QUERO
SER
SEU
IRMÃO
Quero
Martinho – Jorge – Otília
ser
Sebastião – Maurício – Beatus
seu
Plácido – Isabel da Hungria
irmão
Christóforo – Roque – Francisco
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Título original: ICH WILL DEIN BRUDER SEIN
(Verlag Freies Geistesleben, Stuttgart, 1983)
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ÍNDICE
MARTINHO 5
JORGE, o Cavaleiro 12
OTÍLIA 16
SEBASTIÃO 24
MAURÍCIO 28
PLÁCIDO 58
ISABEL DA HUNGRIA 66
CRISTÓFORO 71
ROQUE 78
FRANCISCO DE ASSIS 84
POSFÁCIO 100
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MARTINHO
A Origem de seu Nome
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Os Torturadores de Animais
Martinho herdara do pai a coragem e da mãe o bom coração. Quando via um garoto
atormentar um animal, ele não deixava. E, como era considerado forte e justo, sua
palavra valia. Certa vez, caminhando pelo campo, observou três garotos num lago
maltratando sapos. Tinham amarrado suas pernas com barbantes e se divertiam com os
animais maltratados, que se debatiam, dando sempre voltas em torno de si mesmos.
Martinho ficou indignado e gritou: “Vocês aí! Que estão fazendo? Os animais estão
sofrendo! Soltem-nos!” Uma risada irônica foi a resposta. O maior dos garotos se
levantou, tirou uma corda grossa do bolso e disse aos outros: “Venham, vamos
também amarrar as pernas dele!”, e logo se foi aproximando. A raiva, porém, duplicou
a força de Martinho. Ele pegou o garoto por baixo e, antes que os outros pudessem
socorrê-lo, jogou-o na água barrenta do lago. Os outros dois, então, se lançaram sobre
Martinho. Este foi ligeiro. O segundo garoto voou, de cambalhota, atrás do primeiro.
O terceiro escapou e fugiu chorando, numa correria que só dava para ver a sola de seus
pés. Enquanto os outros dois saíam da água rastejando, Martinho abria os nós que
prendiam os sapos e os deixava, um por um, escorregar com cuidado para dentro do
lago.
Enquanto isso, os outros dois garotos se afastaram saindo da água, limpando suas
calças barrentas. Não tinham coragem de agredir Martinho novamente. Este, por sua
vez, depois de devolver todos os sapos ao lago, foi para casa.
Quando, certa vez, o pai almoçava em casa, comentou à mesa com a mãe sobre
pessoas que haviam abraçado uma nova religião. “O povo os chama de cristãos. Eles
desprezam os antigos deuses. Seu símbolo secreto é o peixe. Alguns não querem ser
soldados. Eles acham que todos os seres humanos são irmãos e irmãs. Já que o
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imperador aceita o comportamento dessas pessoas, não se pode fazer nada contra
elas.”
Martinho perguntou: “Também há cristãos em Pávia?”
“Sim, existe uma casa perto da comporta, onde eles se encontram; porém são poucos
nesta cidade.”
A partir daí, muitas vezes Martinho pensava nos cristãos, que queriam ser irmão e
irmã de todos os homens. Por curiosidade, numa certa noite ele andou em direção à
comporta. Vinha de uma casa o som de um canto. De fato, no arco da porta um peixe
tinha sido gravado na pedra. Martinho gostaria de ter entrado. Quando ficou ali
parado, pensando, ouvindo o canto e observando o desenho do peixe, um homem e um
adolescente passaram. Entrando pela porta, o homem virou-se, convidando Martinho
para ir junto. Assim, pela primeira vez, ele se via entre os cristãos. Ouviu como o
mestre deles morreu na cruz em Jerusalém, ressurgindo do túmulo no terceiro dia. E
que, desde então, o mestre caminha invisível pela terra, assistindo, consolando e
despertando amor no coração humano. Em casa, Martinho não podia dizer nem contar
nada daquilo aos pais, por ter percebido que seu pai era hostil aos cristãos. Mas estes
conseguiram conquistar o coração de Martinho. Apesar das poucas oportunidades que
tinha de ir lá, cada vez mais seu coração se enchia de um amor maravilhoso pelos
seres humanos, pelos animais e por toda a criação.
O duro Caminho
Sendo filho de um cavaleiro e capitão romano, Martinho foi entregue pelo pai a um
mestre, com o qual ele aprendeu a usar arco e flecha, a lançar dardos, cavalgar e guiar
biga. Aos quinze anos, o pai o declarou soldado. Assim, ele tinha de participar de
incursões contra os germanos, que sempre invadiam terras romanas. O soldado
passava por muita privação e duras lutas. Assim, decorreram muitos anos, enquanto
Martinho servia em sua tropa. Ele havia perdido toda ligação com os cristãos. Mas,
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como soldado, havia alguma coisa dentro dele que não o deixava feliz: ele podia
utilizar força e coragem na luta, mas seu coração continuava vazio.
No outono, quando os dias ficaram mais frios, aconteceu que a tropa chegou à região
da cidade Augusta Treverorum, hoje chamada Trier. Era onde a Gália fazia divisa com
a Germânia. Os combatentes e oficiais, por merecimento, receberiam roupas novas.
Martinho também estava entre eles. Havia um grande e amplo manto forrado com pele
de ovelha, para o inverno, e cujo comprimento também cobria o cavalo. No começo do
mês de novembro, a legião em que Martinho servia foi transferida para a região de
Amiens.
O Encontro
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desapareceu, Martinho sentiu como se um raio quente de sol tivesse entrado em seu
coração, um raio que nunca mais se apagaria.
No Símbolo do Peixe
No dia seguinte, quando Martinho caminhava pensativo e sem rumo pelos becos da
cidade de Amiens, passou por uma casa onde viu gravado o símbolo do peixe. Ele
entrou e foi recebido amigavelmente pela pequena comunidade. Deu, então, notícias a
respeito dos cristãos de Pávia. Ali, após alguns dias, recebeu o batismo cristão. E
agora, deveria continuar sendo guerreiro?
Conforme a regra naquele tempo, um soldado romano só podia deixar o exército após
vinte anos de serviço militar. Em sua aflição, Martinho foi procurar o sábio professor
cristão Hilário, que vivia nas proximidades da cidade de Poitiers. Após longa
conversa, quando Hilário compreendeu que Martinho queria ser cavaleiro de Cristo,
deu-lhe um bom conselho. Naquele tempo, o imperador cristão Constantino tinha
lançado um novo decreto, pelo qual, alguém que queria ser sacerdote, podia deixar o
exército. Sabendo desse decreto, Hilário aconselhou Martinho a fazer isso. E assim
aconteceu. Martinho passou a ser discípulo do sábio Hilário. Com ele, aprendeu sobre
a vida e a mensagem de Cristo, conseguindo aceitá-las totalmente em seu coração.
Devolveu couraça e armas, cavalo e espada e se vestiu de maneira simples. Como
levava dentro de si a bênção de Cristo, pôs sua vida a seu serviço, pregando a
mensagem cristã aos pagãos da Gália.
Sonho e Viagem
Numa noite, quando estava dormindo, Martinho ouviu uma voz, intimando-o a visitar
seus pais que haviam voltado para a Hungria. Martinho escolheu o caminho que subia
pelos Alpes em direção a Milão e Pávia. Quando passava por um atalho solitário nas
montanhas, irromperam ladrões. Um agitava o machado por cima da cabeça dele,
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querendo matá-lo. Rapidamente um outro ladrão interveio, pegando a mão do que o
queria matar, segurando-a. Martinho foi amarrado. Por não terem achado nenhum
dinheiro ou valor com ele, queriam vendê-lo como servo. Deixaram-no sob a guarda
do ladrão que evitara sua morte. Os outros se afastaram para cometer outros roubos.
Quando Martinho ficou a sós com o que salvou sua vida, começou a conversar com
ele. Como este lhe abriu o coração, contou sobre o filho de Deus, crucificado em
Jerusalém junto com dois ladrões, um à sua direita e o outro à sua esquerda. Ele
contou como um deles mudou antes de morrer, arrependendo-se e acolhendo as
palavras de Cristo. A narrativa de Martinho tocou tão profundamente o coração do
ladrão, que ele soltou as correntes, deixando-o livre para seguir seu caminho.
Tendo chegado a Pávia, Martinho soube que seus pais, na verdade, tinham voltado
para Panônia, sua terra natal. Assim, ele caminhou até a cidade de Sabaria, onde os
encontrou novamente. Sua mãe aceitou de todo o coração as palavras e a mensagem
que Martinho trouxe. Mas seu pai disse: “Eu vivi e lutei com o deus Marte; ele é mais
velho que o seu Cristo!” E manteve sua opinião.
Após muitas andanças, Martinho voltou para junto de Hilário, perto de Poitiers, e se
dedicou a pregar a palavra de Cristo entre os Gauleses.
Martinho de Tours
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ser seu pastor superior. Daí veio o costume de, em 11 de novembro, dia de Martinho,
cada família daquela região assar um ganso.
Martinho não ficou muito tempo a serviço da igreja. Os muitos visitantes diários o
perturbavam. Ele procurou, fora da cidade, uma ermida silenciosa. Aos poucos, uma
irmandade se estabeleceu ali e construiu um mosteiro. Seguindo o exemplo de
Martinho, eles levavam uma vida devota e ativa. Chegavam lá doentes e pessoas
desesperadas, malfeitores e pecadores. Martinho foi para todos como um irmão. Já que
ele não tinha mais um manto nem outros bens, ele os presenteava com os ricos dons de
sua alma, de seu coração.
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JORGE, O CAVALEIRO
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Mais uma vez, o rei mandou mensageiros ao sábio eremita. Quando este soube da
triste noticia, ficou muito aflito e disse: “Voltem daqui a três dias para ouvir meu
conselho!”
Quando, passado esse tempo, os mensageiros voltaram, o sábio, de inicio, não queria
dar conselho algum. Mas eles insistiram: “Sem seu conselho, não poderemos voltar à
presença do rei. Ele nós culparia pelo fato de você não nos dizer nada.” Então o
eremita deu uma triste noticia: “Para apaziguar de novo esse dragão, é preciso que ele
prove sangue humano. O sacrifício de uma donzela pode dar resultado!” Os
mensageiros levaram essas palavras ao rei e seus conselheiros. Foi imenso o horror
que sentiram. Mas nada mais se podia fazer, a não ser reunir na cidade todas as
donzelas e fazer com que tirassem a sorte, a fim de decidir qual seria a infeliz que teria
de se sacrificar.
À beira do mar havia um rochedo chamado Pedra do Dragão, porque era próximo dali
que o horripilante animal costumava sair das águas. Para lá foi levada a donzela que
havia tirado a varetinha vermelha. Seus olhos foram vendados, e ela foi amarrada
firmemente na pedra. O dragão saltou fora das águas, engoliu-a de uma só vez e
desapareceu rapidamente entre as ondas. No entanto, do meio do povo elevou-se um
murmúrio, porque a filha do rei não participara do sorteio. Quando um novo sorteio foi
necessário, uma multidão chegou às portas do castelo, gritando em altos brados: “A
princesa Eleisa também deve participar do sorteio! A princesa Eleisa também!”
O rei não teve como se defender da exigência do povo, pois seus conselheiros também
estavam de acordo com ela. E assim Eleisa ficou na fila, junto com as demais donzelas
da cidade, para tirar a sorte. O mais graduado dos conselheiros do rei segurava um
saquinho de veludo negro, onde estavam enfiadas muitas varetas bem fininhas. Em sua
metade superior, que aparecia para fora do saquinho, todas as varetas eram iguais. A
metade inferior era pintada de branco, menos a de uma vareta, que era rubra como o
sangue: era a que indicava o sacrifício. Quem tirava uma vareta branca sentia o
coração bater de alegria. Eleisa tirou a varetinha rubra.
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Por mais que seu pai e sua mãe chorassem e lamentassem, sua filha foi conduzida até a
Pedra do Dragão. Quando, porém, quiseram prendê-la a uma argola de ferro, como era
uso fazer, Eleisa pediu: “Não me prendam à pedra. Não vou fugir, e meus olhos eu
mesma vou vendá-los com meu véu branco.” Assim dizendo, puxou o fino véu sobre o
rosto e sentou-se no rochedo.
No alto da muralha que circundava o castelo, ficaram seus pais, implorando aos
antigos deuses pagãos que acontecesse um milagre e sua filha fosse salva.
O mar cresceu em grandes ondas, que batiam espumando na Pedra do Dragão.
Repentinamente, no alto de uma colina próxima, surgiu um cavaleiro montado num
corcel branco. Sua armadura reluzia ao sol. Certamente ouvira falar dos
acontecimentos, pois ao divisar lá embaixo, na beira do mar, a linda donzela exposta
na Pedra do Dragão, fez soar um chamado, e seu cavalo disparou colina abaixo em
direção ao mar revolto. Logo emergiu da espuma a cabeça do dragão. Sua goela,
abrindo-se ávida, arreganhava os dentes na direção do rochedo. Quando, porém, o
monstro se arremessou para fora das águas, diante dele postou-se o cavaleiro,
brandindo a espada e empunhando a lança. Após violenta luta, ele traspassou o corpo
escamoso do monstro. Nos fortes estertores da morte, o dragão caiu para trás dentro
d’água e afundou, deixando atrás de si um escuro rastro de sangue.
No momento em que começara o tinir das armas, Eleisa retirou do rosto o fino véu e
assistiu de perto a assustadora luta. Quando o dragão afundou nas ondas, ela viu o
cavaleiro estranho e maravilhoso apear do cavalo. Ele fincou sua espada na terra e
ajoelhou-se em oração. Com espanto, Eleisa viu-o fazer o sinal de uma cruz na direção
em que o dragão afundara. Notou também que o cavaleiro trazia desenhada em seu
escudo uma cruz vermelha. A princesa ainda estava toda trêmula do susto sofrido.
Quando, porém, o cavaleiro lhe estendeu sua mão forte e a ajudou a descer do
rochedo, uma grande calma e um novo ânimo fluíram para dentro de seu coração.
Do alto da muralha da cidade, de onde assistira a luta, o povo irrompeu em
manifestações de júbilo. Os grandes portões se abriram, e a multidão afluiu em bandos
na direção da Pedra do Dragão. Eleisa e seu salvador foram rodeados e festejados. O
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pai e a mãe, felizes, abraçaram a filha. Diante de todo o povo, o rei perguntou ao
cavaleiro:
“Nobre cavaleiro e salvador desconhecido, diga-me qual o seu nome, para que eu lhe
possa agradecer, e diga-me em nome de quem você lutou!”
O cavaleiro, então, apontou para a cruz em seu escudo e disse:
“Jorge é o meu nome. Luto em nome de Cristo, e Micael, o guerreiro celeste que
combate as trevas, é quem me dá forças!
O povo concentrou-se em volta de Jorge, desejando saber mais a respeito do novo
símbolo. Então, o cavaleiro subiu à Pedra do Dragão e anunciou ao povo a mensagem
da cruz de Jerusalém.
O rei teria gostado muito de manter em seu reino o corajoso cavaleiro e de lhe dar sua
filha em casamento. Contudo, já no terceiro dia, ele se despediu, partindo para realizar
novos atos de bravura. Na despedida, Eleisa amarrou na ponta da lança, como
lembrança, seu véu branco, e ele tremulou como uma flâmula, até bem longe, quando
o cavaleiro desapareceu atrás da colina e da floresta de palmeiras.
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OTÍLIA
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“Pegue a menina! Vá com ela para uma região isolada. Lá, cuide para que a criança
cresça em paz!” Ela entregou para a ama um saquinho com algumas moedas de ouro e
prata, a fim de que não passassem necessidades. A ama respondeu: ”Senhora Duquesa,
eu amo esta criança. Vou cuidar dela como se fosse minha.”
Com um peso no coração, a mãe deixou as duas partirem. A ama caminhou para bem
longe, até que encontrou, numa região afastada, uma tranquila casa de camponeses.
Estes a aceitaram como criada, achando que a menina cega fosse sua própria filha.
Assim ela cresceu. Como era inteligente e esperta, a ama pensou: “Vou levar a menina
para uma abadia, para ser educada por boas freiras.” Ouvira falar da abadia de Balma,
em Vogesen. As irmãs da abadia acolheram a cega com carinho e boa vontade.
Permitiram que a ama ficasse como ajudante. A menina aprendeu a cantar, a executar
finos trabalhos manuais e a fiar, e sua mente se tornava cada vez mais ativa.
Quando ela estava mais ou menos com doze anos de idade, o bispo Ehrhard de
Regensburg teve uma experiência estranha. À noite, ouviu uma voz que lhe dizia:
“Ehrhard, parta para a abadia de Balma. Lá você encontrará uma menininha, cega de
nascença. Dê-lhe o batismo cristão! Deve acontecer um milagre com ela.”
Portanto, Ehrhard se pôs a caminho e encontrou na abadia de Balma a menina cega,
conforme lhe fora prometido. Quando ela soube que ia ser batizada, ficou
profundamente feliz e se preparou com uma prece fervorosa. As mãos de Ehrhard, que
diariamente, durante mais de cinquenta anos se uniam em oração, irradiavam força na
bênção. Quando derramava a água benta na cabeça da batizada, deixando as mãos
descansarem sobre os olhos da menina, deu-lhe o nome de Otília. Neste momento,
uma luz traspassou o interior da batizada tão intensamente que abalou sua alma. Ela
caiu em pranto, sentindo que as lágrimas estavam lavando a escuridão de seus olhos;
tudo diante dela ficava cada vez mais claro. Teve de fechar os olhos, para não ser
ofuscada. Em seguida, a abadessa e Ehrhard levaram a menina pelas mãos, através da
igreja em direção à abadia.
Quando os olhos se haviam acostumado à luz, Otília enxergou nitidamente. Agora,
reconhecia as pessoas a seu redor pelo rosto; pois, até então, só as diferenciava pela
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voz e pelo andar. Daí por diante, sempre se alegrava, dia após dia, em apreciar as
árvores, as flores, as nuvens e toda a criação de Deus. E frequentemente ela dizia:
“Meus olhos estão felizes: eles podem contemplar este mundo tão lindo!”
O que se passou em Balma logo se espalhou como sendo um milagre, e a notícia
chegou até a corte do duque Eticho. Uma peregrina que pernoitou no castelo contou o
maravilhoso acontecimento para a duquesa. Como há anos ela não sabia notícias da
filha, foi tomada por um forte pressentimento de que a menina curada poderia ser ela.
Entrementes, um ano após ter mandado embora a ama com sua filhinha, a duquesa deu
à luz um menino. Ele se chamava Hugo e era muito dedicado à sua mãe Bereswinde.
Ela contou a ele, que era então um jovem escudeiro, a respeito sua irmã cega,
abandonada e de sua suposição de poder encontrá-la na abadia de Balma.
Imediatamente, ele se dispôs a procurar o lugar e descobrir se a curada era realmente
sua irmã. Hugo montou a cavalo e foi embora, sem avisar ao pai aonde ia e o que tinha
em mente. Após três dias, achou a abadia. Estando sozinho na presença da abadessa,
apresentou a pergunta da mãe, a duquesa de Hohenburgo:
“Por favor, diga-me sinceramente, como a menina veio a se abrigar com vocês na
abadia?”
A abadessa respondeu: “Jovem cavaleiro, vejo que você está procurando sua irmã
ardentemente. Sim, Otília provém do castelo de Hohenburgo. Com o intuito de salvá-
la da raiva do pai, ela foi trazida para cá!” Em seguida, mandou chamar Otília. Ao vê-
la, Hugo ficou imóvel, profundamente impressionado com sua beleza radiante. A
abadessa disse a Otília que aquele jovem, que estava diante dela, era seu irmão Hugo.
Aí seu rosto se iluminou. Com as duas mãos ela o cumprimentou tão alegremente que
o conquistou na mesma hora. Ele disse:
“Querida irmã, você vem comigo? Sua mãe sente muitas saudades de você, e também
seu pai ... por sua vez ... vai recebê-la bem ...” Ao pronunciar estas últimas palavras
sua voz se interrompeu; já que seu pai nem sabia que ele tinha ido embora. Otília
abaixou a cabeça durante um tempo, como se estivesse escutando dentro de si, e
respondeu:
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“Querido irmão, por minha mãe eu vou com você!”
A Volta
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A pobre mãe irrompeu em lágrimas. O duque, contudo, deixou o aposento caminhando
ruidosamente.
Enquanto isso, Otília, seguindo o caminho atrás do irmão, encontrou uma cabana de
gente pobre. Viu três crianças tristes sentadas na frente e se aproximou delas. As
crianças entraram e a levaram para junto da mãe doente. Quando esta, por sua vez, viu
a personagem estranha e de uma beleza pura, acreditou, em sua febre, que a mãe de
deus viera visitá-la, ou então que um anjo vinha buscar sua alma.
Otília pegou nas mãos da mãe febril. Uma corrente de saúde e força passou dela para a
doente, de modo que, passado tanto tempo, ela conseguiu se erguer sozinha na cama,
sentindo que ia sarar novamente. Esta foi a primeira vez que Otília percebeu que podia
passar aos doentes forças curativas.
Quando estava saindo da cabana, seu irmão se aproximava cavalgando. Ele disse:
“Venha Otília! A mãe está transbordando de alegria por sua volta e, neste momento,
está falando com o pai.”
Juntos subiram em direção ao castelo. Ao passarem pelo portão, o duque entrou no
pátio. Ele gritou para Otília: “Quem lhe permitiu entrar neste castelo contra minha
vontade?” – “Eu, pai!”, gritou Hugo, aproximando-se corajosamente. O pai, então,
levantou o cajado e deu-lhe uma cajadada na cabeça que o fez cair sangrando. Otília se
ajoelhou ao lado dele. Com um paninho tentou estancar o sangue. Ele a fitou com
olhos rígidos e sussurrava morrendo: “Otília, irmãzinha!”
