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Excesso de poder no exercício da função

legislativa

GUSTAVO FERREIRA SANTOS

SUMÁRIO

1. Introdução. 2. Status jurídico dos princípios


constitucionais. 3. O fundamento da idéia de limite à
liberdade de conformação do legislador. 4. Instru-
mentos jurídicos de limitação à liberdade do legisla-
dor. 4.1. O desvio de poder legislativo. 4.2. O princí-
pio da razoabilidade. 4.3. O princípio da proporcio-
nalidade ou da proibição do excesso. 5. Conclusões.

1. Introdução
O Estado Moderno, herdeiro da crítica ilu-
minista, evoluiu demasiadamente no último sé-
culo. Entre outras mudanças, o Estado Liberal
diluiu-se com a construção da legislação social
e a inclusão desses direitos de novo tipo nos
textos das Constituições, desaguando no que
se convencionou chamar de Estado Social.
O “breve século XX”, na expressão usada
por Hobsbawm, foi marcado por profundas
transformações na sociedade política. Ao Esta-
do foram apresentadas novas demandas, as
quais só ele poderia solucionar. Superou-se a
face individualista que o liberalismo clássico
havia imposto à vida social até, aproximadamen-
te, a primeira guerra mundial e o Estado foi obri-
gado a abandonar a letargia que o caracteriza-
va, tendo que praticar uma intervenção mais vi-
sível na vida social1.
Porém, um núcleo conceitual que liga o Es-
tado moderno à defesa das liberdades não foi
1
Apesar da retomada de alguns lemas do libera-
lismo clássico, pela ideologia conhecida por neolibe-
ralismo, a intervenção estatal continua, e tende a con-
tinuar, sendo reconhecida como inevitável, seja na
Gustavo Ferreira Santos é Mestre em Direito pela tarefa de impor limites à atuação de forças econômi-
Universidade Federal de Santa Catarina e Procurador cas, seja como prestador de serviços públicos essen-
Judicial do Município do Recife. ciais.
Brasília a. 35 n. 140 out./dez. 1998 283
superado, pelo contrário, apenas se complexifi- Antes, porém, abordamos, de forma sucin-
cou. Somaram-se aos clássicos direitos “con- ta, a questão da natureza jurídica dos princípios
tra” a atuação estatal outros direitos a presta- constitucionais, pois os limites à atividade do
ções do Estado. legislador adiante estudados se apresentam sob
O rol dos chamados direitos fundamentais a forma de princípios.
se alargou, o que exigiu novos caminhos para
os intérpretes da Constituição, que passaram a
vê-la em sua especificidade. Nasceu uma her- 2. Status jurídico dos princípios
menêutica constitucional destacada da ativida- constitucionais
de interpretativa comum. A complexidade dos
textos constitucionais do nosso tempo, verda- A posição dos princípios na topografia cons-
deiros catálogos de princípios, exige elementos titucional é de inegável destaque. A doutrina
metodológicos próprios para a interpretação e constitucional evoluiu, e continua a evoluir, no
aplicação de suas normas. sentido de dar aos princípios um status privile-
giado, uma capacidade cada vez maior de atua-
Cabe, ainda, ressaltar a necessidade de que rem na solução dos conflitos que se apresen-
a Constituição ocupe o lugar de destaque a ela tam frente ao ordenamento jurídico.
reservado pelos estudos constitucionais con- No passado, os princípios tinham uma posi-
temporâneos. Faz-se mister a manifestação da ção de transcendência, não sendo considera-
“vontade de constituição” em todos os atores dos normas jurídicas. Eram, quando muito, refe-
sociais, elemento essencial para a verificação rências a serem manipuladas na atividade de
da tão pretendida força normativa da constitui- interpretação de alguma norma.
ção (Hesse). Sustentava-se que os princípios tinham uma
Um tema que avulta na nova realidade dos generalidade que não lhes permitia incidir dire-
estudos constitucionais, e que, ao nosso ver, tamente na realidade. Dos princípios não nas-
pede urgente atenção em nosso país, é a aferi- ceriam direitos subjetivos, que apenas surgiri-
ção dos limites que impõe a Constituição à li- am quando o princípio fosse concretizado por
berdade do legislador. algum ato normativo.
A atividade de legislar conhece alguns limi-
tes explícitos e outros limites implícitos. Seja Superou a doutrina a concepção que dife-
dando conformação às normas constitucionais, renciava princípios e normas constitucionais.
Tal entendimento constituía-se em limitação à
seja restringindo propriamente direitos, o legis- concreta aplicação da Constituição. Hoje, reco-
lador se vê limitado por parâmetros encontra- nhecem-se diferenças entre os chamados prin-
dos no texto da Constituição. No presente mo- cípios gerais do direito, de caráter meramente
mento, interessa-nos uma limitação implícita da descritivo e os princípios constitucionais posi-
atividade legislativa que entendemos ser ine- tivados, de conteúdo normativo. Nesse senti-
