Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Sumário
2 de 14
O Brasil no mundo em transformação | Política Externa Brasileira e Direitos Humanos
Gilberto M. A. Rodrigues1
O campo dos Direitos Humanos é interdisciplinar e sua construção ocorre por meio
das contribuições e entrelaçamentos de várias áreas do conhecimento – Antropologia,
Ciência Política, Direito, Economia, Educação, Filosofia, História, Psicologia, Sociologia,
Relações Internacionais entre outras. Além disso, essa construção não se limita às
Ciências Humanas e Sociais, mas abrange as Artes – Artes Plásticas, Cinema, Literatura,
Música entre outras.
Portanto, Direitos Humanos é um campo complexo em sua concepção, formulação
e em suas várias interpretações. Historicamente, a temática dos Direitos Humanos evoca
diversos processos e momentos na história da humanidade, embora devamos reconhecer
que nossos referenciais sejam de uma História Ocidental ou de uma História vista pelo
olhar do Ocidente, majoritariamente eurocêntrica.
A partir desse referencial, incompleto, porém historicamente determinante, há uma
construção paulatina do que chamamos hoje direitos humanos. O habeas corpus na Carta
Magna inglesa, no século XIII; os discursos de Frei Bartolomeu de las Casas em favor dos
indígenas nas Américas, no século XVI; as Declarações de Direitos na Independência dos
EUA e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa, onde a
tríade liberdade-igualdade-fraternidade marca a erosão do Estado monárquico e a
ascensão da burguesia ao poder, no século XVIII. E, ainda, com a Revolução Industrial e
1
Gilberto M. A. Rodrigues, doutor em Ciências Sociais e graduado em Direito pela PUC-SP, é professor
do Programa de Pós-graduação e do Bacharelado em Relações Internacionais da Universidade Federal do
ABC (UFABC). Pesquisador Produtividade (DT) do CNPq. Membro do Observatório de Política Externa e
Inserção Internacional do Brasil (OPEB) e da Cátedra Sergio Vieira de Mello (ACNUR) da UFABC. Foi
pesquisador visitante na Universidade Duisburg-Essen, Alemanha (Capes-Print, 2019-2020), American
University, Washington, DC (2017), e Universidade de Notre Dame (Fulbright, 2010), nos EUA.
3 de 14
O Brasil no mundo em transformação | Política Externa Brasileira e Direitos Humanos
2
Parto da definição de política externa de Letícia Pinheiro: “(...) conjunto de ações e decisões de um
determinado ator, geralmente mas não necessariamente o Estado, em relação a outros Estados ou atores
externos – tais como organizações internacionais, corporações multinacionais ou atores transnacionais –
4 de 14
O Brasil no mundo em transformação | Política Externa Brasileira e Direitos Humanos
Não existe um método único, nem mais eficaz, para analisar a política externa de
direitos humanos de um país. A análise de discurso é um método usual, uma vez que a
projeção de interesses e valores ocorre nas falas de chefes de Estado e de governo e de
ministros das relações exteriores (na Assembleia Geral da ONU, por exemplo). Há o
método empírico de analisar o perfil das votações do país em foros multilaterais em temas
de direitos humanos. Além disso, pode-se analisar processos de tomada de decisão,
negociações internacionais, a participação do país em conferências, em órgãos de
organizações internacionais, inventariar a assinatura e a ratificação de tratados e
convenções de direitos humanos, os quais revelam o grau de adesão do país ao regime
global e ao regime regional de direitos humanos. Em relação às fontes primárias, a
análise de documentos reservados, quando estes são liberados ao público (a
desclassificação de documentos oficiais pode tardar 50 anos) é um recurso revelador. Um
cenário metodológico ideal seria aplicar e agregar todos os métodos para uma análise
abrangente. Contudo, na maior parte dos casos isso é inviável no tempo e no espaço e
diante da limitação de recursos.3
formulada a partir de oportunidades e demandas de natureza doméstica e/ou internacional”. Política Externa
Brasileira (1889-2002), Zahar, 2004, p. 7.
3
Neste texto, dada a limitação de espaço e o objetivo de síntese, trazemos elementos pontuais de
diferentes metodologias de análise, que julgamos relevantes para cada caso ou período analisado.