Neste momento, a mãe se precipitou para fora da casa e, lamentando-se, caiu ao lado
do filho moribundo. O duque ficou pálido, deixou cair o bastão, deu alguns passos
para trás e desapareceu dentro da casa. Quando Otília abraçou a mãe, esta gritou:
“Recebi de volta a minha filha para perder o filho?”
Aí, Otília pôs as mãos sobre a cabeça do irmão e implorou, de todo o coração, a força
curadora de Cristo. A força fluiu por seus braços. Dentro do jovem, vida e morte
travaram uma luta, e seu corpo já quase rígido mergulhou num sono de cura. Dia após
dia, Otília cuidava do irmão, e o pai não interferia. Entretanto, de costumes cristãos ele
não queria saber nada e ordenou que a filha se adaptasse aos costumes do castelo.
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Sob seus cuidados, o irmão convalesceu a olhos vistos, ficando somente uma cicatriz
na testa como sinal. O duque não comentava mais nada a respeito da presença de
Otília; mas evitava cruzar seu caminho. Assim passou-se um certo tempo. Numa noite,
o duque Eticho convidou alguns cavaleiros e criados de castelos das proximidades
para um banquete. Um porco selvagem tinha sido abatido. Previa-se um banquete
extravagante com bebida e dança. O duque ordenou que, além das criadas do castelo,
Otília também participasse, para adquirir uma visão mais mundana. O irmão a
aconselhou: “Para não provocar a ira do pai, vá por um curto tempo ao salão. Não há
necessidade de você participar desses excessos.”
Quando Otília, chegando à soleira da sala, ouviu os berros e o esbravejar dos
convidados e observou o comportamento deles, se recusou a entrar na sala e voltou
para seu quarto.
No dia seguinte, o pai comunicou à filha que, naquela noite, a havia prometido em
casamento a um dos cavaleiros companheiros da bebedeira. Naquele tempo, cabia ao
pai a escolha do pretendente da filha. Quando ouviu isso, Otília se assustou. Não, ela
não queria assumir uma vida e um comportamento tão grosseiros.
Alguns dias depois, Otília deixou secretamente o castelo, sem se despedir de ninguém.
Mãe e irmão não deveriam ser cúmplices de sua fuga. Na cabana, onde curou a
camponesa, trocou suas vestes boas por vestes miseráveis. Solitária, caminhou para o
sul em direção à abadia de Balma, apesar de mal conhecer o caminho. Por diversas
vezes, escolheu caminhos afastados, temendo que o duque a seguisse. Assim, chegou
aos arredores de Basiléia, encontrando as águas do riozinho Birs. Pela beira, caminhou
rio acima. Sentindo que estava sendo perseguida, sua inquietação ia aumentando.
De fato. O duque Eticho ficou terrivelmente irritado ao descobrir a fuga de Otília.
Decidiu obrigá-la a voltar para casa e a se curvar à sua vontade. A cavalo, com seus
cães de caça e um cavalariço, seguiu o rastro da fugitiva, aproximando-se da região de
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Birs. Otília atravessou o rio num lugar raso e, durante algum tempo, caminhou por
dentro das águas de um riachinho, para apagar seu rastro. O riachinho a conduziu na
direção de uma floresta, acima da região onde ficavam as cabanas de Arlesheim. Ali,
ela encontrou um rochedo com uma caverna estreita no alto. Corajosamente, ela
galgou o rochedo e se escondeu na caverna. Na floresta, abaixo do rochedo, os cães
latiam ferozmente. O duque olhava para descobrir o esconderijo. Nesse momento, da
parte superior do rochedo, soltou-se uma pedra, atingindo-o tão desastrosamente na
cabeça que ele caiu no chão meio inconsciente. O ferimento sangrava no mesmo lugar
onde ele havia ferido o filho com a cajadada. De repente, o duque viu nitidamente sair
do rochedo um vulto claro que, pairando, se aproximou erguendo a mão sobre ele.
Pareceu-lhe então que a luz dessa mão o envolvia. Sentiu a alma em brasa e abalada.
Ela ardia dentro dele, como se toda a sua raiva o queimasse por dentro. O vulto
desapareceu, e ele caiu num profundo desmaio. O cavalariço foi buscar a ajuda de
camponeses das redondezas. Eles puseram o ferido numa maca e o carregaram para
um pátio, cuidaram dele e acorrentaram os cães de caça. Durante dias, com dores, o
duque ficou deitado em silêncio. A camponesa tratava do ferimento com ervas.
Quando, finalmente, ele conseguiu montar, voltou bem devagar para seu castelo, na
companhia do cavalariço e dos cachorros. Durante dias, não disse uma palavra. Sua
esposa, seu filho e os criados perceberam que se dava nele uma grande transformação.
Não se mostrava impaciente nem tampouco irado.
Nesta ocasião, veio da longínqua Irlanda um monge andarilho, que pediu abrigo no
castelo. Naquela época, era costume estes monges irlandeses peregrinarem pela região
da Alsácia, pregando o cristianismo, construindo ermidas e fundando mosteiros. O
duque mandou chamar o monge ao seu aposento. Durante horas este irmão cristão
permaneceu com ele. Não se sabe sobre o que eles conversaram; mas o duque pediu
que ele permanecesse mais tempo no castelo, para lhe dar sua ajuda e ensinamentos.
Isto deixou a duquesa contente. Mas, que aconteceu com Otília? Para onde ela foi?
De seu esconderijo, Otília tinha visto o acidente do pai, mas não se atreveu a socorrê-
lo. Ela viu quando as pessoas o levaram. Durante dias permaneceu na gruta,
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alimentando-se de bagas silvestres e de ervas da floresta, até que uma voz interior lhe
disse: “Otília, você pode voltar para casa. A mente de seu pai está mudada.”
Ao voltar para o castelo, depois de longa caminhada, sua mãe a abraçou cheia de
alegria. Otília, porém, disse-lhe: “Deixe que eu vá sozinha ao encontro de meu pai. Eu
sei que tudo correrá bem!” Ela o encontrou de pé em seu aposento, junto à janela, com
um olhar distante. Com cuidado, bateu na porta mas, como ninguém respondesse,
entrou. Os pensamentos dele deviam vagar muito longe, pois também nem nessa hora
ele percebeu alguma coisa. Otília exclamou: “Pai!”, mas continuou parada na porta.
Ele se virou, abriu devagar seus braços e, pela primeira vez em sua vida, apertou-a de
encontro ao coração. Otília disse: “Querido pai, por muito tempo você errou e sofreu,
até que os olhos de sua alma se abrissem. Cristo tirou de nós dois a cegueira.”
Com a ajuda do monge irlandês, Otília pôde fundar uma abadia de freiras no monte do
castelo. Muitos doentes e miseráveis encontraram lá ajuda e cura, consolo e
transformação. Este lugar veio a ser uma benção para a região. Mais tarde, esta
montanha na Alsácia recebeu o nome de Monte de Otília. O duque Eticho, por sua vez,
se tornou um poderoso protetor do cristianismo nas terras das redondezas.
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SEBASTIÃO
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sob o domínio de Diocleciano, quando se negavam a oferecer sacrifícios aos deuses. O
imperador nem sabia que Sebastião era cristão.
Certo dia, em frente a uma cidade que o imperador visitava, Sebastião acampou com
sua coorte. Ele perambulava sozinho pelas ruas. De repente, encontrou uma multidão
que se aglomerava ao redor de uma praça. Olhando por cima das cabeças ele viu dois
homens que, aparentemente, seriam executados. Eles estavam amarrados em estacas.
Sebastião perguntou a um dos espectadores: “Que está havendo com estes rapazes?” A
resposta foi: “Estes são os irmãos Marcelo e Marcos. Eles se recusaram a oferecer
sacrifício aos deuses!” Sebastião ainda ouvia as últimas palavras, quando os criados do
carrasco espetavam pequenos dardos em seus corpos. Suas vozes soavam claramente
pela praça: “Jesus Cristo seja louvado eternamente!” Sebastião abriu passagem pela
multidão, ao ver na frente os pais dos sacrificados. Seus lamentos comoviam seu
coração. Aproximando-se deles, disse : “Pais, não lamentem, sintam-se confortados.
Foi a vontade de seus filhos, a alegria de suas almas, oferecer seu sangue em lealdade
a Cristo. Eles trocaram a vida passageira na terra pela vida eterna!” Sebastião
continuou a falar de maneira tão convincente que eles se sentiram reconfortados. De
seus filhos eles não queriam aceitar a fé cristã. Agora, sofrendo e profundamente
abalados, assistiram com que firmeza seus filhos aceitaram a morte em prol da
verdade. Entre as testemunhas desse acontecimento, estava um casal, que ouviu as
palavras ditas por Sebastião. Os dois se deram a reconhecer como cristãos. Com eles,
Sebastião acompanhou os pais enlutados, a fim de preparar um enterro. Mais tarde, os
pais de Marcelo e Marcos aceitaram o batismo, o que antes haviam negado aos filhos.
Algum tempo depois deste acontecimento, o imperador mandou anunciar uma grande
festa, que se daria no parque de seu palácio. Muitos nobres bem-vindos ao império
foram convidados. Sebastião estava lá com seu destacamento de segurança. Para testar
a fidelidade e obediência de seus súditos e para apreciar seu poder, o imperador teve
uma ideia. Ele se apresentou vestido de deus Apolo, com uma lira no braço. As
pessoas deviam venerá-lo como a imagem de um deus. Ele ficou de pé ao lado da
chama do altar. A fila de convidados, ao passar, tinha de se prostrar diante dele e
25
exclamar: “Louvado seja Apolo Diocleciano! Louvado seja Apolo Diocleciano!”
Quando Sebastião passou pelo imperador, nada disse nem se prostrou no chão como os
outros. Saudou o imperador como sempre fazia, inclinando a cabeça e levantando a
mão. Diocleciano franziu a testa. Seu olhar irritado acompanhou Sebastião, que se
afastava, caminhando ereto. Muitos convidados repararam naquilo e cochichavam:
“Será que Sebastião quer tornar-se, ele mesmo, imperador, e por isso fez um
cumprimento orgulhoso?” Diocleciano ouviu o que diziam e ficou ainda mais furioso.
Terminada a festa, mandou que o desobediente se aproximasse e se dirigiu a ele com
severidade: “Comandante da coorte, por que você não me prestou as devidas honras
como Apolo?” Dessa vez, Sebastião não podia ficar em silêncio. Ele respondeu:
“Supremo imperador, eu não conheço os deuses antigos. Sou cristão e venero Jesus
Cristo, que desceu dos céus à terra. Sob o poder de Pôncio Pilato, ele foi crucificado
em Jerusalém e ressurgiu dos mortos no terceiro dia!”
Tendo sido ditas essas palavras, foi como se um demônio se apossasse do imperador.
Ele se levantou de um pulo e gritou para os homens de sua guarda pessoal: “Peguem
Sebastião e acorrentem-no!” Assim foi feito. Sebastião foi jogado numa escura
masmorra. A fim de dar um exemplo assustador para seus cortesãos e guerreiros,
Diocleciano ordenou: “Amarrai-o num poste em praça pública para que sirva de
zombaria!” Todos aqueles que invejavam sua beleza, sua alta posição e a benevolência
do imperador para com ele cuspiam a seus pés. Arrancavam pedaços de suas vestes e
zombavam dele. Horas depois, vieram os arqueiros do imperador e começaram a atirar
flechas nele. De pé, em sua nobre beleza, Sebastião recebia flecha após flecha e não
soltava grito algum. Contudo, nenhum dos arqueiros fazia pontaria para seu rosto
radiante. Toda vez que uma flecha lhe atingia o corpo, Sebastião bradava: “Louvado
seja Jesus Cristo!” Os invejosos e os que cuspiram foram-se afastando. No entanto,
cada vez mais gente da cidade se aproximava e mudos assistiam o seu desenlace. Aos
poucos, Sebastião deixou pender a cabeça, e então os arqueiros também se afastaram
furtivamente. Não trocavam palavras entre si. Só um deles balançava a cabeça e
resmungava: “Não consigo compreender, como uma pessoa pode sorrir ao morrer.”
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Durante três dias, o morto, com as flechas no corpo, ficou amarrado ao poste.
Ninguém mais cuspiu ou zombou. Alguns dos que presenciaram o acontecido diziam:
“Sebastião suportou a desonra, a zombaria e as flechas do ódio como um valente
guerreiro.” Os que ouviram seus brados, perguntavam: “Quem é esse Jesus Cristo, que
tem um soldado tão fiel como Sebastião?” Ao verem a firmeza de Sebastião preso ao
poste, muitos despertaram, procuraram por cristãos, ouviram a mensagem e foram
batizados. Assim, na morte, Sebastião seguiu corajosamente os irmãos Marcelo e
Marcos, a caminho de uma nova vida.
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MAURÍCIO
E A LEGIÃO TEBANA
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Octodurum. Maximiano sabia que a legião Tebana era seguidora do cristianismo. Isso
não era do seu agrado; pois para ele Marte, o deus da guerra, era o que ajudava Roma
em suas muitas batalhas vitoriosas. Perto de Octodurum, o exército montou um
acampamento com muitas tendas e fogueiras, para descansar depois da difícil travessia
dos Alpes. Após poucos dias de descanso, Maximiano queria partir em direção ao
norte da Gália, que estava sob domínio dos romanos. O intuito era proteger dos
germanos as fronteiras. Na primeira noite em Octodurum, Maximiano mandou chamar
todos os seus oficiais graduados. Maurício, como comandante superior da Legião
Tebana, estava entre eles. Foram discutidos os próximos passos e etapas da expedição
militar. Terminada a deliberação, Maximiano tomou da palavra e disse: “Para os
planos darem certo, vamos trazer a sorte para nosso lado, com a proteção de Marte, o
deus da guerra. Eu ordeno que seja erguido um altar digno para ele num lugar mais
alto. Concedo dois dias para a construção do local de sacrifício. Uma vez pronto,
façam soar as trombetas. Este é o sinal para que todas as legiões se reúnam para o
serviço divino de Marte!”
Ao ouvir estas palavras, Maurício se assustou muito. Para ele e seus legionários
cristãos, era completamente impossível participar de um sacrifício pagão, um
sacrifício em honra ao deus Marte. Muito preocupado, voltou para junto de sua legião.
Ele reuniu seus capitães, a fim de discutir com eles as ordens de Maximiano. Cândido,
um dos oficiais, deu a seguinte sugestão:
“Nós, da Legião Tebana, poderíamos transferir um pouco nosso acampamento para
um vale mais abaixo. Além disso, aqui estamos muito próximos uns dos outros. Hoje,
pela manhã, cavalguei vale abaixo e encontrei o povoado de Agaunum. Lá existem
campos magníficos. Ficando acampados a mais de uma hora de distância daqui, o som
das trombetas não nos alcançará, e que os outros então ofereçam seu sacrifício a
Marte.” Este conselho de Cândido foi considerado sábio, porque ninguém queria irritar
o imperador e general por desobediência; pois todos da Legião Tebana estavam de
acordo em não participar de um sacrifício a Marte. Então Maurício enviou um
mensageiro a Maximiano, informando que a Legião Tebana tinha encontrado um lugar
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mais confortável, um pouco mais abaixo no vale, e que lá montariam seu
acampamento. Tais mudanças eram comuns, e Maximiano concordou.
Passados dois dias, quando o altar de Marte estava erguido sobre degraus de pedra,
soaram as trombetas, em sinal do começo do sacrifício aos deuses. O som não chegou
ao acampamento da legião Tebana. Esperava-se que o dia transcorresse em paz. Mas
os tebanos se enganaram com Maximiano. Ao descobrir que, entre as legiões reunidas,
faltava a de Maurício, deu ordem para que se adiasse o sacrifício. Mensageiros
montados foram enviados, ordenando aos da Legião Tebana que se apresentassem
imediatamente para o sacrifício aos deuses. Maurício reuniu sua legião e disse:
“Soldados, Tebanos! Nós todos sabemos que o tempo dos antigos deuses já passou.
Cristo veio à terra. Nós trazemos seu sinal em nossos corações. Maximiano ordenou
que partíssemos imediatamente para Octodurum, a fim de participar do sacrifício ao
deus Marte. Quem estiver a fim de obedecer esta ordem, que nada tem a ver com nossa
condição de soldados, que se manifeste. Deixo esta decisão por conta de vocês. Quem
quiser ir dê um passo à frente!”
Ao olhar em volta, Maurício viu que ninguém tinha dado um passo à frente. Vozes
faziam-se ouvir:
“O imperador pode dispor de nossos corpos, e nós lutamos até a morte; mas ele não
pode dispor de nossas almas, obrigando-as a adorar os antigos deuses!”
Diante de tal unanimidade, Maurício se dirigiu aos mensageiros de Maximiano,
dizendo: “Vejam, não há ninguém entre nós cristãos que queira participar do sacrifício
ao deus Marte. Digam a Maximiano que ele pode dispor de nossos corpos para
participar de qualquer batalha perigosa, mas não de nossas almas para participar de um
sacrifício aos deuses romanos!”
Os mensageiros cavalgaram de volta, levando a mensagem. Ao receber tal resposta,
Maximiano ficou furioso e gritou: “Os tebanos não se opõem somente às minhas
ordens; eles ofendem os deuses e desonram a fé dos romanos! Muito bem, eu vou
dispor de seus corpos, de uma maneira que eles jamais esquecerão. Oficiais, vão lá e
façam a Legião Tebana se perfilar. Executem, em meu nome, a dizimação!”
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No exército romano reinava o rígido costume, em caso de motim, de cada décimo
homem ter de sair da fila, para que o carrasco o decapitasse com a espada.
Portanto, os Tebanos tiveram de se enfileirar para que, durante a contagem, cada
décimo homem saísse da fileira. Estes foram afastados, mas diziam uns aos outros:
“Agora vamos deixar a vida terrena, para servir ao general do céu.”
Em campo aberto, tinham de se ajoelhar e, aos golpes dos carrascos, suas cabeças
rolavam por terra, colorindo de vermelho o prado. Um riacho de sangue tingiu as
águas do rio Ródano. Mas Exupério, o porta-estandarte da Legião Tebana, entrou em
êxtase. E viu, dos corpos caídos, as almas dos sacrificados subirem como nuvenzinhas,
que eram absorvidas por uma grande luz, e a claridade que emanava dessa luz estava
repleta de anjos.
Quando os cavaleiros e os verdugos retornaram, Maximiano ofereceu o sacrifício ao
deus Marte, sem a presença da Legião Tebana. Mas, durante a noite, o espírito das
trevas veio até Maximiano e, zombando dele, dizia: “Que tipo de imperador é você, a
quem os combatentes egípcios negam obediência? Em todo o reino vão contar que um
pequeno grupo da Legião Tebana é mais forte que o imperador romano.” Maximiano
não conseguia conciliar o sono e, aborrecido e com raiva, passou metade da noite se
revirando no leito. De manhã cedo, dirigiu-se aos oficiais, dizendo:
“Eu não aceito a desobediência da Legião Tebana. Vamos preparar para hoje um novo
sacrifício em honra a Marte. Tragam Maurício à minha presença!”
O comandante da Legião Tebana foi trazido. Ao chegar diante de Maximiano, este o
censurou: “Ontem você me fez perder uma porção de bons soldados, porque não soube
curvá-los ao meu desejo. Darei a você e a seus homens mais um prazo. Quando o sol
estiver a pino, e com a presença da Legião Tebana, o sacrifício a Marte será repetido.”
Com estas palavras, Maximiano dispensou Maurício. Este, voltando a seus homens,
transmitiu a ordem que recebera de Maximiano.
Eles, porém, exclamaram: “Ao redor de nós, ainda jazem corpos e cabeças de nossos
corajosos amigos e irmãos, que aqui vamos sepultar e entregar à terra. Preferimos
curvar também nossas cabeças aos golpes da espada romana, do que renegar Cristo!
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Diga ao imperador: “Nós somos combatentes para proteger o império romano. Não
conhecemos o medo e nem a traição; mas não renegamos Cristo!”
Maurício cavalgou de volta ao acampamento junto a Octodurum. Quando comunicou
ao imperador a recusa da Legião, este fez um sinal a seus guardas pessoais, para que o
liquidassem com suas espadas ali mesmo. Pela segunda vez, ordenou a dizimação dos
legionários rebeldes, caso se negassem a comparecer ao sacrifício. Ele mesmo queria
encarregar-se desses tebanos. Assim, Maximiano foi para Agaunum com algumas
legiões cercar o acampamento. A notícia do castigo infringido a Maurício e da nova
exigência imperial foi transmitida a Exupério, porta-estandarte da legião. Este reuniu
ao seu redor os soldados da Legião Tebana e disse:
“Maurício nos precedeu na morte, executado pela espada, de modo que eu também
não quero pegar em armas, para me defender do assassinato, mas sim largar escudo,
espada e lança e preparar minha alma.” E toda a legião se manteve firme na mesma
decisão.
Nesse meio tempo, Maximiano, acompanhado das outras legiões, cercou
completamente o acampamento. Mais uma vez, a Legião Tebana teve de se enfileirar.
Um comandante romano solicitou de Maximiano o primeiro número, a partir do qual
começaria a contagem, e este exclamou: “Cinco!” Portanto, o comandante começou a
contar a partir do quinto homem, e cada décimo homem estava destinado à execução.
Outra vez se consumou o terrível castigo. Mas, apesar da nova intimação, Maximiano
não conseguiu obrigar a Legião Tebana a participar do sacrifício aos deuses. Diante da
inquebrantável resistência, ele ordenou, raivoso, o massacre. E bradava: “Liquidem
todos! Esta legião deve ser exterminada!”
