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A EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO CIVIL E SUA


CONSTITUCIONALIZAÇÃO: um breve estudo sobre a responsabilidade civil, o
enriquecimento sem causa e suas relações.1
Lucas Bonifácio Eguchi2

Resumo: O Direito Civil passou por um fenômeno de constitucionalização com a


advento da Constituição de 1988 e do Código Civil de 2002. Isto fez com que a forma como
são interpretados os institutos e como estes se relacionam mudassem. Em particular, duas fontes
de obrigação, a responsabilidade civil, já presente no Código de 1916; o enriquecimento sem
causa, recém positivado; e sua suposta correlação, são exemplos desta nova forma de ver o
Direito. A investigação do novo regime jurídico destes institutos evidencia que a
constitucionalização ajudou a generalizar os direitos e tornou mais robusta sua preservação,
mas se deve cuidar para que não seja usada para retirar a consistência dos conceitos jurídicos,
pois isso implicaria o efeito oposto ao de fortalecer garantias.
Palavras-chave: responsabilidade civil, enriquecimento sem causa, dano, prejuízo,
culpa, constitucionalização, pressupostos, evolução dogmática.

Abstract: The Civil Law underwent a constitutionalization phenomenon with the advent
of the 1988 Constitution and the 2002 Civil Code. This changed the way in which institutes are
interpreted and how they relate to one another. In particular, two sources of obligation, tort law,
already present in the 1916 Code; unjust enrichment, recently positive; and its supposed
correlation, are examples of this new way of seeing Law. The investigation of the new legal
regime of these institutes shows that constitutionalization helped to generalize rights and made
their preservation more robust, but care must be taken that it is not used to remove the
consistency of legal concepts, as this would imply the opposite effect to strengthening
guarantees.
Keywords: tort law, unjust enrichment, damage, loss, guilt, constitutionalization,
assumptions, dogmatic evolution.

_________________
1
Artigo confeccionado com o fito de servir como avaliação final para a matéria “DCV0313- Fontes das
obrigações: responsabilidade civil, atos unilaterais e outras fontes”, na Faculdade de Direito da Universidade de
São Paulo (FD/USP), no primeiro semestre de 2020, período noturno. Docente encarregado: Professor Associado
Otávio Luiz Rodrigues Junior.
2
Aluno de graduação da FD/USP. Número USP: 7179701. E-mail para contato: lucas.eguchi@usp.br. O autor se
responsabiliza inteiramente pelo conteúdo aqui exposto.
2

1 Introdução
Uma das funções do Direito é racionalizar as regras da vida social, produzindo normas
que deverão ser seguidas para que se proteja e fomente a paz e o progresso da sociedade como
um todo. Cada área e cada sub área do Direito tem, portanto, a função de regrar um determinado
aspecto da vida em sociedade: o Direito Administrativo impõe as regras da administração
pública, o Direito Penal prescreve as regras mais gravosas para punir quem ofende a bens
jurídicos protegidos, e assim por diante.
O Direito Privado, por seu turno, tem como meta estabelecer os limites objetivos da
ação dos particulares, e dos entes por eles gerados, no convívio social. Mas especificamente, o
Direito Civil traz as regras sobre os bens, isto é, sua posse, propriedade, entre outras coisas; a
família; a sucessão; as empresas e as obrigações. Neste último caso, como estas se constituem,
se estabilizam e como são liquidadas. As obrigações podem ter várias fontes, como contratos,
os títulos de crédito, entre outros, dos quais é pertinente destacar os atos unilaterais e a
responsabilidade civil. Dentro dos próprios atos unilaterais há a figura do enriquecimento sem
causa.
Será sobre estes conceitos, a responsabilidade civil e o enriquecimento sem causa que
iremos nos debruçar atentamente, investigando sua evolução dogmática através da evolução
próprio Direito, os pressupostos destas fontes obrigacionais e a relação entre elas.
Uma última palavra à guisa de introdução: as diferentes áreas e sub áreas do Direito não
são excludentes, nem mesmo estanques. É necessário o diálogo entre estes ramos para que se
possa emitir uma opinião jurídica válida, e embasar decisões em conformidade com o Direito
em si. Conforme será visto, no que concerne ao Direito Civil e cada uma de suas possíveis
divisões, o vetor interpretativo a ele implícito se desloca cada vez mais na direção do Direito
Constitucional, com a imposição de que os instrumentos do direito dos particulares deve ser
regido por princípios fundamentais e pela sua função social.

2 A responsabilidade civil
Comecemos com o esforço de tentar definir, de forma clara, o que se entende por
responsabilidade civil no racional jurídico contemporâneo. É pertinente resgatar a lição de
Rubens Limongi França:

“[…] a responsabilidade civil, nós a diferenciamos da obrigação, surge em


face do descumprimento obrigacional. Realmente, ou o devedor deixa de
3

cumprir um preceito estabelecido num contrato, ou deixa de observar o


sistema normativo, que regulamenta sua vida. A responsabilidade nada mais
é do que o dever de indenizar o dano”1

Assim, podemos diferenciar duas formas de responsabilidade civil: a que provém da


quebra de um vínculo obrigacional constituído de forma voluntária, como um contrato; e a
responsabilidade que emerge do desrespeito a uma norma social que existe ainda que não haja
contrato entre as partes, como no caso de dano a uma coisa: quem danificou fica obrigado a
indenizar o proprietário, em danos materiais e, se cabível, morais também. A esta última
categoria chamamos também de “responsabilidade aquiliana”.
No século XIX, o pandectista alemão Alois von Brinz criou a “teoria dualista do vínculo
obrigacional” a partir de uma releitura de fontes romanas. Esta teoria, que foi expandida por
outros estudiosos, afirma que há dois elementos no vínculo obrigacional: o débito (que em
alemão se denominou Schuld) e a responsabilidade que surge do inadimplemento deste débito,
e que se caracteriza pela disposição do patrimônio do devedor como forma de indenizar o credor
(fenômeno que na língua germânica é chamado de Haftung)2. Assim, surge uma teoria moderna
que explica a responsabilidade civil contratual.
A responsabilidade extracontratual tem um desenvolvimento não tão claro na
modernidade. Sua base advém de um plebiscito romano chamado Lex Aquilia. Este diploma
afirmou que o dano a qualquer propriedade deveria ser indenizado por partes do patrimônio de
quem danificou, e que a constatação de uma pessoa como agente danificador seria pela culpa
da pessoa, o nexo de causalidade entre sua imprudência, imperícia ou negligência e o prejuízo
percebido, além da própria existência do dano.
A mentalidade que pautou a modernidade tendeu a diminuir a importância deste
instituto, o aproximando inclusive da responsabilidade contratual, na figura de um contrato
abrangente e, dado um exame fático, utópico: um contrato social. Figura preponderantes no
surgimento do pensamento político, e mesmo jurídico da modernidade, como Thomas Hobbes,
John Locke, Jean-Jacques Rousseau, entre outros, preconizaram como forma de racionalizar a
mentalidade nascente e a própria realidade que estava sendo produzida como oriundas de um
contrato feito por todos os membros da sociedade. A forma deste contrato, como ele era firmado
e suas cláusulas foram objeto de intenso debate entre os pensadores, mas a mentalidade liberal,

