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FORMAÇÃO POLÍTICA INTERNACIONAL

O Brasil no mundo em transformação


Política Externa Brasileira e Direitos Humanos
Prof. Gilberto M. A. Rodrigues

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O Brasil no mundo em transformação | Política Externa Brasileira e Direitos Humanos

Sumário

Política Externa Brasileira e Direitos Humanos............................................................................................... 3


2. Contexto histórico da PEB de Direitos Humanos: da ditadura à redemocratização ................. 5
2.1. Como analisar a história da PEB de Direitos Humanos? ......................................................... 5

2.2. Brasil: ditadura, redemocratização e PEB ................................................................................. 5

2.3. De Sarney a Dilma: Os Direitos Humanos na agenda da PEB ................................................ 6

3. A relação entre a PEB-DH e o plano doméstico.............................................................................. 8


3.1. A PEB-DH e o “efeito bumerangue”: Programas Nacionais de Direitos Humanos, ações
afirmativas e a agenda da PEB ............................................................................................................. 8

3.2. A Comissão da Verdade tardia e a “excepcionalidade” brasileira .................................... 9

4. Migrações e refúgio na PEB pós-redemocratização .................................................................... 10


5. O período da “desconstrução” da PEB-DH........................................................................................ 11
5.1. Regressividade na agenda da PEB-DH a partir de Temer ......................................................... 11

5.2. O fim da PEB-DH no governo Bolsonaro....................................................................................... 11

Referências Bibliográficas ............................................................................................................................. 12


Principais obras de referência ...................................................................................................................... 13

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Política Externa Brasileira e Direitos Humanos

Gilberto M. A. Rodrigues1

1. Panorama histórico do regime internacional global e dos


regimes regionais

O campo dos Direitos Humanos é interdisciplinar e sua construção ocorre por meio
das contribuições e entrelaçamentos de várias áreas do conhecimento – Antropologia,
Ciência Política, Direito, Economia, Educação, Filosofia, História, Psicologia, Sociologia,
Relações Internacionais entre outras. Além disso, essa construção não se limita às
Ciências Humanas e Sociais, mas abrange as Artes – Artes Plásticas, Cinema, Literatura,
Música entre outras.
Portanto, Direitos Humanos é um campo complexo em sua concepção, formulação
e em suas várias interpretações. Historicamente, a temática dos Direitos Humanos evoca
diversos processos e momentos na história da humanidade, embora devamos reconhecer
que nossos referenciais sejam de uma História Ocidental ou de uma História vista pelo
olhar do Ocidente, majoritariamente eurocêntrica.
A partir desse referencial, incompleto, porém historicamente determinante, há uma
construção paulatina do que chamamos hoje direitos humanos. O habeas corpus na Carta
Magna inglesa, no século XIII; os discursos de Frei Bartolomeu de las Casas em favor dos
indígenas nas Américas, no século XVI; as Declarações de Direitos na Independência dos
EUA e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa, onde a
tríade liberdade-igualdade-fraternidade marca a erosão do Estado monárquico e a
ascensão da burguesia ao poder, no século XVIII. E, ainda, com a Revolução Industrial e

1
Gilberto M. A. Rodrigues, doutor em Ciências Sociais e graduado em Direito pela PUC-SP, é professor
do Programa de Pós-graduação e do Bacharelado em Relações Internacionais da Universidade Federal do
ABC (UFABC). Pesquisador Produtividade (DT) do CNPq. Membro do Observatório de Política Externa e
Inserção Internacional do Brasil (OPEB) e da Cátedra Sergio Vieira de Mello (ACNUR) da UFABC. Foi
pesquisador visitante na Universidade Duisburg-Essen, Alemanha (Capes-Print, 2019-2020), American
University, Washington, DC (2017), e Universidade de Notre Dame (Fulbright, 2010), nos EUA.