Então começou uma cruel matança; mas, no tumulto, muitos tebanos conseguiram
fugir. Eles fugiam para as florestas e para o alto das montanhas. Espalharam-se por
uma grande área nos vales da Suíça até Zurique, Solothurn e Genf. Outros fugiam de
volta pelo Grande São Bernardo até a Lombardia. E, onde chegavam, tornavam-se
apóstolos do evangelho. Seguia com eles a força das almas dos companheiros mortos.
Foi assim que, cem anos depois, o império romano e até o imperador se tornaram
32
cristãos. E os fugitivos da Legião Tebana tomaram parte nisso. Aconteceu o que
Exupério prognosticou:
“Onde um grande sacrifício é enterrado, dali podem ressuscitar grandes feitos.”
Décadas depois, no lugar onde Maurício e seus companheiros foram sacrificados, os
monges erigiram uma igreja em sua homenagem. Ela recebeu o nome do corajoso líder
da Legião Tebana: Igreja de São Maurício. No decorrer dos tempos, mais e mais
pessoas se estabeleceram ali, e foi erguido um convento. Nos campos onde foram
enterrados os corpos, os monges descobriram as ossadas dos mártires. Eles coletaram
os restos dos ossos e dos crânios e os sepultaram na igreja. Para que os tebanos e sua
epopeia não fossem esquecidos, os monges do convento instituíram um “hino
perpétuo”. Em grupos que se revezavam, eles cantavam dia e noite sobre o que
acontecera. Cada vez mais, o lugar era visitado por peregrinos de muitos países, que
naquele local sagrado fortaleciam sua lealdade a Cristo. Lá eles ouviam cânticos, nos
quais também as palavras ressoavam:
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In Christo morimur!
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BEATUS
UM IRLANDÊS MENSAGEIRO DA FÉ
O dragão de Sundlauenen
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Assim, os habitantes da aldeia à beira do lago viviam aflitos e com muito medo.
Nenhum dia eles podiam aproveitar, e em nenhuma noite eles tinham sossego.
Então, aconteceu que uma nova época estava por surgir. O Filho de Deus andou pela
Terra como Jesus Cristo e trouxe consolo e amor aos homens. Sua luz se propagou e
encontrou o caminho até a margem do lago de Thun, tal como será contado nas
páginas seguintes, conforme antigos livros e antigas gravuras e lendas.
Por essa época, vivia na Irlanda, naquela ilha longínqua, um jovem rico e belo,
chamado Sualtach. Usava um bracelete de prata no braço e um colar cintilante de ouro
no pescoço. Ao cavalgar pelo país, ouvia-se o som forte dos cascos de seu cavalo
retinindo no chão. Quando menino, ele aprendeu com seu pai a usar a espada e o
escudo. Com a flecha, ele acertava o tronco de uma árvore distante e a maçã no galho.
Soprava o chifre com vigor, quando ia à caça com o caçador e o criado; a lebre e o
cervo, então, corriam por campos e bosques. Muitas vezes, porém, ele vagueava
sozinho pelas florestas sombrias, procurava uma clareira e se punha a ouvir o canto
dos pássaros. Subia pelos galhos das árvores, a fim de ver os filhotes nos ninhos.
Chegando a um riachinho, seguia ao longo dele por tanto tempo, que encontrava a
nascente. Lá, quase não havia pinheiro em que ele não tivesse subido, nem altos
rochedos que ele não tivesse escalado.
Quando Sualtach cresceu e se tornou um rapaz, queria muito sair da casa paterna para
cavalgar pelo mundo; os pais, porém, diziam: “Você é jovem demais, fique ainda
algum tempo no castelo.” Para Sualtach, muitas vezes era difícil conduzir o cavalo ao
castelo, à tarde, quando começava a escurecer. Durante o dia, ele cavalgava, com
vento e tempestade, pelo campo e pela floresta, refrescava-se nas águas do riachinho,
descansava seu coração palpitante no sombreado musgo e gostaria muito de cavalgar
mais ainda para dentro das profundezas da floresta. Os pais perceberam bem que não
podiam reter o filho por mais tempo. Eles pensaram: “É melhor lhe darmos algum
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mantimento e deixarmos que ele parta com nossa benção; senão, ele é capaz de fugir
durante a noite e cair nas mãos de gente ruim ou trilhar caminhos errados.” De modo
que o pai de Sualtach lhe disse: “Querido filho, sei que você gostaria de sair pelo
mundo. Não vamos retê-lo por mais tempo. Siga seu caminho como um bom
cavaleiro, ajude os pobres, ampare os fracos e lute contra os animais selvagens onde
quer que os encontre.” Foi assim que seu pai lhe deu a benção de cavaleiro.
Depois que o jovem se despediu do pai e da mãe, da casa e das terras, saiu do castelo
montado em seu cavalo, acenou com a mão ainda uma vez e desapareceu na floresta
próxima.
Nos primeiros dias, Sualtach encontrou um pastor que ia tristemente conduzindo seu
rebanho para o estábulo. “Ah” – queixou-se a ele o pastor – “Agora mesmo o
enfurecido urso da caverna atacou o rebanho; contra ele não há proteção ou defesa
possível.” – “Você não pode mostrar-me qual é o caminho para essa caverna?” –
perguntou Sualtach – “Eu gostaria muito de encontrar esse animal cruel para que ele
não lhe cause mais prejuízo”. Depois que Sualtach amarrou o cavalo, o pastor o guiou
até o fundo da floresta e lhe mostrou o lugar junto aos rochedos. O jovem cavaleiro
puxou da espada, atirou uma pedra no buraco, e depois de breve luta o urso foi morto.
A pele dele iria dar uma boa cama para o pastor.
De uma outra vez, duas crianças de rosto pálido cruzaram com Sualtach na floresta.
Elas procuravam cogumelos e raízes. Contaram que eram muitos pobres e que não
podiam comprar pão nem comida para levar para casa. Sualtach deu-lhes de presente
seu bracelete de prata.
Assim, o jovem cavaleiro foi dando seus bens de um em um. Por fim, restou-lhe
apenas o colar de ouro. Então, certa vez em que ele, montado em seu cavalo, ia
passando diante de uma cabana, ouviu um choro forte vindo do terreiro. Lá encontrou
uma mulher com seus filhos. Uma doença maligna matara sua única vaca. Em tal
pobreza, onde iriam eles conseguir leite? Sualtach tirou do pescoço o colar e o deu à
mulher, que estava em prantos: “Compre com isto outra vaca”. Antes que a mulher
pudesse agradecer, ele já havia ido embora montado em seu cavalo.
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O Precipício Aterrador
Aconteceu que Sualtach se perdeu na montanha em plena mata, onde não havia trilha.
Ele procurou a torto e a direito por uma saída, mas muitas vezes, à noite, ele ia dar no
mesmo lugar de onde partira pela manhã. Num agreste deserto de pedras, ele precisou
até apear do cavalo e guiá-lo, para que este não tropeçasse e não o fizesse quebrar o
pescoço e a perna. Nenhum caminho aparecia, nenhum telhado de cabana o protegia
nas noites úmidas. E ele ficou até contente de ter podido rastejar para dentro de uma
gruta a fim de dormir. Alguns morangos silvestres lhe serviram de parca refeição.
Quando, mais uma vez montado em seu cavalo, ele vagava pela montanha, chegou
inesperadamente a um precipício, em cujas profundezas uma torrente bramia. Ele disse
para si mesmo: “Seria melhor para mim lançar-me no abismo escuro com cavalo e
espada, do que morrer miseravelmente nestas brenhas. Quem sabe do outro lado do
barranco há um caminho, que me possa levar de volta à companhia dos homens. Vou
dar esse salto para o outro lado!” Por mais que, nas profundezas, troasse a água de
queda em queda, ele incitou seu cavalo a dar um salto impetuoso e se atirou nos ares.
Do outro lado, já os cascos dianteiros batiam na beirada do rochedo, soltando faíscas
das pedras; mas o impulso foi fraco demais. Sualtach ainda conseguiu agarrar-se num
arbusto que verdejava no abismo e, debaixo dele, cavalo e espada precipitaram-se nas
profundezas que bramiam. O manto do cavaleiro rodopiou atrás deles ao sabor do
vento.
Sualtach içou-se pela fenda com seus braços fortes. Penosamente, abriu caminho por
espessas brenhas e logo se encontrou numa tranquila clareira. Espantado, andou por
ali, entre flores e luminosas borboletas em meio aos pinheiros. Imponentes blocos de
pedra estavam na grama formando um grande círculo e se erguiam para o alto como
colunas. Esse círculo de pedras devia ser obra de mãos humanas. Eram doze
imponentes blocos talhados. Na claridade do sol da tarde, eles lançavam longas
sombras sobre o campo. Não seria aquilo um antigo templo solar? Teriam ali sido
feitos sacrifícios sagrados?
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Nisto, Sualtach avistou, no meio do antigo santuário, uma pedra mais baixa. Em cima,
tinha o formato de uma taça ampla. Contudo, não se via ali sinal algum do fogo do
sacrifício. O lugar devia ter sido abandonado há muito tempo. Sualtach pensou: “A
pedra em forma de taça é para mim uma cama bem-vinda.” Ele sentiu por todo o seu
corpo a cavalgada selvagem e o susto da queda. E, então, caminhou para o centro do
silencioso local, deitou-se na pedra em forma de taça e adormeceu.
Por quanto tempo dormiu, não ficou sabendo. Um barulho o acordou. Quando abriu os
olhos, piscando, viu à sua frente um homem com longa barba grisalha e cabelos que
prateavam. Ele não se movia. Observava o rapaz fixamente com os olhos arregalados
de espanto. Seria o sacerdote daquele lugar sagrado? Estaria zangado com ele?
Sualtach mal ousava se mexer. Nisso, percebeu que o ancião sorria. Parecia que não
era a primeira vez que um forasteiro encontrava ali um lugar isolado em sua viagem
pelo mundo.
O velho dirigiu-se a Sualtach: “De onde você veio? E para onde vai?” – “Eu me atrevi
a saltar sobre o abismo e perdi, assim, o manto e a espada: meu cavalo jaz nas
profundezas. Não sei de nenhum caminho que me leve de volta aos homens.” –
“Também sou um homem” – riu o velho, e fez um sinal: “Venha comigo e lhe darei de
comer e de beber!” De boa vontade, Sualtach seguiu o velho até sua cabana ali perto,
na qual ele não havia reparado antes, pois estava oculta sob os pinheiros.
Novo Cavaleiro
O sol já se havia posto. Escurecia, quando o ancião entrou com o jovem na pequena
cabana. Ele atiçou o fogo na lareira e acendeu uma vela. Trouxe um pão de formato
achatado, deu um pedaço a Sualtach e pôs a seu lado uma grande caneca para beber.
Enquanto o jovem cavaleiro se refazia, contava a respeito de sua viagem, de seus pais
e muita coisa de sua vida. Depois, perguntou ao velho sobre o círculo de pedras.
O velho respondeu: “Sim, aqui neste lugar, em tempos passados, eram feitos
sacrifícios sagrados ao sol, para honrar o deus da luz. Agora, porém, Ele desceu à terra
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como Filho do Céu. Seu nome é Cristo, e Ele vive entre os homens eternamente, até o
fim dos tempos.”
Sualtach então perguntou: “Como posso encontrá-lo? É ele algum rei? É belo e
poderoso? Posso servir a ele? Procuro um nobre senhor a quem possa servir com todas
as minhas forças e do fundo do coração!”
O velho observou, interrogativamente, o olhar brilhante de Sualtach, depois disse: “Eu
poderia mostrar a você qual o caminho que leva a Cristo, o Filho do Céu, pois também
eu sirvo a Ele. Fique algum tempo comigo, e eu farei de você um novo cavaleiro.”
Foi assim que Sualtach ficou na companhia do velho e se tornou seu discípulo. Ele o
ensinou a compreender a mensagem que diz como o Filho de Deus se tornou um
homem em Cristo Jesus. O velho também o levou a se encontrar com outras pessoas,
que se denominavam cristãs.
Que faz um novo cavaleiro, tal como o jovem Sualtach, educado para isso pelo velho?
Não monta cavalo algum, não leva espada esse que caminha apoiado em um cajado e
se dirige aos que são pagãos. Naquele tempo, muitos povos viviam atemorizados e nas
trevas por terem perdido os antigos deuses. Seu céu se tornara escuro. Debaixo de uma
porção de carvalhos, os altares de pedra haviam ruído, e o fogo do sacrifício estava
totalmente extinto. Eles não sabiam que uma estrela guiara os três reis numa noite
escura até Belém. Eles não sabiam o que o anjo havia anunciado aos pastores. Não
conheciam a mensagem da vinda de Cristo à terra.
Por isso, novos cavaleiros iam como mensageiros até os povos pagãos, para lhes levar
a boa nova.
Sualtach tornou-se também um desses novos cavaleiros. Porém, antes de sair pelo
mundo, o sábio mestre o batizou com um novo nome: Beatus, assim deveria ele ser
chamado dali por diante. O velho disse: “Por terras e mares, montanhas e florestas,
procure os povos pagãos, para que eles possam ouvir a mensagem, tal como os
pastores no campo e os reis das terras do Oriente.”
Depois dessas palavras, o velho deu-lhe um cajado, amarrou em seu cinto o cantil e
pendurou em seu pescoço uma pequena cápsula fechada contendo pão bento.
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Através da Irlanda, seguiu Beatus vestido com roupa rústica; ia com passos firmes,
tendo de subir colinas e montanhas. Um raminho verdejava no cajado que a mão ia
guiando, e seu olhar se ergueu contente, para os pássaros da manhã que, cantando,
subiam buscando a luz do sol.
E ele se pôs a refletir: “O raio de sol bate no ninho dos passarinhos e diz a eles: ‘Já é
dia’! E eles abrem as asas e saem voando e cantando pelo ar.
O raio de sol bate nas flores e diz a elas: ‘Já é dia!’ E, na mesma hora, elas abrem os
cálices e lançam seu perfume na luz matinal.
No bosque, o ouriço, o besouro na casca da árvore, a todos o raio de sol desperta
quando o dia surge.
Mas as pessoas que moram na terra dos pagãos veem o sol surgir e dizem: ‘Ah, sol,
você brilha com luz clara e quente, mas nosso coração está sombrio, está nas trevas;
pois os antigos deuses nos abandonaram. Eles já não falam mais conosco nos
sacrifícios debaixo do carvalho. Os antigos deuses se calam quando estala o trovão. Os
antigos deuses morreram. Ah, sol, sua luz é clara e quente, mas nossos corações estão
tristes.’ ”
E Beatus disse para si mesmo, com seu passo firme de peregrino: “Meu caminho me
leva aos povos pagãos; vou anunciar-lhes que seus corações podem ficar novamente
claros e alegres, porque Cristo é um novo sol para os homens.”
A Travessia do Mar
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render nada!” Disse um outro: “Se não estou enganado, ele é um mensageiro da fé.
Um deles, quando eu era criança, curou-me o pé aleijado.” “E eu” – disse mais um –
“até hoje, nas longas noites, conto a meus filhos as lindas histórias que ele nos
contava.” “Com histórias não se consegue alimento” – exclamou um deles – “Soltem o
barco e deixem esse homem na praia!”
Enquanto os pescadores diziam isto e aquilo, Beatus olhava quieto para o mar e
aguardava. Eles, porém, não chegavam a um acordo. Por fim, metade dos homens
desembarcou e disse: “Saiam para a pesca; nós vamos preparar outro barco para
atravessar o homem.” Eles foram até uma embarcação que estava na areia e, enquanto
dois deles corriam até a aldeia para buscar vela, jarro d’água e comida, os outros
tiravam a água do barco e consertavam as fendas com resina. O pescador mais velho
providenciou linha, pois era seu costume remendar redes rasgadas e tecer novas,
enquanto navegavam.
Um vento favorável, vindo da terra, impulsionou a vela. Gaivotas brancas voavam em
volta. Justus, como se chamava o jovem timoneiro, pilotava com mão firme. Ele
conhecia bem o vento e as ondas. Beatus foi-se sentar ao lado do velho pescador, que
estava consertando a rede, e disse: “Eu também gostaria muito de fazer uma rede;
ensine-me!” O velho pescador mostrou-lhe os movimentos necessários e como dar os
nós.
Quando o barco estava no meio do mar, nuvens tenebrosas, rolando, escureceram o
céu. Ventos vinham rodopiando e soprando de todo lado, de tal modo que a vela era
varrida de cá para lá como uma folha solta. As ondas arrebentavam cada vez mais
altas. Os pescadores enrolaram as velas e exclamaram: “Oh, que desgraça! Uma
tempestade em pleno mar!” Como garras brancas, poderosas e espumantes, as ondas
perseguiam as sibilantes esteiras; os ventos uivavam, medonhos. As mãos dos
pescadores se agarravam aos bancos e nas beiradas do barco. O desalento invadira os
corações: Estamos perdidos! Beatus estava de pé, ao lado do oscilante mastro,
envolvendo-o com um dos braços. “Justus, segure bem o leme!” – exclamou ele.
Como o bramido tragasse as palavras, ele ergueu um dos braços e permaneceu firme e
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de pé em meio à tormenta. Quando os pescadores viram que Beatus resistia à
tempestade com tamanha coragem, também eles perderam o medo.
A tempestade passou. A vela foi içada e pôde de novo receber o vento. O barco
vogava suavemente, singrando onda após onda. Beatus contou aos pescadores a
respeito do lago de Genesaré, e de como Cristo apareceu aos discípulos na tempestade
e ordenou ao vento e às ondas que sossegassem, e de como o lago se tornou um
espelho.
Sem nenhuma avaria, eles chegaram à outra margem. Beatus disse: “Bons pescadores,
vocês me trouxeram pelos caminhos do mar e bem sabem que não posso recompensá-
los. Aceitem a rede que eu consegui tecer e minhas bênçãos.” Mas Justus, o timoneiro,
pegando a mão de Beatus, disse: ”Deixe que eu vá com você! Não quero mais voltar
pelo mar, para onde não tenho nem pai nem mãe. Deixe-me peregrinar com você,
permita que meus ouvidos ouçam sua palavra!” Beatus perguntou: “Será que você
sabe que sua terra natal estará perdida para sempre e que muita miséria virá ao seu
encontro e talvez uma morte dolorosa? Pois existem pessoas cruéis entre os pagãos. E
são muitos os animais selvagens.” Justus respondeu: “Eu dirigi o leme com firmeza
através da tempestade e nunca o soltei nas horas difíceis. E, como no mar o medo não
me esmagou, na terra também ficarei firme e não temerei a miséria ou a morte.”
Beatus não pôde deixar de atender esse pedido tão animoso. Quando os pescadores já
iam longe, voltando para casa, Beatus e Justus, caminhando, penetraram numa floresta
desconhecida.
No dia seguinte, os pescadores se aproximaram da praia de sua terra natal. Perto da
margem, lançaram ao mar a rede que Beatus havia trançado para eles, a fim de que
ainda pudessem levar para casa alguns peixes. Assim que a rede foi lançada, ficou tão
carregada que só faltou romper-se. Os pescadores tiveram de se esforçar muito para
pôr dentro do barco a pesada pescaria. De todos os lados, o barco se cobriu de
cintilantes peixes, de tal modo que os homens mal conseguiam dar um passo no meio
deles. Chegando à margem, puxaram para a praia, com o barco, toda aquela carga
maravilhosa. Da aldeia de pescadores, crianças, mulheres e homens acorreram
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depressa, para saudar os viajantes do mar. Também estavam presentes os pescadores
que tinham dito: “Deixem esse homem na praia!” Admirados, eles olhavam para
aquela porção de peixes magníficos, pois eles mesmos, em sua pesca, não haviam
conseguido nada além de dois míseros peixinhos, e iam resmungando: “O mar não está
para peixe. Hoje o mar está ruim.”
O grupo de pescadores de Beatus recebera mais uma bênção. A preciosa rede trouxe
sorte para seus filhos. Muito mais tarde, parece ter surgido uma disputa sobre sua
posse; e então a rede teria sido arrastada para o fundo do mar por um imenso peixe.
A Mensagem
Em sua peregrinação, Beatus e Justus encontraram pessoas vestidas com pele de urso,
de raposa e de lobo. Homens robustos usavam na cabeça chifres de touro; asas de
grandes pássaros enfeitavam seus elmos. Junto a carvalhos nodosos e grossos, eles
queimavam oferendas para seus antigos deuses. Rolos de fumaça escura subiam até as
imponentes copas das árvores. E então eram sangrados bois e ursos no fogo do
sacrifício.
Beatus foi para o meio deles e exclamou com uma voz tão forte, que fez tremerem os
carvalhos: “Sua fumaça escurece o sol, sua fumaça abafa a luz das estrelas. Olhem a
copa do carvalho: a fumaça do sangue dos animais preteja suas folhas, e mais negros
ainda são os corvos, que voam em volta para bicar os ossos que sobraram do
sacrifício.
Vocês não sabem o que os corvos estão crocitando?
Vocês não entendem o que diz o sol obscurecido?
Vocês não ouvem o que exclama a espada cravada no tronco?”
Quando os pagãos ouviram a voz de Beatus, muitos resmungaram e gritaram: “Ele está
insultando nossos antigos deuses! Ele vai derrubar o carvalho! Agarrem-no! Matem-
no!”
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Outros, porém, disseram: “Sua voz é como o som do trovão. Vejam o fogo que há em
seu olhar; ele brilha mais que a brasa da fogueira do sacrifício. Ouçam o que ele tem a
dizer! Ouçam!” Um dos pagãos perguntou: “Forasteiro, que é que dizem as estrelas
com seu brilho?” Beatus respondeu: “As estrelas dizem: ‘Nós iluminamos os três reis
com a luz mais clara, quando eles procuravam o Salvador do mundo.’ ”
Perguntaram os pagãos: “Que é que os corvos estão crocitando?” Beatus respondeu:
“Os corvos estão crocitando: ‘Nosso tempo passou: uma pomba branca voa, descendo
do céu!’ ”
Perguntaram os pagãos: “Que é que o sol, obscurecido, está dizendo?” Beatus
respondeu: “O sol está dizendo: ‘O Deus do Universo desceu do céu à terra e vive
entre os homens!’ ”
Perguntaram os pagãos: “Que é que a espada cravada na madeira está exclamando?”
