fato, guardar na memória e aquela maior de estratégias, enquanto que o sucesso de outras pode depender
informação que pode ser obtida mais automaticamente. do uso de poucas estratégias, cada uma usada apenas uma vez, mas
As estratégias de uso da linguagem, por sua vez, dividem- eficientemente.
se, segundo o autor, em quatro subgrupos: (1) estratégias de Desta forma, nesse processo de construção da adequada
recuperação, usadas para ativar e trazer à tona o conhecimento compreensão, não basta ao aprendiz dominar apenas os contextos
armazenado na memória, através de quaisquer meios de busca e lingüístico e pragmático envolvidos no/pelo texto, mas também proceder
pesquisa mental; (2) estratégias de repetição, usadas para praticar a uma escolha eficiente de estratégias de leitura e compreensão que
repetidamente estruturas lingüísticas em diversas situações de uso; possa favorecer o sucesso da conclusão da tarefa. Ainda mais, essa
(3) estratégias de cobertura, usadas pelos aprendizes para criar a escolha depende da natureza da tarefa em questão, do conhecimento
impressão de que têm controle sobre o material, quando na verdade prévio do leitor, da situação extralingüística envolvida no momento do
não o têm. São um tipo especial de estratégia compensatória; (4) trabalho, como também do gênero textual e discursivo indicado.
estratégias de comunicação que têm o enfoque voltado para abordagens Todos esses fatores podem estar relacionados às inferências
relativas à comunicação de uma mensagem que é tanto informativa construídas pelos leitores no momento da execução de uma tarefa. E,
quanto significante para o leitor/ouvinte. Este subgrupo de estratégias nesse caso, inferir não significa simplesmente preencher lacunas
inclui tanto aquelas intralingüísticas, tais como: regras de gramática textuais nem tão pouco se constitui no simples ato de acrescentar algo
ou significado vocabular de um contexto para outro onde elas não são mais ao já dito e/ou lido. Envolve, também, o dizer a mesma coisa de
aplicadas, quanto as interlingüísticas, como as de transferência negativa forma diversa. As inferências são, na verdade, construções cognitivas
(isto é, aplicar padrões da linguagem nativa, ou outra, na linguagem- feitas pelos leitores/ouvintes de uma nova unidade semântica a partir
alvo, onde esses padrões não são aplicáveis; evitar ou abandonar o de determinados traços lingüístico-textuais e/ou não-lingüísticos de
tópico; reduzir a mensagem; mudar o código e parafrasear). suas representações de mundo.
Além da classificação acima descrita, Cohen (op. cit. : 7-8)1 De acordo com os estudos de Shiro (1994:167), um texto
acrescenta que as estratégias de aprendizagem da linguagem e toma forma (ou diferentes formas) na mente do leitor durante o processo
estratégias de uso da linguagem podem ser ainda diferenciadas de leitura. Um mundo textual é construído graças à combinação da
conforme o fato de serem cognitivas, metacognitivas, afetivas ou informação textual com inferências para formar um todo coerente.
sociais. As cognitivas englobam as estratégias de aprendizagem da Nessa visão, as inferências são compreendidas como elementos novos
linguagem de identificar, agrupar, fixar e armazenar o material necessariamente acrescidos à informação textual para criarem um novo
lingüístico, assim como as estratégias de uso da linguagem de significado.
recuperação, repetição, compreensão ou produção de palavras, frases
e outros elementos da língua. As metacognitivas tratam da pré-avaliação
e pré-planejamento, avaliação e planejamento on-line e pós-avaliação 1
Citando Chamot, 1987; Oxford, 1990.
2
das atividades de aprendizagem da linguagem e dos eventos de uso da Neste trabalho é considerado leitor proficiente aquele que usa estratégias
linguagem. Tais estratégias permitem aos aprendizes controlarem sua de leitura e compreensão de textos, ou seja, é o leitor estratégico, pois
cognição através da coordenação do planejamento, organização e tem a capacidade de ativar o conhecimento prévio, fazer associação de
informações, usar a memória, criar inferências para finalizar bem a tarefa
avaliação do processo de aprendizagem. Segundo o autor (1998), a
de leitura.

682 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Esse processo inferencial tem ancoragem, geralmente, em Referências bibliográficas
outro elemento relevante para a construção do sentido: a
intertextualidade. Segundo Hartman (1995:527), a “intertextalidade BAKER, Linda & BROWN, Ann. 1984. Cognitive Monitoring in
envolve a conexão, a ligação ou o agrupamento de significados de Reading. In.: Understanding Reading Comprehension: Cognition,
diferentes fontes de conhecimento”. Neste caso, a compreensão de Language, and the Structure of Prose. Edited by James Flood.
um texto (seja verbal ou não-verbal) sofre influências do conhecimento Newark, Delaware: Internacional Reading Association.
prévio dos leitores em relação a outros textos, e esta intertextualidade COHEN, Andrew. 1997. Recent Uses of Mentalistic Data in Reading
se manifesta tanto através dos elementos superficiais do material a Strategy Research. In.: D.E.L.T.A., vol.3 no 1.
ser compreendido quanto dos elementos profundos que são acionados ________. 1998. Strategies in Learning and Using a Second Language.
na memória do leitor, conduzidos à construção de uma leitura adequada London and New York: Longman.
aos seus propósitos. FLAVELL, J. H. 1978. Metacognitive Development. In.:
Assim sendo, experiências de leituras anteriores; conversas SCANDURA, J.M. & BRAINERD, C. J. (editors). Structural/
vivenciadas no dia-a-dia com amigos, parentes, professores; process theories of complex human behavior. Alphen a. d. Rijn.,
conhecimento do gênero e do discurso textual em questão; The Netherlands: Sijthoff & Noordhoff.
conhecimento da (super)estrutura do texto; discernimento dos HARTMAN, Douglas K. 1995. Eight readers reading: the intertextual
sistemas culturais; conhecimento de aspectos sociais anteriores e/ou links of proficient readers reading multiple passages. In.: Reading
atuais estão presentes nas leituras em curso e contribuem para o Research Quarterly, 30/3.
processo de construção de sentido. MATOSO, Inez. 1993. Modelos Teóricos e Estratégias de Leitura:
suas implicações no ensino. Dissertação de Mestrado apresentada
Considerações finais ao Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal
A construção do sentido textual não ocorre unilateralmente, de Alagoas, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (in
ou seja, de parte única e exclusivamente do leitor, mas sim os leitores mimeo).
e seus mundos mediados pelo evento textual interagem para obtenção PINTO, Abuêndia Padilha P. 1994. Cognitive Skills and Individual
adequada da compreensão à tarefa de leitura solicitada. Nesse processo Differences in Reading. In.: BÁRBARA, Leila & SCOTT, Mike
sociointerativo, diversos fatores são acionados e a efetiva utilização (editors). Reflections on Language Learning. In Honour of
desses fatores para uma determinada leitura depende do desempenho Antonieta Celani. Clevedon, Avon: Multilingual Matters Ltd.
estratégico dos indivíduos. SHIRO, Martha. 1994. Inferences in Discourse Comprehension. In.:
Advances in Written Text Analysis. Edited by Malcolm Coulthard.
London and New York.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 683


O sociointeracionismo: influência no
ensino-aprendizagem de leitura
Verônica Cavalcanti de Araújo Campos
Faculdades Integradas da Vitória de Santo Antão
Secretaria de Educação de Pernambuco

ABSTRACT: The aim of this study is to discuss the improvement of reading as a result of a social constructivist approach to learning. Supported by
theoretical presupositions of psychologists of the social interactionist school, this article emphasizes the role of a mediator as the secret of effective learning.
PALAVRAS-CHAVE: reading, social constructivist approach, mediator, learning.

Nos últimos vinte e cinco anos as concepções do que é ensinar a experiência, por exemplo, tornam-se o foco central da aprendiza-
e aprender têm passado por mudanças significativas. Por muito tem- gem; b) a importância de considerar o aprendiz como um indivíduo
po a Pedagogia, de uma maneira geral, não apenas a relacionada com ativamente envolvido na construção do significado; c) a aplicação das
o ensino de leitura, valorizou o que deveria ser ensinado. O ensino noções de assimilação e de acomodação de Piaget pode ser vista na
ganhou autonomia em relação à aprendizagem. aprendizagem de uma nova língua, quando recebemos um novo input
No entanto, vários fatores, dentre eles os fracassos escolares da língua – ouvindo uma conversação, por exemplo – precisamos
decorrentes da aprendizagem e as pesquisas que buscam apontar como modificar o que já sabemos sobre a língua (acomodação) para adequar
o sujeito constrói conhecimentos, indicam que é preciso dar novo a nova informação ao conhecimento existente (assimilação). Dessa
significado à unidade entre aprendizagem e ensino, uma vez que sem forma, nosso conhecimento sobre como o sistema da nova língua
aprendizagem não há ensino. Atualmente, para a maioria dos teóri- opera, gradualmente se desenvolve e, por fim, d) as tarefas devem se
cos em educação, um marco explicativo para tal revisão tem se situ- adaptar ao nível cognitivo de capacidade do aprendiz, nem devem ser
ado na perspectiva construtivista1 . muito abstratas para não prejudicar aqueles que não podem funcionar
As visões mais tradicionais percebem a aprendizagem como a neste nível, nem muito simples para que o nível de conhecimento não
acumulação de fatos ou o desenvolvimento de habilidades. Em con- fique abaixo do nível de competência dos aprendizes (Pinto, 1999:
traste a estas visões, a teoria construtivista parte do pressuposto que 05).
desde o nascimento o indivíduo está ativamente envolvido na cons- Apesar dessas valiosas contribuições no campo da aprendiza-
trução do significado pessoal, que consiste na compreensão e repre- gem, a teoria de Piaget (1966) atribuiu pouca importância à interven-
sentação das suas experiências. Cada pessoa forma seu próprio sen- ção dos pais ou dos professores no processo de ensino. Além disso,
tido de mundo a partir das experiências que a circundam, exercendo, outra crítica feita a esta teoria é a pouca relevância dada ao ambiente
pois, controle sobre a obtenção e organização de sua experiência de social para a aprendizagem; em vez disso, enfatiza o desenvolvimen-
mundo exterior (Williams e Burden, 1997: 21). to individual.
A concepção construtivista postula, então, que a construção No entanto, o princípio da aprendizagem decorrente do concei-
do conhecimento resulta da interação do sujeito com o ambiente. to de mediação na interação homem-ambiente tem sido o foco central
Esta visão favorece a criação de novos conceitos de aprendizagem e do pensamento de psicólogos sociointeracionistas como Vygotsky
ensino, apontando uma nova perspectiva para a educação. (1978 apud Williams e Burden, 1997) e Feuerstein (1997). Em seus
Um dos aspectos mais duradouros à luz dos estudos de Piaget estudos a figura do mediador, aquele responsável pelo desenvolvi-
(1966, 1972, 1974), figura dominante no desenvolvimento da Psico- mento cognitivo no processo de aprendizagem, é de grande importân-
logia Cognitiva, é a sua ênfase sobre a natureza construtiva do pro- cia para o aprendiz ir além do que aprendeu, relacionando fatos e
cesso de aprendizagem. Como epistemólogo, o objetivo de Piaget estabelecendo a importância entre eles.
era estudar o processo de conhecimento, daí seu objeto de investiga- O conceito definido por Vygotsky como zona de desenvolvi-
ção consistir no que é generalizável na estrutura cognitiva humana: mento proximal é o termo usado para tratar a camada de conhecimen-
“O homem conhecedor em geral, ao invés de um conhecedor singu-
lar” (Goulart, 1997: 18).
Piaget considerava o desenvolvimento cognitivo como um pro- 1
O construtivismo está delimitado pelo que se pode denominar “enfoques
cesso de maturação onde agem a genética e a experiência. O desen-
cognitivos” no sentido amplo. Entre estes enfoques destacam-se: a) a
volvimento da mente é visto como uma busca de equilíbrio: um equi- teoria genética, de Jean Piaget e seus colaboradores, no que diz respeito
líbrio entre o que é conhecido e o que está sendo experimentado. Isto à concepção dos processos de mudança, às formulações estruturais clás-
é conseguido por meio de processos complementares de assimilação sicas do desenvolvimento operatório, às elaborações recentes sobre as
e de acomodação; a assimilação é o processo pelo qual a informação estratégias cognitivas e aos procedimentos de resolução de problemas;
recebida é mudada ou modificada em nossa mente, de modo que b) a teoria da atividade, de Vygotsky, Luria, Leontiev e colaboradores,
possamos adaptá-la com o que já conhecemos. Por outro lado, a aco- no que se refere à maneira de entender as relações entre aprendizagem e
modação é o processo pelo qual modificamos o que já sabemos para desenvolvimento e a importância concedida aos processos de relação
interpessoal; c) as teses no campo da Psicologia Cultural, como as de M.
levar em consideração a nova informação. Ao trabalharem em con-
Cole e colaboradores, que integram os conceitos de desenvolvimento,
junto, esses dois processos contribuem para o que Piaget chama de aprendizagem, cultura e educação; e , finalmente, d) a teoria da aprendi-
adaptação (Williams e Burden, op. cit., p. 22). zagem verbal significativa, de Ausubel, e seu desdobramento em outras
No âmbito da aprendizagem, alguns aspectos de sua teoria teorias. O núcleo central da integração de todas estas contribuições
têm importância significativa para o professor de línguas: a) o desen- confere importância à atividade mental construtiva nos processos de
volvimento do pensamento e seu relacionamento com a linguagem e aquisição de conhecimento. Daí o termo construtivismo denominando
esta convergência (PCN–MEC, 1998: 72).

684 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


to ou habilidade que está logo acima daquela em que o aprendiz se três componentes desse modelo funcionam em estados de troca e
encontra e que é capaz de lidar com a que corresponde a seu nível de mudança dinâmicos.
desenvolvimento real. Levar o aprendiz a atingir uma nova camada, ou Fatores afetivos e cognitivos responsáveis pela apreensão e
seja, seu nível de desenvolvimento potencial, envolve a ajuda de uma produção de mensagens estão presentes nos três componentes que
pessoa mais competente. Assim, a partir de uma perspectiva englobam o processo de leitura no contexto da sala de aula. As con-
sociointeracional, os conceitos de mediação e de zona de desenvolvi- dições afetivas do primeiro componente, o leitor, incluem fatores
mento proximal exercem uma importância fundamental para uma apren- desde a motivação para ler a valores e crenças socioculturais. Por
dizagem eficaz (Williams e Burden, op. cit., p. 40). conseguinte, as condições cognitivas envolvem o conhecimento da
Central para a teoria de Feurstein (op. cit.) é que todas as língua, as habilidades de análise da palavra, as estratégias de
pessoas, em todas as idades, podem tornar-se aprendizes eficazes. processamento do texto, e a compreensão dos padrões interacionais
Outro componente importante na sua teoria é a crença de que as no ambiente social e de sala de aula.
estruturas cognitivas dos indivíduos são modificáveis ao longo de As operações cognitivas fazem parte dos vários tipos de co-
suas vidas. Segundo o autor, o indivíduo tem dois pontos de desen- nhecimento que os aprendizes utilizam para que seja possível o pro-
volvimento. O primeiro é o desenvolvimento biológico, um conjun- cesso de construção de significados. Estes conhecimentos – sistêmico,
to de células que interagem. O indivíduo cresce e se desenvolve de mundo e da organização textual – compõem a competência comu-
como pessoa. Outro ponto é a interação deste indivíduo com o meio nicativa dos aprendizes e os preparam para o engajamento discursivo.
ambiente. Se alguém vive sozinho, sem influência, nada aprenderá. O conhecimento sistêmico contribui para facilitar a construção do
A humanidade só existe porque houve um processo de mediação ao significado. Tal conhecimento envolve os vários níveis da organização
longo da sua história. Isso nos remete à afirmação de Voloshinov lingüística como, por exemplo, fonético-fonológico, lexical, morfológico,
(apud Barkhust, 1992), pensador soviético: “o indivíduo não nasce sintático e semântico. O conhecimento de mundo é o conhecimento
consciente, mas deve a sua consciência a um segundo nascimento, convencional que os aprendizes possuem sobre as coisas do mundo.
um nascimento social”. A ativação deste conhecimento possibilita buscar as informações ne-
Em suma, podemos deduzir que as contribuições provindas cessárias armazenadas na memória de longa duração a partir dos ele-
dos modelos teóricos da Psicologia têm sido de grande valor para o mentos presentes. Desse modo, a compreensão de um texto apresen-
processo de ensino-aprendizagem de línguas. A abordagem cognitiva tará menos dificuldade se o assunto já for do conhecimento do aluno.
confere importância ao que o aprendiz traz para qualquer situação Finalmente, o conhecimento da organização de textos orais e escritos,
de ensino como um criador ativo de significados e solucionador de acionado por ouvintes e leitores, poderá facilitar a tarefa de compre-
problemas. O aprendiz desempenha, então, um papel central na apren- ensão. Isso devido ao uso de tipos de texto já conhecidos pelo apren-
dizagem. As abordagens humanísticas enfatizam o mundo interior diz. À medida que a aprendizagem de leitura se desenvolve, o aluno é
do aprendiz colocando seus pensamentos, sentimentos e emoções na exposto a novas maneiras de organizar os textos como, por exemplo,
vanguarda de todo o desenvolvimento humano. Tais aspectos são das narrativas às matérias jornalísticas.
fundamentais se quisermos compreender a aprendizagem humana na O conhecimento e controle das condições afetivas e cognitivas
sua totalidade. O sociointeracionismo enfatiza a natureza dinâmica resultam na habilidade do leitor para construir, monitorar, e repre-
da interação entre professores, alunos e tarefas e proporciona uma sentar significados. As crenças e o conhecimento prévio do leitor são
perspectiva da aprendizagem como abordagem mediada, isto é, a partir usados para ajudar na confirmação ou rejeição de novos julgamentos
da interação com o outro, englobando os critérios provenientes das durante o processamento da informação. As condições afetivas e
perspectivas cognitiva e humanística. cognitivas interrelacionam-se e são interdependentes. A motivação
Assim, a visão construtivista, baseada na centralidade do alu- do leitor, seus valores e sua atitude para com o conteúdo influenciam
no construindo seu próprio conhecimento, opera dentro de uma es- a aquisição de novas idéias, o processamento textual, a interpretação
trutura sociointeracional, isto é, a aprendizagem ocorre através de do texto e o uso de estratégias metacognitivas. Fatores como a aten-
interações sociais em um contexto social. Acrescenta-se a esses cri- ção, a percepção e a memória são cruciais para tornar-se consciente
térios o ambiente social em que ocorre a aprendizagem, cuja impor- do processo de leitura. O aprendiz não precisa somente estar cônscio
tância é reconhecida e temos, então, o modelo socioconstrutivista do da tarefa que está desempenhando mas, também, como tal está sendo
processo ensino-aprendizagem onde os quatro elementos-chave, o executada.
aluno, o professor, a tarefa e o contexto interagem como parte de um O segundo componente do modelo, o professor, parece ser um
processo dinâmico contínuo. reflexo do componente leitor. As condições afetivas do professor in-
O modelo socioconstrutivista de Ruddell e Unrau (1994), “Lei- cluem a sua filosofia e crenças sobre a instrução, sua motivação para
tura como um processo de construção de significado: o leitor, o texto engajar os alunos, além dos seus valores e crenças socioculturais.
e o professor”, parte de uma perspectiva construtivista do processo Além disso, as condições cognitivas do professor englobam os co-
de leitura. O papel do contexto social da sala de aula e a influência do nhecimentos conceitual e da instrução. Estes conhecimentos abran-
professor na construção e negociação do significado do leitor são gem a compreensão pelo professor do processo de construção do
centrais para o modelo. O desafio consiste em explicar o que faze- significado, as estratégias de ensino usadas para solucionar um pro-
mos quando lemos e compreendemos, sendo necessário considerar blema e, por fim, suas experiências dentro e fora do contexto acadê-
como o processo é adquirido e usado, não só da perspectiva do leitor, mico, ou seja, seu conhecimento pessoal e de mundo. O conheci-
mas também do professor, visto ser este último o que assume maior mento e controle dessas condições conduzem o processo da instru-
responsabilidade pela negociação do significado dentro do ambiente ção, isto é, as metas, o planejamento, a organização e a construção de
social da sala de aula. O principal objetivo é, então, fornecer uma estratégias eficientes.
explicação do modo pelo qual o processo de leitura ocorre no con- O terceiro componente do modelo, o texto e o contexto da sala
texto da sala de aula envolvendo leitor, texto e professor. de aula, envolve o ambiente de aprendizagem no qual o processo de
A leitura enquanto processo de construção do significado é, construção do significado ocorre. Este processo começa quando o
então, conceituada como um modelo interativo sociocognitivo que leitor interage com o texto e representa a fusão de significado entre
explica o processo de leitura no contexto social da sala de aula. En- leitor, professor e comunidade em sala de aula. O processo de leitura,
quanto a construção do significado e a sua negociação ocorrem, os então, ocorre num contexto de sala de aula responsivo onde profes-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 685


sor e alunos constróem a compreensão através da negociação do signi- aula – Programa de Pesquisa Cognitiva, Divisão de Educação
ficado. Isso requer que o professor seja sensível à compreensão dos Especializada da Universidade de Witwatersand, África do Sul.
alunos em quatro itens: texto, tarefa, recurso à autoridade e significa- São Paulo: Editora SENAC. 1997. 202 p.
dos socioculturais. GOODMAN, K.S.. Reading, writing, and written texts: a transactional
É neste contexto, como lembram Ruddell e Unrau (op. cit.), que sociopsycholinguistic view. In: Ruddell, R. B., Ruddell, M. R.,
a verdadeira orquestração da instrução ocorre. Aqui ambos, aluno e Singer, H. (Editors). Theoretical models and processes of reading.
professor, iniciam o processo de construção do significado. Enquanto 4ed. Newark, Delaware: I.R.A. 1994. p. 1093-1130.
simultaneamente monitoram este processo de construção, aluno e pro- GOULART, I.B. Em que consiste o modelo construtivista. In: Goulart,
fessor negociam propósitos e planos (uso do conhecimento e contro- I.B. (Org.). A Educação na Perspectiva Construtivista: reflexões
le) e instigam o conhecimento (crenças e conhecimento prévio) para de uma equipe interdisciplinar. Petrópolis, RJ: Vozes. 1997. p.
formar o texto e a representação da instrução. 15-25.
Diante do exposto, a visão de leitura em que o único conheci- KATO, M.A. O Aprendizado da Leitura. São Paulo: Martins Fontes.
mento utilizado pelo aluno era o sistêmico, tradicionalmente seguida 1995. 144 p.
em sala de aula e em materiais didáticos, difere da visão KLEIMAN, A. Leitura: ensino e pesquisa. Campinas: Pontes. 1989.
socioconstrutivista da linguagem e da aprendizagem (Ruddell e Unrau, 213p.
op. cit.), onde, também, faz-se necessária a ativação do conhecimento LEFFA, V.J. Aspectos da leitura. Uma perspectiva psicolingüística.
prévio do leitor, posto que, ao ler, o aluno está criando hipóteses Porto Alegre: Sagra-D.C. Luzzatto. 1996. 105 p.
sobre o significado que está construindo com base em seu conheci- MINISTÉRIO da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação
mento de mundo. Além disso, outros fatores têm uma importância Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Terceiro e
notável nesta visão como, por exemplo, o conhecimento da organiza- Quarto Ciclos do Ensino Fundamental – Introdução aos
ção textual e os significados socioculturais influenciados pela escola e Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC/SEF. 1998.
por uma comunidade cultural, bem como por atitudes e valores surgi- 174p.
dos em sala de aula. ____________. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros
“O uso da linguagem (tanto verbal quanto visual) é essencial- Curriculares Nacionais: Terceiro e Quarto Ciclos do Ensino
mente determinado pela sua natureza sociointeracional, pois quem a Fundamental – Língua Estrangeira. Brasília: MEC/SEF. 1998a.
usa, considera aquele a quem se dirige ou quem produziu um enuncia- 120p.
do” (PCN–MEC, 1998a: 27). É neste sentido que a construção do PEARSON, D.P., JOHNSON, D.D. Teaching Reading
significado é social. As bases teóricas da concepção sociointeracionista Comprehension. New York: Holt, Rinehart and Winston. 1978.
da linguagem originam-se de estudos provenientes de várias teorias e PEARSON, D.P. A context for instructional research on reading
áreas, tais como: a Etnografia da Comunicação, a Pragmática, a Lin- comprehension. In: Flood, J. (Editor). Promoting reading
güística Textual, entre outras, que estudam os vários aspectos da comprehension. Newark, Delaware: I.R.A. 1984. p. 01-15.
interação lingüística. PINTO, A.P. Ensino-aprendizagem de Inglês no século XXI: princi-
No que se refere à visão de aprendizagem há uma tendência, pais inovações. In: Soares, M.E., Aragão, M.S.S. (Orgs.). Pro-
cada vez maior, para explicar a aprendizagem como um fenômeno grama e Resumos – XVII Jornada de Estudos Lingüísticos. For-
sociointeracional. Assim “o foco que, na visão behaviorista, era colo- taleza: UFC/GELNE. 1999. p. 247.
cado no professor e no ensino, e, na visão cognitivista, no aluno e na RICHMOND, P.G. Piaget: teoria e prática. São Paulo: IBRASA.
aprendizagem, passa a ser colocado na interação entre o professor e 1981. 157p.
aluno e entre alunos, atualmente” (PCN–MEC, 1998a: 57). RUDDELL, R.B., UNRAU, N.J. Reading as a Meaning –
Construction Process: the reader, the text, and the teacher. In:
Referências bibliográficas Ruddell, R.B., Ruddell, M.R., Singer, H. (Editors). Theoretical
Models and Processes of Reading. 4ed. Newark, Delaware: I.R.A.
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naturaleza social del recuerdo y del olvido. Barcelona: Paidós. da leitura e do aprender a ler. Porto Alegre: Artes Médicas.
1992. p. 221-243. 1989.
CAVALCANTI, M.C. Interação leitor – texto. Campinas: UNICAMP. WILLIAMS, M., BURDEN, R.L. Psychology for language teachers:
1988. 271p. a social constructivist approach. United Kingdom: Cambridge
FEUERSTEIN, R. Aprendizagem mediada dentro e fora da sala de University Press. 1997. 240 p.

686 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A mediação da aprendizagem numa aula de
compreensão e produção de textos em língua inglesa
Vera Lúcia de Lucena Moura
Universidade Federal de Pernambuco

ABSTRATCT: This paper aims at analyzing how learning was mediated in two classes which focussed on the development of the reading and writing skills,
in English. The experiment results assure that good mediation facilitates learning and makes it possible for the students to do difficult tasks more
efficiently.
PALAVRAS-CHAVE: mediação, compreensão, produção, textos

1- Introdução- Este trabalho resultou de um projeto piloto parte dessa mensagem a ser dita pois, longe de ser um produto acabado,
desenvolvido na escola Senador Novaes Filho, situada no bairro da seu sentido é construído pelos interlocutores num diálogo ou através
Várzea, em Recife, Pernambuco. Participaram da pesquisa oito alunos da interação leitor-texto. Sabe-se também que esse processo de
da oitava série do ensino fundamental , cujas idades variavam entre construção de sentido pode ou não ser facilitado dependendo da
13 e 16 anos. O mencionado projeto ocorreu em duas etapas. A maneira pela qual a informação semântica e os elementos lingüísticos
primeira abrangeu estudos sobre compreensão de textos escritos em são organizados no texto. Essa organização no entanto, não é aleatória.
língua inglesa , foi desenvolvido por uma equipe composta de três Ela segue certos parâmetros que podem nos levar não só a reconhecer
pesquisadores e teve os seguintes objetivos: (1) sensibilizar o aluno o tipo e gênero textual identificado como também a reproduzi-
para a existência de diversos gêneros textuais ; (2) despertar o interesse lo. Por isso, Marcuschi ( 2000 : 97) afirma que, “numa observação
do aluno para compreender a importância do ensino da língua inglesa; sistemática em função da classificação, deve-se ter em vista que para
(3) desenvolver estratégias de leitura ; (4) facilitar a aplicação a identificação do gênero o critério básico se liga a variáveis vinculadas
da segunda fase do projeto. A segunda etapa , executada por apenas aos falantes ou produtores de textos ( intenção, objetivo, situação
um dos pesquisadores, objetivou: (1) motivar o aluno a cooperar com etc) e às condições de produção e processos de enunciação ao passo
os colegas na produção de textos, em sala de aula; ( 2) auxiliar o que para a noção de tipo sempre se tem em conta critérios voltados
aprendiz a resumir textos; (3) incentivar a auto-confiança do aluno para aspectos lingüísticos”.
orientando-o e dando-lhe tarefas que não fossem excessivamente Se há consenso de que gêneros e tipos de texto são
desafiadoras; (4) investigar como foi feita a mediação da identificáveis e passíveis de classificação, será que existe também
aprendizagem numa aula de compreensão e produção de textos concordância no que se refere aos conceitos atribuídos a gênero e
escritos em língua inglesa, partindo ou não de textos fonte. tipo de texto assim como aos critérios para sua classificação? É o
Na primeira fase do projeto houve uma avaliação, do nível que tentarei responder a seguir.
de desenvolvimento da habilidade de compreensão de textos escritos Gênero e tipo de texto- Conceituar gênero é uma tarefa difícil porque
em língua inglesa, realizada através da aplicação de um pré-teste, no existe muita discordância e polêmica sobre o assunto. Decidi então
qual o aluno teve que produzir um resumo do texto lido, em língua eleger, entre os diversos conceitos existentes, aquele que me pareceu
portuguesa. A seguir, foram ministradas quatro aulas, com duas horas mais claro, objetivo e didático. Para Marcuschi ( 2000 : 13) gênero
de duração , tendo sido utilizados textos diversos com a finalidade de textual é “ uma forma concretamente realizada e encontrada nos
identificar alguns gêneros e desenvolver estratégias cognitivas de diversos textos empíricos”. Por isso mesmo, eles são lingüisticamente
compreensão de leitura que trabalham a macro-estrutura textual. situados e representam a cultura de um povo numa determinada época
Na segunda etapa do projeto foram ministradas duas aulas, da sua história podendo se modificar, desaparecer , como as epopéias,
cada uma com duas horas de duração , tendo como enfoque principal e reaparecerem sob formas diversas. No que se refere às tipologias
a produção de textos, partindo de textos fonte verbais e não-verbais. textuais, Marcuschi afirma que, segundo Adam (1993:5), elas seguem
Para isso, foram dadas aos alunos maiores oportunidades de aplicar critérios diversos não havendo uma tipologia satisfatória e muito
os conhecimentos adquiridos sobre o uso de estratégias de leitura , menos uma tipologia aplicável conjuntamente para a fala e a escrita.
estudadas na fase anterior da pesquisa, assim como foram introduzidas Apesar dessas dificuldades, Marcuschi, menciona o fato de que existe
noções sobre como elaborar resumos . maior consenso entre os autores a respeito de uma classificação
A seguir, será apresentada a fundamentação teórica que tipológica do que sobre uma classificação dos gêneros textuais. Por
serviu de base para este trabalho focalizando, principalmente, o isso, a literatura aponta geralmente, não mais de 10 tipos de texto e
conceito vygotskiano de mediação da aprendizagem. não menos de 5. Partindo desse pressuposto, Marcuschi define tipo
textual como “um construto teórico que abrange, em geral, cinco ou
2- Fundamentação teórica -
seis categorias designadas narração, argumentação, exposição,
2.1- Texto: conceito e tipologia- A palavra texto tem recebido
descrição, injunção e, para Adam e alguns autores, diálogo”. Esses
inúmeras definições ao longo do tempo. Koch (2000:22) por exemplo,
tipos textuais são geralmente construídos por traços lingüísticos
conceitua texto como “uma manifestação verbal constituída de
característicos como sejam, tempos verbais, preferência por
elementos lingüísticos selecionados e ordenados pelos falantes,
algumas estruturas havendo então certa homogeneidade formal. Essa
durante a atividade verbal, de modo a permitir aos parceiros, na
homogeneidade porém desaparece quando os tipos são empiricamente
interação , não apenas a depreensão de conteúdos semânticos , em
realizados através de algum gênero textual. Isso ocorre porque uma
decorrência da ativação de processos e estratégias de ordem cognitiva,
carta por exemplo, pode conter seqüências com tipos de texto diversos
como também a interação ( ou atuação) de acordo com práticas
ou seja, com descrição, argumentação e narração.
socioculturais”. Em sendo uma manifestação verbal expressa numa
Pelo exposto, percebe-se que o conceito de texto está
dada situação com propósitos ilocucionais definidos, o texto é uma
intimamente ligado ao de gênero e tipo textual pois nos comunicamos
manifestação empírica do pensamento. Ele representa, no entanto ,

