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INSTITUTO DE LETRAS
DEPARTAMENTO DE TEORIA LITERÁRIA E LITERATURAS
BRASÍLIA
Dezembro/2017
Paula Bastos de Lima
BRASÍLIA, 2017
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Cintia Schwants, por toda a ajuda com relação a esse
trabalho e também por todas as conversas em sua sala onde ela, de forma
descontraída, me orientou e me deixou compartilhar um pouco da minha vida.
The present study analyses the work The Handmaid’s Tale, by Margaret Atwood,
through a critical view of gender studies. First, I define the text as a dystopic novel,
belonging to the Science Fiction genre. Hereby, I point the ways in which we are able
to find the defining characteristics of such genres inside the work. Then, I relate the
way women are portrayed in the narrative with the predominantly patriarchal culture
of the society in which we are inserted; exposing the direct connection between the
stereotype of women in our current society and the categories created in the plot.
Finally, I extend this criticism to the book’s epilogue, and dissert about how it
reinforces the warning given by the dystopic narrative previous to it.
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 6
CAPÍTULO 1 – O Conto da Aia como uma obra distópica de ficção científica ......... 10
BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 33
6
INTRODUÇÃO
1
No original: Women become nonpersons – individuals who lack the rights and opportunities that
might enable them to counter openly society’s construction of them as Martha, Wife, and Handmaid –
and their society strips them of any resources with which to create their own subjective reality.
2
No original: Trough the epilogue, Atwood suggests that not only must women reinscribe their voices
and assert their own subjectivity into the political and historical discourse of their society, but those
women’s audiences must learn how to read those reinscribed voices and properly interpret their
subjective meanings.
9
Desta forma, o epílogo faz uma ultima confirmação da influência da cultura patriarcal
na forma como vemos a sociedade, especialmente, as mulheres dentro dela.
10
O que eu quero dizer por “ficção científica” são aqueles livros que
descendem dos Marcianos sugadores de sangue atirados a Terra em
cilindros metálicos de H.G. Wells – coisas que não poderiam acontecer –
enquanto para mim, “ficção especulativa” significa enredos que descendem
dos livros de Jules Vernes sobre submarinos e viagem a balão e coisas do
tipo – coisas que realmente poderiam acontecer, mas ainda não tinham
acontecido completamente quando os autores escreveram os livros. Eu
11
3
colocaria meus próprios livros nessa segunda categoria: sem Marcianos.
(ATWOOD, M., In Other Worlds, p. 6, tradução minha)
O gênero utópico surge como uma visão de uma sociedade futura perfeita,
possibilitada por uma perspectiva positiva das mudanças ocorridas. Em
contrapartida, o gênero distópico mostra uma sociedade falha, que vive sob algum
tipo de opressão (seja ela governamental, tecnológica, religiosa etc.), derivada das
aflições trazidas pelas mudanças sociais e pelos avanços tecnológicos
descontrolados. As duas categorias são, então, classificadas como ficção (científica)
especulativa.
3
No original: What I mean by “science fiction” is those books that descend from H.G. Wells’s blood-
sucking Martians shot to Earth in metal canisters—things that could not possibly happen—whereas for
me, “speculative fiction” means plots that descend from Jules Verne’s books about submarines and
balloon travel and such—things that really could happen but just hadn’t completely happened when
the authors wrote the books. I would place my own books in this second category: no Martians.
12
Entretanto, por mais especulativo que esse tipo de ficção seja, como
mencionado anteriormente, ele está sempre de alguma forma relacionado com a
realidade. Em um artigo escrito para o jornal americano The New York Times,
Atwood declarou que ao escrever O Conto da Aia, fez questão de que para tudo
houvesse um antecedente real:
Uma das minhas regras foi que eu não botaria nenhum evento no livro que
já não tivesse acontecido no que James Joyce chamou de o “pesadelo” da
história, nem nenhuma tecnologia ainda não disponível. Sem dispositivos
imaginários, sem leis imaginárias, sem atrocidades imaginárias. Deus está
nos detalhes, ele dizem. O Diabo também está. (ATWOOD, What ‘The
4
Handmaid’s Tale’ Means in the Age of Trump, 2017, tradução minha)
Nesse ponto, fica claro o aspecto crítico, característica comum nas obras de
distopia.
4
No original: One of my rules was that I would not put any events into the book that had not already
happened in what James Joyce called the “nightmare” of history, nor any technology not already
available. No imaginary gizmos, no imaginary laws, no imaginary atrocities. God is in the details, they
say. So is the Devil. Encontrado em: https://www.nytimes.com/2017/03/10/books/review/margaret-
atwood-handmaids-tale-age-of-trump.html. Acessado em: 03 de novembro de 2017.