Beatus respondeu: “Da madeira em cruz, escorreu sobre a terra o sangue de Deus e
trouxe um novo céu.”
Então, muitos pagãos soltaram gritos e quiseram matá-lo, porque ele havia falado de
um novo céu. Em compensação, outros detinham os raivosos: “Deixem-no! Em suas
palavras há a força do trovão e o brilho da aurora; continuemos a ouvi-lo, para que o
sol possa erguer-se totalmente!” Mas a maior parte dos homens não conseguia
dominar a própria fúria. Eles agarraram Beatus e o lançaram numa cova onde estavam
presos os ursos que deviam ser sacrificados. Grunhidos raivosos se ouviram vindos lá
do fundo; depois, silêncio. Quando os pagãos olharam para baixo, um urso, com sua
língua vermelha, estava lambendo os pés de Beatus, o outro, sua mão. Espanto e
admiração se apossaram daqueles homens furiosos. Eles também perceberam que
havia no forasteiro uma força divina. Puxaram-no depressa para fora da cova, caíram
de joelhos e queriam até mesmo adorá-lo. Beatus os deteve e disse: “Eu sou apenas
uma folha da árvore!” E eles perguntaram: “Quem é a árvore? Deve ser poderosa!”
Beatus respondeu: “A árvore é Cristo, o Filho de Deus, e eu quero contar a vocês a
respeito dele.” Os pagãos, então sentaram-se em círculo e ouviram a palavra de
Beatus:
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“Eu amo os antigos deuses, aos quais, desde os tempos primitivos, seus antepassados
erguiam preces, em honra à sua atuação nos ventos, no raio e no trovão. Mas as trevas
do mundo, e os malefícios que vêm delas, foram escurecendo a terra cada vez mais. E
o Deus Criador, vendo o sofrimento da terra, despertou seu Filho. Este desceu das
alturas do sol para a terra, a fim de vencer as trevas e a morte. Cristo é seu nome, e ele
é o novo Baldur, a quem todos os antigos deuses servem de boa vontade.”
E, à medida que Beatus ia falando, as almas dos pagãos se abrandavam e acolhiam a
mensagem em seus corações. E, no tronco do carvalho, eles gravaram o sinal da cruz.
Beatus e Justus viajaram pelo mundo afora, em longas caminhadas. De início, Justus
sempre ouvia a palavra do mestre. Mais tarde, passou a ajudar na pregação.
Quando Beatus falava, era como a luz do sol, quando Justus falava era como a luz da
lua; pois assim como o sol passa sua luz para a lua, assim a mensagem de Beatus
passava para Justus.
Ambos, atravessando a Argóvia, chegaram ao interior da Suíça. Em muitos lugares
onde pregaram, os pagãos ergueram, com as pedras de sacrifício, novos altares e a
capela.
No lago de Zug, Beatus falou para maus ouvintes e para corações empedernidos. Lá,
ele foi capturado pelos pagãos, que o atiraram ao chão e bateram em suas costas com
varapaus. Justus o encontrou caído na terra, coberto de vergões. E, quando começou a
se lamentar e a se queixar, Beatus disse: “Fique quieto, meu irmão. Assim como as
pedrinhas de granito se derretem, também os vergões passam.”
A peregrinação seguiu pela região florestal adentro até o Brünig. Dizem que Beatus
permaneceu muito tempo lá no alto, quieto, sentado numa pedra, que mais tarde foi
chamada pedra-de-Beatus. Depois disso, quando um peregrino se sentava nessa pedra,
não só o cansaço de seu corpo desaparecia, como também ficavam mais leves os
desgostos de seu coração. Hoje em dia, ninguém mais sabe qual é essa pedra, que fica
no alto do desfiladeiro do Brünig.
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A Pobre Gente de Sundlauenen
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onde o medonho animal vive fazendo das suas? Pois o pescador mal se atreve a lançar
a rede de pesca no lago.”
Muito aflito, o velho relatou toda a miséria que havia. Das outras cabanas, foram
chegando, pouco a pouco, homens, mulheres, crianças e velhos, de modo que quase
toda a pequena aldeia formou um círculo em torno dos peregrinos. Beatus viu bem
que, com tanta desgraça, não brilhava nos corações daquela pobre gente a menor
centelha de consolo. Ele pensou: “Primeiro é preciso dar cabo do dragão, depois seus
corações se abrirão para ouvir a boa nova.” Com voz firme, perguntou: “Quem pode
me levar até a cova do dragão?” As pessoas do círculo, assustadas, olharam em volta.
Por fim, adiantou-se um pescador e disse: “Eu o levarei em minha canoa até as
proximidades da cova. Junto com o senhor, eu não tenho medo!”. Justus, porém,
também quis acompanhá-lo nessa hora difícil; e assim subiu com ele no barquinho.
Logo depois, partiram sobre as ondas. O pescador achou que a água parecia mais
branda e mais lisa no lugar por onde passavam, e pensou consigo mesmo: “Neste
homem deve haver uma grande força, para que, diante dele, as ondas se aquietem e o
medo desapareça do meu coração.”
Seguindo pela margem, ia muita gente. Mas todos se mantiveram longe da cova,
escondidos nas profundezas de uma floresta, e aguardavam, com a alma receosa, o que
poderia acontecer.
Quando o barquinho atracou na margem do lago que ficava logo abaixo da cova do
dragão, Beatus subiu a encosta da montanha em direção à caverna. Para Justus, ele fez
o sinal de que deveria aguardar atrás. Por entre pinheiros e arbustos, ouvia-se uma
respiração rascante. Ao chegar mais perto, Beatus viu, no penhasco, o fétido bafo do
dragão subir como vapor e fumaça. Esse bafo arruinava todas as plantas por onde
passava, queimava todo o capim que tocava. Por isso é que também o rochedo era
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completamente calvo e mostrava vestígios de fumaça. As árvores próximas estavam
ali secas e mortas.
A alma forte de Beatus não conhecia o medo. Caminhando por entre as últimas moitas,
ele olhava bem no meio da horripilante cova. Lá, estava deitado o dragão. Tinha
chifres, e havia pontas tortas fincadas na testa e nas costas. Sobre as assustadoras
garras, escorria um visco venenoso, que pingava de sua língua empolada. Assim que
os olhos vermelhos enxergaram o homem de Deus, a cauda escamosa começou a
espadanar, desordenada e ferozmente. Ele moveu a cabeça. Sua goela se escancarou de
modo horrível. De sua garganta foi lançado um bafo ardente de fogo.
Firme e de pé ficou Beatus, bradando palavras sagradas para dentro da cova infernal.
Cada vez mais furioso, o dragão arreganhava os dentes. O possante corpo se vergou e
estremeceu. Por baixo de suas escamas, ele fazia rolar pedras e raspava a terra. De
repente, ele apareceu chiando. Um bafo de fogo saiu de sua goela. Com os braços
abertos, Beatus fez o sinal da cruz. Esse sinal sagrado foi o que causou o maior medo
no dragão. Troando como um raio e um trovão, ele se arremessou para o alto e,
descrevendo larga curva no ar, projetou-se e afundou. A água fervilhou com o calor
ardente. Mais uma vez, porém, o dragão subiu das ondas fumegantes até o alto. Lá, sua
cauda bateu com força tão terrível na pedra, que todo o penhasco estremeceu. Ele
soltou um bramido medonho e tombou nas ondas. A água, rodeando-o chiou e ferveu,
e ele mergulhou nas profundezas do lago.
Na mesma hora, a floresta à beira d’água se animou. Clamores de júbilo ressoaram por
entre os pinheiros. Eram os moradores da aldeia. Durante a assustadora luta, eles se
haviam prostrado, tremendo, atrás das pedras da floresta e dos troncos das árvores.
Agora, cheios de alegria, eles subiam em direção à caverna. Justus foi ao seu encontro
e os conduziu até Beatus. Assim que o avistaram, várias vozes exclamaram: “Ele
venceu o dragão, ele venceu o dragão, ajoelhem-se e adorem-no!” Beatus os deteve e
disse: “Não foi minha força o que salvou a todos. Eu lhes contarei quem tornou fortes
meus braços e minhas palavras”. E, como os moradores da aldeia se sentassem diante
da caverna, Beatus transmitiu-lhes sua mensagem.
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O povo pediu muito que ele ficasse morando ali e lhe ofereceu moradia; mas Beatus
permaneceu na caverna. Com a água que brotava da cova do dragão como riachinho,
ele batizou os pagãos.
Até hoje, há marcas do dragão no alto do penhasco.
Ao lado da caverna grande, que se aprofundava pela montanha adentro por muitas
centenas de passos, havia uma caverna pequena e seca. Nela, Beatus instalou sua
ermida. Uma dura laje era sua cama, uma pedra, sua cadeira. Saindo dali, ele percorria
a margem do lago e visitava cada pequena aldeia, e em todas as cabanas o bom
homem era conhecido. Se chegasse uma pessoa doente ou passando necessidade,
mandava pedir ajuda a Beatus ou ia mancando até a caverna apoiada em muleta ou
bordão. Nenhum doente voltava para casa sem uma erva curativa, nenhum aflito sem
um conselho. Se o mau tempo prendia Beatus na caverna, ele tecia redes para os
pescadores e trançava cestos para os camponeses; estes, por sua vez, traziam-lhe pão e
peixe.
Na pequena aldeia de Einigen, do outro lado do lago, o povo pediu a Justus: “Fique
conosco e seja nosso bom pastor! Nós construiremos uma capela e lhe daremos
comida e bebida.” Assim, Justus foi o primeiro pároco do lago de Thun. Da aldeia,
caminhando por caminhos extensos e agrestes, ele percorreu a parte montanhosa de
Berna para batizar os últimos pagãos. Só quando ele ficou mais velho é que foi morar
no sossegado vale de Merlingen, perto da caverna de Beatus. Ainda hoje esse vale é
chamado Vale de Justus. Bem no fundo dele, junto a uma nascente, Justus construiu
uma pequena cabana. E disse ao povo: “Deixem-me passar os últimos tempos que me
restam no vale da montanha, para que minha vida possa terminar na proximidade dos
anjos.”
Por essa época, nas fendas e nas rachas da montanha de Beatus, havia um povo inteiro
de anões e homenzinhos da montanha, que tinham sofrido os horrores do dragão. Nas
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noites enluaradas, o dragão caía sobre eles na clareira da montanha, abocanhava e
matava os aterrorizados homenzinhos. Serpenteando sua cauda, ele varria dos
penhascos e dos rochedos as pequenas criaturas. Fazia muito tempo que elas quase não
ousavam sair das fendas dos rochedos e dos buraquinhos das raízes, e se internavam
na montanha lamentando sua triste sina.
Um dos homenzinhos tinha visto o dragão arrojar-se no lago, quando Beatus o
afugentara. Bem depressa, toda a montanha ficou sabendo. Agora eles surgiam de
novo de trás das pedras e de dentro dos troncos das árvores e logo perceberam quem
tomara posse da caverna.
Quando Beatus voltava de uma visita a Sundlauenen, encontrou folhagens e grama
seca espalhadas sobre a laje que lhe servia de cama e o banquinho de pedra forrado de
musgo. Quando foi tirar água do riachinho da caverna, subitamente rolou por entre
seus pés um queijo feito de leite de camurça. Ele, então, olhou em volta, admirado, e
ainda viu uma pequena mão desaparecer atrás de uma pedra acenando para ele e uma
pinha de pinheiro balançando no galho.
Perto da caverna, havia um jardinzinho, onde cresciam ervas e raízes medicinais, e
também lírios e uma espécie de trevo. Os anões os plantavam para curar várias
doenças. Muitas vezes, quando Beatus pouco sabia fazer para tratar de um doente,
encontrava as ervinhas no chão, já arrancadas, quando ia até o jardinzinho.
Beatus gostava dos pequenos espíritos da montanha. Certa vez, ao encontrar uma
porção deles numa clareira, começou até a lhes fazer uma pregação. Mas viu os
homenzinhos tão alegres ao seu redor, dando cambalhotas, que achou melhor comer os
murtinhos que eles jogavam em seu colo do que continuar com a pregação.
Desde que fora expulso o dragão, que era o terror dos anões, estes às vezes saíam e
iam até as cabanas dos homens, como faziam antes com maior frequência. Nas
argênteas noites de luar, eles cortavam o trigo, enfeixavam-no e o escondiam perto do
campo, nos arbustos de avelã, para se alegrarem de manhã cedo, diante do assombro
das pessoas. Se o camponês e a mulher levavam os feixes para o celeiro, ouviam, na
noite seguinte, na eira, barulhos, pulos, palmas e risadas, como num baile. Se a
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camponesa queria sair da cama para dar uma espiada, o camponês dizia: “Mulher,
deixe de ser curiosa; os homenzinhos da terra não gostam nada de ser vistos por olhos
arregalados.” Pela manhã, eles encontravam todo o grão fora das espigas, já pisado e
empilhado em montinhos bem arrumados.
Um pobre agregado, que trabalhava pelo salário de um dia, contemplava no outono
sua vaca magrinha e seu pezinho de feno mais magro ainda. “Tudo para mim vai mal”
– dizia ele – “Se quero que a vaca atravesse o inverno, ela morre de fome, se resolvo
matar este monte de ossos, pouco sobra para roer.” Ao anoitecer, quando ele foi ao
estábulo com um pequeno balde, a fim de ordenhar da vaca as últimas gotas de leite,
ela havia sumido. Porém, no monte de esterco, ele encontrou um comprido fio de
barba grisalha. O inverno passou. Quando a primavera verdejou o prado, pastava em
seu terreno uma vaca luzidia e gorda, com um bezerrinho. Pela mancha marrom que
havia entre os olhos, o agregado reconheceu sua própria vaca. Os anões a haviam
alimentado durante o inverno com feno silvestre.
O diabo não gostava nem um pouco que um homem piedoso morasse junto à cova do
dragão; pois, quanto mais Beatus caminhava pelas cabanas e pelas pequenas aldeias,
menos as pessoas brigavam, e menos acontecia de roubarem trigo da eira e queijo do
depósito. Isso não agradava ao diabo nem um pouco. Ele ficou pensando como poderia
expulsar Beatus da região.
Aconteceu que, um dia, caiu uma tremenda chuva de granizo justamente quando
Beatus ia sair. De outra vez, bem rente a seus pés, desabaram imensas pedras que,
ribombando, caíram nas profundezas. Frequentemente, sopravam ventos malignos
justamente quando se afastava da margem o barquinho que Beatus conseguira
emprestado de um pescador para atravessar o lago.
Uma noite, quando Beatus, diante da gruta, rezava sob a luz das estrelas, ouviu bufos e
espirros vindos da floresta. Aproximou-se da gruta um vulto escuro, arreganhou os
dentes num sorriso maldoso, bufou e quis fazer medo a Beatus. Este, porém, apenas se
voltou e, em sua oração, pronunciou em voz alta o nome de Jesus Cristo. O diabo,
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então, bateu com a testa no tronco da árvore com toda a força e desapareceu como um
raio.
Num domingo de calor, Justus pregava na igrejinha da aldeia em Einigen. O ar estava
denso e abafado. Algumas pessoas cabeceavam cada vez mais, até que finalmente
caíram no sono. E outras logo cerraram as pesadas pálpebras. Nisto, o diabo saiu de
baixo do altar com uma pele de bode nas garras. Ele começou a tomar nota dos nomes
das pobres criaturas que dormiam, para poder fazer mal a elas. Precisamente naquele
momento, Beatus entrou pela porta da igreja, pois queria assistir à pregação. Ele se
sentou num banco. O diabo já havia rabiscado tantos nomes na pele de bode, que nela
quase não sobrava espaço vago. Ele segurou a pele entre os dentes e as garras para
esticá-la bem, a fim de que coubessem mais nomes ainda. Nisto, Beatus percebeu sua
presença e o chamou: “Que é que você está fazendo e escrevendo aí? Saia já!” De
tanto susto, o diabo escancarou a boca, e a pele de bode lhe escapou dos dentes. Mas,
por ter esticado o couro com tanta força, sua cabeça recuou e bateu na parede, fazendo
o maior barulho. Com isso, todos os que dormiam e cabeceavam acordaram. Mas até
que esfregassem os olhos, o diabo já fugira há muito tempo.
Quase a duas horas de caminhada da caverna de Beatus perto de Thun, ficava uma
cidadezinha chamada Roll. Desde a margem do lago pela encosta da montanha acima,
havia imponentes casas. Ali morava gente rica e orgulhosa. Alguns homens conheciam
lugares escondidos onde mineravam ouro, outros viajavam como mercadores, com
bens valiosos. Entre as pessoas de Roll, porém, a riqueza tinha um espinho venenoso.
Pois havia brigas e discórdia, tanto dentro de casa como entre as pessoas que iam aos
poços buscar água, tanto entre os animais no pasto como no estábulo. Bebiam de seu
próprio vinho além da medida, mesmo depois de matar a sede. Nos bailes, saía sempre
pancadaria. Muitos rapazes eram carregados para fora do local da dança com a cabeça
ensanguentada. Gente pobre era expulsa, e os aleijados recebiam risos de troça.
Bem no início, Beatus visitava aquela gente ruim da cidadezinha. Contudo, assim
como em chão de pedra nem um grãozinho consegue crescer, também a palavra de
Beatus encontrou maus ouvintes. Algumas pessoas, que teriam gostado de ouvi-la, não
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tiveram coragem, por causa da caçoada das outras. Até a menor das crianças tinha más
inclinações. Dos cantos das casas, elas pulavam à frente de Beatus, punham a língua
de fora e cuspiam nele. As mais atrevidas chegavam até a lhe atirar pedras, algumas
até mesmo lhe davam pauladas. Somente uma casinha do fim da aldeia dava ao
cansado caminhante comida e bebida. Moravam ali dois velhos, um homem e sua
mulher.
Quando Beatus voltou certa vez a Roll, reuniu-se um bando de rapazes e moças. Eles o
atiraram ao chão, puxaram suas roupas e agarraram-lhe a barba. Os mais velhos
ficaram olhando de dentro de casa, rindo e aplaudindo. Como Beatus já estivesse caído
no pó e machucado, o bando foi andando de cada em casa, berrando e se gabando de
sua proeza. Beatus se levantou, limpou a roupa e seguiu diante. Na última casinha, os
bons moradores o acolheram, deram-lhe de beber, e ele descansou. Ao cair da tarde,
pôs-se a caminho de sua caverna. Lá, apareceu de repente diante dele um homenzinho
da montanha, que lhe perguntou por que estava triste. Beatus mal pronunciou algumas
palavras de desgosto, e já o homenzinho desapareceu na direção da cidade de Roll.
Uma chuva torrencial começou a cair. Não adiantava nada se abrigar debaixo de uma
árvore. Chovia a cântaros por entre os galhos e a folhagem. A água grudou os fios da
barba do homenzinho, e riozinhos de chuva escorriam da ponta da barba e das pontas
das orelhas. O homenzinho bateu em todas as portas das cabanas e das casas de Roll.
Bateu nos corrimões das escadas, nos caramanchões e nas janelas. Ninguém abriu,
para que ele se abrigasse, ou se secasse e se aquecesse. Se a fresta de uma porta se
abria, logo se ouvia um impropério insolente, ou então uma careta ralhava: “Para quê
você saiu de casa, seu Barbicha!”
No fim da cidadezinha, o anão da montanha chegou à casinha sossegada, onde
encontrou alimento e o calor do fogão. Sobre um saquinho de cascas de grãos
debulhados, que os bons velhinhos lhe haviam preparado, ele se deitou à noite para
descansar. À meia-noite, levantou-se. Não se ouviu barulho de passos na casinha, e
logo o homenzinho desapareceu no alto da torre de pedras do penhasco pontudo, que
se recortava no céu na parte alta de Roll. A terrível chuva já havia encharcado a
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floresta montanhosa. Cascatas desciam espumejando com força em direção ao lago.
Mas, assim que o homenzinho chegou ao alto, ouviu-se o mais assustador dos
estrondos. Rochedos estremeciam e rebentavam. Com grandes ribombos, uma
avalanche de terra tombou nas profundezas. As pessoas de Roll, assustadas, acordaram
com o barulho dos blocos de pedra caindo sobre as moradias. Onde, no dia anterior,
havia soberbas casas, viam-se agora escombros e pedras cobrindo a cidade.
Quando a manhã encoberta clareou, pinheiros destroçados e troncos despedaçados
espiavam por entre os cinzentos escombros. Boiavam sobre o lago vigas e tábuas. Só
uma casinha permaneceu incólume na orla da cidade. Era aquela onde morava o casal
de velhos. Uma rocha pesada ficara presa acima dela, formando uma proteção. Dizem
que aquele homenzinho tinha vindo montado nesse bloco imenso, para salvar o casal
de velhos.
Quando Beatus, ao cair da noite, deitou-se para descansar seu corpo fatigado, que
servira em boas ações o dia inteiro, cobriu-se com um manto. Durante a noite, ao
brilhar das estrelas, anjos visitaram a silenciosa caverna e teceram no manto sua
insígnia. Graças a isso, ele recebeu uma estranha força. Se Beatus o estendia no
barquinho, este ia aonde ele queria. Dizem mesmo que, se Beatus se sentasse sobre o
manto, este o transportaria até a outra margem do lago.
A Morte de Beatus
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Sundlauenen e atravessou o lago. Dia e noite, pessoas caminhavam até a caverna, e
barquinhos chegavam até a margem. Traziam flores e velas acesas. Elas iluminavam o
lago com um brilho sereno.