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 687


através de textos realizados de acordo com certas características últimos componentes do modelo, o texto e contexto da sala de aula,
tipológicas e expressos em algum gênero. Embora inúmeras pesquisas referem-se à construção do sentido do texto obtida através da negociação
sobre este assunto já tenham sido desenvolvidas , sabe-se que ainda dos vários sentidos dados ao texto pelo leitor, individualmente, pelo
há muito a ser esclarecido. Por lidar com um assunto tão polêmico e professor e pela comunidade da sala de aula ou seja, os demais alunos.
pretender ser o mais didática possível , em minhas considerações, A importância do modelo de Ruddell e Unrau reside não só
adotei a proposta de classificação dos gêneros textuais apresentada no aspecto inovador do seu enfoque, centrado na sala de aula, como
por Marcuschi (2000: 107-110). Nessa proposta, Marcuschi segue também nas conseqüências advindas da múltipla interação ,no
dois critérios para a classificação dos gêneros textuais: 1. Domínios ambiente escolar , produzidas nas decisões pedagógicas do professor
discursivos – “caracterizados como instâncias que não são gêneros, em sala de aula.
nem tipos nem suportes. Suas propriedades básicas seriam sócio-
pragmaticamente definidas e institucionalmente vinculadas a situações 2.3. Vygotsky e a mediação em sala de aula - O conceito de
da realidade das práticas diárias 2. Modalidades – oralidade e escrita”. mediação é central na teoria vygotskiana pois envolve as interações
A título de ilustração, citarei alguns domínios discursivos ( científico, sociais e , mais especificamente, a interferência de um ser humano
jornalístico, religioso, instrucional) assim como exemplificarei alguns mais competente , no auxílio de outro menos competente, levando
gêneros pertencentes à modalidade escrita( artigos científicos, notícias, este último ao desempenho autônomo e eficaz de uma determinada
receitas culinárias) e alguns pertencentes à modalidade oral ( tarefa. Deduz-se portanto que, o conceito de mediação está
entrevistas , debates, comunicações, etc).Sabemos que propostas, intrinsecamente relacionado ao de zona de desenvolvimento
embora seguindo critérios científicos definidos, estão sempre sujeitas proximal, definido por Oliveira (1993:60 ) como o “caminho que o
a mudanças e reestruturações. Esta porém tem a vantagem de indivíduo vai percorrer para desenvolver funções que estão em
apresentar a abrangência e flexibilidade necessárias à identificação processo de amadurecimento e que se tornarão funções consolidadas,
dos gêneros classificados além de oferecer diretrizes teórico-práticas estabelecidas no seu nível de desenvolvimento real”. Essa inter-relação
eficazes para serem usadas, com fins pedagógicos ,em sala de aula. entre os conceitos de mediação e zona de desenvolvimento proximal
Este é certamente o motivo principal que me levou a adotá-la como torna-se ainda mais evidente se observarmos que, os processos já
base teórica para este trabalho. consolidados não necessitam da ação externa para serem
desencadeados. Por outro lado, aqueles ainda não iniciados não se
2.2- Breve retrospectiva dos estudos sobre a leitura beneficiam dessa ação externa. A mediação só ocorre , com eficácia,
Ao longo dos anos, os estudos sobre leitura têm recebido na zona de desenvolvimento proximal pois a tarefa a ser
enfoques diferentes. Segundo Wolf e Dickson, (1985, apud Pinto: desempenhada não será excessivamente desafiadora, possibilitando,
1999:48) Edmund Huey foi um grande precursor das investigações portanto, a sua execução com a interferência positiva de outrem. Daí
sobre leitura pois , foi deste pesquisador que, em 1908, partiram dizer-se que, não é qualquer mediação que produz desenvolvimento,
muitas das suposições , sobre o assunto, aceitas atualmente . mas aquela que atua na ocasião em que o indivíduo está intelectual
O modelo de Huey baseia-se em três postulados: a natureza e emocionalmente receptivo .
componencial da leitura, os estágios de desenvolvimento do leitor e Depreende-se do exposto que, os conceitos de mediação e de
as diferenças individuais. Embora considerando o pioneirismo do zona de desenvolvimento proximal têm implicações imediatas para
modelo de Huey e a importância das suas contribuições para o estudo o ensino nas escolas. Isto ocorre porque as atividades desenvolvidas,
da leitura, percebemos que tal modelo privilegia o enfoque centrado no ambiente escolar , são sistemáticas, têm um propósito deliberado
no indivíduo, e seus processos cognitivos parecem prescindir das e o compromisso de facilitar a aquisição do conhecimento formalmente
influências culturais advindas da interação com outros indivíduos. organizado. Nesse contexto, a interação professor – aluno e entre os
Para uma melhor compreensão das diferentes perspectivas de estudo próprios aprendizes é vital para a aprendizagem na medida em que
da leitura , seguem abaixo informações sobre pesquisas posteriores produz as condições necessárias para a troca de informações mútuas,
que levaram em consideração fatores psicolingüisticos, cognitivos e questionamentos e divergência de opiniões. A heterogeneidade é
sócio-interacionais. então vista como um elemento enriquecedor na sala de aula pois as
O desenvolvimento da psicolingüística, nos anos sessenta diferenças individuais certamente contribuirão para a construção do
e setenta, trouxe grandes contribuições para o estudo dos processos conhecimento através da ampliação das capacidades individuais.
mentais envolvidos na leitura. Como vemos, a colaboração entre os membros de um processo
Em 1962, baseado na lingüística descritiva estrutural de interativo é central na teoria de Vygotsky. Nesse sentido DIXON-
Fries, Goodman considerava o ato de ler como um processo ativo, KRAUSS(1999: 79-80) afirma que a Abordagem Cooperativa
receptivo da língua e os leitores simplesmente usuários da língua. (ou Colaborativa) tem grande importância para o ensino e a
Nos anos posteriores, Goodman alterou , mais de uma vez, sua aprendizagem ,tanto em termos práticos quanto teóricos, por dois
concepção de leitura, considerando-a, em 1984, um processo motivos:1) amplia os horizontes educacionais ao integrar a dimensão
transativo, o que outros autores denominam de interativo. social ao ensino e à aprendizagem. Consequentemente, o ensino se
Segundo Pinto (1999), além de Goodman , pesquisadores torna muito mais complexo, excitante e desafiador. 2) estabelece uma
tais como Lapp e Flood (1984) , Chapman (1984) , Ruddell e Unrau forte ligação entre o desenvolvimento cognitivo e o desenvolvimento
(1994) também consideram a leitura como um processo de interação social e afetivo. No que se refere ao desenvolvimento cognitivo
ativa do leitor . No entanto, Ruddell e Unrau ( 1994) enfocam a (DIXON-KRAUSS:1999) afirma que a Abordagem Cooperativa
construção do sentido de um texto em sala de aula. Por isso, proporciona: 1) a possibilidade de melhor organização do pensamento
consideram não apenas a interação leitor-texto mas também as através da expressão oral do que foi entendido por cada membro do
contribuições advindas da participação do professor e das influências grupo. 2) a concentração do aluno na consecução da tarefa solicitada,
do contexto da sala de aula. Nesse modelo, o leitor e o professor dedicando muito mais tempo à mesma do que se estivesse
contribuem com suas experiências, crenças e conhecimento prévio, trabalhando individualmente 3) o uso de habilidades de raciocínio
cabendo ao professor auxiliar o aluno a utilizar os fatores afetivos e mais complexas tais como: análise, síntese e avaliação. Quanto ao
cognitivos na compreensão de um texto, através do uso de tarefas desenvolvimento afetivo, a Abordagem Cooperativa de Vygotsky
que direcionam e dão um propósito à atividade de leitura. Os dois possibilita aos alunos a aquisição de habilidades sociais tais como:

688 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


saber escutar outras pessoas, tomar o turno conversacional, contribuir principal desta atividade foi preparar o aluno para resumir a estória,
com idéias, explicar-se com clareza, encorajar os companheiros e em inglês, através de um fluxograma. Com esta finalidade, os aprendizes
criticar idéias, e não pessoas. Outro benefício da Abordagem executaram três tarefas: a) selecionaram as palavras mais importantes
Cooperativa é o desenvolvimento da auto-estima proporcionada pela da estória , em português , e perguntaram à professora , os vocábulos
interação dos alunos num grupo o que leva à negociação entre os equivalentes, em inglês; b) conferiram as palavras selecionadas com as
membros e consequentemente, a uma maior aceitação do outro e de que estavam escritas, em negrito , no texto; c) leram a narrativa e
si mesmo. completaram o fluxograma dando também um título à estória.
Pelo exposto, verifica-se que as atividades descritas seguiram
3.Análise dos dados- Na aula introdutória , o primeiro texto uma excelente progressão e , supostamente, deveriam ter tido
trabalhado com os alunos, intitula- se “Valentine’s Day”. Inicialmente, resultados perfeitos. Pode-se dizer que a mediação foi eficaz . No
a mediação da aprendizagem ocorreu através do desenvolvimento de entanto, ela poderia ter sido ainda melhor se a professora tivesse
três atividades de pré-leitura. A primeira teve como objetivo ativar explicitado para o aluno que o fluxograma deveria ser preenchido
o conhecimento de mundo dos alunos através do uso de uma apenas em inglês.
ilustração ( o coração traspassado por uma flecha) assim como
palavras e frases relacionadas ao tema em questão. A segunda teve 4. Conclusão - Concluindo, pode-se afirmar que, apesar de eventuais
como propósito auxiliar os alunos a predizer como o dia dos falhas, a mediação da professora /pesquisadora auxiliou os alunos
namorados é comemorado nos Estados Unidos, partindo do que eles a desempenhar tarefas que estavam além do seu nível de conhecimento
conhecem sobre esta festividade no Brasil . Essa atividade objetivou real , através de um trabalho cooperativo. Este experimento comprova
ainda possibilitar aos alunos confirmar suas expectativas através da portanto que, apesar das dificuldades existentes para uma boa atuação
leitura de um texto, em português, que trata do mesmo assunto , pedagógica em escolas públicas do ensino fundamental, a co-
porém de forma mais aprofundada. Com a terceira atividade de pré- responsabilidade, advinda de uma abordagem que enfatiza a
leitura, a professora/ pesquisadora preparou o aluno para uma solidariedade e a interação, tendem a motivar o aluno para superar
compreensão mais detalhada do texto. A mediação foi feita ao ativar qualquer obstáculo, tornando-o mais auto-confiante e autônomo.
o conhecimento lingüístico do aluno, utilizando a tradução de
sentenças e palavras-chave encontradas no texto, em inglês, que 5. Referências Bibliográficas
deveriam ser associadas àquelas correspondentes, em português.
Embora tratando-se de um recurso tradicional , a tradução foi utilizada BAQUERO, Ricardo. 1998. Vygotsky e a Aprendizagem Escolar.
por questões práticas. Naquele momento, o mais importante era Porto Alegre, Artes Médicas.
preparar os alunos para sua primeira leitura detalhada e economizar DIXON-KRAUSS, Lisbeth. 1996. Vygotsky in the Classroom:
tempo para desenvolver outras atividades que iriam habilitá-los a Mediated Literacy Instruction and Assessment. White Plains,
produzir textos como a elaboração de resumos e pequenas mensagens Longman.
para o dia dos namorados. KOCH, Ingedore V. 2000 . O texto e a construção dos sentidos. São
A segunda aula teve como maior objetivo a elaboração de Paulo, Contexto.
resumos feitos a partir de textos fonte verbais ou não-verbais. Para MARCUSCHI, Luiz Antônio.2000.Gêneros Textuais:O Que São e
tanto, foram selecionadas, duas narrativas intituladas :“A Mugging” como se Classificam? Recife,UFPE.
e “The Vanishing Hitch-hiker”. Por conterem muitos vocábulos OLIVEIRA, Marta Kohl de. 1996. “Pensar a Educação: Contribui-
desconhecidos, as estórias foram reescritas pela professora , ao ções de Vygotsky”. In: CASTORINA, José Antonio et alli.
mesmo tempo em que foram criadas atividades preparatórias para Piaget e Vygotsky: Novas Contribuições para o Debate. São
uma melhor compreensão e produção de texto. A primeira delas Paulo, Ática. Pp. 53-83.
objetiva a organização textual, tendo os alunos recebido cada sentença ______________________. 1993. Vygotsky Aprendizado e De-
da estória , escrita em uma tira de papel . Para a execução da tarefa, senvolvimento. Um Processo Sócio-Histórico. São Paulo,
os alunos trabalharam em grupo, procurando colocar as sentenças na Scipione.
ordem certa para formar a narrativa. A correção da tarefa foi feita PINTO, Abuêndia Padilha Peixoto . 1999. A Interação Leitor –Tex-
pelos próprios alunos, quando receberam as ilustrações da estória , to: Considerações Teóricas e Práticas. In: The Especialist
comparando-as com os respectivos eventos narrados no texto fonte (the ESP), São Paulo, EDUC. vol 10, nº 1, pp. 47-66.
verbal. Embora bem sucedida, a atividade descrita poderia ter tido REGO, Teresa Cristina. 1999. Vygotsky. Uma Perspectiva Histó-
uma mediação mais eficaz , com o ensino dos elementos coesivos e rico-Cultural da Educação. Petrópolis, Vozes.
noções sobre a estrutura da narrativa, a fim de possibilitar maior RUDDELL, Robert B. & UNRAU, Norman J. 1994 . “Reading as a
conscientização e autonomia no desempenho da tarefa solicitada. Meaning-Construction Process: The Reader, the Text , and the
A segunda narrativa selecionada, “The Vanishing Hitch- Teacher”. In: Theoretical Models and Processes of Reading.
hiker” foi explorada partindo do texto não-verbal para o verbal. International Reading Association (IRA) Newark, Delaware .
Para tanto, os alunos foram solicitados a contar a estória , oralmente, 4th Edition. pp.996- 1057
em português, baseando-se apenas nas suas ilustrações. O objetivo

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 689


O uso dos tempos verbais na construção da coerência
textual: um estudo nas redações de vestibular.
Vivianne Braga de Araújo - UNIPÊ – PB.

ABSTRACT: The study of verb tense in the Portuguese language is still a poorly approached subject not only in traditional grammars but also by the
teachers in the classroom. This work raises some issues which show the inadequate use of verb tenses and the consequences of this use to textual coherence.
PALAVRAS-CHAVE: Coerência textual; tempos verbais

Sabemos que os alunos desde cedo aprendem a definição de curso é um assunto de interesse tanto de lingüistas como de
verbo, as conjugações dos verbos, as pessoas e modos. Entretanto, gramáticos o que nos levou a observar, nos textos, a aplicabilidade
eles sentem dificuldades no momento em que necessitam usar desse de algumas idéias desses estudiosos, ora confrontando-as, ora reu-
conhecimento lingüístico para se expressarem verbalmente, princi- nindo-as com a intenção única de entendermos mais sobre o uso
palmente, por meio de textos escritos. Na perspectiva da Lingüística desses elementos no discurso.
Textual, os tempos verbais são elementos de coesão que funcionam Analisando-se o uso dos tempos verbais nos textos dos
para mostrar tanto a localização temporal como também para indicar vestibulandos, reunimos todas as formas verbais, agrupando-as, de
ao leitor sobre a atitude comunicativa do autor do texto, se está nar- acordo com a teoria de Weinrich (1974), em tempos do Mundo Co-
rando os acontecimentos ou se está comentando sobre os fatos. mentado e tempos do Mundo Narrado. A análise dos textos foi feita
Desenvolvemos o presente trabalho, partindo-se da hipótese numa visão macrossintática do texto, de forma que o emprego dos
de que o emprego adequado dos tempos verbais, considerados como tempos verbais não fosse dissociado do seu contexto. Verificamos,
elementos de coesão, em textos escritos, poderia auxiliar na constru- inicialmente, que, das 50 redações1 que constituiram o corpus, 40
ção da significação global ou da coerência textual, sendo um dos delas eram textos dissertativos, e 10 textos narrativos. Constatamos
recursos sintáticos-semânticos a ser trabalhado pelo professor em sala que, em todos os textos narrativos, os autores usaram o pretérito per-
de aula, a partir dos textos dos alunos. Como pressupostos teóricos, feito e o pretérito imperfeito. Encontramos o mais-que-perfeito em
baseamo-nos nos estudos de Benveniste (1996), Weinrich (1974), apenas dois textos (T9 e T20) e o futuro do pretérito em três textos (
Perini (1995) e Ilari (1997) sobre a temporalidade expressa pelos T9, T25, T40). Esses tempos verbais estavam presentes nos textos
verbos e confrontando a visão desses lingüistas com a visão de al- segundo a atitude comunicativa do autor do texto em narrar os fatos.
guns gramáticos (Rocha Lima, Evanildo Bechara, Celso Cunha, Do- Sendo assim, pertenciam ao mundo narrado, confirmando a teoria de
mingos P. Cegalla e Said Ali) sobre os tempos dos verbos. Weinrich. Contudo, verificamos também que, nesses textos narrati-
De modo geral, verificamos que as gramáticas analisadas apre- vos, apareceram alguns verbos no presente do indicativo, tempo esse
sentaram o tempo como sendo uma das variações sofridas pelos ver- considerado como tempo principal do mundo comentado.
bos e também a idéia de que o tempo se divide em presente (momen- Weinrich (1974) explica que o uso de um tempo do grupo
to da fala), passado (momento que antecedeu a fala) e futuro (mo- comentado dentro do grupo narrado ou vice-versa chama-se “metá-
mento que ocorrerá posteriormente a fala). Dessas gramáticas, desta- fora temporal”. A metáfora temporal ocorre quando o tempo verbal
camos, a gramática histórica de Said Ali (1971), na qual são expos- que usamos passa a ter um valor metafórico. A metáfora temporal é
tos exemplos de diferentes usos semânticos do presente do indicativo. um aspecto da temporalidade verbal que as gramáticas não abordam
Said Ali afirma que a forma verbal do presente do indicativo pode ser e, consequentemente, os professores de português não trabalham em
usada no discurso, expressando diferentes significados: presente sala de aula. Nas narrativas, a metáfora temporal mais conhecida ocor-
momentâneo, presente durativo, presente freqüentativo, presente-fu- re com o uso do discurso direto, usada quando o narrador deseja dar
turo e presente- histórico. maior vivacidade ao texto, criando um espaço em que os persona-
Na visão dos lingüistas, observamos, primeiramente, as colo- gens falam por eles mesmos.
cações de Benveniste sobre a noção de tempo lingüístico ou tempo
do discurso. Para esse autor, o tempo do discurso se organiza em
torno do presente, momento da produção do enunciado. Depois, des- 1 Foram analisadas 50 redações do Vestibular da UFPB, realizado em 1998.
tacamos as visões de Ilari (1997) e de Perini (1995) sobre a noção de Essas redações foram escolhidas pela área de concentração (Ciências Hu-
manas) e pelas opções de cursos (Letras e Direito) feitas pelos candidatos.
tempo semântico. Esses lingüistas mostraram casos em que o presen-
Os textos foram elaborados na segunda etapa do vestibular. Foram sugeri-
te do indicativo é uma forma verbal que pode ser empregada no dis- dos, na prova, três temas a partir dos quais os candidatos produziriam seus
curso, significando presente, passado e futuro. Por fim, ressaltamos a textos. O tema I foi desenvolvido em apenas 10% das redações, referin-
teoria de Weinrich (1974). Esse autor desenvolveu um estudo sobre do-se à falta de privacidade na vida das pessoas. O tema II, desenvolvido
“a sintaxe dos tempos verbais” na língua francesa, estabelecendo em 20% das redações, dizia respeito ao conflito vivido pelo ser humano
três características que se pode observar nos tempos dos verbos no em distinguir o que é essencial daquilo que é supérfluo para as nossas vidas.
discurso: a atitude comunicativa, a perspectiva da comunicação e o E o tema III, que foi escolhido em 70% das redações analisadas, surgiu do
relevo. Ele classificou os tempos verbais em dois grupos de tempo: livro de Dyonelio Machado chamado “Os Ratos”, retratando a vida de uma
família pobre que passava necessidades, ou seja, expondo problemas soci-
os do mundo narrado e os do mundo comentado.
ais vividos não só na ficção como também na vida real de muitos brasilei-
Em português temos os seguintes tempos: pertencem ao mun- ros. Observou-se que os três temas recorriam a fatos ou assuntos que os
do narrado (primeiro grupo), os tempos: pretérito perfeito (simples), alunos poderiam desenvolver facilmente, baseando-se em suas experiênci-
pretérito imperfeito, pretérito mais-que-perfeito e o futuro do preté- as pessoais ou em informações que diariamente estão presentes em suas
rito do indicativo. Já no mundo comentado (segundo grupo), encon- vidas, através dos meios de comunicação, como TV, rádios, revistas e jor-
tram-se os tempos: presente do indicativo, futuro do presente e o nais. Ressaltamos ainda que as redações foram reproduzidas nesse estudo
pretérito perfeito (simples e composto). Os tempos verbais no dis- sem qualquer correção gramatical dos corretores do vestibular.

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1. O Presente como metáfora temporal em narrativas: Uso adequado se define, se descreve e se opina sobre o tema dado. Os exemplos
apontaram, também, para o fato de que na escrita, geralmente, em
( Parte do Texto 42 - Uma Família Pobre)
textos dissertativos, os alunos expressam idéias que fazem parte do
Nessa mesma noite de natal andando pela cidade viram o
“senso comum”, ou seja, frases feitas, expressões comumente usadas
casal de idosos aproximarem e disse:
na fala, nos meios de comunicação, os chamados “chavões”. Como
- Querem ficar com nosco e fazer o nosso natal
diz Pécora (1992), o uso dessas frases, na linguagem escrita, demonstra
Os velhinhos disse:
que existe um “lugar-comum,” no qual não há ninguém se compro-
- Claro vamos com vocês e todos sentaram na calçada e
metendo com o que foi dito, pois o enunciado revela a voz do senso-
começaram a conversar.
comum e não a do autor do texto. Esse fato, também, ocorreu num
Os velhinhos disseram:
dos textos do corpus, no qual encontramos repetidamente a seguinte
- Como é triste passar o natal assim sem alimentação, quan-
expressão: tem direito a .O “ter direito a” é um clichê muito usado
do os prefeitos, governantes estão se alimentando e a gente
nos discursos de políticos, autoridades que lidam diretamente com o
com fome!
povo, na linguagem jornalística, é uma expressão que serve como
Seu Luis disse:
escudo de defesa das pessoas que se encontram em situações desfa-
O importante é que estamos todos aqui em paz.”
voráveis em relação a algum fato. Nesse texto, o uso repetitivo dessa
Eles fizeram um círculo e começaram a rezar para Deus ilu-
expressão passa um sentido de apelo a população pobre que se en-
minar suas vidas.
contra sob diversos pontos numa situação injusta precisa ter direito
há mudanças mais justas.
Constatamos que, em alguns casos, apareceu o uso do presente
Observamos, ainda nos textos dissertativos, o uso do presente
do indicativo como metáfora temporal de forma adequada, e, em ou-
no sentido de presente freqüentativo. O presente foi utilizado, junta-
tras situações, o autor empregou inadequadamente o presente do
mente, com expressões de temporalidade. O verbo no presente unido
indicativo, estando esse verbo como metáfora temporal ou não. O uso
às expressões temporais construíam o sentido de tempo do texto como
inadequado do presente do indicativo pode acarretar problemas de co-
por exemplo em: A cada dia que se passa vemos, ouvimos ou senti-
erência local e/ou global do texto como ocorreu no texto a seguir:
mos na pele que a saúde no nosso país é tratada com certo descaso
e até mesmo abandono. As expressões de temporalidade como as
2. Usos inadequados do presente do indicativo Texto 41
datas, advérbios, substantivos como meses, tempo, época, quando
Era um homem simples e pobre, com a esposa e o filho, passa-
usadas de maneira adequada conferem ao texto narrativo uma se-
vam muitas necessidades.
qüência temporal que ordena os fatos narrados. Verificou-se, portan-
Esta família não tinham do que viver sem trabalho, sem nada
to, em alguns textos a presença de expressões de tempo como por
para comer, moravam numa tapera velha cheia de goteiras, o filho
exemplo : a data, os vocábulos meses, tempo, época, um dia, a partir
não tem escola, anda com os pés no chão, pois não tem um chinelo
daquele dia e hoje em dia.
para calçar. Nunca viu um médico em sua vida, cheio de lombrigas
Para Weinrich (1974) o texto é uma estrutura determinativa
sua mãe as trata com remédio do mato, tanto é a pobreza nessa casa.
cujas partes são interdependentes., sendo assim, a recorrência de um
O único alimento que tem são pedaços de pão seco que lhes dão das
mesmo tempo verbal é uma pista coesiva para o leitor que o texto traz
sobras da padaria. A única coisa que podiam comprar era o leite,
uma seqüência de comentário ou de relato. No caso do texto narrati-
mesmo assim já estavam devendo ao leiteiro, que chegou na porta
vo, por exemplo, a recorrência da forma verbal no imperfeito poderá
para cobrar-lhe, a esposa caiu em desespero e agora o menino não
indicar ao leitor que se trata do segundo plano de um relato, enquan-
pode ficar sem o leite, pobre do meu filho.
to que o perfeito representa o primeiro plano do relato. Ainda nos
O que vamos fazer? Paciência vou vêr se consigo emprestado.
textos narrativos, especificamente em 1ª pessoa, verificamos que o
Caso eu não cosiga o dinheiro, vamos dar um jeito, até eu aranjar
narrador é também personagem da história, e que os tempos verbais
um trabalho.
foram usados adequadamente, concluindo-se que, ao contrário do
que pensava Weinrich (1974), nas narrativas existe um certo com-
Desse modo, existiram dois momentos que particularizam o
prometimento do autor com o que está sendo dito. Nessas narrativas,
presente do indicativo nos textos analisados: 1) o presente usado como
observamos que a subjetividade expressa pelos verbos na 1ª pessoa,
metáfora, podendo está empregado de forma adequada ou inadequa-
bem como os pronomes pessoais referentes a 1ª pessoa do discurso,
da, e 2) o presente usado de forma inadequada. O uso inadequado do
possuem um papel importante para a construção da coerência.
presente é um problema de coesão, na perspectiva da lingüística de
Nas dissertações, observou-se que a recorrência dos tempos
texto, constituindo-se um desvio da norma culta, conforme as regras
verbais indicava ao leitor do texto que se tratava de um comentário
da norma culta da gramática da língua portuguesa. Em geral, tais
ou de uma narrativa. A distinção elaborada por Perini (1995) entre os
problema de coesão afetam a organização superficial do texto, nas
termos tempo semântico e tempo cronológico, por meio da oposição
medida em que quebram a seqüência narrativa. Como a coesão está
formal e semântica, veio a auxiliar na compreensão do uso das for-
ligada ao nível micro-estrutural do texto, essas falhas provocavam
mas verbais nos textos, nos permitindo analisar o uso dos tempos
uma série de incoerências locais, as quais somadas prejudicam a co-
verbais numa perspectiva sintática-semântica, em que o presente, sig-
erência global do texto. Em alguns textos, os autores apresentavam-
nificava não apenas o momento da fala, como também expressava
se confusos, não se decidiam por narrar ou comentar, usando os ver-
um futuro ou um passado semânticos conforme o emprego dessa for-
bos, alternadamente, no passado e no presente, fato esse que exigia
ma verbal.
uma maior cooperação do leitor para que ele construísse ou mesmo
Concluímos que, quando o aluno escreve na escola, ele possui
recuperasse um sentido para esse texto.
o objetivo de produzir um texto dentro da ideologia e dos conceitos e
Na maioria dos textos dissertativos, encontramos o uso da for-
regras daquela instituição, obedecendo aos critérios impostos pelo
ma verbal do presente do indicativo, expressando o tempo semântico
professor. Produzir um texto escrito no vestibular também exige que
presente durativo. como no seguinte exemplo retirado de uma
o candidato siga uma série de normas impostas pelo concurso. Não é
dissertação:O homem é o reflexo da educação que recebe. Geral-
uma tarefa tão simples, pois a “boa formação textual” está relaciona-
mente o uso dos verbos ser, estar e ter é comum em textos dissertativos,
da a um conjunto de aspectos ligados tanto à situação comunicativa
possivelmente, porque neles os autores tecem comentários nos quais
quanto aos processos de ordem cognitivas. Com a perspectiva da

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lingüística, passou-se a considerar importante, analisar nas redações CEGALLA, Domingos Paschoal. 1990. Novíssima Gramática da
dos vestibulandos, os aspectos da criatividade, da articulação ou or- Língua Portuguesa. 33ª ed. São Paulo. Cia. Editora Nacional.
ganização de idéias do texto que contribuem para a formação de um COSTA VAL, Maria da Graça. 1995. Redação e Textualidade. São
bom texto. Entretanto, existem ainda alguns critérios de “correção” Paulo. Cultrix,
que visam os erros gramaticais nas redações. O problema não é ob- ILARI, Rodolfo. 1997. A Expressão do Tempo em Português. ( Re-
servar tais erros, mas considerá-los detentores da prova do falar e pensando a Língua Portuguesa). São Paulo. Contexto: Educ.
escrever bem. A realidade do ensino de português revela que é contí- KOCH, Ingedore G. Villaça.1995. A Coesão Textual. 3ed. São Pau-
nua a necessidade de que as universidades trabalhem, conjuntamen- lo. Contexto.
te, com as escolas de 1° e 2° graus para que o ensino da nossa língua __________________.1994. A Coerência Textual. 3ed. São Paulo.
não esteja somente relacionado às regras das gramáticas tradicionais, Contexto.
nem restrito à preparação do aluno do 2° grau para passar no concur- LIMA, Rocha. 1985. Gramática Normativa da Língua Portuguesa.
so do vestibular. Professores de português precisam urgentemente de 25ª ed.Rio de Janeiro.José Olímpio. Editora.
novas perspectivas para trabalhar com a linguagem em sala de aula. PÉCORA, Alcir.1992. Problemas de Redação. (Coleção texto e lin-
guagem) 4ed. São Paulo. Martins Fontes.
Referências bibliográficas PERINI, Mário A.1995. Gramática Descritiva do Português. São
Paulo. Editora Ática.
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa – Cursos de SAID ALI, Manoel. 1971. Gramática Histórica da Língua Portu-
1° e 2° Graus. 1977. São Paulo. Cia. Editora Nacional. guesa. Rio de Janeiro. Livraria Acadêmica. Biblioteca Brasilei-
BEVENISTE, Émile. 1991. Problemas de Lingüística Geral. 3ª ed. ra de Filosofia.
(Lingúística Crítica). Vol. 1 e 2; Tradução de Maria da Glória WEINRICH, Harald. 1974. Estructura Y Función de los Tiempos en
Novak e Maria Luiza Neri; Revisão do Professor Isac Nicolau el Lenguaje. Madrid. Biblioteca Románica Hispánica. Editorial
Salum. Campinas. Pontes Editora da Universidade Estadual de Gredos.
Campinas.

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Uma abordagem semiótica no texto
A moça tecelã de Marina Colasanti
Claudineide Dantas Oliveira
Universidade Federal da Parnaíba

ABSTRACT: The Greima‘s semiotics has as study object the signification. This has beginning in the mind of the speaker procceding, being only concluded
in the mind of the listener. It presents three stages: the fundamental structure, the narrative structure and the discursive structure. This study will be based
on the analysis of the last structure.
PALAVRAS-CHAVE: discurso; significação.

