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2009
Resumo:
Esta apresentação vai abordar as relações entre jovens em conflito com a lei e
policiais, no Rio de Janeiro, a partir das narrativas de adolescentes que cumpriram a
medida socioeducativa de internação. Serão discutidas as percepções dos jovens e suas
experiências com policiais civis e militares, os quais são vistos como inimigos e
chamados de “vermes”, “canas” ou “alemão”. Histórias de ameaças, espancamentos e
maus-tratos praticados por esses agentes fazem parte da rotina de jovens que atuam no
tráfico ou praticam roubos, inserindo-os em uma lógica de retaliação armada, na qual
atira-se para não morrer. Além disso, este paper vai abordar o pagamento de “arregos” a
policiais e a exploração de “mercadorias políticas” (MISSE, 2006) por parte desses
atores. Os dados foram produzidos a partir de observação participante e entrevistas com
adolescentes de duas unidades de internação do Degase.
Introdução:
“Tinha uma operação, no alto do morro. Mas eles nunca se metiam com a
gente lá em baixo. Eu tava lá na boca, na contenção, com um maior, o vapor.
Mas aí desceu um e falou: ‘Ai mané, eles estão descendo pelo mato’. Quando
a gente olhou pra esquina, viu logo os cana. A gente correu, nem ficou para
olhar. Até então era 100 policiais para duas pessoas. A gente correu e
tentamos se esconder. Era eu e mais um trabalhando.
A gente tentou correr pro mato e invadiu uma casa abandonada lá. Só que o
barulho estrondou muito. Daí eles vieram e começaram a revistar a casa. A
gente embaixo da escada e eles falando que a gente tava lá. Eles acharam a
bolsa, com a droga, as armas. Tinha uns 600 papelotes, mais duas armas. Aí
eles falaram: ‘Eles estão aqui dentro. Como é que as armas estão aqui?’ Aí
teve um que arrancou a parte da escada e colocou o fuzil pra dentro. Aí eles
começaram a gritar: ‘Vai morrer, vai morrer!’ (E você ficou com medo?)
Lógico. Porque até então ninguém sabia o que ia acontecer.
E teve uma hora que o meu celular começou a apitar, porque estava faltando
a bateria, aí eu tapei o som. Aí tinha um buraco, de onde a gente entrou pra
debaixo da escada, e a gente via a sombra do policial na entrada. Aí quando
ele chegou com o fuzil, o dimaior colocou a mão e disse que tinha perdido.
‘Perdeu nada, vai morrer’. Ia morrer mesmo. Ele destravou a arma. Quando
ele destravou, chegou um coronel da X. (nome do grupamento policial). Aí ele
chegou e falou: ‘Não, não, não. Tem menor?’ Aí eu apareci.
A gente sentou com a mão na cabeça e eles começou a ficar perguntando
onde tinha mais droga, arma. Começaram a esculachar. Deu porrada pra ver
se conseguia mais alguma coisa. Aí um colocou o saco na minha cabeça e
começou a perguntou: ‘Já viu aquele filme Tropa de Elite? Tropa de Elite é
da Bope. Esse aqui é o novo. Tropa de Elite da X. (nome do grupamento)’. E
continuou colocando saco na minha cabeça. Só que até então eu tava
rasgando todos os sacos com o dente. Colocou um, eu rasguei, colocou outro,
eu rasguei. Não tinha nem mais força pra rasgar o saco. Quando começou a
sangrar foi que ele parou. Porque até então eles tinham que apresentar a
gente na delegacia. Aí eles colocaram a gente na viatura e falaram: ‘Ó, vocês
vão pra delegacia, mas sem falar o que houve!’”
A história narrada por Sandro é apenas uma dentre as dezenas que escutei sobre
torturas e abusos praticados por policiais contra adolescentes, mas ilustra o imaginário
sobre policiais construído a partir de contatos traumáticos como esse. Rancor, ódio e
vingança são sentimentos que costuram as memórias de experiências com policiais –
sejam eles civis ou militares -, também chamados de “vermes”, “canas” ou “alemão”,
vistos como inimigos. Espancamentos, ameaças, maus-tratos e extorsões praticados por
esses agentes geram uma sede de vingança nos jovens. “Todos eles tem que morrer”,
resumiu um adolescente.
