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Igreja e Inquisição

HISTÓRIA DO CRISTIANISMO

Desconfiado (Petrópolis): “Gostaria de saber algo de mais exato sobre a Inquisição. Se


os ‘velhos tempos’ voltassem, a Igreja restauraria a Inquisição? ”
 
A inquisição não foi criada de uma só vez nem procedeu sempre do mesmo modo no
decorrer dos séculos. Por isto distinguem-se:
1) a Inquisição Medieval, voltada contra as heresias catara e valdense nos séc. XII/XIII
e contra um falso misticismo do séc. XIV;

2) a Inquisição Espanhola, instituída em 1478 por iniciativa dos reis Fernando e Isabel;
visando principalmente os judeus e os muçulmanos, tornou-se poderoso instrumento
do absolutismo dos monarcas espanhóis até o séc. XIX, a ponto de quase não poder
ser considerada instituição eclesiástica (não raro a Inquisição espanhola procedeu
independentemente de Roma, resistindo à intervenção da Santa Sé, porque o rei da
Espanha a esta se opunha);

3) a Inquisição Romana, (também dita "o Santo Ofício"), instituída em 1542 pelo Papa
Paulo III, em vista do surto do Protestantismo.

 
Apesar das modalidades de que se revestiu, a Inquisição medieval e romana foi
movida por alguns princípios e uma mentalidade característicos; é justamente a estes
princípios que o historiador deve voltar a sua atenção, a fim de poder formular um
juízo sobre a famosa instituição. Conscientes disto, examinaremos as origens da
Inquisição, seus procedimentos mais famigerados, para finalmente chegarmos a uma
apreciação objetiva do acontecimento histórico.

 
1. Origens da Inquisição
 
No antigo Direito Romano, o juiz não empreendia a procura dos delituosos; só procedia
ao julgamento depois que lhe fosse apresentada a denúncia. Até a Alta Idade Média, o
mesmo se deu na Igreja: a autoridade eclesiástica não procedia contra os delitos se
estes não lhe fossem previamente deferidos. No decorrer dos tempos, porém, esta
praxe mostrou-se insuficiente. Além disto, no séc. XI apareceu na Europa nova forma
de delito religioso, isto é, uma heresia fanática e revolucionária, como não houvera até
então: o catarismo (do grego katharós, puro) ou o movimento dos albigenses (de
Albi, cidade da França meridional, onde os hereges tinham seu foco .principal).

 
Considerando a matéria por si má, os cátaros rejeitavam não somente a face visível da
Igreja, mas também instituições básicas da vida civil — o matrimônio, a autoridade
governamental, o serviço militar — e enalteciam o suicídio. Destarte constituíam grave
ameaça não somente para a fé cristã, mas também para a vida pública.

 
Em bandos fanáticos, às vezes apoiados por nobres senhores, os cátaros provocaram
tumultos, ataques às igrejas, etc., por todo o decorrer do séc. XI até 1150
aproximadamente, na França, na Alemanha, nos Países-Baixos... O povo, com a sua
espontaneidade, e a autoridade civil se encarregaram de os reprimir com violência:
não raro o poder régio da França, por iniciativa própria e a contragosto dos bispos,
condenou à morte pregadores albigenses, visto que solapavam os fundamentos da
ordem constituída. Foi o que se deu, por exemplo, em Orléans (1017). onde o rei
Roberto, informado de um surto de heresia na cidade, compareceu pessoalmente,
procedeu ao exame dos hereges e os mandou lançar ao fogo; a causa da civilização e
da ordem pública se identificava com a da fé! Entrementes a autoridade eclesiástica
limitava-se a impor penas espirituais (excomunhão, interdito, etc.) aos albigenses,
pois até então nenhuma das muitas heresias conhecidas havia sido combatida por
violência física; S. Agostinho (+430) e antigos bispos, S. Bernardo (+1153), S,
Norberto (+1134) e outros mestres medievais eram contrários ao uso da força ("Sejam
os hereges conquistados não pelas armas, mas pelos argumentos", admoestava São
Bernardo, In Cant serm. 64).

