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PSICA

Eliana Rodrigues NÁ LISE


Pereira Mendes E CU
& Marisa Lima LT U R A
Rodrigues

Amar, verbo intransitivo, idílio:


a iniciação sexual de um jovem
e o desejo de Fräulein
Eliana Rodrigues Pereira Mendes
Marisa Lima Rodrigues

Resumo
Leitura psicanalítica do romance de Mário de Andrade Amar, verbo intransitivo, idílio, que trata
da iniciação sexual de Carlos, um jovem dos anos 1920, feita pela preceptora alemã Fräulein.
A sexualidade é vista como uma produção discursiva que envolve o sujeito e a cultura. A ini-
ciação sexual se dá de acordo com o grupo social e o tempo histórico e é sempre uma reedição
do complexo de Édipo. No romance, ao se apaixonar, o casal subverte a ordem esperada, o que
torna explícita a interdição paterna.

Palavras-chave: Iniciação sexual, Adolescência, Masculinidade, Feminilidade.

A sexualidade é uma das dimensões do ser Assim se justifica falar em sexualida-


humano que abrange uma complexidade des, no plural, e ter sempre em mente a
que perpassa gênero, identidade sexual, contínua evolução dos conceitos e com-
orientação/preferência sexual, erotismo, portamentos sexuais através dos tempos.
envolvimento emocional, fantasias, dese- O sexo envolve o sujeito (com a tensão
jos, crenças, valores, atitudes. permanente entre o biológico e o psíquico)
A psicanálise e a literatura dialogam e a cultura.
pelos meandros da linguagem, e o sujeito A iniciação da vida sexual apresenta-
falante é o sujeito do inconsciente. Somos -se, então, como uma temática complexa,
constituídos por palavras. Quanto à sexu- que varia de acordo com o grupo social e
alidade, se a literatura sempre abordou a o tempo histórico, que vão definir o con-
questão sexual como tema inesgotável do trole, as interdições e o período em que a
desenrolar da vida humana, a psicanálise identidade sexual se afirma (Nascimento;
fez do sexo um dos fundamentos do psi- Gomes, 2007).
quismo. Na contemporaneidade, não há
Dentro da riqueza de visões sobre ritos de passagem da adolescência
a sexualidade, um autor como Foucault para a maioridade. Tais cerimônias,
(1985) considera o sexo como uma no entanto, eram comuns entre povos
produção discursiva, logo uma constru- primitivos e ainda são usadas em socie-
ção sócio-histórica. Nessa perspectiva, dades mais tradicionais, como entre os
a sexualidade constitui-se muito mais judeus, onde os meninos de treze anos
como uma norma cultural que governa fazem sua introdução ao mundo adulto
a materialização dos corpos do que como através de um cerimonial bem definido
um dado corporal sobre o qual se impõe e fortemente valorizado (o chamado
artificialmente a construção de um gênero. bar mitzvá).
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Amar, verbo intransitivo, idílio: a iniciação sexual de um jovem e o desejo de Fräulein