Em vez de se entregarem para a polícia, muitos deles atiram para matar quando são
avistados por policiais, tanto em favelas quanto no asfalto, pois, além de terem aversão
ao “inimigo”, têm medo de ser mortos ou espancados pelos agentes, em vez de serem
levados à delegacia cordialmente, com seus direitos respeitados. A polícia, por sua vez,
tem o hábito de chegar atirando em favelas, ou em perseguições, como é noticiado com
frequência nos jornais, pois alega que “foi recebida a tiros”. Com raiva nos olhos, Zico,
18 anos, interno da EJLA, me contou sobre o homicídio que praticou contra um policial
militar e os abusos que sofreu depois de ser apreendido – tanto por PMs como por
policiais civis. Esse relato traduz a “sede por vingança” e a vontade de fazer “justiça”
com as próprias mãos, compartilhada por muitos adolescentes.
Zico disse que trabalhava no tráfico, na facção Comando Vermelho, e que já tinha
feito de tudo um pouco, desde matar “X9” (delatores) até percorrer morros dominados
por este grupo e recolher a chamada “caixinha do CV”, e era gerente de uma boca -
atividades sobre as quais não quis dar muitos detalhes nos dois encontros que tivemos.
Na primeira entrevista, eu lhe perguntei o motivo pelo qual estava internado (aquela era a
sua 2a internação e a quarta passagem pelo Degase), então Zico explicou que respondia
por latrocínio contra um policial militar, mas, na verdade, não havia tido a intenção de
roubar o policial, somente matá-lo. A vingança foi motivada porque, em uma troca de
tiros anterior, aquele mesmo policial militar havia matado um de seus amigos, além de
tê-lo agredido.
“Eu podia estar morto, debaixo da terra. Já passei muita coisa nessa vida. Já vi
amigo morrendo do meu lado”, relembrou Zico. A tortura e os maus-tratos a que foi
submetido quando foi apreendido, lhe dão vontade de se vingar novamente de policiais.
Traumas como estes nutrem o ódio por policiais e fazem com que os jovens vejam nas
armas uma forma de fazer “justiça” com as próprias mãos, abstendo-se inclusive de
denunciar as práticas delituosas dos agentes da lei - como no caso em questão -, por uma
descrença na punição dos policiais.
Carlos, 18 anos, internado no ESE por roubo, também mencionou sobre abusos
cometidos por policiais e disse não acreditar na punição destes oficiais: “Já fui torturado
e espancado por policiais. Civil e PM. Mas se eu denunciar um policial, você acha que a
juíza vai acreditar em mim? Vida de bandido é assim: cadeia, porrada ou morte. Ou então
sentar numa cadeira de rodas”.
Os casos de espancamento, tortura e mortes causadas por policiais lembram o que
Kant de Lima (1989) chama de “tradição inquisitorial” e são o avesso do que prega a
retórica dos direitos universais da criança e do adolescente e o Estatuto da Criança e do
Adolescentes. Kant de Lima (2004) explica que coexistem, no Brasil, duas lógicas
opostas que afetam o funcionamento do sistema judicial, constituindo o “paradoxo legal
brasileiro”. Se, por um lado, as leis brasileiras declaram a igualdade jurídica dos
cidadãos, por outro, a desigualdade social está “entranhada no tecido social, contamina as
relações nas instituições sociais” (Kant de Lima, 2004: 51). Este mesmo autor apontou
para as práticas punitivas extra-oficiais amplamente difundidas entre policiais, tais como
o encarceramento, a tortura e a morte, contando com o apoio de setores da mídia, do
governo e da população.
Eu vi um parceiro morrendo num roubo também. Levei dois tiros nesse dia.
Foi sinistro. Ele era menor que nem eu.
Anderson, 18 anos, interno do ESE, por roubo.
Já Jonathan, 15 anos, que estava internado na EJLA por roubo, contou-me sobre
uma troca de tiros entre policiais e traficantes da favela onde morava, na Baixada
Fluminense. Segundo ele, os policiais queriam recuperar um carro que havia sido
roubado por eles, na primeira vez em que o adolescente tinha saído para roubar. A
operação teria acontecido durante um baile funk, e, durante a troca de tiros, Jonatahn
viveu um conflito moral entre matar ou não o policial:
Aí, dia de baile, os cana veio querer zuar. Aí os cana veio. Eu falei: ‘caralho’.
(...) Aí os cana brotou, dia de baile, tranquilão, as cachorrinha jogando... Aí
os PM já chegaram lombrando a favela. Já chegaram na entrada botando pro
alto, pra assustar, pra nao pegar nos morador no bagulho. Só queria só os
bandido. Aí os amigo falou: ‘Agora eles não vão zuar não mané, bota os bico
pra pista’. Caralho, aí os amigo já botou-lhe os bico e eu já peguei logo a
mesma 40 que eu tava, como? Toda cromadona. Os cana já veio e os amigo
tudo de bicão, bolado. E como? ‘Pa pum pa pum pa pum. Tum tum tum tum
tum. Pa pum pa pum pa pum’.