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crescente urbanização, no século XIX, os direitos econômicos e sociais ganham força e


se cristalizam no século XX, com a Revolução Mexicana (1910) e a Revolução Russa
(1917), onde o Estado social se torna novo referente de garantia de direitos, abarcando a
classe trabalhadora e pessoas em condição de vulnerabilidade socioeconômica.
Contudo, são os resultados das duas grandes guerras mundiais que lançam os
alicerces para a construção de um regime internacional de direitos humanos. Após a
Primeira Guerra (1914-1918), a proteção a minorias étnicas e linguísticas e a pessoas
refugiadas entra no mandato da Sociedade das Nações (1921-1946), primeira
organização internacional com caráter universal e, também nesse período, o direito de
voto feminino passa a ser reconhecido em diversos países. E a experiência do holocausto
na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), com o trágico genocídio de milhões de judeus,
ciganos e outras minorias, resulta na ênfase conferida aos direitos humanos como um dos
pilares da Carta da ONU (1945) e a subsequente Declaração Universal dos Direitos
Humanos (1948), documento-marco do campo. Na concepção do jurista e filósofo italiano
Norberto Bobbio existe uma afirmação histórica dos direitos humanos. Na Era dos direitos,
em suas diversas dimensões – direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e
transgeracionais – os direitos humanos devem ser protegidos e promovidos pelos Estados
nacionais – cujas constituições tem papel central de normas garantidoras de direitos
fundamentais, mas não apenas: também as organizações internacionais e a sociedade
civil encarnada nas organizações não-governamentais (ONGs) e nos movimentos sociais
são atores essenciais da construção do Regime Internacional de Direitos Humanos.
A par dessa arquitetura global de direitos humanos, no Sistema da ONU,
desenvolvem-se em paralelo Regimes Regionais de Direitos Humanos, que lidam com
situações e atores mais homogêneos e processos históricos compartilhados, como a
Europa, as Américas e o Continente Africano. Tais regimes vão além dos patamares
universais e criam instrumentos mais protetivos, como órgãos de controle e de
implementação mais efetivos, incluindo tribunais internacionais de direitos humanos com
força impositiva de suas decisões. É nesse ambiente de regimes – universal e regional –
que a Política Externa Brasileira (PEB) se coloca e se articula nos foros internacionais 2.

2
Parto da definição de política externa de Letícia Pinheiro: “(...) conjunto de ações e decisões de um
determinado ator, geralmente mas não necessariamente o Estado, em relação a outros Estados ou atores
externos – tais como organizações internacionais, corporações multinacionais ou atores transnacionais –

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2. Contexto histórico da PEB de Direitos Humanos: da


ditadura à redemocratização

2.1. Como analisar a história da PEB de Direitos Humanos?

Não existe um método único, nem mais eficaz, para analisar a política externa de
direitos humanos de um país. A análise de discurso é um método usual, uma vez que a
projeção de interesses e valores ocorre nas falas de chefes de Estado e de governo e de
ministros das relações exteriores (na Assembleia Geral da ONU, por exemplo). Há o
método empírico de analisar o perfil das votações do país em foros multilaterais em temas
de direitos humanos. Além disso, pode-se analisar processos de tomada de decisão,
negociações internacionais, a participação do país em conferências, em órgãos de
organizações internacionais, inventariar a assinatura e a ratificação de tratados e
convenções de direitos humanos, os quais revelam o grau de adesão do país ao regime
global e ao regime regional de direitos humanos. Em relação às fontes primárias, a
análise de documentos reservados, quando estes são liberados ao público (a
desclassificação de documentos oficiais pode tardar 50 anos) é um recurso revelador. Um
cenário metodológico ideal seria aplicar e agregar todos os métodos para uma análise
abrangente. Contudo, na maior parte dos casos isso é inviável no tempo e no espaço e
diante da limitação de recursos.3

2.2. Brasil: ditadura, redemocratização e PEB

Em 1964, um golpe militar interrompeu a trajetória incipiente da democracia política


brasileira, lançando uma sombra de terror político sobre o país por 20 anos, com impacto
na PEB. A Guerra Fria entre EUA e URSS (1947-1989), levou Washington a apostar em
regimes de violência para combater o comunismo, sobretudo após a Revolução Cubana,
em 1959. Nesse cenário, golpes militares com apoio dos EUA derrubaram governos
democráticos em toda a América Latina e implementaram regimes de exceção com base

formulada a partir de oportunidades e demandas de natureza doméstica e/ou internacional”. Política Externa
Brasileira (1889-2002), Zahar, 2004, p. 7.
3
Neste texto, dada a limitação de espaço e o objetivo de síntese, trazemos elementos pontuais de
diferentes metodologias de análise, que julgamos relevantes para cada caso ou período analisado.

