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Resumo
Leitura psicanalítica do romance de Mário de Andrade Amar, verbo intransitivo, idílio, que trata
da iniciação sexual de Carlos, um jovem dos anos 1920, feita pela preceptora alemã Fräulein.
A sexualidade é vista como uma produção discursiva que envolve o sujeito e a cultura. A ini-
ciação sexual se dá de acordo com o grupo social e o tempo histórico e é sempre uma reedição
do complexo de Édipo. No romance, ao se apaixonar, o casal subverte a ordem esperada, o que
torna explícita a interdição paterna.
nino, que, para ser macho, tem de abdicar tro da estreita grade, já mencionada, que
de sua sensibilidade e de sua ternura. delimita o comportamento dos jovens do
As condutas extremas do machismo e sexo masculino, há uma preocupação em
da homossexualidade podem ser pensadas observar se os comportamentos expressos
como defesas complementares e equiva- se enquadram num padrão de identidade
lentes, que negam a possibilidade de inte- sexual prescrito pelo modelo hegemônico
gração entre o masculino e o feminino de do gênero. Tem de haver uma conciliação
cada sujeito, comprometendo a harmonia entre discursos e práticas.
interna entre a masculinidade e a femini- No imaginário social, de um lado, os
lidade, que coexistem em todos os seres pais costumam expressar as expectativas
humanos, ou seja, a bissexualidade que de que os jovens devem se iniciar sexu-
os constitui. Com isso, também se nega a almente para afirmar sua masculinidade,
incompletude e a dependência afetiva da sua virilidade; de outro, há o campo da
condição humana. interdição que faz com que esses pais não
Entre os obstáculos que o menino tem demonstrem, na prática, como ocorre a
que superar está a imagem paradoxal relação sexual, delegando a outrem esse
que ele tem das mulheres: por um lado, ensinamento. Isso pode ser feito por jovens
o temor e a idealização diante do poder mais experientes, profissionais do sexo,
da imago da mãe fálica e, por outro, o mulheres mais velhas.
temor à possível potencialidade femini- O pai de Carlos, chefe patriarcal de
lizante e o enfraquecimento no contato uma família dos anos 1920, é ele mesmo
com o sexo feminino. Nas mulheres são um exemplo de dupla moral: dentro de
projetadas, alternativamente, imagens casa é o pai e o marido dedicado, mas sai
de domínio e força, e imagens de des- sozinho todas as noites, deixando a ‘sagra-
valimento e debilidade (V annucchi , da’ esposa presa no lar, junto com os filhos.
2009). Todos esses sentimentos têm de Ele quer que seu filho seja também um
ser enfrentados pelo jovem que faz sua espécime masculino bem-sucedido, como
iniciação sexual. ele mesmo se considera. Sua condição fi-
Segundo Elizabeth Badinter (1993 nanceira o abaliza para contratar as lições
apud Alizade, 2009, p. 188), “[...] a vi- particulares de amor para seu herdeiro.
rilidade não é algo concedido, deve ser Toma essa iniciativa em surdina, sem avi-
construída, fabricada”. sar a esposa dona Laura, sem considerar
Bleichmar (2006 apud Alizade, 2009) os pedidos de Fräulein para que explicite
fala que a masculinidade é pensada como a situação e sem dizer uma única palavra
um ponto de chegada, como algo a ser ao filho, que se vê enredado na sedução
conquistado na passagem de um pênis fá- encomendada pelo pai.
lico para um pênis como objeto de ligação. Fosse o pai um senhor de escravos, en-
Como se sabe, a construção de uma tregaria Carlos, o sinhozinho, à sedução de
identidade, seja de homem, seja de mulher, sua mucama. Fosse menos endinheirado,
é produção sintomática da neurose. O faria vista grossa para o assédio do filho
sintoma visa suplantar o furo estrutural, à empregada doméstica, essa que tantas
tenta produzir uma analogia, impossível, vezes iniciou sexualmente os filhos da
entre real e simbólico. casa em que serve. Fosse Carlos um jovem
Voltemos a Carlos, que teve sua ini- contemporâneo, teria assediado a moça
ciação sexual nos anos 1920. proletária de sua empresa ou escritório,
De acordo com o tempo e o grupo so- sob a benevolência cúmplice dos mais
cial, administra-se a forma como o jovem velhos, ou teria tentado aprender o sexo
inaugura e exerce a sua sexualidade. Den- pela internet, também esta uma forma de
Reverso • Belo Horizonte • ano 42 • n. 79 • p. 59 – 66 • jun. 2020 61
Amar, verbo intransitivo, idílio: a iniciação sexual de um jovem e o desejo de Fräulein
lio. Fräulein não se contenta apenas em amor e evitar assim os muitos perigos,
ensinar sexo aos seus adolescentes. Ela é se ele fosse obrigado a aprender lá fora.