 
Não são casos isolados os seguintes; em 1144 na cidade de Lião o povo quis punir
violentamente um grupo de inovadores que aí se introduzira; o clero, porém, os
salvou, desejando a sua conversão, e não a sua morte. Em 1077 um herege professou
seus erros diante do bispo de Cambraia; a multidão de populares lançou-se então
sobre ele, sem esperar o julgamento; encerraram-no numa cabana, à qual atearam o
fogo!
 
Contudo em meados do séc. XII a aparente indiferença do clero se mostrou
insustentável: os magistrados e o povo exigiam colaboração mais direta na repressão
do catarismo. Muito significativo, por exemplo, é o episódio seguinte: o Papa
Alexandre III, em 1162, escreveu ao arcebispo de Reims e ao Conde da Flândria, em
cujo território os cátaros provocavam desordens:

 
"Mais vale absolver culpados do que, por excessiva severidade, atacar a vida de
inocentes... A mansidão mais convém aos homens da Igreja do que a dureza".
 
Informado desta admoestação pontifícia, o rei Luís VII de França, irmão do referido
arcebispo, enviou ao Papa um documento em que o descontentamento e o respeito se
traduziam simultaneamente:

 
'Que vossa prudência dê atenção toda particular a essa peste (a heresia) o a suprima
antes que possa crescer. Suplico-vos para bem da fé cristã: concedei todos os poderes
neste campo ao arcebispo (de Reims); ele destruirá os que assim se insurgem contra
Deus; sua Justa severidade será lourada por todos aqueles que nesta terra são
animados de verdadeira piedade. Se procederdes de outro modo, as queixas não se
acalmarão facilmente e desencadeareis contra a Igreja Romana as violentas
recriminações da opinião pública (Martène, Amplíssima Collectio II 683s).
 
As consequências deste intercâmbio epistolar não se fizeram esperar muito: o concilio
regional de Tours em 1163, tomando medidas repressivas à heresia, mandava inquirir
(procurar) os seus agrupamentos secretos. Por fim, a assembleia de Verona (Itália), à
qual compareceram o Papa Lúcio III, o Imperador Frederico Barbarroxa, numerosos
bispos, prelados e príncipes, baixou em 1184 um decreto de grande importância: o
poder eclesiástico e o civil, que até então haviam agido independentemente um do
outro (aquele impondo penas espirituais, este recorrendo à força física), deveriam
combinar seus esforços em vista de mais eficientes resultados: os hereges seriam
doravante não somente punidos, mas também procurados (inquiridos); cada bispo
inspecionaria, por si ou por pessoas de confiança, uma ou duas vezes por ano, as
paróquias suspeitas; os condes, barões e as demais autoridades civis os deveriam
ajudar sob pena de perder seus cargos ou ver o interdito lançado sobre as suas terras;
os hereges depreendidos ou abjurariam seus erros ou seriam entregues ao braço
secular, que lhes imporia a sanção devida.

 
Assim era instituída a chamada "Inquisição episcopal", a qual, como mostram os
precedentes, atendia a necessidades reais e a clamores exigentes tanto dos monarcas
e magistrados civis como do povo cristão; independentemente da autoridade da
Igreja, já estava sendo praticada a repressão física das heresias.

 
No decorrer do tempo, porém, percebeu-se que a Inquisição episcopal ainda era
insuficiente para deter os inovadores; alguns bispos, principalmente no sul da França,
eram tolerantes; além disto, tinham seu raio de ação limitado às respectivas dioceses,
o que lhes vedava uma campanha eficiente. À vista disto, os Papas, já em fins do séc.
XII, começaram a nomear legados especiais, munidos de plenos poderes para
proceder contra a heresia onde quer que fosse. Destarte surgiu a "Inquisição
pontifícia" ou "legatina", que a princípio ainda funcionava ao lado da episcopal, aos
poucos, porém, a tornou desnecessária. A Inquisição papal recebeu seu caráter
definitivo e sua organização básica em 1233, quando o Papa Gregório IX confiou aos
dominicanos a missão de Inquisidores; haveria doravante, para cada nação ou distrito
inquisitorial, um Inquisidor-Mor, que trabalharia com a assistência de numerosos
oficiais subalternos (consultores, jurados, notários.,.), em geral independentemente do
bispo em cuja diocese estivesse instalado. As normas do procedimento inquisitorial
foram sendo sucessivamente ditadas por bulas pontifícias e decisões de concílios.

 
Entrementes a autoridade civil continuava a agir, com zelo surpreendente (!), contra
os sectários. Chama a atenção, por exemplo, a conduta do Imperador Frederico II, um
dos mais perigosos adversários que o Papado teve no séc. XIII, Em 1220 este monarca
exigiu de todos os oficiais do seu governo, que prometessem expulsar de suas terras
os hereges reconhecidos pela Igreja; declarou a heresia crime de lesa-majestade,
sujeito à pena de morte e mandou dar busca aos hereges. Em 1224 publicou decreto
mais severo do que qualquer das leis editadas pelos reis ou Papas anteriores: as
autoridades civis da Lombardia deveriam não somente enviar ao fogo quem tivesse
sido comprovado herege polo bispo, mas ainda cortar a língua aos sectários a quem,
por razões particulares, se houvesse conservado a vida, É possível que Frederico II
visasse interesses próprios na campanha contra a heresia; os bens confiscados
redundariam em proveito da coroa.
Não menos típica é a atitude de Henrique II, rei da Inglaterra; tendo entrado em luta
contra o arcebispo Tomas Becket, primaz da Cantuária, e o Papa Alexandre III, foi
excomungado. Não obstante mostrou-se um dos mais ardorosos repressores da
heresia no seu reino: em 1185, por exemplo, alguns hereges da Flândria, tendo-se
refugiado na Inglaterra, o monarca mandou prendê-los, marcá-los com ferro vermelho
na testa o expô-los, assim desfigurados, ao povo; além disso, proibia aos seus súditos
lhes dessem asilo ou lhes prestassem o mínimo serviço.
 
Estes dois episódios, que não são únicos no seu gênero, bem mostram que o proceder
violento contra os hereges, longe de ler sido sempre inspirado pela suprema
autoridade da Igreja, foi não raro desencadeado independente desta, por poderes que
estavam em conflito com a própria Igreja. A Inquisição, em toda a sua história, se
ressentiu dessa usurpação de direitos ou da demasiada ingerência das autoridades
civis em questões que dependem primariamente do foro eclesiástico.
 
Em conclusão, o histórico das origens da Inquisição leva-nos a ver que esta não foi
concebida como órgão de intransigência odiosa, mas, sim, qual medida defensiva do
bem comum, religioso e civil. Consciente disto, o historiador distingue entre a
intenção dos homens da Igreja que instituíram a Inquisição, e a conduta daqueles
que a executaram, conduta que passamos a analisar.

 
2. Alguns dos procedimentos da Inquisição
 
As táticas utilizadas pelos Inquisidores são-nos hoje notórias, pois ainda se conservam
Manuais de instruções práticas entregues ao uso dos referidos oficiais. Quem lê tais
textos, verifica que as autoridades visavam fazer dos juízes inquisitoriais autênticos
representantes da justiça e da causa do bem. Bernardo de Gui (séc. XIV), por exemplo,
tido como um dos mais severos Inquisidores, dava as seguintes normas aos seus
colegas:

 
"O Inquisidor deve ser diligente e fervoroso no seu zelo pela verdade religiosa, pela
salvação das almas e pela extirparão das heresias. Em meio às dificuldades
permanecerá calmo, nunca cederá à cólera nem à indignação... Nos casos duvidosos,
seja circunspecto, não dê fácil crédito ao que parece provável e muitas vezes não é
verdade: tam bom não rejeite obstinadamente a opinião contrária, pois o que parece
improvável frequentemente acaba por ser comprovado como verdade... O amor da
verdade o a piedade, que devem residir no coração de um juiz brilhem nos seus olhos,
o fim de que suas decisões jamais possam parecer ditadas pela cupidez e a crueldade"
(Pratica VI p... Ed. Douis 232s).
 
Já que mais de uma vez se encontram instruções tais nos arquivos da Inquisição, não
se poderia crer que o apregoado ideal do Juiz Inquisidor, ao mesmo tempo equitativo e
bom, se realizou com mais frequência do que comumente se pensa? Não se deve
esquecer, porém, (como abaixo mais explicitamente se dirá) que as categorias pelas
quais se afirmava a justiça na Idade Média, não eram exatamente as da época
moderna... Além disto, levar-se-á em conta que o papel do juiz, sempre difícil, era
particularmente árduo nos casos da Inquisição: o povo e as autoridades civis estavam
profundamente interessados no desfecho dos processos; pelo que, não raro exerciam
pressão para obter a sentença mais favorável a caprichos ou a interesses temporais;
às vezes, a população obcecada aguardava ansiosamente o dia em que o
"veredictum" do juiz entregaria ao braço secular os hereges comprovados. Em tais
circunstâncias não era fácil aos juízes manter a serenidade desejável.