E eu fiquei junto com os cara, como? Não dei nenhum tiro... Falei: ‘pô, não
vou dar tiro, não, mané. Vou ficar só assistindo. Mas se eu ver boiando eu vou
dá-lhe um pra cair’. Fiquei só assistindo, e os tiro batendo do meu lado,
lascando as pedra. Falei: ‘caralho, vou sair daqui. Caí no chão já rolando,
fiquei só no muro assim olhando e como? Aí botaram um tirão no cana. E o
cana como? Meio doidão, palmeando assim. E eu pensei como? Vou apricar...
Aí eu pensei duas vezes: pô, se eu matar, minha mente vai ficar pesada. Não
quero a mente pesada. Aí eu fui e botei: ‘plow’, do ladinho dele. E ele já caiu
com o bico, como? Os cara veio como? Veio sapecando.
Foi o primeiro tiro que eu dei. Mirei do ladinho dele, pô, da perna. Ele tomou
um tiro na perna e eu mirei na outra. Mas sendo que eu não dei pra acertar
não. Só pra ele saber que nós não tá de bobeira. Aí os amigo já como? Já veio
pra cima machucando, e os cana recuando. E ele gritando: ‘tô baleado!’. Os
cana afastando e os amigo depois chegou pertinho dele e rasgou ele no meio.
Só de ‘g3zão’, fuzil. G3 2000. Rasgaram ele no meio. Pegamo ele, picotamo
ele e tacamo no fogo. (E você participou?) Eu fiquei só assistindo. Só ajudei a
botar dentro do saco e taca no latão. (E o que você achou disso?) Muito bom!
Claro!
Jonathan, 15 anos, internado na EJLA por roubo, em entrevista gravada.
O caso de uma invasão de favela narrado por Jefferson, 18 anos, internado no ESE
por roubo, é outro exemplo em que atirou-se em um policial como retaliação à morte de
um companheiro, ou “amigo”, termo que se usa quando trata-se de alguém da mesma
facção. Ele disse ter trabalhado como fogueteiro e endolador em uma favela da Zona
Norte do Rio, dominada pelo Comando Vermelho. Na única entrevista que fiz com ele,
em junho de 2008 – ele estava apreendido há três meses -, Jefferson mencionou a
participação, em 2008, em um “bonde” que tentou tomar a favela B., em um complexo de
favelas na Zona Norte. A troca de tiros com policiais e a morte de um deles foram
narradas por Jefferson com muita energia:
Quatro de nós morreram, pelo Bope. Saíamos num bonde de 80, da H., do M.,
da A. (nomes de favelas),...
(Como foi invadir outra favela?) É gostosinho. É maneiro dar tiro. É tipo uma
aventura.
Matei um policial do Bope e fiquei rindo. O cara tinha matado o meu amigo,
atirou na cara dele. Um outro parceiro meu levou um tiro na perna do
policial. O cara ia matar meu amigo, mas eu matei ele primeiro. Eu tava atrás
dele e vi que ele ia atirar no garoto. Salvei meu parceiro.
Só saímos de lá quando o Bope tomou o morro. Eu tava usando uma ponto 30,
a ‘Pepê e Neném’. Ficamos quatro dias trocando tiro, entocado nas casas.
Cinco amigos morreram.
Jefferson, 18 anos, internado no ESE por roubo.
Como Jefferson, muitos outros jovens disseram ter pratico atos violentos contra
inimigos e “vermes”, em retaliação a outros atos de vioência. De acordo com Zaluar,
neste círculo vicioso de ataques armados entre quadrilhas rivais e entre estas e policiais, a
dignidade masculina é posta à prova a todo momento, e, por isso, eles costumam revidar
com violência a qualquer provocação. Para esta autora, quando um jovem é desafiado ou
humilhado por traficantes rivais ou policiais, ele se sente obrigado a fazer uso da força, e
defender o “ethos da honra masculina”, entrando num circuito de guerra armada e de
retaliação violenta. A defesa e disputa por territórios tornam-se uma obrigação de quem
faz parte desta lógica faccional, e as armas, um símbolo desse ethos:
(...) um processo social que incide sobre a identidade pública e muitas vezes
íntima de um indivíduo. Para que haja sujeição criminal, é preciso que certos
tipos de cursos de ação, representados não apenas como desviantes,
divergentes, problemáticos ou ilegais, mas interpretados principalmente como
criminais, inclusive pelo agente, se reiterem na expectativa social a propósito
desse agente.