_________________
1
LIMONGI FRANÇA, Rubens. Enciclopédia saraiva de direito. São Paulo: Saraiva, 1977. Vol. 65. p. 332
2
SIMÃO, J. Fernando. A teoria dualista do vínculo obrigacional e sua aplicação ao Direito Civil Brasileiro,
Revista Jurídica da Escola Superior do Ministério Público de São Paulo, v. 3, 2013, pp. 165-181. p.168
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individualista, maximizadora da felicidade particular de cada pessoa e antropocêntrica que deu


origem ao pensamento social contemporâneo só conseguiu estabilizar e dar seguimento lógico
aos seus paradigmas admitindo que a superestrutura política, social, econômica e jurídica que
existiam eram provenientes de um contrato. Este contrato garantia a segurança e todos os
direitos, como o direito à vida, à propriedade, a paz, etc. Eles existiam porque um contrato
assim garantia. Portanto, não se podia falar em responsabilidade extracontratual: mesmo os
direitos sociais mais básicos eram fruto de um contrato tal qual os direitos transacionados entre
particulares em um contrato de compra e venda, por exemplo.
Tendo em mente esta pequena exposição teórica dos fundamentos contemporâneos da
doutrina da responsabilidade civil em seu aspecto geral, na doutrina do direito comparado,
podemos passar ao exame da evolução dogmática do instituto no Direito do Brasil.

2.1 Evolução dogmática do conceito no ordenamento jurídico do Brasil


De acordo com Caio Mário da Silva Pereira: “Nosso direito pré-codificado pode ser
estudado em três fases distintas, no tocante à responsabilidade civil”1.
Na primeira delas, que durou dos primórdios do domínio português no território do
Brasil até 1830 estavam as ordenações do Reino que, a partir de 1789, foram emendadas pela
“Lei da Boa Razão”, uma lei sancionada pelo então chefe do gabinete de Ministros do Reino
de Portugal, o Marquês de Pombal, para dar uma roupagem moderna e iluminista às leis gerais
do país. No que concerne às disposições do Direito Civil em geral, especialmente sobre a
responsabilidade civil, esta lei estipulou que o Direito Romano deveria ser usado como fonte
subsidiária, onde as leis do Reino fossem omissas. Era uma tentativa de aproximar o sistema
legal de um ideal de racionalidade nascente, advindo do Renascimento, justamente
renascimento, como o próprio nome indica, dos ideais clássicos, da Grécia e, no caso do
pensamento jurídico, de Roma. Em 1830 há a edição do primeiro Código Criminal do Império
do Brasil, que continha disposições que pretendiam lidar com a questão da responsabilidade
civil. Nota-se um movimento de tentar a aproximação entre o Direito Civil e o Direito Penal.
Assim, qualquer infração passa a ser entendida como instituto penal e, portanto, devendo ser
aplicada não apenas um ressarcimento, mas uma punição.
A terceira fase se inicia com a obra do jurista baiano Augusto Teixeira de Freitas,
encarregado pelo Imperador Dom Pedro II de formular um anteprojeto de Código Civil para o
Brasil, ainda no início da segunda metade do século XIX. Crítico da aproximação da
responsabilidade civil com o Direito Penal, colocou em sua obra que o lugar apropriado para
_______________
1
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2018. 12. ed. versão
digital. p. 24
5

uma legislação dedicada a pautar a compensação por dano causado era a legislação civil. No
entanto, não obstante sua influência, seu anteprojeto, por ele denominado “Esboço” não foi
adiante e acabou abandonado.
Ainda no século XIX, em 1898, e no esteio desta terceira fase, o advogado carioca
Carlos Augusto de Carvalho realiza a “Nova consolidação das leis civis”, onde alude inclusive
à responsabilidade civil do Estado, além de o desmembrar em vários tipos de responsabilidade
civil, deixando clara importância deste conceito e seu distanciamento do Direito Penal.1
O Código Civil de 1916 (Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916), o primeiro do Brasil,
revogou todas as leis e ordenações a ele anteriores, e tratou da responsabilidade civil em sua
Parte Especial, no Livro III, Título VII, que se chamou “Das obrigações por atos ilícitos”, arts.
1518 até 1532. O Código deixou bem claro que a responsabilidade civil era distinta da criminal,
que a responsabilidade civil se estendia às pessoas jurídicas, entre outras inovações. Mas ainda
não se falou em responsabilidade civil de forma própria: o termo aparece apenas no art. 1525.
Ainda assim, cristalizou em seu entendimento, no art. 159, a chamada “teoria da culpa”: só a
responsabilidade se houver culpa, não obstante alguns casos especiais.2
A mentalidade que pautou o Código de 1916 e, portanto, todo o Direito Civil brasileiro
até o advento do Código Civil de 2002, era a mentalidade que foi descrita no início desta seção,
marcada pela preponderância do Direito Privado sobre o Direito Público, ou ao menos, com a
visão de que a principal função do Direito Privado era ser um garantidor da chamada “Liberdade
Negativa”, ou seja, a mínima interferência do Estado e da coisa pública nas decisões e ações
jurídicas e políticas dos particulares. Não se falava em evocar função social ou mesmo
princípios éticos fundamentais para pautar o Direito Civil, inclusive a responsabilidade civil:
esta era vista apenas como uma forma de garantir que o direito à propriedade sem turbação e à
incolumidade do patrimônio pudessem existir, obrigando quem, por ventura, ainda que sem
dolo, os atacasse, desfizesse, ou ao menos mitigasse, os efeitos do que havia provocado.

