Você está na página 1de 8

Scheherazade Paes de Abreu

Considerações sobre a angústia:


acontecimento do Real
Scheherazade Paes de Abreu

Resumo
Considerações sobre a angústia é o artigo que trata do afeto que mais interessa à prática analítica:
a angústia, modo de ruptura e apropriação subjetiva. Além do mais, o sofrimento encobre algum
dizer. É acontecimento do Real e evoca descontinuidade temporal. A análise não é apenas
atenuante do sofrimento; ela possui efeitos de travessia. A angústia é uma via de acesso ao Real.
Não há relação sexual pelos diferentes modos como esta fracassa em existir. É disso que se trata
a angústia, a sexualidade humana.

Palavras-chave: Angústia, Real, Vazio, Destituição subjetiva, Objeto a, Das Ding.

Deveria ser óbvio que


o discurso analítico não consiste, de jeito algum,
em fazer com que aquilo que não esteja bem vá embora,
em suprimir o que não esteja indo bem no discurso comum.
Lacan

Acontecimento do Real dade com o tempo e gosto pelo insólito. O


Este artigo é sobre a angústia, o afeto que tempo é subjetivo. E uma vez submetidos,
mais interessa à prática analítica. É tam- esses instantes, mesmo que portem um
bém um modo de investigar um trajeto ar passageiro, carregam consigo o gosto
já trilhado por muitos. Assim, em cada amargo de sutil eternidade e o tormento
vestígio tomado desses trajetos para além da certeza.
da escrita, é preciso transpor na própria O sujeito está assombrado pela crença
escrita alguma falta de sossego. É preciso de que isso permanecerá, desnorteado em
percorrer algum desejo. relação aos começos e sem esperança em
O que é a angústia? Em geral, apare- relação aos tempos de cessar. Cada um,
ce nos dicionários, como sofrimento nos já habitado por um imaginário que con-
desabafos entre amigos, nas conversas que templa a angústia, tem as cenas e fora de
beiram os ouvidos, nas relações de traba- cenas, que em si fizeram morada, desde
lho e no seio familiar, nas coisas estranhas a mais tenra existência de vida, essa an-
que irrompem a incomodar. terioridade que é de origem, que sempre
Algo de muita aflição e dor, a angústia esteve lá, em sua fase e sua temporalidade
é acompanhada de opressão, pânico, pri- itinerante.
vação de palavras, falta de ar, depressão, Nesse sentido, por menos que se esteja
sentimento de medo, tormento, temor, de- submetido à angústia, sabe-se que esses
sassossego, sufoco para mais que tristeza. instantes têm nuances de eternidade. A
Com isso, a angústia pode indicar angústia dispõe da especificidade de ser
também algum despertar? um acontecimento, e do Real, Lacan
A angústia se passa em acontecimen- escreve “acontecimento”. E isso evoca
tos, através de seus traços de descontinui- um traço de descontinuidade temporal,
Reverso • Belo Horizonte • ano 40 • n. 76 • p. 39 – 46 • dez. 2018 39
Considerações sobre a angústia: acontecimento do Real