13
meio de uma cerimonia realizada no seu dia fértil, onde a aia se deita ao colo da
Esposa e segura suas mãos enquanto é fecundada pelo marido.
5
Tradução minha. No original: Under totalitarianisms — or indeed in any sharply hierarchical society
— the ruling class monopolizes valuable things […] Encontrado em:
https://www.nytimes.com/2017/03/10/books/review/margaret-atwood-handmaids-tale-age-of-
trump.html Acessado em: 03 de novembro de 2017.
16
Posto isso, fica claro que “a narrativa distópica não se configura, deste modo,
apenas como visão futurista ou ficção, mas também como uma previsão a qual é
preciso combater no presente.” (CARDOSO HILÁRIO, 2013, p. 206). Somos então
direcionados a refletir sobre o alerta dado pela obra e de qual forma estamos
contribuindo para que a reconstituição feita por Offred se torne uma possível
reconstituição da nossa própria história. Nas palavras de Pedro Felipe Campello:
A categoria das Marthas representa o ideal social de que a mulher deve ser
responsável pelas tarefas domésticas. Por muito tempo, as mulheres foram proibidas
de trabalhar e por isso ficavam responsáveis pelo cuidado de suas casas e suas
famílias. A necessidade de mão de obra durante as guerras fez com que essa
situação mudasse, e a industrialização da produção acabou por perpetuar essa
mudança. Ainda assim, no Brasil, até 1962, as mulheres casadas só poderiam
trabalhar fora de casa com a permissão do marido. Apesar de atualmente a
participação feminina corresponder apenas a mais ou menos 43% no mercado de
trabalho brasileiro, a pesquisa Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça,
divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), afirmou que as
mulheres trabalham em média 7,5 horas a mais do que os homens por semana
devido às tarefas domésticas realizadas.
Por fim, a maior obrigatoriedade social cai sobre a figura da Aia: a obrigação
de ser mãe. Mais uma vez diretamente relacionada com o conceito da psicanálise,
20
em O Conto da Aia, a mulher só tem valor real caso possa ser mãe. As que não
podem ter filhos perdem até seu direito de se assumir como mulher e são
caracterizadas literalmente como Não-Mulheres. Ainda assim, tanto na obra quanto
na vida real, é esperado que a mulher se torne mãe mas sem que explore o âmbito
sexual. O coito não deve ser ato de prazer pra mulher, mas ato de procriação.
Sendo assim, as Aias são não só descaracterizadas como mulheres, mas também
como seres humanos; passando a ser então objeto de posse de um homem, seu
Comandante. A desumanização da mulher também pode ser percebida pelo
constante uso de animais em comparações, como, por exemplo, quando Offred diz
que ela parece um porco premiado ou quando faz referência ao capítulo sobre ratos
enjaulados em um livro que leu.
Desta forma, Atwood traz em cada uma de suas mulheres, alguma das condições
necessárias para que se faça mulher; visto que para a nossa sociedade, a mulher
ideal é aquela que seja ao mesmo tempo Martha, Esposa e Aia.
assim treinadas a nos manter afastadas, não criar alianças. É necessário que nos
separem, afinal, o poder do patriarcado depende disso.
Ainda assim, as Aias são postas para ir a suas caminhadas sempre em pares.
Apesar de parecer contraditório, com o medo já enraizado na sociedade, essa
prática serve como forma de evitar que as Aias façam algo contra os valores do
Estado. “A verdade é que ela é minha espiã, e eu sou a dela” (ATWOOD, 2017, p
29), declara Offred, que, por sua vez, “várias vezes [...] se mostra ora crítica dos
preceitos religiosos de Gilead, ora seguidora inconsciente dos mesmos.” (SILVA,
2010, p. 21).
Meu Deus, penso, farei qualquer coisa que quiseres. Agora que me deixaste
escapar impune, eu me anularei, se é o que realmente queres; esvaziarei a
mim mesma, verdadeiramente, tornar-me-ei um cálice. [...] pararei de
reclamar, aceitarei meu destino. Eu me sacrificarei. Eu me arrependerei.
Abdicarei. Renunciarei. [...] Quero continuar vivendo de qualquer forma que
seja. Renuncio a meu corpo voluntariamente para submetê-lo ao uso de
outros. Eles podem fazer o que quiserem comigo. Sou abjeta. Sinto, pela
primeira vez, o verdadeiro poder deles. (ATWOOD, 2017, p. 337 e 338)
narradora, mas ao final, para o desapontamento dela, Moira acaba como uma
prostituta na Casa de Jezebel.