Na caverna, a sepultura de Beatus foi talhada na rocha. Desde então, não se passou um
dia, em todo o ano, sem que um peregrino fosse até a caverna, a fim de meditar no
santo homem e se ajoelhar diante de sua sepultura. Justus ainda viveu uns poucos anos
mais. Seu corpo foi posto na sepultura da caverna, ao lado de Beatus. Perto dali, o
povo ergueu uma igrejinha.
Dizem que, desde a morte de Beatus, os anõezinhos apareceram cada vez menos para
os homens nas regiões altas. De tanta tristeza, internaram-se nas profundezas da
montanha. Bem mais tarde, quando começaram a ressoar até a outra margem do lago
os sininhos da capela de Beatus, o camponês que estava na lavoura dizia a seus filhos:
”Ouçam, é Beatus chamando, trabalhe com dedicação!” E, quando uma faixa lisa de
água se estendia sobre o lago encrespado, o camponês apontava com sua mão:
“Olhem, crianças, aquele é o caminho por onde o santo Beatus atravessava o lago.”
Sobre a caverna, há uma picada na rocha em direção à montanha de Beatus. Deve ser o
antigo e perigoso caminho para chegar ao alto da montanha. Chama-se “Atalho de
Beatus”. Quem quiser passar por ele não pode ter medo de abismos e nem de
penhascos.
Os Escavadores de Tesouros
Já se haviam passado muitos séculos desde a morte de Beatus. Então, entre as pessoas
que moravam junto ao lago de Thun, ouviu-se dizer que havia um valioso tesouro
enterrado na caverna de Beatus. Quem, escavando à noite, o encontrasse, faria sua
própria felicidade. Assim é que, muitas vezes, foram vistas luzinhas bruxuleantes na
caverna à noite, e se ouvia o ruído de picaretas e pás. Estas, contudo, logo batiam em
duras rochas, e os escavadores de tesouros, ao amanhecer, voltavam para casa de mãos
vazias.
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Moravam então, junto ao lago de Thun, dois irmãos, que achavam muito penoso o
trabalho de um barqueiro quando fazia mau tempo. Quando remavam em sua canoa no
lago, para cima e para baixo, levando carregamentos de sal ou queijo, seus braços
tiravam muitas gotas de suor da testa escaldante. Eles tinham ouvido dizer coisas
misteriosas a respeito do tesouro da caverna. E, como remassem dia e noite nas
proximidades do lugar sagrado, tomaram a resolução de levar o barco, por volta da
meia-noite, até a margem e de ir cavar também.
E assim, certa vez, sob um claro céu estrelado, eles subiram em direção à caverna,
com a picareta na mão. Era perto da meia-noite quando as pancadas e seu eco
ressoaram no penhasco. Algo estranho aconteceu, porém, aos irmãos: a cada batida, a
picareta ficava mais pesada. Quando ela se abateu com a maior força na pedra pela
décima segunda vez, ribombou pela caverna e pela montanha um impressionante
trovão. A picareta lhes caiu das mãos. Para os irmãos, era como se raios fizessem
estremecer a caverna, era como se fosse uma tormenta pior que todas as que eles
haviam enfrentado navegando no lago. Com um estampido, a entrada se fechou. Oh,
maravilha! As paredes e a abóbada da caverna começaram a se ampliar cada vez mais.
O imenso salão se alargou desmesuradamente. Seu chão era um mar sem fim, onde
estranhos barcos navegavam sob o brilho de uma clara luz. Um dos barcos chegou até
eles silenciosamente. Nele, estava pintado o dragão. Um velho, de cabelos grisalhos,
estava de pé dentro do barco e, inclinando a cabeça, saudou os irmãos. Estes logo
acharam que devia ser Beatus. O velho guiou o barco até chegar bem perto e acenou
para que os irmãos embarcassem. Eles assim fizeram. O barco navegou com eles pelos
mares afora. Ninguém jamais ficou sabendo o que eles viram lá. Bem cedo de
madrugada, os dois barqueiros desceram até o lago. Ao chegarem à margem, jogaram
n’água suas picaretas no lugar mais fundo. E, desde então, navegaram sobre o lago de
Thun sem dizer nada, com bom ou mau tempo.
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PLÁCIDO
Plácido servia como general para o imperador romano Trajano. Quando passava algum
tempo em sua pátria, seu maior prazer era caçar. Sua caça preferida eram veados. Na
grande propriedade que recebeu do imperador, ele morava com sua esposa Téspite,
que lhe dera filhos gêmeos.
Certo dia, Plácido promoveu com alguns companheiros uma grande caçada. Na
propriedade, eles deram com um bando de veados e iniciaram imediatamente a
perseguição. Entre os animais que fugiam, havia um bem grande e bonito com uma
galhada magnífica. Este, de repente, se separou dos outros e pulou para dentro da
floresta. Plácido pensou: “Meus companheiros, podem cuidar dos outros animais; eu
perseguirei o grande veado, ele tem de ser meu.”
E que caçada foi essa de Plácido! Ele e seu cavalo saltaram pelas florestas, sobre
colinas e montanhas! Uma vez, o perseguido bebeu água num riacho. Plácido pegou o
arco, preparou-o e... o veado tinha sumido. A caçada continuou por montes e vales. Ao
anoitecer, quando o sol já se punha, o veado subiu numa elevação. Imóvel, olhava para
seu perseguidor. Aguardava ele a flecha mortal? Lentamente, Plácido deslizou do
cavalo, para se aproximar bem sorrateiro. Ao preparar o arco e a flecha, hesitou: era
uma imagem maravilhosa, com os raios dourados do sol poente emoldurando o nobre
animal que, sem se mexer, ostentava sua galhada como uma coroa. Plácido deixou a
arma cair e pensou: “Ah, se eu pudesse capturá-lo vivo!” Devagar, olho no olho, passo
a passo, chegou mais perto. De repente, surgiu no meio da galhada um brilho intenso
como um sol. Uma tal força partia deste raio, que Plácido caiu de joelhos. A luz na
galhada tomou a forma da santa cruz, onde, como num quadro, pendia o vulto de uma
pessoa. Plácido ouviu claramente uma voz que dizia: “Oh, Plácido, você persegue o
veado, mas, sem saber, procura por mim.”
Como que atingido por um raio, Plácido caiu de bruços e assim ficou, talvez por uma
hora. Durante esse tempo, muitas revelações foram feitas à sua alma, referentes à vida,
à morte e à ressurreição de Cristo. E foi-lhe perguntado: “Plácido, muito sofrimento
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virá também para você; o que vai aproximá-lo de mim. Você quer enfrentar isso logo
ou somente na velhice?” Plácido respondeu: “Senhor, se for preciso, faça com que
aconteça logo; mas dá-me também forças para suportar o sofrimento.” A voz
respondeu: “Persevere, minha misericórdia estará com você!”
Quando Plácido se levantou, o veado havia desaparecido. Seu cavalo pastava
calmamente ao lado. Era noite alta, quando ele finalmente encontrou o caminho de
casa.
Sofrimento e Aventura
Alguns dias depois, eclodiu uma epidemia na propriedade de Plácido. Ela atingiu
servos e criadas, os cavalos e o gado. Em pouco tempo eles morriam. Também Plácido
e Téspite ficaram doentes. Da aldeia próxima, vieram homens para enterrar os mortos.
E, para se compensarem pelo trabalho, aproveitaram para saquear. Alguns desses
malfeitores quebraram os cofres, roubando prata e ouro. Levaram tudo o que era de
valor, sem punição. Plácido, Téspite e os dois menininhos superaram a doença. Uma
velha criada cuidara deles. Quando Plácido se levantou da cama pela primeira vez, ao
caminhar pela casa e adjacências viu miséria e devastação: Currais infestados vazios,
cofres arrebentados, dependências saqueadas. Algumas galinhas ainda cacarejavam no
terreiro. Plácido pensou: “Não quero mais continuar aqui, nesta propriedade que me
foi emprestada pelo imperador. Estando pobre, como poderei ficar entre os nobres
romanos? É melhor que eu vá, com mulher e filhos, para uma província romana
distante e começar lá uma vida nova.”
Depois de tudo por que passou, nem cogitou em se apresentar ao imperador para
continuar no serviço militar. Só sua esposa Téspite ficou sabendo da vivência que ele
teve com o veado e da provação que a voz lhe predissera. Assim, Plácido decidiu
atravessar o mar em direção ao Egito, levando a mulher e os filhos.
Com poucos pertences, caminharam em direção ao mar e procuraram por um navio
que os levasse em direção ao Egito. Durante a viagem, quando o responsável pelo
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navio percebeu que Plácido não tinha dinheiro suficiente para pagar a travessia, exigiu
que sua esposa permanecesse ali como criada. Em vão Plácido tentou se opor a essa
exigência. O comandante, um mau caráter, ordenou que atirassem o incômodo
passageiro ao mar. Mas como Plácido sabia estar na graça de Deus, ele e sua esposa
Téspite aceitaram mais este sacrifício. Sem sua mulher, ele e os dois menininhos
foram abandonados numa praia deserta do Egito. O navio seguiu seu curso.
Carregando as duas crianças, ele penetrou no matagal. Logo chegou a um largo braço
do rio Nilo, cuja água era bastante profunda. Ele não se arriscou a atravessá-la com os
dois filhos ao mesmo tempo. Calcando o junco, preparou um lugarzinho para sentar
um dos menininhos e poder levar o outro em segurança através da água. Com uma das
mãos se apoiava num resistente bastão de madeira, que encontrara na margem, para
evitar que a correnteza o arrastasse. Atravessou, carregando o menino nos ombros. Na
outra margem, voltou a preparar um lugar no junco, deitou o menino, recomendando
que ficasse bem quietinho. Novamente entrou no rio, agora, para buscar o outro.
Quando estava no meio da travessia, observou um lobo pegar o menininho que ficara e
desaparecer na mata fechada. Inutilmente procurou perseguir o ladrão da criança; não
foi possível encontrá-lo no emaranhado do junco. Em grande aflição, depois de
procurar, sem sucesso, durante um longo tempo, retornou à outra margem. Mas,
também ali o lugar estava vazio. Entrementes, um leão que descera por uma senda no
junco para beber água, também carregara aquele menino. Plácido, apesar de procurar
por toda parte, não encontrou nenhuma pista. O pobre pai pressupôs que o menininho,
engatinhando, caíra no rio. Então, entrou em desespero. Foi até o rio e pensou em dar
fim à sua vida desgraçada. Ao se deitar junto à margem, soluçando e pressionando a
cabeça nos braços, veio-lhe à mente a imagem da galhada do veado banhada em luz.
Plácido se envergonhou de seu desalento. Ele se ergueu do chão e saiu vagando por
ali. Só ao sentir fome, procurou por um casebre, o que até então havia evitado. Dias
depois, chegou a uma propriedade rural onde havia cavalos. Lá ele se empregou como
criado e trabalhou cuidando dos cavalos. Nada disse sobre quem era e de onde tinha
vindo.
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O que aconteceu com os Meninos e com sua Mãe
Justo nesta época, aconteceu que o imperador e o povo romano estavam sendo muito
pressionados por seus inimigos. Disse o imperador: “É uma pena que Plácido tenha
deixado o país. Antes eu tivesse novamente de volta meu valoroso comandante!
Ninguém como ele foi tão bem sucedido na luta contra os inimigos do império.” Um
de seus oficiais o aconselhou a enviar emissários a todas as províncias do reino;
certamente em algum lugar Plácido seria encontrado. O imperador prometeu uma
grande recompensa a quem o trouxesse de volta.
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Havia dois oficiais que, quando jovens soldados, tinham servido sob seu comando.
Eles se puseram a caminho em procura do comandante na província egípcia. Tinham
achado uma pista, indicando que Plácido embarcara para o Egito num navio. Seu
caminho foi milagrosamente guiado, e assim em breve eles chegaram à aldeia, perto
da qual Plácido trabalhava como tratador de cavalos. Os moradores da aldeia se
aglomeravam em volta dos belos cavalos, e Plácido também se aproximou. Ele
reconheceu seus antigos companheiros; estes, porém, não o reconheceram. Ele os
convidou para uma refeição. Como teve de sair para buscar bebida fresca, um dos
oficiais comentou com o outro:
“Como pode haver pessoas tão parecidas! Este tratador de cavalos se parece tanto com
o nosso Plácido!”
O outro respondeu: “Vamos ver se ele tem atrás da orelha a cicatriz de um ferimento
causado, certa vez, por um inimigo.”
Quando Plácido voltou, eles descobriram a cicatriz e exclamaram: “Você é Plácido,
nosso antigo comandante!”
E eles o abraçaram, cheios de alegria. Plácido, porém, continuou triste. Como
perguntassem por sua família, contou aos emissários a desgraça que tinha sofrido no
Egito. Os cavaleiros insistiram tanto para que ele voltasse com eles para junto do
imperador em Roma, que finalmente ele concordou. Após algumas semanas de
viagem, o navio atracou no porto em frente a Roma. O imperador acolheu o recém-
chegado com alegria e o designou novamente como comandante. Plácido mandou
contar o número de soldados que serviam no exército e percebeu serem em quantidade
insuficiente para lutar contra um poderoso inimigo. Ordenou que fossem recrutados
soldados nas províncias do reino. Toda aldeia, conforme seu tamanho, tinha de
apresentar dois, três ou mais soldados.
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Como os irmãos se encontraram
Nas duas aldeias egípcias onde viviam os filhos de Plácido, os moradores também
tinham de se comprometer a apresentar alguns soldados. Decidiram então: “Os rapazes
de origem desconhecida, Lupo, o filho do lobo, e Marco, o filho do leão, deverão ser
soldados, e assim nossos filhos podem ficar em casa.”
Ao ouvir isto, os dois jovens não ficaram insatisfeitos diante da possibilidade de sair
pelo mundo. Primeiro, tinham de viajar para a cidade de Alexandria, para ali se
apresentarem num navio de soldados. Assim foi que os dois se encontraram no meio
do caminho, sem saber que eram irmãos. Na última parada antes de Alexandria,
pernoitaram numa estalagem. Era justamente aquela onde a mãe deles ainda trabalhava
como criada da hospedeira. Este encontro extraordinário foi preparado pelo anjo do
destino.
Quando os rapazes se sentaram diante da refeição, um deles começou a contar de sua
infância. A criada ouvia toda a conversa. Ele contava, que em sua aldeia o chamavam
de Lupo, filho do lobo, porque um lobo o havia trazido:
“A lembrança mais antiga que tenho de minha vida é que eu viajava num navio com
meus pais e um irmão pequeno. Meu pai desembarcou com os dois meninos. Minha
mãe ficou no navio. Não sei por que, só sei que eu chorava muito. Chegamos a um rio.
Meu pai o atravessou com meu irmão, me deixando para trás à beira do rio. Então
apareceu um lobo, que me agarrou e carregou embora. Pastores me salvaram e me
criaram como sendo filho deles. Contudo, não sei o que aconteceu com meus pais e
meu irmão.”
Ao ouvir tudo isso, lágrimas de alegria brotaram dos olhos de Marco, e ele disse:
“Agora sei que sou seu irmão! Porque eu também me lembro de ter descido do navio,
exatamente como você, que meu pai me carregou através da água e que um leão me
levou embora. Os camponeses, que com seus cachorros intimidaram o leão e me
salvaram, me criaram. Muitas vezes eu os ouvi contar como me livraram do leão.”
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Com grande alegria, os dois irmãos se abraçaram. Durante essa narrativa e esse
acontecimento, o coração da criada quase se partiu, pois pressentia que os dois
poderiam ser seus filhos.
Ela se dirigiu a eles e perguntou:
“Um de vocês não tem no ombro direito a cicatriz de uma queimadura, que uma criada
desatenta causou com água quente, no primeiro ano de vida?”
Um dos dois empalideceu e, afastando as vestes do ombro, disse: “Sim, eu tenho tal
cicatriz. Que quer dizer isso?”
Então a mãe se deu a conhecer aos dois filhos. Entre lágrimas e risos, festejavam o
milagre do reencontro. Os irmãos não quiseram se separar da mãe e a levaram para
Alexandria no navio, para que ela voltasse com eles para a Itália, sua pátria. Lá, assim
prometeram os filhos, queriam cuidar dela. E foi o que aconteceu.
Plácido - Eustáquio
Os dois irmãos foram levados para um campo de treinamento para soldados, nas
proximidades de Roma, e a mãe foi acolhida pela família de sua irmã. Foi formada
uma legião só de egípcios. Como Plácido dominava a língua egípcia, foi designado
como comandante dessa legião. Assim, sem o saber, os dois irmãos serviam sob o
comando do próprio pai. Este, por seu senso de justiça e por dar boa assistência às
tropas, era venerado pelos soldados.
A incursão do exército foi um sucesso, rechaçando os inimigos de Roma. Para festejar
a vitória, o exército entrou na cidade de Roma. Téspite também se dirigiu para lá, com
o intuito de rever seus filhos. Ao vê-los ilesos, sua alegria foi grande. Nessa
oportunidade, os dois falaram de seu bom comandante, mencionando seu nome:
Plácido. Téspite sabia bem que esse nome era muito comum, mas quis ver aquele
Plácido. Ao se aproximar dele, apesar dos anos que se haviam passado, ela reconheceu
imediatamente o marido que havia perdido. Aproximou-se dele e disse: “Plácido, em
nome da cruz que o veado lhe mostrou em sua galhada, você é meu marido amado!”
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Então, Plácido também reconheceu a esposa que havia perdido e, feliz, envolveu-a
num abraço. Cheios de espanto, os irmãos observaram o que se passava diante de seus
olhos. Em seguida, Téspite encaminhou os dois filhos para o pai, e assim todo o
sofrimento pelo qual passaram se transformou em grande alegria. Terminada a longa
provação, começava agora uma nova fase de felicidade.
Como recompensa por seus bons serviços, Plácido recebeu de presente do imperador
uma nova propriedade. Mudou-se para lá com Téspite e seus filhos, despedindo-se
para sempre do serviço militar. No sossego da natureza, eles viviam do trabalho de
suas próprias mãos. Como a propriedade ficava perto da cidade de Roma, Plácido
muitas vezes ia até lá. Assim aconteceu que ele se encontrou com os cristãos. Em sua
companhia, ele reviveu tudo o que se passara na noite da caçada e compreendeu cada
vez mais a profunda verdade do que havia visto. Ao ser batizado por um sucessor dos
apóstolos, trocou seu nome por um nome cristão: Eustáquio. Téspite e os filhos
também foram batizados e receberam nomes cristãos. Estes nomes, porém, não
conseguimos obter.
Tendo passado por tanto sofrimento, dor e humilhação, Plácido-Eustáquio se preparou
para seguir a Jesus Cristo. Sua alma estava sempre repleta de bondade e de amor para
com todas as pessoas. Ele se tornou um exemplo para aqueles que ocupavam honradas
posições no mundo e depois, com humildade, seguiram a senda do cristianismo.
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ISABEL DA HUNGRIA (*)
O rei da Hungria, André, e sua esposa Gertrudes tiveram de esperar muito tempo, até
que lhes nascesse uma filha. Deram-lhe o nome de Isabel. Ela era uma menina tão
graciosa, alegre e amável que, muitas vezes, os pais acreditavam ter um pequeno anjo
brincando e conversando a seus pés. Seu lugar preferido era a igreja do castelo, onde
admirava os vitrais coloridos. Certa vez, ela subiu no púlpito cantando e dando gritos
de alegria, de tal modo que a babá, assustada, levou-a para fora. Vez por outra ela
escapulia, indo sozinha para a igreja. Então, pegava o breviário do padre. Em geral, ela
o segurava de cabeça para baixo, já que não sabia ler, mas rezava e cantava imitando o
padre, só que com mais alegria e mais alto. As imagens de madeira e pedra,
representando os apóstolos circunspetos, se pudessem, com certeza teriam sorrido.
Naquele tempo, vivia na Turíngia um conde de nome Hermann. Seu filho Luiz tinha
alguns anos a mais que a pequena Isabel. O conde pensou: “A filha do poderoso rei da
Hungria seria a noiva ideal para meu filho Luiz. Para que ela se torne, sem falta, noiva
dele e mais tarde esposa, os dois deveriam ficar comprometidos já, desde crianças.”
E ele designou nobres emissários para levar esta proposta, com belos presentes, ao rei
André da Hungria. Este concordou em deixar sua filhinha ir para o belo palácio de
Wartburgo, na rica região da Turíngia. E, assim, as duas crianças cresceram juntas
como irmãs e gostavam muito uma da outra.
Quando Isabel tinha sete anos, sua mãe veio a falecer. Mas, a partir de então, ela lhe
aparecia muitas vezes em sonhos ou quando estava recolhida em oração, como um
anjo protetor. Pouco tempo depois, morreu também o conde de Wartburgo, pai de
Luiz. A partir de então, as crianças ficaram somente sob a guarda da condessa Sofia,
uma mãe severa. Esta não via com bons olhos Isabel tratar a todos de maneira amável
e cordial, inclusive os empregados do castelo. Toda vez que iam ao serviço religioso, a
...................................................................................................................................................................................................
(*) – Isabel da Hungria é o nome pelo qual Elisabeth da Turíngia é conhecida em Portugal e no Brasil (N.R.)
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condessa Sofia punha um colar de ouro no pescoço de Isabel. Frequentemente, prendia
também uma pequena coroa de pedras preciosas em sua cabeça. Isabel tinha de usar
luvas. Uma serva carregava para a igreja almofadas de veludo, onde as mulheres
nobres e Isabel se ajoelhavam. Assim que a menina entrava na igreja, tirava as luvas e
as guardava em sua bolsa, junto com o colar de ouro e a coroinha. Durante o serviço
religioso, ajoelhava ao lado da almofada de veludo, diretamente no chão. Aborrecida,
a orgulhosa condessa repreendeu Isabel: “Você não deve ajoelhar-se como uma
simples criada, e por que tirou as lindas joias?” Isabel respondeu: “Não leve a mal,
querida mãe! Todas as pessoas são iguais perante Cristo.”