arrojada. Deseja ensinar também a lingua- Mas não estou aqui apenas como quem
gem do amor. E o amor pode ser ensinado? se vende, isso é uma vergonha! [...] Se
Fräulein acredita que sim. E sonha com infelizmente não sou nenhuma virgem,
o seu próprio amor, não encomendado. também não sou nenhuma perdida. [...]
Um amor sincero, sublime, sem loucuras. E o amor não é só o que o senhor Sousa
Enquanto ele não chega, inicia os jovens. Costa pensa. Vim ensinar o amor como
O desejo de um futuro feliz faz com deve ser. Isso é que pretendo, pretendia
que Fräulein suporte a dura realidade. Aqui ensinar para Carlos. O amor sincero,
ela tem de achar um jeito de lidar com a elevado, cheio de senso prático, sem
impossibilidade de realização desse desejo. loucuras. Hoje, minha senhora, isso está
Os senhores que contratam seus serviços se tornando uma necessidade desde que a
de preparadora sexual particular de seus filosofia invadiu o terreno do amor! Tudo
filhos querem apenas que eles se iniciem o que há de pessimismo pela sociedade
no sexo de maneira segura e higiênica, de agora! Estão se animalizando cada vez
evitando contatos com a promiscuidade mais. Pela influência de Schopenhauer,
e com possíveis aproveitadoras. Inexpe- de Nietzsche... embora sejam alemães.
rientes, esses jovens correm o risco de ser Amor puro, sincero, união inteligente de
explorados e manipulados por mulheres duas pessoas, compreensão mútua. E um
desqualificadas. Fräulein insiste em ser futuro de paz conseguido pela coragem de
reconhecida como professora de línguas aceitar o presente. [...] ... É isso que vim
e de piano, talvez por se ver submetida ao ensinar para seu filho, minha senhora!
poder masculino dominante, num mundo Criar um lar sagrado! Onde é que a gente
onde as esposas são poupadas e mantidas, encontra isso agora? (Andrade, [1927]
e as prostitutas são usadas e descartadas. 2013, p. 56).
Freud afirma ([1910] 1976, p. 151):
Na literatura é sabido que cada leitor
No amor normal o valor da mulher é atribui um sentido particular à obra, a
aferido por sua integridade sexual, e é re- partir de seu olhar único, sustentado pelos
duzido em vista de qualquer aproximação recursos internos de que dispõe.
com a característica de ser semelhante à O sentido encontrado no idílio de
prostituta. Mário de Andrade passa pela instigante
conduta da protagonista, uma vez que
Fräulein não quer ser considerada uma o autor, através dela, nos apresenta uma
dessas. Insiste em afirmar que exerce uma temática em que a linguagem se manifesta
profissão como outra qualquer. Não se pelo surgimento dos afetos. É na narrativa
sente interesseira, muito menos aprovei- psicológica dessa história de amor que
tadora. Simplesmente trabalha e faz jus podemos perceber a sensibilidade com
à grande quantia que recebe ao final de que se conjuga o verbo amar, mesmo que
cada empreitada. de maneira intransitiva, quase beirando
Assim se justifica perante dona Laura, o sublime.
a mãe de Carlos, quando é interpelada: No caso específico do filho do senhor
Sousa Costa, surge o inusitado, pois as
Estou no exercício de uma profissão. E lições de amor de Fräulein ultrapassam os
tão nobre quanto as outras. É certo que limites da cartilha impessoal e educativa,
o senhor Sousa Costa me tomou para passando a ser permeadas pelos sentimen-
que viesse ensinar a Carlos o que é o tos afetivos. Esse é o momento em que o
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Amar, verbo intransitivo, idílio: a iniciação sexual de um jovem e o desejo de Fräulein