Aqui está o que eu gostaria de contar. Gostaria de contar uma história sobre
como Moira escapou, para sempre dessa vez. Ou se não pudesse contar
isso, gostaria de dizer que ela explodiu a Casa de Jezebel, com cinquenta
Comandantes dentro. Gostaria que ela acabasse com alguma coisa ousada
e espetacular, um ultraje, algo que fosse adequado para ela. Mas até onde
sei, isso não aconteceu, porque nunca mais voltei a vê-la. (ATWOOD, 2017,
p 297)
com Relação a O Conto da Aia”. Já pelo nome da palestra, fica claro o viés científico
dado à obra por Pieixoto. Logo ao início de sua fala, Pieixoto mostra seu caráter
extremamente sexista ao objetificar completamente a presidente do simpósio:
Obrigado. Tenho certeza que todos nós tivemos grande prazer em apreciar
nossa encantadora truta do Ártico ontem à noite no jantar, e agora estamos
tendo grande prazer em apreciar nossa igualmente encantadora presidente
do Ártico. Emprego aqui a palavra “apreciar” em dois sentidos distintos,
excluindo, é claro, o terceiro, obsoleto. (Risos.) (ATWOOD, 2017, p. 353)
A partir de então fica claro – não só pela “piada” feita pelo professor, mas também
pelo fato de a plateia ter rido – que o caráter sexista e patriarcal das sociedades de
antes e durante Gilead permanece na sociedade pós-Gileadeana. Sendo assim, nas
palavras de Rüsche (2015, p. 20): “a representação, aqui, aponta para uma
limitação: não se consegue vislumbrar outra ordem social possível além do
capitalismo e do patriarcado”.
7
No original: However, in the "Historical Notes" we leap forward 200 years and discover a society
much like our own pre-Gileadean society, which suggests a cyclical rather than a linear model of
history.
27
outras “brincadeiras” desse estilo são feitas, todas recebidas de forma positiva pela
plateia presente.
Desde o início de seu discurso, Pieixoto deixa claro o caráter científico com o
qual abordou a obra. Grande parte de sua fala é voltada para a questão de
autenticidade das fitas encontradas e da história narrada. Ele se preocupa muito
mais em tentar descobrir quem são os personagens, para que possa ter algum tipo
de confirmação sobre a história, do que com a história em si; demonstrando,
inclusive, certo grau de frustração e ressentimento pela narradora, por não ter
deixado informações mais específicas.
[...] muitas lacunas permaneceram. Algumas delas poderiam ter sido
preenchidas por nossa autora anônima, tivesse ela tido outra maneira de
pensar. Poderia ter nos contado muito sobre o funcionamento do império de
Gilead, se tivesse tido os instintos de uma repórter ou de uma espiã.
(ATWOOD, 2017, p. 364)
Assim como constata Grace (1998), tal tópico é levantado por Offred durante
sua narração, quando ela comenta sobre a falha dos textos em capturar e transmitir
as experiências das mulheres:
O mesmo ocorre na vida real, onde muitas vezes nos mantemos apáticos às notícias
que vemos. São outras pessoas, então não nos afeta. Os jornais são nossas
distopias. Sendo assim, a fala de Pieixoto, e a forma como ele coloca em xeque a
veracidade da fala de Offred, nos faz automaticamente repensar a nossa visão sobre
a narrativa e a forma com que nós percebemos essa história.
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Aqui, peço licença para fazer um aparte editorial, permitam-me dizer que,
em minha opinião devemos ser cautelosos ao fazer um julgamento moral
sobre a sociedade gileadeana. Sem dúvida já aprendemos a esta altura que
tais julgamentos são por necessidade específicos de cultura. Além disso, a
sociedade gileadeana estava submetida a grandes pressões de caráter
demográfico e outros, e estava sujeita a fatores dos quais nós felizmente
estamos mais livres. Nosso trabalho não é censurar e sim compreender.
(Aplausos). (ATWOOD, 2017, p. 355),
pode ser levantada a dúvida sobre a imparcialidade dos autores ao redigir a história.
Compreendendo a forma como a narrativa foi construída e, por esse motivo,
sabendo ser passível de manipulação (SILVA, 2010), somos induzidos a questionar
se houve, ou não, algum tipo de interferência por parte dos professores. Tal dúvida
também é reforçada pelo fato que de a própria Offred faz alusão ao assunto durante
a sua narrativa, quando comenta sobre a forma como o discurso bíblico foi alterado
para as Beatitudes: “Eu sabia que este último eles tinham inventado, sabia que
estava errado, e que tinham excluído partes também, mas não havia nenhuma
maneira de verificar.” (ATWOOD, 2017, p.109). Sendo assim, da mesma forma como
o Estado havia se apropriado dos escritos da Bíblia, Pieixoto e Wade se apropriaram
do discurso de Offred.
quebrado (ou ao menos reduzido) ao descobrirmos que, ainda assim, quem está de
fato dando voz a Offred são dois homens. “A ironia toma-se, [então], mais eficiente
em termos de literariedade, porque é a voz masculina, a voz da ciência, a voz da
academia, que encerra a narrativa” (CAMPELLO, 2003, p. 203).