faz com que a angústia seja um momento é recalcado são os insistentes significantes
de certeza. que amarram os afetos.
Portanto, Soler (2012, p. 56-57) diz Para Safouan (1989, p. 57), a angústia
que Lacan ([1954] 1998), no texto Res- é sinal de um perigo próximo à realização,
posta ao comentário de Jean Hippolite sobre que anuncia o possível desvelar da repre-
a “Verneinung” de Freud, descreve esse sentação recalcada, mas o neurótico a
caráter temporário ao qual chama de funil recusa, pois se trata do que há de legítimo,
temporal. Lacan, assim, observa que, no na medida em que a angústia é também o
caso da angústia, trata-se de um instante sinal da proximidade de um saber.
que faz corte no vetor do tempo mensurá- Lacan, em O seminário, livro 10: a
vel, no qual o tempo é detido. Além disso, angústia ([1962-1963] 2005, p. 62), nos
há uma posição de imobilidade, algo como diz que o neurótico se recusa a se dar à
petrificação motora. angústia. Assim, a análise consiste em
pelo menos ceder ao equivalente, pois
Qual dizer o sofrimento esconde? começa por ceder um pouco ao sintoma.
Freud ([1917] 1996, p. 151) afirma: E desse modo, a análise começa por uma
configuração dos sintomas, pois na medida
Nada vindo de fora penetrou em você; em que as demandas se esgotam até o fim,
uma parte da atividade da sua própria aparece a relação de castração.
mente foi tirada do seu conhecimento e Há aqueles sem solução. E aqueles
do comando da sua vontade. que, adaptados demais, dizem “tudo vai
bem”, se constituem num sintoma que sa-
Em outras palavras, tal parte não pode tisfaz, encerram as questões e permanecem
ser calada. de forma petrificada.
Nessa ruptura há um saber a ser Qual é o sentido?
despertado. O que antecede é como se A que se endereça o sofrimento?
expressaram o sexual, o inconsciente, a O que significa dizer que tudo vai
nostalgia do objeto perdido, e o modo bem?
como isso vai esculpir os embaraços com Qual é o impossível que pode irrom-
a vida, que inclui a morte. per?
Esse é o ponto a acentuar, a dimensão O que se pode dizer sobre a morte?
do ignorado, pois o modo como o sujeito São questões subjetivas expelidas do
se arranja é crucial a fim de despertar o Real, que afetam o sujeito.
interesse pelo inconsciente. A escrita de Philip Roth (2013, p.
Qual dizer o sofrimento esconde? 104) retrata o sentimento de colidir com a
Freud ([1926] 1996), no texto Inibi- proximidade do inesperado, do disruptivo;
ções, sintomas e ansiedade, faz a inversão além disso, suscita a ruptura com o que
de sua tese desenvolvida. Em um primeiro aliena, que o sofrimento pode desse modo
momento Freud pensou a angústia como desencapsular.
um efeito do recalque através da privação
pulsional, que o próprio recalque implica. [...] Um cara talhado certinho, como uma
Porém, elabora que a angústia não é um pilha de cartas de baralho. Nem de longe
efeito. A angústia é causa e está na origem, preparado para aquilo que iria se abater
pois é causa do recalque, está no princípio sobre ele. Como poderia, com toda a sua
de todo recalque, mas não está recalcada. bem calibrada bondade, ter imaginado
A angústia é algo de que o sujeito pa- que os riscos de viver de forma obediente
dece. Assim, não há afetos inconscientes. eram tão elevados? A obediência está
Os afetos estão à deriva. Além disso, o que contida na ideia de baixar os riscos. Uma

40 Reverso • Belo Horizonte • ano 40 • n. 76 • p. 39 – 46 • dez. 2018


Scheherazade Paes de Abreu

esposa linda. Uma casa linda. Cuida domesticador da angústia que, ao menor
dos negócios como um brinco. É assim sinal de que a angústia emergirá, coloca
que vivem os bem-sucedidos. São bons rápidas barreiras de contenção ao dar um
cidadãos. Sentem-se afortunados. Sen- nome que conceda um sentido imaginário
tem-se gratos. Deus está sorrindo lá de ao vivenciado pelo analisando. Assim, a
cima para eles. Existem problemas, eles angústia pode diminuir de forma quase
dão um jeito. E de repente tudo muda e imediatamente, porém ao mesmo tempo se
fica impossível. Nada está sorrindo lá de sufocará o que através dela se queria dizer.
cima para ninguém. E quem é que pode Quanto à pergunta se a angústia afe-
dar um jeito nisso? Ali estava alguém tará o analista, permanece como pergunta
despreparado para o caso de a vida ser neste artigo, visto que como pergunta
infeliz, muito menos para o impossível. pode preservar certa ressonância. A aná-
Mas quem é que está preparado para o lise é questão de dosagem da angústia, e
impossível que vai acontecer? Quem é isso se faz ao estar atento aos instantes do
que está preparado para a tragédia e para sujeito, bem como a expressão da intensi-
o absurdo do sofrimento? Ninguém. A dade das coisas.
tragédia do homem despreparado para Safouan (1989, p. 103) propõe que o
a tragédia – esta é a tragédia do homem analista seja algo mais do que o lugar no
comum. qual se recolhem significações, automatis-
mos, recalques e vicissitudes das sessões.
A angústia e a cura Ademais, importa que o analista seja capaz
Sobre a angústia, Firgermann (2012, p. 14) de um pouco de logística, de retórica, de
diz esperar que os psicanalistas fiquem ins- dramaturgia e até mesmo de diplomacia,
tigados e se interessem pelo valor de sinal escreve Safouan. Por exemplo, se o anali-
que ela porta, pois o ímpeto da cura é ca- sante aborda algo tão profundo que ir mais
paz de escamotear não somente a angústia longe, chegaria a uma angústia insuportá-
mas também o que ela indica de radical- vel. Nesse momento, é preciso adaptar a
mente subversivo e insubmisso do sujeito dose e esperar o tempo subjetivo do sujeito.
enquanto possibilidade de criação. Assim
sendo, a angústia é também capaz de ope- Sobre o objeto a
rar como ato de invenção, além de força Para dizer da angústia, não se pode deixar
que coloca em marcha o sujeito na análise. de dizer do objeto a articulado por Lacan.
Freud persiste em diversos momentos Trata-se de um resto de operação signifi-
que a cura em psicanálise vem por acrés- cante, que resiste ao sentido e às identi-
cimo. A cura é um efeito do processo da ficações com o outro. Algo que constitui,
análise e não pode ser antecipada como o mas que ao mesmo tempo escapa. Alguma
objetivo maior. Nesse sentido, não adianta coisa subtraída originalmente, uma preca-
desangustiar os homens. riedade que condiciona os movimentos de
O psicanalista não se finca na busca apetência e de alteridade.
da cura, que constitui um obstáculo à aná- Portanto, é o objeto a que condiciona
lise, nos diz Jorge (2017, p. 66). O alcance o desejo. E isso o faz pertencer a uma an-
terapêutico existe, mas não como um ob- terioridade em relação a todos os objetos
jetivo em si mesmo. Além do mais, qual é do mundo. A anterioridade lógica do
o destino daquilo que resta de incurável? significante remete ao gozo originário, que
A angústia afeta o sujeito. Afetará o só existe na medida em que o significante
analista? lhe fornece alguma consistência.
Para Harari (1997, p. 15), o analista O objeto a é anterior ao sujeito, visto
não pode ser um tipo de indutor tampouco que ocorre da relação com o outro, isto é,
Reverso • Belo Horizonte • ano 40 • n. 76 • p. 39 – 46 • dez. 2018 41
Considerações sobre a angústia: acontecimento do Real

da relação com os efeitos da linguagem. É diz do despontar da falta constituinte,


preciso que a seja anterior para estar no mas anuncia o perigo de que tal falta,
lugar de causa. Se o objeto é causa de de- advenha a faltar.
sejo, Soler (2012, p. 25) nos diz que Lacan Lacan nos diz que a angústia é não
faz o possível para marcar a distância entre sinal da falta, mas a falta de apoio dada
objeto como causa de desejo e objeto que pela falta.
serve para fixar a angústia. O vaso é a metáfora do envelope
O desejo procede da falta estrutural, utilizada por Lacan. É uma criação signi-
em que o objeto primordial foi perdido, ficante que circunscreve o vazio interior
desde sempre e para sempre para o sujeito, da Coisa, que anteriormente não existia.
pois o significante atribui retroativamente Isso nos diz também que o real é apreen-
a significação de tal perda que ele mesmo dido pela linguagem, ou seja, tecido pelo
impõe. A falta não é consecutiva à perda simbólico. Dizer que a imagem envelopa
de um objeto real, que teria sido fonte o objeto significa dizer que a imagem o
de satisfação. É o objeto encontrado que oculta e o encobre assim como o objeto
toma o lugar dessa falta sem, com isso, for- pode maquiar a falta.
necer ao sujeito a satisfação ideal esperada Aqui há uma pausa durante a escrita
que a nostalgia do objeto primeiro perdido dessas palavras, pois se encontram por
na origem forneceria. perto dois vasos que estavam imobilizados
Nota-se que a Coisa [das Ding] que na estante, destinados a ser peças de mu-
habita o sujeito é aquilo que vem no lugar seu. Na origem, um deles é de estanho e
do objeto primeiro perdido de sempre, outro é de porcelana. Não houve escolha,
que o sujeito de desejo procura encontrar, e não será possível deixar de ser daquela
seja por coordenadas de prazer, seja por matéria bruta de que foram feitos – esta-
coordenadas de desprazer. São os traços nho e porcelana, pois estarão para sempre
mnêmicos, os significantes, assim chama- marcados no traço.
dos por Lacan. O que se faz a partir disso já deter-
Ocorre que no lugar da coisa inaces- minado?
sível, apenas se encontram objetos subs- O que se faz da mesmice, que tolhi-
titutos, que são objetos da fantasia e que da de tombar, se procura de todo modo
mascaram a dimensão da Coisa e o vazio adaptar?
interior. A Coisa é ao mesmo tempo vazio Os vasos estavam desabitados no in-
gerado pela linguagem e que, pelo fato de terior. O de estanho, um pouco mais alto,
ser vazio, é algo como vontade de obter, de traço resistente e sóbrio; o de porcelana,
como vontade de gozo, escreve Valas mais redondo, de traço frágil e vestido de
(2001, p. 30). flores coloridas pintadas à mão. Isso lhes
Na angústia algo aparece onde nada uma aparência de consistência.
deveria aparecer. E aparece para indicar Por fora desses envoltórios conserva-
que é certo que permaneça vazio. E o que dos, a ação do tempo de vida, a poeira e
aparece não é o próprio objeto a, mas a o efeito de ser esquecidos na estante de
iminência de sua demasiada presença, da livros, e isso é coisa que pode corroer vaga-
resposta possível, pois tal objeto é despro- rosamente o brilho. No espaço de dentro,
vido de imagem e de significante. a silenciosa presença do vazio e da pulsão
Quando o objeto aparece no campo de morte; além de escasso sentido e fina
do percebido visual, trata-se do envelope camada de poeira suspensa na ausência
que o emoldura, ou seja, um investi- de traços.
mento é feito. A angústia surge quando O vazio é, assim, o fator habilitante
a própria falta vem a faltar. Assim, não de qualquer presença.
42 Reverso • Belo Horizonte • ano 40 • n. 76 • p. 39 – 46 • dez. 2018
Scheherazade Paes de Abreu

O simbólico, o imaginário e o Real Por isso, há lacunas entre o sujeito, o


Soler (1989, p. 17-20) escreve que, se, por próprio retrato e a própria imagem, pois
um lado, o simbólico é o que permite o há um furo no imaginário, e algo persiste
sentido e responde à questão “o que é que em delatar, o que tenta inutilmente se
isso quer dizer?”, por outro lado, o Real é esconder: esse ponto que não se vê.
aquilo que resiste a se reduzir ao campo Esse grande Outro do qual se fala é
simbólico, ou seja, o ejetado do sentido, o lugar do significante, é um lugar não
aquilo de que se padece, que desperta. somente incompleto e não-todo, pois lhe
No entanto, é impossível resguardar falta um significante. É inconsistente,
todo o Real. A associação livre fabrica pois é sempre possível instituir um outro
cadeias de significantes que são cadeias através da demanda, por isso, a angústia
de sentido; porém, o Real como obstá- não é sem objeto – a Coisa – mas ela é
culo à simbolização faz rupturas. Desse sem outro.
modo, temos um movimento, que vai do O sentido é imaginário, está ligado
Real em direção ao simbólico e procura ao eu e à autoimagem de quem se é e do
reencontrar um Real que coloque fim ao que se é. Na análise, as identificações são
infinito possível. A análise envolve certo denunciadas e perdem a potência; entre-
escoamento, lento e constante, do Real tanto, denunciar é recusar através de “não
ao simbólico. sou isso”. Desse modo, o sujeito começa
Segundo Jorge (2017, p. 210), o ima- por dizer tudo o que não se é. Isso vai do
ginário é de sentido unívoco, por isso pode consentimento ao protesto.
se compactar e se cristalizar. O Real, Lacan É possível apreender naquelas coisas
o considera o estritamente impensável, de das quais se gosta e naquelas coisas das
não sentido, ou seja, o Real é impossível quais se desgosta. Assim, há um infinito
de ser simbolizado, além de possuir a de posições possíveis. São muitos sentidos,
característica da irreversibilidade, pois é porém o analista não propõe novos signi-
pegado ao tempo e à morte. ficados, mas faz o resgate do sem sentido.
O simbólico é reversível, ambíguo e Assim, ele se volta para articular o singular
de duplo sentido. O sentido cristalizado entre o sujeito e significante.
no imaginário pode ser barrado pelo Real, O que aparece na angústia é vazio de
além de se reorganizar pelo simbólico, que significação, e não se sabe o que isso quer
empresta plasticidade a outras possibilida- dizer, mas não há dúvida, há esse efeito de
des. Portanto, a inibição (sentido unívoco) certeza de que isso quer dizer alguma coisa.
é a invasão do imaginário no simbólico, No entanto, nos diz Soler (2012), é
o sintoma é a invasão do simbólico no preciso ainda uma condição suplementar,
Real, e a invasão do Real no imaginário que a cadeia significante na qual emerge
é a angústia. o vazio seja a cadeia do ser, a cadeia em
que se apreende, em que se busca e onde
Destituição subjetiva se interroga o lugar da falta no Outro.
Em que ponto está à angústia? Está onde A destituição subjetiva é o momento
não há espelho. O sujeito se angustia sem em que o sujeito é separado do objeto que
saber diante de que ou de quem, sem o instituiu, está sobre o plano da questão
saber a razão pela qual padece. O acesso do ser: que sou eu em meu desejo e em
à imagem própria passa não somente pela meu ser? Qual é a minha verdade?
imagem real, mas também por intermédio São questões de uma vã tentativa em
do espelho do outro. E isso inclui os signi- guarnecer de sentidos a tolice de existir.
ficados. E isso faz com que o espelho seja Porém, não se é somente sujeito ‘falta a
emissor de enunciados. ter’, castração; é objeto. Esse é o ponto
Reverso • Belo Horizonte • ano 40 • n. 76 • p. 39 – 46 • dez. 2018 43
Considerações sobre a angústia: acontecimento do Real

de destituição. O sujeito se apreende travessia. Tal travessia só finda, nos diz


como objeto, e o desejo como incógnita Dunker (2016, p. 239), no momento em
fica suspenso. que a angústia Real se torna companheira
Lacan situará a angústia não mais de viagem. Na forma cristalina de tantas
encadeada ao objeto, não mais em relação angústias e no pior das vivências, há algo
ao desejo, mas diz que é um acontecimento que precisa ser reconhecido, mas não
do Real. eliminado.
Nesse sentido, o sujeito só é sujeito
quando for capaz de experimentar, explica Ao final, a angústia
Safatle (2017 p. 80) em si mesmo algo que é uma via de acesso ao Real
o ultrapassa, algo que o faz não ser idêntico Portanto, Lacan (2005, p. 366) nos diz que
a si mesmo. Trata-se da experiência de certamente convém que o analista seja
desidentidade, logo capaz de adoecer e da aquele que minimamente, e não importa
mesma forma capaz de curar. Por sinal, são por qual borda, tenha feito o desejo entrar
questões importantes às noções de cura, suficientemente nesse a irredutível. Assim,
de normalidade e o destino do sofrimento poderá oferecer à questão do conceito de
psíquico. angústia uma garantia real.
De outro modo, o analista faz traves-
Efeitos de travessia sias e tão somente depois de desvelar o
Mas há outros elementos sobre a angústia, Real do simbólico, o Real do real e o Real
uma certa torção que faz Lacan. Dunker do imaginário, além de despir o objeto
(2016, p. 236) nos diz que a angústia “não perdido a ponto de modificar o valor.
é sem objeto”, porém isso não é o mesmo Assim, poderá oferecer possibilidade de
que dizer que ela tem um objeto, pois há passagem ao Real, no trabalho de análise,
um deslocamento do ‘ter’, que caracteriza pois a angústia é via de acesso ao Real.
o objeto fálico, para o ‘ser’, que retoma a Por sinal, em Terra sonâmbula, ao ex-
forma ontológica da angústia. plicar a falta do mundo no qual se nasce,
Como é possível a negação da falta? O Mia Couto (2007, p. 76), nos diz:
objeto da angústia é não especularizável,
tem matriz do corte e do vazio, que são [...] afinal, todos queremos no peito o nó
expressões da negatividade, por isso possui de um outro peito, o devolver da metade
efeitos de travessia capaz de exprimir um que perdemos ao nascer.
percurso através do Real.
Além disso, escreve Dunker (2016, Em outras palavras, é o pelejar com a
p. 237), é preciso distinguir as formas da impossibilidade de completude nesse viés
angústia: o objeto a aparece encoberto de inconsistência do que é anterior.
misturado a objetos pulsionais, envelo- Para Lacan, o sujeito busca no corpo
pado por imagem e gramática simbólica do Outro os traços arqueológicos das
como no desamparo, no estranho, mas próprias cenas fantasmáticas, vindas das
essas são formas impuras da angústia. A primeiras experiências de satisfação.
análise extrai dessas formas impuras a Porém, a devastadora experiência em
angústia, que não se pode contornar, cujo perceber que, mesmo diante de tentati-
referente é o Real, em vez do simbólico e vas em prover a vida de sentido, coisas
do imaginário. acontecem, sofrimentos irrompem, e não
Esse é um ponto importante, pois se importam os anseios. São formas necessá-
trata de fazer essa passagem. A análise rias de ruptura a normativas de adaptação
não é algo apenas atenuante do sofri- alienantes, tal como a psicanálise não
mento, mas é algo que possui efeitos de poderia ser normativa.
44 Reverso • Belo Horizonte • ano 40 • n. 76 • p. 39 – 46 • dez. 2018
Scheherazade Paes de Abreu

Por fim, Safatle (2017, p. 77) traz que


a experiência humana é também norteada Referências
por algo disruptivo, subjetivo, que não COUTO, M. Terra sonâmbula. São Paulo:
pode ser efetivamente simbolizado ou Companhia das Letras, 2007.
colonizado por imagens fantasmáticas,
que é o Real; por isso, sempre descrito de DUNKER, C. I. L. Por que Lacan? São Paulo:
Zagodoni, 2016.
maneira negativa, pois há coisas que so-
mente se mostram sob a forma de negação. FINGERMANN, D.; SOLER, C. (Prefácio)
Ao final de análise, se produz um Declinações da angústia: curso 2000-2001. São
indivíduo assegurado de saber que não Paulo: Escuta, 2012.
há relação sexual pelos diferentes modos
FREUD, S. Uma dificuldade no caminho da
como esta fracassa em existir, pelos restos psicanálise (1917). In: ______. Uma neurose
inconsistentes. Logo, se torna inapto ao infantil e outros trabalhos (1917-1918). Direção-
complemento. É disto que se trata a angús- geral da tradução de Jayme Salomão. Rio de
tia: da sexualidade humana. A separação Janeiro: Imago, 1996. p. 147-153. (Edição
standard brasileira das obras psicológicas
esvazia de harmonia a fusão, dissipa o
completas de Sigmund Freud, 17).
sentido das coisas a que se endereçam. Há
outro gozo que não o gozo fálico. FREUD, S. Inibições, sintomas e ansiedade (1926
Quem é que está preparado para a [1925]). In: ______. Um estudo autobiográfico,
tragédia e para o absurdo do sofrimento? j inibições, sintomas e ansiedade, análise leiga e
outros trabalhos (1925-1926). Direção-geral da
tradução de Jayme Salomão. Rio de Janeiro:
CONSIDERATIONS Imago, 1996. p. 91-167. (Edição standard
ABOUT ANGUISH: brasileira das obras psicológicas completas de
AN EVENT OF THE REAL Sigmund Freud, 20).

HARARI, R. O seminário a angústia, de Lacan: uma


Abstract introdução. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997.
This text deals with the affect that most interests
analytical practice: anguish, as a mode of JORGE, M. A. C. Fundamentos da psicanálise:
subjective appropriation, besides suffering de Freud a Lacan, v. 3: a prática analítica. Rio de
which covers the speech. Anguish belongs to Janeiro: Zahar, 2017.
the Real, and evokes temporal discontinuity. LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia (1962-
Psychoanalysis not only mitigates suffering, 1963). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller.
but also has the effects of going over. Anguish Tradução de Vera Ribeiro. Versão final de Angelina
is a path to the Real. There is no sexual Harari. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. (Campo
Freudiano no Brasil).
relation, because of the ways in that this
relation fails to exist. This is the meaning ROTH, P. Pastoral americana. São Paulo:
of the anguish, of the human sexuality. Companhia das Letras, 2013.

Keywords SAFATLE, V. Introdução a Jacques Lacan. Belo


Horizonte: Autêntica, 2017.
Anguish, Real, Empty, Subjective Dismissal,
Object a, Das Ding. SAFOUAN, M. Angústia-sintoma-inibição.
Campinas, SP: Papirus, 1989.

SOLER, C. A clínica do real. Folha, Revista da


Clínica Freudiana, Salvador, ano 3, n. 30. 1989.

SOLER, C. Declinações da angústia: curso 2000-


2001. São Paulo: Escuta, 2012.

Reverso • Belo Horizonte • ano 40 • n. 76 • p. 39 – 46 • dez. 2018 45


Considerações sobre a angústia: acontecimento do Real

SOLER, C. Seminário da leitura de texto ano 2006-


2007: seminário a angústia, de Jacques Lacan. São
Paulo: Escuta, 2012.

VALAS, P. As dimensões do gozo: do mito da pulsão


à deriva do gozo. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

Recebido em: 28/06/2018


Aprovado em: 28/09/2018

Sobre a autora

Scheherazade Paes de Abreu


Psicanalista.
Sócia do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais.

Endereço para correspondência


E-mail: <scheherazade_abreu@yahoo.com.br>

46 Reverso • Belo Horizonte • ano 40 • n. 76 • p. 39 – 46 • dez. 2018

Você também pode gostar