 
Dentre as táticas adotadas pelos Inquisidores, merecem particular atenção a tortura e
a entrega ao poder secular (pena de morte).

 
A tortura estava em uso entre os gregos e romanos pré-cristãos que quisessem
obrigar um escravo a confessar seu delito. Certos povos germânicos também a
praticavam. Em 866, porém, dirigindo-se aos búlgaros, o Papa Nicolau I a condenou
formalmente.

 
Não obstante, a tortura foi de novo adotada pelos tribunais civis da Idade Média nos
inícios do séc. XIII, dado o renascimento de Direito Romano. Nos processos
inquisitoriais; o Papa Inocêncio IV acabou por introduzi-la em 1252, com a cláusula:
"Não haja mutilação de membro nem perigo de morte" para o réu. O Pontífice,
permitindo tal praxe, dizia conformar-se aos costumes vigentes em seu tempo
(Bullarum amplíssima collectio II 326).

 
Os Papas subsequentes, assim como os Manuais dos Inquisidores, procuraram
restringir a aplicação da tortura: só seria lícita depois de esgotados os outros recursos
para investigar a culpa e apenas nos casos em que já houvesse meia-prova do delito
ou, como dizia a linguagem técnica, dois “índices veementes” deste, a saber: o
depoimento de testemunhas fidedignas, de um lado, e, de outro lado, a má fama, os
maus costumes ou tentativas de fuga do réu. O concílio de Viena (França) em 1311
mandou outrossim que os Inquisidores só recorressem à tortura depois que uma
comissão julgadora e o bispo diocesano a houvessem aprovado para cada caso em
particular. — Apesar de tudo que a tortura apresenta de horroroso, ela tem sido
conciliada com à mentalidade do mundo moderno...: ainda estava oficialmente em uso
na França do séc. XVIII e tem sido aplicada até mesmo em nossos dias...

 
Quanto à pena de morte, reconhecida pelo antigo Direito Romano, estava em vigor na
jurisprudência civil da Idade Média. Sabe-se, porém, que as autoridades eclesiásticas
eram contrárias à sua aplicação em casos de lesa-religião. Contudo, após o surto do
catarismo (séc. XII), alguns canonistas começaram a julgá-la oportuna, apelando para
o exemplo do Imperador Justiniano. que no séc. VI a infligira aos maniqueus. Em 1199
o Papa Inocêncio III dirigia-se aos magistrados de Viterbo nos seguintes termos:

 
''Conforme a lei civil, os réus de lesa-majestade são punidos com a pena capital e seus
bens são confiscados,.. Com muito mais razão, portanto, aqueles que, desertando a fé,
ofendem a Jesus, o Filho do Senhor Deus, devem ser separados da comunhão cristã e
despojados de seus bens, pois multo mais grave é ofender a Majestade Divina do que
lesar a majestade humana" (epist. 2,1).
 
Como se vê, o Sumo Pontífice com essas palavras desejava apenas justificar a
excomunhão e a confiscação de bens dos hereges; estabelecia, porém, uma
comparação que daria ocasião a nova praxe... O Imperador Frederico II soube deduzir-
lhe as últimas consequências: tendo lembrado numa constituição de 1220 a frase final
de Inocêncio III, o monarca, em 1224, decretava francamente para a Lombardia a
pena de morte contra os hereges e, já que o Direito antigo assinalava o fogo em tais
casos, o Imperador os condenava a ser queimados vivos. Em 1230 o dominicano
Guala, tendo subido à cátedra episcopal de Bréscia (Itália), fez aplicação da lei
imperial na sua diocese. Por fim, o Papa Gregório IX, que tinha intercâmbio frequente
com Guala, adotou o modo de ver deste bispo: transcreveu em 1230 ou 1231 a
constituição imperial de 1224 para o Registro das cartas pontifícias e em breve editou
uma lei pela qual mandava que os hereges reconhecidos pela Inquisição fossem
abandonados ao poder civil, para receber o devido castigo, castigo que, segundo a
legislação de Frederico II, seria a morte pelo fogo.