Então, a senhora Sofia se dirigiu a seu filho, noivo de Isabel, e disse: “Você precisa
proibir que ela tenha este comportamento tão vulgar!”
Luiz respondeu: “Deixe que ela se comporte assim! Eu não conheço um coração
melhor que o dela, e mesmo sem ouro e pedras preciosas sua figura é formosa e
digna.”
Mãe Sofia não pôde dizer mais nada. Mas bem que gostaria de ter procurado uma
outra noiva para seu filho. Uma vez chegou a insinuar a Luiz se ele de fato queria
continuar com Isabel como noiva. Aí ele apontou para uma montanha e disse:
“Se aquela montanha fosse de ouro puro e me fosse oferecida para trocar por Isabel, eu
não aceitaria!”
Por ocasião do casamento dos dois, houve três dias de torneios e festividades. Luiz
conduziu Isabel ao altar. Daí por diante, o jovem casal viveu um amor verdadeiro e
recíproco em Wartburgo. Por amor a Isabel, Luiz mandou plantar um jardim com
lindas rosas. Frequentemente, os dois cavalgavam juntos pelo campo, para saber como
viviam seus camponeses. Onde Isabel encontrava miséria ou preocupações, oferecia
ajuda. Eles tiveram três filhos, um menino e duas meninas.
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durante algum tempo, Isabel aprendeu muito sobre a arte de curar. Com as criadas,
colhia ervas medicinais, aprendeu a tratar de ferimentos e a aliviar doenças febris.
Desde então, juntamente com suas servas, ia também às aldeias levar ajuda aos
doentes. Assim, presentear e ajudar eram sua maior alegria. Não se passava um dia
sem que ela alimentasse famintos e amenizasse outras necessidades.
De tempos em tempos, quando a mãe Sofia via seu filho Luiz, importunava-o,
dizendo: “Isabel esbanja seus bens! Se continuar assim, um dia você terá de vender o
castelo!”
No entanto, Luiz não se deixava perturbar. No máximo, ensinava Isabel a verificar se
os agraciados com os donativos eram merecedores, uma vez que existiam também
mendigos preguiçosos.
Certa vez, Isabel descia pelo caminho que levava ao castelo. No avental carregava
pães, que ia distribuir. Nisso, encontrou-se com o marido que vinha cavalgando em
sentido contrário. Ele perguntou: “Isabel, que é que você carrega de tão pesado no
avental?” Ela respondeu, sorrindo: “Rosas para os pobres!” e abriu o avental. O conde
Luiz acenou com a cabeça; pois compreendia o significado de suas palavras.
Frequentemente, o conde empreendia longas viagens. Uma vez ao voltar, sua mãe o
interpelou, queixando-se: “Isabel acolheu um homem estranho em sua casa. Pelo jeito,
ela gosta mais dele que de você.”
Ao cumprimentar sua esposa, Luiz perguntou a respeito do estranho. Então, ela lhe
mostrou, acomodado numa cama, um leproso do qual ela cuidava e cujas feridas já
estavam cicatrizando. O conde se dirigiu ao doente, dizendo: “Cuidados melhores
você não poderia receber. Seja bem-vindo em minha casa!”
Então, aconteceu que houve uma péssima colheita na região. Os preços subiram, e
todos os alimentos ficaram escassos. Por esse motivo, o conde Luiz teve de viajar para
bem distante, onde esperava poder comprar cereais para sua terra. Quando, todos os
dias, muitos famintos peregrinavam até Wartburgo, Isabel abria as despensas e os
celeiros. Dia após dia, centenas de famintos recebiam dali seu alimento. Como os
estoques não eram suficientes, ela vendeu suas preciosas joias da Hungria e uma série
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de propriedades com terras e construções. Quando o conde voltou, sua mãe se queixou
novamente da esbanjadora, que tantos bens tinha vendido. Luiz respondeu: “Se ela não
vendeu Wartburgo, estou satisfeito.”
Alguns anos se passaram. Então, o conde Luiz decidiu fazer uma viagem à Terra Santa
com o imperador Frederico II. Isabel sabia do perigo de tal cruzada. Ela temia pelo
que poderia acontecer com ela e com as crianças, ao ficarem sozinhas. Apesar de tudo,
disse a Luiz: “Viaje em nome de Cristo. Também eu vou carregar minha cruz.”
Para que a região da Turíngia, na ausência do conde, não ficasse sem regente, Luiz
designou Henrique, seu irmão mais novo, como substituto. Este precisou jurar
defender Isabel, as crianças e as terras. Antes da despedida, como recordação, Luiz
pôs no dedo de sua esposa um anel com uma pedra preciosa de cor azul. Ao ver seu
marido desaparecer na distância, ela pressentiu que, na terra, eles nunca mais se
veriam. E assim foi. Alguns meses depois da partida de Luiz, houve uma espécie de
sinal. Ao se recolher para dormir e juntar as mãos em oração, Isabel percebeu
assustada que, do anel que Luiz lhe dera, a pedra azul tinha caído. Apesar de todas as
buscas, não foi possível encontrá-la. Passado algum tempo, veio a triste notícia de que
o conde Luiz falecera, vítima de uma doença traiçoeira. Foi comprovado que ele de
fato morrera no mesmo dia em que a pedra preciosa foi perdida. Isabel caiu em
profundo sofrimento.
Henrique, o irmão mais moço de Luiz, deu ouvido a maus conselhos. Ele achou que,
como o irmão havia morrido, não precisava mais cumprir a promessa que havia feito.
Isabel foi acusada de ter malbaratado os bens do conde. Em pleno inverno, ela foi
obrigada a abandonar Wartburgo com os filhos. Foi proibida de se deter nas
proximidades. Durante dias, Isabel fugiu com seus filhos. Pessoas piedosas deixaram
que ela ficasse por algum tempo num celeiro, onde ela dormia com as crianças em
cima da palha. Assim, a pobreza se tornou sua irmã. Teve de vender o último anel de
ouro que possuía. Agora, de porta em porta, esmolava com seus filhos. Por fim, o
bispo de Bamberg, seu parente, cuidou da desalojada, dando-lhe uma moradia no
castelo de Bodenstein.
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Um ano mais tarde, voltaram da cruzada os cavaleiros da Turíngia, que haviam
acompanhado Luiz. Sabendo que o conde Henrique, com seu perjúrio, tinha infringido
um grande mal a Isabel e seus filhos, foram muito severos com ele. Ele foi obrigado a
liberar a herança que cabia a Isabel e a devolver todos os seus direitos. Isabel aceitou
para poder continuar a praticar o bem. Ela mandou construir um hospital na cidade de
Marburgo. Daí por diante, como mãe dos doentes, servia a eles como uma simples
criada.
Isabel não havia mandado a seu pai, o rei da Hungria, notícia alguma a respeito de sua
expulsão. Mas ele ficou sabendo, indiretamente, da morte de seu esposo Luiz. Enviou,
então, o conde húngaro Panyas para saber do destino de sua filha. O conde a localizou
em seu hospital em Marburgo, vestida como criada e fiando lã. Ele se dirigiu a ela,
dizendo: “Nunca se viu uma filha de rei fiando lã em vestes tão pobres. Isto vai
magoar seu pai!”
Isabel respondeu: “Eu sou um simples ser humano e quero me tornar filha de Deus.” O
conde tentou persuadi-la: “Isabel, volte com seus filhos para a Hungria, para sua casa
paterna!” Ela respondeu: “Aqui, onde posso servir a Deus e às pessoas, é o meu lar!”
E assim ela ficou em Marburgo, com os pobres e doentes. A chama da vida tinha,
porém, ardido nela com tanta intensidade, que ela morreu jovem, aos vinte e quatro
anos de idade. Quatro dias após sua morte, ao ser sepultada em Marburgo, seu corpo
ainda mantinha o viço. Nesse lugar foi erguida em sua homenagem a “Igreja de
Isabel”. A partir de então, ia gente em romaria até sua sepultura, e até hoje seu nome
ecoa no coração das pessoas.
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CRISTÓFORO
Era uma vez um gigante que tinha tamanha força, que era capaz de arrancar um
pinheiro com raízes e tudo, usando apenas as próprias mãos. Seu nome era Óforo. Ele
já havia trabalhado para muitos lavradores: mas não costumava ficar muito tempo no
mesmo lugar, pois logo as tarefas estavam terminadas, e a falta do que fazer o deixava
entediado. Então, ele disse para si mesmo: “Quero procurar o mais poderoso dos
senhores deste mundo e só a ele desejo servir; esse, com certeza, conseguirá fazer bom
uso de toda a minha força.” Portanto, Óforo viajou por terras e terras, de cidade em
cidade, e em toda parte perguntava pelo mais poderoso dos senhores.
Finalmente chegou à corte de um rei. Um trabalhador lhe dissera ser esse o rei mais
poderoso de todos os reinos, até os mais longínquos. Óforo se fez conduzir até o trono
e ofereceu seus serviços. Quando o rei viu aquele gigante fortíssimo, disse: “Nunca
precisei tanto de uma pessoa assim como agora! Você será o maior e o mais forte de
meus guerreiros; com você, todas as batalhas serão vencidas!”
Pois justamente naquele dia o rei mandara chamar todos os soldados do reino.
Precisava reunir o exército, porque o rei vizinho invadira o país, atacara uma cidade e
a incendiara. Ele agora queria mandar um exercito forte contra-atacar. Mais que
depressa, o ferreiro real teve de forjar uma espada imensa para Óforo; porque todas as
outras existentes no castelo eram pequenas demais para ele. No dia seguinte, o
exercito partiu para a luta, e o gigante seguiu na frente.
Já no terceiro dia, chegou de volta ao castelo um veloz mensageiro e comunicou a
notícia: “Coroem de flores as portas da cidade, coroem de flores a torre, pois nossos
guerreiros venceram! Foi assustador ver Óforo lutando. Restou pouco para os outros
soldados fazerem, pois diante dos golpes da espada do gigante o inimigo fugiu,
embrenhando-se nas matas, dispersando-se nas montanhas; o rei invasor está morto!”
Logo repicaram os sinos de todas as torres da cidade. Portas e escadarias do castelo
foram enfeitadas com flores. O rei ordenou que no salão principal se preparasse a
mesa, para ser comemorada dignamente a festa da vitória. Um harpista deveria cantar
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ao som de suas cordas, e os dançarinos de sabre foram chamados para mostrar o
melhor de sua arte.
Ao anoitecer, o salão estava todo iluminado. Óforo sentou-se ao lado do rei. Quando o
harpista tocou, entoou uma canção que falava no nome do diabo. Despercebidamente,
o rei fez na testa o sinal de uma pequena cruz. Óforo notou o gesto e pensou: “Foi
estranho isso que o rei fez.” A canção terminou e todos beberam de suas taças.
Quando o rei perguntou ao gigante se a canção lhe agradara, este disse: “Houve uma
coisa que eu estranhei, ó rei. Por que fez o senhor, repentinamente, um sinal na testa?”
O rei respondeu: “Sempre faço isso quando o nome do diabo soa em meus ouvidos; é
grande o seu poder neste mundo!” Óforo tornou a perguntar: “Então o poder do diabo
é maior que o seu?” – “Eu governo só o meu reino, mas o diabo tem poder sobre o
mundo todo!”, disse o rei.
Óforo nunca ouvira falar no diabo e imaginou tratar-se também de um rei. Então
pensou: “Se existe alguém ainda mais poderoso que este rei, vou embora daqui e
procurá-lo. É ao mais poderoso de todos os reis que quero servir!”
No dia seguinte, embora o rei relutasse muito em deixá-lo partir, Óforo se despediu e
continuou sua caminhada pelo mundo. Durante todo o trajeto, perguntava sempre onde
morava o diabo, mas ninguém conseguia responder. Algumas pessoas até se
assustavam com a pergunta, de modo que Óforo passou a sentir um respeito cada vez
maior pelo rei desconhecido.
Certa vez, quando o gigante atravessava uma sombria floresta, veio juntar-se a ele um
visitante de aparência muito estranha. Sua roupa era esverdeada, seu queixo terminava
numa barbicha pontuda e uma pena preta enfeitava seu chapéu. Imediatamente, Óforo
perguntou: “Caminhante, saberia me dizer onde posso encontrar o diabo?” – “Ele
caminha a seu lado. Sou eu mesmo!”, respondeu a figura verde. “É verdade que você
tem poder no mundo todo?” – “Assim é!”, respondeu o diabo. “Diga-me, então posso
ser seu servo? Você tem trabalho para mim?”, Óforo assim perguntava por não saber
que as obras do diabo são obras malignas. “Eu sei de um trabalho, venha comigo!”,
acenou-lhe o diabo e, saltando na frente, entrou no bosque.
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Depois de terem caminhado por algum tempo, a criatura de verde parou junto de um
grande pinheiro e ordenou: “Arranque-o!” Com um único puxão, Óforo arrancou a
árvore da terra. Ele ainda teria de partir os galhos, mas já o diabo lhe fazia sinal de
novo para que o seguisse, e ele obedeceu, carregando nos ombros o imenso tronco.
Pouco tempo depois, saíram do bosque e chegaram a um lugar onde, há várias
semanas, alguns homens muito diligentes construíam uma capela. Já tinham sido
postas as vigas da cumeeira e, num pinheirinho ali colocado, tremulavam alegremente
fitas coloridas. Fora uma tarde de festa. Os operários haviam deixado o local; na
manhã seguinte pretendiam pôr as telhas.
“Bata com bastante força”, exclamou o diabo, apontando para a construção. E, quase
que imediatamente, o grande tronco do pinheiro derrubou o vigamento do telhado e
fez ruírem as paredes. Não ficou pedra sobre pedra.
“Sua primeira tarefa foi bem feita”, elogiou o diabo, e sorriu contente.
Óforo nada sabia fazer a não ser acatar as ordens de seu novo senhor, e assim
continuou a segui-lo.
No dia seguinte, quando os trabalhadores chegaram, descobriram, com grande tristeza,
que a capela havia sido demolida. “Isto é obra do Maligno!”, exclamou um deles.
“Vamos erguer uma cruz no caminho antes de reiniciarmos a construção; ela o
manterá afastado”. No mesmo instante, fincaram uma cruz de madeira no meio da
estrada que ia dar na capela. Voltando ao local do trabalho, cantaram uma canção e
começaram de novo a construir.
Depois de algum tempo, quando o telhado já protegia aquele lugar sagrado, o diabo
vinha voltando acompanhado de Óforo. O gigante, mais uma vez, carregava um tronco
de pinheiro. O diabo seguia na frente. Ao se aproximar do cruzeiro, estremeceu, saltou
de lado e fez um grande desvio ao redor dele. Admirado, Óforo estacou: “O sinal da
cruz na testa, a cruz no caminho... Diga-me, diabo, por que você saltou de lado?” –
“Não faça perguntas, apenas quebre o telhado. Veja, ele já está com as telhas em
cima.” – “Pois eu não darei nenhum golpe enquanto você não me disser o que significa
essa cruz!” O diabo então disse: “Tenho de tomar cuidado para não pronunciar seu
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nome.” – “Será que é um nome tão perigoso que o próprio diabo precisa se proteger
dele?”, perguntou Óforo. “Por acaso existe um senhor ainda mais forte que você?”
O diabo chegou então bem pertinho dele e sussurrou: “Existe um que tem poder sobre
a terra e no céu; não pergunte mais nada, vamos, bata com força!” Óforo, porém,
retorquiu: “Se existe um senhor que tem poder não só sobre um reino, não só sobre a
terra, mas também no céu, então ele é o maior dos reis, e é a ele que quero servir.”
Com essas palavras, o gigante jogou ao chão o tronco da árvore, bem em cima dos pés
do diabo. Encaminhou-se então para a capela, deixando para trás o diabo, que saiu dali
praguejando e mancando.
Bem cedo na manhã seguinte, chegaram os trabalhadores. Encontraram um tronco
despedaçado no caminho e, dentro da construção, um gigante dormindo. As vozes dos
operários o despertaram, e Óforo dirigiu-se a eles, que estavam muito amedrontados.
Sem prestar atenção ao seu medo, apontou para o cruzeiro e perguntou: “Que rei é esse
a quem pertence esse símbolo?” Os operários responderam: “Não sabemos explicar-
lhe muito bem, preferimos construir a casa dele; mas siga em direção ao sol nascente
por mais ou menos uma hora; lá você vai encontrar um rio caudaloso. Entre os
rochedos que ficam acima do rio, há uma caverna, e nela mora um velho, um eremita;
ele com certeza saberá responder-lhe.”
Óforo pôs-se a caminho e encontrou tudo conforme lhe havia sido explicado. Escalou
os rochedos acima do rio; uma trilha estreita indicou-lhe o caminho da caverna.
Admirado, o eremita olhou o gigante, que se postara diante de sua ermida. “Que quer
você de mim?” Óforo respondeu: “Oh, ancião, diga-me onde posso encontrar o rei que
tem poder sobre a terra toda e também no céu?” – “Existem dois caminhos para
encontrá-lo”, disse o velho. “O primeiro deles manda que você procure um lugar
tranquilo, como eu fiz; deverá alimentar-se pouco e ler as histórias da Sagrada
Escritura.” Óforo retrucou: “Esse não é o meu caminho. Não sei ler e não gosto de
ficar parado. Veja só meus braços tão cheios de força. Eles querem trabalhar!”
O eremita concordou com a cabeça e prosseguiu: “Ouça então qual o segundo
caminho: você precisa, com toda essa força, servir aos homens. Está vendo ali
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embaixo o rio caudaloso e largo? Nenhuma ponte o atravessa, e no entanto são muitos
os viajantes que, todos os dias, desejam passar para a outra margem. Desça lá,
construa uma choupana bem na beira da água e atravesse as pessoas, carregando-as em
seus ombros fortes.”
“Isso eu farei com prazer!”, exclamou Óforo, agradecendo ao velho, e tornou a descer.
Sua choupana foi logo construída ali na margem e, dali por diante, o gigante carregava
os viajantes para o outro lado, a qualquer hora, sem jamais pensar em pedir
pagamento. Se alguém lhe dava pão e frutas, ele agradecia.
Passou-se o primeiro ano. Óforo subiu até a ermida e disse: “Ancião, o grande rei
ainda não veio.” – “Então prossiga por mais um ano. Ele logo virá.” E assim, ano após
ano, Óforo subiu até a ermida, e seu rei não vinha. Já era a sétima vez que o eremita o
mandava descer de novo para a beira do rio; Óforo, porém, não reclamava.
Numa noite tempestuosa, enquanto o vento bramia lá fora, Óforo, em sua choupana,
estava mergulhando em profundo sono. Repentinamente, despertou. Pareceu-lhe ouvir
uma voz, bem nítida, chamando-o da outra margem. Levantou-se, agarrou seu
possante cajado e enfrentou as ondas que bramiam. Mas, na outra margem, não
encontrou ninguém para ser carregado; apenas o vento assobiava forte por entre o
arvoredo. “Será que, dormindo, o que ouvi foi o vento a uivar?”, pensou ele, e foi
deitar-se de novo na choupana.
Mal havia adormecido, acordou sobressaltado. Ouvira nitidamente uma criança
chamando. Mais uma vez, Óforo atravessou as águas. As ondas já não estavam tão
altas, e também o vento serenara um pouco. Mas na outra margem não havia
absolutamente ninguém. Ele chamou, e não houve resposta. “Que estranho”,
murmurou para si mesmo, “eu ouvi alguém chamando.” Nada mais lhe restava a fazer
senão voltar, deitar-se na choupana e dormir.
Pela terceira vez, ele despertou. Lá fora, as ondas e o vento se haviam calado. Uma
voz clara como cristal chamava: “Óforo, carregue-me para o outro lado!” Saindo da
choupana, ele enxergou um clarão de luz, que vinha da outra margem em sua direção.
E teve a impressão de ver, dentro desse foco de luz, uma criança esperando. Óforo
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começou a atravessar a correnteza e agora via claramente que a delicada figura estava
totalmente envolta em luz. Atingindo a outra margem, ele se inclinou diante da
maravilhosa criança e a pôs nos ombros cuidadosamente. Tornando a atravessar a
correnteza, Óforo começou a sentir que a criança ia ficando cada vez mais pesada. A
cada passo, mais ele precisava dobrar os joelhos. E também o vento e as águas
voltaram a bramir; as ondas altas batiam em suas vestes e em sua barba. No meio da
correnteza, seus joelhos se dobraram, e ele teve a sensação de que o mundo todo lhe
pesava sobre os ombros. Pensou que fosse afundar e, então, ergueu a cabeça e disse,
desalentado: “Oh, criança, como você é pesada!” E a resposta veio do alto, cristalina:
“Óforo, você carrega bem mais que o mundo, pois carrega aquele que o criou.” E,
quando ele ergueu o olhar, divisou uma sublime figura luminosa. Seu semblante
refulgia como o sol, e uma coroa de estrelas circundava de raios sua cabeça. Era
Cristo, o Senhor, e Ele disse: “Você esperou por mim durante sete anos e serviu
fielmente aos homens. Portanto eu o batizo com meu nome: de ora em diante você se
chamará Cristóforo (*). Junto à sua choupana, finque o cajado na terra; quando, da
madeira ressequida, brotarem folhas verdes, você estará comigo!”
A luz desapareceu; o peso nos ombros também, e as estrelas voltaram a brilhar
novamente. Cristóforo levantou-se, caminhou para a choupana e fincou seu cajado
bem fundo na terra.
Três dias depois, em vão as pessoas chamaram pelo gigante para carregá-las até a
outra margem. Quem chegou até a choupana encontrou junto à porta, fincado na terra,
o cajado do gigante totalmente recoberto de folhas verdinhas. Altas vozes chamaram
por seu carregador, mas ele não apareceu. Dentro da choupana, encontraram seu corpo
sem vida, deitado no chão.
...................................................................................................................................................................................................