Ao decorrer da história fica claro que Offred tem total conhecimento do poder
da linguagem. A necessidade de considerar cuidadosamente a forma como
responder a Serena Joy ou falar com Ofglen, e de como se comportar perto de Nick
(incluindo, nesse caso, até mesmo a linguagem corporal); a importância dada à
mensagem deixada pela Offred anterior e até mesmo à almofada onde está escrito
“fé”; o pedido feito ao Comandante para que tivesse acesso à leitura; e o fato de
fazer constante menção à história que está contando, mostram a sua ligação com a
linguagem e a consciência de sua importância. É por meio da linguagem que Offred
tenta reconstruir sua própria subjetividade.
[...] Pieixoto reescreve o texto dela, dessa forma a prendendo dentro de sua
autoridade textual, seu senso de história, e sua visão de como a vida dela
deve ser montada e apresentada. Um homem a garante a chance de falar e
ordena a forma na qual as palavras dela serão recebidas. Offred se torna
8
Ofjames. (HOGSETTE, 1997, p. 272, tradução minha)
Desta forma, a esperança levantada pela revelação da fuga de Offred e por ela ter
conseguido contar sua história, é automaticamente quebrada pelo reconhecimento
do patriarcado instaurado nas falas de Pieixoto.
Posto isso, podemos concluir que o epílogo Notas Históricas Sobre O Conto
da Aia cumpre duas funções. A primeira é a de apontar o comportamento sexista
comum no mundo acadêmico. Mesmo sabendo que, no Brasil, mais da metade dos
alunos em universidades são mulheres (no ano de 2016, de 5.9 mil matrículas feitas
na Universidade de Brasília, 3.3 mil eram de mulheres), casos de assédio tanto a
alunas quanto a professoras são comuns. Além do fato de que, constantemente, a
palavra da mulher é desconsiderada em favor da palavra de um homem. Já a
segunda é de exigir que o leitor faça uma nova leitura crítica da obra, analisando não
apenas a história pelo viés de uma reconstrução feita por um historiador acadêmico
extremamente sexista, mas também sua própria posição como leitor-receptor da
narrativa.
8
No original: [...] Pieixoto reinscribes her text, thus trapping her within his textual authority, his sense
of history, and his vision of how her life should be pieced together and presented. A man grants her
the chance to speak and orders the way in which her words will be received. Offred becomes
Ofjames.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A popularidade obtida por O Conto da Aia não é em vão. Com uma narrativa
cativante, a obra, em suas duas partes, cumpre eficientemente todas as tarefas às
quais se propõe. Escrita em um século anterior, mas completamente coerente com a
cultura atual, a obra mostra quão profunda está enfincada a raiz do patriarcado.
Como dito por VALENTI (2017), “o que torna O Conto da Aia tão assustador não é o
fato de ele ser oportuno, mas de ser atemporal”9.
Nesse ponto, O Conto da Aia se apresenta como uma lição sobre sororidade
e sobre os perigos de sua ausência. Nas palavras de Bastién (2017):
É fácil repousar a culpa dos horrores de Gilead apenas nos pés de homens
como o Comandante Fred [...]. Mas nenhum sistema tão profundamente
9
Tradução minha. No original: [...] what makes The Handmaid’s Tale so terrifying is not that it’s timely,
but that it’s timeless.
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O objetivo desse trabalho é, então, de reforçar a reflexão sobre até que ponto
estamos perpetuando uma cultura que prega a subalternidade da mulher, e apontar
que a impossibilidade de se imaginar um futuro diferente não representa apenas
uma característica do gênero distópico, mas também a resignação da nossa
sociedade diante da cultura patriarcal.
10
No original: It’s easy to rest the blame of the horrors of Gilead solely at the feet of men like
Commander Fred Waterford (Joseph Fiennes). But no system this deeply entrenched and high
functioning could survive without help. Fred and other Commanders need women to internalize their
doctrine so they police themselves. The very people suffering from oppressive systems become the
most valuable tools of enforcement by those in power. The Handmaid’s Tale is at its most potent when
it interrogates the ways women participate in systems that exploit them, holding onto power that is
ultimately transitory.
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BIBLIOGRAFIA