1. Introdução da enunciação no enunciado e analisar as relações estabelecidas entre


enunciador e enunciatário.
Esse trabalho se propõe a analisar o texto A moça tecelã de É através da sintaxe discursiva que se explicam as relações
Marina Colasanti seguindo direcionamento da semiótica greimasiana. do sujeito da enunciação com o discurso enunciado e como são
Tal teoria procura investigar o que subjaz a estrutura de aparência do estabelecidas as relações entre enunciador e enunciatário.
texto. É o percurso gerativo de sentido, o fio condutor da estrutura de Em sua relação com o discurso o enunciador usa de três
sentido de um texto. É por meio do mesmo – processo gerativo de artifícios: a actorialização – a constituição da pessoa do discurso; a
sentido – que o texto é destruído para depois ser reconstruído. Nesse temporalização – categoria aplicada ao agora e ao então; a
movimento são acionados níveis do texto desde o mais profundo até espacialização – categoria do espaço. No momento em que se produz
o mais superficial. o discurso, entram em jogo procedimentos de discursivização: são a
É por meio desse processo de desconstrução do percurso embreagem e a debreagem. Segundo Maingueneau (2000:108), a
gerativo de sentido que o analista consegue alcançar o sujeito do embreagem “é um conjunto das operações pelas quais o enunciado
texto, sujeito da enunciação. Esse sujeito é social e histórico, por se ancora na sua situação de enunciação”. Já a debreagem “é a
isso ele deixa marcas de sua ideologia e sua intenção. Isso acontece operação e os procedimentos pelos quais a enunciação realiza a
por meio do que é dito, de que forma é dito e por que é dito. O projeção dos actantes do discurso-enunciado e de suas coordenadas
enunciado é o veículo pelo qual o sujeito manifesta seu discurso. espaço-temporais, instaura o discurso e constitui o sujeito da
Esse por sua vez é orientado por formações discursivas e por uma enunciação” (GREIMAS apud ALDRIGUE, 1998). A debreagem
situação discursiva.
pode ser enunciativa ou enunciva. Quando a projeção se faz com o
eu-aqui-agora, ocorre a debreagem enunciativa; Quando a projeção
2. Percurso gerativo de sentido
se faz com o ele-lá-então, ocorre a debreagem enunciva.
O discurso para Greimas é subjacente ao texto – lugar onde
O enunciado do conto A moça tecelã é resultante de
se manifestam as estruturas sêmio-narrativas e discursivas. O discurso
debreagem enunciva. O sujeito distancia-se da enunciação com a
é visto como uma superposição de três estruturas de profundidades
finalidade de negar e de obter a ilusão de objetividade.
diferentes, que representam a construção de sentido do próprio
Apesar de não ser um conto maravilhoso, o texto A moça
discurso: estrutura fundamental, nível mais profundo onde se
tecelã de Marina Colasanti também utiliza o recurso à terceira pessoa,
encontram as estruturas elementares do discurso; estrutura narrativa,
promovendo assim o distanciamento do tempo verbal, com o intuito
nível sintático semântico intermediário e as estruturas discursivas,
de causar distanciamento da enunciação e de obter a ilusão de
mais próxima da manifestação textual. As duas primeiras estruturas
objetividade. Essa artimanha causa neutralidade a enunciação e faz
constituem o nível semiótico e a terceira constitui o nível discursivo
parecer que a mesma apenas comunica os fatos.
(GREIMAS, 1979).
É instaurado um observador, delegado da enunciação, a
Como a finalidade desse trabalho é explorar o corpus no
quem cabe determinar um ou mais pontos de vista sobre o discurso
nível discursivo, a teoria será direcionada para esse patamar. Torna-
e dirigir o desenrolar da história.
se necessário esclarecer ainda, que somente será estudada a sintaxe
No conto em estudo, o sujeito discursivo só dá voz ao
discursiva, ficando a semântica discursiva para outra oportunidade.
moço dá trama. Isso acontece por meio do discurso direto. A moça
tecelã não não tem voz. Só sabemos de seus pensamentos por
intermédio do narrador. Portanto só acontece debreagem interna
3. Nível das estruturas discursivas
quando se cede a palavra ao marido da moça. A debreagem interna
É no nível discursivo que se tem os valores e a narrativa
ocorre quando, no interior dos textos, o enunciador cede a palavra
“concretizados” pelo sujeito da enunciação . Dessa forma, a
ao(s) interlocutor(es). No caso desse texto, como já foi dito, a palavra
enunciação se projeta no enunciado, o enunciador se utiliza de
só é cedida ao marido.
recursos de persuasão para manipular o enunciatário e os conteúdos
Vejamos trechos disso nos exemplos abaixo:
abstratos são tematizados ou figurativizados no decorrer de todo o
percurso discursivo. Dizemos, portanto, que os processos utilizados
1. -É para que ninguém saiba do tapete – disse.
nessa camada são responsáveis pelo efeito de sentido do texto.
Uma das condições de coerência do texto é o nível das
2. (...) – faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
estruturas discursivas que, através de uma sintaxe e uma semântica,
garantem uma coerência argumentativa. É por meio dessas estruturas
O conto tem a organização temporal ancorada no pretérito
discursivas que se pode desvelar a enunciação. A partir da análise
imperfeito, o que leva a construir o efeito de tempo e valor durativo
das estruturas discursivas procuramos desvendar aspectos da projeção
e contínuo – sempre encontrado no conto maravilhoso. Esse tempo

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inacabado reitera a perspectiva de que tudo pode acontecer outra gradação, por meio da qual o enunciador nos faz ver que a moça tecelã
vez, conduzindo a advertência de que esse homem - com o qual toda era explorada cada dia mais. E isso aparece em uma escala ascendente
mulher sonha - pode tornar-se um opressor. pela seqüência das palavras dias / semanas / meses.
A embreagem espacial do conto desdobra-se a partir da
oposição liberdade vs opressão . Enquanto a moça ocupava aquela • Essa atividade enfadonha da moça também é representada
casa sozinha, ela era livre. A partir do momento que ela tece o seu pela repetição da conjunção aditiva e para dar valor de atividade
“príncipe encantado” ela perde a liberdade, pois o mesmo invade repetitiva e cansativa.
sua casa e sua vida, fazendo com que ela apenas teça e entristeça o
tempo todo. Para recuperar sua liberdade, a moça destece o príncipe, • Depois é mostrado o passar dos dias com a mudança das
passando a ocupar aquele lugar sozinha, livre e feliz. estações do ano: inverno / verão, - e a construção – não tinha tempo
Como é o enunciador quem manipula cognitiva e – que aparece duas vezes em um pequeno trecho do texto. Esse
pragmaticamente o enunciatário, é também responsável pelo fazer operadores tencionam convencer o enunciatário de que a mulher se
persuasivo. Usa de procedimentos de jogar com conteúdos implícitos submete à vontade do homem – um “companheiro” que cada dia
ou explícitos, para fazer passar os valores e deles convencer o mais explora seu trabalho.
enunciatário (Barros, 1988:99). Pode também usar certos fatos
lingüísticos (ilocucionais) e recursos de argumentação para atingir Para finalizar essa atividade , queremos reiterar que foi através
determinados fins. Como por exemplo, o uso do discurso direto que, das pistas deixadas no enunciado que o sujeito enunciatário realizou
ao reproduzir a fala de personagens, cria um efeito de sentido de a leitura presente nesse trabalho. Essa interpretação só acontece
verdade. porque o enunciatário põe em atividade seus conhecimentos, suas
No conto estudado vamos perceber que o enunciador dá convicções, sua historicidade, suas ideologias para assim realizar a
voz ao moço da narrativa por meio do discurso direto, para mostrar interpretação do texto. Esta relação estabelecida entre enunciador e
o seu perfil de opressor e autoritário. Eis os exemplos: enunciatário forma o que semioticamente se chama de relação
3. - Uma casa melhor é necessária – disse para a mulher. contratual entre enunciador e enunciatário, o que “permite determinar
(...) o estatuto veredictório dos textos” (Barros, 1990: 65).
4 .- Por que ter casa, se podemos ter palácio? – perguntou.
(...) Referências bibliográficas

Vejamos agora outros recursos para convencer o enunciatário, ALDRIGUE, A. C. de S. Memória e cultura popular: vozes da
a argumentação: intertextualidade em contos populares do nordeste brasileiro.
Tese de doutoramento, FCL – UNESP, Araraquara, 1998.
5.- Sem querer resposta, imediatamente ordenou que a casa BARROS, Diana Luz P. de. Teoria do discurso: Fundamentos
fosse de pedras (...) semióticos. São Paulo: Atual, 1988.
_________. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 1990.
a) Os operadores que supracitamos tem valor de opressão. COLASANTI, M. Doze reis e a moça no labirinto do vento. Rio de
Primeiro vimos a perífrase verbal – sem querer resposta -, e depois Janeiro: Nórdica, 1985.
o verbo – ordenou – que já mostra como esse homem invadia o COURTÉS, J. Introdução à semiótica Narrativa e Discursiva.
espaço da moça tecelã, não a deixando falar ou retrucar. Coimbra: Livraria Almedina, 1979.
FIGUEIREDO, I. de L. Fiando as tramas do texto: a produção de
6. Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo sentido no atelier de leitura e produção textual. Tese de
tetos e portas, e pátios e escadas, e salas e poços. A neve caía (...) doutoramento, FCL –UNESP, Araraquara, 1998.
não tinha tempo para chamar o sol. (...) não tinha tempo para GREIMAS, A. J. Semiótica Narrativa e Textual. São Paulo: Cultrix /
arrematar o dia. EDUSP, 1973.
b) Já em relação a esse último trecho, podemos observar a GREIMAS, A. J. & COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Pau-
intenção do enunciador de nos convencer por meio de vários artifícios lo: Cultrix, 1979.
ou operadores argumentativos. FIORIN, J. L. Elementos de análise do discurso. 7. Ed. – São Paulo:
Contexto, 1999.
• Inicialmente temos uma figura de linguagem chamada MAINGUENEAU. D. Análise de textos de comunicação. São Pau-
lo: Cortez

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Polifonia: marcas na propaganda publicitária
Francineide Fernandes de Melo
Universidade Federal da Parnaíba - UFPB

ABSTRACT: This work will consist in bring to light of theory about Analysis of Discourse, in the french time, with the contribuitions of Maingueneau,
Bakhtin, Brait and Fiorin. This work analyses two notions about polyphonic pheomenon in texts of publicity.
PALAVRAS-CHAVES: discurso, heterogeneidade, polifonia e ironia.

A Análise do Discurso, especificamente de linha francesa, é social. Para ele o discurso é o produto da relação mútua entre o
considerada por Maingueneau (1986) como o ramo da lingüística enunciador e o enunciatário, sendo que todo discurso comporta duas
que visa articular sua enunciação sobre certo lugar social, tendo em faces pelo fato de proceder de alguém e de se dirigir a alguém. Par-
vista suas condições de produção. É baseada nesta concepção de tindo-se dessa concepção dialógica da linguagem o conceito de
Análise do Discurso, fundamentada na relação língua e mundo, que polifonia foi formulado e desenvolvido por vários lingüistas interes-
pretendemos, neste trabalho, analisar o fenômeno polifônico da iro- sados em estudar a construção do discurso e seus efeitos de sentido,
nia que se insere no âmbito da heterogeneidade do discurso, cuja o que não nos cabe aprofundar esta questão neste trabalho.
identidade se caracteriza pela relação das formações discursivas com A polifonia pode ser conceituada como o fenômeno pelo qual
elas mesmas e a relação destas com o exterior. Maingueneau coloca se fazem ouvir vozes de sujeitos que falam de lugares sociais dife-
que a heterogeneidade constitutiva “não é marcada em superfície, rentes. Nesta confluência de vozes que perpassam o interdiscurso é
mas que a Análise do Discurso pode definir formulando hipóteses, possível situarmos o fenômeno da ironia.
através do interdiscurso, a propósito da constituição de uma forma- Neste aspecto, vale ressaltar o valor polifônico da ironia con-
ção discursiva”. (1986) siderada, num processo discursivo, como fenômeno passível de ser
Segundo Courtine (1984), o grande desafio da AD é ser capaz observado em diversas manifestações de linguagem. A ironia se
de realizar leituras críticas e reflexivas que não reduzam o discurso a evidencia na constituição do discurso pela pluralidade de sujeitos
investigações de aspectos puramente lingüísticos, nem o dissolvam presentes na enunciação materializada por diferentes vozes.
num trabalho histórico sobre ideologia. O ponto crucial é o de cons- Assim, quando se objetiva a análise da constituição do sujei-
truir interpretações sem jamais neutralizá-las, criar procedimentos to polifônico, deve-se observar a organização de vozes presentes
que exponham o olhar-leitor, usando as palavras de Fiorin “treinar o no discurso, incluindo nessa organização a representação dos di-
olhar do indivíduo estudante”, a níveis opacos à ação estratégica de versos enunciadores.
um sujeito, o qual caracteriza-se pela dispersão, por um discurso he- A ironia, segundo (Brait, 1996), será considerada como es-
terogêneo que assume diferentes vozes sociais. tratégia de linguagem que, participando da constituição de discurso
Os pressupostos fundamentais da AD sustentam que em cada como fato histórico e social, mobiliza vozes, instaura a polifonia,
discurso materializa-se uma condição social de produção, uma for- ainda que essa polifonia não signifique, necessariamente, “a demo-
mação discursiva e uma formação ideológica. Por formação discursiva cratização dos valores veiculados ou criados”.
entende-se “o que pode e deve ser dito” a partir de um lugar social Os textos selecionados para a análise são textos publicitári-
historicamente determinado. A formação ideológica, por sua vez, os, com linguagem verbal e não-verbal, os quais foram escolhidos
refere-se a visão de mundo de uma determinada classe social (Brandão, pelo seu caráter persuasivo, reflexo de suas condições de produção.
1998). E, como não existem idéias desvinculadas da linguagem, sen- Condições estas caracterizadas dentro do contexto socio-ideológi-
do um instrumento amplo de comunicação, para cada formação ide- co e são reveladas pela linguagem concebida como forma de ação
ológica há uma formação discursiva, isto é, conjunto de temas e de sobre o mundo, dotada de intencionalidade veiculadora de ideolo-
figuras que materializa uma dada visão de mundo. (Fiorin, 1998) gia e respaldada pelo poder de argumentatividade.
A linguagem veiculadora da ideologia, determina a relação entre A mensagem publicitária, segundo Carvalho (1996), ocupa lu-
o homem e sua realidade circundante e os sentidos veiculados por ela gar privilegiado em meio á tecnologia moderna. E, embora nem to-
são considerados de acordo com as condições de produção. Tais con- das surtam o efeito desejado, a onipresença da publicidade comercial
dições são caracterizadas dentro de um contexto sócio-ideológico e na sociedade de consumo cria um ambiente cultural próprio, um novo
são reveladas pela linguagem concebida como forma de ação sobre o sistema de valores que fundamentam e orientam as práticas sociais.
mundo. Sob essa ótica, é possível percebermos marcas lingüísticas A propaganda, para Carvalho (1996), está voltada para a es-
que caracterizem discursos essencialmente polifônico. fera de idéias, de valores éticos e sociais. Para Fiorin (1990), a
O conceito de polifonia foi formulado, inicialmente, por Bakhtin linguagem da propaganda “condensa, cristaliza e reflete práticas
(1979), ao estudar o romance de Dostoievski, considerado por ele sociais”.
polifônico por ser possível perceber em certos trechos o aparecimen- Nas propagandas que selecionamos para nossa análise, as
to de diversas vozes que falam simultaneamente sem que uma pre- quais foram veiculadas em revistas variadas, destinadas a um pú-
pondere sobre a outra. blico-alvo, que certamente é o da classe dominante, tentamos en-
A concepção polifônica de Bakhtin provém da consideração xergar os discursos presentes, numa perspectiva polifônica,
que ele faz acerca da linguagem que é reconhecida como uma interação enfatizando também o aspecto irônico.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 695


O enunciador joga e brinca com esses discursos para conven-
cer, persuadir o enunciatário a cometer pecados, os quais são
categorizados pelo ser humano.
A propaganda, com seu discurso, manipula valores, atitudes,
conjunto de idéias, representações, impondo pontos de vista de uma
classe dominante quem realmente freqüenta o restaurante Alphaiate é
um público provavelmente da classe média-alta. A propaganda pro-
cura persuadir este público com um discurso persuasivo e cheio de
valores ideológicos embutidos na sua discursividade. Uma das pistas
visualizadas no anúncio para essa afirmação é que o Alphaiate está
localizado na praia de Boa Viagem -Recife, lugar privilegiado, onde
praticamente só residem pessoas de poder aquisitivo elevado. Há que
se considerar que esse discurso verbal, tomado em sentido amplo é
um fenômeno de comunicação sócio-cultural.
O discurso publicitário dialoga, usando o termo de Bakhtin,
com o discurso bíblico para estabelecer uma relação polêmica com o
discurso religioso, ironizando de forma bastante persuasiva que não é
pecado pecar no Alphaiate.

O pecado da gula com os grelhados e o buffet de frios importados.


O pecado da cobiça pela mulher da mesa mais próxima. O
pecado da preguiça nas tardes de sábado. O pecado da inveja
pela beleza do lugar. O pecado da vaidade no espelho do
banheiro. O pecado da luxúria com as loiras geladas. O pecado
da ira quando você tem que ir embora.

O texto sugere a desconstrução do mito do pecado ou o apaga-


Na primeira propaganda (P1), composta por um slogan, ilus- mento da carga semântica negativa que envolve o termo pecar. Nesta
tração e texto, é possível percebermos o estabelecimento de várias perspectiva convida o leitor a pecar despudoradamente, apresentan-
vozes interpeladas, atravessadas por diferentes discursos produzindo do-lhe as várias possibilidades de fazê-lo, seja através da gula, cobiça,
um efeito de polifonia. preguiça, inveja, vaidade, luxúria e ira, nada será pecado desde que seja
O que podemos observar é que se trata de um texto dialógico, cometido nos domínios do Alphaite.
em que o enunciador joga com as vozes de Deus e do ser humano A segunda propaganda (P2) nos remete logo à primeira vista à
(ser pecador) para fazer o texto significar. O cruzamento dessas vo- história do conto de fada de Chapeuzinho Vermelho. A linguagem da
zes se materializa no interdiscurso, num processo em que se incorpo- qual o enunciador faz uso neste anúncio, figurativizado pelo “lobo”
ram temas e/ou figuras de um discurso em outro. (discurso do poder) encontra-se em outros textos como, por exemplo
Neste anúncio encontramos a figura da maçã no meio do “O lobo e cordeiro”, o do conto de fadas do Chapeuzinho Vermelho que
prato, representação simbólica do pecado no discurso bíblico. Esta representam os mesmos discursos falados pela mesma voz: sujeito,
maçã nos remete para um elemento do mundo natural e nos revela a porta voz de uma formação discursiva de uma sociedade patriarcal.
presença concreta do discurso bíblico. A construção do sentido neste O texto recupera a linguagem do conto de fadas para chamar a
aspecto se caracteriza porque a árvore em que se encontrava o fruto atenção do enunciatário para o tema criança ao mesmo tempo em que
do pecado (a maçã) estava situada no centro do jardim do Éden. faz um entrelaçamento discursivo da linguagem infantil com a lingua-
O enunciador estabelece no enunciado verbal “o primeiro pe- gem erótica do mundo adulto.
cado foi no paraíso. Todos os outros você pode cometer no Alphaiate”, Como representação concreta desses discursos o texto verbaliza
relações interdiscursivas produzindo um efeito de sentido de “tal for- uma ironia do conto de fadas em que a menina do texto da propagan-
ma a chamar à atenção não apenas para o que está dito, mas para a da é objeto sexual dos que praticam abuso sexual de crianças. O
forma de dizer e para as condições existentes entre duas dimensões”. “lamber todinha”, o “gostosinha”, a referência a boca grande são
(Fiorin, 1994). Neste sentido constitui-se um interdiscurso irônico objetos do mesmo desejo e surge no texto publicitário para chamar a
devido ao nível opaco do discurso instaurado pela ironia. atenção do abuso sexual infantil e de forma irônica estabelecida pela
polifonia que recupera a “historinha ingênua” do conto de fadas. As
É possível que, neste aspecto, a ironia se materialize através da imagens evocadas por essas palavras revelam a possibilidade de uma
citação, uma vez que o enunciador convoca em seu enunciado, sob relação sexual que terá caráter abusivo, tendo em vista que uma das
forma de alusão um universo de valores sociais, culturais, morais personagens envolvidas é uma criança, esta construção de imagem
estabelecido em outros discursos. (Brait, 1998). pode ser confirmada pelas palavras “puxou” que remete para a domi-
Os mecanismos discursivos produtores de sentidos veiculados nação, “pavor” e “medo”, emoções angustiantes a serem vivenciadas
nesta propaganda procuram focalizar as articulações configuradas pela pela criança no momento em que estiver debaixo das cobertas sob o
ironia como confluência de discursos, como cruzamentos de vozes. domínio do “lobo”.
Cruzamento este materializado pelo discurso bíblico, atravessado pelo Outro aspecto a ser considerado, diz respeito à questão do
discurso religioso e pelo discurso publicitário. gênero. A contraposição masculino x feminino pode ser lida na esco-

696 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


lha dos personagens “lobo” masculino e “Chapeuzinho Vermelho” torna-se, pois, instrumento de controle, de sedução e de persuasão,
feminino. O estereótipo que pesa sobre a mulher como sexo frágil é baseia-se “em parâmetros diversos, desde a materialidade do suporte
reforçado mais uma vez pela da personagem Chapeuzinho Vermelho. até a base ideológico-cultural” (Carvalho, 1996). Neste sentido, pode-
É interessante observar que a palavra vermelho não aparece e desta mos verificar que a análise feita, confirma a ironia como marca do caráter
forma se desconstrói qualquer sentido que envolva os significados da polifônico do texto: absorve um discurso e depois o recria para
referida cor. Mas esta ausência significa. Ela implica passividade, resignificar. Usando as palavras de Fiorin é possível dizermos que a
submissão de alguém que não reage contra a opressão limitando-se a ironia tem como marca o cruzamento de vozes que dialogam uma com
chorar “baixinho” com medo, o que revela o caráter de indefesa da as outras dizendo uma coisa para significar outra.
criança e o abuso sexual da criança.. A ausência da cor também remete
para a neutralidade acerca do aspecto da sexualidade infantil no que Referências bibliográficas
tange ao erotismo.
A propaganda faz portanto, uma denúncia contra o abuso se- BAKHTIN, M. Maxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel
xual de crianças, remetendo à possibilidade também de que o pai Lahud e Yara F. Vieira. 3. ed. São Paulo: Hucitec,1986.
cometa o abuso, uma vez que o enunciador toma a expressão minha BRANDÃO, R. H. N. Introdução à análise do discurso. Campinas:
filha e não minha netinha como no conto original. Editora da UNICAMP, 1998.
O interdiscurso fica evidente quando o enunciador da propa- CARVALHO, N. de. Publicidade: a linguagem da sedução. São Paulo:
ganda, recorrendo ao saber lingüistico de que o conto de fadas obedece Ática, 1996.
a estruturação narrativa com início, meio e fim, afirma “Esta história FIGUEIREDO, I. de L. Fiando as tramas do texto: a produção de
tem que ter um fim”, da mesma forma que o conto de fadas. sentidos no atelier de leitura e produção textual. Araraquara:
O que podemos depreender é que o cruzamento das vozes Tese de Doutoramento. UNESP/SP, 1998.
presentes no texto principalmente o do conto de fadas ora apresenta- FIORIN, J. L. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contex-
do, evoca uma voz moralizante, no sentido da obediência da criança to, 1999.
para com o pai. O processo polifônico é perpassado através da ironia ______. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 1998.
quando o enunciador joga com a troca de papéis discursivos. ______. (org.) Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade. São Paulo:
Diante do que foi exposto, sem a pretensão de esgotar todas as Edusp, 1994.
possibilidades de leitura e buscando pelo menos levantar o problema, o MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso.
que se pode concluir nesta análise, é que o discurso da propaganda Campinas, Pontes, UNICAMP, 1989.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 697


O emprego da ‘abordagem com base em tarefas’
como elemento conciliador entre as atuais
metodologias de aprendizagem de línguas e as
limitações do ensino mediado pelo computador: uma
proposta a partir do Projeto Aval
Profª. Vládia Maria Cabral Borges
Universidade Federal do Ceará - UFC

ABSTRACT: One of the biggest challenges faced by anyone who tries to develop language teaching software is to produce pedagogical
material using the socio-constructivist principles of learning and the communicative approaches to language teaching, despite the current
technological limitations of the computer in recognizing free oral and/or written discourse. As an alternative to this problem, we have tried
to implement the “task-based instruction” approach in the development of the AVAL Research Project.
PALAVRAS-CHAVE: Aprendizagem de Línguas Assistida por Computador – Instrução com base em tarefas – Prática comunicativa –
Internet e Intranet.

O Projeto AVAL (Ambientes Virtuais para Aprendizagem de ao aprendiz. Na visão de Long, interação e input são os dois elemen-
Línguas Estrangeiras), do ProTem- CNPq resulta da parceria entre tos principais no processo de aquisição e/ou aprendizagem de uma
os Departamentos de Computação e de Letras Estrangeiras da UFC1 língua.
e se propõe à criação de uma ferramenta pedagógica inovadora que Adotando os princípios das teorias cognitivas e sócio-
possibilite a vivência em língua inglesa de prováveis situações de construtivistas de aprendizagem, a Abordagem Comunicativa de En-
trabalho de um guia de turismo internacional interagindo com turis- sino de Línguas resulta da fusão de princípios teóricos amplos sobre
tas estrangeiros no Brasil, em ambientes virtuais dimensionais. Do língua, linguagem e sua aprendizagem. Difíceis de serem sintetiza-
ponto de vista de ensino de línguas, objetiva-se a produção de um dos, os princípios do Ensino Comunicativo vêm sendo tecidos desde
software educacional que possibilite: os primeiros trabalhos de Widdowson (1978) e Savingnon (1983) até
 imersão em situações comunicativas semelhantes às viven- os mais recentes de Richard-Amato (1996) e Brown (2000). Em
ciadas por um guia de turismo dentro de ambientes vir comum, esses princípios traçam quatro características da Aborda-
tuais tridimensionais; gem Comunicativa do Ensino-Aprendizagem de Línguas: 1. o ensi-
 interação que favoreça o desenvolvimento das habilidades no de uma língua deve almejar o desenvolvimento da competência
lingüísticas necessárias à comunicação; comunicativa que, por sua vez, resulta da somatória das competênci-
 interação em ambientes virtuais tridimensionais tanto entre as gramatical, discursiva, sócio-lingüística e estratégica (Canale &
mono-usuários e o computador, em situações planejadas, Swain, 1980); 2. fluência e acuidade são compreendidos como ele-
como entre vários usuários, em práticas comunicativas ines- mentos complementares à competência comunicativa; 3. as ativida-
peradas, via Intranet e Internet. des didáticas devem procurar promover o uso pragmático, autêntico
e funcional da língua com propósitos significativos; e 4. os procedi-
O grande desafio enfrentado consiste em aplicar o suporte
mentos metodológicos devem possibilitar o uso produtivo e recepti-
metodológico das teorias sócio-construtivistas de aprendizagem e dos
vo da língua em situações comunicativas não programadas.
princípios da abordagem comunicativa do ensino de línguas na ela-
Fundamentando-se nos princípios das teorias sócio-
boração dessa ferramenta pedagógica.
construtivistas e adotando a Abordagem Comunicativa, o Grupo de
Como evidenciado através de análise de vários softwares dis-
Ensino de Línguas Estrangeiras, apoiado nos recursos disponibilizados
poníveis no mercado, quase todo material computacional para ensi-
pelo Grupo de Computação, tem procurado, desse modo, produzir um
no de línguas reflete ainda o conceito de Instrução Programada, que
Curso de Inglês para Fins Específicos (ESP) para guias de turismo que
se baseava na ultrapassada teoria behaviorista de aprendizagem, em-
desenvolva a competência comunicativa nessa língua, focalizando os
pregada pelo Método Áudio-Lingual de ensino de línguas. De acor-
aspectos não-programáveis da língua, como as produções escrita e oral,
do com esse método, a aprendizagem de uma língua acontecia pela
e tratando os sub-sistemas lingüísticos de modo integrado.
automatização de suas formas lingüísticas através de práticas inten-
sivas e extensivas de repetição e reforço à resposta certa.
As teorias sócio-construtivistas, no entanto, enfatizam a natu-
reza dinâmica das inter-relações entre os aprendizes e seus pares,
entre os aprendizes e seus professores e entre todos com os quais 1 “Just as books freed serious students from the tyranny of overly simple
methods of oral recitation, so computers can free students from the
interajam. Long (1985,1996), em sua “hipótese interacional”
drudgery of doing exactly similar tasks unadjusted and untailored to their
(interaction hypothesis), afirma que o input compreensível resulta individual needs.” SUPPES, Patrick. Computer Technology and the Future
da “interação modificada” (modified interaction), sendo essa última of Education. In: Atkinson, R. C. and Wilson, H. A. (ed.). Computer Assisted
definida como as várias modificações realizadas por falantes nativos Instruction – a book of readings. New York: Academic Press, 1996. (Tradu-
ou por outros interlocutores de modo a tornar o input compreensível ção nossa)

698 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Instrução com base em tarefas (Task-based Instruction) tro do ambiente virtual de um ônibus passeando pela cidade. Essa é a
A solução encontrada foi a adoção do modelo de Instrução com tarefa aberta (Task), na qual a atenção do usuário estará centrada no
Base em Tarefas (Task-based Instruction), definida por Willis (1999) seu desempenho enquanto guia, portanto, em um objetivo comunica-
como aplicação de atividades nas quais a língua alvo é utilizada pelo tivo visando um resultado. Além disso, o usuário, o guia de turismo,
aprendiz para obtenção de um resultado comunicativo. Procura-se, enfrentará situações em que irá interagir de forma inesperada com
assim, colocar o foco principal no sentido da interação, selecionando- outros usuários do software, os turistas, conectados em rede, desen-
se tópicos e atividades que motivem os usuários a empregarem seus volvendo, assim, sua competência comunicativa.
conhecimentos pré-adquiridos da língua alvo na realização das tare- Se o usuário se sente seguro de sua competência comunicati-
fas, concentrando sua atenção mais no significado e no propósito da va, pode de imediato iniciar a realização da tarefa, dentro de um am-
interação e menos na forma lingüística correta. Acredita-se que a união biente virtual, interagindo com outros usuários, que também se sin-
entre Realidade Virtual e Instrução com Base em Tarefas promova as tam aptos à execução da tarefa, através de Intranet ou de Internet. Se,
condições necessárias ao desenvolvimento da competência comunica- entretanto, o usuário necessita de preparação para elaboração da ta-
tiva em línguas estrangeiras, além de destacar o grande mérito do pa- refa proposta, poderá realizar primeiramente as tarefas fechadas (Mini-
pel do computador na educação, qual seja, disponibilizar ao usuário a tasks) até que se sinta preparado para a tarefa aberta. A seguir, apre-
oportunidade de aprender em seu próprio ritmo. sentamos um exemplo de tarefa fechada (mini-task), também da mes-
De acordo com Willis (op.cit), uma das principais caracterís- ma unidade, que serve de preparação para realização da tarefa aberta
ticas da Instrução com Base em Tarefas é a possibilidade de o apren- inicialmente proposta.
diz escolher livremente as formas lingüísticas que utilizará para atin-
gir seu propósito comunicativo. A língua é considerada o veículo de
acesso à obtenção do êxito na execução da tarefa; toda ênfase está no
significado e não na forma da comunicação.
No entanto, a execução de tarefas comunicativas por parte
de alunos principiantes, com pouco domínio da língua, pode ser ex-
tremamente difícil, uma vez que no contexto de língua estrangeira,
como é o caso do ensino-aprendizagem de inglês no Brasil, os apren-
dizes dispõem, na maioria das vezes, apenas do ambiente de sala de
aula para ter contato e praticar essa língua. Assim, a total incapacida-
de de realizar a tarefa por desconhecimento de formas lingüísticas e
de vocabulário básicos pode gerar nos alunos um sentimento de frus-
tração tão intensa que os leve ao abandono da tarefa. De modo a
evitar que os usuários do software desistam de executar as tarefas
propostas por se sentirem incapazes de realizá-las, foram adotados Observa-se que, nas tarefas fechadas (mini-tasks), embora tam-
os dois tipos de Tarefas Instrucionais propostos por Willis (1999): bém se encontrem fins comunicativos (cumprimente os turistas, diga
tarefas abertas (open tasks) e Tarefas Fechadas (closed tasks). onde se localiza a cidade no Brasil, etc...), há objetivos instrucionais
As tarefas abertas, de acordo com Willis (op.cit.) têm objeti- definidos que levam à utilização de formas lingüísticas específicas e
vos comunicativos claros e amplos e propósitos instrucionais – de controladas, promovendo, por conseguinte, a aquisição da língua e o
aquisição de uma ou outra forma lingüística – genéricos e não defini- desenvolvimento da competência lingüística.
dos. Nas tarefas fechadas, porém, as finalidades instrucionais são Contudo, a aplicação da abordagem de Instrução com Base
específicas, definidas e restritas e conduzem ao uso de formas lin- em Tarefas para o desenvolvimento da comunicação em ambientes
güísticas controladas. virtuais tridimensionais, tanto entre mono-usuários e o computador
Desse modo, na estruturação e organização das unidades di- em situações comunicativas planejadas, na execução das tarefas fe-
dáticas do software em questão, propõe-se primeiramente a elabora- chadas, como entre vários usuários do mesmo software em práticas
ção de uma tarefa aberta (Task), como mostra o exemplo abaixo. comunicativas inesperadas via Intranet e Internet, nas tarefas aber-
tas, tem sofrido as limitações técnicas de reconhecimento das falas
escrita e oral, de velocidade de emissão e recepção da voz em rede, e
de detecção de possíveis erros fonológicos, morfológicos, sintáticos
e semânticos.
Do ponto de vista didático, a eficácia da execução da Instrução
com Base em Tarefas em contexto de ensino de língua estrangeira
pode ser comprometida devido:
 ao conhecimento semântico e/ou conceptual insuficiente do
aprendiz da língua estrangeira para realização da tarefa;
 à inadequação ou a insuficiência de seu domínio lexical;
 à falta de conhecimento do aprendiz da estrutura gramatical
necessária à realização das funções comunicativas solicitadas pela
tarefa.
A fim de minimizar esses possíveis problemas, o Grupo de
Línguas Estrangeiras desenvolveu as seguintes propostas:
 viabilizar o acesso a um agente virtual que, uma vez alimen-
tado com endereços na Web que forneçam informações acerca dos
Como pode ser observado, o usuário do software, o ‘guia’, pontos turísticos do Estado do Ceará, ligue o usuário do software a
deve escolher cinco entre os quinze pontos turísticos apresentados e esses sites, permitindo que esse adquira o conhecimento semântico/
realizar um city tour que envolva as cinco atrações turísticas escolhi- conceptual necessário à preparação da tarefa proposta;
das, comportando-se como um guia interagindo com os turistas den-

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 699


 elaborar dois glossários - Português-Inglês e Inglês-Portugu- adeqüem aos seus interesses e necessidades (Warschauer,1996).
ês - para serem disponibilizados para consulta pelo usuário durante a Dessa forma, em futuros trabalhos, os dois Grupos envolvidos
execução das tarefas, no caso deste não ter em seu léxico o vocabulá- neste projeto interdisciplinar pretendem propor melhores soluções para
rio adequado à situação comunicativa da tarefa; os problemas encontrados e expandir o conhecimento adquirido e os
 prover quadros que, uma vez acessados, apresentem tanto as recursos implementados para a elaboração de software para aprendiza-
estruturas gramaticais como as palavras necessárias ao desempenho gem de línguas, tanto para outros fins específicos como, por exemplo,
das funções comunicativas solicitadas pelas tarefas. Abaixo, são mos- para o turista, quanto para fins mais abrangentes, como o desenvolvi-
trados exemplos de alguns desses quadros, denominados Functions, mento de habilidades comunicativas básicas (BICS) em língua estran-
por apresentarem a(s) possibilidade(s) lingüística(s) de execução das geira. Isso porque os grupos compartilham da concepção de que
funções comunicativas (Communicative functions).
“Assim como ocorreu na ‘revolução’ causada pelo surgimento
dos laboratórios de línguas há quarenta anos, aqueles que es-
peram a obtenção de resultados magníficos pelo simples uso
do computador e de seus sistemas e programas irão muito pro-
vavelmente decepcionar-se. Porém, os que colocarem o uso da
tecnologia educacional a serviço da boa pedagogia irão inega-
velmente encontrar maneiras de usá-la para enriquecimento de
seus programas curriculares e para oferecimento de oportuni-
dades de aprendizagem a seus alunos.”3

Referências bibliográficas

BRETT, Paul. Multimedia Applications for Language Learning –


What are they and how effective are they. http://pers-
www.wlv.ac.uk/~le1969.htm
BROWN, H. D. (2000). Principles of language learning and teaching.
(4a ed.) New York: Addison Wesley Longman.
CANALE, M. & SWAIN, M. (1980) Theoretical bases of
communicative approaches to second language teaching and
testing. In: Applied Linguistics, 1(1), 1-47.
HANSON-SMITH, Elizabeth. Call Environments: The Quiet
Obs: Os números em parênteses correspondem aos comandos que Revolution. Disponível em: http://
aparecem na Mini-task 1. www.georgiastateuniversity.edu/ Arquivo: georgia.html
LONG, M. (1985) Input ad second language acquisition theory. In:
Considerações finais Gass & Madden.
LONG, M. (1996) The role of the linguistic environment in second
Apesar de não considerar a Aprendizagem de Línguas Assis- language acquisition. In: Ritchie & Bhatia.
tida por Computador (CALL) um método e nem o computador em si RICHARD-AMATO, P. A. (1996) Making it happen: interaction in
um agente capaz de diretamente afetar o processo de ensino-aprendi- the second language classroom. (2a ed.) New York: Longman.
zagem, mas sim um meio no qual podem ser implementados uma SAVIGNON, S. (1983) Communicative competence: Theory and
ampla variedade de métodos, abordagens, filosofias e teorias peda- classroom practice: Texts and contexts in second language
gógicas, o Grupo de Línguas Estrangeiras, executor do Projeto AVAL, learning. Reading, Mass.: Addison-Wesley.
acredita que SUPPES, Patrick. (1996) Computer Technology and the Future of
Education. In: Atkinson, R. C. and Wilson, H. A. (ed.). Computer
Assisted Instruction – a book of readings. New York: Academic
“Assim como os livros libertaram aprendizes interessados da
Press.
tirania dos métodos simplistas de recitação oral, também os
WARSCHAUER, Mark. (1996) Computer-Assisted Language
computadores libertarão os alunos da monotonia de realizar as
Learning: An Introduction. In: Fotos (ed.) Multimedia language
mesmas tarefas, não ajustadas e não especificamente designa-
teaching. Tokyo: Logos International.
das para atender seus interesses individuais.” 2
WIDDOWSON, H. (1978) Teaching language as communication.
Oxford: Oxford University Press.
Essa opinião encontra respaldo em vários estudos sobre a
WILLIS, J. (1999) A framework for task-based learning. (3a ed.)
Aprendizagem de Línguas Assistida por Computador, os quais evi-
Essex, England: Addison-Wesley Longman Limited.
denciam as contribuições do computador para a aprendizagem, tais
como:
 possibilitar ao aprendiz a aquisição da linguagem no seu pró-
prio ritmo, respeitando suas potencialidades e/ou limitações e dimi- 2 “As with the audio language lab ‘revolution’ of 40 years ago, those who
nuindo seu nível de ansiedade – o aprendiz tem papel ativo na sua expect to get magnificient results simply from the purchase of expensive
aprendizagem (Hanson-Smith); and elaborate systems will likely be disappointed. But those who put
 combinar, integrar e orquestrar todos os elementos comuni- computer technology to use in the service of good pedagogy will
undoubtedly find ways to enrich their educational program and the learning
cativos envolvidos na aprendizagem de línguas - – texto, som, gráfi-
opportunities of their students.” WARSCHAUER, Mark. Op.cit., p. 3. (Tra-
cos, figuras, fotografias, animação e filme – os quais possuem suas
dução nossa)
próprias vantagens em vincular mensagens específicas e em evocar 3 “As with the audio language lab ‘revolution’ of 40 years ago, those who
diferentes tipos de resposta nos aprendizes(Warschauer,1996); expect to get magnificient results simply from the purchase of expensive
 favorecer a ativação do conhecimento implícito e explícito e and elaborate systems will likely be disappointed. But those who put
o desenvolvimento da motivação intrínseca e de estratégias de apren- computer technology to use in the service of good pedagogy will
dizagem de acordo com o estilo de aprendizagem do aprendiz (Brett); undoubtedly find ways to enrich their educational program and the learning
 possibilitar ao aprendiz, através da World Wide Web, o acesso opportunities of their students.” WARSCHAUER, Mark. Op.cit., p. 3. (Tra-
a milhões de informações em minutos e a materiais autênticos que se dução nossa)

700 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Implementação de situações comunicativas em
ambientes virtuais em um software para ensino de
inglês como língua estrangeira
Silvia Malena Modesto Monteiro,
Universidade Federal do Ceará – UFC

ABSTRACT: The AVAL Project aims at developing a language teaching software specially designed for tourism guides. The project wants to implement, in
virtual environments, common situations of a tourism guide’s routine, in order to enable reality-like communicative interactions to take place .
PALAVRAS-CHAVE: situações, comunicativas, realidade, virtual

O Projeto AVAL (Ambientes Virtuais para a Aprendizagem nível de conhecimento de línguas estrangeiras, entre outros. O ques-
de Línguas), realizado pelos Departamentos de Computação e de Le- tionário serviu também como um meio de selecionar os guias que
tras Estrangeiras da Universidade Federal do Ceará (UFC), em parce- seriam posteriormente acompanhados pelos bolsistas do projeto, já
ria com empresa Softbuilder S.A. e patrocinado pelo CNPq – ProTem, que uma das perguntas do questionário consistia em saber se o guia
trabalha na produção de um software educativo para o ensino de lín- aceitaria ser acompanhado em um de seus passeios turísticos.
guas voltado para guias de turismo. A partir de situações reais, Uma equipe formada por três bolsistas visitou três das princi-
vivenciadas por um guia de turismo em sua prática profissional, bus- pais agências da cidade, que trabalham com turismo receptivo inter-
camos implementar no software situações em ambientes virtuais que nacional, previamente selecionadas e contatadas e deixou os questi-
possibilitem interações comunicativas semelhantes à realidade. onários a serem respondidos. Após duas semanas, foi recolhido um
No ensino de línguas estrangeiras, uma situação comunica- total de sessenta (60) questionários nas agências em que eles haviam
tiva consiste na reprodução em material didático de uma situação sido distribuídos. Em seguida, fizemos a tabulação dos dados, para
real ou próxima à realidade, em que há comunicação por meio da podermos assim ter uma idéia, em termos percentuais, da realidade
linguagem. Com base neste conceito, direcionamos nosso trabalho do universo dos guias de turismo da cidade de Fortaleza e também
de forma que as situações elaboradas nas lições do software refletis- para selecionar os guias a serem acompanhados. Foram onze (11) os
sem a realidade do cotidiano de um guia de turismo. Isso porque guias acompanhados por quatro bolsistas do projeto nas seguintes
consideramos que a tendência atual no âmbito da aprendizagem de situações turísticas:
línguas é enfocar o ensino de línguas na realidade do falante-apren- - transfer in (traslado dos turistas do aeroporto ao hotel);
diz, ou seja, em como ele usa a língua no dia-a-dia. Segundo - transfer out (traslado dos turistas do hotel ao aeroporto);
Finocchiaro (1983), o falante de língua estrangeira, para emitir men- - city-tour (passeio pelos pontos turísticos da cidade);
sagens que possam ser facilmente compreendidas, deve saber usar a - passeios em praias cearenses: Beach Park, Canoa Quebrada,
língua de forma apropriada em diferentes situações. Para isso, ele Lagoinha, Cumbuco, Morro Branco.
deve levar em conta os seguintes elementos situacionais: Durantes os acompanhamentos, os bolsistas, munidos de um
1. a pessoa ou as pessoas para quem a comunicação está sen- mini-gravador e de um bloco de anotações, gravaram os diálogos
do direcionada (idade, experiência, a língua que eles falam e enten- entre os guias e os turistas e anotaram todas as informações impor-
dem); tantes no que diz respeito às situações comunicativas vivenciadas
2. onde a comunicação está acontecendo; durante as situações turísticas. As gravações foram posteriormente
3. quando a comunicação está acontecendo; transcritas e arquivadas para servirem de base para as lições a serem
4. o tópico que está sendo discutido. produzidas. As anotações foram também arquivadas e constituíram
Assim, tivemos que partir das situações reais vivenciadas pelo uma fonte importante durante a produção das lições.
guia de turismo para então criar as situações comunicativas próxi- Após concluída a etapa de acompanhamento dos guias, nos-
mas à sua realidade. so grupo, responsável pela elaboração das atividades lingüísticas das
Partindo deste princípio, percebemos que seria necessário defi- lições do curso, deu início à produção da lições, tendo como base as
nir um plano de trabalho em que as situações comunicativas reais, transcrições das situações comunicativas gravadas durante o acom-
neste caso as situações vividas pelos guias de turismo, seriam panhamento dos guias. A produção de cada lição obedeceu aos se-
pesquisadas para em seguida serem implementadas em realidade vir- guintes passos:
tual. O plano de trabalho mencionado foi dividido em cinco etapas: - pesquisa em revistas, folders e material de divulgação rela-
- elaboração de um questionário a ser aplicado com guias de cionados à área de turismo;
turismo da cidade de Fortaleza; - escolha dos temas de cada uma das quatro lições a serem
- visita às principais agências de turismo receptivo internaci- produzidas, com base nas informações colhidas;
onal de Fortaleza e aplicação dos questionários; - leitura das transcrições, com o objetivo de selecionar as si-
- tabulação dos dados obtidos a partir dos questionários; tuações comunicativas mais apropriadas às lições;
- acompanhamento dos guias; - elaboração das lições.
- produção das lições a partir dos resultados obtidos através Na produção das situações das lições, tomamos como
do acompanhamento. referencial teórico a abordagem comunicativa de ensino de línguas,
O questionário aplicado com os guias de turismo, elaborado que tem como principal objetivo desenvolver a competência comu-
pela equipe responsável pela pesquisa de campo, continha pergun- nicativa do aprendiz de segunda língua ou língua estrangeira, facili-
tas relacionadas a informações tais como idade, grau de escolarida- tando a aprendizagem do aluno por meio de práticas interativas em
de, tempo de experiência na profissão de guia, agência de origem, situações comunicativas. Assim, ele passa a ser um comunicador,

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 701


ativamente engajado na negociação de significados (Larsen-Freeman,
1986). Utilizamos ainda o modelo functional-notional (funcional
nocional) de organização de conteúdo programático. De acordo com
esse modelo, a organização do conteúdo programático a ser desen-
volvido é feita a partir da seleção e hierarquização das funções comu-
nicativas a serem desenvolvidas. Nesse modelo, a adequação e a
aceitabilidade do discurso em uma determinada situação sociocultural
desempenham um papel central na aprendizagem de uma língua es-
trangeira (Finocchiaro, 1983).
Assim, na organização do conteúdo das lições do software do
Projeto AVAL, seguindo o modelo notional-functional, o conteúdo
foi dividido em unidades, cujos núcleos são as funções comunicati-
vas que os aprendizes desejam expressar dentro de uma determinada Os comandos a serem seguidos pelos alunos em todas a lições,
situação social. Desse modo, na elaboração das atividades de apren- para produzirem sentenças aceitáveis do ponto de vista comunicati-
dizagem, partimos da função comunicativa e da situação social atra- vo e gramatical, foram baseados nas falas reais dos guias, gravadas
vés na qual a função se expressa. O vocabulário e os itens estruturais durante os passeios acompanhados. Segue uma comparação das sen-
– as noções – foram centrados em uma ou mais funções, o que torna tenças reais e dos comandos presentes na Lição 1:
a comunicação imediata possível (op. cit., 1983). Segue um exemplo
de como as unidades estão organizadas, com base no quadro sugeri-
do por Finocchiaro (op.cit.):

A Lição 4, nosso segundo exemplo, consiste na simulação de


um city tour pela cidade de Fortaleza e, assim como as outras lições,
teve como base o conteúdo das transcrições anteriormente mencio-
nadas. Vejamos uma parte da transcrição referente ao city-tour reali-
zado em Fortaleza com turistas alemães e italianos (Quadro 4):

As transcrições das gravações realizadas pelos bolsistas du-


rante o acompanhamento dos guias de turismo foram cruciais para a
produção das lições, visto que elas serviram como modelo para a
maioria dos diálogos nelas apresentados. Elas asseguraram a viabili-
Com base nesta transcrição, produzimos a Lição 4 (“City-
dade e a representatividade das situações comunicativas apresenta- tour”). Uma parte dessa lição (Quadro 5) é apresentada a seguir:
das no que se refere à realidade da rotina de um guia de turismo.
A transcrição (Quadro 1) representa o primeiro contato do guia
com os turistas, ao recebê-los no aeroporto. Neste momento, o guia
cumprimenta os turistas, os identifica e conduz até o ônibus que os
levará até o hotel, despedindo-se de alguns deles. A seguir, apresen-
ta-se uma passagem de uma transcrição (Quadro 1), realizada em uma
situação turística de transfer in, com turistas brasileiros:

Percebe-se também aqui a correlação entre a transcrição reali-


zada e a estrutura da lição, já que ela retrata a forma como o guia de
turismo organiza seu discurso durante o passeio, ou seja, como o
introduz, desenvolve, dá informações e de que forma se dirige aos
turistas. Este modelo de trabalho foi também seguido nas demais
lições do software.
O planejamento lingüístico do software educativo para o en-
Com base nas informações colhidas a partir da transcrição (Qua- sino de línguas do Projeto AVAL, como pode ser observado, tem
dro 1), foi produzida a primeira lição do curso (Lesson 1 – “Welcome sido pautado em dois alicerces: os princípios sócio-lingüísticos de
to Fortaleza”), da qual apresentamos o seguinte trecho: aprendizagem e a abordagem comunicativa de ensino de línguas. Na

702 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


organização das lições, adotamos a abordagem com base em tarefas e o modelo functional-notional. Na abordagem com base em tarefas,
o modelo functional-notional. Na abordagem com base em tarefas, apresenta-se o conteúdo programático por meio de propostas de tare-
apresenta-se o conteúdo programático por meio de propostas de tare- fas instrucionais, preferencialmente relacionadas ao cotidiano do alu-
fas instrucionais, preferencialmente relacionadas ao cotidiano do alu- no. Esse conteúdo programático, por sua vez, é seqüenciado e
no. Esse conteúdo programático, por sua vez, é seqüenciado e hierarquizado, de acordo com o modelo functional-notional, por fun-
hierarquizado, de acordo com o modelo functional-notional, por fun- ções comunicativas. Esses princípios norteadores desse software para
ções comunicativas. Esses princípios norteadores desse software para ensino de língua explicitam a importância de conhecermos as situa-
ensino de língua explicitam a importância de conhecermos as situa- ções de trabalho do guia de turismo e o tipo de interações comunica-
ções de trabalho do guia de turismo e o tipo de interações comunica- tivas que desenvolvem com os turistas a fim de que pudéssemos apro-
tivas que desenvolvem com os turistas a fim de que pudéssemos apro- ximar as situações presentes nas lições às vivenciadas por um guia
ximar as situações presentes nas lições às vivenciadas por um guia de turismo.
de turismo. Desta forma, acreditamos que o projeto que vem sendo de-
Desta forma, acreditamos que o projeto que vem sendo de- senvolvido possa contribuir de forma significativa para o ensino de
senvolvido possa contribuir de forma significativa para o ensino de língua estrangeira, para a ciência e para a tecnologia educacional,
língua estrangeira, para a ciência e para a tecnologia educacional, cada vez mais repleta de descobertas e avanços importantes para a
cada vez mais repleta de descobertas e avanços importantes para a comunidade científica e a sociedade de forma geral. O projeto AVAL
comunidade científica e a sociedade de forma geral. O projeto AVAL é apenas o primeiro passo em direção ao desenvolvimento de novas
é apenas o primeiro passo em direção ao desenvolvimento de novas tecnologias educacionais e deve servir como estímulo para novas pes-
tecnologias educacionais e deve servir como estímulo para novas pes- quisas, fomentando assim o universo de ensino-aprendizagem de lín-
quisas, fomentando assim o universo de ensino-aprendizagem de lín- guas estrangeiras.
guas estrangeiras.
Percebe-se também aqui a correlação entre a transcrição reali- Referências bibliográficas
zada e a estrutura da lição, já que ela retrata a forma como o guia de
turismo organiza seu discurso durante o passeio, ou seja, como o FINOCCHIARO, Mary. English as a Second/Foreign Language.
introduz, desenvolve, dá informações e de que forma se dirige aos London: Oxford University Press, 1983.
turistas. Este modelo de trabalho foi também seguido nas demais li- LARSEN-FREEMAN, D. Techniques and Principles in Language
ções do software. Teaching. Oxford University Press, 1986.
O planejamento lingüístico do software educativo para o en- RICHARD-AMATO, P. Making it Happen. New York: Longman,
sino de línguas do Projeto AVAL, como pode ser observado, tem 1996.
sido pautado em dois alicerces: os princípios sócio-lingüísticos de UR, P. A Course in Language Teaching. Great Britain: Cambridge
aprendizagem e a abordagem comunicativa de ensino de línguas. Na University Press, 1996.
organização das lições, adotamos a abordagem com base em tarefas e

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 703


O tratamento do erro em software
destinado ao ensino de língua inglesa.
João Tobias Lima Sales
Universidade Federal do Ceará

PALAVRAS-CHAVE: tratamento do erro, ensino de línguas, tutorial, ferramenta.


ABSTRACT: This article aims to present some error treatment tendencies in computer-assisted language learning concerning the tutor and tool
roles performed by the machine and the possibility of implementing these tendencies in the elaboration of the AVAL project software.

Introdução vando os aspectos discursivos e pragmáticos, assim como são corri-


gidos os erros sintáticos, morfológicos e lexicais?
O uso do computador como mais um recurso para o ensino de
línguas estrangeiras tem provocado discussões na comunidade Os papéis do computador e a correção
educativa, uma vez que nós professores vivemos um período em que
os elementos discursivos e pragmáticos da comunicação têm rele- A classificação dos papéis desempenhados pelo computador
vância igual, ou superior, aos aspectos fonológicos, sintáticos e se- no ensino de línguas estrangeiras foi proposta pela primeira vez por
mânticos na aprendizagem de uma nova língua. Este novo recurso, R. P. Taylor em 1980 (apud Levy, 1998: 83) e desde então tem influ-
carregado de recursos, nos remete a práticas controladas de ensino enciado diversos autores na confecção e na avaliação de materiais
baseadas no comportamento verbal do aprendiz, o que contraria to- para o ensino de línguas mediado pelo computador. Taylor propõe
das as conquistas alcançadas pela abordagem comunicativa do ensi- um modelo que classifica o computador quanto a três papéis: tutor,
no de línguas. ferramenta e tutelado. Espera-se que com essa classificação a con-
Esta referência que se faz ao computador quando o assunto é cepção de que todos os materiais em CALL são tutoriais por excelên-
ensino de línguas estrangeiras está sempre presente apesar das ilus- cia seja desmistificada. Contudo, apesar de Taylor ter procurado clas-
trações interativas e animadas, do som digital, da maior versatilidade sificar os papéis do computador no ensino de línguas através de ca-
da multimídia em relação ao livro didático ou da possibilidade de racterísticas bem definidas, esses papéis não podem ser considerados
interação via Internet em salas de bate-papo ou por mensagens ele- completos em sua essência, podendo um completar o outro de acor-
trônicas, que são novos artifícios dos quais os professores dispõem do com a necessidade ou com a forma particular de utilização deter-
para enriquecerem sua prática pedagógica. Embora os recursos do minada por professores e aprendizes. Os papéis de tutor e ferramenta
computador tenham evoluído bastante, a visão estruturalista do ensi- são, portanto, os mais abordados na discussão a respeito da função
no de línguas permanece como um fantasma que ressurge nos mate- do computador no ensino de línguas estrangeiras.
riais desenvolvidos com um cunho puramente mercadológico em Como tutor o computador é programado para tomar decisões
detrimento de uma proposta vanguardista de ensino. através da avaliação que faz do input disponibilizado pelo usuário-
Ao participar de uma equipe produtora de um software para o aprendiz. Esse julgamento resulta em um feedback imediato que tem
ensino de inglês para guias de turismo, observei que a adequação como função determinar se o usuário-aprendiz deve ou não continu-
desta nova tecnologia às abordagens vivenciadas pelos professores ar sua tarefa em níveis mais avançados ou simplesmente mostrar-lhe
em sala de aula encontra no tratamento dado ao erro do usuário o a resposta adequada. Em sistemas mais aperfeiçoados (chamados de
ponto de partida para as discussões levantadas sobre as abordagens Sistemas Tutoriais Inteligentes), a avaliação feita pelo software re-
estruturalista e comunicativa do ensino de línguas e o uso do compu- sulta na apresentação de informações destinadas à reordenação do
tador. Se a grande maioria dos softwares para o ensino de inglês visa pensamento do aprendiz, proporcionando-lhe informações necessá-
trabalhar com o ensino à distância ou com a auto-instrução, distanci- rias para que ele evite erros posteriores sobre o mesmo assunto. Essa
ando o aprendiz de um instrutor com quem possa argumentar sobre função do computador pressupõe duas considerações: a primeira é a
suas dúvidas ou conseguir parâmetros avaliativos de seu desempe- ausência do professor tornando o aluno responsável por sua própria
nho, um erro cometido pelo aprendiz torna-se o momento essencial aprendizagem. A segunda localiza o computador fora da sala de aula
para a instrução, desta forma, surgem as diversas maneiras de feedback para que o aluno o utilize em momentos ocasionais de auto-instru-
ao aprendiz que retomam as características da instrução programada. ção, procurando uma outra forma de estudo que o direcione na supe-
Rubin (1997) destaca que um software educacional de caráter tutorial ração de dúvidas.
deve apresentar ao aprendiz as maneiras de como se utiliza o materi- As raízes filosóficas do papel de tutor encontram embasamento
al, guiá-lo e analisar o que foi entendido ou não pelo usuário em um no behaviorismo e na instrução programada. Para Levy (1998:182),
momento particular. Para Campos (1997), o material deve fornecer Skinner1 , que influenciou o início da educação tecnológica e advo-
feedback imediato das respostas do aluno após analisá-las e compará- gou em prol do uso de máquinas para a educação com propósitos
las com as respostas desejadas, aquelas que haviam sido previamente específicos, propõe duas idéias básicas em relação ao uso de artifíci-
programadas. os mecânicos e eletrônicos na educação. A primeira é a distinção
Portanto, ao refletir sobre a influência que o tratamento dado existente entre o trabalho da máquina e o trabalho do professor, am-
ao erro tem sobre a natureza do software para o ensino de línguas, bos não devem dividir o mesmo ambiente instrucional. A segunda é
levanto dois questionamentos que pretendo responder apresentando que a qualidade da aprendizagem proporcionada pelo professor é, de
o modelo de tratamento de erro adotado por nossa equipe na concep-
ção do software: O caráter mecanicista do tratamento do erro é a
única saída para softwares destinados à auto-instrução e ao ensino à
distância? Há condição de se corrigir erros de uso da língua, obser- 1 Autor do artigo The science of learning and the art of teaching

704 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


alguma forma, inferior a que o computador pode proporcionar. Wyatt A condição de ferramenta adotada por nosso material possibi-
(apud Levy 1998:183) descreve o papel instrucional representado pelo lita a liberdade do aluno dando-lhe condições para cometer erros
computador como o de condutor de uma atividade pré-planejada que durante a realização da tarefa, além disso, o professor participa do
espera que os alunos (conduzidos) produzam formas lingüísticas e
processo agindo como mediador nos momentos em que for requerido
respostas previamente estabelecidas. Apesar do desenvolvimento dos
tutoriais, através dos sistemas de tutorias inteligentes, a separação de pelo aluno ou nos momentos de intervenção necessária. A participa-
professor e máquina ainda continua sendo proposta por alguns ção do professor pode acontecer presencialmente ou via rede (Internet),
softwares educacionais. uma vez que o material pode ser utilizado em um laboratório ou no
Por outro lado, o papel de ferramenta destaca o computador ensino à distância.
como um instrumento neutro cuja forma de utilização não é previa- A figura abaixo apresenta uma tarefa que é proposta ao aluno.
mente estabelecida. Neste caso, o professor desempenha um papel Antes de entrar no mundo virtual, o aluno deve preparar seu material
fundamental direcionando os alunos nas atividades propostas. A fer- lingüístico, ou seja, o texto que será utilizado durante a realização da
ramenta é vista como um artifício para aprimorar as habilidades hu-
tarefa. O professor entra em contato com o texto do aluno a fim de
manas, tornando-as mais eficientes no cumprimento das tarefas. Levy
aponta a transparência para o usuário e sua correspondência com o corrigir as devidas imperfeições que o aluno venha a cometer, sejam
ambiente e com a tarefa que a envolve como sendo as principais ca- elas de ordem gramatical ou de ordem discursiva e pragmática.
racterísticas que o software deve ter enquanto ferramenta.
A principal diferença entre os dois papéis do computador des-
critos acima está relacionada à capacidade de avaliar as respostas dos
alunos. O tutor é um avaliador por excelência, enquanto que a ferra-
menta apenas proporciona meios para que uma tarefa seja realizada.
Contudo, a capacidade avaliadora que pressupõe a exclusão do pro-
fessor do processo de aprendizagem pode não estar presente em to-
dos os softwares que são classificados como tutoriais, causando as-
sim lacunas na aprendizagem dos alunos em momentos em que não
podem receber feedback da máquina e não têm o professor a quem
recorrer.
Além disso, a qualidade do feedback é um fator que merece James (1998) citando Levenston (1978) afirma que a correção
atenção especial. Levy (ibid: 205) aponta como uma das fraquezas pode assumir um modelo duplo contrariando o modelo de correção
dos tutoriais a possibilidade de fornecimento de feedback incomple- empregado no método áudio-lingual que pregava o foco na forma ape-
to ou imperfeito, o que pode causar problemas posteriores à
nas para a fase de prática da língua, enquanto que o foco na função era
performance do aluno. É notório, portanto, que os momentos em que
empregado na fase de produção. Segundo Levenston ao output errô-
os alunos cometem erros na aprendizagem de línguas mediada por
computador influenciam não só o ambiente de aprendizagem, geran- neo do aprendiz se contrapõem dois outros enunciados: o que o apren-
do questionamentos por parte do professor e dos próprios alunos, diz estava tentando dizer e o que o nativo teria dito. Para Levenston a
mas também influencia a natureza do instrumento que está mediando versão errônea do aluno é chamada de composição. O que ele está
aquela busca por desenvolvimento intelectual, uma vez que, depen- tentando dizer é a reconstrução e o que o nativo teria dito é a
dendo de quem participe desses momentos, se professor, aluno e com- reformulação. Em nossa ferramenta, ao realizar uma tarefa o aluno apre-
putador ou apenas aluno e computador, o instrumento pode variar senta sua versão (composição) para o professor, este por sua vez suge-
quanto ao seu papel de tutor ou ferramenta. re correções (reconstrução) que podem atingir as obscuridades, ambi-
güidades e infelicidades cometidas pelo aluno (reformulação), atingin-
Um modelo de correção a partir de uma visão do papel do compu-
tador como ferramenta. do assim os elementos discursivos e pragmáticos.

No projeto AVAL (Ambientes Virtuais para a Aprendizagem Conclusões


de Línguas), a equipe de língua estrangeira, da qual faço parte, for-
mada por professores de inglês e alunos da graduação do curso de Para que o software produzido no Projeto AVAL apresentasse
Letras da Universidade Federal do Ceará, após realizar pesquisas bi- um modelo alternativo de correção, algumas considerações devem
bliográficas e analisar softwares para o ensino de língua inglesa, op- ser feitas:
tou por uma abordagem de ensino de línguas baseada em tarefas (Task-
a) a concordância entre o caráter de ferramenta que é adotado no
Based) definida por Willis (1996) como “atividades onde a língua-
alvo é utilizada pelo aprendiz para um propósito (objetivo) comuni- software e a abordagem com base em tarefas que se adequa tão
cativo, para se alcançar um resultado”. Os objetivos e/ou resultados a bem ao computador como meio veiculador;
serem alcançados em uma determinada tarefa devem ser estabeleci- b) a proposta de confeccionar uma ferramenta em ambientes virtu
dos pelo produtor do curso. O produtor (que pode ou ‘deveria’ ser ais, pois neles o aprendiz pode atuar como se estivesse agindo
um professor, ou alguém com conhecimentos lingüísticos e educaci- em um mundo conhecido por ele;
onais) tem a função de selecionar tópicos e atividades que motivem c) a possibilidade de interação dos aprendizes via rede (intranet,
os alunos a realizá-las. no próprio laboratório, ou à distância, na Internet);
Como produtores do software nós elaboramos tarefas que re-
d) a participação de professores na confecção do material, profissi
produzem situações de trabalho vivenciadas pelos guias de turismo
onais preocupados com o caráter metodológico do software,
em seu cotidiano, mas que serão realizadas em ambientes
tridimensionais disponibilizados pelo computador. O computador aqueles que buscarão aliar as abordagens de ensino em que real
passa a ser, portanto, um meio utilizado pelo aprendiz para realizar mente acreditam às novas tecnologias que estão sendo utilizadas na
uma tarefa, caracterizando-se como uma ferramenta. educação.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 705


Referências bibliográficas: LEVY, Michael. Computer-Assisted Language Learning – Context
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LEECH, Geoffrey; CANDLIN, Christopher N. Computers in English WILLIS, Jane. A framework for Task-based learning. Longman. Lon-
Language Teaching and Research. Londres, Longman, 1986 dres. 1996.

706 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Teses Recentes
708 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001
A grafia em placas e letreiros:
uma descrição do português popular
escrito contemporâneo1
Alfredina Rosa Oliveira do Vale
Universidade Estadual da Paraíba

ABSTRACT: This paper relates to the results of our research whose aim is identify, display (through pictures) and analyze the deviation considered
to cause linguistic changes. Through greater or smaller incidence of graphic deviations collected, we realized that the popular written portuguese
used in Brazil requires an immediate change in its current accentuation system.
PALAVRAS-CHAVE: portuguese language, standard variant, spelling, deviant

Introdução tratar-se de uma norma unificadora. O nosso objetivo é registrar este


fenômeno lingüístico – o desvio – como agente provocador de mu-
São Paulo (SP). Comerciantes podem pagar até 300 reais de danças lingüísticas, acreditando que este trabalho será um importan-
multa por placas que apresentem erros de português. As mul- te subsídio para a comunidade acadêmica futura realizar pesquisas
tas variam de 100 reais para faixas e placas e 300 reais para de caráter diacrônico, selecionando dados, que permitam caracteri-
os “out-door”. Os mesmos terão 30 dias para corrigir. zar o português popular de nossa época (o final do Século XX). As-
Jornal HOJE, Rede GLOBO (13h15, em 12/12/97). sim sendo, procuramos descrever a escrita popular, dentro do atual
contexto sócio-histórico cultural, comprovando, através dos porta-
textos2 , os desvios – presentes, inegáveis e de ocorrência lógica –
Devemos aplaudir ou vaiar tal decisão? Trata-se de um bom consagrados pelo povo.
exemplo que deve ser seguido por todos os Estados da federação? Nossa pesquisa foi realizada com um corpus composto de
Quem sai lucrando com esta nova lei municipal: a língua portuguesa cento e noventa fotografias que focalizam desvios, isto é, grafias que
e seus usuários ou os cofres municipais? divergem da variante padrão, ocorridos em porta-textos como anún-
O fato é que não são apenas os vereadores paulistanos que cios pintados em paredes, faixas, cartazes, letreiros, placas, tabuletas
estão “preocupados” com os desvios gráficos da nossa língua. Ou- etc., os quais transmitem mensagens destinadas a um público
tros grupos da nossa sociedade, formados por guardiães da língua indeterminado, indiferenciado e ocasional. Destes, a grande maioria
portuguesa parecem estar imbuídos da mesma “preocupação”, isto é, está afixada em locais públicos de Campina Grande (PB), e alguns
parecem incomodados com “os maus tratos cotidianos infligidos ao estão circulando dentro (e fora) da cidade, uma vez que sua exposi-
nosso idioma”, segundo o professor CIPRO NETO (1997), e/ou in- ção tem como porta-textos, ônibus, caminhões ou veículos móveis
dignados por constatarem “os assassinatos gramaticais que estão por de modo geral.
toda a parte: em cartazes, placas e faixas”, de acordo com a opinião Constatados os desvios (trezentos e quarenta e cinco ocor-
do jornalista Jãmarrí NOGUEIRA, autor da reportagem publicada rências), selecionados e caracterizados, iniciamos a análise, dividida
em 08/03/98 no CORREIO DA PARAÍBA, com o título ERRÁ É em dois momentos: o desmembramento dos diacríticos e o exame
UMANO. das evidências (orto)gráficas em processo.
Estes (e outros) fiéis escudeiros de nossa língua portuguesa
parecem desconhecer que os desvios cotidianos, nomeados de “er- • O sonho: o acordo lusofônico
ros” de pronúncia e/ou ortografia podem ser encontrados na fala e
nos manuscritos de políticos, jornalistas, críticos e especialistas da A concretização do Acordo Ortográfico Lusofônico, assinado
língua portuguesa e até mesmo nas primeiras versões de obras de em 16/12/90, porém, até hoje, ainda não oficializado, beneficiará as
autores famosos: literários ou cientistas. Não será o português do relações culturais, científicas e tecnológicas entre os sete países que
Brasil um desvio do português de Portugal? E este não será um des- formam a CLT – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Se o
vio do latim vulgar, que, por sua vez, é um desvio do latim clássico? Acordo é benéfico para todos, por que o insucesso dessa discussão?
Na verdade, aquilo que a princípio possa manifestar-se como A resposta é óbvia. O Acordo desejado traria muito mais modifica-
erro, submetido a uma análise minuciosa poderá (ou não) revelar-se ções para Portugal do que para os demais países, particularmente o
como uma mera variação, visto sob a ótica sincrônica, ou, numa apro- Brasil. Percebe-se claramente que a questão não é de caráter
ximação diacrônica, como mero estado evolutivo. Conceber os des- lingüístico, tratando-se bem mais de uma questão política.
vios como agente determinador de mudança lingüística não significa Outra questão a ser observada é que acordos ortográficos não
que estejamos escamoteando a variante padrão. Até porque este tra- ajustam mudanças lingüísticas. Variações nos planos lexical,
balho não pretende defender pontos de vista do certo e do errado. O morfológico e sintático continuarão a diferenciar uma língua da outra.
que defendemos, convictamente, é que aqueles que negam e/ou con-
denam os desvios lingüísticos não se dão conta de que estão, na ver-
dade, condenando pessoas que ocupam classes sociais marginaliza- 1
Trabalho orientado pela Prof ª Drª Maria Auxiliadora Bezerra – UFPB.
das, esquecidas e execradas: a população menos favorecida da nossa 2
Porta-textos ou veículo é o “elemento de natureza física utilizado para
moderna e cruel sociedade. transportar ou conduzir a mensagem até o destinatário” (BLINKSTEIN,
Portanto, enfatizamos que em momento algum pretendemos 1995), que, uma vez que são expostos em via pública, são detentores de
negar o valor da variante padrão, necessária a toda sociedade, por grande poder de comunicação, apelo visual e leitura instantânea.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 709


De qualquer maneira, de acordo em acordo, esta unificação, dicionário na busca da melhor estrutura: coesa e coerente. Por conse-
no plano da escrita, vem ocorrendo, paulatinamente. Desta maneira, guinte, concluímos que, o principal fator para o surgimento do des-
esse Acordo Ortográfico de 1990, discutido e aprovado, porém, não vio é o pouco contato com a escrita denominada de formal. Portanto,
por unanimidade, consta de duas leituras possíveis, conforme afirma esta pesquisa procurou na escrita espontânea dos porta-textos, ou
LOBO (1995). seja, aquela produzida sem o controle da maioria, detectar, através da
Na primeira, a mais geral de caráter contrastivo, os dois anti- hesitação gráfica do pintor-letrista, as prováveis mudanças que estão
gos sistemas ortográficos (o lusitano e o brasileiro) se confrontam, a ocorrer.
destacando-se: Assim, analisamos os porta-textos sob dois aspectos – os
a) “as concessões” feitas por ambos os sistemas; e diacríticos e os metaplasmos –, procurando, quando possível, verifi-
b) “as situações de facultatividade”, para os casos em que se car os agentes determinadores das formas desprestigiadas (a variante
admite a dupla grafia, por serem contempladas diferenças nacionais não-padrão ou desvio) em detrimento das formas prestigiadas (a va-
de pronúncia. riante padrão).

Uma segunda leitura, também contrastiva, é de natureza mais • Os diacríticos


pragmática, porque, no que diz respeito à ortografia, seremos
realfabetizados basicamente em quatro esferas: as seqüências Sabemos que os diacríticos procuram resolver uma necessida-
consonânticas, a acentuação gráfica, a hifenação e o trema. de da escrita representar a fala. Entretanto, este fato parece não ser
percebido pelo pintor-letrista, que deixando de fazer uso deste artifí-
• A escrita: um símbolo de ascensão social
cio (em grande parte dos casos) está a provocar uma mudança radical
no sistema de acentuação gráfica da língua portuguesa brasileira.
Desde a Antigüidade à Idade Moderna o homem tem conside-
rado a escrita como uma atividade fundamental, feito que tem se Assim, o que afirmamos é que os vocábulos proparoxítonos (a exem-
refletido sobre a forma como nos vemos: gente instruída e civilizada. plo de maquinas, fabrica, clinica, domestico etc.)3 e os paroxítonos,
Logo, considerar a escrita, no curso de sua história, como um instru- principalmente aqueles terminados em ditongos (como, moveis,
mento em função do poder e não em função da razão, do social não medio, radio, tabuas, video, copias, agua, audio e tantos outros),
surpreende ninguém. Portanto, é oportuno lembrar BORTONI (1989 praticamente, já não são mais acentuados.
apud MORAES, 1992) quando esta afirma que “a questão da insegu- Se a função precípua dos diacríticos é distinguir a modulação
rança lingüística está ligada às pressões lingüísticas”, principalmen- das vogais, procurando evitar que o usuário confunda-as, não se jus-
te, nos casos das classes menos favorecidas da nossa sociedade, con- tifica o acento grave, indicando a crase. Se a fusão preposição +
texto no qual os indivíduos usam uma linguagem desprestigiada e, artigo acontece, ela não é manifestada na fala. Na verdade, o grafema
conseqüentemente, a insegurança vivenciada em nível social, reflete “a” já detém tantas classificações e funções, que poderia perfeita-
na linguagem oral e agrava-se mais ainda na escrita. O que pretende- mente dispensar aquela referente à crase. Até porque nem mesmo os
mos dizer é que por trás do não domínio da variante padrão existe usuários proficientes sentem-se seguros quanto ao uso ou não deste
toda uma questão político-econômico-social. Todavia, a ideologia fenômeno, justificando-se, assim, a máxima do filólogo mineiro
geradora do preconceito lingüístico parece não se dá conta desta re- MACHADO (apud RAMOS, 1991): “A crase é casca de banana em
alidade, acreditando apenas em uma única hipótese, que os desvios que tem escorregado muito cavalheiro ilustre.” O que dizer então do
são marcas de baixa escolaridade.
homem comum, usuário pouco proficiente da língua, a exemplo do
Eleger como única e verdadeira a variante da classe dominan-
pintor-letrista? O resultado da pesquisa é geral: a queda do acento
te, negando a existência de outras variantes lingüísticas, “alijando
grave.
grupos sociais que não dominam a variante padrão”, convencendo-
os de que “não sabem falar” (SILVA, 1996), este é o mal maior. O
fato é que não podemos ficar limitados à norma. Se assim o fizer- • O hiato: um efeito acústico especial
mos, estaremos tolhendo a nossa liberdade lingüística. Podemos até
admitir que o desvio é uma mudança de percurso em relação à vari- Consagrada está a vogal como o grafema básico que, numa
ante padrão, entretanto é preciso reconhecer que ele não é contrário sílaba, se destaca dos demais, visto que é a vogal que está no ápice da
à lógica exigida pela gramaticidade. É preciso ter sempre em mente sílaba na língua portuguesa. A sucessão de duas vogais que se pro-
que o desvio “tem uma explicação lógica, científica, perfeitamente nunciam distintamente, em duas diferentes emissões, ambas com a
demonstrável”, assegura BAGNO (1999). Afinal, ele surge da lógica mesma intensidade fonética e denominada de hiato.
popular e as línguas existem na medida em que se acham associadas O fato é que a tendência de evitar o hiato faz parte da história
a grupos humanos. Logo, “nem a sociedade, nem as línguas se modi- da língua portuguesa. E esta realidade está registrada no corpus de
ficam automaticamente. São os atos dos homens que as vão transfor- nossa pesquisa, com uma maior incidência quando as vogais “ai”
mando”, afirma ORLANDI (1981). Assim, os desvios são um fator encontram-se, como em: faiscas, paraiso, saida, Paraiba.
inerente à vida social de uma comunidade, como portadores que são É preciso reconhecer que nada há mais arbitrário em termos de
da vida da língua, de sua evolução permanente. língua(gem) do que a questão da acentuação da língua portuguesa,
que independe de uma situação lingüística necessária do falante e só
• Resultados e considerações finais
resulta da vontade de grupos (os governos de Portugal e do Brasil),
que objetivam encurtar a distância das discórdias ou divergências
É impossível negar que o sistema ortográfico português é bas-
ortográficas, esquecendo (ou ignorando) de um fato lingüístico de-
tante complexo o que provoca muitas indecisões. Se estas atingem a
todos, por que as evidências se fazem mais presentes nos textos de nominado etimologia popular. E neste contexto são duas: a lusitana
muitos e quase ausentes nos textos de alguns? A resposta é óbvia. e a brasileira.
Estes poucos estão mais expostos à escrita: lendo e escrevendo, es-
crevendo e lendo. E se a dúvida surge, consulta-se a gramática e/ou o 3
Exemplos transcritos ipsis litteris do corpus da pesquisa.

710 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


• Os metaplasmos lecimentos. Este comportamento é resultado do prestígio econômico
americano no Brasil.
Estes são desvios camuflados da variante padrão que, quase Fica, portanto, demonstrado, que as transformações quanto
sempre, fazem o mesmo percurso: forma alterada; vocábulo em tran- mais freqüentes, mais espaços vão conquistando. E, neste duelo, inú-
sição, passando por uma adaptação progressiva; neologismo e forma meras vezes, a forma inovadora é a vencedora. O desvio passa de
oficializada. Os desvios vão surgindo e com estes as transformações vilão, segundo a variante padrão, a herói, exaltado pelo povo. Isto
vão ocorrendo sorrateira e lentamente, ao lado de uma atualização de ocorre porque as mudanças de uma língua não ficam sob a responsa-
opiniões. bilidade de acadêmicos, imortais, governantes ou intelectuais. Como
A não distinção gráfica, por exemplo, entre os grafemas “s” e qualquer mudança verdadeira, aquela relacionada à língua(gem) deve
”z” registrados no interior (alizamento, limpezas, artezanato, Brazil) ser espontânea e com objetivos muito práticos.
ou final (trás > traz – ambos na condição de advérbio) dos vocábu- Vistas as nossas limitações espaciais, selecionamos algumas
los, representando sibilantes sonoras, é a principal alteração gráfica das ocorrências registradas em nosso corpus. Reconhecemos, toda-
que ocorre no momento, através do metaplasmo por permuta. Arris- via, que tanto estes, como os demais casos identificados e não abor-
camos afirmar que o “s”, entre duas vogais, substituído pelo “z” já dados, nesta ocasião (como o uso da cedilha, do hífen, do til, do
está praticamente firmado na memória ortográfica do homem comum. trema; assim como, os casos de metaplasmos por adição, por subtra-
Outro caso marcante, embora em menor intensidade do que o anteri- ção e por assimilação), merecem um estudo mais aprofundado. Sabe-
or, diz respeito à permuta do “e” > “i”, a exemplo dos vocábulos mos que os desvios, mesmo aqueles surgidos inconscientemente, não
coquitel, petrolio, dezimpenos, registrados no nosso corpus. ocorrem de maneira aleatória. Assim, numa análise minuciosa, pos-
sivelmente se possa esclarecer as regras e a lógica dos mesmos.
• O “se” indeterminador: um desvio brasileiríssimo O que tentamos fazer, a partir do fenômeno comprovado – o
desvio, como instrumento de etimologia popular –, foi confirmar que
O “se” usado como partícula apassivadora – Consertam-se bi- muitas transformações, mesmo marginalizadas, já estão tão fixas na
cicletas – é um caso raro nos porta-textos. A regra destes é exibi-lo memória visual dos usuários da língua portuguesa brasileira (tais como
como índice de indeterminação do sujeito, a exemplo de: taxi, cabelereira unissex, concertos de moveis, matriculas abertas,
entrega a domicilio, saida de veiculos, carros novos e usado, feijoa-
da aos sabados etc.), que ignorá-las seria uma demonstração de fa-
natismo, o que é uma atitude inútil.
Isto ocorre, uma vez que, tratando-se de anúncios de vendas de • Referências bibliográficas
produtos e/ou prestação de serviços o foco deve ser dado na ação (o
verbo e seu complemento), ficando o sujeito em posição de figurante,
BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico. São Paulo: Loyola, p. 121,
compondo uma situação, camuflado no clítico “se”. Daí a indiferença
1999.
sintática para o fato deste sujeito ser simples ou composto, singular
BLINKSTEIN, Izidoro. Técnicas da comunicação escrita. 12. ed.
ou plural. Afinal, qualquer que seja, ele deverá fixar-se na obscuridade
São Paulo: Ática, p. 54, 1995.
da indeterminação.
CIPRO NETO, Pasquale. Língua enrolada. Veja, São Paulo: Abril,
10 de setembro de 1997, p. 09.
• O “k” e o “y”: delatores do processo de americanização
LOBO, Tânia. O sistema ortográfico do português brasileiro e as re-
percussões do acordo firmado pelos sete países lusófonos. Estu-
Outro caso que se sobressai, entre os demais pela sua consoli-
dação na escrita dos porta-textos, diz respeito ao anglicismo e suas dos lingüísticos e literários. Lisboa, n. 18, p. 31, dez/1995.
marcas, através dos grafemas “k” e “y”. Consideramos este o único MORAES, Euzi Rodrigues. O erro de linguagem e a escrita: uma
desvio ocorrido conscientemente, porque existe a intenção com vista interpretação lingüístico-educacional. Letras de Hoje, Porto Ale-
a um fim: o americanismo. A tão celebrada globalização intensifica gre, v. 27, n. 4, p. 38, dez/1992.
as influências e motiva o uso de estrangeirismos ou marcas destes, ORLANDI, Eni Pulcinelli. A sociolingüística, a teoria da enunciação
assim como em: e a análise do discurso. Série de Estudos. Uberaba, n. 6, p. 90,
1981.
RAMOS, Dorival Soares. Crase, casca de banana. D. O. Leitura. São
Paulo, n. 106, p. 07, março de 1991.
SILVA, Myriam Barbosa da. A escola, a gramática e a norma. Atas
Estas marcas, segundo a concepção de grande parte dos brasi- do 1o Congresso Internacional da ABRALIN. Salvador, p. 136-
leiros, servem para dar um “ar” sofisticado aos produtos ou estabe- 141, 1996.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 711


Discurso persuasivo e função adverbial em
publicidades brasileiras de televisão
Ana Márcia de Lima
Universidade Federal de Pernambuco – UFPE

ABSTRACT: An analysis is made of a persuasive language with a focus on adverbial mobility in Brazilian television advertising discourse. The
underlying theoretical orientation is provided by Aristóteles (1961) on persuasive discourse, and by Charaudeau (1984) on advertising discourse.
And by Ilari et al. (1989) on adverbial classes and accompanying domains.
PALAVRAS-CHAVE: midia; linguagem persuasiva;, mobilidade adverbial.

1 Introdução Quanto à função adverbial, tentando conduzir à linguagem


persuasiva objetivada, temos no Adv. de nº.1 um Não-predicativo de
Neste trabalho, analisamos o discurso persuasivo e a função verificação, de re (Neg.), aplicado ao verbo (ouvir) em sua posição
da mobilidade adverbial, em textos televisivos brasileiros, tema pouco habitual, tentando persuadir com a ajuda dos seus escopos que estão
estudado nesse meio de comunicação. Esses textos foram gravados, no verbo “ouvir” e no substantivo “nada”. Este também retrata um
no período de 1995 a 1997 - independe de categoria. grande nível de persuasão, pois tem valor negativo apoiando a negação
Os pressupostos teóricos desta pesquisa estão pautados proclítica utilizada. O mesmo ocorre com o Adv de nº 2., sendo que
em Aristóteles (1961), Charaudeau (1984) e Ilari (1989), e são este se aplica ao verbo (sentir). No de nº. 3, temos um Não-predicativo
apresentados durante a fase analítica da publicidade de Nº. 2 (.COCA- de verificação, de re (Excl.), aplicado ao Constituinte verbal (saber),
COLA). tendo como seu escopo a própria sentença em que está inserido e
todo o contexto da anterior. O Adv. de nº.4, aplicado ao Constituinte
“grito” (nome), está na mesma classificação do Adv. de nº.3º., ambos
2 Análise de casos também tentam conduzir os receptores à persuasão planejada. O
Adv. de nº. 5 é um Predicativo Intensificador , aplicado também ao
Apresentamos apenas 01 (uma) publicidade como “grito da torcida” (nome) que tem como escopos o contexto da torcida
amostragem da fase analítica de nossa dissertação. empurrando-o à vitória, e o adjetivo “perto”. Isto é altamente
persuasivo, pois a meta dos atletas é a vitória sempre, ou seja, há um
jogo semântico envolvendo a expressão “Sempre Coca-Cola”,
PUBLICIDADE Nº. 2 (COCA-COLA) : “ Não1 ouço nada ,
comparado com essa meta.
não2 sinto nada . Só3 sei que tenho um enorme desejo de voar alto,
Finalmente, temos, o Adv. de nº.6, um Predicativo
onde só4 o grito da torcida me alcança, me empurra e me faz chegar
Aspectualizador, segundo Ilari (1992). Esse advérbio não indica
mais5 perto da vitória. Por você, pra você. Sempre6 Coca-Cola”.
eternidade; seu sentido revela-se sinônimo de “toda vez” e inscreve-
A apresentação desta publicidade é através de um atleta jovem,
se numa série de advérbios e locuções que quantificam de maneira
forte e bonito participando da prova “salto em vara”. Tudo é muito
mais ou menos exata sobre um conjunto de ocasiões. Aplicado ao
colorido -, mostrando, talvez, o ato ilocucionário: o prazer de beber
Constituinte “Coca-Cola” (nome), tem como escopo o termo “Coca-
Coca-Cola - e o público torcendo, calorosamente, durante todo o
Cola”, e a expressão “Por você, pra você. Sempre Coca-Cola” parece-
percurso da prova, dando-lhe forças. Paralelamente a essa parte, o nos não estar com valor de eternidade, mas como ocasião vivida pelo
atleta transmite todo o texto sem linguagem verbal. No final, o público personagem - vitória, prazer etc., muito comum nas publicidades
grita mais alto representando a vitória alcançada, com a ajuda que nos desse produto.
parece ser também do produto alvo.
Encontramos o Exórdio em “Não ouço nada, ... nada” ; a 3 Apresentação dos resultados
Narração nestas mesmas palavras e na história contada através das
imagens. O processo de economia, pois os “reais” emissores redigem Nesta fase, apresentamos os resultados gerais referentes
os textos publicitários numa média de 15 a 20 segundos; as supostas aos 15 (quinze) textos analisados no Corpus da nossa dissertação –
Provas podem ser encontradas em “Só sei que o grito ... vitória; e a alguns deles em anexo -, pois caso contrário, teríamos que refazer o
Peroração é vista em “Por você, pra você. Sempre Coca-Cola”. cálculo baseado na amostragem de 01 publicidade exposta na análise
O Raciocínio Discursivo encontrado aqui é o Apodítico , pois de casos desse trabalho.
não há chance de qualquer receptor questionar se há inverdade no A utilização das Instâncias Seqüenciais e Integradas, dos
transmitido. As expressões iniciais “Não ouço nada, não sinto nada” Raciocínios Discursivos, da Razão Persuasiva e da Singularização
e as finais “Por você, pra você. Sempre Coca-Cola” retratam bem também foram instrumentos de tentativa para conduzir os
esse tipo de raciocínio: fechamento total em si mesmo. espectadores à linguagem persuasiva objetivada, pois todas as
Podemos constatar a Justificação na imagem do alto salto que Instâncias foram encontradas em nosso Corpus, apesar dos textos
o atleta dá quando apresenta a frase “Só sei que tenho um enorme serem apresentados, no geral, em entre 15 e 20 segundos. Desta
desejo de voar mais alto”, e no grito da torcida quando diz “onde só forma, obtivemos com Narração e Provas 8 (oito) textos publicitários;
o grito da torcida me alcança, me empurra e me faz chegar mais perto Exórdio/ Narração/ Provas e Peroração 05 (cinco); Exórdio e Narração
da vitória”. 01 (um) e Provas e Peroração 01 (um).
Acreditamos que o Adv. “Sempre”, na frase “Por você, pra Os Raciocínios Discursivos também foram pertinentes,
você. Sempre Coca-Cola”, pode retratar a Singularização, pois principalmente o Apodítico com 14 (catorze) textos que tentaram
enaltece apenas o produto alvo e retrata um valor altamente persuasivo conduzir o espectador a uma verdade inquestionável; o Retórico com
nas preposições “por” e “pra” 06 (seis) e o Dialético 01 (um).

712 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


A Justificação, com 15 (quinze) textos publicitários, foi o dos advérbios. In: CASTILHO, Ataliba Teixeira de (Org.) Gra-
elemento da Razão Persuasiva que mais predominou, pois o mática do português falado; a ordem. Campinas, SP: Unicamp /
personagem se mostra favorável ao produto/serviço que apresenta. Fapesp . v.1.
Enquanto que a Ponderação, com 03 (três), e a Falsa Ponderação
talvez não apareceram, na mesma proporção, porque os publicitários 6 ANEXOS (Aqui, colocamos a transcrição apenas de alguns
não procuram ponderar, são decisivos na transmissão da linguagem textos publicitários do nosso Corpus como amostragem)
persuasão.
Quanto à Singularização, obtivemo-la em 10 textos PUBLICIDADE N.º 02 ( X 14 COZINHA) : “Se a limpeza da sua
publicitários. cozinha é sempre1 uma batalha , está na hora de conhecer um
Em relação à mobilidade adverbial, cerne da nossa proposta super limpador : X 14 cozinha. Ele chegou para tirar as manchas
de trabalho, podemos concluir que a classificação apresentada por de gordura mais2 resistentes. X 14 cozinha tem fórmula concen-
Ilari et al. (1989), com algumas exceções, devido à curta duração dos trada. Você aplica fácil e não3 precisa esfregar. X 14 cozinha, a
textos publicitários televisivos, foi clara e exaustivamente detectada maneira mais4 fácil de tirar as gorduras mais5 difíceis” .
em nosso Corpus. PUBLICIDADE N.º 03 (LEITE DE ROSAS) : “Na hora de escolher
Encontramos 27 ocorrências dos Advérbios Não-predicativos seu desodorante, você tem vários disponíveis: o nacional, o im-
de Verificação, de re e 18 dos Intensificadores o que nos leva a crer portado, o bastão, o stick, o spray, o mais1 seco, o mais2 molha-
que estão nessa posição por serem vocábulos curtos e comuns entre do, o mais3 caro. O mais4 querido, que também5 é o mais6
os falantes, de uma forma geral, e por dar uma idéia de proibição, eficiente e o que mais7 protege: Leite de Rosas. Quem usa ado-
conselho – os primeiros - intensidade, singularidade os últimos, ra”.
estratégias comuns detectadas no Corpus da nossa Dissertação. PUBLICIDADE N.º 04 ( SÃO JOÃO DO SHOPPING): “Não 1 é o
No cômputo geral, obtivemos 33 Advérbios aplicados ao verbo velho Lula? Lula não2 ia resistir se viesse pro São João?
e 27 aplicados ao nome, classes gramaticais mais comuns para o Danou-se padinho, eu já3 me sentia pequeno junto do sinhô,
espectador e, como tal, eficazes para a produção da persuasão. agora4 é que piorô. Grande como tu, por aqui5 , não6 tem não7 ,
Finalmente, no resultado geral, registramos 74 ocorrências a não8 ser o São João do Shopping que está homenageando o rei
adverbiais em 15 textos publicitários, significando uma média de do baião. O São João do Shopping é o maior de Pernambuco. Tem
quatro a cinco advérbios para cada publicidade. Ou seja, os Advérbios barraquinhas, tem comidas típicas. Todo dia tem quadrilha e
são fundamentais para a linguagem persuasiva. forrozão. É bom demais9 ! O São João do Shopping Center, digo
e repito de novo, é feito Luiz Gonzaga. Oi! Esse é bom todo. Vem
4 Conclusão pro São do Shopping Center Recife, pessoá”.
PUBLICIDADE N.º 07 (COCA-COLA) : “ Não1 ouço nada , não2
Tudo que pudemos observar, em termos da ordem adverbial, sinto nada . Só3 sei que tenho um enorme desejo de voar alto,
nos levou a concluir que, a posição ocupada pelos Advérbios, de uma onde só4 o grito da torcida me alcança, me empurra e me faz
chegar mais5 perto da vitória. Por você, pra você. Sempre6 Coca-
forma geral, nos textos publicitários analisados é extremamente regular.
cola”.
Uma conseqüência notável é a possibilidade de estabelecer
PUBLICIDADE N.º 08 ( POMADA HIPODERME) : “Sem assa-
generalizações sobre o papel da ordem que abrangem, simultaneamente,
duras seu bebê fica mais1 fofinho . Use Hipoderme. Não2 tem
a posição relativamente às palavras que se aplicam, às palavras ou
cheiro forte , protege, hidrata e não3 deixa resíduo na pele.
expressões que acompanham cada Advérbio como escopo, e à posição
Hipoderme: a única com cheiro de bebê”.
relativa do predicado e dos seus argumentos.
PUBLICIDADE N.º 11 ( DISROUFS ): “Disroufs são cachorrinhos
Diante de todos os resultados, entendemos ser através do
de pelúcia importada para quem não1 pode ter um cachorrinho
discurso que existe a linguagem persuasiva, sempre que se demonstra
de verdade. Lógico, tem diferença. Lissibel Disroufs não2
a verdade ou o que parece ser verdade - o caso dos textos publicitários fazem xixi no tapete, não3 têm pulgas, não4 choram, mas são
de um modo geral - de acordo com o que, sobre cada assunto, é fofos como um cachorrinho de verdade. Agora, olhe bem, se não5
suscetível de persuadir. for Maritel, cuidado com o cachorro! Maritel, mais6 que um
presente, uma prova de amor ”.
PUBLICIDADE Nº. 16 ( PREV SYSTEM ) : “Solte sua energia,
5 Referências bibliográficas neste carnaval. Brinque com a alegria de um sorriso bonito e
perfeito. A Dental-system garante essa emoção. Com várias
ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética.(1961) Rio de Janeiro: opções de pagamento, com hora marcada, urgência 24 horas e
Edições de Ouro. um desconto especial. Ligue agora1. Conheça o melhor plano no
CHARAUDEAU, Patrick. (1984::99-103) Le discous propagandiste. mercado. Solicite uma visita sem compromisso. Dental-system:
Le Français dans Le monde, Paris , n.182, jan. a sua melhor assistência odontológica, sorrindo com você na
ILARI, Rodolfo et al (1990: 63-141). Considerações sobre a posição folia. Ligue já2 : 222.4017 / 421.37.99.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 713


Uma análise de cartas/bilhetes de alunos nas séries
iniciais , ou ‘tia, eu te amo do fundo
do meu coração’1
Jonê Carla Baião
Secretaria de Educação do Município do Rio de Janeiro
Universidade Castelo Branco

ABSTRACT: This paper analyzes the affection denoted to teachers in letters/notes written by students from to public elementary schools in Rio de
Janeiro. Under a theoretical perspective of Discourse Analisis, We were guided by the three main aspects involved in the task of writting: “to whom”,
“for what” and “how” one writes.
PALAVRAS-CHAVE: Aquisição de escrita; argumentação; estratégias de polidez e envolvimento.
“tia, eu estou escrevendo esta cartinha porque
eu amo você do fundo do meu coração. Eu também queria dizer que
você é como uma irmã minha. Mil beijocas.”2

1- Apresentação Atenta ao aspecto interacional da língua e no caso específico


A escrita de cartinhas (modo como as próprias crianças nomei- das cartas, da língua escrita, analisei estas três questões que movem
am carinhosamente este texto no contexto escolar) apresenta-se como o processo de escrita: o “para que”, “para quem” e o “modo como”
uma produção de textos de uso prático e muito freqüente no cotidia- se escreve.
no de todos nós; a criança, naturalmente, pela descoberta social desta
prática, usa esta forma de interação com as pessoas à sua volta. Co- 2- Tratamento dos dados:
meça a “mandar recados”, isto é, escreve, interage por escrito com Utilizando como material de análise exemplares do Gênero
diferentes interlocutores. carta, era possível considera-las de pelo menos dois pontos de vista.
Esta escrita se expande e é anterior ao contexto escolar; no Por um lado, sabemos que a categoria carta é muito abrangente
cotidiano da criança, há a cartinha para a mamãe, para o papai, os e que pode compreender uma variedade de estruturas textuais ( cf
irmãos....e, na escola, continua a ser destinada à professora e aos co- Paredes e Silva., 1996). Por esta razão, analisei as cartas levando em
legas. consideração os aspectos formais, a partir da presença de determina-
Procurei este universo da escrita que pode acontecer no ambi- dos traços lingüísticos, como o uso de determinados verbos; e a par-
ente escolar, mas que não se realiza como tarefa escolarizada e sim tir da leitura de Biber (1988) considerei os propósitos comunicativos
como prática social de escrita. A opção por trabalhar com textos de das crianças ao escrever as cartas. Assim, busquei critérios formais e
alunos das séries iniciais3 , que ainda não apresentam os aspectos for- funcionais que pudessem subsidiar a minha classificação do “para
mais da escrita de modo convencional, mas que apresentam desde a que” a criança escreve as cartas. Essa análise me permitiu identificar
sua gênese a escrita como linguagem, como tarefa de inter-ação, tem o uso de elementos, no encadeamento de idéias, próprios dos textos
como finalidade destacar o processo de aquisição como fundamen- argumentativos. A partir desta constatação, realizei uma análise mais
talmente sendo um processo cognitivo e funcional e não mecânico, avaliativa dos textos das cartas. Considerando a presença de “opera-
em que a descoberta das funções dos usos da escrita acontecem dores argumentativos “( Koch, 1997)., assim vi “como a criança es-
concomitantemente à descoberta do código da escrita. creve”. Por fim, analisei as construções lingüísticas das imagens que
Tomei como referência os trabalhos a respeito da psicogênese as crianças têm dos papéis sociais do aluno e do professor e a escolha
da língua escrita em Emília Ferreiro & Ana Teberosky(1985), que de estratégias de polidez e indiretividade para preservar estas ima-
enfoca o processo da criança aprendendo a escrever, escrevendo. Com
gens. A consciência de “para quem” a criança escreve e do “como”
Ana L. Smolka(1991) e Gundlach (1982), busquei os aspectos funci-
escrever.
onais presentes desde a aquisição da escrita: a criança “rabiscando”,
Associei uma abordagem funcional do texto das cartas, como
testando, experimentando a escrita, usando-a para interagir.
a baseada nos propósitos comunicativos de Biber (1988) a outros
Desse modo, estive entendendo que as crianças produziram
aspectos de análise da interação aluno-professor a partir de conceitos
textos, independentemente da extensão; pois como Koch & Travaglia
da Sociolingüística Interacional
(1992), entendo texto: “como uma unidade de sentido e como preen-
chendo uma função comunicativa reconhecível e reconhecida, inde-
pendentemente da sua extensão.”
As seguintes perguntas nortearam o meu trabalho: a) que pos- 1 Este texto é parte da minha dissertação de Mestrado em Lingüística -
síveis propósitos a criança tem ao escrever cartas para sua professo- UFRJ.
2 cartinha escrita por uma aluna de 2ª série do ensino fundamental
ra; b) que imagem a criança revela ter do que seja o papel da profes-
3 As cartas que compuseram o corpus da dissertação foram escritas nos
sora e do aluno no cenário da instituição escolar?; c)de quais estraté- primeiros e segundos bimestre de 1997, por alunos de 1ª a 4ª séries de
gias a criança lança mão em seus textos para conduzir o seu interlocutor duas escolas municipais do Rio de Janeiro, situadas na zona oeste ( subúr-
a determinadas conclusões? bios de classe média baixa).

714 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


3 – Análise 3.2 para quem a criança escreve a carta
3.1 PARA QUE A CRIANÇA ESCREVE A CARTA:
“Ao produzir um discurso, o homem se apropria da língua,
“as ações praticadas com a linguagem são, a cada passo, “dita- não só com o fim de veicular mensagens, mas, principalmente,
das” pelos objetivos pretendidos, o que pode levar um com o objetivo de atuar, de interagir socialmente, instituindo-
interlocutor a representar de modo distinto uma mesma reali- se como EU e constituindo, ao mesmo tempo, como
dade em função dos interlocutores a que dirige suas falas ou interlocutor, o outro, o que é por sua vez constitutivo do pró-
em função da ação que sobre eles pretende realizar. (...)apre- prio EU, por meio do jogo de representações e de imagens
sentamos a nossos interlocutores uma certa construção da rea- recíprocas que entre eles se estabelecem “( Koch, 1996:21-
lidade, para com isto interferirmos sobre seus julgamentos, grifos da autora.)
opiniões, preferências” (Geraldi, 1991:27)
As cartinhas apresentavam “objetivos” bem demarcados, en- Neste contexto, as crianças escrevem à professora revelando
as imagens sociais que têm construídas a respeito do papel do pro-
contrei propósitos comunicativos em cada texto lido, sendo assim
fessor e do aluno. Elas preocupam-se em seu texto com a preserva-
precisei classificar as cartas segundo critérios formais e funcionais
ção destas imagens. Assim a criança diz, por exemplo, que “você é
que me ajudassem a melhor identificar a que propósito cada carta se
tão boa, tão legal e tão amável, isso toda professora tem que ser com
destinava. Encontrei em Biber (1988) e Paredes Silva (1994) traços todos os alunos”.
lingüísticos que puderam me ajudar a criar categorias de propósitos A criança determina as atitudes desejáveis a respeito da pro-
de escrita das cartas. fessora. E essas atitudes mais freqüentes nas cartas foram: “dedicada;
Paredes Silva (1994) classificou os seguintes propósitos na inteligente; responsável; rigorosa e explica bem” e quanto à relação
escrita de cartas pessoais: pedido, convite, agradecimento, descul- professor -aluno e disciplina escolar, temos: “especial; gentil; meiga;
pas, congratulações, conselho, envolvimento. A partir desta classifi- doce; amável; calma; compreensiva; carinhosa; paciente” e a ima-
cação busquei aplicá-las às cartas/bilhetes dos alunos. A grande mai- gem que não se espera/deseja a respeito da professora: “nervosa; ruim;
oria apresenta-se como cartas de envolvimento (cerca de 85% do grita muito; briga”.
total de cartas analisadas), apresentando os traços lingüísticos como: Vi que a criança construiu imagens a respeito do papel do pro-
verbos de sentimentos (gostar, adorar, amar, sentir...) verbo ser como fessor em estruturas basicamente predicativas, do tipo ‘você é...’ ou
principal, uso dos pronomes de 1ª e 2ª pessoa, vocativos. ‘você não é...’ Já as imagens que ela faz a respeito do papel do aluno
Dentro da categoria de envolvimento/expressiva precisei criar pareceram-me menos diretas; a criança estará preocupada em cons-
três subcategorias: afetiva, avaliativa e desiderativa. truir uma auto-imagem a partir das expectativas que ela imagina se-
A categoria afetiva ressalta o aspecto pessoal, os verbos e rem as da professora a respeito do papel social do aluno. São ima-
qualificadores se restringem às características da pessoa da professo- gens expressas através de promessas, como em “eu só vou conversar
ra, como em: você é linda, é como uma mãe, irmã...Nesta categoria quando eu acabar de fazer o dever”/ “eu nunca vou falar palavrão”/
geralmente os textos eram mais curtos, com mensagens diretas em “eu gostaria de estudar direito com a senhora sem bagunça”. Nesta
relação ao afeto da professora. As únicas cartas que apresentaram associação da imagem do aluno ao aspecto da disciplina, os atos de
promessa diretos ou indiretos mostram a criança ameaçada em sua
uma extensão um pouco maior foram as destinadas às professoras de
face negativa, pois expõe-se ao comprometer-se em “não atrapalhar
anos anteriores, onde a criança volta ao passado para elogiar a antiga
a ordem” (com palavrões, conversas, bagunça etc). Aqui ela transfe-
professora.
re para si responsabilidades, invade o seu próprio terreno e limita a
Na categoria avaliativa, estão as cartas que apresentam verbos
sua liberdade de ação. Propõe “pagar” este preço porque tem a ex-
relativos ao trabalho pedagógico da professora. Como exemplo, “você pectativa de que deste modo a sua face positiva estará sendo preser-
ensina bem, explica muito bem...” vada: em busca de apreciação e de aprovação, quer aproximar-se da
A categoria desiderativa é marcada pelo uso de verbos expri- professora com o comportamento de um “bom aluno”.
mindo desejos: “querer” no imperfeito e “gostar” no futuro do preté-
rito. Tais como, “tia, eu queria estudar com você em todas as séries.”
Em síntese, o propósito dessas três subcategorias é estreitar os
laços com a professora. Nesta carta , percebemos o cuidado da criança em “dar razão”
As cartas restantes incluem-se nas categorias de propósito es- à professora. A criança usa em alguns textos estratégias de polidez
pecífico, como pedido, oferta, agradecimento, convite, promessa que para preservar as faces sua e a da professora. A presença destas estra-
se auto-definem. tégias nestes textos nos mostra como polidez e envolvimento se
Às vezes, a criança lança mão de indiretividade nesses propó- correlacionam; Oliveira diz que para Lakoff (1973) “a polidez é me-
sitos específicos, .como exemplo temos duas cartas de uma mesma nos importante em gêneros discursivos essencialmente informativos
aluna (Vanessa) sobre a atitude da professora de trocar o seu nome. e mais importante nos interativos, isto é, aqueles preocupados com a
relação interpessoal”(Oliveira, 1992: 15). Neste trabalho, percebi que
a finalidade da criança é estabelecer envolvimento com a professora
e para isso lança mão também de diferentes mecanismos para alcan-
çar o seu objetivo maior, que é elogiar a professora.

