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Caraterização da História de Arte em Portugal.

Novos Debates e Novas Metodologias de


Trabalho

A SITUAÇÃO PRESENTE DA HISTÓRIA DE ARTE


História da Arte-ciência sabe apreender a lição e saber acumulados
e, pela primeira vez, ordenar melhor o objeto da sua pesquisa e o
sentido concreto do seu campo de trabalho.
Muito contribuiu para este avanço o repúdio das « teses de autome
norização», outrora maioritárias, a reabilitação de «ciclos-sombra» de
criação, e a lenta mas decidida redescoberta do nosso próprio
Património artístico, já sem o tradicional escalpelo das exclusões
premeditadas, como sucedia nos anos 40 face à talha barroca e ao
azulejo ou, não há muito ainda, face à arquitetura «chã» e à pintura
maneirista.
Assim, em 2000, é já possível elaborar uma síntese de pressupostos
sobre esta disciplina, em Portugal: pensamos que ela aponte para um
estado de maioridade que veio para ficar. Pensamos, também, que a
História de Arte que atualmente se pratica entre nós sabe organizar os
seus passos com madurez e cada vez mais se consciencializa da sua
exata importância social.

ELOGIO DA HISTÓRIA DE ARTE


A História de Arte - assume-se hoje, tal vez como nunca antes, um
campo de trabalho de indiscutida validade social.
a) Precisa-se dela para explicar o sentido das obras de arte, como
instrumentos da História.
b) Precisa-se dela para preservar a memória coletiva, na dimensão
da salvaguarda do património artístico.
c) Precisa-se dela para integrar campos transdisciplinares de
pesquisa em políticas de formação e de conservação.
d) Precisa-se dela para dinamizar o turismo cultural através da
museologia e da gestão de bens artísticos regionais.
e) Precisa-se dela para recensear os objetos da nossa identidade
através da carta de inventariação de bens artísticos.
f) Precisa-se dela para organizar exposições (monotemáticas ou de
conjunto). caraterizar ciclos de criação, explicar processos de
moda, de modernidade ou de epigonismo criador.
g) Precisa-se dela para aliar o seu modo de olhar e ver à prática
organizada da intervenção urbanística, do restauro de imóveis ou do
ordenamento do território.
h) Precisa-se dela enfim, numa palavra, para fruir em plenitude as
obras de arte enquanto instrumentos de perene fascínio.
Isto é, uma disciplina autónoma, aberta à visão comprometida
com a globalidade e à concomitância com o sentido humanístico
da vida, a História da Arte torna-se cada vez mais necessária.
A formação de novos quadros em licenciaturas e mestrados
universitários, e a acentuação da prática transdisciplinar (em
programas de estudo integrado de monumentos e obras que reúnem
o historiador de arte com o arqueólogo, o arquiteto, o engenheiro, o
químico, o arquivista, o conservador, o restaurador), estão ai a
afirmar a validade de um caminho e a comprovar quão necessário,
senão insubstituível, é o olhar do historiador/crítico de arte para a
validade de programas de reabilitação urbana, ordenamento do
território, funcionalização de edifícios históricos, acompanhado de
processos de restauro, inventariações sectoriais.
restauros» dos anos 40), rescald os de guerras fratricidas, razia de
centros históricos, carências legislativas. míngua de práticas inter-
disciplinares. O que pode mesmo estranhar face a estas condições
(piores que na maioria dos países da União Europeia, melhor
prevenidos neste terreno), é que, ainda assim, tanto património
artístico de poderosa expressão possa ter sido resguardado e ue o
país ainda conserve um acervo tão rico de bens arqueológicos,
antropológicos, histórico-artísticos, documentais, arquivísticos e
memoriais, e que prossiga na senda de criar novos patrimónios que
refletem uma afirmada linha de criação.
Queixamo-nos, no curso do nosso regular trabalho de técnicos, de
que estamos constrangidos a intervir - face à quantidade (e
qualidade) de peças que atestam abandono, rapina, desinteresse,
desleixo, ruína, auto-menorização, incúria oficial- numa região
especialmente desafortunada como é o nosso país. Depois, atentando
melhor no mapa das micro-existências, verificamos que aquilo que
ainda felizmente sobreviveu no tecido português (não só nos
centros, mas em espaços de província) possui as características
globais de uma verdadeira arte de a firmação nacional, feita de
constantes vernáculas, tecida com força expressiva, pensada e gerida
em consonância com as necessidades de um merca do regional que,
em certos momentos específicos da sua História, se soube
internacionaliza r nas suas referências e módulos.
Impõe-se o elogio do olhar e do ver, em termos quase diríamos que
neo-morellianos, ou seja, apregoando a imperiosidade de saber ver as
obras de arte na sua integralidade, unindo esse saber afetivo ao
conhecimento sociológico das situações específicas da produção.