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na Doutrina de Segurança Nacional. As atrocidades realizadas por esses regimes


autoritários que incluíram perseguições, torturas, assassinatos e desaparições forçadas
receberam aval de sucessivos governos estadunidenses até a chegada de Jimmy Carter à
Casa Branca, em 1977, cujo discurso em prol dos direitos humanos, em aliança com o
humanitarismo religioso4, exerceu pressão crescente para o fim das ditaduras. A abertura
lenta, gradual e segura concebida pelo general Golbery do Couto e Silva, contemplou uma
lei de anistia em 19795, e foi implementada pelo regime até a eleição indireta de Tancredo
Neves, no Congresso Nacional, em 1984. Em todo esse período, a PEB não dispunha de
uma dimensão de direitos humanos – nem havia como tê-la, permanecendo defensiva
diante das pressões internacionais6. No final da ditadura, no período 1983-1984,
governadores de oposição eleitos, ainda no período militar, exerceram uma política
externa federativa (subnacional), que incluiu a dimensão dos direitos humanos, a exemplo
de Brizola, no Rio, e Montoro em São Paulo.

2.3. De Sarney a Dilma: Os Direitos Humanos na agenda da PEB


O governo da transição democrática, liderado pelo Presidente José Sarney (1985-
1989)7, iniciou a trajetória da Política Externa Brasileira de Direitos Humanos (PEB-DH).
Se se entende a política externa como tradução da política interna, reflexo e projeção
desta, então o período Sarney trata de recolocar o país tanto como Estado democrático
quanto como protetor e promotor dos direitos humanos, agregando-se a este último o
sentido de restaurar a imagem danosa de graves violações de direitos humanos geradas
pelo regime ditatorial. Marco fundamental desse período foi a Assembleia Nacional
Constituinte que aprovou uma nova Constituição Federal, em 1988, onde os direitos
humanos receberam destaque na Carta Constitucional, tornando-se “cláusulas pétreas”
(não podem ser alteradas por emenda constitucional) e onde a “Prevalência dos Direitos

4
Na América Latina, líderes católicos tiveram papel central na crítica e oposição às ditaduras, em muitos
casos sacrificando a própria vida. Houve, por certo, nuances desse papel em diferentes países, mas no
caso do Brasil a Igreja Católica, incluindo sua ala mais conservadora, atuou para proteger pessoas
perseguidas, inclusive de outros países do continente, especialmente após a edição do AI 5, em 1968.
5
A Lei de Anistia de 1979 permitiu o retorno de exilados, como L. Brizola, M. Arraes, entre outros.
6
Salvo em dois casos, ainda que por razões comerciais, dentro do pragmatismo responsável de Geisel:
reconhecimento do princípio da autodeterminação dos povos na descolonização da África; apoio aos
palestinos contra Israel (Resolução 3379 da AG da ONU, em 1975, equiparando o sionismo ao racismo).
7
Recordando: Tancredo Neves foi eleito presidente civil pelo Congresso, em 1984, mas faleceu antes de
tomar posse, assumindo a presidência seu vice, José Sarney, em 1985.

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Humanos” torna-se princípio pelo qual o Brasil deve reger-se nas suas relações
internacionais, segundo o artigo 4º da Carta. Daí em diante, a PEB-DH passa a firmar-se
sobretudo nos foros multilaterais, tanto no Sistema ONU quanto no Sistema
Interamericano (OEA). No período de Collor de Mello (1990-1992)8 e Itamar Franco (1992-
1994) a PEB-DH seguiu a trajetória de aderir a tratados e convenções de direitos
humanos, com destaque para a participação do Brasil na Conferência Mundial de Direitos
Humanos, em Viena (1993), quando a diplomacia brasileira assume papel de honest
broker (interlocutor imparcial), realizando a mediação entre países do Norte e do Sul. Com
o governo de FHC (1995-2002), a PEB-DH atua na governança global e pela adesão a
regimes globais e regionais, amparada em uma Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência, com abertura e diálogo com a sociedade civil e as organizações não-
governamentais. Em 1998, o país reconhece a competência da Corte Interamericana de
Direitos Humanos e participa da criação do Tribunal Penal Internacional. Atuando na
Conferência de Durban contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas
Correlatas de Intolerância, em 2001, o Brasil teve posição progressista, não apenas no
combate ao racismo9, mas em apoio a direitos LGBTI. Atuação importante também se deu
no campo da saúde global nas políticas de prevenção e combate ao HIV/AIDS (o Brasil
teve papel central na aprovação pela OMC de licença compulsória para produzir
medicamentos genéricos para esta doença) e nas políticas antitabaco. Gesto importante
da PEB-DH no final do período FHC foi a formulação de convite aberto a todos os
relatores de direitos humanos para visitar o país, elevando a confiabilidade internacional
nesse campo. No governo Lula (2003-2010), os direitos humanos ganharam novo
patamar dentro da estrutura do governo federal, com as secretarias para a mulher e para
a igualdade racial com status ministerial, além da criação de vários conselhos nacionais
com participação da sociedade civil e de movimentos sociais. A participação social se
estendeu também para as Cúpulas Sociais do Mercosul, onde se avançou no desenho de
uma cidadania para os países do bloco. As políticas sociais de combate à pobreza, os
programas Fome Zero e Bolsa Família causaram grande impacto positivo no país, com