(*) – Óforo que dizer “aquele que carrega “; Cristóforo é aquele que carrega Cristo. Em nossa língua o chamamos
Cristóvão. (N.T.)
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A notícia se espalhou, e vieram pessoas de perto e de longe e choraram a ausência do
bom servo que, tanto de dia como de noite, as transportara para a outra margem por
tempestades e vendavais. Um mensageiro subiu até a ermida para contar ao eremita o
sucedido. O ancião meneou a cabeça, dizendo: “Deitem o gigante numa sepultura;
Cristóforo encontrou o maior dos reis; mas eu ainda preciso esperar...”
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ROQUE
Na cidade de Montpellier, que fica no sul da França, vivia uma família nobre, cujo
nome hoje é desconhecido. O último fidalgo descendente dessa família estava
preocupado com a extinção de sua linhagem, pois ele não tinha filhos. Muitas vezes,
em suas orações, pedia a Deus que lhe desse um. E, de fato, depois de muitos anos de
espera, sua esposa deu à luz um menino. Ele deu-lhe o nome de Roque. A alegria foi
grande. Ao crescer, o menino em muitas coisas mostrava um gosto diferente dos
demais jovens de sua idade. Quando estes se divertiam com brincadeiras barulhentas e
frequentemente brutas, ele se recolhia no silêncio da floresta. Lá, alimentava os
animais, brincava com eles, construía ninhos de talos e musgo para os passarinhos.
Como já tivesse doze anos, seu pai lhe disse: “Roque, eu sinto que minha vida está
chegando ao fim. Quando eu morrer, seja prestativo a qualquer hora para com as
outras pessoas, assim você sempre encontrará amigos e quem te ajude.”
Tempos depois, seu pai morreu, e sua mãe não tardou em segui-lo. Agora Roque
estava órfão. Primeiro, viveu durante três anos com seus parentes; cada vez mais,
porém, uma estranha inquietação tomava conta do jovem. Ele cedeu aos parentes a
casa e as terras e saiu pelo mundo. Apesar da pouca idade, os relatos sobre a vida e a
atuação de Cristo o marcaram profundamente. Ele tinha sabido que o apóstolo Pedro,
discípulo do Senhor, estava enterrado em Roma e se propôs a procurar sua sepultura.
Mal completados os quinze anos, ele começou a peregrinação. Em segredo, desejava:
“Ah, se eu pudesse encontrar um mestre como o de Pedro!” Decidido a servir e ajudar
durante a peregrinação, deixou sua pátria.
Nessa época, por algumas regiões da Itália alastrou-se uma doença grave. Seu nome
era peste (*). Quem se contagiava, ficava com ínguas escuras chamadas bubões, tinha
febre alta e vinha a falecer. Outros sofriam de tumores, mal podiam se mexer e
...................................................................................................................................................................................................
(*) – É a peste bubônica, também conhecida pelo nome de peste negra, por causa das ínguas escuras chamadas bubões.
Essa peste assolou a Europa no século XIV. (N.R.)
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necessitavam de um longo tratamento. Esta doença era muito contagiosa e em poucos
dias infestava cidades inteiras e regiões. Muitas vezes, os sobreviventes tinham
dificuldade em enterrar todos os mortos. Assim, naquele tempo, as pessoas viviam
com muito medo dessa terrível epidemia.
Ao peregrinar até a Itália, Roque chegou a uma região assolada por essa doença. Mas,
com ele, acontecia algo de estranho. Ele não tinha medo de se contagiar, ajudava a
cuidar dos doentes e a enterrar os mortos. Assim, sua viagem para o túmulo do
apóstolo foi retardada. Chegando a Acquapendente, junto à cordilheira dos Apeninos,
Roque soube que o hospital da cidade estava cheio de doentes com peste. As ruas
estavam desertas. Ninguém se arriscava a sair de casa. Só o carro fúnebre, levando
cadáveres, passava aos solavancos sobre o calçamento de pedras, acompanhado por
vultos encobertos. Naquela época, acreditava-se que a doença teria dificuldade em
infestar quem estivesse envolvido em panos.
Roque chegou ao hospital e tocou a sineta. Vicente, o encarregado do hospital, desceu
até o portão, a fim de impedir a entrada de mais doentes; pois lá não havia mais
nenhum canto desocupado. Ao abrir o portão, deparou-se com um jovem sadio e
bonito, em vestes de peregrino, que perguntou alegremente: “Mestre, meu nome é
Roque. Posso ajudar a cuidar dos empesteados?” Vicente ficou estupefato. Encarava o
interlocutor, como se tivesse chifres e, por fim, conseguiu responder: “Jovem, isto aqui
não é para você. Aqui você só encontrará a morte.” Vicente sabia que justamente os
jovens eram mais suscetíveis a morrer de peste. Para sua surpresa, o jovem sorriu para
ele, dizendo: “Mestre, eu não sou nenhum principiante no tratamento de doentes com
peste. Deixe-me entrar em nome de Jesus Cristo. Você logo verá.”
Vicente lhe deu passagem. Ainda queria perguntar de onde ele vinha, porque o
linguajar do estranho soava diferente do falado no país. Também queria perguntar por
que ele desejava, de livre e espontânea vontade, assumir o pior trabalho. Mas, ao ver
os modos alegres do jovem e ao contemplar seus olhos claros, teve a impressão de
estar junto à porta um bom anjo que veio em seu auxílio, e de ajuda ele realmente
precisava. Além de duas senhoras idosas e de um criado, não havia mais nenhum
79
enfermeiro no hospital. Quase respeitosamente mandou Roque entrar. Os gemidos e as
súplicas dos doentes – que Roque tão bem conhecia – enchiam a casa. Ele pediu para
ver as enfermarias, a lavanderia, a cozinha e então pôs mãos à obra.
Vicente achou que Roque possuía doze mãos e vinte e quatro pernas! Subia e descia
escadas, corria para cá e para lá, trazia comida, chá de ervas curativas, lavava feridas,
até mesmo os bubões da peste, buscava água, espantava moscas, defumava na brasa
raízes de ervas. Porém, quando anoitecia, ia silenciosamente de um doente a outro,
impunha suas mãos em forma de cruz na testa, depois no peito e deixava fluir as
palavras de suas orações para os doentes. O que Vicente não acreditava ser possível é
que, poucos dias depois, alguns já podiam ser dispensados como curados, e outros
doentes eram admitidos no hospital. Naturalmente, em pouco tempo se espalhou a
fama do jovem milagroso. Vicente continuava insistindo em saber de quem ele
descendia, de que linhagem, se ainda tinha pais e onde eles moravam. Mas Roque
sorria em silêncio e fazia com a mão um sinal para cima, indicando que eles estavam
no céu. Não queria dar a conhecer sua descendência nobre. Desejava ser para todos,
simplesmente, o irmão Roque.
Quando, depois de semanas, a peste em Acquapendente começou a chegar ao fim, os
moradores de Cesena, uma cidade não muito distante, pediram a ajuda de Roque. Ao
invés de continuar sua peregrinação a Roma, ele foi para o hospital de Cesena. Apesar
de também prestar lá essa difícil assistência dia e noite, não esmoreceu. Em curtos
períodos de sono, refazia suas forças, para passá-las adiante. Na catedral de Cesena,
pode-se ver ainda hoje um quadro homenageando Roque pelos serviços prestados.
Finalmente, quando também em Cesena a peste havia sido debelada, Roque continuou
sua peregrinação a Roma. O brilho de seus olhos ainda ficara mais intenso. Muitos
olhares caíam sobre o jovem peregrino, vestido pobremente, mas cujo semblante
deixava feliz aqueles que o encontravam.
Em Roma, Roque ficou durante muito tempo junto ao túmulo do apóstolo. Diante de
seus olhos passavam a vida e o sofrimento de Cristo. Nisso, um homem alto e barbudo
se aproximou dele e disse: “Você é o Roque! Em Acquapendente cuidou de mim e me
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salvou da morte.” E ele o abraçou cheio de alegria e gratidão. Em seguida, continuou
falando: “Eu sirvo aqui e sou guarda do túmulo do apóstolo. Hoje fiquei sabendo que o
cardeal Bernardo adoeceu de peste. Eu teria muita pena, por causa de seu bom coração
e de sua natureza cordial ... Roque, você poderia cuidar dele?” Sem pestanejar, este
respondeu: “Nada me deixa mais feliz, do que servir. Estou cansado de viajar por aí.
Leve-me até ele!”
Foi assim que Roque cuidou do cardeal Bernardo até ele sarar, conquistando assim sua
amizade. Certa vez, Bernardo disse ao homem barbudo: “Nunca encontrei uma pessoa
tão repleta de Deus.” E perguntou a Roque: “Você não quer ir para o seminário,
estudar e se tornar religioso? Vou preparar para você todos os caminhos para isso.”
Rindo, Roque respondeu: “Digno pai, meu altar é a cama dos doentes, minha missa é
limpar e lavar; a comunhão se realiza quando cruzo minhas mãos. Para isto, não
preciso de latim, nem de erudição, nem de tinido de sinetas.” O cardeal gostava do
humor de Roque e, assim, não mais o forçou a seguir o sacerdócio. Deixou que ele
continuasse a cuidar de doentes. Por cerca de três anos, Roque ficou em Roma.
Depois desse tempo, chegou a ele a notícia de que, na cidade de Piacenza, irrompera
uma grande epidemia da peste. Roque peregrinou de volta para o norte, pelo caminho
de onde tinha vindo e, de Cesena, seguiu para Piacenza. Mas desta vez seus cuidados
tiveram outro curso. Durante duas semanas trabalhou incansavelmente no hospital e,
de repente, foi tomado por uma tontura, de maneira que não conseguia mais andar com
segurança. Ele mesmo havia contraído a febre da peste. Dores terríveis ardiam em seu
corpo, dando-lhe vontade de gritar. Ele teve de se deitar e caiu num estranho desmaio.
Seu corpo tinha convulsões mas, como num sonho, apareceu para ele a figura de um
anjo, que dizia: “Roque, você cuidou de muitos doentes. Agora você mesmo deve
suportar esta doença e superá-la. Dela você ganhará novas forças.”
Cedo pela manhã, Roque se obrigou a levantar. A um enfermeiro da noite ele disse:
“Ficarei ausente durante algum tempo; espero voltar logo.” Pensou consigo mesmo
que não gostaria de incomodar o sono dos outros doentes com seus gritos de dor, que
mal conseguia abafar, e que poderia cuidar sozinho de si mesmo. Como era verão, ele
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se dirigiu para um vale dos Apeninos, ali perto. Com musgo preparou um leito na
floresta. Apesar das dores, de tempos em tempos trabalhou na construção de uma
pequena cabana. Cada vez mais bubões apareciam nele. Uma ferida purulenta estourou
na coxa. Durante dias tremia de dor. De novo, como quando esteve no túmulo do
apóstolo, visualizou em espírito a via sacra de Cristo: a flagelação, a coroação com
espinhos, o carregar da cruz e a crucificação. Roque tinha a impressão de que só agora
vivenciava e compreendia o grande sofrimento da humanidade.
Um filete de água passava por perto, e nele ele podia matar sua sede febril e lavar suas
feridas. Nada tinha para comer; mas também quase não tinha fome. Uma vez, ao voltar
cambaleante do ribeirinho para seu cantinho, um cachorro se aproximou dele,
confiante. Roque o afagou, e o animal o acompanhou até a cabana. Lá, deitou-se junto
dele, deixando-se acariciar. Mas, de repente, o cachorro deu um pulo, como se alguém
o tivesse chamado, latiu três vezes e desapareceu. Roque mal acreditou ao vê-lo voltar
algum tempo depois. Ele trazia no focinho um pedaço de pão e o soltou ao lado do
doente.
Que havia acontecido? O cachorro pertencia ao dono de uma propriedade perto dali,
cujo nome era Gothart. Ele havia tirado sorrateiramente o pão da mesa do seu dono e o
levara para Roque. Fez isso por vários dias, até que Gothart o percebeu e pensou:
“Que será que meu cachorro faz com o pão que leva embora? Ele ganha o suficiente
para comer.”
No dia seguinte, Gothart esperou até que o maroto saísse de casa em direção à floresta,
levando outra vez um pedaço de pão. Ele o seguiu e assim encontrou o doente
solitário, em seu leito na cabana e, junto dele, o cachorro. Gothart se aproximou.
Roque, porém, exclamou: “Não chegue muito perto, estou com a peste!” Assustado,
Gothart recuou e tomou depressa o caminho de volta para casa. Assim que chegou,
teve vergonha e pensou: “Meu cachorro serve ao pobre homem e eu, covarde, fugi!
Como soava nobre a voz do doente. Ele deve ser amado por Deus, que inspirou uma
criatura que não pensa a provê-lo de pão. Eu sou um egoísta medroso e só penso em
mim.” Assim, Gothart voltou imediatamente para a floresta, para levar provisões e
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cuidar do doente. Este, contudo, não aceitou ser levado para a casa de Gothart, para o
convívio com sua família e empregados. Devido aos cuidados e às visitas diárias ao
doente, Gothart, sempre acompanhado pelo fiel cachorro, mudou completamente.
Antes só pensava numa vida confortável, boa comida e bebida; agora, no servir,
descobriu o amor ao próximo.
Ao se aproximar o outono, Roque convalescia na cabana da floresta. Voltou para
Piacenza e continuou a cuidar dos doentes, até o fim da epidemia. Depois, retornou ao
tranquilo vale da floresta e construiu uma cabana mais resistente. Com o cachorro, que
sempre lhe trazia o pão, desenvolveu um profundo amor pelos animais. Logo se tornou
amigo de todos os animais da floresta. Estes se aproximavam confiantes, e ele lhes
falava e cuidava deles, quando necessário. Muita gente procurava por Roque, para dele
receber consolo e forças. Também aos doentes dava bons conselhos, e muitos levavam
ervas curativas, colhidas e secadas por ele. Sempre os advertia quando iam embora:
“Sejam bons para os outros, e sejam bons também para com os animais!”
Quando Roque morreu, milhares de pessoas, que tinham sido cuidadas e consoladas
por ele, pensaram: “Roque não deve ser esquecido. Ele viveu o amor atuante!” Assim,
aconteceu que sua história foi contada em muitos países, e igrejas e hospitais
receberam seu nome. Entre os muitos quadros representando Roque, existem até
alguns retábulos, nos quais se vê o fiel cachorro a seu lado. Roque certamente se
alegraria por não terem esquecido o cachorro, que pôde ficar com ele junto do altar.
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FRANCISCO DE ASSIS
Francisco, o Irmão Alegre
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vendedor da loja:”Volto já!” E saiu correndo pela ruela. Começou a procurar, rua
acima, rua abaixo, o mendigo desaparecido. Jovens camaradas o chamavam: ”Ei,
Francisco, que vamos beber? Está quase na hora de parar de trabalhar!” Mas Francisco
apenas perguntou aflito: “Vocês não viram por aí um mendigo?” E continuou a correr,
de modo que seus amigos ficaram sem entender nada, e um deles bateu de leve na
testa com o dedo.
Depois de correr ainda por uma viela, Francisco achou finalmente o velho mendigo
junto aos cântaros do vendedor de água. Este, com pena, derramou em suas mãos em
concha um pouco de água para que ele bebesse. Francisco observou por um instante e
pensou: “O pobre vendedor de água deu-lhe um pouco de sua água. Eu não lhe dei
nada e o enxotei de modo humilhante.” Depois que o mendigo bebeu, Francisco se
dirigiu a ele, meteu a mão no bolso, pegou as moedas de prata recebidas antes como
pagamento do cavaleiro e as depositou nas mãos molhadas do mendigo. Este se
assustou, ao ver de repente outra vez diante de si o filho do negociante de tecidos que
o expulsara, e então metade das moedas caiu na rua. Francisco inclinou-se, ajuntou-as
e, antes que o mendigo se refizesse de sua perturbação, repôs em suas mãos as moedas
perdidas e correu dali. Com aquela esmola, o pobre homem poderia viver muitos
meses sem passar necessidade.
Francisco não se sentia feliz vendendo tecidos para aumentar a riqueza de seu pai. E
cada vez lhe agradava menos passar noites e noites comendo e bebendo com os
amigos até se fartar. Sonhos agitados afligiam seu coração. Ouvia vozes que o
chamavam pelo nome, mas que não diziam o que queriam dele. Começou a refletir a
respeito de si mesmo e do mundo e, então, resolveu empreender uma viagem a Roma.
Queria fazer uma peregrinação ao túmulo do apóstolo; talvez recebesse ali uma
orientação para a vida. Deixou seu cavalo em casa e vestiu um manto de peregrino.
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Não pôs também dinheiro demais no bolso, para que durante a viagem não vivesse tão
ricamente.
Assim, ele caminhou apoiado num bordão até a cidade santa. Quando, ao chegar em
Roma, pôs-se a subir os degraus da igreja do apóstolo, neles viu sentados muitos
mendigos. A maioria das pessoas os evitava. Francisco, porém, foi direto a eles e os
presenteou tão regiamente, que quase nada lhe sobrou do dinheiro trazido. Entrou
então na igreja do apóstolo, viu as preciosas batinas dos padres e dos bispos e ouviu os
belos cânticos do coro na grande igreja. Francisco voltou até os mendigos e pediu a
um deles: “Por favor, troque de roupa comigo. É com a sua que eu gostaria de ir ao
túmulo do apóstolo.” O mendigo pensou: “Existem jovens bem excêntricos!” Como,
porém, o bom traje de peregrino de Francisco lhe agradasse bastante, concordou.
Afastando-se um pouco, deu a Francisco seus andrajos. Com eles, Francisco dirigiu-se
ao túmulo do apóstolo e se prostrou no chão humildemente. De repente, achou que
estava ouvindo uma voz em seu íntimo que lhe dizia: “Francisco, procure o Senhor!”
“Como devo fazer isso?” – perguntou ele a si mesmo; mas a voz havia emudecido.
Já do lado de fora, Francisco sentou-se junto dos mendigos um pouco, pediu esmola
tal como eles, quase em vão. À noite, dormiu debaixo de uma ponte de pedra. Na
viagem de volta, mendigou pelo caminho, até que chegou de novo em casa, magro e
em mísero estado. Quando seu pai o viu assim pobre e esfarrapado, ficou zangado e
pensou que ele tivesse sido assaltado por ladrões. Sua mãe ficou aflita; ele havia
mudado tanto... Ela queimou seus farrapos e tornou a lhe dar uma de suas belas
roupas. Daí por diante, ele deixou os companheiros de bebida, que pelas ruas de Assis
o cumprimentavam querendo conversar, e afastou-se deles cada vez mais. Por horas e
horas vagava pelos arredores da cidade, solitário e sem destino.
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O Leproso
Certo dia, Francisco se encontrou com um leproso. Até então, ele sentia repulsa por
essa doença e tinha medo dela. Um pensamento o assaltou: “Estes doentes, que foram
expulsos da cidade, também são seres humanos.” E ele fez um esforço para
cumprimentar o leproso e pegou sua mão. Quando a apertou, curvou-se para beijá-la.
Perguntou ao doente: “Para onde você vai?” “Ao cair da noite, vou para junto das
muralhas de Assis, onde algumas pessoas deixam restos de comida e às vezes um pão
para nós, meus irmãos e irmãs doentes.” Francisco perguntou: “Onde você mora?” E
então o leproso lhe mostrou uma colina ali adiante: “Nós moramos lá em cima, numa
casa em ruínas.”
No dia seguinte, Francisco tirou seu cavalo do estábulo. Carregou-o com comidas,
frutas, pães e levou tudo até a casa dos leprosos. Levou também panos para ataduras,
tecidos e pomadas para aliviar a dor, que ele havia arranjado. Nada disso ele podia
contar à sua mãe e ao seu pai.
São Damião
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cidadezinha de Foligno e vendeu-os lá, na praça do mercado. Com o produto da venda,
foi ter com o padre da igrejinha de São Damião e disse: “Pai, eu lhe ofereço este
dinheiro, para que o senhor possa pagar operários que restaurem a igrejinha.” O padre,
porém, recuou assustado; pois temia que o pai de Francisco pudesse não estar de
acordo e que decerto nada soubesse desse dinheiro da venda dos tecidos. Francisco,
então, jogou as moedas num nicho da igrejinha e perguntou: “Pai, posso ficar com o
senhor e trabalhar eu mesmo na construção e renovação de sua igrejinha?” Isso o
padre permitiu, e Francisco pôs mãos à obra para consertar o telhado.
Entretanto, o pai de Francisco, chegando de viagem, perguntou pelo paradeiro do
filho. Ninguém sabia onde ele estava. A mãe informou: “A última coisa que fez foi
viajar até Foligno com pacotes de tecidos para vender, e ainda não voltou.” O pai foi
tomado de violenta ira e esbravejou: “De uma vez por todas, vou mostrar a esse rapaz
o que é ser um negociante de verdade.” Com seus servos, Pedro Bernardone saiu em
busca do desaparecido.
Nos muros da igreja de São Damião, Francisco tinha preparado para si mesmo um
esconderijo, onde pudesse dormir à noite. Quando vozes ou passos se aproximavam da
isolada igrejinha, ele ali se escondia, a fim de que seu paradeiro não fosse descoberto;
pois por toda a cidadezinha já se falava do sumiço de Francisco. Vários boatos já
circulavam. Talvez alguém tivesse visto Francisco, quando ele consertava o telhado,
pois seu pai apareceu na igrejinha de São Damião com seus servos. O esconderijo eles
não encontraram. Francisco ficou assustado ao ouvir seu pai lá fora esbravejando
depois da busca inútil, e à noite fugiu para a floresta e ficou escondido muitos dias.