5 de 14
O Brasil no mundo em transformação | Política Externa Brasileira e Direitos Humanos
4
Na América Latina, líderes católicos tiveram papel central na crítica e oposição às ditaduras, em muitos
casos sacrificando a própria vida. Houve, por certo, nuances desse papel em diferentes países, mas no
caso do Brasil a Igreja Católica, incluindo sua ala mais conservadora, atuou para proteger pessoas
perseguidas, inclusive de outros países do continente, especialmente após a edição do AI 5, em 1968.
5
A Lei de Anistia de 1979 permitiu o retorno de exilados, como L. Brizola, M. Arraes, entre outros.
6
Salvo em dois casos, ainda que por razões comerciais, dentro do pragmatismo responsável de Geisel:
reconhecimento do princípio da autodeterminação dos povos na descolonização da África; apoio aos
palestinos contra Israel (Resolução 3379 da AG da ONU, em 1975, equiparando o sionismo ao racismo).
7
Recordando: Tancredo Neves foi eleito presidente civil pelo Congresso, em 1984, mas faleceu antes de
tomar posse, assumindo a presidência seu vice, José Sarney, em 1985.
6 de 14
O Brasil no mundo em transformação | Política Externa Brasileira e Direitos Humanos
Humanos” torna-se princípio pelo qual o Brasil deve reger-se nas suas relações
internacionais, segundo o artigo 4º da Carta. Daí em diante, a PEB-DH passa a firmar-se
sobretudo nos foros multilaterais, tanto no Sistema ONU quanto no Sistema
Interamericano (OEA). No período de Collor de Mello (1990-1992)8 e Itamar Franco (1992-
1994) a PEB-DH seguiu a trajetória de aderir a tratados e convenções de direitos
humanos, com destaque para a participação do Brasil na Conferência Mundial de Direitos
Humanos, em Viena (1993), quando a diplomacia brasileira assume papel de honest
broker (interlocutor imparcial), realizando a mediação entre países do Norte e do Sul. Com
o governo de FHC (1995-2002), a PEB-DH atua na governança global e pela adesão a
regimes globais e regionais, amparada em uma Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência, com abertura e diálogo com a sociedade civil e as organizações não-
governamentais. Em 1998, o país reconhece a competência da Corte Interamericana de
Direitos Humanos e participa da criação do Tribunal Penal Internacional. Atuando na
Conferência de Durban contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas
Correlatas de Intolerância, em 2001, o Brasil teve posição progressista, não apenas no
combate ao racismo9, mas em apoio a direitos LGBTI. Atuação importante também se deu
no campo da saúde global nas políticas de prevenção e combate ao HIV/AIDS (o Brasil
teve papel central na aprovação pela OMC de licença compulsória para produzir
medicamentos genéricos para esta doença) e nas políticas antitabaco. Gesto importante
da PEB-DH no final do período FHC foi a formulação de convite aberto a todos os
relatores de direitos humanos para visitar o país, elevando a confiabilidade internacional
nesse campo. No governo Lula (2003-2010), os direitos humanos ganharam novo
patamar dentro da estrutura do governo federal, com as secretarias para a mulher e para
a igualdade racial com status ministerial, além da criação de vários conselhos nacionais
com participação da sociedade civil e de movimentos sociais. A participação social se
estendeu também para as Cúpulas Sociais do Mercosul, onde se avançou no desenho de
uma cidadania para os países do bloco. As políticas sociais de combate à pobreza, os
programas Fome Zero e Bolsa Família causaram grande impacto positivo no país, com
8
Fernando Collor de Mello foi destituído por um processo de impeachment, em setembro de 1992, sendo
substituído por seu vice, Itamar Franco.
9
O combate ao racismo tornou-se outra frente importante da PEB-DH no âmbito da recomposição da
imagem do país, uma vez que o Brasil foi o último da América Latina a abolir a escravidão e segue
enfrentando grandes dificuldades com o racismo estrutural e resistências em garantir e implementar a
igualdade racial em todas as dimensões dos direitos humanos.