8
Fernando Collor de Mello foi destituído por um processo de impeachment, em setembro de 1992, sendo
substituído por seu vice, Itamar Franco.
9
O combate ao racismo tornou-se outra frente importante da PEB-DH no âmbito da recomposição da
imagem do país, uma vez que o Brasil foi o último da América Latina a abolir a escravidão e segue
enfrentando grandes dificuldades com o racismo estrutural e resistências em garantir e implementar a
igualdade racial em todas as dimensões dos direitos humanos.

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enormes reflexos internacionais. Análises recentes consideram que a PEB-DH de Lula


logrou traduzir esse enfrentamento das desigualdades socioeconômicas internas em
pautas da PEB-DH10. O governo de Dilma Rousseff (2011-2016) teve seu início marcado
por um conflito com a Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso da Usina Belo
Monte, envolvendo populações indígenas e comunidades locais. Ao mesmo tempo,
adotou posição mais assertiva em relação a violação sistemática de direitos humanos em
debates e votações multilaterais. Assumiu protagonismo ao lançar o conceito de
“responsabilidade ao proteger”, como crítica à “responsabilidade de proteger”, que
embasou resolução do Conselho de Segurança para intervir na Líbia acarretando a
deposição e morte de Kadafi. Nos governos Lula e Dilma a PEB-DH ganhou dimensão de
cooperação Sul-Sul, de apoio a países da América Latina e do Continente Africano, com
destaque para programas de combate à fome, segurança alimentar, educação e saúde,
entre outros.

3. A relação entre a PEB-DH e o plano doméstico

3.1. A PEB-DH e o “efeito bumerangue”: Programas Nacionais de


Direitos Humanos, ações afirmativas e a agenda da PEB

A ideia do “efeito bumerangue” foi elaborada pelas pesquisadoras M. Keck e K.


Sikkink. Por meio de ativismo transnacional nos fóruns globais pode-se pressionar por
mudanças internas nos países, quando há oposição ou resistência a certas políticas e
reconhecimento de direitos. Isso certamente aplicou-se ao Brasil – com a anuência ou até
mesmo ação do Itamaraty – em temas sensíveis como ações afirmativas, políticas de
gênero e direitos LGBTI. Muitas dessas políticas não seriam aprovadas pelo Congresso
Nacional – dada a oposição da bancada religiosa – mas acabam sendo implementadas
pelo país via compromissos internacionais. Num patamar mais abrangente, uma das
consequências domésticas dos compromissos assumidos pelo Brasil em Viena/1993, foi a
elaboração de Programas Nacionais de Direitos Humanos (PNDH) para implementar
gradativamente e progressivamente os compromissos assumidos naquela conferência

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Ver Farias & Lopes. As assimetrias internacionais e as desigualdades domésticas nas políticas externas
de FHC e de Lula, 2020.

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perante o regime internacional de direitos humanos. Foram elaborados três Planos


Nacionais: dois no governo FHC (1996, 2002) e um no governo Lula (2009). Esses planos
dialogam diretamente com o regime internacional de direitos humanos e constituem a
base para a PEB-DH em diversas áreas temáticas.

3.2. A Comissão da Verdade tardia e a “excepcionalidade”


brasileira

Tornou-se parte dos processos de transição entre regimes autoritários e


democracias a criação de mecanismos de justiça transicional, que variam muito de país a
país, mas que contemplam no mínimo uma comissão da verdade11, mas podem incluir
tribunais para julgamento de crimes realizados num período de exceção. O Brasil foi o
único país da América Latina que não adotou a justiça transicional após a ditadura, nem
realizou reparações às vítimas nos anos seguintes12. Somente no governo de FHC, com a
adesão plena da PEB-DH aos regimes internacional e regional de direitos humanos, foi
criada a Comissão de Anistia para reparações às vítimas, em 2001. E foi somente no
governo de Dilma Rousseff, que a Comissão da Verdade foi criada e apresentou seu
relatório oficial em 2014, vinte anos após o fim do regime militar. Essa “excepcionalidade”
brasileira é explicada e justificada por diversos políticos, especialistas e teóricos
brasileiros, à esquerda e à direita do espectro político como parte da cultura e da
identidade brasileiras, alguns ainda aduzem que a ditadura no Brasil foi mais branda,
“ditabranda”. Trata-se, no entanto, de uma aberração política, social e jurídica que o Brasil
tenha tardado duas décadas para fazer o registro oficial das violações da ditadura e que
ninguém tenha sido julgado e punido por crimes contra a humanidade, que são
imprescritíveis no direito internacional. Nesse sentido, existem duas condenações contra o
Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos: Caso Araguaia (2010) e Caso

11
Comissões da verdade são entidades formadas pelo Estado (excepcionalmente por uma organização
internacional) com membros da sociedade civil e especialistas, com mandato e independência, para
investigar e reunir fatos e provas, ouvindo entidades de direitos humanos e vítimas, além dos agentes do
regime, para compor um relatório sobre um período em que houve graves violações de direitos humanos, e
apresentar seus resultados ao país a fim de possibilitar outras ações, incluindo reparações às vítimas e o
julgamento de violadores de direitos humanos.
12
O Relatório Brasil: Nunca Mais (Rio de Janeiro: Vozes, 1985), organizado pelo Cardeal D. Paulo Evaristo
Arns, o Reverendo Presbiteriano Jaime Wright e o Rabino Henry Sobel, foi o único documento (não oficial)
produzido sobre os crimes cometidos pela ditadura contra os direitos humanos no Brasil até a publicação do
Relatório da Comissão da Verdade, em 2014.

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Vladimir Herzog (2018), cujas sentenças seguem sendo descumpridas em relação à


investigação, julgamento e punição dos culpados em crimes praticados por agentes da
ditadura13. Cabe lembrar que foi a detenção de A. Pinochet, em Londres, em 1998, que
mostrou ao mundo que ninguém poderia ficar isento de responder por crimes contra os
direitos humanos, mesmo gozando de imunidade diplomática. Embora tenha escapado de
um julgamento internacional, o ditador chileno foi investigado e processado e só não foi
preso porque faleceu no hospital. Porém, Manuel Contreras, o temido e poderoso chefe
da DINA, que coordenou a Operação Condor, foi julgado e preso, além de outros oficiais
do regime chileno. Na Argentina, líderes políticos e o ex-presidente Jorge Videla foram
julgados e presos e até hoje há processos contra agentes da ditadura tramitando na
justiça argentina. Esse é um tema em que a PEB-DH não pode contribuir.

4. Migrações e refúgio na PEB pós-redemocratização


O Brasil é visto, e se autopercebe, como país de imigração. Com efeito, a formação
do povo brasileiro se beneficiou de diversas ondas migratórias, do período colonial ao
século XXI. No que diz respeito à migração forçada (que inclui as pessoas refugiadas), a
PEB-DH pós-democratização tem trilhado um caminho diferenciado e reconhecido pela
ONU como positivo e cooperativo. O país foi um dos primeiros a assinar a Convenção de
Genebra de 1951 sobre o Estatuto dos Refugiados. Posteriormente aderiu ao Protocolo
de 1967, que levantou as reservas temporal e geográfica da definição da pessoa
refugiada. Em 1997, aprovou a lei brasileira de refugiados, que inclui da definição
ampliada de refúgio14, e é considerada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados (ACNUR) uma lei avançada (principalmente por garantir a mobilidade interna
dessas pessoas e o direito ao trabalho). O país mantém política de fronteiras abertas e
acolhe pessoas refugiadas de mais 80 países. Historicamente tem recebido baixo número
de migrantes forçados, mas a realidade mudou com a chegada de haitianos, desde 2010
e de venezuelanos, desde 2016, aumentando o número de migrantes forçados, criando
novas demandas humanitárias para o país nesse campo. O reconhecimento prima facie

13
Há diversas pesquisas e análises que apontam a impunidade dos crimes de agentes da ditadura como
razão principal a justificar abusos policiais cometidos na atualidade, incluindo violência, tortura e execuções
sumárias, sobretudo de pessoas negras e pobres.
14
A definição ampliada de refúgio agrega a violação maciça de direitos humanos como fundamento para
reconhecer a condição de refúgio e foi incluída na Declaração de Cartagena de 1984.