2.2 Seus pressupostos à luz do Código Civil brasileiro de 2002


O Código Civil de 2002 (Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002) surgiu já com uma
mentalidade atrelada em boa parte à da Constituição de 1988, ainda que sua tramitação tenha
se iniciado antes disso. esta mentalidade está o reconhecimento da existência do Estado social
democrático e de direito. Ou seja, há a inserção de uma perspectiva social na interpretação e na
própria existência dos direitos e das instituições.
_______________
1
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2018. 12. ed. versão
digital. p. 24
2
Idem
6

Neste novo contexto, o Código Civil internaliza tendências como a função social dos
contratos, o direito de empresa baseado em sua significância econômica e, no que diz respeito
à responsabilidade civil, deu maior ênfase à responsabilidade que não é contratual.
O Código trata da responsabilidade civil contratual no art. 389, que diz:

“Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e


danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais
regularmente estabelecidos, e honorários de advogado”.

Este artigo está na Parte Especial do Código, no Livro I, “Das Obrigações”, Título IV,
que se chama “Do Inadimplemento das Obrigações”. Ou seja, o dispositivo que trata da
responsabilidade contratual, derivada do descumprimento de uma obrigação firmada
voluntariamente entre particulares, está nas disposições gerais a todas as obrigações, não
propriamente aos contratos, que serão tratados no Código nos títulos V e VI.
Já a responsabilidade extracontratual é tratada no atual Código nos artigos 186 e 187,
ainda na parte geral, e no Título IX do Livro I da Parte Especial, aliás chamada de “Da
Responsabilidade Civil”, que vai do art. 927 ao art. 954. O art. 927 prescreve a responsabilidade
por ato ilícito com culpa e seu parágrafo estende para casos sem culpa, que serão específicos.
Vejamos:

“Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem,
fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente
de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os
direitos de outrem”.

É de se notar algumas cláusulas novas no tocante à responsabilidade civil, quando se


compara com o antigo Código. Um bom exemplo é o art. 931, in verbis:

“Art. 931. Ressalvados outros casos previstos em lei especial, os empresários


individuais e as empresas respondem independentemente de culpa pelos
danos causados pelos produtos postos em circulação”.
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Este artigo estabelece a responsabilidade civil dos empresários, de forma independente


de culpa, pelos produtos que colocarem em circulação, no esteio do parágrafo único do artigo
927, acima mencionado. Vemos, portanto, que a teoria da culpa se torna insuficiente para
explicar a responsabilidade civil no novo ordenamento jurídico, ainda que os casos de
responsabilidade sem culpa estejam dependentes de regramento explícito que os afirme. Mas a
teoria que embasa estes casos é a do risco1: não se olha mais, necessariamente, o proveito
econômico ou a culpa nas ações práticas do agente. Antes de tudo, se deve observar se a
atividade por ele desempenhada traz riscos às pessoas. A estas, se o risco de dano se efetivar,
será considerada a responsabilidade civil de quem exercia esta atividade e consequente direito
à indenização para quem sofreu o dano.
Assim fica estabelecido o regime jurídico, no Código Civil, da responsabilidade civil,
seja contratual, seja a extracontratual. Desta forma, podemos extrair, em conjugação com o que
se estabelece da doutrina, os pressupostos para a responsabilização civil.
Conforme leciona Gustavo Tepedino2:
“Com o intuito ele não deixar desamparada a vítima, desenvolveram
paulatinamente o novo sistema de responsabilização com base na teoria elo
risco, segundo a qual quem exerce determinadas atividades eleve ser
responsável também pelos seus riscos, independentemente ele quaisquer
considerações em torno do seu comportamento pessoal. A esta nova espécie
de responsabilidade, fundada no risco, convencionou-se chamar
responsabilidade objetiva, porque desvinculada da valoração ela conduta elo
sujeito. São requisitos da responsabilidade objetiva: i) o exercício de certa
atividade; ii) o dano; e iii) o nexo de causalidade entre o dano e a
atividade.Ao contrário da responsabilidade subjetiva, fundada na noção de
culpa, a responsabilidade objetiva não se volta para o agente, mas para a
vítima, buscando reparar o prejuízo experimentado por determinada pessoa.
Sem embargo de suas numerosas vantagens, a responsabilidade objetiva não
veio substituir ou eliminar a responsabilidade fundada na culpa. Pode dizer-
se que risco e culpa consistem, hoje, em duas fontes de responsabilidade que,
embora distintas, convivem em harmonia. Tem-se ressaltado que, nas
relações interindividuais, a aplicação da responsabilidade subjetiva
apresenta-se mais conveniente, devendo a responsabilidade objetiva ser
__________
1
PEREIRA, Caio Mário da Silva. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro:
Editora Forense, 2018. 12. ed. versão digital. p. 36
2
TEPEDINO, G; Barboza, H. H; BODIN DE MORAES, M. C. Código Civil Interpretado Conforme a
Constituição da República. v. II. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 808
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reservada àquelas hipóteses especificadas em lei (Sergio Cavalieri Filho,


Programa, p. 146). Daí lhe atribuírem também a denominação de
responsabilidade ex lege”.

Então, são os pressupostos da responsabilidade civil objetiva: i) a atividade humana; ii)


a existência do dano; iii) o nexo de causalidade entre a atividade e o dano causado; iv) o risco
que a atividade exercida pode oferecer.
i) Será considerado atividade humana, por ação ou omissão:
“(…) o ato humano, comissivo ou omissivo, ilícito ou lícito, voluntário e
objetivamente imputável, do próprio agente ou de terceiro, ou o fato de
animal ou coisa inanimada, que cause dano a outrem, gerando o dever de
satisfazer os direitos do lesado”.1
ii) Chamaremos de dano, em uma definição sucinta:
“Dano é o prejuízo, de natureza individual ou coletiva, econômico ou não
econômico, resultante de ato ou fato antijurídico que viole qualquer valor
inerente à pessoa humana, ou atinja coisa do mundo externo que seja
juridicamente tutelada”.2
O dano pode ser patrimonial, de cunho econômico, ou moral, quando afetar sua
dignidade pessoal, podendo um dano ter ambos os reflexos. O último tipo de
dano é uma inovação do Código de 2002, contido no art. 186, tendo em vista
que antes dele havia esta previsão apenas pela doutrina e pela jurisprudência. O
dano deve mensurável, para que seja indenizável, salvo em casos que o dano é
presumido pela lei, como na responsabilidade objetiva.
A disciplina do dano patrimonial é dada pelo art. 402 do Código Civil, in verbis:
“Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e
danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o
que razoavelmente deixou de lucrar”.
Assim, se pode falar em dano pelo que se perdeu, chamado dano emergente, e
pelo que se deixou de ganhar, o que se chamará lucros cessantes.
iii) O nexo de causalidade é necessário pois se a ação acima elencada não tiver a
capacidade de produzir, ou ao menos de contribuir para que se produza, o dano,
não há como se falar em responsabilidade do agente.
__________
1
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
Vol. 7. p. 40
2
NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 579
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Conforme a pertinente lição de Sérgio Cavalieri Filho1:


“Não basta, portanto, que o agente tenha praticado uma conduta ilícita;
tampouco que a vítima tenha sofrido um dano. É preciso que esse dano tenha
sido causado pela conduta ilícita do agente, que exista entre ambos uma
necessária relação de causa e efeito. Em síntese, é necessário que o ato ilícito
seja a causa do dano, que o prejuízo sofrido pela vítima seja resultado desse
ato, sem o que a responsabilidade não correrá a cargo do autor material do
fato”
iv) Na definição de Sérgio Cavalieri Filho2:
“Risco é perigo, é probabilidade de dano, importando, isso, dizer que aquele
que exerce uma atividade perigosa deve-lhe assumir os riscos e reparar o
dano dela decorrente. A doutrina do risco pode ser, então, assim resumida:
todo prejuízo deve ser atribuído ao seu autor e reparado por quem causou,
independente de ter ou não agido com culpa”.
Desta forma, temos a definição de risco. Mas como auferir a quem atribuir sua
existência efetiva, ou seja, a quem imputar caso o risco de dano venha a se
concretizar? Existe a teoria do risco proveito, que afirma, nos dizeres de Caio
Mário da Silva Pereira3:
“Assim é que, para alguns, responsável é aquele que tira o proveito,
raciocinando que onde está o ganho aí reside o encargo – ubi emolumentum
ibi onus. Esta concepção batizou-se com o nome de teoria do risco proveito”
Há também a teoria do risco criado, que pode ser assim enunciado:
“Dentro da teoria do risco-criado, destarte, a responsabilidade não é mais a
contrapartida de um proveito ou lucro particular, mas sim a conseqüência
inafastável da atividade em geral. A idéia de risco perde seu aspecto
econômico, profissional. Sua aplicação não mais supõe uma atividade
empresarial, a exploração de uma indústria ou de um comércio, ligando-se,
ao contrário, a qualquer ato do homem que seja potencialmente danoso à
esfera jurídica de seus semelhantes. Concretizando-se tal potencialidade,
surgiria a obrigação de indenizar”.4

__________
1
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 46.
2
Idem. p. 152.
3
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2018. 12. ed. versão
digital. p. 325.
4
FACCHINI NETO, Eugênio. “Da responsabilidade civil no novo Código”, in: SARLET, Ingo Wolfgang (org).
O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre: Liv. do Advogado, 2003. p. 159.
10

No que concerne à responsabilidade subjetiva, o item iv) deve ser substituído pela culpa
do agente.
iv) Para Sérgio Cavalieri Filho, são três os elementos da conduta culposa de uma
gente para o Direito Civil: “a) conduta voluntária com resultado involuntário;
b) previsão ou previsibilidade e c) falta de cuidado, cautela, diligência ou
atenção”1.
Deste modo, haverá culpa do agente quando este agir de forma voluntária,
produzindo um resultado que não era o de sua intenção, mas que poderia se
prever que isto assim se procederia, dada sua imprudência, imperícia ou
negligência, ainda que este não tenha consciência de estar agindo desta forma.

Com isso, ficam caracterizados os pressupostos da responsabilidade civil, isto é, as


condições necessárias e suficientes para que se verifique a existência ou não de
responsabilidade civil perante um fato concreto. Tais fatores são exaustivos e requeridos: se um
só não se verificar, não haverá responsabilidade civil. Ao contrário, se todos forem verificados,
independente de outros que possam existir, inclusive de outras imputações legais, a
responsabilidade civil estará presente.

3 O enriquecimento sem causa


Passemos agora ao exame da categoria jurídica do enriquecimento sem causa. Ele está
previsto no Código Civil, Parte Especial, no Título VII, chamado “Dos Atos Unilaterais”,
capítulo IV, “Do Enriquecimento Sem Causa”. Trata-se de um capítulo curto, que abaixo
reproduzimos:

“Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será
obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores
monetários.
Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada,
quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a
restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido.

Art. 885. A restituição é devida, não só quando não tenha havido causa que
justifique o enriquecimento, mas também se esta deixou de existir.

__________
1 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2012. p. 36.
11

Art. 886. Não caberá a restituição por enriquecimento, se a lei conferir ao


lesado outros meios para se ressarcir do prejuízo sofrido”.

Assim, verificamos que o regime jurídico do enriquecimento sem causa afirma que este
será considerado quando um ente obtiver acréscimos em seu patrimônio sem que haja razões
de ordem jurídica para tanto, e isto importe a diminuição indevida do patrimônio de outro ente,
ou que se deixe de dar a quem de direito pertence certo quinhão de riqueza. Se o auferimento
indevido for de coisa certa, a resolução será feita pela entrega da coisa ao seu legítimo
possuidor. Se esta não existir mais, quem enriqueceu sem a devida causa deve pagar a quantia
monetária correspondente ao bem, conforme este se expressava na época que foi exigido.
O cálculo deste valor de enriquecimento, caso não seja o caso de auferimento de coisa
certa, deverá obedecer a “Teoria do Duplo Limite”: será o menor valor entre o que se
efetivamente acresceu, o valor da vantagem objetivamente auferida; e o valor da variação
patrimonial que se verificou para o agente apropriador, sendo a diferença entre seu patrimônio
real e o valor esperado de seu patrimônio caso não tivesse se apropriado sem respaldo jurídico
da riqueza.1
A causa da transferência patrimonial deve ser duradoura, ao menos até que se prescreva
o período de pedido de reversão, o que é previsto no Código Civil no art. 206, § 3º, inc. IV, que
é de três anos, salvo se alguma lei específica para o caso concreto que se examine disponha em
contrário. Assim, para exemplificar, se um carro roubado for encontrado, o prêmio do seguro
pago ao segurado deverá ser devolvido, se isto ocorrer dentro de um prazo razoável e o carro
estiver em plenas condições de uso.2
Por último, percebemos que o as ações por enriquecimento sem causa têm caráter
subsidiário: só existirão se não houver outra forma de se a lei der a quem foi lesado outras
formas de ressarcir o prejuízo que sofreu. Isto ocorre para que não se abandonem ações
específicas e para que não seja usada para fraudar os demais institutos ou beneficiar quem
perdeu ações cíveis por erro ou omissão.3

__________
1
TEPEDINO, G; Barboza, H. H; BODIN DE MORAES, M. C. Código Civil Interpretado Conforme a
Constituição da República. v. II. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 756
2
Este exemplo foi extraído de: TEPEDINO, G; Barboza, H. H; BODIN DE MORAES, M. C. Código Civil
Interpretado Conforme a Constituição da República. v. II. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 757
3
TEPEDINO, G; Barboza, H. H; BODIN DE MORAES, M. C. Código Civil Interpretado Conforme a
Constituição da República. v. II. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 758
12

3.1 A evolução dogmática deste instituto


Tem-se que a história do instituto do enriquecimento sem causa começa ainda na Roma
antiga, mais precisamente no Direito Justinianeu, que no Digesto afirmou as chamadas
conditiones sine causa, ou seja, do que se procedia sem causa. Se um enriquecimento sem causa
ocorresse, era possível invocar estas conditiones e desfazer o que havia sido praticado, através
de ações denominadas actiones in rem verso.1
O Direito brasileiro anterior, por seu turno, foi silente no que concerne a esta disciplina.2
No Código Civil de 1916, havia apenas a figura do pagamento indevido, dos arts. 964 a 971,
que estava dentro dos dispositivos sobre o pagamento, ou seja, a liquidação das obrigações.

3.2 Os pressupostos do enriquecimento sem causa no Direito brasileiro atual


No Direito Civil contemporâneo, o enriquecimento sem causa, como já se disse, está no
Código Civil de forma explícita, com título próprio. Contudo, há que se dedicar uma palavra
acerca da pertinência de se classificar o enriquecimento sem causa como “Ato Unilateral”. Ato,
quando se fala em obrigações, diz respeito a um movimento voluntário, ainda que este produza
efeitos não desejados. O enriquecimento sem causa não perfaz definição: ele realmente ocorre
sem que haja má-fé ou a prática de qualquer ilícito. Não houve ato livre e espontâneo que tenha
lhe dado origem. Assim, há autores que defendem ser esta uma cláusula geral, que deveria ter
sido posta como autônoma no Código. Esta discussão será retomada mais adiante neste
trabalho.
Dito isto, passemos à apreciação dos pressupostos desta categoria do Direito Civil que
são consagradas pela doutrina, com base na legislação que acima se mencionou.
Serão quatro estes fatores: a) o enriquecimento de alguém, ou seja, que haja acréscimo
patrimonial; b) o empobrecimento de outrem, isto é, que haja decréscimo no patrimônio e/ou
que uma quantia que era esperada de forma justa não se venha a alocar nesta riqueza; c) que
haja uma relação de interdependência entre os dois fenômenos anteriores; e d) que não haja
causa jurídica válida para que tal expediente se justifique, o que é uma verdade que está na raiz
do próprio conceito, já que se houver causa, não se pode chamar o enriquecimento de “sem
causa”.
Os pressupostos são bastante autoexplicativos, mas é muito importante um
esclarecimento sobre item c) mencionado: não se fala, necessariamente, em relação de causa e

__________
1
TEPEDINO, G; Barboza, H. H; BODIN DE MORAES, M. C. Código Civil Interpretado Conforme a
Constituição da República. v. II. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 752
2
Idem. p. 751
13

efeito, e sim de interdependência. Isto quer dizer que não há a necessidade de o enriquecimento
ter sido causa direta do empobrecimento, mas que ambos devem ser consequências de uma
mesma causa, ou de causas suficientemente relacionadas. A isto se chama “indivisibilidade da
origem”.1
As condições acima enumeradas são condições necessárias e suficientes para que se
possa caracterizar a existência ou não dos fenômenos do enriquecimento sem causa em
situações sociais reais.

4 Da relação entre os institutos


É objeto de intenso debate na doutrina e mesmo na jurisprudência se há alguma forma
de se relacionar a responsabilidade civil com o chamado enriquecimento sem causa.
Ainda antes do advento do novo Código Civil, e já com a vigência da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, se coloca em discussão se entre tais institutos há
caracteres em comum. Isto porque, como se disse, a Constituição trouxe um certo tom de
“constitucionalização” dos Direitos Civis, dando a alguns deles o status de cláusula geral, ou
seja, tornando estes direitos estendidos à toda sociedade, e implicando que sua interpretação
deveria se pautar pela função social do Direito e por princípios éticos fundamentais, algo típico
de Constituições, tendo em vista sua natureza de Lei Fundamental dos países.
O enriquecimento sem causa não encontrava guarida no Código Civil de 1916, mas isto
não quer dizer que ele não existia para o pensamento jurídico do Brasil. Ainda em 1997, o STF
julgou uma ação, de Direito tributário, onde afirmava:

“Descabe falar, na espécie, de transgressão ao princípio da legalidade. O


alcance respectivo há de ser perquirido considerada a garantia
constitucional implícita vedadora do enriquecimento sem causa"2

Ainda que se considere que outros julgados desabonaram a visão acima descrita3, é
pertinente notar que a categoria tinha, em algumas interpretações, a valoração de garantia
constitucional. O caput do art. 5º da CR, que lista os direitos e garantias individuais em seus
incisos, afirma:

__________
1
TEPEDINO, G; Barboza, H. H; BODIN DE MORAES, M. C. Código Civil Interpretado Conforme a
Constituição da República. v. II. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 754-755.
2
STF, 2ª T., Ag. Reg. em Ag. Instr. nº 182458, rel. Min. Marco Aurélio, julg. 04.03.1997, publ. DJ 16.05.1997.
Ementa.
3
TEPEDINO, G; Barboza, H. H; BODIN DE MORAES, M. C. Código Civil Interpretado Conforme a
Constituição da República. v. II. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 753
14

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:”

Ou seja, o direito à propriedade privada é basilar no ordenamento jurídico prescrito pela


Constituição. ela também o prescreve no inciso II do art. 170, como fundamento da ordem
econômica do Brasil. Assim, ter direito à propriedade é ter direito a que ela não seja vilipendiada
por ninguém, que esta possa ser estável. Sempre houve proteção contra a turbação da
propriedade advinda de atos ilegais ou criminosos, tanto pelo Direito Civil, quanto por outros
ramos do Direito. Mas o que falar de quando o patrimônio de alguém sofre dano que não é
decorrente de atos ilícitos? Qual proteção esta pessoa possui?
Desde 1804, pelo menos, a doutrina do Direito é clara: não pode haver problema jurídico
sem que haja um remédio jurídico processual adequado. Neste ano, a Suprema Corte dos EUA
julgou o caso Marbury v. Madison, e uma das conclusões a que o Chief Justice John Marshall
chegou foi justamente esta: deve sempre haver instrumento jurídico que pertinente para se
contestar ações potencialmente danosas perante as Cortes, se houver esta garantia da parte do
direito subjetivo.
Isto no que concerne ao Direito Processual. Mas, e quando o problema é substantivo? A
proteção à propriedade existe, como se demonstrou. Como então torna-la própria para que o
Poder Judiciário possa exarar decisões que a garantam esta proteção no caso de ataques que não
sejam ilícitos nem de má-fé? Qual seria a alegação que deveria ser aceita pelos juízes para que
houvesse o provimento de uma ação que desfizesse o que ocorreu e era indevido?
O conceito de “enriquecimento sem causa” parece ter surgido para responder a estes
questionamentos, pois trata justamente deste tipo de turbação.
É desta forma de ver o conceito que surge o entendimento de alguns doutrinadores que
se trata de uma cláusula geral do Código Civil, um princípio orientador, dada sua natureza de
encerrar um fundamento constitucional e que surgiu da doutrina e da jurisprudência antes de
ser positivado no Código Civil, em 2002.
Contudo, como qualquer conceito jurídico, existe a necessidade de se dar mais
consistência a ele. Conforme já se demonstrou, nunca foi pacífico o entendimento de que se
tratava de uma garantia constitucional implícita. Desde 2002, entretanto, não podia mais ser
ignorado pelos juristas, afinal, estava definitivamente prescrito na Parte Especial do Código
Civil.
15

Existem diversas correntes que versam sobre o entendimento deste conceito. Uma em
especial, dada natureza deste trabalho nos interessa: a que tenta aproximar o enriquecimento
sem causa da responsabilidade civil.
Esta é chamada de “Teoria do Lucro Criado” e segue abaixo descrita:

“Tem-se ainda a teoria do lucro criado, que desloca o Enriquecimento para


a Responsabilidade Civil, especificamente à teoria do risco. Da mesma
maneira que aquele que em razão de atividade profissional, cria risco a
outrem, devendo suportá-lo, nesta teoria, admite-se que aquele que
proporciona lucro a outrem, tem direito de exigi-lo de quem o tenha
proporcionado. Tal teoria baseia-se em uma analogia a teoria do risco
criado na Responsabilidade Civil, porém inadequada, pois condiciona o
Enriquecimento sem Causa à responsabilidade objetiva, não sendo exigida a
constatação de culpa, o que caracteriza uma excepcionalidade, que ensejaria
em uma espécie de diminuição do instituto”.1

Esta visão não é acompanhada por todos os doutrinadores. Abaixo seguimos uma
explanação que resume de forma adequada os pontos de vista2:

“Neste sentido fica clara a distinção entre a responsabilidade civil e o


enriquecimento sem causa: enquanto a primeira confere uma proteção
dinâmica ao patrimônio a partir do princípio do neminem laedere e visa ao
ressarcimento integral do dano sofrido pela vítima, o segundo oferece apenas
uma proteção estática ao patrimônio que, posto menos intensa abrange casos
não cobertos pela responsabilidade civil, como quando não há ilicitude ou
dano. Na aplicação do instituto do enriquecimento sem causa o objetivo não
é reparar o dano, mas forçar o beneficiado a restituir o indevidamente
locupletado: ‘A reparação do dano sofrido, quando ocorre, é sempre
indireta, pois o que se busca é remover a vantagem auferida por um para

____________________
1
SOUSA, Vinícius E. S. Enriquecimento sem causa como cláusula geral do Código Civil: Interpretação civil-
constitucional e aplicabilidade judicial. Âmbito Jurídico. 01 de julho de 2011. Disponível em:
<https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-civil/enriquecimento-sem-causa-como-clausula-geral-do-codigo-
civil-interpretacao-civil-constitucional-e-aplicabilidade-judicial/>. Acesso em: 03 de jul. 2020.
2
TEPEDINO, G; Barboza, H. H; BODIN DE MORAES, M. C. Código Civil Interpretado Conforme a
Constituição da República. v. II. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012. p. 756
16

transferi-la a quem ela era de direito’ (Carlos Nelson Konder,


"Enriquecimento", p. 379)”.

