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CRISE DE REPRESENTATIVIDADE
E NECESSIDADE DE AUTODISSOLUÇÃO
PERMANENTE
André Bechelanei
"Representar significa tornar visível e tornar presente um ser invisível mediante um ser publicamente presente. A
dialética do conceito repousa no fato de que o invisível é pressuposto como ausente e ao mesmo tempo tornado
presente"1.
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C. Schtnitt, Verfassungslehre, Duncker & Humblot, München-Leipzig» 1928, p. 208.
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http://www.espn.com.br/video/341790_filosofo-vladimir-safatle-afirma-brasil-vive-crise-de-representatividade-e-precisa-de-reforma-
politica
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Bobbio, Norberto – O Futuro da Democracia – uma defesa das regras do jogo – Edit. Paz e Terra, 1984.
1
democracia é o primeiro e o mais importante passo para a renovação progressiva da sociedade,
inclusive em direção a uma possível reorganização socialista. Democracia tida, no essencial,
como um método de governo, um conjunto de regras de procedimento para a formação de
decisões coletivas, no qual está prevista e facilitada a ampla participação dos interessados4.
II
III
E, a partir deste ponto, trata-se de delimitar o ambiente no qual nasce este discurso,
pois enfrentamos uma greve de parte dos estudantes da melhor universidade do Brasil, a
Universidade de São Paulo. No momento em que escrevo, alunos estão acampados dentro do
prédio da reitoria invadida. Esta imagem, a de um prédio invadido, foi tornada em lugar
4
Idem.
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Esta parte II baseia-se em texto de Bobbio, Norberto – A Democracia e o poder invisível, in O Futuro da
Democracia – uma defesa das regras do jogo – Edit. Paz e Terra, 1984.
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comum nas lutas políticas do país, tanto como última alternativa aos esforços por resultados e
tanto como falta de criatividade, consequência do método - ou da falta dele - da ação pela ação.
Instalada esta polarização no ambiente acadêmico, tem-se de um lado, a direção da
universidade, reclamando da violência dos manifestantes - a quem acusa de se negarem ao
diálogo maduro -, determinada a cumprir a lei e a manter a ordem; do outro, sindicatos,
associações e centros estudantis acadêmicos, determinados a avançar no desenvolvimento dos
mecanismos de participação nas decisões da universidade e nas políticas democratizantes6.
Note-se que ambos os lados lidam com diferentes efeitos do agarramento ao poder de
seus territórios e da negação constante da autodissolução. Se, por um lado, a reitoria – entidade
que, no limite, representa a todo o campus - não entende a razão daquilo que classifica como
violência e falta de espírito colaborativo, portanto, de não adesão; a união dos estudantes,
sobretudo esta, não compreende a cisão entre o próprio alunado a quem especificamente
representa, uma vez que parte expressiva do corpo discente não adere à paralisação pretendida
e decretada em assembleias, ou seja, nas instâncias democráticas onde as decisões são tomadas
– muito embora, a invasão do prédio não tenha sido votada. Instadas a responder a tais
questões, as respostas não se diferem. A união dos alunos defende a legalidade dos atos que
não foram votados em assembleias – como o primeiro ato de invasão, por exemplo; discute-se
apenas a sua manutenção – e, portanto, a descredibiliza. Embora, simultaneamente, defenda
que as reinvindicações sejam discutidas em assembleias, onde controla as maiorias votantes. A
reitoria, por sua vez, sente-se acuada justamente devido às consequências que enfrenta por suas
decisões não referendadas, obtidas a partir de reuniões fechadas às entidades que constituem o
campus que ela representa, condenando suas ações ao descrédito.
Não é que se condene as formas tradicionais de representação política, pelo contrário,
simplesmente elas não estão sendo sequer reconhecidas como existentes em função mesmo
daquilo a que se destinam. No Egito, em Paris, no Brasil e, agora, na USP, algo entrou em
ebulição e escapou ao controle das formas racionalizadas de mediação entre interesses pessoais
e coletivos; públicos e privados. O fenômeno, que se espalha como uma praga, ameaça minar
até as melhores e também as mais perversas intenções de facções que até hoje confiavam sua
solidez a um certo mecanismo democrático como instrumento de medida de credibilidade e
legitimação. Na exata proporção em que se produz um discurso que representa, torna-se
credível e, desde que se proceda em conformidade com o protocolo, atinge-se a legitimidade.