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da condição de refúgio de venezuelanos pelo CONARE, em 2019, é visto como avanço do


Direito Internacional dos Refugiados na região15.

5. O período da “desconstrução” da PEB-DH

5.1. Regressividade na agenda da PEB-DH a partir de Temer


O golpe parlamentar contra a Presidenta Dilma Rousseff do cargo, por si só, já
inaugura a desconstrução da PEB-DH do governo de Michel Temer (2016-2018). A
batalha das narrativas (golpe v. impeachment) foi levada pelo Itamaraty aos foros
internacionais para explicar que o ato cumpriu com todos os ritos legais, mas a narrativa
não prevaleceu diante da imagem disseminada do golpe. As mudanças internas pautadas
por políticas ultraliberais que redundaram em PECs restritivas de direitos16, transformaram
o governo Temer num período de transição de um regime de respeito aos direitos
humanos a um regime de regressividade interna crescente nesse campo, embora tenha
se mantido dentro do cânone retórico da PEB-DH.

5.2. O fim da PEB-DH no governo Bolsonaro


A PEB de J. Bolsonaro (2019-) já foi classificada como “diplomacia da ruptura”17,
“política externa de ultra-direita”18 e “política externa populista”19. A PEB-DH foi uma das
áreas mais atingidas pela guinada do governo Bolsonaro, por via de acelerada
desconstrução de um edifício diplomático de mais de 30 anos. Valores, princípios e
conceitos internacionalmente consolidados de direitos humanos, como “gênero”,
“orientação sexual”, “povos indígenas” são recusados pelo governo e vistos como parte de
um “marxismo cultural”, que estaria submetido a uma lógica de esquerda anti-Ocidental.
Essa ideologia reacionária, incensada por apoiadores religiosos (a bancada evangélica do
Congresso Nacional) atingiu a coluna dorsal da PEB-DH, dela pouco restando na

15
Há um forte componente geopolítico no tema da Venezuela para o governo de Bolsonaro, o que explica o
insulamento da política de refugiados do Brasil em relação às demais áreas de direitos humanos.
16
O Projeto de Emenda Constitucional que resultou na Emenda Constitucional do teto de gastos, para
atender uma política fiscal restritiva neoliberal, limitou os gastos sociais do Estado gerando um choque
negativo e impossibilitando investimentos em áreas chave de políticas sociais, como saúde e educação.
17
Matias Spektor, Diplomacia da ruptura, In: Democracia em risco? S. Paulo: Cia das Letras, 2019.
18
Gilberto M. A. Rodrigues. El Trump de los trópicos? Política exterior de ultra-derecha em Brasil. Análise
Carolina, Madrid, Fundación Carolina, Abril de 2019.
19
Guilherme Casarões, Diplomacia populista, Folha de S. Paulo, 22.04.2020.

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atualidade. A par disso, a política externa projeta valores e ideias e nesse âmbito
intangível está o de reparar problemas e percepções negativas do passado do país. O
caso da Alemanha pós-Segunda Guerra, da Argentina e do Chile pós-ditaduras e da
África do Sul pós-apartheid são exemplos de políticas externas de direitos humanos
“reparadoras”. Como visto, a PEB-DH pós-redemocratização iniciou esse movimento
constante e assertivo, cabendo recordar que o acerto de contas da ditadura nunca
ocorreu – ou ainda não se deu – para punir os algozes do regime. Isso ajuda a explicar –
como uma das peças do quebra-cabeça – a razão do governo Bolsonaro “desconstruir” a
PEB-DH. Sua identidade com o fascismo, sua negação da ditadura e defesa do uso da
violência estatal naquele período, explica – pelo menos em parte – a mudança drástica da
ação internacional do país nesse campo. Trata-se de projeto de desconstrução amparado
em desejo de reescrita e reinterpretação falaciosa da História, tal como está provada e
comprovada por vivências, relatos e documentos incontestáveis.

Referências Bibliográficas

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e as desigualdades domésticas nas políticas externas de FHC e de
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• KOMINISKI, M. V. Conselho de Direitos Humanos e a atuação do Brasil.


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