(MISSE, 1999: 210)
Se eu for parar dessa vida, vou ter que sair por causa de polícia. Já sou
marcado. Depois da 1ª passagem (pelo Degase), fiquei tranquilão. Um dia eu
tava indo buscar a minha mulher no colégio e os cana panhou a gente. Os
cana já apontou a arma. Tavam com a blazer. O cara falou: ‘Vem Eriquinho’.
Eles levou a gente pra trás da escola, colocou o saco na nossa cabeça, dentro
do Brizolão. Deu um panha. O cara disse que queria a nossa carga, a peça e
dinheiro. Eu disse: “Não tenho nada pra perder”. Aí ele começou a bater a
minha cabeça na parede.
Aí bateu o sinal da escola. Eu tava algemado, com a cabeça sangrando. Ele
veio me dando bicuda na frente da escola. Minha mina viu e foi chamar a
minha mãe. O meu padrasto veio e xingou os PMs. E ele chamou os cana pra
briga. Quando saímos da escola, os PMs fizeram nós berrar na frente de todo
mundo que nunca mais íamos vender maconha no brizolão. Mas nós não tava
nem vendendo nada.
Eric, 17 anos, interno da EJLA.
Vianna (1999) estudou o processo de “menorização” a partir da relação entre a
polícia e jovens por ela apreendidos, entre 1910 e 1920. A autora argumenta que, ao deter
e classificar jovens como “menores”, a polícia criava a própria identidade de “menores”.
Desta forma, a relação destes com a polícia serviria para demarcar a fronteira entre
jovens “normais” e “desviantes”. Ou seja, entre a detenção e a internação, emergiria a
diferença entre “menor” e “não menor”: “o uso desse termo (menor) implica na
construção simbólica de uma representação social que comporta significados
absolutamente distintos dos que normalmente são associados às idéias de infância”
(Vianna, 1999: 21).
Vianna (1999) observa que o acúmulo de passagens por unidades policiais e de
internação acaba por constituir “uma carreira moral dos menores”. Ao descrever a
apreensão de jovens em conflito com a lei nas duas primeiras décadas do século passado,
Vianna aponta que “quanto mais vezes os menores fossem enquadrados pela polícia de
acordo com qualquer designação – abandonados, vadios, ladrões, etc. –, mais
consolidada ficava sua posição de objetos legítimos de ação policial. Mais tornavam-se
menores propriamente ditos” (Vianna, 1999: 113).
Assim como a polícia contribui para essa construção social da categoria “menor”,
também a internação e os operadores do sistema socioeducativo participam ativamente
deste assujeitamento. Para Adorno (1993) os jovens em conflito com a lei se convertem
em “menores” ao “inscreverem sua história ao lado da história das agência de controle da
ordem pública” (Adorno, 1993:193). A figura do “menor”, segundo Adorno (1993), é
resultado tanto da maneira pela qual o Estado realiza suas funções repressivas, quanto
das relações e vínculos que estes adolescentes estabelecem com a polícia, a Justiça e o
sistema socioeducativo.
O “X9”:
Meu irmão vacilou com os cara. Ele xisnoveou umas paradas pra PM. Os
cara deu dinheiro pra PM e descobriu que tinha sido ele o X9. Eu ajudei a
matar. Os cara mandou eu atirar nele. (E como você se sentiu?) Não fico
bolado, não. Fiz o certo. Ele xisnoveou. A vida no crime é fator surpresa.
Jefferson, 18 anos, internado no ESE por roubo.
Sendo assim, os policiais fazem uso de uma “mercadoria política” (Misse, 2006)
quando recebem dinheiro ilegalmente de traficantes e assaltantes. Segundo Misse (2006),
a corrupção policial, é uma “mercadoria política” na qual existe uma apropriação privada
de um poder concedido pelo Estado ao policial. Trata-se de um mercado informal e ilegal
“cujas trocas combinam especificamente dimensões políticas e dimensões econômicas,
de tal modo que um recurso (ou um custo) político seja metamorfoseado em valor de
troca” (Misse, 2006: 207). A corrupção policial é apenas uma dessas “mercadorias
políticas”, que incluem outras atividades como a chantagem ou a venda de proteção por
grupos armados, como as chamadas milícias.
Considerações finais:
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Bibliografia: