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quanto à representação realista das regiões do interior brasileiro. Nos últimos anos,
Tutameia chama a atenção de estudos interessados no debate estético
encaminhado por essas inovações estruturais. Rosa declarou a Paulo Rónai a
importância que dava a Tutameia que, por ironia, também significa “quase nada”:
“ele me segredou que dava a maior importância a este livro, surgido em seu espírito
como um todo perfeito não obstante o que os contos necessariamente tivessem de
fragmentário” (RÓNAI, 1979, p. 193-194).
O uso mais comum do arcaísmo “tutameia” qualifica um grande achado
pelo qual se paga uma ninharia, como nas técnicas singularizantes da poesia e nas
operações de transcendência. Os efeitos de seus textos transitam do quase nada do
fósforo ao absoluto concebido na transcendência. “Uma anedota é como um
fósforo: riscado, deflagrada, foi-se a serventia. Mas sirva talvez ainda a outro
emprego a já usada, qual mão de indução ou por exemplo instrumento de
análise, nos tratos da poesia e da transcendência” (ROSA, 1979, p. 3) (grifos do
autor). O prefaciador declara que as inovações estruturais têm em vista a
transcendência e confirma a aproximação que a crítica faz de seus textos e as
narrativas míticas. Tutameia já foi relacionada às narrativas míticas em
comparações com a comédia clássica, com textos espiritualistas medievais e
modernos em hermenêuticas ocupadas de inúmeras combinações simbólicas, com o
idealismo linguístico dos primeiros românticos alemães e com a recriação das
mitologias pelas vanguardas.
Observar as inovações estruturais mencionadas como mecanismos
narrativos produtores de transcendência baliza o debate estético que pensaremos
nesse artigo a partir do que Hansen (2007, p. 59-62) explica como uma recusa das
acepções clássica e realista de representação que, segundo a tradição aristotélica,
tomam a forma como mediação a modelos ou supõem uma dualidade do real e do
representado ao invés de considerar o discurso como produção de sentido. Esse
artigo destaca alguns dos aspetos da mímesis clássica considerando a Poética de
Aristóteles e também a defesa do romance realista socialista feita por Lukács.
Depois, assinala os deslocamentos dos padrões clássico e realista de mimese em
Tutameia.
Conforme o artigo “Grande sertão: veredas e o ponto de vista avaliativo
do autor”, de João Adolfo Hansen, na literatura de Guimarães Rosa, a forma produz
A mimese clássica
(trágica) que deve ser adequada por verossimilhança, ou seja, representada com
aparência de verdade ou plausibilidade.
A abrangente acepção grega de arte (techné) veio a adquirir a
especificidade de uma produção estética apenas no século XVIII. Na Poética,
Aristóteles considera apenas o drama trágico, não tinha obras de arte ou literatura
em mente nem definiu a noção de mimese estendendo-a do drama à narração ou ao
conjunto da arte poética. Sistematizando o funcionamento da mimese, o tratadista se
referiu sempre à história (mythos) entendida como representação coerente de ações
sucessivas ou à “mimèsis da ação” (arte dramática), uma mimese dos
acontecimentos ou enredo. Ao tratar da mimese, Aristóteles tinha em vista a vida
interior do homem cujo caráter manifesta-se nas ações entre as quais há conexões
que devem ter seus princípios racionais incorporados à técnica da representação e
demonstrados suficientemente pela linguagem escrita suplementada pela
encenação dos atores. Assim, o mito é tratado como artefato poético.
O limite da metáfora orgânica por meio da qual Aristóteles caracterizava o
produto mimético como um homólogo da natureza pertencia à concepção religiosa
que o grego tinha da perfeição do mundo. O caráter da ação mimetizada reconduz
ao personagem que é o agente ou aquele que apresenta a ação ao lado do coro. O
personagem individualizado pode ter vindo do coro atuante em rituais religiosos. Na
época de Aristóteles, o coro já havia praticamente desaparecido. Personagem
coletiva, o coro do teatro grego é o precursor do personagem individualizado. Antes
dele houve o corifeu nas narrativas religiosas orais. É no teatro que o personagem
passa a ter vida própria ao lado do coro que é ambíguo por assemelhar-se a uma
personagem coletiva e remeter às opiniões do poeta. O teatro tendeu a eliminar o
coro em favor da atuação e maior definição do nascente personagem (CANDIDO,
1972, p. 66).
Nos épicos, os personagens míticos eram concebidos como modelos de
valores eternos; assim não estavam sujeitos ao passar do tempo e não envelheciam,
por exemplo. O coro cumpria uma função semelhante de comunicar esses valores
eternos chancelados pela comunidade. Mas com o advento da democracia, o debate
jurídico abriu espaço para a consciência apropriar-se dos mitos como ponto de
partida para a reflexão. “No conflito trágico, o herói e o tirano ainda aparecem bem
presos à tradição heróica e mítica, mas a solução do drama escapa a eles: jamais é
dada pelo herói solitário e traduz sempre o triunfo dos valores coletivos impostos
pela nova cidade democrática” (VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1977, p. 7). Se os
mitos justificavam a ordem, o herói já principiara a colocar a ordem em questão nos
épicos mais recentes e essa atitude mais individualizada daquele que se confronta
com as leis da cidade progressivamente veio a caracterizar o herói ou o personagem
do teatro (FIKER, 2000, p. 62).
O herói trágico age de modo simultaneamente individualizado e alinhado
à linguagem do mito, o que confronta a realidade política da cidade. O interesse do
mundo grego oficial por essa orientação mítica do herói trágico vai sendo
paulatinamente reorientado para o discurso filosófico. Oficialmente desprestigiada
por suas descontinuidades, enganos e baixezas a que o herói cômico é submetido
para a diversão da assistência, a comédia teve uma sobrevida maior à democracia e
à razão com adesão popular significativa inclusive na composição do júri nas
apresentações. Principalmente por meio do coro, as apresentações das tragédias e
das comédias cumpriam a função de comunicar um ponto de vista que estivesse na
ordem do dia acerca das questões da polis. “Basta pensar na origem grega do
teatro. Na Atenas do século V a. C., o teatro se instituiu nos moldes dos tribunais
públicos” (NUÑES; PEREIRA; 1999, p. 83). O teatro grego abriu espaço para a
consciência do cidadão cada vez mais interessado na reflexão e preparado para a
filosofia. As tragédias e as comédias comunicavam posições equivalentes quanto
aos acontecimentos públicos por meio de procedimentos inversos. Uma diferença
curiosa é que a tragédia produz como efeito afetivo a Kátharsis e a comédia produz
a catástase que também é um tipo de purgação dos sentimentos de terror e piedade
suscitados pelo drama, mas particularizado como estímulo crítico. O estímulo crítico
proporcionado pelas comédias apenas passou a ser admitido depois da solidificação
da democracia. Atrativo principal, a parábase é o momento no qual o coro
interrompe a apresentação para se dirigir à assistência em nome do poeta (NUÑES;
PEREIRA; 1999, p. 102-106).
A mimese realista
O erro não existe: pois que enganar-se seria pensar ou dizer o que
não é, isto é: não pensar nada, não dizer nada – proclama
genial Protágoras; nisto, Platão é do contra, querendo que o
erro seja coisa positiva; aqui, porém, sejamos amigos de
Platão, mas ainda mais amigos da verdade; pela qual, aliás,
não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a História. A estória,
às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota” (ROSA, 1979, p. 3 e 4) (grifos
do autor). Ao invés de passar a uma explicação das particularidades desse modo de
ser da estória, o prefaciador ocupa-se apenas de um tipo específico de anedota com
que a estória quer-se um pouco parecida esporadicamente: a anedota de abstração.
Seleciona anedotas de abstração sobre as quais faz observações pontuais que
encaminham o leitor à proposta estética implícita nessa série de anedotas. Da
primeira à décima página, o prefaciador seleciona, categoriza e avalia as anedotas
de abstração que apresentam a estória como forma produzida no confronto com a
tradição aristotélica estendida até as vertentes mais sistemáticas do pensamento
moderno que fundamentaram a literatura realista.
À primeira vista, os índices de Tutameia parecem formatar um livro
enciclopédico assinalado por meio das iniciais dos títulos em ordem alfabética que
vai de “a” (o prefácio “Aletria e hermenêutica”) até “z” (o conto “Zingaresca”). A
ordenação alfabética dos títulos coloca para o leitor o paradoxo da unidade de
Tutameia que os índices caracterizam como enciclopédica e as epígrafes como
orgânica. No entanto, as iniciais do nome do autor (J.G.R.) interrompem a ordem
alfabética do índice. Como as iniciais do nome do autor, sua atividade literária
também nega padrões realistas de representação. Essas negações também se
confirmam na invenção da língua pre-Babel que implode os usos viciosos da
linguagem e as normatividades; nas ações de não senso dos personagens que ao
final experimentam a superação das limitações impostas pelo espaço ficcional e pela
temporalidade indicados minimamente apenas quando servem de contraponto
àquelas ações; na apresentação da categoria narrativa estória como ser; nas
epígrafes de Schopenhauer que dão um enquadramento romântico ao livro
aconselhando a outra leitura e afirmando a organicidade da obra.
Alguns críticos aproximaram Tutameia da comédia clássica da qual se
cogita que trataria uma segunda Poética de Aristóteles, desaparecida. Benedito
Nunes observou que o tom geral de Tutameia é de comédia com o mito e a fábula
sendo elementos da poiesis que a narrativa rosiana atualiza (NUNES, 1976, p. 203).
Ao invés de causarem riso, os elementos cômicos em Tutameia, como a surpresa
da anedota de abstração, fornecem um método e um instrumento à transcendência
(RAMOS, 2008, p. 1). De modo geral, cada estória de Tutameia apresenta uma
Referências
ROSA, J. G. Tutameia: terceiras estórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. 201
p.