Do que se depreende, ao final: o enriquecimento sem causa não visa indenizar ninguém,
sequer repara danos. Esta figura surgiu e existe para que ninguém seja subtraído materialmente,
com uma diminuição indevida, sem que o Direito nada possa fazer diante disso. O uso deste
instituto só é cabível quando não houver má-fé ou ato ilícito, ou dolo. Se houver, o que cabe
será a responsabilidade civil. Até por isso que o enriquecimento sem causa possui caráter
subsidiário, conforme o art. 886 do Código Civil: só deve ser usado nestes casos específicos,
ou seja, com ausência de elementos ilícitos ou volitivos no intuito de produzir o resultado do
empobrecimento indevido. Qualquer outro vitupério a integridade do patrimônio de uma pessoa
deve ser remediado por outros instrumentos jurídicos.
Sobre a questão da previsão constitucional à proteção do patrimônio, que daria ao
enriquecimento sem causa o estatuto de cláusula geral, é pertinente lembrar que as indenizações
decorrentes da responsabilidade civil também têm previsão na Constituição, no art. 5º, incisos
V e X, que abaixo reproduzimos:

“V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da


indenização por dano material, moral ou à imagem;
(...)
X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das
pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação; (...)”

Portanto, há pouca consistência na alegação que a existência de generalidade por ser


supostamente constitucional daria ao enriquecimento sem causa a propriedade de ser
aproximado qualquer outro instituto sem prejuízo à coesão da interpretação jurídica.
Não obstante o que acima foi elencado, há na própria realidade da prática jurídica uma
aproximação entre os dois conceitos.
O caso mais conspícuo, possivelmente, diz respeito ao chamado lucro da intervenção.
Por lucro da intervenção podemos entender “[O] lucro obtido por aquele que, sem autorização,
interfere nos direitos ou bens jurídicos de outra pessoa”.1 Este foi concebido como um ponto de
intersecção possível entre a responsabilidade civil e o enriquecimento sem causa.
___________
1
SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil e enriquecimento sem causa O Lucro da Intervenção. São Paulo: Atlas,
2012. p. 07.
17

Em maio 2018, durante a VIII Jornada do Direito Civil, foi emitido, entre outros, o
enunciado 620, in verbis:

“ENUNCIADO 620 – Art. 884: A obrigação de restituir o lucro da


intervenção, entendido como a vantagem patrimonial auferida a partir da
exploração não autorizada de bem ou direito alheio, fundamenta-se na
vedação do enriquecimento sem causa”.1

No mesmo ano, em outubro, foi julgado o REsp nº 1.698.701 – RJ, rel. Ministro Ricardo
Villas Bôas Cueva, DJe 08/10/2018, cuja ementa abaixo se reproduz:

“RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. USO INDEVIDO DE IMAGEM.


FINS COMERCIAIS. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. ART. 884 DO
CÓDIGO CIVIL.
JUSTA CAUSA. AUSÊNCIA. DEVER DE RESTITUIÇÃO. LUCRO DA
INTERVENÇÃO. FORMA DE QUANTIFICAÇÃO.
1. Recurso especial interposto contra acórdão publicado na vigência do
Código de Processo Civil de 2015 (Enunciados Administrativos nºs 2 e
3/STJ).
2. Ação de indenização proposta por atriz em virtude do uso não autorizado
de seu nome e da sua imagem em campanha publicitária. Pedido de
reparação dos danos morais e patrimoniais, além da restituição de todos os
benefícios econômicos que a ré obteve na venda de seus produtos.
3. Além do dever de reparação dos danos morais e materiais causados pela
utilização não autorizada da imagem de pessoa com fins econômicos ou
comerciais, nos termos da Súmula nº 403/STJ, tem o titular do bem jurídico
violado o direito de exigir do violador a restituição do lucro que este obteve
às custas daquele.
4. De acordo com a maioria da doutrina, o dever de restituição do
denominado lucro da intervenção encontra fundamento no instituto do
enriquecimento sem causa, atualmente positivado no art. 884 do Código
Civil.

___________
1
BRASIL. Jornada de Direito Civil, VIII; 2018, Brasília.
18

5. O dever de restituição daquilo que é auferido mediante indevida


interferência nos direitos ou bens jurídicos de outra pessoa tem a função de
preservar a livre disposição de direitos, nos quais estão inseridos os direitos
da personalidade, e de inibir a prática de atos contrários ao ordenamento
jurídico.
6. A subsidiariedade da ação de enriquecimento sem causa não impede que
se promova a cumulação de ações, cada qual disciplinada por um instituto
específico do Direito Civil, sendo perfeitamente plausível a formulação de
pedido de reparação dos danos mediante a aplicação das regras próprias da
responsabilidade civil, limitado ao efetivo prejuízo suportado pela vítima,
cumulado com o pleito de restituição do indevidamente auferido, sem justa
causa, às custas do demandante.
7. Para a configuração do enriquecimento sem causa por intervenção, não
se faz imprescindível a existência de deslocamento patrimonial, com o
empobrecimento do titular do direito violado, bastando a demonstração de
que houve enriquecimento do interventor.
8. Necessidade, na hipótese, de remessa do feito à fase de liquidação de
sentença para fins de quantificação do lucro da intervenção, observados os
seguintes critérios: a) apuração do quantum debeatur com base no
denominado lucro patrimonial; b) delimitação do cálculo ao período no qual
se verificou a indevida intervenção no direito de imagem da autora; c)
aferição do grau de contribuição de cada uma das partes e d) distribuição do
lucro obtido com a intervenção proporcionalmente à contribuição de cada
partícipe da relação jurídica.
9. Recurso especial provido”.1

Com efeito, pela visualização deste conceito jurídico, vemos que ele pretende ser uma
forma de aplicação simultânea do enriquecimento sem causa, que seria sua base jurídica, e da
responsabilidade civil, pois encerraria uma nova quantidade a ser levada em conta na hora de
se proceder a restituição: o quanto a exploração indevida de bem jurídico alheio, ainda que isto
não seja necessariamente deliberado, proporcionou de lucro ao explorador. Assim sendo, o
reequilíbrio patrimonial que pretende o instituto do enriquecimento sem causa, no caso do lucro
da intervenção, seria proporcionado pela transferência da riqueza gerada pelo bem jurídico ao

___________
1
REsp nº 1.698.701 – RJ, rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, DJe 08/10/2018.
19

titular do direito de usar e fruir deste bem, que supostamente o teria gerado e já teria se
apropriado dele, não fosse a ação do usuário indevido.
A principal ideia deste conceito é evitar que o uso indevido de bens jurídicos se
generalize, devido aos baixos valores de indenização que pode haver nestes casos. De fato, o
uso indevido de imagem, situação do julgado acima mencionado, daria uma indenização
proporcional ao uso, não guardando relação com o montante de lucro auferido. A diferença
entre o lucro que se auferiu e a indenização ficavam com o usuário indevido. Por esta nova
doutrina, todo o valor do acréscimo no lucro da empresa, que deverá ser calculado de forma
apropriada, será dado ao titular do direito explorado de maneira inapropriada, por se considerar
que todo este valor veio deste uso, portanto, pertenceria ao titular deste direito de imagem, a
própria pessoa da atriz, neste caso concreto.
Portanto, há sim um caminho de aproximação entre os institutos, ainda que este seja
incipiente e visto com desconfiança por certos estudiosos, como se mencionou.