O HISTORIADOR DE ARTE COMO «Operário da Memória»


O historiador de arte tornou-se no nosso tempo, dada a
componente humanística do trabalho que desenvolve, numa espécie
de o perário da memória:
a) por ele passa o conhecimento profundo dos «estilos»
considerados como constantes d e comportamento criador que se
sucedem na evolução da arte portuguesa durante o tempo histórico,
do Românico às correntes da Modernidade;
b) por ele passa o conhecimento partilhado da conservação
preventiva que prolonga a vida das peças e do restauro que
assegura a remoção de maleitas físicas dos objetos;
c) por ele passam as magnas questões do enquadramento
histórico-ideológico, do entendimento dos ambientes cJ.e
trabalho e de produção, de encomenda e de círculo de influências,
de função e de utilização das obras de arte, de coincidência ou
ruptura de gostos estéticos, de caracterização das clientelas e
mercados.
d) por ele passam as questões gerais da sensibilização pública, da
eficaz musealização dos espécimes, da difusão turística de
qualidade, da edição científica orientada e da defesa da expressão
social da arte.
Acabou o tempo de uma História de Arte elitista, silenciosa,
formalista, meramente documental, fechada em si mesma,
exclusiva do mercado antiquário, ou tão-só um complemento
ilustrativo da História factual. O historiador de arte, seja docente,
museólogo, investigador de laboratório, gestor de património,
técnico de fotografia, inventariador de campo ou membro de um
programa de estudos integrados de edifício ou Centro His tórico,
tem de aglutinar consciência patrimonial sólida, sentido de
convergência plurí-científica e sabor de uma memória reforçada.
A noção de Arte Total - passou a aglutinar o objeto da disciplina
na medida em que introduziu a necessidade de se pulsarem as
situações artísticas em moldes globais. Depois, passou a saber-se
que as obras de arte constituem organismos vivos e que, sendo
vivos, são perecíveis. Importa saber ainda que só com o
conhecimento global dos programas estéticos das obras tão
originais quanto livres e exógenas, sejam peças eruditas ou
«ingénuas», se entretece o contexto em que ganha sentido o nosso
património.
Este quadro de trabalhos que se traçou forma um verdadeiro
caderno de encargos: intervenções onde a partilha dos saberes e do
rigor metodológico no trabalho saiba manter redobrada
sensibilidade no olhar desperto para o diálogo com as peças em
apreço, e com consciência de que as obras de arte são tecido vivo
e, como tal, parte de um cérebro social a preservar. Contra os
pareceres redutorizantes sobre a geral «menoridade» da arte que
temos, lembramos que só neste virar de século foram descobertas
obras tão destacadas, até então completamente ignoradas, como as
gravuras rupestres do Fariseu, Vale do Côa, as estruturas góticas
do claustro do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha de Coimbra, o
quadro de Grão Vasco em Aldeia Viçosa (Guarda), um outro da
escola sequencial de Nuno Gonçalves no Funchal; foram
recuperados com acerto científico a capela-mor dos Jerónimos, os
Paços do Concelho de Lisboa, a Charola de Tomar, o teto do
Menino Deus, os jardins de Tibães, foram intervencionados em
exame integral de laboratório os célebres Painéis de São Vicente
(Instituto Português de Museus, 1994).
Algo de valioso foi feito neste domínio pelas entidades
responsáveis (IPPAR, IPM, DGEMN, Igreja, Poder Local
democrático, academias e universidades) sempre com
enquadramento da História de Arte, mas é de recordar também a
impunidade com que, ao mesmo tempo em que tais intervenções se
faziam, foram destruídas peças como o Chalêt da Condessa
(Parque da Pena em Sintra) ou a Casa da Condessa d'Edla (Parede).
Entre tantas outras votadas ao estigma da inutilidade, e foram
descaracterizados gravemente alguns centros históricos, e
desmantelados muitos recheios de capelas e igrejas, alvo da cobiça
antiquária E porque o nosso trabalho de historiadores, técnicos de
conservação, museólogos, gestores, criadores de arte, se situa nas
margens deste terreno de sensibilização pela arte-identidade,
importa aprender a organizar o nosso caderno de encargos com
paixão e rigor técnico plural face à especificidade dos objetos com
que lidamos.

NOVAS VERTENTES DE INVESTIGAÇÃO Histórico-Artistico


A noção de Programa Estético integra uma renovada visão
operativa de extrema utilidade para uma História da Arte científica.
Importa «ver» o Programa estético das obras de arte não em moldes
redutores - quando se visa conferir exclusiva importância à figura dos
mecenas no ato da produção que encomenda - mas enquanto
verdadeiras imprese ou invenzione, segundo a terminologia usada,
por exemplo, nos tratados italianos do século XVI. Nesta perspetiva, o
Programa Estético atenta mais no papel múltiplo da retórica, da
instância política e da ideologia de classe ligada à encomenda, no
papel do olhar crítico e fisionomia absoluta, a sua verdade. Esse
conceito romântico de fisionomia absoluta é útil na medida em que
percorre os modos que antecipam o olhar do espectador, no âmbito
da «teoria da recepção» de H. R. Jauss. Cremos que existe uma
transcendência imanente às obras particulares - que se integram
sempre num tecido global de que nos faltam parcelas, como o
comprovam os estudos de História de Arte que se reclamam da
esfera do marxismo, transcendência que impõe uma abordagem
microscópica e totalizadora. Nem faz sentido lerem-se as obras se
escamotearmos as suas relações extrínsecas - ligadas ao tempo
histórico, às classes sociais, ao espaço geográfico da criação - ou se
desvirtuarmos a análise intrínseca do seu discurso fragmentário -
ligada ao processo estético.
Enfim, temos o conceito de Cripta-História de Arte, vertente da
História científica que se ocupa do património artístico destruído,
desaparecido ou que, tendo sido concebido, nunca existiu
verdadeiramente, conceito esse que tem merecido escassa atenção da
parte dos historiadores de arte. A partir da noção de obra
fragmentária, da micro-história, da revalorização dos testemunhos
memoriais e do conceito de programa estético, a sua utilidade é,
porém, imensa. De facto, a História da Arte-ciência não se faz só
com recurso a obras vivas. Os “grandes monumentos” e as «obras-
primas» não abrangem todos os objetos que a disciplina visa analisar,
estudar, identificar, conservar e reconhecer: também as obras de arte
que não sobreviveram à incúria dos tempos, às calamidades e ao
vandalismo dos homens fazem parte íntima deste campo de
sondagens abrangentes e perceções sensoriais. A visão cripta
-artística, ao atentar no papel que as obras desaparecidas,
fragmentadas ou inexistentes, assumiram em termos históricos,
iconológicos, políticos, ideológicos e, sempre, estéticos, contribui para
dar vida a tais espécimes desaparecidos do património presente. De
resto, ilumina estilos de artista, conflitos de gosto, preconceitos de
mercado ou grupos sociais influentes, alarga a perceção sobre o
produtor-artista, esclarecendo zonas escuras da sua atividade, e
explicita condicionantes programáticas das encomendas.
ANÁLISE INTEGRADA DE OBRA DE ARTE PARTICULAR
Para uma discussão de princípios, acertada com a prática
descritiva, propõe-se uma ficha de leitura analítica adaptável ao
estudo das obras de arte particulares, que se organiza em termos de
uma visão globalizante, esclarecida e inter-disciplinar do chamado
«facto artístico».

ESTILO DA OBRA PARTICULAR - análise de modos específicos de


produção na sua margem de comprometimento.
IDEOLOGIA IMAGÉTICA - aná lise ideológica de classe ou grupo
social em que o processo criativo particular se integre através das
expressões do estilo.
FORTUNA CRiTICA - Lição hermenêutica: critica das fontes,
balanço sobre clientela, Mercado, leis produtivas, ambiente de
trabalho do genitor, influências, paralelas credíveis.
FORT UNA HISTÓRICA - Lição heurística: recenseamento de fontes,
regesta documental, regesta arquivist ica, regesta gráfica.

O ELOGIO DO VERNÁCULO
Face à auto-menorização e à agravada cegueira cultural, que
urge saber combater, a arte portuguesa ressurge no seu conjunto
como o nosso verdadeiro laboratório de trabalho. A força da arte
portuguesa reside no seu forte comportamento sui generis.
Explorando ora a vertente lírica ora a tradição vernacular (posta
em destaque por George Kubler e Horta Correia). Entende-se
melhor que algumas clientelas (os «terciários do Regime» de que
fala Vitorino Magalhães Godinho, por exemplo) fizessem fé n um
gosto ostensivo, efémero, feito de excessos, «contraposto a uma
sobriedade essencial avessa a correr riscos» que caracterizam tanto
o nosso Gótico, de linha mendicante no século XIV, o Estilo
Chão na tradição epimaneirista nos séculos XVI e XVII, ou o
nosso Barroco possível, feito de talha e azulejos, no século X VIII
Baseados no cruzamento dos modelos externos, centralidade,
rutura e sobrevivência formais, pode atestar-se uma postura de não-
compromisso face às influências estranhas (italianas, flamengas,
castelhanas, francesas) - e aí reside, menos que a dimensão de
debilidade tantas vezes injustamente apontada, a estrada de
originalidades que se estende à arte dos espaços colonizados (Costa
Africana, Maghreb, Índia e Brasil). Mesmo em fases em que por
força das diretrizes centralizadas se tornava acentuado o esforço da
internacionalização (D. Manuel. D. Filipe I e D. João V), as
respostas artísticas não deixaram o tónus vernacular e sincrético e as
artes decorativas (talha, escultura, pintura. azulejo, brutesco,
estuque) não esqueceram o sabor de condutas próprias - e assumiram
em força a linguagem necessária de afirmação regional.
Contra os preconceitos generalizados que ainda falam num
«complexo de inferioridade e invisibilidade», pela sua localização no
extremo sudoeste da Europa a nossa arte soube afirmar-se em
caminhos alternativos quase sempre renovados à medida dos meios
disponíveis. A História de Arte portuguesa é, reconheça-se, uma
história de regionalidade entendida a altas esferas de criação: o
discurso plástico busca o lirismo efabulativo, a retórica de linhas
contínuas e a fidelidade a um conjunto de «invariantes» que só
superficialmente acolhem as marcas academizadas de Antuérpia,
Roma, Madrid ou Paris. As circunstâncias que decorrem do uso de
materiais alternativos ao mármore e demais «matérias ricas» (madeira
de castanho, granito, calcário, estuque, barro) determinaram o tipo de
conduta - e só em deslocado cotejo se podem fazer comparações
diretas com a arte de outros centros europeus, quando é diferente o
percurso, o tipo de receção, a linguagem, a luz, o espírito.
É essa a razão que impele ao aprofundamento do seu estudo e
cuidada preservação, e obviam ao seu constante fascínio. A nossa
arte adquire especificidade na sua dimensão de liberdade no
tratamento das formas e na interpretação sui-generis dos modelos
exteriores. Essa característica base, longe de constituir fraqueza, é
antes uma das constantes mais fortes do seu carácter e da sua
especificidade cultural. Aí reside o nosso terreno de trabalho.

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