Esta lógica, nascida de mãe solteira, na estrada pavimentada por sangue e boas intenções,
trouxe consigo o veículo sem o qual a figuração fantasiosa jamais poderia se tornar efetiva: a
linguagem. Para ser mais modesto e panfletário; o discurso. E ainda mais simplório; a narrativa
dos fatos, a bicicleta do herói. As instituições narram os fatos, contam a história, elegem
inimigos, aliados, mitos, guerras, batalhas e conquistas, se justificam.
Um experiente veterano do curso de filosofia uspiana nos adverte em palestra rápida:
“vocês realmente sabem o que está se passando na faculdade? Eis os fatos atuais com que nos deparamos:”
entre expressões como “herança da ditadura” “fomos barrados”, “impedidos de participar”, “entulho
6 O CO (Conselho Universitário) da USP (Universidade de São Paulo) decidiu, em reunião, em 01/10/13, realizar mudanças no
processo eleitoral para os cargos de reitor e vice-reitor da universidade. Entre as mudanças aprovadas na reunião estavam o fim da
eleição em dois turnos e consulta prévia a estudantes, professores e funcionários. A principal solicitação do grupo de manifestantes, as
eleições diretas para os cargos, não foi acatada. Mais do que isso, o grupo invasor alega que tentava participar da reunião do CO e foi
barrado em sua tentativa. Houve protesto de estudantes do DCE, alguns professores e o Sintusp, o sindicato dos funcionários da USP.
Eles invadiram o prédio da reitoria para pedir por eleições diretas e maior participação no processo eleitoral. Pelo Facebook, o DCE
Livre da USP disse não aceitar mais que a escolha do reitor parta do governador do estado e pediu também participação mais efetiva
no CO – o Conselho Universitário, órgão máximo de decisões na instituição. O grupo decidiu ainda permanecer na reitoria e realizar
assembleias para decidir quais rumos a manifestação deveria tomar.
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autoritário” etc., demonstrou como é justa a “luta” dos estudantes. A reitoria, ela própria,
enxergada como algo que não representa a quem deveria, não foi menos mistificadora; expediu
comunicado em que usava expressões como a pérola: “Não há, neste comunicado, qualquer
julgamento de ordem política ou moral a respeito da decisão dos estudantes”; “Estamos em uma ordem
democrática e as manifestações de expressão política são legítimas”; para concluir: “Não há, porém, como
negar seus possíveis desdobramentos e consequências”; e outras. O reitor, por sua vez, em entrevista a
jornal de circulação nacional, defende “reivindicações fortes em paralelo a posturas colaborativas, sem
invasões, sem violência”.
O quadro de divisão político e ideológico dentro da universidade segue mais ou menos
o que acontece na sociedade. Dentro da USP, a reitoria representa a centro direita, ou social
democracia; as organizações de alunos, professores e funcionários representam o pensamento
de origem ou influência marxista. Na visão destes, a reitoria se associa a tudo que é
conservador e seus métodos são “herança ditatorial”. Por seu lado, a direção da universidade
associa as mais proeminentes entidades representativas de alunos, professores e funcionários
com o dogmatismo e com atos de violência injustificada e espírito pouco solidário.
O que impressiona é a rigidez das expressões, o caráter de fixidez exposto pelas
atitudes institucionalizadas. É como se dissessem: “é isso e pronto”! E enquanto as partes se
fixam em suas posições belicistas, o importante notar é que ambos os lados não percebem que
seus atos refletem a maneira como eles se vêem a si próprios. Nem um lado nem o outro se
percebem como elementos móveis e dinâmicos. Agem como elites agarradas ao poder de seus
exércitos, à narrativa de suas batalhas e conquistas, protegendo a sala de troféus. Não são
capazes de perceber a natureza impermanente de sua utilidade e tentam se manter úteis em
função de um algo que precisa ser fabricado. Este algo traduz-se na própria razão de um porque
existo. Ou o círculo: Devo me justificar, pois existo e, se me justifico, existo, se existo, preciso me justificar.
Analisam o mundo em função daquilo que os justifica e assim por diante.