5 Conclusão
Os institutos investigados existem para dar estabilidade aos direitos civis das pessoas,
cada um de sua forma.
A responsabilidade civil prevê que aquele que por culpa atentar contra os direitos civis
de outrem, deverá indenizar pelo prejuízo, na medida que o dano se verificar.
O enriquecimento sem causa, por seu turno, não pretende fixar indenizações a danos ou
prejuízos. Apenas remediar transferências de riqueza que não tenham base jurídica, nem
motivação pertinente. Neste caso, o que se transferiu será devolvido a quem de direito. De fato,
não há óbice que os dois conceitos sejam praticados juntos, pois uma transferência indevida
pode ocorrer por fraude daquele que se aproveitou do enriquecimento, mas são conceitos
distintos, tanto nas leis como na doutrina.
O advento da constitucionalização dos direitos civis trouxe uma interpretação bastante
mais aberta a estes institutos e do próprio Código Civil. Muitos destes conceitos, inclusive, são
encarados como uma positivação de garantias constitucionais e principiológicas, quando de seu
advento no Código Civil de 2002, que já foi formulado com o pensamento de coadunar a
interpretação dos entes jurídicos do Direito Civil com as exigências do Estado social
democrático e de direito.
Assim, estes institutos passaram a ser vistos como cláusulas gerais, que prescrevem
dentro do Código Civil os princípios e garantias da Constituição. É neste diapasão que surge,
no direito contemporâneo, a questão da relação entre os conceitos.
20

Há uma tendência de surgir novas formas de relaciona-los, para suprir falhas de caráter
prático, como a insuficiência de reparações ou indenizações. Dentre estes esforços, o do lucro
da intervenção é um dos mais adiantados, mas parece apenas ser uma nova proposta de cálculo
para as indenizações por danos morais e uso de imagem para fins comerciais. Assim, não se
deve confundir, nem sequer se afirmar que sejam idênticos: se forem aplicados em conjunto, e
já se disse sobre esta possibilidade, que se evidencie a aplicação de ambos, mas não a
sobreposição dos mesmos.
Portanto, há que se reconhecer que constitucionalização dos conceitos do Direito Civil
deu a eles extensão máxima, podendo estes serem generalizados e, ainda assim, se respeitar os
ditames do bem-estar social e da paz pública. De fato, a extensão dos direitos civis e sociais é
uma luta que pautou em muito a agenda política e jurídica do século XX.
Quando se fala em direitos sociais constitucionais, não se pode olvidar a Constituição
do México de 1910 e de Weimar, de 1919. Nem sempre estes foram previstos em leis
fundamentais das nações: por muito tempo se entendeu que uma Constituição, se existisse,
deveria se prestar apenas a prescrever as regras de arranjo do Estado e do governo, dando seus
limites, para que não houvesse tirania. Direitos sociais não devia estar em uma Constituição.
O mesmo raciocínio vale para os Direitos Civis. Não há como esquecer a luta de homens
como Marthin Luther King, entre vários outros, justamente para a generalização dos direitos
civis. Estes, por muito tempo, foram restritos a quem tivesse condições de contratar e se impor
por força própria. Era uma agenda exclusivamente privada, particular, onde o Estado deveria
intervir apenas e tão somente para garantir o cumprimento de contratos e acordos, ou seja, era
passivo perante os direitos civis. Nunca ativo, promotor ou fomentador.
A constitucionalização destes direitos, ao menos, no Brasil, significou um princípio de
sua generalização e de sua garantia perante o Estado e a sociedade. Mas esta garantia não pode
servir para que perca a consistência do raciocínio jurídico, sob pena do efeito ser reverso: sem
conceitos firmes, claros e garantidores, a sociedade como um todo perde em segurança.
21

Referências Bibliográficas:
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 10. ed. São Paulo:
Atlas, 2012.

DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 23. ed.
São Paulo: Saraiva, 2009. Vol. 7.

FACCHINI NETO, Eugênio. “Da responsabilidade civil no novo Código”, in:


SARLET, Ingo Wolfgang (org). O novo Código Civil e a Constituição. Porto Alegre:
Liv. do Advogado, 2003.

LIMONGI FRANÇA, Rubens. Enciclopédia saraiva de direito. São Paulo: Saraiva,


1977. Vol. 65.

NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Editora


Forense, 2018. 12. ed. versão digital.

SAVI, Sérgio. Responsabilidade civil e enriquecimento sem causa O Lucro da


Intervenção. São Paulo: Atlas, 2012.

SIMÃO, J. Fernando. A teoria dualista do vínculo obrigacional e sua aplicação ao


Direito Civil Brasileiro, Revista Jurídica da Escola Superior do Ministério Público
de São Paulo, v. 3, 2013, pp. 165-181.

SOUSA, Vinícius E. S. Enriquecimento sem causa como cláusula geral do Código


Civil: Interpretação civil-constitucional e aplicabilidade judicial. Âmbito Jurídico. 01
de julho de 2011. Disponível em: <https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-
civil/enriquecimento-sem-causa-como-clausula-geral-do-codigo-civil-interpretacao-
civil-constitucional-e-aplicabilidade-judicial/>. Acesso em: 03 de jul. 2020.
22

TEPEDINO, G; Barboza, H. H; BODIN DE MORAES, M. C. Código Civil


Interpretado Conforme a Constituição da República. v. II. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2012.

São Paulo, 03 de julho de 2020.

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