Pouco a pouco, ele foi criando coragem e disse para si mesmo: “Preciso enfrentar meu
pai, manifestar-lhe minha vontade e lhe revelar minha nova vida.” Pálido e esfomeado,
ele partiu certa manhã em direção à cidadezinha. Farrapos pendiam de sua roupa, por
causa dos rasgões causados pelos espinhos da mata. Assim que entrou pelas portas da
cidadezinha, correram crianças atrás dele e começaram a caçoar e a gritar, atirando-lhe
lama. Ele suportou tudo sem se defender e desapareceu pela casa de seu pai adentro.
Pedro Bernardone veio ao seu encontro furioso, de cara fechada metida entre os
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ombros. Francisco mal pôde dizer-lhe “Pai, eu gostaria de trabalhar na restauração da
igrejinha de São Damião...”, e já duros socos o atingiram. Francisco caiu ao chão.
Com uma corrente, o pai amarrou-lhe mãos e pés e o arrastou para um aposento ao
lado, sem janelas, deixando-o lá deitado. A porta ele a trancou e meteu a chave no
bolso. À chorosa mãe, ele esbravejou: “Só volto para casa amanhã! Você o estragou
com mimos e sempre o defendeu. O rapaz precisa agora ser educado com rigor!” Após
essas palavras, Pedro Bernardone desapareceu. Por horas e horas, o rapaz espancado
ficou acorrentado na escuridão, e as correntes lhe arranhavam os braços e as pernas.
Contudo, ele calou sua dor e não chamou ninguém.
A mãe sabia da existência de outras chaves, que serviam para abrir aposentos onde se
estocavam tecidos. Ela teve sorte em sua procura. Ao experimentar algumas,
conseguiu abrir a porta trancada. Seu filho Francisco, que ela amava tanto, lá estava
caído, imóvel em sua dor. Com muito trabalho, soltou as correntes que o prendiam e
libertou-o delas. Depois, deitou sua cabeça em seu colo, passou delicadamente a mão
por seus cabelos e começou a consolá-lo: “Diga-me, Francisco, que é que seu coração
pede? Posso ajudá-lo?” “Mãe, deixe-me trabalhar na reconstrução da igrejinha de São
Damião. Gostaria de ir para lá e de me tornar irmão dos pobres. Em casa do pai, eu
não posso mais viver.”
A mãe logo percebeu que a vontade de seu filho não poderia ser dobrada. Ela
prometeu conversar com o pai; contudo ele teria de servi-lo ainda por algum tempo e
fazer sua vontade. Talvez fosse melhor falar com ele mais tarde sobre o assunto.
Naquela mesma noite, Francisco deixou a casa paterna. Com os braços e as pernas
machucados, ele caminhou até a igrejinha de São Damião. Ela estava fechada.
Francisco sentou-se junto ao portal, encostou-se nele e, quando os primeiros
passarinhos começaram a gorjear, dormia tranquilamente, até que o padre o encontrou.
Dali por diante, ele quis continuar a trabalhar à vista de todo mundo, sem se esconder
mais.
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Ele se despojou de sua Roupa
A fúria do pai havia diminuído um pouco quando ele, no dia seguinte voltou para casa.
A mãe falou-lhe por muito tempo e confessou ter soltado Francisco. A raiva de Pedro
Bernardone aumentou de novo, e ele correu à igrejinha de São Damião. Encontrou
Francisco cantando enquanto mexia na argamassa. O pai ficou perplexo; dirigiu-se
então ao filho e gritou: “Por mim, você pode levar essa vida de louco; mas quero de
volta o dinheiro dos tecidos vendidos em Foligno!” Francisco respondeu: “Mas, pai,
esse dinheiro eu já doei para a igreja; não me pertence mais!” Então, o pai foi correndo
até o bispo da cidade e deu queixa do filho a respeito do dinheiro. E aconteceu que o
bispo ordenou a Francisco que lhe trouxesse o dinheiro no dia seguinte, numa hora
combinada. E também convocou para a mesma hora Pedro Bernardone.
No pátio do palácio episcopal de Assis, ficaram pai e filho um diante do outro.
Francisco trouxera consigo o saco do dinheiro. O bispo exortou-o, dizendo:
“Francisco, devolva a seu pai tudo que pertence a ele!” Francisco então, calmamente,
pôs o dinheiro no chão, aos pés de Pedro. Para espanto das pessoas presentes, ele tirou
também os sapatos e os pôs ao lado do dinheiro, tirou sua roupa, e mais a camisa que
usava por baixo, e as estendeu igualmente ali. E, nu em pelo, o jovem disse: “Isto
tudo, Pedro Bernardone, pertence-lhe! Eu, porém, de hoje em diante, pertenço apenas
ao Pai Celeste!”
A fim de que Francisco não ficasse exposto a caçoadas, o bispo jogou-lhe nos ombros
seu próprio manto. Um criado do palácio trouxe uma longa camisa branca, com que se
vestiam os mortos naquele tempo. Devagar, Francisco foi-se encaminhando para a
porta da cidade. Ninguém mais caçoava. Diante da porta, ele se abaixou e ergueu do
chão um pedaço de tijolo quebrado. Com ele, riscou na camisa, à altura do peito, uma
cruz avermelhada se seguiu seu caminho. Agora estava livre! Uma alegria interior o
inundava de júbilo. Vagou sem destino pelas encostas das oliveiras. Começou a cantar.
Melodias, que havia cantado em suas noitadas, ele cantava com outras palavras,
inspiradas por sua nova felicidade e pelo seu coração.
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Francisco constrói
A alegre caminhada levou Francisco até a cidade de Gubbio. Quando ele estava
bebendo água na fonte, veio ao seu encontro um antigo amigo. “Que há com você,
Francisco? Caiu nas mãos de salteadores? Roubaram-lhe a roupa? Venha comigo, que
eu lhe arranjo outra!” O amigo levou-o consigo até sua casa e lhe deu uma roupa
pobre; pois outra melhor ele recusou. Bem contente, saiu andando na direção de Assis,
de volta à igrejinha de São Damião. Francisco estava tão feliz que, pelo caminho,
conversava com as flores, as árvores e os passarinhos. Um burro de carga, que estava
no meio da estrada, ele abraçou e o chamou de Irmão Orelhudo. Uma minhoca, que se
torcia com esforço na poeira do caminho, ele pôs na palma da mão e disse: “Pobre
criaturinha da terra, sem pernas não se anda pela estrada; pois o homem Pé-Espalhado
vem e a esmaga!” E ele a deitou na relva da campina. O padre Pedro, de São Damião,
alegrou-se quando Francisco chegou de volta e lhe contou que o encontro com o pai na
presença do bispo acabara bem. Agora, livre e sem receio, ele podia prosseguir com o
trabalho. Contudo, em volta das paredes, havia buracos aqui e ali e, para consertá-los,
fazia falta uma quantidade grande de pedras. Então, ele muniu-se de um cesto e se
dirigiu a Assis. Passando pelas casas, implorava que lhe dessem pedras já cortadas,
que estavam largadas sem uso, perto das construções mais recentes. E, como Francisco
estivesse tão alegre e perseverante em seu trabalho e sempre cantarolando, pouco a
pouco lhe foram trazidas pedras para a igrejinha. Um ou outro rapaz até o ajudou no
trabalho. Assim, em poucos meses, São Damião saudava seus visitantes com paredes
firmes e telhados protetores.
Francisco sabia da existência de uma capela, a meia hora de distância de Assis,
chamada Porciúncula. Ali, durante anos, tinha morado um eremita. Agora, ela se
achava abandonada e vazia lá em baixo, na planície. Nela, também não havia mais
nem padre sem serviço religioso. Francisco decidiu que, dali por diante, ficaria na
ermida abandonada e consertaria a capela. Ele tencionava levar ali uma vida tranquila,
na pobreza e na humildade.
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Certo dia, em que Francisco estava ocupado talhando pedras, desceu de Assis seu
antigo amigo Bernardo de Quintavalle e disse: “Francisco, posso ajudar na obra como
seu irmão? Tal como você, eu também gostaria de servir a Deus e aos homens.”
Francisco acolheu-o. Dias mais tarde, chegou outro, Pedro de Cattaneo, e disse:
“Francisco, eu também gostaria de ficar com você, de trabalhar com você na obra e
viver na pobreza, servindo a Deus e aos homens.” Também este Francisco acolheu
como irmão. Eles arranjaram para si mesmos um hábito castanho escuro, igual ao que
Francisco usava, um cinto e sandálias.
Certo dia, disse Francisco aos dois: “Queridos amigos, quando irmãos querem viver
juntos, devem ter uma norma de conduta e regra, segundo as quais governam seus
pensamentos. Sei que lá em cima, na igreja de São Nicolau em Assis, existe sobre o
altar a Escritura Sagrada, o Novo Testamento. Vamos juntos até lá. Cada um de nós
deve, um após o outro, abrir o livro e ler o que lhe cair diante dos olhos. Que Deus nos
guie, a fim de obtermos assim uma regra de conduta”.
Na madrugada do dia seguinte, os três irmãos rezaram em sua capela e, em seguida,
com o nascer do sol, dirigiram-se a Assis e foram até a igreja de São Nicolau.
Primeiro, Bernardo abriu o Evangelho e leu: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o
que tens e dá-o aos pobres”.
Em seguida, Pedro virou a página e leu: “Não leves nada em teu caminho, nem
bordão, nem alforje, nem pão, nem dinheiro.”
Por ultimo, Francisco virou mais uma página, e seus olhos bateram no seguinte trecho:
“Quem quiser ser meu discípulo, que renegue a si próprio, tome sua cruz e siga-me”.
Então Francisco, entusiasmado, exclamou: “Irmãos, estas palavras deverão ser nossa
regra. A Senhora Pobreza será nossa Irmã e de todos que quiserem viver conosco,
como irmãos. Vamos viver de acordo com o Evangelho”!
Um ano depois de Francisco chegar à Porciúncula, seus irmãos já eram em número de
doze. Cada um deles tinha cabaninha construída de ramos secos e palha.
Que faziam então os irmãos? Saíam pela região, dirigindo-se aos camponeses e às
pessoas simples. Conversavam com eles, partilhavam suas preocupações, ajudavam no
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trabalho do campo, cuidavam dos doentes e pregavam o Evangelho. De modo que
todas as pessoas daquela vasta região passaram a gostar cada vez mais dos irmãos de
Francisco e os chamavam “Irmãos da Pobreza”.
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Pouco depois, Francisco voltou à Porciúncula. Ângelo, orgulhoso de ter expulsado os
ladrões sem medo, contou tudo a Francisco de cabeça erguida. Quando terminou, este
lhe disse: “Ângelo, você não teve piedade. Você acha que, com suas palavras,
conseguiu torná-los um nadinha melhores? Não, seus corações vão endurecer mais
ainda. Eles irão por aí roubar outras pessoas. Depressa, pegue pão e um jarro de vinho.
Corra atrás deles. Peça-lhes perdão. Não volte antes de tê-los encontrado. Leve-lhes
meus cumprimentos e minha benção. Diga-lhes: “Em casa de Francisco, há sempre
pão e vinho à sua disposição, enquanto tivermos pão e vinho.”
Ângelo saiu às pressas. Em seu coração, ele se sentia envergonhado. Encontrou os
ladrões deitados à sombra de uma arvore, ainda com sede e fome. Estavam remoendo
negros pensamentos. Enquanto isso, Francisco rezava por eles lá na capela. Ângelo
lhes transmitiu as boas palavras de seu mestre, repartiu o pão e passou o jarro de vinho
por todos.
De tarde, quando Francisco estava regando as plantas do jardinzinho que os irmãos
haviam plantado, viu Ângelo chegando com os três. Com voz abafada, o primeiro
disse: “Francisco, nós somos homens maus. Você quer ouvir nossos pecados?”
Francisco respondeu: “Sim, eu os ouvirei, se eu também puder contar-lhes os meus.”
Em seguida, dirigiu-se com eles para a capela. Chovia, e um vento cortante começou a
soprar. Já estava escurecendo, quando Francisco saiu sozinho da capela. Ele chegou à
cabana de Ângelo e disse: “Os três irmãos ficam conosco esta noite e dormem na
capela. Por favor, ponha sobre o altar um candeeiro e um pouco de pão e vinho, para
que eles se refaçam. Enquanto isso, vou até Assis, bater em algumas portas para pedir
comida e bebida para amanhã de manhã.”
Passou-se algum tempo até que Ângelo conseguisse, com aquele vento e a umidade do
ar, acender o candeeiro. Quando, por fim, entrou na capela, encontrou os três
dormindo no chão ao redor do altar. Bem de manso, ele pôs o candeeiro no lugar, e o
pão à esquerda e o vinho à direita. Sobre cada um, ele fez o sinal da cruz e fechou a
porta da capela sem fazer barulho.
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Que foi feito dos ladrões? No dia seguinte, eles perguntaram a Francisco: “Irmão,
podemos ficar com você? E você nos ensinaria qual a maneira de nos tornarmos
também irmãos satisfeitos e felizes como você? Gostamos da sua companhia. Diga,
que devemos fazer?” Francisco refletiu por alguns instantes e respondeu: “Tragam
pedras daquela encosta rochosa e construam um muro em volta do jardinzinho. O
irmão vento sempre resseca o solo. Vocês também vão achar lá pedras brilhantes, que
cintilam como pedras preciosas. Se acharem uma pepita de ouro, compramos com ela
um jumento. Os três riram, por ter Francisco gracejado com eles com tanta delicadeza.
Começaram a trabalhar com força e perseverança, e o muro crescia dia após dia. De
sua antiga vida de ladrões, eles se haviam arrependido e se tornaram fiéis irmãos de
Francisco.
O Monte La Verna
Na cidade de São Leão, Francisco pregou ao povo. Lá, estava presente o nobre conde
Orlando Catanio. A pregação tocou seu coração e, quando Francisco falou da benção
da quietude e do isolamento, o conde refletiu: “Na imensidão das terras que eu possuo,
fica o monte mais isolado de toda a região: o monte La Verna. Eu poderia oferecê-lo a
Francisco e seus irmãos. Lugar mais silencioso que este não existe. Lá ele pode
construir uma ermida com seus irmãos.”
O conde Orlando dirigiu-se a Francisco e disse: “Francisco, eu gostaria de lhe dar de
presente meu monte na Toscana. É um monte isolado e silencioso, chamado La Verna.
Lá você pode construir um lugar para morar.” Como Francisco já estivesse, então,
peregrinando por muitos anos, agradeceu e aceitou o oferecimento. Para ele, era como
que um sinal de que, por algum tempo, ele devia ficar na quietude, longe das pessoas.
Só levou consigo três de seus irmãos: Masseo, Ângelo e Leão. Os outros deveriam,
enquanto isso, trabalhar ativamente no mundo.
O monte La Verna ficava tão isolado, que lá muitos animais nunca tinham visto um ser
humano. Confiantes, os passarinhos se aproximavam. Francisco falava com eles. Eles
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voavam ao seu redor, cada vez em maior número, e gorjeavam, exultantes. Para
alegria de seus três irmãos, Francisco falava com os passarinhos, cantando: “Queridos
irmãos pássaros! Quem foi que lhes deu voz para cantarem com tanto júbilo? O
Criador do Universo! Quem foi que lhes deu de presente essas asas de delicadas penas,
que fazem com que vocês voem alto pelos ares? O Criador do Universo! Vocês não
precisam semear e nem fazer trabalhos pesados, e por toda parte encontram
grãozinhos, bagas e mosquitinhos. Sua sede é mitigada em nascentes e fontes, e sua
plumagem é lavada em riachinhos. A quem agradecer tantos bens? Ao Criador do
Universo! Por tudo isso, cantem e se rejubilem!”
Assim falou Francisco, e os irmãos denominaram essa fala de “Pregação aos
Pássaros.”
Ele mesmo construiu no monte sua cabaninha, um pouco afastada da dos três irmãos,
para que pudesse manter suas orações e sua contemplação num isolamento que não
fosse perturbado. Certa vez, estando ele orando ao ar livre, estendeu os braços, e nisto
subiu-lhe um grilo no hábito e pousou em sua mão. Ele só o percebeu depois de algum
tempo, quando o grilo entoou um cri-cri bem alto. Francisco sorriu e lhe disse: “Sua
oração é mais pura e mais sonora que a minha!”
Todos os dias, durante seu isolamento voluntário, um dos irmãos tinha licença de lhe
levar um jarro com um pouco d’água e, além disso, um pedacinho de pão. Certa vez,
quando o irmão Leão chegou à cabaninha, Francisco estava totalmente absorto em seu
espírito. O irmão Leão reparou que em suas mãos e em seus pés, de cada ponto onde
os cravos da cruz haviam traspassado o corpo de Cristo, escorria sangue. Em seu
êxtase, Francisco havia recebido a chagas, pois ele queria seguir Cristo em tudo. Leão
retirou-se em silêncio e, comovido, relatou aos irmãos o que tinha visto.
Foi assim a caminhada de Francisco, em que ele queria seguir totalmente a vida e o
sofrimento de Cristo, até nesse milagre dos estigmas. Diante dos outros homens, ele
manteve segredo a esse respeito; mas aos irmãos esse milagre foi revelado.
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Morrer com o Cântico ao Sol
Quando a vida de Francisco se cumpriu e uma doença penosa o forçou ao leito, pediu
ele a seus irmãos que o levassem para a igrejinha de São Damião. Tinha sido ali que
ele começara sua obra. Na pequena cabaninha do jardim, cercada de trepadeiras de
rosas, ele descansou e suportou suas dores.
Certa manhã, bem de madrugada, quando o sol ia nascendo, os irmãos ouviram
Francisco cantando em voz clara e alta, no jardim. Os irmãos Ângelo e Leão foram até
lá e o espreitaram. De tempos em tempos, Francisco repetia seu cântico, estrofe por
estrofe. Então os irmãos anotaram a letra. Eles o chamaram “Cântico ao Sol” e, por
Francisco cantá-lo, aprenderam a letra e a musica. E assim aconteceu que, como o
agonizante sabia que a morte lhe estava próxima, pediu aos irmãos Ângelo e Leão que
cantassem para ele. O “Cântico ao Sol” ainda não tinha uma estrofe sobre a morte.
Então, Francisco os interrompeu antes dos últimos versos e incluiu a estrofe sobre a
“Irmã Morte”.
Louvado sejas, meu Senhor,
por nossa Irmã, a Morte terrena!
Dela nenhum ser humano escapa...
Foi assim, com o Cântico ao Sol doador de luz, e à Terra permeada de luz, na qual
Cristo atua, que Francisco chegou aos braços da irmã morte. E estes são os versos que
o conduziram ao outro lado:
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Cântico ao Sol, de Francisco
Ó Criador do Universo,
Deixa-me anunciar teu louvor e tua glória
Por meio da palavra!
Nenhum homem é digno
De mencionar teu nome.
Louvado sejas, ó Criador,
E toda a tua obra.
Especialmente o irmão Sol.
Ele traz o dia,
preenche a Terra
de esplendor e beleza.
Louvado sejas, ó Deus,
Pelas Estrelas e pela irmã Lua,
Que como pedras preciosas luzindo
Enfeitam o céu cintilante.
Louvado sejas, ó Deus,
Pelo irmão Vento e pelo Ar,
Pelas nuvens, pela luz solar e pelo tempo,
Que doam vida e que sustentam
Tuas criaturas.
Louvado sejas, ó Deus,
Pela irmã Fonte.
Sua preciosa água
Nos serve humildemente.
Louvado sejas, ó Deus,
Por nosso irmão, o Fogo.
Ele alumia a noite
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Com seu belo clarão.
Grande é o poder de suas chamas.
Louvado sejas, ó Deus,
Por nossa irmã e mãe, a Terra,
E por sua colorida veste de flores.
Seu regaço fecundo
Nos oferece nutritivos frutos.
Louvado sejas, meu Senhor, pelas almas
Que, por amor de Ti, perdoam duras ofensas.
Bem aventurados sejam os pacíficos,
Que suportam o sofrimento, a aflição e a tristeza,
Pois esses por Ti serão coroados
Com a coroa da vida.
Louvado sejas, meu Senhor,
Por nossa irmã, a Morte terrena!
Dela nenhum ser humano escapa.
Ai daqueles que morrem em pecado,
Bem-aventurados os que cumprem tua vontade,
Pois esses não temerão a morte.
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POSFÁCIO
Aqueles que defendiam o cristianismo e que por isso eram perseguidos, dando sua
vida e seu sangue, eram chamados de mártires. Eles mostravam fidelidade e disposição
para o sacrifício. A Igreja os chamava de “santos”. Em sua memória, teciam-se coroas,
construíam-se altares, capelas e igrejas e erigiam-se monumentos. Suas vestes e seus
restos mortais eram negociados, e muitos acreditavam que esses despojos terrenos
traziam bênção. Isto, muitas vezes, desencadeava um costume supersticioso. Hoje,
procura-se discernir o significado intrínseco e a grandeza dessas corajosas
“testemunhas de sangue”, trazendo-as para mais perto de nós, mesmo sem
monumentos e sem destacar exageradamente sua santidade: um Sebastião, um
Maurício e seus companheiros, um Beatus. Sim, nós descobrimos que eles intervieram
em favor da humanidade, que sempre pode renovar-se; porque o autêntico
humanitarismo é, ao mesmo tempo, cristianismo. Deparamos com isso nas
personagens em que o pensamento fraterno para com o ser humano despertava,
estimulando compaixão e amor ao próximo.
O autor deste livro sobre lendas constantemente se ocupava com fontes e livros sobre
“santos”, cuja tradição frequentemente sofria de exagero e sentimentalismo. Em sua
atividade como professor, ele contava as histórias e os destinos dessas pessoas sempre
de maneira a enfatizar que todos eles nos são próximos como irmãos e irmãs; que eles
lutaram por uma humanidade melhor. Em cada um de nós, pode irromper algo como a
compaixão de Martinho, a audácia de Jorge, a dedicação de Isabel e o amor
incondicional de Francisco. Que sua presença invisível e silenciosa nos acompanhe em
nossa caminhada.
Jakob Streit
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