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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS

CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA
SOCIOLOGIA DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

Cairo Henrique dos Santos Lima (743904)

Assujeitamento e diáspora: da proposta de representação cultural à


prática de ressignificação política

O objetivo do presente texto será de demonstrar, através de homologias epistêmicas


(indicando a similaridade entre princípios de organização do conhecimento e da
experiência), como aspectos do conjunto teórico atrelado à diáspora enquanto
comunidade de memória - decolonial, pós-colonial e estudos culturais - estariam
ilustrados cultural e politicamente em disputas de ressignificação estética, discursiva e
semântica, existentes em videogravações de Rap disponíveis na plataforma digital
YouTube. Para materializar nossa intenção analítica pretendemos utilizar o álbum
“Bluesman” de Baco Exu do Blues enquanto objeto a fim de explicitar conexões entre
as formas de representação cultural propostas e elementos constituintes da diáspora
enquanto vetor reconstrutor da identidade negra como categoria política. Nesse sentido,
a diáspora enquanto representação de poder que torna-se prática de comunicação
viabilizaria o processo de assujeitamento, isto é, à tomada de consciência de si enquanto
agência por parte dos consumidores desses conteúdos na plataforma digital, através da
assimilação e possível interiorização de significados expressos pelo Rap.

De início salientaremos algumas das articulações teóricas em pauta no decorrer da


disciplina, para então conectá-las ao material empírico demonstrando a efetividade das
homologias que hipotetizamos. Considerando a necessidade de historicizar as
identidades culturais, vimos com Stuart Hall (1997; 2006) que os desencaixes da
subjetividade dos sujeitos em relação aos sistemas culturais que os atravessam no
contexto da colonialidade do saber e do poder (QUIJANO, 2005) deixam arestas e
rebarbas em termos da inserção do sujeito no sistema dominante de representação
cultural, percebido por ele como uma descontinuidade em relação às demandas de sua
posição sócio-histórica. Consequentemente, a relação subjetiva estabelecida entre os
sujeitos e as representações do poder dominante opera um apagamento de sua
genealogia cultural, sem a qual passa a ser socialmente submetido à condição de “não-
ser” (FANON, 2008) na dialética que constrói as identidades em pares de oposição, a
exemplo da imagem negativa do negro que contrasta a do branco, da subtração que a
imagem da mulher representa à afirmativa de poder típica da identidade do homem, etc.

Nesse sentido, um movimento degladiado de disputa pelo significado mais fresco e


ainda nítido escrito no palimpsesto (CAUDURO, 2004) da história da integração racial
no Brasil predomina, a partir de iniciativas solícitas à democracia racial em detrimento
de um contexto de políticas afirmativas, que vão contra “o processo de transição de um
modelo de integração racial [...] para um modelo no qual se busca reconhecer
identidades étnicas e raciais distintas” (SILVÉRIO, 2015, p. 40). A necessidade de
operar distinções e mesmo antagonismos como esse entre as pautas identitárias estaria
atrelada ao processo fragmentário de construção da identidade pós-moderna (HALL,
2005, p. 38), uma característica típica não apenas da roupagem coletiva das identidades
culturais, mas também dos modos de ser a vigorar no plano subjetivo.

Há de se destacar por outro lado, as contribuições teóricas de Kwame Anthony


Appiah (1992), a respeito do processo de construção e desconstrução de categorias de
representação, que, estando ligadas a uma mentalidade colonial (NOGUEIRA, 2019, P.
31-39) orientada pela noção biologizada de “raça”, não poderiam ser adequadas
enquanto principio organizador de uma categoria política de representação,
correspondente e coerente política e historicamente com as demandas da pessoa
socialmente considerada negra no Brasil. Observando os pontos de afinidade cultural
entre sistemas de representação sobrepostos derivados do contexto colonizador, Appiah
busca elucidar o processo sincrético que habilita o colonizado a articular relações entre
a herança ancestral de seu povo e as novas ideias que os apressam a partir de fora
(APPIAH, 1992, p. 5-6). Sobrescrevendo sua história com uma narrativa essencialista, a
relação de dominação racial se fundamentou entorno da noção biologizada de “raça”,
constantemente reposta não apenas pelo senso comum – que no Brasil se refere à
democracia racial - mas por nítidas instâncias de empreendedorismo moral, incluindo a
comunidade científica.
Da desconstrução das categorias racializadas decorreria a possibilidade de
desracialização da experiência, isto é, da retirada de sujeitos imersos na condição de self
racializado - derivada de modelos restritivos de reconhecimento (SILVÉRIO, 2015, p.
61-62) - através da tomada de consciência sobre si enquanto agência, responsável por
libertar o sujeito de princípios coloniais de organização do conhecimento e da
experiência, frustrantes para a percepção individual e coletiva da dimensão diaspórica
de suas identidades culturais, aquela em que uma comunicação intertemporal pode
ocorrer por meio de comunidades de memória, a exemplo das rodas de samba
(MEIRELLES, 2014, p. 33-47). Somam-se influências subjetivas de múltiplas práticas
de representação significativas na construção identitária da pessoa socialmente
considerada negra, nesse sentido, quando Appiah discute o que seria a “africanidade”
(idem, 1992, p. 9) que sela juntos os tão variados destinos da pessoa negra através de
marcas de distinção elevadas à condição de convenção social, sua denúncia aponta
justamente para o excesso de justificativas, para a profundidade artificial de significados
historicamente incoerentes operando práticas de representação a serviço de princípios
epistemológicos eurocêntricos, que organizam o conhecimento, a experiência social e
cultural e mesmo os sentidos políticos que atravessam o cotidiano, seja dos dominantes
ou dos dominados.