IV
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Berzin, Alexander – Introdução ao Budismo Tibetano -
http://www.berzinarchives.com/web/pt/archives/advanced/tantra/level1_getting_started/meaning_use_manda
la.html
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existência/construção baseia-se na busca de um ensinamento, um conhecimento e um
investimento temporário de poder; uma necessidade provisória de ação. O sistema de mundo
representado pela mandala externa consiste numa representação complexa que instrui sobre o
sistema Kalachakra, que determina um tempo descontínuo, não linear e cíclico. O importante é
que a oferta da mandala representa a voluntariedade de dar tudo no universo para receber
ensinamentos, votos ou empoderamentos. E repare-se, a eficácia da mandala em acumular
força positiva depende da pureza da motivação, do nível de concentração e da profundidade da
compreensão da vacuidade de nós próprios – nosso próprio caráter provisório -, a fazer a
oferenda, dos objetos a quem nós a oferecemos, da própria mandala e da ação de oferecê-la.
Ou seja, a instituição que busca representar algo deve se enxergar como alguma coisa
que se valida na própria precariedade e transitoriedade sem nunca se investir de um caráter de
permanência e linearidade histórica. As mandalas são construídas na maior parte das vezes com
um pó finíssimo de várias cores, de manipulação extremamente delicada. Complexas, leva-se
dias até que fiquem prontas, tamanhas as dificuldades de execução. Sua elaboração dura todo o
período em que o ensinamento está sendo produzido – sendo este o próprio percurso
realizado – para, ao final - finalmente completas em seu apogeu - serem dissolvidas ao vento,
destruídas mesmo depois de tanto trabalho e sacrifício. O processo, por certo, é algo acerca do
qual nós ocidentais temos uma enorme dificuldade de compreensão. Mas isto ilustra que o que
destrói uma instituição é a sua fixidez e não o contrário, pois a autodissolução pressupõe que
se iniciará uma nova fase de ensinamento/aprendizagem, reconstituição.
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justifica, mas também estanca, bloqueia, recalca e perde sua autonomia e força orgânica. Neste
processo, em que a realidade dos agentes perde seu dinamismo e passa a apresentar a fixidez de
um ser inorgânico, atua contra a autoconsciência do coletivo, reificando8.
A repetição das narrativas anteriores tenta trazer os mortos da tumba, mas é a expressão do
discurso de morte que é requisitado pelo que foi recalcado. É a ponta do iceberg, é a patologia.
E a constante autodissolução é o remédio a este diagnóstico. A reificação é momento da
patologia no qual o represamento da natural necessidade de expressão do sujeito - que busca
na representatividade sua forma de expressão – retorna como uma objetificação de si mesmo.
E uma vez tornado objeto, o indivíduo ou agente passa, como coisa, a ser manipulável pela
ilusória figura da instituição que o “representa” – e esta instituição se confunde com a sua
própria narrativa. Descoisificar seria então o resultado de uma atuação que redinamiza,
dissolve-se e renasce.
A busca constante da renovação não coincide com a existência de mandatos tão longos,
mas com o julgamento do grupo de indivíduos ao término de cada jornada. É vitalizante que as
instituições promovam autodissoluções frequentes, num ritmo não programado e com duração
relacionada a processos específicos, tanto no caso de fenômenos eventuais ou aleatórios, como
no de eventos perenes previsíveis no tempo e no espaço. Se entendermos os processos como
aprendizados que não podem ser retidos no tempo - por se tornarem parte da galeria de
troféus e capítulos da narrativa patológica -, mas que duram e se relacionam apenas com os
eventos do tempo presente, teremos a oportunidade única de vivermos eventos da realidade
como rituais dinâmicos, com alargado quadro de experiências possíveis, além de maiores
chances de diálogo com os indivíduos representados. Nesta constelação, pode-se entender
porque a reitoria da universidade não consegue dialogar, mas, ao contrário, é antes dialogada
por quem a manipula; e também as entidades do campus, tornadas em peças ultrapassadas,
sem capacidade de renovação e real representatividade. São ambos coisas estranhas à própria
USP.
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André Bechelane é jornalista e cineasta, atualmente é graduando de Filosofia, na Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo..
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COISIFICAÇÃO [O conceito foi desenvolvido pelo filófoso George Lucács (1885-1971), tendo em mira uma crítica aos mecanismos do sistema
capitalista]