7 de 14
O Brasil no mundo em transformação | Política Externa Brasileira e Direitos Humanos
10
Ver Farias & Lopes. As assimetrias internacionais e as desigualdades domésticas nas políticas externas
de FHC e de Lula, 2020.
8 de 14
O Brasil no mundo em transformação | Política Externa Brasileira e Direitos Humanos
11
Comissões da verdade são entidades formadas pelo Estado (excepcionalmente por uma organização
internacional) com membros da sociedade civil e especialistas, com mandato e independência, para
investigar e reunir fatos e provas, ouvindo entidades de direitos humanos e vítimas, além dos agentes do
regime, para compor um relatório sobre um período em que houve graves violações de direitos humanos, e
apresentar seus resultados ao país a fim de possibilitar outras ações, incluindo reparações às vítimas e o
julgamento de violadores de direitos humanos.
12
O Relatório Brasil: Nunca Mais (Rio de Janeiro: Vozes, 1985), organizado pelo Cardeal D. Paulo Evaristo
Arns, o Reverendo Presbiteriano Jaime Wright e o Rabino Henry Sobel, foi o único documento (não oficial)
produzido sobre os crimes cometidos pela ditadura contra os direitos humanos no Brasil até a publicação do
Relatório da Comissão da Verdade, em 2014.
9 de 14
O Brasil no mundo em transformação | Política Externa Brasileira e Direitos Humanos
13
Há diversas pesquisas e análises que apontam a impunidade dos crimes de agentes da ditadura como
razão principal a justificar abusos policiais cometidos na atualidade, incluindo violência, tortura e execuções
sumárias, sobretudo de pessoas negras e pobres.
14
A definição ampliada de refúgio agrega a violação maciça de direitos humanos como fundamento para
reconhecer a condição de refúgio e foi incluída na Declaração de Cartagena de 1984.
10 de 14
O Brasil no mundo em transformação | Política Externa Brasileira e Direitos Humanos
15
Há um forte componente geopolítico no tema da Venezuela para o governo de Bolsonaro, o que explica o
insulamento da política de refugiados do Brasil em relação às demais áreas de direitos humanos.
16
O Projeto de Emenda Constitucional que resultou na Emenda Constitucional do teto de gastos, para
atender uma política fiscal restritiva neoliberal, limitou os gastos sociais do Estado gerando um choque
negativo e impossibilitando investimentos em áreas chave de políticas sociais, como saúde e educação.
17
Matias Spektor, Diplomacia da ruptura, In: Democracia em risco? S. Paulo: Cia das Letras, 2019.
18
Gilberto M. A. Rodrigues. El Trump de los trópicos? Política exterior de ultra-derecha em Brasil. Análise
Carolina, Madrid, Fundación Carolina, Abril de 2019.
19
Guilherme Casarões, Diplomacia populista, Folha de S. Paulo, 22.04.2020.
11 de 14
O Brasil no mundo em transformação | Política Externa Brasileira e Direitos Humanos
atualidade. A par disso, a política externa projeta valores e ideias e nesse âmbito
intangível está o de reparar problemas e percepções negativas do passado do país. O
caso da Alemanha pós-Segunda Guerra, da Argentina e do Chile pós-ditaduras e da
África do Sul pós-apartheid são exemplos de políticas externas de direitos humanos
“reparadoras”. Como visto, a PEB-DH pós-redemocratização iniciou esse movimento
constante e assertivo, cabendo recordar que o acerto de contas da ditadura nunca
ocorreu – ou ainda não se deu – para punir os algozes do regime. Isso ajuda a explicar –
como uma das peças do quebra-cabeça – a razão do governo Bolsonaro “desconstruir” a
PEB-DH. Sua identidade com o fascismo, sua negação da ditadura e defesa do uso da
violência estatal naquele período, explica – pelo menos em parte – a mudança drástica da
ação internacional do país nesse campo. Trata-se de projeto de desconstrução amparado
em desejo de reescrita e reinterpretação falaciosa da História, tal como está provada e
comprovada por vivências, relatos e documentos incontestáveis.
Referências Bibliográficas
12 de 14
O Brasil no mundo em transformação | Política Externa Brasileira e Direitos Humanos
13 de 14
O Brasil no mundo em transformação | Política Externa Brasileira e Direitos Humanos
14 de 14