3.3 O modo como a criança escreve:

Sempre me chamaram a atenção os elogios nas cartas dos alu-


Na verdade, nestas cartas temos um pedido indireto da aluna à
nos para professores e por isso buscava uma brecha onde pudesse
professora para que não troque mais o seu nome, ainda que para isto encontrar ressalvas. Lia as cartas atenta ao cuidado da criança em
a aluna use estratégias de polidez para proteger sua face num possí- não perder o tom elogiativo, mas percebia que algumas vezes a cri-
vel enfrentamento com a professora.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 715


ança deixava escapar alguma razão que poderia prejudicar aquela har- como produtores de múltiplos tipos de textos que as variadas situa-
monia na relação professor-aluno. ções sociais exigem.
As pistas lingüísticas estavam no uso de determinados opera- Negociando sentido, interagindo por escrito, a criança põe a
dores argumentativos (Koch, 1997) que abriam um espaço de argu- linguagem em uso, não hesita em aprender a escrever escrevendo,
mentação, de “negociação de sentido” estabelecido pelas imagens porque sabe que “bem antes de servir para comunicar, a linguagem
que a criança tem dos papéis sociais de professor e aluno. Ressalto serve para viver” (Benveniste,1991) . E nós, professores, vamos
que a concepção de argumentação que trabalhei foi num sentido mais aprendendo a ler, a responder, a interagir com as cartas, bilhetes ,
amplo, e não de estruturas argumentativas com suas partes compo- poesias, narrativas, argumentos, enfim, vamos aprendendo com a
nentes. multifuncionalidade da linguagem para podermos “deixá-la” emer-
O uso dos operadores para justificar, comparar, contrastar, res- gir na escola, porque emerge na vida.
tringir, enfim argumentar.
Referências bibliográficas:

BAIÃO, Jonê Carla. Uma análise de cartas/bilhetes de alunos nas


séries iniciais ou ‘tia, eu te amo do fundo do meu coração’. Rio
de Janeiro: UFRJ, 1998. Centro de Letras e Artes. Dissertação
Encontrei uma maior ocorrência do operador “mas”, que é o
de Mestrado. Mimeo.
operador por excelência segundo Ducrot (apud Koch, 1997: 35), pois
BENVENISTE, E. Problemas de Lingüística Geral Vols I e II. Cam-
“o locutor introduz em seu discurso um argumento possível para uma
pinas, SP: Pontes, 1991.
conclusão R; logo em seguida, opõe-lhe um argumento decisivo para
BIBER, Douglas. Varition across speech and writting. New York:
a conclusão contrária a não-R”. No exemplo citado acima, a criança
Cambridge University Press, 1988.
diz à professora indiretamente o que a sabedoria popular preconiza a
FERREIRO, Emília & TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua
respeito dos “defeitos” que são próprios do ser humano, pois “não há
escrita. 2ª ed. Porto Alegre: Ed. Artes Médicas, 1985.
perfeito sem defeito”, assim ela pede à professora que entenda o des-
GERALDI, J. W. Portos de Passagem. 2ª ed. São Paulo: Martins
lize do aluno em sala quando ele quebra a regra da boa disciplina Fontes Editora, 1993.
escolar “falando muito em aula”, contra-argumentando a seu favor , ____________ (org). O texto na sala de aula: leitura e produção. 2ª
diz que “eu te amo” , é como se dissesse que isto basta e suplanta o ed., São Paulo: Ed. Cascavel, ASSEOESTE, 1984.
“mal-feito”. GOFFMAN, E. A Representação do Eu na Vida Cotidiana. 6ª ed.
trad. Mª Célia S. Raposo, Petrópolis: Vozes, 1995
4- Conclusão GUNDLACH, Robert A. Childrens as Writers : the bennings of
Para finalizar, ressalto que este estudo pode trazer algumas learning to write. In: NYSTRAND, Martin. What Writers Know.
contribuições para o trabalho pedagógico de “produção textual”, es- New York: Academic Press, 1992.
pecialmente nas séries iniciais. KOCH, Ingedore. A inter-ação pela linguagem. 3ª ed. São Paulo:
Destaquei o processo de construção textual que busca a inten- Contexto, 1997.
ção, isto é, a finalidade do texto à frente de aspectos formais; essas _____________. Linguagem e Argumentação. São Paulo: ed. Cortez,
cartas destacam o uso social da escrita mesmo quando ainda não se 1996.
sabe escrever convencionalmente, o que parece que fica relegado a PAREDES, Vera Lúcia P. Gêneros e tipos de textos: o caso da carta
segundo plano nas tarefas em sala de aula, onde os usos e as funções pessoal. 1992.mimeo.
sociais da escrita não são trabalhados de forma integrada à aprendi- PEREIRA, Mª das Graças Dias. Debate e réplica no discurso acadê-
zagem da escrita. Aprende-se primeiro a escrita (a forma como se mico escrito em lingüística: estratégias de proteção, de des-
escreve) para depois aprender a linguagem escrita (para que/ para truição e de recuperação da face. In: PEREIRA, M. T. (org)
quem/ e o modo como se escreve). Língua e Linguagem em Questão. Rio de Janeiro, Ed. UERJ,
As crianças no exercício da escrita mostram-se escritores pro- 1997.
ficientes a respeito de determinados princípios que regem a produ- SMOLKA, Ana L. Bustamante. A criança na fase inicial da escrita:
ção textual, sabem que o “para quem se escreve” definirá o “modo” a alfabetização Como processo discursivo. Campinas, São Pau-
como se escreverá e os propósitos a que se destina a escrita do texto. lo: ed. Cortez & UNICAMP, 1989.
A escolha de textos de cartas mostra que a pluralidade textual OLIVEIRA, Mª do carmo Leite. Polidez: uma estratégia de dissimu-
pode estar presente na escola não somente como uma experiência lação. Análise de cartas de Pedido em empresas brasileiras.
das crianças com a leitura de diferentes textos, como defendem as Rio de Janeiro: Departamento de Letras da PUC, 1992. Tese de
diferentes propostas curriculares de órgãos públicos, mas também doutorado. Mimeo.

716 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Aspectos do uso da anáfora no português oral
Lícia Maria Bahia Heine
Universidade Federal da Bahia - UFBA
Universidade do Estado da Bahia - UEBA

ABSTRACT: Based on the perspective of Text Linguistics and supported by the Corpus of the Study Project of the Cultured Urban Linguistic
Norm, this paper is dedicated to investigating the anaphoric elements of the spoken language, mainly indirect anaphoras, those which do not
recover the explicit referents found in the text.
PALAVRAS-CHAVE: anáfora, correferência, associativa, oralidade

Com base na perspectiva da Lingüística de Texto, e apoiado nos


três diferentes gêneros textuais DID (diálogos entre documentador e
informante), D2 (diálogos entre dois informantes) e EF (aulas e
palestras de professores universitários) do Corpus do Projeto de Estu-
do da Norma Lingüística Urbana Culta (NURC), este estudo dedica-se
à investigação dos elementos anafóricos na língua falada, em particular
às anáforas indiretas, ou seja, aquelas que não recuperam referentes
pontualizados no texto. Um dos objetivos da pesquisa é a ampliação da
noção de anáfora, indo além da tradição inaugurada por Halliday e
Hasan (1976), restrita a pronomes de 3ª pessoa que recuperam um
antecedente realizado na superfície textual, para mostrar que há um
uso anafórico que transcende as condições de congruência
morfossintática previstas pela referida tradição. Para esta nova abor- Essas categorias anafóricas passam a ser designadas doravante
dagem foram considerados não só os pronomes, mas também os como anáfora tipo 1, tipo 3, tipo 4 e tipo 5, respectivamente.
sintagmas nominais, quer retomem ou não referentes pontualizados. Para se ter uma visão panorâmica dos resultados da análise
Assim, sugere-se que a anáfora seja concebida em dois eixos: (a) o eixo dos dados, apresenta-se a tabela 04 abaixo que condensa a ocorrên-
das anáforas correferenciais, caracterizado por elos coesivos que efeti- cia totalizada de cada tipo de anáfora, nos três gêneros textuais1 :
vam ligaduras textuais, mantendo o mesmo referente do seu antece-
dente; (b) o eixo das anáforas não-correferenciais, alicerçado em estra-
tégias semântico-pragmáticas e cognitivas, em que se processam
tessituras textuais sem recuperar antecedentes pontualizados, não
sendo, neste caso, obrigatória a presença de um antecedente. No exem-
plo (1), abaixo, que ilustra um trecho do inquérito DID-RJ-INQ328,
destacam-se duas ocorrências de anáfora não-correferencial: na pri-
meira, L187, o pronome eles pode ter referentes distintos, a depender
dos interlocutores, podendo referir-se tanto ao povo baiano de um
modo geral, como ao pessoal da BAHIATURSA; na segunda, L188, o
referente do pronome eles pode ser interpretado como os garçons dos
Estes resultados permitiram desenvolver prioritariamente a
restaurantes de Salvador ou ainda o povo baiano, tido, por excelência, análise em duas direções: (a) analisar o percentual de ocorrência de
como povo hospitaleiro. cada tipo anafórico em relação ao somatório de cada um deles nos
três gêneros textuais, daí resultando a verificação do gênero em que
(1) L187 Em Salvador tem assim restaurantes muito bons... eles cada tipo se apresenta mais produtivo; (b) analisar o percentual de
estão ocorrência dos diferentes tipos de anáfora em relação ao total de
L188 incrementando muito o turismo lá e eles servem muito cada gênero textual, ou seja, como os diferentes elos coesivos se
bem... comportam quando consideramos, isoladamente, cada um dos gêne-
L189 sabe? assim... os restaurantes onde nós estivemos nós ros textuais.
L190 comemos muito bem todas aquelas comidas assim Da análise empreendida na primeira direção, com vistas a re-
muito gistrar a ocorrência dos diferentes tipos de anáfora em relação aos
L191 típicas lá da... da Bahia... (DID-RJ-INQ328- p.140) três gêneros textuais, com base nos dados da tabela 04, verificou-se
que o tipo 1 - anáfora não-correferencial pronominal sem referen-
Esses estudos, cujos resultados estão contemplados na tese de tes – foi o que apresentou maior percentual de incidência em rela-
Doutoramento desta pesquisadora, tiveram como meta a investiga- ção ao gênero textual DID, tendo obtido 61,2% de ocorrências, ao
ção de alguns dos elementos anafóricos não-correferenciais na língua passo que a do tipo 4 – anáfora nominalizada, com 42,9%, ocorreu
falada, descritos no QUADRO I a seguir. de forma mais significativa com referência ao gênero textual D2, e,
finalmente, para o gênero textual EF, a maior preponderância coube

1 A análise dos dados se pautou em quinze inquéritos do Projeto NURC,


dentro da faixa 2, nos três diferentes gêneros textuais DID, D2 e EF. E
considerando-se a tomada de vinte minutos de cada inquérito, este corpus
perfez um total de 300 minutos de gravação.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 717


à anáfora do tipo 3 – nominal resumitiva, com percentual equivalente tendo em vista o seu caráter indiscutível de um planejamento temático
a 41%. a priori.
Nota-se, contudo, que o tipo 3 - a anáfora não-
Esses resultados podem ser visualizados na tabela 05: correferencial nominal-resumitiva,realizado através de sintagmas
nominais resumitivos, é mais produtivo no gênero textualEF, nos
dois eixos de análise – em referência aos quatro tipos anafóricos
nos três gêneros textuais e à ocorrência desses elos dentro de cada
gênero textual, tendo obtido 41 % e 26,73 %, respectivamente.
Grosso modo, a maior ocorrência deste tipo de anáfora nas EF
é explicada pelo fato deste gênero, enquanto textos didáticos e pales-
tras, ter como uma das estratégias de produção textual a anáfora não-
correferencial resumitiva, realizada em maioria com núcleo lexical ple-
no, o que revela certa preocupação dos interlocutores em construírem
um texto que se organize e progrida por meio da referenciação que
A análise desenvolvida na segunda direção, centrada na ocor- preserve o conteúdo proposicional de sua exposição.
rência dos diferentes tipos de anáfora, dentro de um mesmo gênero Já a anáfora não-correferencial nominalizada - a tipo 4 – pre-
textual, evidenciou que, em se considerando este novo enfoque, é dominou no gênero D2, em relação aos três gêneros textuais, tendo
ainda a anáfora do tipo 1, com 59,92%, que lidera o percentual de atingido o percentual de 42,9 %. Estes resultados, todavia, são pou-
ocorrência com relação ao gênero textual DID, ao passo que a anáfora co significativos, uma vez que este tipo anafórico não é representati-
do tipo 5 – associativa, aparece aí com incidência mais significativa, vo na modalidade da língua falada, conforme se depreende da aná-
tanto para o gênero D2 quanto para o EF, com percentuais de 48% e lise dos dados constantes da tabela 04, onde foram constatadas tão
42,58%, respectivamente. Nestes dois últimos gêneros, os dados de- somente 14 ocorrências, para este tipo de elo coesivo, num total de
monstram, assim, que quando se trata de anáforas indiretas 513 realizações registradas, evidenciando a sua baixa produtividade,
associativas, que se efetivam por itens lexicais, a situação se inverte, sobretudo quando se cotejam dados dentro de um mesmo gênero
obtendo-se, para estas, uma maior produtividade. textual.
Quanto ao desempenho da anáfora associativa, observou-se
Esses resultados podem ser visualizados na tabela 06: constante produtividade nas duas direções da análise, podendo ser
explicado pelo fato da anáfora associativa promover a progressão de
um texto, principalmente a partir de um tema, por meio de encadea-
mentos associativos de cunho sócio-discursivo.
Quanto à possibilidade dos resultados dos dados poderem in-
dicar características do discurso oral,isso pode ser verificado se con-
siderarmos os percentuais de ocorrência dos diferentes gêneros tex-
tuais em relação ao universo pesquisado, onde aparece o DID com
46,2%, seguido do D2 e EF, com 34,1% e 19,7%, respectivamente,
resultado esse que já era esperado, em se considerando a constatação
Devido às idiossincrasias inerentes aos indivíduos e à limitação de uma maior produtividade das anáforas não correferenciais, sobre-
do corpus, os resultados obtidos nessa análise não devem ser conside- modo nos gêneros textuais mais interativos – DID/D2, considerados
rados, isoladamente, como caracterizadores de preponderância deste prototípicos da oralidade, reduzindo-se significativamente para o
ou daquele fenômeno anafórico, neste ou naquele gênero textual. O caso do gênero EF, de caráter mais formal, no qual se evidencia me-
que se pode registrar é que, para a anáfora tipo 1, observou-se uma nor presença desses elementos coesivos.
tendência, nas duas vertentes da análise, sobretudo no DID e em No cômputo geral, referente à produtividade dos diferen-
menor proporção para o D2, de maior uso produtivo deste elo coesivo. tes tipos anafóricos, abstraindo-se, pois, quaisquer considerações a
Isso pode ser explicado pelo fato de que os dois primeiros gêneros respeito deste ou daquele gênero textual, a tabela a seguir registra os
textuais se constituem em entrevistas e diálogos com acentuado nível seguintes percentuais:
de informalidade, onde os interlocutores, para darem curso ao texto, Verifica-se, assim, que a anáfora do tipo 1, com percentual
recorrem a distintos processos de referenciação, apoiando-se, sobre-
modo, em conhecimentos partilhados, em aspectos sócio-pragmáti-
cos e cognitivos que constituem o ato comunicativo na sua totalidade,
ou ainda, em se tratando de textos interativos, supõe-se também que
os interlocutores versam sobre experiências pessoais, em que o falan-
te mantém uma forte relação egótica com seu mundo, construindo, equivalente a 45, 22%, continua liderando o escore de ocorrências
neste caso, muitos referentes implicitamente para prosseguir em seu anafóricas, seguida, em ordem decrescente, pela anáfora do tipo 5
discurso, mas sem a intenção de identificá-los com precisão. com 39,18%, tipo 3 com 12,87%, e, finalmente, a do tipo 4, com
Quanto ao gênero EF, não se constata a mesma produtividade apenas 2,73% do total de ocorrências registradas. Isso configura,
dessa forma anafórica de pronome sem antecedente, verificando-se pelo menos no que diz respeito à referenciação, um dos processos de
uma ocorrência percentual significativamente inferior às observa- progressão textual na língua falada, deixando claro que eles se dão
das para os demais gêneros. Isso talvez possa ser explicado sobretu- “... com base numa complexa relação entre língua, mundo e pen-
do pelo fato das EF – aulas e palestras - apresentarem determinadas samento, estabelecida centralmente no discurso” (Marcuschi: 2000).
marcas que as aproximam da modalidade escrita do sistema lingüístico, Referências bibliográficas

718 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


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Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 719


O fenômeno prosódico da pausa e a
organização temporal do discurso
Lilian Coutinho Yacovenco
Universidade Federal do Espírito Santo - UFES

ABSTRACT: The starting for the preset work was an experimental analysis based on the Cecil Computacional Program. This work aims at analysing
pause as a linguistic fact, observing its syntactic distribution in speech, as well as its frequency and duration. It also aims at showing pause as an
element which differenciates speech styles, spontaneous speech and reading.
PALAVRA-CHAVE: prosódia, pausa, organização temporal discurso

1. Introdução associação habitual das seqüências verbais, posição esta ratificada por
O presente trabalho, partindo de uma análise experimental, Chafe (1980), que compreende que as hesitações existem na lingua-
com base no Programa Computacional CECIL, que fornece os gem por a produção lingüística ser um ato criativo. O lingüista associa
parâmetros acústicos de duração, freqüência fundamental e intensi- o número de hesitações à quantidade de informação do enunciado:
dade para as estruturas lingüísticas produzidas, pretende demonstrar quanto maiores e mais complexas as informações, maior a presença de
a importância do estudo do fenômeno prosódico da pausa (seus ti- hesitações no enunciado.
pos, sua duração e localização sintática) na organização temporal do John Laver (1994), ao abordar a organização temporal do dis-
discurso. curso, menciona o fenômeno da pausa, que está intimamente ligado a
O fenômeno da pausa, abordado inicialmente, por Frieda fatores individuais. Para Laver, um discurso contínuo marca-se pela
Goldman-Eisler, é um elemento fundamental na produção e percep- ausência de pausas, enquanto um discurso não-contínuo, ao contrá-
ção discursivas, por ser um fato que interfere na inteligibilidade da rio, apresenta esses elementos. As pausas, segundo para este
fala. As pesquisas sobre síntese de voz demonstram que a presença foneticista, são de dois tipos: 1) silenciosas, que se caracterizam por
ou ausência de pausas pode auxiliar ou dificultar a decodificação da
um silêncio superior a 200 milissegundos e 2) preenchidas, que são
mensagem, a depender do ambiente sintático em que esses elemen-
falhas na estrutura verbal de um enunciado, preenchidas por elemen-
tos ocorram.
tos não-lingüísticos, como eh, hum.
É objetivo deste estudo mostrar a relação entre a pausa, sua
localização sintática e duração, enfatizando a pausa enquanto ele- A classificação de um discurso em fluente ou, ao inverso, in-
mento sintático e discursivo. Observam-se, para isso, os parâmetros terrompido (ou hesitante), segundo Laver, relaciona-se não apenas à
da distribuição sintática da pausa no discurso, de sua duração e de presença ou ausência de pausas, mas também à sua localização sintá-
sua distribuição por dois estilos: o oral natural e o escrito. tica. É evidente que um discurso sem pausas é considerado contínuo
e fluente, porém um enunciado com pausas nas fronteiras de grupos
2. O fenômeno da pausa entoacionais é considerado fluente, mas não-contínuo. Por outro lado,
Conforme demonstra o estudo de Maclay e Osgood (1954)
um enunciado marcado por pausas no interior de grupos entoacionais
sobre fenômenos de hesitação, a pausa, para os estruturalistas, era
é entendido como hesitante e também não-contínuo.
facultativa e relacionava-se, muitas vezes, ao fenômeno de juntura,
Há, ainda, outras classificações possíveis. G. Yule e G. Brown
posto que por meio da pausa era possível delimitar unidades de aná-
lise, como morfemas, sintagmas e sentenças. Observa-se que esta (1989), fundamentados nas propostas discursivas, estudam as pausas
perspectiva está ligada à concepção de língua enquanto instituição sob a ótica da estrutura informacional do discurso e as classificam
social, imutável, daí a pausa ser entendida como um fato individual. em três tipos, conforme sua duração: 1) Extensas, quando ultrapas-
Estes autores, baseados na proposta de B. Bloch (apud Maclay sam 3,2 segundos; 2)Longas, quando duram entre 1,0 e 1,9 segundos
& Osgood, (1954)), compreendem que as pausas não são distribuí- e 3) Breves, quando ocorrem no intervalo entre 0,1 e 0,6 segundos.
das de modo aleatório no discurso, porém obedecem, sim, a fatores Segundo os autores há uma estreita relação entre a duração e a distri-
estruturais, como sua localização sintática ou sua duração. buição sintática das pausas: pausas breves localizam-se nas frontei-
Posteriormente, o estudo da pausa toma novos rumos. ras internas dos constituintes, ao passo que as longas e extensas, nas
Goldman-Eisler (1968), Butterworth (1980) abordam a pausa sob o fronteiras externas.
prisma da produção discursiva, que é entendida como o resultado de No presente trabalho, classificam-se as pausas em dois tipos:
dois processos simultâneos: um relativo ao planejamento do conteú- silenciosas e não-silenciosas, sendo o valor mínimo para a classifica-
do e à estruturação gramatical, e outro, relacionado à seleção dos ção de um silêncio como pausa o menor encontrado em nosso corpus,
termos adequados ao enunciado. A unidade de análise dos estudos conforme a proposta de Rossi et alii (apud Freitas, 1992). As pausas
sobre a pausa relaciona-se, portanto, ao discurso e seu elemento bá- não-silenciosas, por sua vez, podem ser subcategorizadas em:
sico é a frase, compreendida como uma unidade oral, isto é, a articu- preenchedores de pausa, alongamentos, repetições, reformulações e
lação final da seqüência temporal em que o planejamento discursivo
Requisitos de Apoio Discursivo (RAD’s), que são marcadores
é organizado.
conversacionais que ocorrem, habitualmente, no fim do enunciado e
Os trabalhos de Goldman-Eisler revelam uma estreita relação
cuja função é verificar a atenção do interlocutor no turno discursivo.
entre as hesitações e a quantidade de informação transmitida pelo
enunciado, que está ligada à freqüência dos itens lexicais na língua, Sendo nosso objetivo demonstrar a estreita relação entre as
à estrutura lingüística e ao contexto. Esta psicolingüista afirma que a pausas e a organização temporal do discurso, bem como sua relação
presença ou a ausência de hesitações na linguagem espontânea se com a estrutura sintática e discursiva, ficaremos limitados aos qua-
associa à originalidade do enunciado produzido ou à influência da dros referentes a esses parâmetros.

720 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


3. Metodologia ção média superior à média das sílabas de cada informante. É necessá-
3.1 A organização dos corpora rio observar que, como proposto por Duez (1994), os alongamentos,
Esta pesquisa compõe-se de dois tipos de corpora: um relati- apesar de serem um tipo de pausa não-silenciosa, são incluídos na
vo à fala espontânea, selecionado do Projeto NUrC/RJ, e outro refe- computação do tempo total de elocução, procedimento este também
rente à leitura, que é dividida em dois tipos, conforme o grau de seguido nesta pesquisa. É importante destacar que se considerou ape-
formalidade do discurso. O primeiro texto de leitura refere-se a uma nas o número dos alongamentos e não seu tempo, que, entretanto,
reelaboração de um dos textos espontâneos e se caracteriza por um vem expresso entre colchetes [].
registro mais informal. O segundo texto é produto de um trecho Ex.: Inclusive o tal pato [263] com tucupi eu achei muito
jornalístico, extraído de uma revista de circulação nacional, caracte- ruim
rizando-se por um registro mais formal do que o 1º texto de leitura. A 3.5) Marcadores conversacionais: segmentos que se caracteri-
gravação do material de leitura procurou atender às necessidades do zam por serem um “apoio” discursivo utilizado pelo informante, seja
Programa Computacional Cecil para uma análise mais eficaz dos tex- para iniciar ou passar um turno ou para outra função relacionada à
tos produzidos, evitando-se, assim, ruídos externos que dificultas- interação discursiva (cf. Macedo & Oliveira, 1995)
sem a análise computacional dos dados. Ex.: Ah (273) não é nem por questão de modéstia (DID 273)
Neste estudo, foram selecionados dois tipos de Marcadores:
3.2 A análise acústica dos dados 3.5.1) Requisitos de Apoio Discursivo (RAD’s): elementos
O material selecionado passou por uma análise acústica, re- utilizados para testar a atenção do interlocutor, ocorrendo, usualmente,
alizada por meio do programa computacional Cecil, que fornece in- no fim do enunciado. São eles: ‘tá, né, sabe, entendeu, viu.
formações relativas aos parâmetros acústicos duração (medida em Ex.: O Rio se modificou em muitos outros aspectos não é + ps
milissegundos - ms), freqüência fundamental (medida em Hertz - Hz) (1582)
e intensidade (medida em decibéis - dB). É importante destacar que 3.5.2) Iniciadores: usados em início de turno, possuindo di-
os arquivos sonoros foram divididos conforme a exigência do pro- versas funções como para confirmar a pergunta do falante ou para
grama Cecil de cada registro ter a duração máxima de 2.980 ms, na mostrar revelar lembrança súbita (Ex.: Ah (273) não é nem por ques-
taxa de 19.800 Hz. A duração breve de cada arquivo sonoro não tão de modéstia), para atenuar a discordância da opinião do
comprometeu a manutenção das unidades entoacionais, uma vez que, interlocutor frente à posição expressa pelo interlocutor (Bom) ou para
foi criado um grande número de arquivos sonoros com a preocupa- iniciar a formulação de uma resposta subjetiva (Olha). É importante
ção de preservar as unidades entoacionais. notar que os iniciadores são pouco freqüentes no corpus ora analisa-
do, já que o objetivo das entrevistas do Projeto NUrC não era a
3.3 As unidades de análise interatividade, mas apenas o registro da fala culta em uma situação
A presente pesquisa segue a proposta de Freitas (1992), que, espontânea.
por sua vez, se fundamenta na classificação proposta por Grosjean & 3.4 A distribuição sintática
Deschamps (1975) de segmentar o discurso em unidades de análise Seguiu-se a orientação dos trabalhos de Freitas (1992) e de
baseadas no tempo, o que é essencial para uma abordagem sobre a Duez (1991), que propõem uma classificação baseada em espaços
organização temporal do discurso. As unidades são: sintáticos mais abrangentes, que são:
1. Seqüências Fônicas: referem-se a seqüências sonoras provi- 1) Fim de sentença: refere-se ao final absoluto de sentença,
das de valor semântico e delimitadas por pausas silenciosas ou não- simples ou complexa.
silenciosas. Ex.: Eu não consegui ainda me desligar muito desse negócio
Ex.: Eu não conheço cidade mais agressiva /608/ do que o meio neurótico mas não quero trazer problemas pros meus chefes
Rio de Janeiro /476/ também /615/
2. Pausas silenciosas: são os silêncios fônicos caracterizados 2) Fim de Oração: espaço sintático que diz respeito à fronteira
pela interrupção da onda sonora. Em nosso estudo, a duração das de orações coordenadas ou subordinadas que não coincidam com o
pausas silenciosas (PS) é marcada entre barras oblíquas, como se vê final absoluto de frase.
no exemplo Ex.: Quando eu fui trabalhar lá /989/ eu tinha me comprome-
Não como pão /322/ esses biscoitos tipo integral /640/ é que tido a dar um horário maior do que eu dou atualmente
eu como mesmo de manhã /323/ 3) Intersintagmático: espaço relativo à fronteira de sintagmas.
3. Pausas não-silenciosas: são segmentos fônicos que não pos- Estão aí considerados os espaços entre Sujeito e Verbo, Tópico e
suem valor semântico e que, de forma geral, se relacionam a mo- Sujeito, Sintagmas Adverbiais e Nominais.
mentos em que o locutor apresenta hesitações em seu discurso. Sua Ex.: E aí eu /290/ pedi demissão
duração é expressa entre parênteses. Podem ser divididas em três 4) Intrassintagmático: relaciona-se à fronteira interna de
tipos: sintagma, ou seja, entre o Núcleo e seu complemento, considerando-
3.1) Pausas preenchidas: segmento utilizado para que se evite se, assim, os espaços entre verbo e complemento, Preposição e nome.
o silêncio e para que se prepare o início de um novo trecho. Ex.: Eu acho que a pessoa não pode /1594/ ter os mesmos
Ex.: Você tem a impressão eh (124) que são coisas leves padrões dum trabalho de escritório
3.2) Reformulações (false starts): são segmentos fônicos in- 5) Após conector: espaço referente à pausa localizada em iní-
terrompidos e que são, muitas vezes, retomados de modo diverso. cio de oração após conector ou articulador textual.
Ex.: A turma pouco a pouco vem (107) vai chegando pra Ex.: Mas o + PS (2041) o que eu via era o seguinte
cidade 6) Início de turno: refere-se ao início de um turno
3.3) Repetições: unidades que se caracterizam pela repetição conversacional. Este espaço sintático é pouco freqüente, posto que
de sílabas ou de segmentos fônicos sem valor semântico-estilístico, nas entrevistas do Projeto NUrC quase não há interrupções por parte
sendo, comumente, uma expressão da hesitação do falante. dos documentadores, já que o interesse estava na dissertação sobre
Ex.: Embora não não não (804) não seja assim muito rígido determinado tema e não nos fatos relativos à interação.
não tenho por onde aplicar minha rigidez Ex.: Bom (195) antes ela tinha residências e apartamentos de
3.4) Alongamentos: caracterizam-se por possuírem uma dura- alto luxo.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 721


4. Alguns resultados
4.1 Parâmetros relativos à organização temporal
Dentre os parâmetros selecionados, serão abordados apenas a
Duração média das unidades de análise, a Velocidade de Fala e a
Velocidade de Elocução. O primeiro parâmetro nos permite afirmar
se um texto é mais espontâneo e criativo que outro, pois quanto mais
longas as seqüências fônicas e menores as pausas, mais fluente é
esse texto. Do mesmo modo, quanto mais rápidas as velocidades,
mais fluentes e, por conseguinte, mais espontâneo o texto. A seguir,
analisam-se duas tabelas: uma referente à Duração média das unida-
des de análise e outra relativa às Velocidade de Fala (que diz respeito
ao Enunciado completo, considerando-se, inclusive, as pausas) e de
Elocução (que se refere ao Enunciado sem a presença de pausas).

Verifica-se que nos três tipos de textos a localização referente


ao Fim de sentença é bastante preenchida por pausas silenciosas, fato
que se deve a este espaço ser o preferido para a realização de plane-
jamento da estrutura gramatical. Há, entretanto, algumas divergênci-
as nos três tipos de textos: no texto Oral Natural, há uma distribuição
Pode-se constatar que o Texto Oral Natural apresenta pausas equilibrada entre os espaços ditos externos (Fim de Sentença e de
mais longas e Seqüências Fônicas mais breves, acarretando um dis- Oração) e os internos (inter e intrassintagmático), o mesmo ocorren-
curso mais espontâneo e menos fluente que os dois tipos de Leitura. do com a Leitura de Periódico. Diferenciam-se, contudo, por este
Estes, por sua vez, diferem-se por a Leitura de Periódico ser mais último tipo de texto concentrar suas pausas silenciosas no espaço
Intersintagmático, posto que há um grande número de fronteiras en-
fluente que a outra, mesmo existindo Pausas Não-silenciosas mais
tre Sintagmas Adverbiais e a Sentença. Já no texto Oral Natural, a
longas, porém menos freqüentes que as que ocorrem na Leitura.
distribuição entre sintagmas e dentro deles é mais homogênea. Nota-
A próxima tabela refere-se às Velocidades de Fala e de
se que esta distribuição pode dever-se a estes espaços serem os prefe-
Elocução. ridos para a seleção lexical, posto que a gramatical já havia sido rea-
lizada.
A Leitura Oral Natural difere-se dos outros dois textos por
concentrar suas pausas silenciosas nas fronteiras externas, havendo
um número reduzido desses elementos no interior da sentença. Tal
resultado está em conformidade com o apresentado por Delgado-
Martins e Freitas (1991) em seu estudo sobre Leitura.
A seguir, estuda-se a distribuição das pausas não-silenciosas
Constatam-se muitas divergências nas Velocidades de Fala e nos três tipos de textos.
de Elocução nos três tipos de texto. A Velocidade de Fala do texto
Oral aproxima-se da encontrada na leitura de periódico, afastando-
se da hipótese inicial de que quanto mais formal um texto, menos
criativo e, por conseguinte, menos preenchido por pausas. Esses ele-
mentos, entretanto, possuem funções distintas em ambos os textos,
pois no texto oral a velocidade é mais lenta por uma necessidade
maior de planejamento, enquanto que, na leitura de periódico, a Ve-
locidade de Fala mais lenta está relacionada ao aparecimento de pau-
sas para marcarem de modo mais acentuado os sinais de pontuação,
especialmente as vírgulas, utilizadas para se delimitarem unidades
sintáticas e semânticas, refletindo, desse modo, um discurso mais
formal e preocupado em seguir a norma padrão.
A Velocidade de Elocução, isto é, a que desconsidera as pau-
sas, é mais rápida nos textos com características mais espontâneas
do que no jornalístico, pois este possui marcas acentuadamente mais
formais do que aqueles, traduzidos em sua estruturação sintática - há Há um contraste bastante grande na distribuição de pausas não-
maior número de orações subordinadas, utilização maior de inver- silenciosas nos três tipos de texto, posto que, na leitura, estes ele-
sões de constituintes - e, também, semântica - maior uso de adjeti- mentos não ocorrem em Fim de Sentença e são pouco freqüentes em
vos, palavras menos usuais, preocupação com a redundância e a re- Fim de Oração. Tal fato se deve à leitura ser um texto já planejado, o
que acarreta na inexistência de elementos de hesitação em locais de
petição de termos. Tais características refletem-se numa leitura mais
planejamento estrutural.
cuidadosa, daí se tornar mais lenta que os outros dois tipos de textos
Observa-se que na Leitura de Periódico há um número expres-
aqui abordados. sivo de pausas não-silenciosas na fronteira interna do sintagma, isto
A próxima figura refere-se à localização das pausas silencio- é, entre o núcleo e seu complemento, o que se deve a pequenas
sas nos três tipos de textos. reformulações de palavras.

722 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


5. Conclusão de estruturação temporal da fala no português europeu. In: Estu-
Os resultados acima mencionados revelam a importância da pausa dos em prosódia. Lisboa.
na organização temporal do discurso, posto que sua presença serve GOLDMAN-EISLER, Frieda (1968) Psycholinguistics – experiments
para que se diferenciem tipos de textos. A pausa tanto é um fenômeno in spontaneous speech. London/New York: Academic Press.
discursivo, importante na elaboração de textos, como um fenômeno GROSJEAN, François, DESCHAMPS, Alain. (1975) Analyse
gramatical, já que serve para que se delimitem constituintes. constrative des variables temporelles de l’anglais et du français:
O presente estudo pretende ser uma pequena contribuição para vitesse de parole et variables composantes, phénomènes
que se possa enfatizar a importância de fenômenos prosódicos nos d’hésitation. In: Phonetica, nº 31: 144-184.
estudos lingüísticos e, em especial, dos relacionados à pausa. Dessa LAVER, John (1994). Principles of phonetics. Cambridge: CUP.
forma, pretende-se que as pesquisas relativas ao fenômeno da pausa LEHISTE, Ilse. Suprasegmentals. Cambridge, Massachessets: The
contribuam para a descrição do português brasileiro, servindo, inclu- MIT Press.
sive, de fonte para estudos preocupados em caracterizar uma estrutu- MACEDO, Alzira, OLIVEIRA E SILVA, Giselle. (1996) Análise
ra mais profunda da língua ou para pesquisas que se interessem por sociolingüística de alguns marcadores conversacionais. In:
síntese de voz, já que naturalidade da fala está relacionada à estrutura MACEDO, Alzira et al. (org.) Variação e discurso. Rio de Ja-
temporal do discurso. neiro: Tempo brasileiro: 11-49.
MACLAY, Howard, OSGOOD, Charles, E. (1954). Hesitation
6. Referências bibliográficas: phenonema in spontaneous English speech. In: Word, 5: 19-44.
MARCUSCHI, Luiz Antônio (1986). Análise da conversação. São
BROWN, Gillian, YULE, George (1989). Information structure. In: Paulo: Ática.
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BUTTERWORTH, Brian. (1980) Evidence from pauses in speech. fala na estratégia do discurso: uma proposta de trabalho. In:
In: _ Language production. London: Academic Press: 155-176. ILARI, Rodolfo. (Org.) Gramática do português falado. Níveis
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FREITAS, Maria João. (1992) Contributo para o estudo de padrões and change, 5, 91 – 112.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 723


Cognição e produção oral em L2
Mailce Borges Mota Fortkamp
Universidade Federal de Santa Catarina

ABSTRACT: This study examines the relationship between working memory capacity (WMC) and speech production. Results revealed that learners
with a higher WMC, as measured by the speaking span test, are also better able to manage the cognitive processes involved in speaking, producing
speech that is more fluent, accurate, and complex than those with a lower WMC.
PALAVRAS-CHAVE: memória de trabalho, produção oral, L2, cognição.

Para a maioria dos aprendizes de uma língua estrangeira ou 1983; Masson e Miller, 1983; Miyake, Just, e Carpenter, 1994;
segunda língua (L2), o desenvolvimento da habilidade oral consta Tomitch, 1995, por exemplo), escritura (Benton, Kraft, Glover, Pale,
como um dos objetivos principais, senão o principal, a ser alcança- 1984) e produção oral (Daneman, 1991) em língua materna (L1). Ou
do. Da mesma forma, para grande parte dos professores de L2, ga- seja, o desempenho competente de tarefas complexas parece depen-
rantir o desenvolvimento desta habilidade, através de prática e expo- der da capacidade individual que temos de administrar cognitivamente
sição à língua, é um importante objetivo pedagógico. De modo ge- os processos mentais e a informação necessários às tarefas. Não se
ral, a expressão oral em L2 é vista, tanto por professores quanto por sabe ao certo se esta capacidade é específica – isto é, indivíduos com
alunos, como uma habilidade difícil de ser desenvolvida e como aque- maior capacidade de memória de trabalho para leitura têm um de-
la que determina o nível de desempenho do aprendiz (Fortkamp, sempenho melhor somente na leitura – ou se esta capacidade é um
2000; Lennon, 1990; Riggenbach, 1989). Entretanto, apesar de sua fator que se mantem constante na realização de tarefas diversas – isto
relevância em programas instrucionais de L2, pouco se sabe sobre o é, indivíduos com maior capacidade de trabalho para leitura têm um
desenvolvimento da habilidade de expressão oral. Comparados aos desempenho melhor não somente na leitura, mas também na produ-
estudos sobre leitura ou produção escrita, por exemplo, os estudos ção escrita, oral, resolução de problemas, etc.
sobre produção oral são em muito menor quantidade e abordam, de Na área de aprendizagem de L2, os estudos sobre a memória
modo diferente, diferentes aspectos da produção, levando pesquisa- de trabalho são escassos mas tendem a reproduzir os resultados da
dores a uma falta de consenso sobre como investigar o desempenho pesquisa em L1. Por exemplo, Miyake e Friedman (1998) mostraram
oral em L2. que há relação entre capacidade de memória e aquisição de elemen-
Uma das maneiras de estudar a habilidade de expressão oral tos sintáticos em L2. Harrington e Sawyer (1992), Berquist (1998) e
em L2 é a partir da teoria de processamento da informação, na qual a Torres (1998) mostraram que essa capacidade se relaciona com com-
psicologia cognitiva contemporânea está embasada. Essa teoria preensão de textos em L2. Fortkamp (1999) mostrou que a produção
conceptualiza o sistema cognitivo humano como autônomo, ativo e oral contínua e articulação das palavras em L2 se relacionam com a
composto por pelo menos três sistemas básicos de memória: sensori- capacidade de memória de trabalho. A interpretação destes resulta-
al, de curto prazo e de longo prazo (Ashcraft, 1994; Haberlandt, dos é uma só: indivíduos com uma maior capacidade tendem a de-
1994; McLaughlin e Heredia, 1996; McLaughlin, Rossman e monstrar um desempenho melhor na tarefa à qual a capacidade está
McLeod, 1983). Uma grande quantidade de estudos realizados nas sendo relacionada.
últimas três décadas refinou cada um destes sistemas em termos de No presente estudo, investigo se há relação entre a capacidade
arquitetura e função e levou ao surgimento de um outro – a memória de memória de trabalho e quatro aspectos da produção oral em L2 –
de trabalho ou operacional – que tem sido foco de pesquisa intensa fluência, precisão gramatical, complexidade gramatical e densidade
no estudo da cognição humana. lexical. A hipótese a ser examinada é a de que indivíduos com maior
A memória de trabalho é definida, na psicologia cognitiva e capacidade de coordenar processamento e manutenção da informa-
neste artigo, como um sistema de capacidade limitada responsável ção expressam-se oralmente na L2 de forma mais fluente, com maior
pelo processamento (o trabalho) e manutenção (a memória), tempo- precisão gramatical, maior complexidade e maior densidade lexical
rários e simultâneos, da informação (declarativa ou procedimental) que indivíduos com menor capacidade.
que precisamos para realizar tarefas cognitivamente complexas tais
como resolver problemas, ler, compor um texto escrito, falar Método
(Baddeley, 1990; Baddeley e Hitch, 1974; Carpenter e Just, 1989; Para investigar a relação entre capacidade de memória de
Daneman e Carpenter, 1980 e 1983; Just e Carpenter, 1992). Os pro- trabalho e produção oral em inglês, um experimento foi aplicado
cessos mentais envolvidos no desempenho de tarefas complexas dis- consistindo de 4 tarefas: duas para medir a capacidade de memó-
putam a capacidade limitada da memória de trabalho, que tem de ser ria de trabalho e duas para medir a produção oral em inglês dos
compartilhada entre esses processos e os resultados intermediários participantes.
do processamento. O limite da capacidade da memória de trabalho Participantes: os participantes deste estudo foram 13 apren-
se refere à quantidade de processamento e de material que pode ser dizes de inglês como segunda língua no nível avançado, matricu-
mantida simultaneamente no sistema, momento a momento, durante lados na escola de línguas da Universidade de Minnesota que se
a realização da tarefa (Ashcraft, 1994; Baddeley, 1992). preparavam para iniciar estudos de pós-graduação na mesma uni-
A pesquisa sobre a estrutura e função da memória de trabalho versidade. A média de idade dos participantes foi de 28.2 anos,
tem mostrado, de forma consistente, que a habilidade dos indivíduos sendo a população, portanto, predominantemente adulta. Entre os
em gerenciar o processamento e manutenção de informação, 13 participantes, havia 4 brasileiros sendo o restante de naciona-
temporaria e simultaneamente, interfere no desempenho de tarefas lidade asiática, européia e árabe. Em média, os participantes ti-
cognitivamente complexas. Assim, indivíduos com maior capacida- nham recebido 10.46 anos de instrução formal de inglês como
de de memória de trabalho tendem a demonstrar melhor desempe- língua estrangeira em seus países. Todos os participantes estavam
nho em vários aspectos da leitura (Daneman e Carpenter, 1980 e nos Estados Unidos havia 3 semanas.

724 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Tarefa de Memória: a capacidade de memória de trabalho dos tarefas orais, os dados foram submetidos a três avaliadores indepen-
participantes foi medida através do speaking span test (Daneman, dentes, todos professores experientes de inglês, para se determinar o
1991) adaptado para o presente estudo. O speaking span test foi grau de confiabilidade da quantificação. O avaliador 1, doutorando
construído com 60 palavras em inglês, todas monossilábicas, organi- na área de educação, reanalizou 53.8% dos dados com relação às
zadas em conjuntos de duas a seis palavras. Cada palavra do conjun- variáveis de fluência, concordando com 92% da quantificação. O
to era apresentada no meio da tela de um computador por um segun- avaliador 2, falante nativo de inglês e doutor em lingüística aplicada,
do, acompanhada de um sinal acústico. Dez milésimos de segundo reanalizou 100% dos dados com relação à precisão gramatical oral e
após a retirada da palavra do vídeo, a próxima palavra era mostrada, concordou com 87.76% da quantificação. O avaliador 3, mestre em
até que todas as palavras do conjunto tivessem sido mostradas. A lingüística aplicada, reanalizou 70% dos dados com relação à com-
tarefa do participante consistia em ler as palavras apresentadas silen- plexidade gramatical, concordando com 100% da quantificação. O
ciosamente e, ao final da apresentação de todas as palavras do con- mesmo avaliador reanalizou 53.8% dos dados relativos à densidade
junto, produzir oralmente uma oração gramaticalmente aceitável para lexical e concordou com 98% da quantificação.
cada palavra, na ordem e forma em que a palavra foi apresentada.
Por exemplo, no seguinte conjunto de 3 palavras: Resultados e Discussão
A técnica analítica usada para examinar a relação entre capa-
club spring knife cidade de memória de trabalho em produção oral em L2 foi a corre-
um dos participantes produziu as seguintes orações: lação de Pearson (r).
1. I went to the club yesterday.
The spring is a beautiful season.
That knife is very dangerous.

Os conjuntos foram apresentados em ordem crescente de nú-


mero de palavras. Todos os participantes fizeram sessões de treina-
mento anteriormente à aplicação do teste e somente iniciavam o pro-
cedimento de testagem quando se reportavam familiarizados com a
tarefa. Para esse teste, a capacidade de memória de trabalho
correspondia ao número de palavras para o qual o participante foi
capaz de produzir uma oração, sendo 60 o máximo. O teste mede a
capacidade de memória de trabalho porque requer que o indivíduo
mantenha todas as palavras de um dado conjunto temporariamente Como pode ser visto na Tabela 1, os resultados da correlação de
ativas na memória enquanto, simultaneamente, cria e produz oral- Pearson mostram que, tanto para a descrição quanto para a narração,
mente uma sentença para cada palavra. há uma relação estatisticamente significativa entre a capacidade da
Tarefa de Produção Oral: os participantes realizaram duas ta- memória de trabalho e duas variáveis de fluência – velocidade da fala
refas de produção oral: descrição e narrativa. A primeira tarefa con- e média de palavras entre pausas/hesitações – e entre essa capacidade
sistia em descrever e comentar uma figura, tirada de uma revista co- e precisão e complexidade gramaticais. Entretanto, não há relação
mercial americana, por 2 minutos. A segunda tarefa consistia em estatisticamente significativa entre capacidade de memória de traba-
recontar um filme que o participante tinha visto, dizendo se tinha lho e número de pausas silenciosas e hesitações. Além disso, a relação
gostado ou não. Essa tarefa não foi cronometrada. Em ambas as tare- entre memória de trabalho e densidade lexical se apresenta na direção
fas, os participantes foram instruídos a dar o máximo de informação oposta àquela prevista, já que está negativa.
possível. Antes de começar a desempenhar a tarefa, os participantes Tomados juntos, esses resultados podem ser interpretados como
puderam também tirar dúvidas com relação à pronúncia e significa- evidência de que aprendizes de L2 com maior capacidade para
do de palavras que gostariam de usar durante a produção. gerenciar os processos cognitivos e a informação necessários para a
Medidas de Produção Oral: como dito anteriormente, quatro produção oral em L2 tendem a falar de forma mais veloz, com seg-
aspectos da produção oral em L2 foram examinados: fluência, pre- mentos mais longos entre pausas e hesitações, e com maior precisão
cisão gramatical, complexidade gramatical e densidade lexical. No e complexidade gramaticais. Entretanto, manter a velocidade da pro-
presente estudo, o conceito de fluência se relaciona à produção oral dução da fala e garantir precisão e complexidade gramaticais pare-
contínua em tempo real. Assim, as variáveis usadas para determi- cem afetar sobremaneira a densidade lexical do que se diz: a correla-
nar fluência foram: (1)velocidade da fala, em número de palavras ção negativa entre capacidade de memória de trabalho e densidade
em minuto, (2)número de pausas silenciosas (pausas de .5 segun- lexical, que chega a ser estatisticamente significativa na tarefa de
dos ou mais) por minuto, (3)número de hesitações por minuto, (4)nú- descrição, indica que indivíduos com maior capacidade tendem a
mero de palavras produzidos entre uma pausa e/ou hesitação e ou- produzir fala que é mais repetitiva, lexicalmente menos densa.
tra. Para medir precisão gramatical, contou-se o número de desvios As medidas de produção oral usadas no presente estudo pare-
da gramática oral a cada 100 palavras. Para medir complexidade, cem refletir um momento da produção oral que, no modelo proposto
contou-se o número de orações subordinadas produzidas por minu- por Levelt (1989), é chamado de codificação gramatical – o momen-
to. Finalmente, densidade lexical foi medida estabelecendo a por- to em que o falante constrói a estrutura sintática da mensagem que
centagem de itens lexicais (em oposição a itens gramaticais) pro- quer transmitir1 . A formulação da estrutura sintática da mensagem
duzidos pelo participante. requer primeiramente a ativação dos itens lexicais que expressam as
O desempenho de todos os participantes em cada tarefa foi idéias conceptualizadas pelo falante. Após a seleção (ativação) dos
áudio-gravado, copiado em CD-ROM e transcrito seguindo-se as itens lexicais relevantes para a mensagem, as especificações sintáti-
regras de transcrição de Jefferson (1979), geralmente usadas em es-
tudos de produção oral. As pausas silenciosas foram medidas pri-
meiramente com um cronômetro e depois submetidas à análise acús-
tica. Após a quantificação da fluência, precisão gramatical, comple- 1 O modelo de Levelt (1989) sugere três momentos fundamentais da
xidade gramatical e densidade lexical de cada participante nas duas produção da fala: conceptualização, formulação e articulação da mensa-
gem.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 725


cas desses itens são ativadas, podendo o falante organizar a estrutura trabalho têm uma maior quantidade de conhecimento de L2
sintática do que quer dizer. À ativação das especificações sintáticas procedimental e automatizado, o que lhes permite utilizar seus re-
segue-se a ativação das especificações fonológicas dos itens lexicais cursos atencionais nos aspectos da produção oral que não estão
e posterior articulação. As variáveis usadas no presente estudo falam automatizados ou que são de natureza declarativa.
mais diretamente à ativação dos itens lexicais e suas especificações A idéia de que a produção oral em L2 é uma tarefa complexa
sintáticas, cada um destes processos envolvendo inúmeros outros sub- desempenhada nos limites de nossos recursos atencionais pode aju-
processos. dar professores de L2 a estabelecer critérios sobre que tipo de prá-
Por ter uma característica de organização hierárquica e envol- tica oral propor a seus alunos. Um importante objetivo educacio-
ver múltiplos estágios de processamento, a codificação gramatical nal, nesse sentido, é procurar maneiras de otimizar a capacidade do
durante a produção oral pode ser tomada como uma tarefa cognitiva sistema. Assim, tarefas orais que levem à automatização e conheci-
complexa que se qualifica como uma atividade de processamento mento procedimental da L2 devem ser usadas com freqüência na
controlado (Engle e Oransky, 1999). Atividades de processamento sala de aula. Essas tarefas podem, por exemplo, focalizar a produ-
controlado exigem que os recursos atencionais do indivíduo sejam ção de expressões formulaicas, as quais são recuperadas da memó-
compartilhados entre pelo menos 5 macro-processos cognitivos: (1)ati- ria como um único item e não palavra por palavra. Essas expres-
vação da informação, (2)manutenção temporária da ativação, (3)su- sões podem ser reorganizadas pelos próprios alunos para se torna-
pressão de informação irrelevante, (4)procura e recuperação serial, rem complexas gramaticalmente. A prática dessas expressões em
na memória de longo-prazo, de informação que não está imediata- contextos significativos faz com que os alunos as produzam de modo
mente disponível e (5)monitoração do desempenho. Ou seja, os re- contínuo, melhorando a fluência. Professores podem também cha-
cursos atencionais do indivíduo são controlados de forma a serem mar a atenção de seus alunos para o fato de que há pelo menos
empregados nesses processos. quatro aspectos salientes na produção oral em L2 – fluência, preci-
Estudos recentes sobre a memória de trabalho demonstram que são, complexidade e densidade lexical – e que esses aspectos dis-
indivíduos com maior capacidade de memória de trabalho possuem putam nossos recursos atencionais, sendo necessário alocá-los es-
uma quantidade maior de recursos atencionais a serem compartilha- trategicamente de modo a não comprometer o desempenho. Por
dos entre os cinco processos acima descritos, o que se reflete no de- exemplo, ao usar expressões formulaicas que contenham algum tipo
sempenho de tarefas complexas. Na produção oral em L2, nossos de subordinação, podemos nos concentrar na precisão gramatical
recursos atencionais precisam ser compartilhados entre (1)a ativação do que dizemos, ao mesmo tempo em que produzimos de forma
de itens lexicais correspondentes à mensagem que se pretende comu- fluente (i.e., contínua) e complexa.
nicar, (2)a supressão de informação correspondente à L1, (3)a manu- Por fim, é preciso lembrar que a habilidade de produção oral
tenção temporária de itens lexicais na L2, (4)a procura e recuperação em L2 tem um valor instrucional e social importante sendo, muitas
seriais de informação lexicogramatical e (5)a monitoração do output. vezes, a habilidade escolhida para avaliar o nível de competência do
Indivíduos que tenham mais desses recursos podem desempenhar a indivíduo na língua. Por essa razão mais pesquisas devem ser desen-
tarefa de forma mais bem sucedida. volvidas para que possamos compreender melhor o que acontece
As teorias sobre a memória de trabalho sugerem que as opera- quando falamos.
ções mentais empregadas no desempenho de tarefas complexas dis-
putam os recursos do sistema. Isso faz com que o desempenho seja Referências bibliográficas
afetado quando muitas operações precisam ser realizadas simultane-
amente. Para lidar com este problema, a memória de trabalho é ca- ASHCRAFT, M.H. Human memory and cognition. New York:
paz de alocar recursos de forma diferenciada para cada uma das ope- Harper Collins, 1994.
rações, priorizando determinadas operações em detrimento de ou- BADDELEY, A.D. “Working memory: The interface between
tras. Assim, é possível que, neste estudo, os participantes de maior memory and cognition”, Journal of Cognitive Neuroscience,
capacidade de memória de trabalho tenham optado por penalizar a 4:281-288, 1992.
densidade lexical de suas mensagens para que pudessem falar de for- BADDELEY, A.D. Human memory: Theory and Practice. Hove,
ma mais veloz, precisa e complexa. Para manter a velocidade da fala UK: Lawrence Erlbaum, 1990.
e garantir a precisão e complexidade gramaticais, esses participantes BADDELEY, A.D. & Hitch, G. “Working memory”, in Bower G.A.
optaram – cognitivamente falando – por usar os itens lexicais que já The psychology of learning and motivation: Advances in
tinham um grau alto de ativação e sobre os quais os participantes research and theory. New York: Academic Press, 1974.
tinham informação sintática mais facilmente disponível. O uso dos BENTON, S.L., Kraft, R.G., Glover, J.A., & Plake, B.S. Cognitive
mesmos itens lexicais a densidade lexical da mensagem, mas parece capacity differences among writers. Journal of Educational
ser um comportamento natural na produção oral. Griffin e Bock (1998) Psychology, 76:820-834, 1984.
sugerem, por exemplo, que falantes tendem a re-usar palavras que BERQUIST, B. “Individual differences in working memory span and
tenham sido ativadas e usadas durante uma determinada tarefa oral - L2 proficiency: capacity or processing efficiency?”, Comunica-
provavelmente o fazem como uma maneira de lidar com as exigênci- ção apresentada no congresso anual da American Association
as cognitivas da fala. for Applied Linguistics. Seattle: WA, 1998.
Resta ainda determinar a razão pela qual alguns indivíduos CARPENTER, P.A. & Just, M.A. “The role of working memory in
têm mais recursos atencionais disponíveis que outros. A pesquisa language comprehension”, in Klahr, D. & Kotovsky, K. Complex
sobre a memória de trabalho não sabe ao certo a origem das diferen- Information Processing: The impact of Herbert A. Simon.
ças individuais na capacidade do sistema. Uma das possibilidades é Hillsdale, NJ: Lawrence Erlbaum, 1989.
que estes indivíduos têm uma quantidade maior de processos auto- DANEMAN, M. “Working memory as a predictor of verbal fluency”,
máticos e de conhecimento procedimental, os quais podem ser em- Journal of Psycholinguistic Research, 20:445-464, 1991.
pregados sem a utilização dos recursos atencionais da memória. Nes- DANEMAN, M., & Carpenter, P. A. “Individual differences in
se caso, esses recursos ficam livres para serem utilizados nos proces- working memory and reading”, Journal of Verbal Learning and
sos controlados e conhecimento declarativo. Pode ser argumentado, Verbal Behavior, 19: 450-466, 1980.
então, que os participantes com maior capacidade de memória de DANEMAN, M., & Carpenter, P. A. “Individual differences in

726 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


integrating information between and within sentences”, Journal MASSON, M.E.J. & Miller, J.A. “Working memory and individual
of Experimental Psychology: Learning, Memory, and Cognition, differences in comprehension and memory of text”, Journal of
9:561-584, 1983. Educational Psychology, 75:314-318, 1983.
ENGLE, R.W. & Oransky, N. “Multi-store versus dynamic models MCLAUGHLIN, B. & Heredia, R. “Information-processing
of temporary storage in memory”, in Sternberg, R.J. The Nature approaches to research on second language acquisition and use”,
of Cognition. Cambridge, MA: the MIT Press, 1999. in Ritchie, W.C. & Bhatia, T.K. Handbook of Second Language
FORTKAMP, M.B.M. Working memory capacity and L2 speech Acquisition. San Diego: Academic Press, 1996.
production: an exploratory study. Tese de doutorado inédita. MCLAUGHLIN, B., Rossman, T. & McLeod, B. “Second-language
Florianópolis: Universidade Federral de Santa Catarina, 2000. learning: an information processing perspective”, Language
FORTKAMP, M.B.M. “Working memory capacity and aspects of Learning, 33: 153-158, 1983.
L2 speech production”, Commnication & Cognition, 32:259- MIYAKE, A., Just, M.A. & Carpenter, P.A. “Working memory
296, 1999. constraints on the resolution of lexcial ambiguity: maintaining
GRIFFIN, Z.M. & Bock, K. “Constraint, word frequency, and the multiple interpretations inneutral contexts”, Journal of Memory
relationship between lexical processing levels in spoken word and Language, 33:175-202, 1994.
production”, Journal of Memory and Language, 38: 313-338, MIYAKE, A. & Friedman, N.P. “Individual differences in second
1998. language proficiency: working memory as language aptitude”,
HABERLANDT, K. Cognitive Psychology. Massachusetts: Allyn & in Healy, A.F. & Bourne, L.E. Foreign language learning:
Bacon, 1994. Psycholinguistic studies on training and retention. Mahwah, NJ:
HARRINGTON, M & Sawyer, M. “L2 working memory capacity Lawrence Erlbaum, 1998.
and L2 reading skill”, Studies in Second Language Acquisition, RIGGENBACH, H. Nonnative fluency in dialogue versus monologue
14:25-38, 1992. speech: a microanalytic approach. Tese de doutorado inédita.
JEFFERSON, G. “Error correction as an interactional resource”, Los Angeles: Universidade da California, 1989.
Language and Society, 3:181-199, 1979. TOMITCH, L.M.B. Reading: Text organization perception and
JUST, M.A. & Carpenter, P.A. “A capacity theory of comprehension: working memory capacity. Tese de doutorado inédita.
Individual differences in working memory”, Psychological Florianópolis: Universidade Federral de Santa Catarina, 1995.
Review, 99:12-149, 1992. TORRES, A.C.G. Prior knowledge, L2 working memory capacity,
LENNON, P. “Investigating fluency in EFL: a quantitative approach”, and L2 reading comprehension: How do they relate? Disserta-
Language Learning, 40: 387-417, 1990. ção de mestrado inédita. Florianópolis: Universidade Federral
LEVELT, W.J.M. Speaking. From intention to articulation. de Santa Catarina, 1998.
Cambridge, MA: Bradford/MIT Press, 1989.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 727


A ausência de artigo definido diante de nomes
próprios no português mineiro da comunidade de
Barra Longa (MG): um caso de retenção? 1
Soélis T. Prado Mendes
Universidade Federal de Ouro Preto - UFPO
Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG/CNPq

ABSTRACT: This paper deals with the absence of the definite article before proper names typical of contemporary Barra Longa (MG) speech
community, an area developed as a consequence of the 18th century ‘bandeirantes’ incursion. This structure has been retained in the same area
until today and is ultimately considered to be a remnant of the Latin proto-language.
PALAVRAS-CHAVE : Lingüística Histórica - Séculos XVIII e XIX - Documentos notariais

0. Introdução 1. Pressupostos teórico-metodológicos


Este trabalho, que é parte constitutiva de minha dissertação de Os pressupostos teórico-metodológicos têm como base a
mestrado defendida em agosto/2000 na FALE/UFMG e orientado conceituação de Lingüística Histórica dada por Bynon (1977). Con-
pela Profa. Dra. Maria Antonieta Cohen, procura investigar se a au- forme a autora, cabe à Lingüística Histórica ‘investigar e descrever’
sência de artigo definido diante de nomes próprios (NPr) no portu- como as mudanças ocorrem ou como o sistema lingüístico preserva
guês mineiro da região de Barra Longa - cidade do interior mineiro uma estrutura. A partir dos documentos, prossegue Bynon, é possí-
e localizada na Zona da Mata - caracteriza-se como uma estrutura vel extrair a estrutura gramatical de cada período e, com isso, gramá-
que reteve traços de períodos pretéritos da língua portuguesa. ticas sincrônicas podem ser postuladas e comparadas. Subjaz a esta
Desde o primeiro contato com a fala contemporânea dos habi- conceituação, a orientação empirista do pesquisador quanto aos fe-
tantes desta cidade, chamou-me a atenção o elevado número de ocor- nômenos estudados [cf. Cohen, (1995)]; isto é, a análise proposta
rências desta estrutura, principalmente quando se tratava de ‘casos para a estrutura sintática em questão é abstraída a partir das descri-
genitivos’; pois, neste ambiente sintático a ausência de artigos apre- ções de dados reais da LEP e da LOC. Para o estabelecimento do
sentava-se mais saliente, conforme : recorte sincrônico dos dados, procura-se caracterizar o ambiente sin-
(i)-’Inf.: (a) : o que é casa/que que é cunHAdo de ø Roberto tático do SN do qual o artigo definido é um constituinte, seguindo
de Ro:ma (T15/2ºxx)2 critérios estabelecidos por Harris & Campbell (1995).
Paralelo a isso, ao examinar textos não-literários dos séculos Para a descrição interna do SN é feita uma junção entre as
XVIII e da primeira metade do XIX da referida região: carta de propostas de Perini (1996) com sugestões de acréscimos, e de Mateus
sesmaria, testamentos, documentos de criação de paróquias e fre- et alii (1989). Além disso, são apresentadas uma abordagem semân-
guesias, registros de óbitos e de batismo, documentos de criação da tica do nome próprio. Vale ressaltar que a descrição sincrônica do
cidade, várias foram as estruturas que nos causaram ‘estranhamento’ corpus do português antigo tem como parâmetro o português con-
lingüístico (cf. Tarallo, 1990) e dentre elas, o NPr não-articulado3 . temporâneo, pois , segundo Labov (1975), ‘as forças que operavam
O ‘estranhamento’ ocorreu porque este tipo de estrutura, conforme para produzir documento histórico são as mesmas que podem ser
(i) acima e (ii) abaixo, assim como outras analisadas, contrastaram vistas em ação hoje’ (Labov, 1975 apud Tarallo, 1990:62).
com o conhecimento que tenho da língua portuguesa falada Para a realização de uma análise diacrônica parte-se do pre-
contemporaneamente em Belo Horizonte, pois neste ambiente a pre- sente para explicar o passado e retorna-se a ele para, então, apresen-
sença do artigo é corrente, fato este comprovado por Moisés (1995). tar uma análise do fenômeno pesquisado (cf. Cohen, 1995). E este
(ii) - ‘vendi metade a ø Francisco de Abreu Lima’ - ( T2/ movimento de ‘vai-e-vem’ subjaz à análise apresentada no presente
73/1ª xviii )4 trabalho.
O trabalho de Moisés (op. cit.) contribuiu para reforçar o 2. A análise dos dados
estranhamento causado tanto no primeiro contato com a Língua Oral 2.1 - A caracterização sintática do artigo definido
Contemporânea (LOC) quanto, num segundo momento, com a Lín- O artigo definido pertence à classe dos determinantes, é o
gua Escrita Pretérita (LEP). Era preciso, então, investigar porque no constituinte do sintagma nominal (SN) e está hierarquicamente liga-
português mineiro dos habitantes de Barra Longa era encontrada uma do ao núcleo desse SN. Como marcador formal do nome, o artigo
estrutura então registrada nos documentos históricos da época da marca contrastes do tipo : gênero e número.
fundação da cidade. Mas, para isso, era necessário montar um corpus
para pesquisa. O corpus da LEP estava disponível, pois seriam utili-
zados os documentos notariais e eclesiásticos pertencentes ao BTLH 1
A participação neste II Congresso Internacional da Abralin conta com apoio
5
; restava, ainda, o da LOC que foi elaborado a partir de gravações financeiro da FAPEMIG.
de entrevistas feitas com os habitantes de Barra Longa. 2
Leia-se : Texto 15; 2ª metade do século XX.
A presente pesquisa baseia-se, então, em dados extraídos do
3
Trabalho desenvolvido como pesquisa de Iniciação Científica, no ano de
corpus de língua escrita pretérita e da língua oral contemporânea. O 1996, sob a coordenação da Profa. Dra. Maria Antonieta Cohen, na FALE/
primeiro é constituído por 17 documentos notariais e eclesiásticos UFMG.
4
Leia-se : Texto 2; linha 73; 1ª metade do século XVIII.
dos séculos XVIII e XIX e que remontam à fundação da cidade; o 5
Este Banco de Textos informatizado para pesquisa em Lingüística Histórica
segundo, por 10 entrevistas feitas com pessoas idosas e nascidas em que vem sendo constituído desde 1992 na FALE/UFMG, sob coordenação
Barra Longa. Num primeiro momento é feita uma análise sincrônica da Profa. Dra. Maria Antonieta Cohen, tem como objetivo fornecer mate-
com a descrição dos dados e, num segundo, os dois recortes rial lingüístico criteriosamente coletado para uma posterior pesquisa na área
sincrônicos são comparados, configurando a análise diacrônica. da lingüística histórica.

728 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


2.2 - Descrição da estrutura interna do sintagma nominal que na LEP a estrutura Qv (+Qv) e condiciona a ocorrência de artigos
Do ponto-de-vista sincrônico, a partir de Perini (1996) e Mateus antes de NPr; o mesmo não ocorre com a LOC;
et alii (1989), propõe-se fazer uma descrição da estrutura interna do (2) - Apenas na LOC um nome próprio poderá aparecer articu-
SN, dividindo-o em duas áreas. A área esquerda ao núcleo, que é lado se à esquerda do NSN-NPr não houver nenhum item entre ele e
preenchido pelo nome próprio (NSN-NPr), e a área direita a partir o artigo definido; isto é, se entre o Det/artigo definido/ e o NSN-NPr
deste núcleo. Entretanto, como as propostas destes autores não se não houver nenhum item léxico.
mostram suficientes para caracterizar itens como, dom, dona, coro-
nel, reverendo, doutor, tio, mulher, etc., que ocupam a área esquerda B - Traços sintáticos convergentes entre os dois recortes:
do NSN-NPr, é feita uma junção entre elas. Para a descrição da (1) - a ausência de artigo definido diante de NSN-NPr está
porção esquerda, utiliza-se a proposta de Perini (1996) com acrésci- condicionada à não-existência de quaisquer itens à esquerda do nome,
mo do item (Qv) ou qualificativo que foi o termo criado para carac- exceto quando, nesta posição, ocorrer o Qv ‘dona’.
terizar os chamados títulos honoríficos; e para a direita, assume-se (2) - a presença do artigo está condicionada à co-ocorrência
integralmente a proposta de Mateus et alii (1989), conforme : das funções Qv e/ou PNE + Qv entre o determinante e o NSN-NPr.
(3) - Em termos quantitativos, há uma maior ocorrência da es-
trutura [artigo zero + (Qv+) NSN²-NPr], em relação à [artigo defini-
do + (Qv+) NSN²-NPr] em SPrep do caso genitivo.
Através dos recortes sincrônicos, foram constatados condi-
A descrição interna do SN visa averiguar se há ou não condici- cionamentos sintáticos para a ocorrência do artigo; em outras pala-
onamentos para ocorrência e não-ocorrência do artigo diante de NPr . vras, a ausência de artigo definido diante de NSN-NPr é condiciona-
Vale destacar, ainda, que para esta descrição leva-se em conta a da à não-ocorrência de nenhum item à esquerda do nome e/ou à
posição que o NPr ocupa no SN, procurando identificar quando se ocorrência do Qv ‘dona’ nesta posição, tanto na LEP, quanto na
trata de um NPr regido pela preposição de. LOC. Por meio da análise diacrônica, constatou-se a ancianidade
2.3 - Descrição e análise dos dados desta estrutura e a sua retenção na língua oral contemporânea dos
Para a análise da estrutura interna do SN, que foi dividido em habitantes de Barra Longa. Mas essa análise não apresenta uma res-
área esquerda ao núcleo, preenchido por um NPr, e área direita ao posta satisfatória à pergunta-título deste trabalho, faz-se necessário,
núcleo, que, nem sempre é preenchido por um NPr, foram criadas então, analisar os resultados aqui estabelecidos sob outro ponto-de-
tipologias de descrição; isto é, foram criados dois grandes grupos vista da gramática da língua : a semântica dos NPr.
SN não-articulados e SN articulados para cada área. A partir daí as Tomando como correta a hipótese de que, no latim, os substan-
estruturas que se encaixavam nos grandes grupos foram rearranjadas tivos não marcados morfologicamente eram interpretados como defi-
em subgrupos de acordo com suas características, conforme quadros nidos, e levando em conta que os NPr devem ser incluídos na classe
abaixo. Esta foi uma descrição feita tanto para os dados da LEP, destes substantivos; e que os NPr, conforme Lyons (1977), são ex-
quanto da LOC. Assim para a área esquerda, estabeleceu-se6 : pressões referenciais definidas que identificam pessoas num dado
contexto, proponho: o sistema lingüístico preservou o traço semân-
tico +definido dos NPr, tanto na LEP quanto na LOC, devido à fun-
ção referencial dos NPr, pois é através dela que o nome identifica
pessoas ou o seu referente numa situação específica.
A partir desta proposta, pode-se fazer a seguinte pergunta :
qual é a relação existente entre a função referencial dos NPr e
a ausência artigo definido? De acordo com a literatura consulta-
da, foi a partir de uma função anafórica que se deu a gênese do
artigo definido. Para Lapesa (1966) a origem anafórica constitui-
se como o primeiro passo, o seguinte foi ampliar o uso de ille ou
ipse para fora do âmbito endofórico; isto é para o campo da exófora,
conforme Halliday e Hasan (1976), ou para o campo da dêixis,
conforme Lyons (1977). Levando em conta que, conforme Lyons
(1977), o artigo amalgama duas categorias: uma pronominal que
o permite atuar deiticamente, e outra adverbial adjetiva, que o per-
mite atuar anaforicamente, é possível que o artigo, tal como é
empregado atualmente, seja como elemento dêitico seja como ele-
mento anafórico, tenha passado por essas fases e a sua existência
propriamente dita tenha se firmado apenas quando essas funções
já estavam desenvolvidas.
Com base nisso, proponho :
1a) Dado que o primeiro passo da função referencial do artigo se
deu num ambiente anafórico ou num ambiente identificador, e dada a
função referencial identificadora do NPr, proponho que o artigo, num
primeiro momento, não ocorreu à esquerda do NSN-NPr porque
cabia à função referencial de contexto única do NPr estabelecer a iden-
A partir destes quadros, é possível extrair pontos divergentes e tificação ou a referência anafórica; sendo assim, este ambiente não fa-
convergentes entre ambos os registros, isto é, entre a LEP e a LOC : voreceu o desenvolvimento do artigo como elemento anafórico.
A - Traços sintáticos divergentes entre os dois recortes:
(1) - Embora, tanto na LEP quanto na LOC, a presença de
artigos antes de NPr esteja vinculada à presença de Qv, observa-se
6
Em função do espaço, não serão colocados todos os tipos de estrutura e
tipologia.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 729


2ª ) Como o artigo não encontrou ambiente favorável para se ( v ) - tanto na LEP como na LOC, o sistema preservou o
desenvolver antes de NPr num ambiente anafórico e, portanto, não traço semântico +definido do NPr, que no latim era compreendido
deu o primeiro passo a que se refere Lapesa (op. cit.), não lhe era como tal por não ser marcado morfologicamente, devido à função
possível ser ‘promovido’ para o ambiente da dêixis ou exófora. Assim, referencial dos NPr. É através desta função que o nome identifica
se o artigo antes de NPr não atingiu o primeiro passo, não lhe foi pos- pessoas ou o seu referente numa situação específica.
sível atingir o segundo; alia-se a isto a função referencial do NPr . Como o Qv ‘dona’ co-ocorre junto ao NSN-NPr não-articu-
lado ao contrário de outros Qv que co-ocorrem junto a NSN-NPr
3 - Considerações finais articulados, foi proposto verificar qual o papel deste tipo de Qv nesta
Os resultados discutidos anteriormente permitem apresentar o se- estrutura,e assim estabeleceu-se que :
guinte quadro : ( vi ) - De acordo com Lyons (1977), é possível que expres-
( i ) - O que regula ou condiciona a ocorrência de artigos tanto na sões referenciais definidas, no decurso da evolução histórica, mude
LEP quanto na LOC é a presença de Qv, exceto os Qv ‘dona/dom’ na de categoria; aqui não foi defendida a hipótese desta mudança com
LEP e ‘dona, doutor, tio,sá’ na LOC; relação ao Qv ‘dona’, mas foi proposto que este Qv junta-se ao NPr
( ii ) - Quantitativamente, na LEP há uma predominância da estru- formando uma referência única, comportando-se exatamente como
tura [artigo zero + NSN-NPr] sobre [artigo definido + NSN-NPr]. A um nome próprio.
partir daí, defendo a seguinte análise: a não ocorrência de NSN-NPr Assim, levando em conta (i) a (vi) acima e além disso :
articulados nos dados da LEP pode ser um indicativo de que tais estrutu- (a) que Barra Longa é uma cidade antiga, que foi fundada em
ras não ocorriam na época da criação dos textos, isto é, nos séculos XVIII 1736 e que se manteve ‘isolada’ dos grandes centros urbanos;
e XIX, e que NSN-NPr não-articulados eram de uso mais freqüente; (b) que, de acordo com a análise quantitativa, na fala contem-
( iii ) - Na LOC há também uma predominância da estrutura [ar- porânea dos habitantes desta cidade ocorre uma alta freqüência de
tigo zero + NSN-NPr] sobre [artigo definido + NSN-NPr]. Assim, de- artigo zero diante de NPr,
fendo a hipótese de que a comunidade de Barra Longa faz uso de uma Concluo : a língua escrita pretérita e a língua oral do portugu-
estrutura pretérita, que pertencia à estrutura gramatical do sistema ês contemporâneo desta comunidade retiveram uma estrutura preté-
lingüístico dos séculos XVIII e XIX; rita da língua latina.
( iv ) - Tanto na LEP quanto na LOC há, quantitativamente, uma
maior ocorrência de [artigo zero + NSN²-NPr] em SPrep de caso genitivo. 4 - Referências bibliográficas
Assim, levando-se em conta:
(a) que a ausência de artigo antes de nomes próprios em SN ou em BYNON, Theodora. Historical Linguistics. London: Cambridge
SPrep, mais especificamente no caso genitivo, constituía-se como uma University Press, 1983.
norma gramatical no período de 1540, de acordo com João de Barros; COHEN, Maria Antonieta de A . “Análise ‘a posteriori’ de mudan-
(b) que, segundo Lapesa (1961), nas jarchyas moçárabes dos ças sintáticas”. In: Anais do IX Encontro Nacional da ANPOLL.
séculos XI ao XII a ausência do artigo ocorria insistentemente quando 1994, Vol 2, Lingüística, Caxambu, junho de 994, tomo II,
um complemento introduzido por de determinava o substantivo, (consi- 1995:1468-1485.
derando ainda que esta análise seja válida para os dados do português); COHEN, M.A. de A., PRADO, S. T. do & SEABRA, M. C. T. de
(c) que, segundo Posner (1966), o não uso de artigo em nomes “BTLH - Banco de textos para pesquisa em lingüística históri-
que são objetos de preposição configura-se como formas ‘sobreviven- ca - dados de Barra Longa - MG “. In: Filologia e lingüística
tes’ de um estágio mais arcaico da estrutura gramatical; Portuguesa. vol. 2. São Paulo: Humanitas, 1998.
Defendo a hipótese de que este tipo de estrutura, isto é, NSN²- LYONS, John. Semantics Cambrigde, Cambridge Universituy Press,
NPr não-articulado, regida pela preposição de, tanto na LEP como na 1977, 2 vols.
LOC, é o resquício de uma forma pretérita da língua que se manteve no MATEUS, Maria H. M. et alii. G. da língua portuguesa. Coimbra,
sistema lingüístico da comunidade de Barra Longa. Almedina, 1989.
Como os resultados de (i) a (iv) acima não respondem satisfatori- MOISÉS, Juliana Assis. O ‘lugar’do artigo no discurso. Considera-
amente a pergunta título do presente trabalho, tendo em vista que não foi ções sobre o uso do artigo no português culto falado em
levado em conta o papel semântico do NPr, sugeriu-se, então, envolver Belo Horizonte. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG.
outro nível da gramática, ou seja, a semântica . PERINI, Mário Alberto. Gramática descritiva do português. São
Com relação à abordagem semântica do NPr, estabeleceu-se a Paulo: Ática, 1996.
seguinte proposta :

730 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Ser ou não ser natural, eis a questão dos clichês de
emoção na tradução audiovisual
Vera Lúcia Santiago Araújo
Universidade Estadual do Ceará

ABSTRACT: This research investigated the translation of clichés expressing emotion in dubbed and subtitled films. The analysis was carried out
taking into account the constraints faced by film translators. It was not prescriptive, rather its aim was the description of the norms used by Brazilian
translators in the rendering of these clichés.
PALAVRAS-CHAVE: legendação/legendagem; dublagem; clichês; normas

Esta pesquisa teve como objetivo analisar a tradução de clichês tor. As normas são ditadas pelas circunstâncias em que se realiza a
ou fórmulas situacionais em filmes dublados e legendados. Os clichês tradução. Devido a essas circunstâncias, o tradutor tende a ter um
ou fórmulas situacionais são aquelas expressões que, de tão repeti- certo tipo de comportamento no que diz respeito à tradução. No caso
das, tornaram-se estereótipos e lugares-comuns, como alguns provér- da tradução audiovisual, os elementos que influenciam a tradução
bios (Depois da tempestade, vem a bonança), algumas citações (Ser são: o sincronismo, o volume de texto, os aspectos técnicos do pro-
ou não ser, eis a questão) e frases feitas (Antes tarde do que nunca). cesso e o papel dos profissionais envolvidos (tradutores, distribuido-
Os clichês ou fórmulas foram classificados e definidos com res, empresas legendadoras, estúdios de dublagem, marcadores,
base nos pressupostos teóricos de Coulmas (1979), Zijderveld (1979) legendadores, técnicos de mixagem etc.)
e Tagnin (1989). A análise para determinar se as expressões retiradas A análise revelou cinco normas. A primeira não confirma a
dos diálogos dos filmes se constituíam em clichês ou fórmulas pas- hipótese de que as traduções produzidas no meio audiovisual não
sou pelas seguintes etapas: são naturais para os falantes do português, já que a maioria dos clichês
1. Exame, a partir da interpretação individual, para verificar se foram traduzidos por clichês correspondentes em português, ou seja,
a expressão já foi muito usada anteriormente; foram utilizados clichês que aparecem em situações semelhantes às
2. Consulta a obras de referência para ver se a expressão foi do inglês, como a tradução de You’re grounded por Vocês estão de
considerada clichê por outro pesquisador; castigo.
3. Observação do uso da expressão para ver se ela seria repeti- Entretanto, apesar desse uso que não causa estranheza ao es-
da em contextos semelhantes; pectador, pois são expressões ouvidas correntemente, as quatro nor-
4. Constatação de que o significado da expressão, antes origi- mas restantes confirmam a hipótese de que algumas traduções são
nal, foi substituído por uma função social. gramaticalmente corretas, mas não soam naturais para falantes nati-
Em um corpus de 5 filmes ¾ A Guerra dos Roses (1989), Uma vos do português. A segunda norma mostra que os tradutores
Babá Quase Perfeita (1993), Bye, Bye Love, os Descasados (1995), audiovisuais brasileiros criaram expressões não naturais em portu-
O Clube das Desquitadas (1996) e Uma Família Quase Perfeita (1996) guês e mais próximas do inglês. É o caso de Que fique em paz usado
¾ selecionados a partir da temática do divórcio, foram encontrados por uma personagem do filme “Bye, Bye, Love os Descasados” para
250 clichês usados para expressar diferentes tipos de emoção: alegria se referir ao ex-marido como se ele tivesse morrido:
(How lovely), amor (That’s my girl), ansiedade (Thank God), com-
paixão (Take it easy), culpa (It’s my fault), desgosto (I really am sorry),
raiva (Piss off) e surpresa (Look at this). Além dessas categorias, foi
incluída a de ironia, porque várias fórmulas de emoção foram usadas
ironicamente, como What a kick, cujo uso consagrado indica alegria,
que apareceu no corpus significando exatamente o contrário, ou seja,
descontentamento.
A tradução dos clichês ou fórmulas situacionais foi analisada
levando em conta as restrições enfrentadas pelos tradutores
audiovisuais. A análise não foi prescritiva, atendo-se basicamente à
descrição das normas utilizadas pelos tradutores brasileiros na tradu-
ção de clichês e tendo como intuito verificar uma hipótese surgida em
uma análise preliminar do filme “Uma Babá Quase Perfeita”. Nesse
filme, os tradutores tenderam a criar novas expressões em português
que se aproximavam mais das formas usadas pelos falantes do inglês.
Embora gramaticais, essas expressões não fazem parte do repertório Podemos ver que o clichê usado em inglês detonou logo a
dos falantes nativos, ou seja não soam naturais para falantes do por- pergunta sobre a morte da pessoa a que Lucille estava se referindo.
tuguês. Pawley & Syder (1983) chamam a atenção para o fato de o Na cena, o garçon até se benze para mostrar que sentia muito pela
falante nativo empregar apenas um número restrito de estruturas, apesar morte do marido de Lucille. A expressão Que fique em paz usada na
de ter à sua disposição todo o elenco que pode ser gerado pelas regras versão legendada não estimularia a pergunta de Vic sobre a morte do
gramaticais da língua. marido. Em português, os clichês Que descanse em paz e Que Deus
Norma é um conceito sociológico introduzido nos Estudos de
Tradução por Toury (1980). Norma em tradução não significa seguir
uma regra ditada por uma entidade superior, nem tomar decisões du- 1 O exemplo aparece sublinhado no glossário por não se constituir em
rante o processo tradutório com base apenas na experiência do tradu- uma expressão usual em português.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 731


o tenha são os mais usuais neste contexto. da mãe e Piss off por Vá se danar ou Vá tomar banho (Uma Babá
Esse caso seria semelhante ao acontecido na novela “A Quase Perfeita). A falta de naturalidade está no nível do registro,
Indomada” exibida pela Rede Globo, só que de maneira inversa. Lá pois embora essas expressões sejam naturais em outros contextos, no
os personagens criavam expressões em inglês a partir de clichês do filme se esperaria algo mais forte. Essas traduções minimizadas são
português e cunhavam expessões que dificilmente seriam entendi- mais freqüentes na dublagem do que na legendagem, que já começa
das por um falante nativo do inglês, como “The cow went to the a utilizar uma linguagem de conteúdo mais forte.
swamp” (A vaca foi pro brejo) e “The night is a child” (A noite é uma A última norma aponta que nas versões legendadas, foram usa-
criança). das estruturas gramaticais mais comuns na linguagem escrita (uso da
Millôr Fernandes (1989), com a finalidade de fazer humor, já ênclise, estruturas gramaticais não-reduzidas, uso exclusivo do pro-
havia criado várias fórmulas semelhantes às da telenovela, utilizando nome de tratamento “você” etc), enquanto na dublagem ocorreu o
até mesmo “The Cow Went To The Swamp - A Vaca Foi Pro Brejo” inverso, ou seja, foram encontradas estruturas gramaticais freqüen-
como título do livro em que compilou essas expressões. A título de tes na linguagem oral. A tradução de Leave me alone (Bye, Bye Love,
ilustração, aqui vão mais algumas dessas expressões que, certamen- Os Descasados) por Deixe-me em paz é uma boa demonstração desta
te, o falante nativo do inglês não entenderia: To blow up the balloon’s norma. Novamente temos um caso de falta de naturalidade relacio-
mouth (Arrebentar a boca do balão); With me it’s bread bread, cheese nada ao registro. Essas traduções seriam naturais em contextos mais
cheese (Comigo é pão, pão, queijo queijo); To take the little horse formais, mas soaram estranhas como tradução para as falas dos fil-
out of the rain (Tirar o cavalinho da chuva); He cooked in Mary’s mes, como Deixe-me em paz pronunciada por uma adolescente.
bath (Cozinhou em banho-maria); To whirl the old woman from Bahia Esse tipo de expressão aparece com freqüência em filmes tra-
(Rodar a baiana). zendo dificuldades para os tradutores. Por esta razão, resolvi trans-
Entretanto, essas expressões não-naturais podem vir a se tor- formar o resultado da minha pesquisa em um glossário para ampliar
nar clichês através do uso repetitivo, a exemplo do que aconteceu a discussão sobre a tradução de clichês.A macroestrutura contém os
com a expressão “esqueletos no armário”. Essa expressão foi usada clichês de emoção dos filmes enfocados. O glossário é bilíngüe (in-
em uma legenda do filme “Quatro Casamentos e um Funeral” e foi glês-português) e apresenta dois formatos. O primeiro mostra os
bastante criticada por duas reportagens, uma da revista VEJA e ou- clichês por categoria da emoção:
tra da revista ÉPOCA. As reportagens criticavam o fato de “esquele-
tos no armário” (“Skeletons in the cupboard), uma expressão tipica- SURPRESA
mente inglesa, não fazer parte do repertório de expressões idiomáti- 1. I don’t believe it. (F5)
cas do português, não podendo, portanto, figurar como tradução da 2. Look at this place. (F1) Look at this. (F1) (F2) (F3) (F4)
3. Look at you. (F3) (F4)
expressão inglesa na nossa língua. Apesar das críticas, a expressão já
4. Now look at (her). (F3)
apareceu em vários órgãos de imprensa entre eles a própria revista
5. Oh my God. (F4)
VEJA, mostrando que tal expressão é uma forte candidata a se trans-
6. Oh my goodness. (F4)
formar em clichê no português do Brasil.
7. So, that’s how it’s done. (F2)
Não se pode dizer ao certo se o responsável pela difusão de
8. This is absurd. (F5)2
Esqueletos no armário foi a tradução ou a imprensa. O que o exemplo
mostra é o perigo de se fazer uma crítica ao uso de expressões como
O segundo formato traz os clichês pesquisados em ordem alfa-
esta, que podem vir a ser usadas cotidianamente. Quem sabe algum dia
bética, como aparecem no corpus. Por exemplo, Make one’s day
estejamos utilizando, por causa da tradução audiovisual, expressões aparece no corpus como That would make my day, portanto está re-
típicas do inglês, tais como, Que adorável, para nos referirmos a algo gistrado na letra T e não na M. Abaixo, a microestrutura do verbete e
que nos deixa contentes, Que trágico para um trágico acontecimento, um exemplo do glossário:
Vamos voltar aos negócios para retomar um assunto interrompido? entrada em negrito em fonte arial + categoria da emoção em que a
Essa afirmação sugere que as traduções audiovisuais se constituem em fórmula está incluída entre parênteses em fonte arial narrow normal
uma das fontes de inovações do português do Brasil. + função do clichê (numeradas se mais de uma) em fonte arial narrow
A terceira norma traz aqueles clichês traduzidos por expres- normal + ? exemplo em inglês em itálico (arial narrow) com expli-
sões que não se constituem em clichê em português, como a tradução cação da cena em arial narrow normal + ¯ legendação em itálico
de Go for it (Uma Família Quase Perfeita) por “reaja”. Na cena, o (arial narrow) com a tradução do clichê em negrito + ® dublagem
personagem fica tentando criar coragem para abordar uma garota re- em itálico (arial narrow) com a tradução do clichê em negrito + ⇒
petindo o título de um livro de auto-ajuda (Feel the fear and go for sugestões de tradução em negrito: (D), (L – nº de caracteres) + ≅
it). Essas traduções estão circunscritas ao contexto do filme, isto é, clichês com função ou forma semelhante em negrito.
não se poderia generalizar o seu uso para contextos semelhantes. A
ausência de naturalidade se explica pelo fato de que, naquela situa- That would make my day. (alegria) Sentir felicidade diante
ção o interlocutor esperaria um clichê, ou seja, para dar coragem a de um acontecimento. ˜ A Sra. Doubtfire diz a seus interlocutores
alguém seriam esperadas palavras de ânimo tais como Vá em frente que acha que viu Clint Eastwood. Se isso fosse verdade ela ficaria
ou Vá à luta. “Reaja”, não é o que alguém imaginaria ouvir em seme- muito feliz.I thought I saw Clint Eastwood. That would make my
lhante situação. Configura-se aqui um exemplo em que ainda preva- day. (F1) ◊ Achei ter visto Clint Eastwood. Ia fazer o meu dia.3 ♦
lece o significado, exigindo reflexão do interlocutor para decodificar Pensei ter visto Clint Eastwood. Isto completaria o meu dia. & Achei
a expressão, enquanto ele esperaria, nesse contexto, apenas uma ex- que tinha visto Clint Eastwood. Isto ia alegrar o meu dia.
pressão de estímulo, como Vá em frente ou Vá à luta, já consagradas
com essa função. Quando a expressão se transforma em clichê, perde
o significado que é substituído pela função.
A quarta norma relaciona-se aos palavrões ou frases de baixo 2 Notações: F1 – “Uma Babá Quase Perfeita”; F2 – “Uma Família Quase
calão, que foram suavizados, ou seja, foram traduzidos por expres- Perfeita”; F3 – Bye, Bye, Love – Os Descasados; F4 – “O Clube das
sões em português com impacto menor do que a expressão em inglês. Desquitadas”; F5 – “A Guerra dos Roses”.
Um bom exemplo são as traduções de Shit (A Guerra dos Roses) por 3 O exemplo aparece sublinhado no glossário por não se constituir em uma
Droga, de Son of a bitch (Bye, Bye Love, Os Descasados) por Filho expressão usual em português.

732 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


Espero ter contribuído com esse trabalho para a discussão so- TAGNIN, S.E.O. Expressões Idiomáticas e Convencionais. São Pau-
bre a tradução de clichês para produções audiovisuais. Anseio tam- lo, Ática, 1989.
bém que os resultados da pesquisa, em especial o glossário, possam ZIJDERVELD, A. On Clichés. The Supersedure of Meaning by
servir de material de referência para o trabalho do tradutor de filmes Function in Modernity. Londres, Boston, Henlay: Routledge &
no Brasil, cuja tarefa é tão fascinante, mas cheia de limitações. Final- Kegan Paul, 1979.
mente, não tenho dúvidas de que a tradução audiovisual é uma área PAWLEY, A & SYDER, F.H. Two Puzzles for Linguistic Theory:
fértil a ser explorada pelos pesquisadores desse país, já que suscita Nativelike Selection and Nativelike Fluency. Richards, J. &
vários tipos de questionamentos. Schimidt (eds.) Language and Communication, Londres,
Longman, 1983, 191-226.
Referências bibliográficas TOURY, Gideon. In Search of a Theory of Translation. Tel Aviv,
Porter Institute for Poetics and Semiotics, 1980.
COULMAS, F. On the Sociolinguistics Relevance of Routine
FERNANDES, M. The Cow Went to the Swamp - A Vaca Foi pro
Formulae. Journal of Pragmatics, vol.3, 239-266, 1979.
Brejo. 4 ed., Rio de Janeiro, Record, 1989.

Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001 733


A representação da informação em
arquivos acumulados por literatos
Zeny Duarte
Universidade Federal da Bahia - UFBA
Instituto de Ciência da Informação - ICI

Resumo dades públicas e privadas. Eles são convenientemente reunidos a ser-


viço do titular, pelo prazer de guardar a própria representação de
O arquivo passa a ser espaço livre, tanto para os manuscritos seus valores, estendendo-se posteriormente à leitura e aos interesses
autógrafos, quanto para os documentos produzidos a partir de ativi- de outrem.
dades públicas e privadas. Eles são convenientemente reunidos a “É exatamente porque resultantes de uma acumulação natural,
serviço do titular, pelo prazer de guardar a própria representação de necessária e não-gratuita, que os documentos são dotados de
seus valores, estendendo-se posteriormente à leitura e aos interesses organicidade, isto é, da capacidade de refletir a estrutura, funções e
de outrem. “É exatamente porque resultantes de uma acumulação atividades da entidade acumuladora.” (CAMARGO,1998,p.1). Se-
natural, necessária e não-gratuita, que os documentos são dotados de gundo HERRERA(1992,p.115),
organicidade, isto é, da capacidade de refletir a estrutura, funções e
atividades da entidade acumuladora.” (CAMARGO,1998,p.1). Se- “Nesta linha, os arquivos sempre são institucionais e não
gundo HERRERA (1992,p.115), “Nesta linha, os arquivos sempre temáticos.
são institucionais e não temáticos. Esta unanimidade em termos de
Esta unanimidade em termos de definição, entretanto, contras-
definição, entretanto, contrasta com a corrente, explicitada por al-
ta com a corrente, explicitada por alguns e sugerida por outros,
guns e sugerida por outros, de falar com demasiada freqüência de
de falar com demasiada freqüência de arquivos da literatura,
arquivos da literatura, arquivos do vinho, arquivos econômicos, etc.”
A relevância histórica dos acervos acumulados por literatos torna-os arquivos do vinho, arquivos econômicos, etc.”
fonte de estudo à disposição de pesquisadores. O espólio de
Godofredo Filho possui marcas específicas, modificadoras e com A relevância histórica dos acervos acumulados por literatos
características peculiares, à semelhança de outros também acumula- torna-os fonte de estudo à disposição de pesquisadores. O espólio de
dos por literatos. Isso se deve praticamente a um desejo igual de Godofredo Filho possui marcas específicas, modificadoras e com
escrever e colecionar escritos e objetos representativos do percurso características peculiares, à semelhança de outros também acumula-
de sua própria vida e de outrem. Pretende-se apresentar no ABRALIN dos por literatos. Isso se deve praticamente a um desejo igual de
2001 reflexões sobre essa temática e demonstrar a análise escrever e colecionar escritos e objetos representativos do percurso
documentária contextualizada do catálogo informatizado do espólio de sua própria vida e de outrem.
mencionado.
Representação da informação em arquivos de literatos
Reflexões sobre conceito de arquivo
Os arquivos acumulados por escritores foram se sedimentando,
Estudamos a organização de arquivo acumulado por um lite-
da primeira metade do século XIX a nossos dias. Encontramos neles
rato que alguns especialistas conceituam como arquivo literário. Cons-
as pistas para o jogo da reciprocidade. Há similaridade no comporta-
tatamos que definições como essa vêm sendo formuladas com maior
freqüência. Talvez isso ocorra devido à especificidade e característi- mento de homens das letras, quanto ao estético, ético, à política, à
ca próprias de cada arquivo. Porém, é preciso observar a unicidade, história, aos precursores, com uma nova escrita nos seus manuscritos
ou seja, “qualidade pela qual os documentos de arquivo, a despeito autógrafos e, sobretudo, nos epistolares.
de forma, espécie ou tipo, conservam caráter único em função de seu É comum nos arquivos desses homens, a existência de autó-
contexto de origem”. (DICIONÁRIO,1996,p.76). grafos, geralmente restritos, desconhecidos, por assim dizer, não pu-
O conceito de arquivo literário tem sido utilizado por estudio- blicados. Como exemplo, temos os dossiês completos de manuscri-
sos de manuscritos autógrafos. Entretanto, não devemos delimitar o tos autógrafos. Estes trazem o estatuto de insubstituível no seu todo e
campo do arquivo a partir de determinada atividade exercida pela em suas partes. Alguns deles são ricos em textos abandonados. São
entidade produtora ou por suporte, tipologia etc. Entendemos que o originais que justificam tratamento particular, exigindo uma classifi-
literato, assim como o geólogo, o artista plástico, o arquiteto e ou- cação mais adequada à sua composição.
tros especialistas, acumula documentos relacionados com sua vida É comum encontrarmos também significativa quantidade de
pessoal e pública. correspondências, representantes da sutil convivência dos homens
O geólogo não guarda apenas documentos pertinentes à geo- das letras e os insuspeitáveis trechos de sua vida em diversas áreas
logia. Do mesmo modo, o literato. O homem que opta por um arqui-
do conhecimento humano. Eles não se identificam apenas na produ-
vo particular acumula documentos que têm relação com suas ativi-
ção e acumulação de missivas. Percebemos que os literatos de uma
dades, cotidianidade, moda e costume no decurso de sua vida.
mesma época repetem atos e comportamentos no seu cotidiano. Se-
O arquivo passa a ser espaço livre, tanto para os manuscritos
autógrafos, quanto para os documentos produzidos a partir de ativi- gundo DEL PRIORE (1997,p.272),

734 Boletim da ABRALIN v.26 - Nº Especial - I 2001


“a repetição cotidiana é a repetição da necessidade histórica de titular. Os enunciados encontrados no espólio de Godofredo Filho
repetir”. É (...)”a história dos modos e das maneiras através dos fazem parte de seus sonhos e modo de vida. Cada um tem seu objeto
quais os diferentes grupos podem se constituir sujeitos. Ou próprio, ou se cerca de um mundo também por ele mesmo construído.
seja, o reconhecimento da valorização de uma imagem.”. Embora o conteúdo do documento isolado seja único, sabe-
mos que em arquivo não existe documento órfão. Ou seja, o docu-
Nesse caso, os escritores, mesmo a distância, demonstram re- mento sozinho não tem sentido, valendo ele, isto sim, no seu conjun-
petição de atitudes, explícitas nos seus documentos. Na maioria das to orgânico.
vezes, o escritor exerce atividades diversificadas que se misturam O fator que norteia a constituição do espólio de Godofredo
com os escritos pessoais e literários. É o contributo da riqueza docu- Filho é a origem do documento. O que ele representou no momento
mental para estudos manuscriptológicos, textológicos, arquivísticos, de sua criação. A razão pela qual foi criado, sua função em concor-
históricos, críticos textuais, críticos genéticos, literários, entre ou- dância com os objetivos do titular.
tros. Com raras exceções, os manuscritos autógrafos são freqüentes. Para tornar possível a recuperação de todo o espólio, ele não
Normalmente em versões. As correspondências se impõem diante de foi retalhado, repartido. Se assim fizéssemos, estaríamos negando os
outras espécies documentais. princípios da arquivística e, mais ainda, negando a possibilidade de
No espólio de Godofredo Filho, encontramos discursos da ge- recuperação da informação, do volume organicamente catalogado.
ração de 20-40, que reuniu tendências e expressões com afinidades e Não concebemos o retalhamento, a distribuição do espólio de
semelhanças. O surgimento crescente desse tipo de documentação Godofredo Filho e nem qualquer outra tomada de decisão que pro-
na constituição dos arquivos tem colaborado para a formação de teo- mova a separação de espécies e tipologias documentais com trata-
rias isoladas sobre a organização dessa documentação. No entanto, o mento diferenciado. Definitivamente, o fundo do espólio analisado
tratamento arquivístico dele, como de outros - a exemplo de arquivo foi organizado de modo a salvaguardar sua história, numa perspecti-
de arquitetos, geólogos - deve ter a base dos princípios arquivísticos. va de conjunto documental e não de frações/subconjuntos documen-
O ato de registrar os acontecimentos encontra-se aliado ao de tais ou de documentos solitários.
reuni-los e preservá-los. As espécies documentais são provenientes Concordamos com estudiosos que militam na mesma linha de
do processo de acumulação e o arquivo privado reflete o perfil sin- pensamento e com o mesmo ponto de vista de TES-
gular de seu detentor. Nesse caso, os escritores acumulam dossiês SITORE(1989,p.25), quando esta diz que o tratamento arquivístico
arquivísticos complexos, decorrentes de atividades literárias, de ações de um conjunto docum

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