Ademais, as discussões específicas acerca da dominação colonial através da língua


nos trabalhos de Frantz Fanon (2008, p. 33-53) e Kwame Anthony Appiah (1992, p. 47-
73), nos ajudaram a compreender como a identidade multicultural da pessoa negra no
Brasil pode preservar sua representatividade política enquanto categoria de disputa ao
mesmo tempo em que precisa ser desconstruída, esvaziada e ressignificada, passando a
ser pensada partindo de negociações com os diversos sistemas representacionais
(HALL, 2016, p. 18-19) em que é significante, considerando o problema da
interpretação fenomenológica do sujeito, mas também, a necessidade de transpor as
demandas políticas de uma determinada identidade cultural coletiva ao campo
institucional (SILVÉRIO, 2015, p. 22), passando a operar na lógica dos decretos e leis
oficiais. Ainda segundo Silvério, se bem compreendi, as estratégias de representação
predominantes no segmento institucional de disputa teriam um escopo de diretrizes
restrito à política de satisfação de necessidades (GILROY, 1993, p. 37, apud
SILVÉRIO, 2015 p. 6-7), aquela que “tem sido praticada pelos descendentes de
escravos, demandando da sociedade civil burguesa que cumpra as promessas de sua
própria retórica”, em detrimento da “política de transfiguração na qual se invocam
referências utópicas” (SILVÉRIO, 2015, idem).

Tal ilustração, aplicada à multiplicidade de segmentos que compõem a construção


identitária da pessoa socialmente considerada negra atualmente no Brasil, nos permitiria
identificar e interpretar algumas das propostas que disputam a incorporação de
elementos culturais e políticos afins com seu próprio discurso no imaginário da
identidade coletiva em que se inserem. A importância de tal disputa consiste na
determinação dos princípios de organização de conhecimento e experiência a serem
repostos nas práticas de representação correspondentes ao perímetro identitário
disputado, considerando a hipótese de uma topologia das identidades culturais com base
em discussões presentes em Appiah (1992) e Hall (2016).

Indo da sutileza abstrata da teoria à solidez do corpo prático e tendo por base
tessituras reflexivas derivadas do enquadramento teórico então esboçado, tentaremos –
utilizando recursos da plataforma digital YouTube - analisar o percurso de determinadas
representações de poder contidas em construções discursivas, significados estéticos e
disputas semânticas contidas em nuances do álbum “Bluesman” - um conjunto de
gravações musicais1 e uma videogravação2, lançados em 23 de novembro de 2018, sob a
alcunha do “rapper” brasileiro Baco Exu do Blues, nome artístico de Diogo Álvaro
Ferreira Moncorvo, nascido em Salvador, Bahia. A trajetória do artista no âmbito das
representações culturais encontra sua foz na repercussão popular nacional de
significados políticos contidos na faixa “Sulicídio”3, lançada no ano de 2016, em
parceria com o rapper pernambucano Diomedes Chinaski, na qual ambos, de origem
nordestina, denunciam a condensação desmedida de recursos econômicos, simbólicos,
de iniciativas e de visibilidade relativas ao cenário musical do Rap entorno do “eixo
Rio-São Paulo”, reivindicando autonomia nas propostas de representação contidas em
suas músicas, vídeos, em suma, em sua visão de mundo, desde já associada à noção de
consciência de si (FANON, 2008, p. 180-184).

Cerca de um ano depois de “Sulicídio”, em 2017, Baco Exu do Blues lança seu
primeiro álbum, intitulado “Esú”, em referência ao sincretismo religioso contido na
mistura dos nomes Jesus e Exu, representado na sobreposição de palavras contida na
1
https://www.youtube.com/watch?v=82pH37Y0qC8&list=PLvDieTZVqJZWokopUaYQ7FTvary4WkiJU
(“Baco Exu do Blues – Bluesman (Álbum)”).
2
https://www.youtube.com/watch?v=-xFz8zZo-Dw (“BLUESMAN (Filme Oficial)”).
3
https://www.youtube.com/watch?v=2ZvGhK9aOK8 (“Sulicídio”).
capa do álbum. Desde então seu estilo se mostrava bem demarcado, pela utilização de
referências sincréticas, linguagem explicita e agressiva, metáforas críticas e temas
múltiplos, abordados em uma espécie de bricolagem que o capacita a abordar desde
questões objetivas como o crime, o assassinato e o racismo, até questões subjetivas
como o amor, a depressão e o suicídio.

Adentrando propriamente o contexto de “Bluesman”, pretendemos analisar


separadamente: por um lado, a videogravação (conexa ao conceito da obra enquanto
lastro estético e único registro audiovisual); e, por outro, alguns fragmentos discursivos
de letras de músicas deste álbum (mais detidamente em três faixas específicas),
associadas à tentativa de ressignificação – construção/desconstrução - de categorias ou
conceitos relacionados à identidade cultural da pessoa socialmente considerada negra,
atrelada de forma não exclusiva ao processo polissêmico de construção identitária
retratado pela obra do artista em questão.

Pois bem, intitulada homonimamente, a videogravação que acompanha o álbum


“Bluesman” enquanto filme conceitual tem cerca de 8 minutos de duração, e retrata uma
síntese da intencionalidade subjacente às investidas ou negociações operadas pelas
representações de poder expressas no intuito de ressignificar o entendimento de senso
comum, e, portanto, estereotípico, da identidade negra (RODRIGUES, 2019, p. 28-32;
RODRIGUES e SANTOS, 2017, p. 125-126), em termos da autoatribuição disseminada
internamente ao grupo (autoaceitação, reflexividade, autoestima, criatividade, etc.), mas
também, dos princípios de organização coletiva das práticas de representação (ocupação
de espaços, aceitabilidade, coerência sócio-histórica, consciência multicultural, etc.). O
blues em si, mais que como gênero musical, é aqui resgatado enquanto proposta de
representação política do negro na sociedade estruturalmente racista, de forma a operar
uma ressignificação identitária a partir do esvaziamento da categoria e da consequente
reposição de significado, de modo sócio-historicamente mais coerente.

O filme se inicia com a entrevista de Caique, um garoto de 10 anos de idade, de pele


retinta, morador da favela do Alemão no Rio de Janeiro. Falando do cotidiano, sobre
jogar bola e soltar pipa, lhe perguntam “O que você quer ser quando crescer?”, e ele
responde: “médico”, restando já ali reticencias a quebrar expectativas. Em transição à
próxima cena, uma troca de olhares do garoto cede lugar a tomada seguinte, em que um
jovem negro corre ofegante pelas ruas de uma grande metrópole – provavelmente São
Paulo – através de fumaça branca. Ouvem-se os dizeres “everything is gonna be
alright”, precedentes a um discurso introdutório:

“Eu sou o primeiro ritmo a formar pretos ricos/O primeiro ritmo


que tornou pretos livres [...] /A partir de agora considero tudo
Blues/O Samba é Blues/O Rock é Blues/O Jazz é Blues/O Funk
é Blues/O Soul é Blues/Eu sou Exu do Blues/Tudo que quando
era preto era do demônio e depois virou branco foi aceito eu vou
chamar de Blues”. (Baco Exu do Blues, “Bluesman”, 2018)

A sobrescrita de significados aqui opera pela associação da categoria “preto” com


segmentos da representação cultural negra, assinalados por gêneros musicais, como o
“samba”, o “rock”, o “jazz” e o “funk”, sendo todos estes, feixes de expressão
revestidos por um significado político de empoderamento, uma ideia que permite
reconstruir a genealogia justificadora de operações de sentido específicas em categorias
representativas para a construção da identidade negra, a exemplo do “preto”. De forma
bastante demarcada, a estrofe fragmentada nos revela o aspecto religioso da disputa por
ressignificação, correlato a temas abordados predominantemente em seu primeiro
álbum. Salientando um de nossos argumentos centrais, retomemos: nesse cenário de
traduções representacionais, se torna possível que a matriz diaspórica de saberes
articulada por Hall, Appiah, Fanon e Gilroy estabeleça “homologias epistêmicas” por
meio dos princípios organizadores de conhecimento e experiência subjacentes à
identidade articulada por Baco Exu do Blues através do Rap, que operando
ressignificações em categorias de representação específicas, rompe com aspectos
constituintes da matriz epistemológica colonial arbitrada por instrumentos hegemônicos
do poder dominante.

Retomando nossa descrição, ao final do discurso introdutório o personagem jovem em


correria nas ruas da metrópole se depara e interage com um senhor mais velho, em meio
a uma planície de mato serrado, em menção simbólica ao contexto das plantações
escravistas. Em seguida, ocorre uma transição brusca de cena, diretamente para um
monólogo em câmara escura, feito pelo personagem que representa um ourives,
deflagrando argumentos em defesa da superioridade da prata em relação ao ouro, uma
metáfora cínica para demonstrar “a ironia da maioria virar minoria”, em referência à
população negra do Brasil. Na cena seguinte uma estátua de mármore negro se
materializa, seguida de retratos de rostos negros, nos quais se destacam olhares, toques,
e a prata que se utiliza em cordões, piercings e brincos, ao mesmo tempo em que
ouvimos uma faixa do álbum intitulada “Preto e prata”.

Avançando pelas construções estéticas propostas, o personagem inicial, um jovem


negro a correr, passa pela catedral de uma igreja, por uma sessão de fotos, e volta a
correr, chegando a um bairro do tipo vila, repleto de crianças, nesse momento se esbanja
um matiz humoral bastante determinado em demonstrar a completude do cotidiano
retratado. No mesmo cenário surge um garoto mais jovem trajado de terno e gravata,
que o dotavam com um quê jurídico, que o colocava em harmonia com pôsters
pendurados em estantes de livros no plano de fundo, nas quais se lia: “nenhuma escola a
menos” e “menos prisões, mais escolas”. De recorte em recorte, transitando entre
cenários rapidamente, vê-se uma toalha de corpo pendurada no varal, estampando o
estereótipo do “Jesus branco”, antecedendo mais detalhamentos faciais de expressões
negras em uma comemoração dançante, forrada pelo som de tambores.

O personagem central ressurge em outro corte de cena no matagal, esbanjando


expressividade em saltos e gritos. Começa a chover e se inicia outra faixa inclusa em
“Bluesman”, intitulada “Queima minha pele”, aqui a cautela de produção é fotográfica.
De volta às ruas da metrópole a correr, o jovem negro a centralizar todo o filme chega
atrasado ao local em que, num compromisso marcado, o aguardavam: um ensaio
musical, de Blues, em que o personagem retoma seu trompete, o empunha e o entona,
expressivamente transpirando satisfação, uma representação de poder que encerra o
vídeo e demarca a costura final de sua proposta de ressignificação na dimensão estética.
Na passagem dos créditos finais eclodem fragmentos de entrevistas com pessoas de pele
negra, contendo relatos sobre sua felicidade, numa associação à religiosidade.

Considerando essa multiplicidade de investidas estéticas para inserir representações de


poder no imaginário cultural correspondente às identidades manuseadas, forma-se um
conceito, em que habita uma concepção dinâmica da ressignificação de categorias
atreladas à identidade negra, envolvendo retomada da agência, liberdade para quebrar
expectativas estereotípicas, o sincretismo, os recursos multimídia, etc. Demonstraremos
agora como este mesmo conceito ou proposta se faz presentes em outras nuances do
álbum “Bluesman”, enfatizando fragmentos discursivos de três faixas específicas:
“Minotauro de Borges”, “Kanye West da Bahia” e “BB King”.
Em “Minotauro de Borges”, Baco inicialmente retrata o “negro correndo da polícia
com tênis caro”, uma carta de entrada indireta, que num passe de faces temperado por
certa esquize, transita ao escopo autodestrutivo da condição de self racializado, na
tentativa de diluir significados os mais densos a constituir seu ser, declarando: “Bebo da
depressão/Vivo da depressão/Tô me acabando por inteiro/Você me mata ou eu me mato
primeiro?”. Em termos das nuances humorais que tingem o álbum, não há
homogeneidade, restando como uma das marcas de composição, a bipolaridade, que
mesmo aguda, segue critérios de coesão interna em relação à subjetividade que
instrumentaliza tais emoções. Há de se ressaltar que temas como a depressão, o suicídio
e o medo social são constantes, indo desde roupagens violentas ao lidar com as questões
de inserção e redistribuição, até formas mais brandas, ternas, e mesmo sutis, envolvendo
minúcias afetivas e eróticas das relações interpessoais, que, de forma não menos
incessante, operam uma ressignificação importante no estereótipo do homem negro,
envolvendo a sensibilidade enquanto paradigma de masculinidade.

Por outro lado, em “Kanye West da Bahia”, Baco critica a adaptação estética, a
rotulação social e a violência que persistem recortando as possibilidades de construção
da identidade negra, digamos que para além dos vícios de uma epistemologia
eurocêntrica, isto é, para além de formas racializadas de organização do conhecimento e
da experiência. A passagem a seguir ilustra com nitidez:

“Eu não abaixo a cabeça, não vou te obedecer/Ser preto de


estimação não, eu prefiro morrer/Sinhozinho eu troco soco,
nunca fui de correr/Todo líder negro é morto, cê consegue
entender [...]/Jesus, eu espanquei Jesus/Quando vi ele chorando,
gritando, falando/Que queria ser branco, alisar o cabelo/E botar
uma lente pra ficar igual/A imagem que vocês criaram [...]/Não
me chame de preto bonito/Preto inteligente/Preto educado/Só de
pessoa importante/Seu rótulo não toca na minha poesia/Eu sou
Kanye West da Bahia”. (Baco Exu do Blues, “Kanye West da
Bahia”, 2018)

A menção ao contexto da relação colonial de dominação em que o “sinhozinho”


constituía um símbolo de opressão demonstra um movimento retrocedente de resgate e
reconstrução histórica da memória, o que significa trazer a lógica diaspórica de
comunicação intertemporal para frente em nossos questionamentos. Por outro lado, o
estereótipo de Jesus é metaforicamente espancado como forma de esvaziar categorias
cuja forma é constituinte para a identidade negra, mas cujo conteúdo é incoerente com a
mesma, a exemplo do papel do cristianismo em tantas nuances do sincretismo religioso
de matriz africana no Brasil. E, por fim, ocorre um movimento definitivo de
transfiguração da categoria de representação vigente, negando-a para propor uma nova
forma de identificação, derivada estrategicamente da autoatribuição, de forma a
esquivar de modelos restritivos de reconhecimento. Avançando para nosso ultimo
fragmento – um discurso de encerramento - gostaríamos de destacar a camada mais
histórica do perímetro identitário que se propõe aqui a ressignificar, extraído da última
faixa do álbum, e que, portanto, despoja seu desfecho:

1903./A primeira vez que um homem branco observou um


homem negro/Não como um animal agressivo, ou força braçal
desprovida de inteligência/Desta vez, percebe-se o talento, a
criatividade, a música!/O mundo branco nunca havia sentido
algo como o blues [...]/O que é ser um Bluesman?/É ser o
inverso do que os outros pensam/É ser contra a corrente/Ser a
própria força, a sua própria raiz/É saber que nunca fomos uma
reprodução automática/Da imagem submissa que foi criada por
eles/Foda-se a imagem que vocês criaram!/Não sou legível, não
sou entendível/ Sou meu próprio Deus, meu próprio santo, meu
próprio poeta”. (Baco Exu do Blues, “BB King”, 2018)

Neste último excerto se torna possível dimensionar com mais precisão em que direção
a proposta de ressignificação de categorias de representação correlatas à identidade
negra articulada por Baco Exu do Blues pretende incidir, o que demanda desconstrução
e o que demanda reconstrução. Interpretamos que o enclausuramento da identidade
advém de uma diretriz normativa incidente do mundo branco, que acarreta desde a
exploração braçal da força de trabalho do homem negro e a exploração sexual da mulher
negra – junto a todas as marcas históricas em sentido civil e mental - até a formatação
estética que reflete formas colonializadas de ser, pensar e agir no mundo a partir de
normas institucionalizadas, oriundas da igreja, da família, do sistema penal, das galerias
de arte, etc. Para preservar a representatividade politica da categoria identitária negra
frente à necessidade de desconstruir seus princípios de organização derivados da matriz
epistemológica eurocêntrica, outro discurso concorre, em favor da lógica diaspórica,
que envolve resgatar momentos históricos, figuras históricas, referências simbólicas
utópicas capazes de reavivar outra conotação, outro entendimento que ressignifique
formas de representação mordazes, levadas à incoerência por princípios de equalização
social e racial viciados por interesses de poder na organização do conhecimento e da
experiência. A partir desse movimento de resgate, tornar-se-ia possível ir contra a
corrente e quebrar expectativas de submissão – correspondendo ao intuito que
identificamos em Fanon, Appiah, Hall, Gilroy, e muitos outros no decorrer deste
semestre, e que percebemos ecoando na obra de artistas como Baco Exu do Blues.

Bibliografia

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