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Resumo
Considerações sobre a angústia é o artigo que trata do afeto que mais interessa à prática analítica:
a angústia, modo de ruptura e apropriação subjetiva. Além do mais, o sofrimento encobre algum
dizer. É acontecimento do Real e evoca descontinuidade temporal. A análise não é apenas
atenuante do sofrimento; ela possui efeitos de travessia. A angústia é uma via de acesso ao Real.
Não há relação sexual pelos diferentes modos como esta fracassa em existir. É disso que se trata
a angústia, a sexualidade humana.
faz com que a angústia seja um momento é recalcado são os insistentes significantes
de certeza. que amarram os afetos.
Portanto, Soler (2012, p. 56-57) diz Para Safouan (1989, p. 57), a angústia
que Lacan ([1954] 1998), no texto Res- é sinal de um perigo próximo à realização,
posta ao comentário de Jean Hippolite sobre que anuncia o possível desvelar da repre-
a “Verneinung” de Freud, descreve esse sentação recalcada, mas o neurótico a
caráter temporário ao qual chama de funil recusa, pois se trata do que há de legítimo,
temporal. Lacan, assim, observa que, no na medida em que a angústia é também o
caso da angústia, trata-se de um instante sinal da proximidade de um saber.
que faz corte no vetor do tempo mensurá- Lacan, em O seminário, livro 10: a
vel, no qual o tempo é detido. Além disso, angústia ([1962-1963] 2005, p. 62), nos
há uma posição de imobilidade, algo como diz que o neurótico se recusa a se dar à
petrificação motora. angústia. Assim, a análise consiste em
pelo menos ceder ao equivalente, pois
Qual dizer o sofrimento esconde? começa por ceder um pouco ao sintoma.
Freud ([1917] 1996, p. 151) afirma: E desse modo, a análise começa por uma
configuração dos sintomas, pois na medida
Nada vindo de fora penetrou em você; em que as demandas se esgotam até o fim,
uma parte da atividade da sua própria aparece a relação de castração.
mente foi tirada do seu conhecimento e Há aqueles sem solução. E aqueles
do comando da sua vontade. que, adaptados demais, dizem “tudo vai
bem”, se constituem num sintoma que sa-
Em outras palavras, tal parte não pode tisfaz, encerram as questões e permanecem
ser calada. de forma petrificada.
Nessa ruptura há um saber a ser Qual é o sentido?
despertado. O que antecede é como se A que se endereça o sofrimento?
expressaram o sexual, o inconsciente, a O que significa dizer que tudo vai
nostalgia do objeto perdido, e o modo bem?
como isso vai esculpir os embaraços com Qual é o impossível que pode irrom-
a vida, que inclui a morte. per?
Esse é o ponto a acentuar, a dimensão O que se pode dizer sobre a morte?
do ignorado, pois o modo como o sujeito São questões subjetivas expelidas do
se arranja é crucial a fim de despertar o Real, que afetam o sujeito.
interesse pelo inconsciente. A escrita de Philip Roth (2013, p.
Qual dizer o sofrimento esconde? 104) retrata o sentimento de colidir com a
Freud ([1926] 1996), no texto Inibi- proximidade do inesperado, do disruptivo;
ções, sintomas e ansiedade, faz a inversão além disso, suscita a ruptura com o que
de sua tese desenvolvida. Em um primeiro aliena, que o sofrimento pode desse modo
momento Freud pensou a angústia como desencapsular.
um efeito do recalque através da privação
pulsional, que o próprio recalque implica. [...] Um cara talhado certinho, como uma
Porém, elabora que a angústia não é um pilha de cartas de baralho. Nem de longe
efeito. A angústia é causa e está na origem, preparado para aquilo que iria se abater
pois é causa do recalque, está no princípio sobre ele. Como poderia, com toda a sua
de todo recalque, mas não está recalcada. bem calibrada bondade, ter imaginado
A angústia é algo de que o sujeito pa- que os riscos de viver de forma obediente
dece. Assim, não há afetos inconscientes. eram tão elevados? A obediência está
Os afetos estão à deriva. Além disso, o que contida na ideia de baixar os riscos. Uma
esposa linda. Uma casa linda. Cuida domesticador da angústia que, ao menor
dos negócios como um brinco. É assim sinal de que a angústia emergirá, coloca
que vivem os bem-sucedidos. São bons rápidas barreiras de contenção ao dar um
cidadãos. Sentem-se afortunados. Sen- nome que conceda um sentido imaginário
tem-se gratos. Deus está sorrindo lá de ao vivenciado pelo analisando. Assim, a
cima para eles. Existem problemas, eles angústia pode diminuir de forma quase
dão um jeito. E de repente tudo muda e imediatamente, porém ao mesmo tempo se
fica impossível. Nada está sorrindo lá de sufocará o que através dela se queria dizer.
cima para ninguém. E quem é que pode Quanto à pergunta se a angústia afe-
dar um jeito nisso? Ali estava alguém tará o analista, permanece como pergunta
despreparado para o caso de a vida ser neste artigo, visto que como pergunta
infeliz, muito menos para o impossível. pode preservar certa ressonância. A aná-
Mas quem é que está preparado para o lise é questão de dosagem da angústia, e
impossível que vai acontecer? Quem é isso se faz ao estar atento aos instantes do
que está preparado para a tragédia e para sujeito, bem como a expressão da intensi-
o absurdo do sofrimento? Ninguém. A dade das coisas.
tragédia do homem despreparado para Safouan (1989, p. 103) propõe que o
a tragédia – esta é a tragédia do homem analista seja algo mais do que o lugar no
comum. qual se recolhem significações, automatis-
mos, recalques e vicissitudes das sessões.
A angústia e a cura Ademais, importa que o analista seja capaz
Sobre a angústia, Firgermann (2012, p. 14) de um pouco de logística, de retórica, de
diz esperar que os psicanalistas fiquem ins- dramaturgia e até mesmo de diplomacia,
tigados e se interessem pelo valor de sinal escreve Safouan. Por exemplo, se o anali-
que ela porta, pois o ímpeto da cura é ca- sante aborda algo tão profundo que ir mais
paz de escamotear não somente a angústia longe, chegaria a uma angústia insuportá-
mas também o que ela indica de radical- vel. Nesse momento, é preciso adaptar a
mente subversivo e insubmisso do sujeito dose e esperar o tempo subjetivo do sujeito.
enquanto possibilidade de criação. Assim
sendo, a angústia é também capaz de ope- Sobre o objeto a
rar como ato de invenção, além de força Para dizer da angústia, não se pode deixar
que coloca em marcha o sujeito na análise. de dizer do objeto a articulado por Lacan.
Freud persiste em diversos momentos Trata-se de um resto de operação signifi-
que a cura em psicanálise vem por acrés- cante, que resiste ao sentido e às identi-
cimo. A cura é um efeito do processo da ficações com o outro. Algo que constitui,
análise e não pode ser antecipada como o mas que ao mesmo tempo escapa. Alguma
objetivo maior. Nesse sentido, não adianta coisa subtraída originalmente, uma preca-
desangustiar os homens. riedade que condiciona os movimentos de
O psicanalista não se finca na busca apetência e de alteridade.
da cura, que constitui um obstáculo à aná- Portanto, é o objeto a que condiciona
lise, nos diz Jorge (2017, p. 66). O alcance o desejo. E isso o faz pertencer a uma an-
terapêutico existe, mas não como um ob- terioridade em relação a todos os objetos
jetivo em si mesmo. Além do mais, qual é do mundo. A anterioridade lógica do
o destino daquilo que resta de incurável? significante remete ao gozo originário, que
A angústia afeta o sujeito. Afetará o só existe na medida em que o significante
analista? lhe fornece alguma consistência.
Para Harari (1997, p. 15), o analista O objeto a é anterior ao sujeito, visto
não pode ser um tipo de indutor tampouco que ocorre da relação com o outro, isto é,
Reverso • Belo Horizonte • ano 40 • n. 76 • p. 39 – 46 • dez. 2018 41
Considerações sobre a angústia: acontecimento do Real
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