 
Os teólogos e canonistas da época se empenharam por justificar a nova praxe; eis
como o fazia S. Tomaz de Aquino:

 
“É muito mais grave corromper a fé, que é a vida da alma, do que falsificar a moeda,
que é um meio de prover à vida temporal. Se, pois, os falsificadores de moedas e
outros malfeitores são, a bom direito, condenados à morte pelos príncipes seculares,
com muito mais razão os hereges, desde que sejam comprovados tais, podem não
somente ser excomungados, mas também em toda justiça ser condenados à morte”
(Suma Teológica ll/II 11.3cl).
 
A argumentação do S. Doutor procede do princípio (sem dúvida, autêntico em si, mas
pouco significativo para o mundo moderno) de que a vida da alma mais vale do que a
do corpo; se, pois, alguém pela heresia ameaça a vida espiritual do próximo, comete
maior mal do que quem assalta a vida corporal; o bem comum então exige a remoção
do grave perigo (veja-se também S. Teol. II/II 11,4c).

 
Contudo as execuções capitais não foram tão numerosas quanta se podaria crer.
Infelizmente faltam-nos estatísticas completas sobro o assunto; consta, porém, que o
tribunal de Pamiers, de 1308 a 1324, pronunciou 75 sentenças condenatórias, das
quais apenas cinco mandavam entregar o réu ao poder civil (o que equivalia à morte);
o Inquisidor Bernardo de Gui em Tolosa, de 1303 a 1323, proferiu 930 sentenças, das
quais 42 eram capitais; no primeiro caso, a proporção é de 1/15; no segundo caso, de
1/22.
 
Não se poderia negar, porém, que houve injustiças e abusos da autoridade por parte
dos juízes inquisitoriais. Tais males se devem à conduta de pessoas que, em virtude da
fraqueza humana, não foram sempre fiéis cumpridoras da sua missão. Os Inquisidores
trabalhavam a distâncias mais ou menos consideráveis de Roma, numa época em que,
dada a precariedade de correios e comunicações, não podiam ser assiduamente
controlados pela suprema autoridade da Igreja. Esta, porém, não deixava de os
censurar devidamente, quando recebia notícia de algum desmando verificado em tal
ou tal região.

 
Famoso, por exemplo, é o caso do Roberto o Bugro, Inquisidor-Mor de França do séc.
XIII. O Papa Gregório IX a princípio muito o felicitava por seu zelo. Roberto, porém,
tendo aderida outrora à heresia, mostrava-se excessivamente violento na repressão
da mesma. Informado dos desmandos praticados pelo Inquisidor, o Papa o destituiu de
suas funções e mandou encarcerar. — Inocêncio IV, o mesmo Pontífice que permitiu a
tortura nos processos da Inquisição, e Alexandre IV, respectivamente em 1246 e 1256,
mandaram os Padres Provinciais e Gerais dos Dominicanos e Franciscanos depor os
Inquisidores de sua Ordem que se tornassem notórios por sua crueldade.
 
O Papa Bonifácio VIII (1294-1303), famoso pela tenacidade e intransigência de suas
atitudes, foi um dos que mais reprimiram os excessos dos Inquisidores, mandando
examinar, ou simplesmente anulando, sentenças proferidos por estes.
 
O concilio regional de Narbona (França) em 1243 promulgou 29 artigos que visavam
impedir abusos do poder. Entre outras normas, prescrevia aos Inquisidores só
proferissem sentença condenatória nos casos em que, com segurança, tivessem
apurado alguma falta, "pois mais vale deixar um culpado impune do que condenar um
inocente" (can. 23).
 
Dirigindo-se ao Imperador Frederico II, pioneiro dos métodos inquisitoriais, o Papa
Gregório IX aos 15 de Julho de 1233 lhe lembrava que "a arma manejada pelo
Imperador não devia servir para satisfazer aos seus rancores pessoais, com grande
escândalo das populações, com detrimento da verdade e da dignidade imperial" (ep.
saec. XIII 538,5500).
 
Conclusão
 
Procuremos agora formular um juízo sobre a Inquisição medieval.