Atualmente, essa passagem se dá de pré-edípicas, que se encaminha, por meio


forma particularizada, no um a um; cada da resolução edípica em andamento, à es-
qual vive também a iniciação sexual a seu colha de um novo objeto amoroso, que, na
modo, sem ter muitos parâmetros rígidos. verdade, é uma escolha renovada. Agora
A permissividade sexual de nossos dias o objeto da sexualidade infantil é proibido
mudou bastante o panorama dessa vi- pela barreira contra o incesto. As fanta-
vência de iniciação. Hoje rapazes e moças sias incestuosas têm de ser superadas, e o
podem vivenciar o sexo de uma forma mais superego tem de ser reelaborado.
liberada, em que é desnecessária a con-
corrência de uma figura mais experiente, Completa-se então, a mais dolorosa ex-
para inaugurar a experiência sexual de um periência da puberdade: o desligamento
jovem. Mas ainda é uma forte preocupação da autoridade dos pais (Freud, [1905]
dos pais, que veem nesse momento uma 1976, p. 234).
afirmação de seu orgulho viril projetado
nos filhos. Freud considera que o desenvolvi-
mento da masculinidade seja mais fácil e
Do ponto de vista de Carlos direto, já que o menino
No belo livro Amar, verbo intransitivo, Idí-
lio, de Mário de Andrade ([1927] 2013), [...] retém o mesmo objeto que catexizou
somos chamados a acompanhar as vicis- em sua libido – não ainda um objeto
situdes do adolescente Carlos, com seus genital – durante o período precedente,
quinze anos, recém-saído da puberdade. enquanto estava sendo amamentado e
Único filho varão de uma família cuidado (Freud, [1925] 1976, p. 310).
abastada e patriarcal, com mais três irmãs,
Carlos constitui uma preocupação para Mas, na realidade, isso não parece
seu pai, que toma a si a responsabilidade ser tão fácil assim. No caminho para a
de iniciá-lo na vida sexual. O que o pai assunção de sua masculinidade, o menino
deseja, ao contratar a preceptora alemã, vivencia muitas fantasias ameaçadoras à
prática comum em seu grupo social e em sua integridade viril. Como consequências
sua época, é que ela conduza seu filho com da angústia de castração para os meninos,
segurança e sem percalços, nos mistérios dependendo de como foi vivida a sua
do sexo. Fräulein [senhorita, em alemão], situação edípica, pode haver um horror
como é chamada no seu posto de trabalho, diante da mulher, criatura mutilada, ou
deve dar a Carlos lições de amor, verbo um desprezo triunfante diante dela.
intransitivo, sem objeto. Segundo Freud ([1925] 1976, p. 314),
O que nos diz a psicanálise sobre esse “[...] esses desfechos, contudo, pertencem
momento crítico do desenvolvimento do ao futuro, embora não muito remoto”.
menino? Melanie Klein (1957), entre outros
Freud propõe a noção de bissexualida- autores, levanta a questão da inveja do
de do ser humano, sobre a qual se fundam menino pelo seio, como uma característica
as hipóteses a respeito da construção da feminina nutridora e amorosa, que se am-
identidade sexual. A diferenciação básica plia depois para a capacidade de procriar
do desenvolvimento sexual vai mostrar o e de gerar bebês.
complexo de castração nos meninos e a A dominação masculina gera a subser-
inveja do pênis nas meninas. Na puber- viência aos padrões culturais de virilidade,
dade, com o desenvolvimento do corpo força, dureza, resistência, competência
sexuado, há uma explosão pulsional de física, e muitas vezes esses mesmos padrões
caráter genital, calcada nas experiências criam uma grade intransponível para o me-
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nino, que, para ser macho, tem de abdicar tro da estreita grade, já mencionada, que
de sua sensibilidade e de sua ternura. delimita o comportamento dos jovens do
As condutas extremas do machismo e sexo masculino, há uma preocupação em
da homossexualidade podem ser pensadas observar se os comportamentos expressos
como defesas complementares e equiva- se enquadram num padrão de identidade
lentes, que negam a possibilidade de inte- sexual prescrito pelo modelo hegemônico
gração entre o masculino e o feminino de do gênero. Tem de haver uma conciliação
cada sujeito, comprometendo a harmonia entre discursos e práticas.
interna entre a masculinidade e a femini- No imaginário social, de um lado, os
lidade, que coexistem em todos os seres pais costumam expressar as expectativas
humanos, ou seja, a bissexualidade que de que os jovens devem se iniciar sexu-
os constitui. Com isso, também se nega a almente para afirmar sua masculinidade,
incompletude e a dependência afetiva da sua virilidade; de outro, há o campo da
condição humana. interdição que faz com que esses pais não
Entre os obstáculos que o menino tem demonstrem, na prática, como ocorre a
que superar está a imagem paradoxal relação sexual, delegando a outrem esse
que ele tem das mulheres: por um lado, ensinamento. Isso pode ser feito por jovens
o temor e a idealização diante do poder mais experientes, profissionais do sexo,
da imago da mãe fálica e, por outro, o mulheres mais velhas.
temor à possível potencialidade femini- O pai de Carlos, chefe patriarcal de
lizante e o enfraquecimento no contato uma família dos anos 1920, é ele mesmo
com o sexo feminino. Nas mulheres são um exemplo de dupla moral: dentro de
projetadas, alternativamente, imagens casa é o pai e o marido dedicado, mas sai
de domínio e força, e imagens de des- sozinho todas as noites, deixando a ‘sagra-
valimento e debilidade (V annucchi , da’ esposa presa no lar, junto com os filhos.
2009). Todos esses sentimentos têm de Ele quer que seu filho seja também um
ser enfrentados pelo jovem que faz sua espécime masculino bem-sucedido, como
iniciação sexual. ele mesmo se considera. Sua condição fi-
Segundo Elizabeth Badinter (1993 nanceira o abaliza para contratar as lições
apud Alizade, 2009, p. 188), “[...] a vi- particulares de amor para seu herdeiro.
rilidade não é algo concedido, deve ser Toma essa iniciativa em surdina, sem avi-
construída, fabricada”. sar a esposa dona Laura, sem considerar
Bleichmar (2006 apud Alizade, 2009) os pedidos de Fräulein para que explicite
fala que a masculinidade é pensada como a situação e sem dizer uma única palavra
um ponto de chegada, como algo a ser ao filho, que se vê enredado na sedução
conquistado na passagem de um pênis fá- encomendada pelo pai.
lico para um pênis como objeto de ligação. Fosse o pai um senhor de escravos, en-
Como se sabe, a construção de uma tregaria Carlos, o sinhozinho, à sedução de
identidade, seja de homem, seja de mulher, sua mucama. Fosse menos endinheirado,
é produção sintomática da neurose. O faria vista grossa para o assédio do filho
sintoma visa suplantar o furo estrutural, à empregada doméstica, essa que tantas
tenta produzir uma analogia, impossível, vezes iniciou sexualmente os filhos da
entre real e simbólico. casa em que serve. Fosse Carlos um jovem
Voltemos a Carlos, que teve sua ini- contemporâneo, teria assediado a moça
ciação sexual nos anos 1920. proletária de sua empresa ou escritório,
De acordo com o tempo e o grupo so- sob a benevolência cúmplice dos mais
cial, administra-se a forma como o jovem velhos, ou teria tentado aprender o sexo
inaugura e exerce a sua sexualidade. Den- pela internet, também esta uma forma de
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amar intransitivamente, segundo o modo mudanças corporais que o tempo acarreta


atual de se comportar. estão sempre a nos demandar provas de
Carlos, com as irmãs, especialmente nossa consistência identitária. Pode-se
a mais velha, próxima dele em idade, é passar a vida buscando encontrar o outro
sempre o machucador, aquele que se chega complementar, que, pelo amor, garantiria
a ela para um contato corporal mais pró- a identidade.
ximo, mas sempre disfarçado numa certa Segundo Poli (2007) alguns casais
brutalidade. “Mamãe, olha o Carlos”, é dão provas desse encontro e optam por se
a queixa constante da irmã. A conduta assegurar mutuamente até o fim de seus
agressiva de Carlos mascara o desejo in- dias. Culturalmente essa é a resposta esté-
cestuoso de um contato com ela. tica à falta de sentido da vida – castração
A princípio indiferente às enfadonhas simbólica – que mais apreciamos.
aulas de alemão, Carlos vai se interessando Terá Carlos conseguido chegar lá?
cada vez mais por aquela professora cálida
e acolhedora, até desejá-la de fato e sentir Do ponto de vista de Fräulein
a explosão de toda a força de sua vigorosa A Fräulein, de Mário de Andrade, acredita
sexualidade adolescente. O que saiu do no amor. Cultiva a fantasia de que ele não
roteiro traçado pelo pai foi o idílio (subtí- demora a chegar. Mais dois trabalhos ao
tulo do livro) que uniu Carlos e Fräulein. custo de oito contos de réis cada serão
Com isso ninguém contava. Fräulein é suficientes. Para isso ela trabalha. E como!
um objeto amoroso de Carlos, e Carlos Fräulein, ou melhor, Elza, simples
também o é para ela. O verbo amar passa assim, sem sobrenome, é uma alemã de
a não ser mais intransitivo. Tem, afinal, um trinta e cinco anos. Veio para o Brasil fu-
objeto. Transitivar-se foi a sua subversão. gida da devastação causada pela Primeira
Os dois amantes causam agora repúdio e Guerra Mundial. Imigrante, se estabelece
aversão ao senhor Sousa Costa (o pai). Ele na cidade de São Paulo, símbolo de prospe-
avisa Carlos de seu contrato com Fräulein, ridade da época, onde encontra a melhor
mas este, atônito, não quer acreditar que possibilidade de juntar dinheiro e voltar
ela fez o que fez por dinheiro. Carlos se ao seu país, local onde pretende consti-
sente amado e revive inconscientemente tuir um lar feliz. Moça bem apessoada,
com a professora o amor pela jovem mãe, professora de línguas e de piano, Elza não
que, afinal, se aproxima dele e o aninha tem dificuldade em encontrar trabalho
novamente em seus braços, para que se nas casas de famílias abastadas. Mas logo
esqueça de Fräulein. O primeiro objeto de descobre outra forma de mestria que lhe
amor volta à cena. Esse aconchego com trará rentabilidade financeira bem maior.
a mãe é agora permitido. Esse é, assim, Sua principal atividade passa a ser, então,
considerado como um mal menor, diante a de professora de iniciação sexual dos
do perigo da mulher estrangeira. jovens e ricos herdeiros da alta burguesia
Terão as lições de amor provido Carlos paulistana. Assim, Elza se torna Fräulein,
de uma identidade masculina que lhe per- colocando em suspensão o significante de
mitirá se encontrar no amor? Fräulein crê sua identidade, para resgatá-lo quando
que lhe deu a chave para se resolver bem, puder realizar o sonho acalentado de um
através de suas lições. Tanto que Carlos é ideal de amor, esperando por ela longe dali.
visto por ela, não sem certo sofrimento, A trajetória de Fräulein carece de deci-
com uma jovem namorada. fração para que se encontre um sentido, e
Sabemos que a identidade sexual é à psicanálise, neste momento, recorremos
frágil. As vicissitudes da vida como o ca- como imprescindível para que possamos
samento, a maternidade, a paternidade, as ir além da narrativa e do dito nesse idí-
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lio. Fräulein não se contenta apenas em amor e evitar assim os muitos perigos,
ensinar sexo aos seus adolescentes. Ela é se ele fosse obrigado a aprender lá fora.
arrojada. Deseja ensinar também a lingua- Mas não estou aqui apenas como quem
gem do amor. E o amor pode ser ensinado? se vende, isso é uma vergonha! [...] Se
Fräulein acredita que sim. E sonha com infelizmente não sou nenhuma virgem,
o seu próprio amor, não encomendado. também não sou nenhuma perdida. [...]
Um amor sincero, sublime, sem loucuras. E o amor não é só o que o senhor Sousa
Enquanto ele não chega, inicia os jovens. Costa pensa. Vim ensinar o amor como
O desejo de um futuro feliz faz com deve ser. Isso é que pretendo, pretendia
que Fräulein suporte a dura realidade. Aqui ensinar para Carlos. O amor sincero,
ela tem de achar um jeito de lidar com a elevado, cheio de senso prático, sem
impossibilidade de realização desse desejo. loucuras. Hoje, minha senhora, isso está
Os senhores que contratam seus serviços se tornando uma necessidade desde que a
de preparadora sexual particular de seus filosofia invadiu o terreno do amor! Tudo
filhos querem apenas que eles se iniciem o que há de pessimismo pela sociedade
no sexo de maneira segura e higiênica, de agora! Estão se animalizando cada vez
evitando contatos com a promiscuidade mais. Pela influência de Schopenhauer,
e com possíveis aproveitadoras. Inexpe- de Nietzsche... embora sejam alemães.
rientes, esses jovens correm o risco de ser Amor puro, sincero, união inteligente de
explorados e manipulados por mulheres duas pessoas, compreensão mútua. E um
desqualificadas. Fräulein insiste em ser futuro de paz conseguido pela coragem de
reconhecida como professora de línguas aceitar o presente. [...] ... É isso que vim
e de piano, talvez por se ver submetida ao ensinar para seu filho, minha senhora!
poder masculino dominante, num mundo Criar um lar sagrado! Onde é que a gente
onde as esposas são poupadas e mantidas, encontra isso agora? (Andrade, [1927]
e as prostitutas são usadas e descartadas. 2013, p. 56).
Freud afirma ([1910] 1976, p. 151):
Na literatura é sabido que cada leitor
No amor normal o valor da mulher é atribui um sentido particular à obra, a
aferido por sua integridade sexual, e é re- partir de seu olhar único, sustentado pelos
duzido em vista de qualquer aproximação recursos internos de que dispõe.
com a característica de ser semelhante à O sentido encontrado no idílio de
prostituta. Mário de Andrade passa pela instigante
conduta da protagonista, uma vez que
Fräulein não quer ser considerada uma o autor, através dela, nos apresenta uma
dessas. Insiste em afirmar que exerce uma temática em que a linguagem se manifesta
profissão como outra qualquer. Não se pelo surgimento dos afetos. É na narrativa
sente interesseira, muito menos aprovei- psicológica dessa história de amor que
tadora. Simplesmente trabalha e faz jus podemos perceber a sensibilidade com
à grande quantia que recebe ao final de que se conjuga o verbo amar, mesmo que
cada empreitada. de maneira intransitiva, quase beirando
Assim se justifica perante dona Laura, o sublime.
a mãe de Carlos, quando é interpelada: No caso específico do filho do senhor
Sousa Costa, surge o inusitado, pois as
Estou no exercício de uma profissão. E lições de amor de Fräulein ultrapassam os
tão nobre quanto as outras. É certo que limites da cartilha impessoal e educativa,
o senhor Sousa Costa me tomou para passando a ser permeadas pelos sentimen-
que viesse ensinar a Carlos o que é o tos afetivos. Esse é o momento em que o
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leitor se encanta e é capturado pela obra, desenvolvimento possível: uma conduz


na medida em que cresce a densidade com à inibição sexual ou à neurose, outra à
que Fräulein se entrega de corpo e alma ao modificação do caráter no sentido de um
que acredita. E Fräulein acredita no amor. complexo de masculinidade, a terceira, fi-
Entretanto, sabe que o sentimento nalmente, à feminilidade normal (Freud,
que nutre pelo jovem aprendiz tem de ser [1933] 1976, p. 155).
transitório e que em breve terá de deixar
a mansão dos Sousa Costa. Ciente da dor Entretanto, esses três caminhos des-
que a separação causará nela e em seu critos por Freud não são libertadores para
pupilo, não recua em momento algum, as mulheres, pois nenhum deles oferece
fortalecida pelo sonho de que seu desejo a possibilidade de superar o complexo de
se realizará longe dali. castração e prescindir do falo.
Sobre a transitoriedade, Freud ([1916] Com Fräulein não é diferente. Para
1976, p. 346), também grande poeta, diz: exercer a mestria do sexo e do amor, ela
“Uma flor que dura apenas uma noite, nem não pode abrir mão de seu falo. Nesse
por isso nos parece menos bela”. âmbito, ela detém o poder e o saber. Sua
Cabe a nós poder contemplá-la, usu- porção masculina se sobrepõe à da mu-
fruir de sua beleza e nos encantarmos, lher que um dia pretende ser. Ela está no
mesmo cientes de sua evanescência. comando.
Depende de como suportamos a nossa A despedida dos amantes se dá com o
impermanência. O jovem Carlos, por sua desespero de Carlos e com a dor de Fräu-
vez, inicia sua relação com a professora lein em ter que fazer o corte necessário.
de modo indiferente, pouco interessado Mas é assim que deve ser. Com dignidade,
em aprender alemão, mas aos poucos vai ela o beija na testa e o entrega a dona
sendo envolvido pela atmosfera de sedu- Laura, sua mãe. Esta, protetora, acolhe o
ção, até se apaixonar perdidamente. Sa- desamparo do filho oferecendo o mundo
bemos que o amor de um jovem por uma em seus braços capazes de abrigar, naque-
mulher madura remete inevitavelmente le momento, toda a dor do filho amado,
às suas vivências edipianas, uma vez que agora tornado homem.
presentifica os sentimentos de ternura O epílogo do idílio é emocionante.
decorrentes de uma fixação infantil em Fräulein, já em novo trabalho, passeia de
sua mãe, escolhendo, na puberdade, um carro pelo corso de carnaval da Avenida
objeto substituto que se torna especial Paulista, na companhia de Luís, seu mais
por apresentar algumas características recente aluno. Depara-se com Carlos, em
maternas. outro carro, por sua vez acompanhado
Do passado de Fräulein nada sabemos. de uma rica e bonita moça. Carlos olha,
Entretanto, é Freud quem nos acende a envia-lhe uma educada saudação, num
luz, ao considerar a natureza da feminili- gesto rápido de cabeça. Depois continua
dade um enigma. Atribui às mulheres um a brincar como folião.
complexo de castração afirmando ainda Fräulein se doeu, mas logo se recompôs
que a inveja do pênis deixa nelas marcas no domínio de si mesma.
indeléveis.
Em Contribuições à psicologia do amor, E se venceu completamente com o racio-
sua escrita é bastante elucidativa: cínio, numa espécie de felicidade. Estava
certo assim. [...] O mundo é tal como é. A
A descoberta de que é castrada repre- gente tem de aceitar sem revolta. Carlos
senta um marco decisivo no crescimento casará rico. Perfeitamente (Andrade,
da menina. Daí partem três linhas de [1927] 2013, p. 148).

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E agora, qual o futuro de Fräulein?


Mais dois trabalhos e poderá retornar à Referências
terra natal. Será a mulher de um só ho- ALIZADE, A. M. Cenários masculinos vulne-
mem. Alguém digno, paciente, estudioso. ráveis. Jornal de Psicanálise, São Paulo, v. 42, n.
Nariz longo, muito fino e bem traçado. 77, p. 187-205, dez. 2009. ISSN 0103-5835.
Branco como tem de ser. Óculos sem aro, Disponível em: pepsic.bvsalud.org/scielo.php?p
id=50103-58103-58352009000200013. Acesso
todo vestido de preto, alfinete de ouro
em: 13 mar. 2013.
na gravata. Ele lhe beijará a testa, pronto
para jantar e levá-la para ouvir a Pastoral. ANDRADE, M. Amar, verbo intransitivo, idílio
(1927). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2013.
Fräulein se tornará Fräu [senhora], mulher
FOUCAULT, M. História da sexualidade, v. 1. Rio
respeitada. É assim que sonha, pois sua de Janeiro: Graal, 1985.
felicidade está nesse ideal de completude.
Para resgatar Elza, Fräulein prescindirá de FREUD, S. Algumas consequências psíquicas
seu falo, mas diante da impossibilidade de da distinção anatômica dos sexos (1925). In:
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se ver castrada, recorrerá ao homem ama-
Direção-geral da tradução de Jayme Salomão. Rio
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Fräulein acredita no amor. j
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introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos
TO LOVE, (1932-1936). Direção geral da tradução de Jayme
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young man of the 1920s, made by the Ger-
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Amar, verbo intransitivo, idílio: a iniciação sexual de um jovem e o desejo de Fräulein

NASCIMENTO, E. F.; GOMES, R. Conversas Sobre as autoras


íntimas para fóruns privados (2007). Disponível
em: www.scielo.br/pdf/csc/v14n4/a11v14n4.pdf. Eliana Rodrigues Pereira Mendes
Acesso em: 13 mar. 2013. Especialista em psicologia clínica pela Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais.
POLI, M. C. Feminino/masculino, Rio de Janeiro, Titulada psicóloga clínica pelo Conselho
Zahar: 2007. Regional de Psicologia - Seção Minas Gerais.
Psicanalista do Círculo Psicanalítico de Minas
VANNUCCHI, A. Masculino e feminino: Gerais (CPMG).
vicissitudes e mistérios. Jornal de Psicanálise, Presidente do CPMG
São Paulo, v. 42, n. 77, dez. 2009. Dispo- nos períodos de 1999-2001 e 2011-2014.
nível em: pepsic,bvsalud.org.scielo.php? Vice-Presidente do CPMG
p i d = 5 0 1 0 3 - 5 8 1 0 3 - no período de 2017-2020.
58350090000200006.10/03/2020. Acesso em: 13 Leciona ‘Psicanálise e Cultura’ no Programa
mar. 2013. de Formação para Psicanalistas do CPMG,
desde 1990.
Recebido em: 10/03/2020 Integrante da Comissão
Aprovado em: 03/04/2020 de Publicação da revista Reverso do CPMG.
Delegada do Brasil na International Federation
of Psychoanalytic Societies (IFPS).
Editora regional para a América do Sul da
revista International Forum of Psychoanalysis
(IFP), desde 1998.
Tem artigos publicados em revistas e livros
no Brasil e já editou três números da revista
International Forum of Psychoanalysis como
editora convidada.

Marisa de Lima Rodrigues


Especializada em Psicologia Clínica pela
Faculdade de Ciências Humanas da
Universidade FUMEC.
Titulada psicóloga clínica pelo Conselho
Regional de Psicologia - seção Minas Gerais.
Psicanalista do Círculo Psicanalítico de Minas
Gerais (CPMG).
Coordenadora da Clínica de Psicanálise do
CPMG nos períodos de 2005-2007 e 2017-2020.
Fez parte da Diretoria no período de 2011-2014.

Endereço para correspondência

Eliana Rodrigues Pereira Mendes


E-mail: elianarpmendes@hotmail.com

Marisa de Lima Rodrigues


E-mail: mligues@yahoo.com.br

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