 
Não é necessário ao católico justificar tudo que, em nome desta, foi feito. É preciso,
porém, que se entendam as intenções e a mentalidade que moveram a autoridade
eclesiástica a instituir a Inquisição. Estas intenções, dentro do quadro de pensamento
da Idade Média, eram legítimas; diríamos até: deviam parecer aos medievais
inspiradas por santo zelo. Podem-se reduzir a quatro os fatores que influíram
decisivamente no surto e no andamento da Inquisição:
1) os medievais tinham profunda consciência do valor da alma e dos bens
espirituais (consciência que hoje em dia se acha muito atenuada). Tão grande era o
amor à fé (esteio da vida espiritual) que se considerava a deturpação da fé pela
heresia como um dos maiores crimes que o homem pudesse cometer (notem-se os
textos de S. Tomás e do Imperador Frederico I acima citados); essa fé era tão viva e
espontânea que dificilmente se admitiria viesse alguém a negar com boas intenções
um só dos artigos do credo.

2) As categorias de justiça na Idade Média eram um tanto diferentes das nossas:


havia muito mais espontaneidade (que às vezes equivalia a rudez) na defesa dos
direitos. Pode-se dizer que os medievais, no caso, seguiam mais o rigor da lógica do
que a ternura do sentimento; o raciocínio abstrato e rígido neles prevalecia por vezes
sobre o senso psicológico (nos tempos atuais verifica-se quase o contrário: muito se
apela para a psicologia e o sentimento, pouco se segue a lógica; os homens modernos
não acreditam muito em princípios perenes; tendem a tudo julgar segundo critérios
relativos e relativistas, critérios de moda e de preferência subjetiva).

3) A intervenção do poder secular exerceu profunda influência no desenvolvimento


da Inquisição. As autoridades civis anteciparam-se na aplicação da força física e da
pena de morte aos hereges; instigaram a autoridade eclesiástica para que agisse
enèrgicamente; provocaram certos abusos motivados pela cobiça de vantagens
políticas ou materiais. De resto, o poder espiritual e o temporal na Idade Média
estavam, ao menos em tese, tão unidos entre si que lhes parecia normal, recorressem
um ao outro em tudo que dissesse respeito ao bem comum. A partir dos inícios do séc.
XIV a Inquisição foi sendo mais e mais explorada pelos monarcas, que dela se serviam
para promover seus interesses particulares, subtraindo-a às diretivas do poder
eclesiástico, até mesmo encaminhando-a contra este; é o que aparece claramente no
processo inquisitório dos Templários, movido por Filipe o Belo da França (1285- 1314) à
revelia do Papa Clemente V; cf. "P.R." 15/1959, qu. 7 (Templários).

4) Não se negará a fraqueza humana de Inquisidores e de oficiais seus


colaboradores. Não seria lícito, porém, dizer que a suprema autoridade da Igreja tenha
pactuado com esses atos de fraqueza; ao contrário, tem-se o testemunho de
numerosos protestos enviados pelos Papas e concílios a tais ou tais oficiais, contra tais
leis e tais atitudes inquisitoriais. As declarações oficiais da Igreja concernentes à
Inquisição se enquadram bem dentro das categorias da justiça medieval; a injustiça se
verificou na execução concreta das leis.

 
Diz-se, de resto, que cada época da história apresenta ao observador um enigma
próprio: na antiguidade remota, o que surpreende são os desumanos procedimentos
de guerra. No Império Romano, é a mentalidade dos cidadãos, que não concebiam o
mundo sem o seu Império (oikouméne = orbe habitado = Imperium) nem concebiam o
Império sem a escravatura. Na época contemporânea, é o relativismo ou ceticismo
público; é a utilização dos requintes da técnica para "lavar o crânio", desfazer a
personalidade, fomentar o ódio e a paixão. Não seria então possível que os medievais,
com boa fé na consciência, tenham recorrido a medidas repressivas do mal que o
homem moderno, com razão, julga demasiado violentas?

 
Quanto à Inquisição Romana, instituída no séc. XVI, era herdeira das leis e da
mentalidade da Inquisição medieval. No tocante à Inquisição espanhola, sabe-se que
agiu mais por influência dos monarcas de Espanha do que sob a responsabilidade da
suprema autoridade da Igreja.

 
Dom Estêvão Bettencourt (OSB)

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