rente ao conceito hoje consensual de Estado. É o do, os princípios são reconhecidos como ver-
limite radicado na idéia da proibição do excesso. dadeiras normas jurídicas.
Inquestionavelmente, ao legislador apresen- As normas jurídicas se apresentam, então,
ta-se uma exigência de que, na sua atividade de sob duas formas: ou como regras, ou como prin-
concreção das normas constitucionais, busque cípios. A sua diferenciação conceitual tem ge-
reduzir os efeitos negativos que porventura seus rado polêmica, mas pode-se extrair do debate
atos possam causar aos chamados direitos fun- em torno do tema algumas proposições que
damentais. apontam no sentido da solução do problema.
Neste trabalho, partindo de uma discussão Eros Grau, sob a influência dos escritos de
sobre o grau de liberdade atribuído pela Consti- Ronald Dworkin, indica duas diferenças bási-
tuição ao legislador ordinário, procuramos cor- cas entre as categorias de normas: a) as regras
relacionar três teorias que, a despeito de terem jurídicas, não comportando exceções, são apli-
origens diversas, completam-se (às vezes cáveis de modo completo ou não são, de modo
confundem-se) na fixação de anteparos aos avan- absoluto, não se passando o mesmo com os prin-
ços do legislador no campo dos direitos fun- cípios; b) os princípios jurídicos possuem uma
damentais. Estudamos, pois, a aplicação do des- dimensão – a dimensão do peso ou importância –
vio de poder à atividade legislativa, a teoria do que não comparece nas normas jurídicas2.
due process of law (com o princípio da razoabili- 2
A ordem econômica na Constituição de 1988, p.
dade) e, por fim, o princípio da proporcionalidade. 114.
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Outro autor a teorizar sobre a diferença en- direta, enquanto os princípios carecem de con-
tre regras e princípios é o alemão Robert Alexy. cretização;
Segundo ele, as regras e os princípios se distin- c) o caráter de fundamentalidade no siste-
guem pelo grau de generalidade, mais elevado ma das fontes do direito: os princípios têm pa-
no caso dos princípios. Os princípios, segundo pel fundamental no ordenamento, devido sua
sua teoria, são mandatos de otimização, cuja posição hierárquica no sistema das fontes e sua
aplicação depende de determinadas possibili- função estruturante dentro do sistema jurídico;
dades fáticas e jurídicas3. d) a “proximidade” da idéia de direito: os
Um momento da aplicação do direito no qual princípios são “standards” juridicamente vin-
fica evidente a distinção entre regras e princípi- culantes radicados nas exigências de justiça
os é quando se verifica a colisão de direitos. (Dworkin) ou na “idéia de direito”(Larenz), en-
Quando duas ou mais regras aparentam es- quanto as regras podem ser normas vinculati-
tar em conflito, a solução é encontrada nos tra- vas com conteúdo meramente funcional;
dicionais critérios de solução de antinomias ju- e) a natureza normogenética: os princípios
rídicas. São três os critérios apresentados pela são fundamento das regras, estão na base ou
Teoria Geral do Direito para a eliminação das constituem a ratio das regras jurídicas.
antinomias: o cronológico, no qual prevalece a
norma posterior (lex posterior derrogat prio- Duas questões devem ser esclarecidas, se-
ri); o hierárquico, que faz prevalecer a norma gundo o mesmo autor, no intuito de se superar a
superior (lex superior derogat inferiori) e o da complexidade da distinção entre regras e princí-
especialidade, que constitui o predomínio da pios: 1) saber qual a função dos princípios (se
norma especial (lex especialis derrogat gene- têm função retórica ou argumentativa ou se são
rali)4. Em todos os critérios, a atividade tende a normas de conduta); 2) saber se existe só uma
eliminar as regras que não resistem ao julga- diferença de grau ou se há entre princípios e
mento, aplicando-se apenas uma regra ao caso regras jurídicas uma diferenciação qualitativa.
concreto. Quanto à primeira questão, responde o con-
sagrado constitucionalista que os princípios são
Em relação aos princípios, inobstante o re- multifuncionais. No tocante à segunda ques-
conhecimento de seu status de norma jurídica, tão, responde que os princípios se diferenciam
não é possível a utilização de tais critérios. Os qualitativamente das regras jurídicas.
princípios constitucionais não obedecem à ló- Tal diferenciação qualitativa se expressa nos
gica do tudo ou nada. seguintes aspectos: a) os princípios são nor-
Diferentemente das regras, dois ou mais prin- mas jurídicas impositivas de uma otimização,
cípios podem-se compor e incidir sobre um mes- compatíveis com vários graus de concretização,
mo fato. Ocorre que, na aplicação dos princípi- consoante os condicionalismos fáticos e jurídi-
os, procede-se uma ponderação de valores, atu- cos, enquanto as regras são normas que pres-
ando los dois princípios no caso concreto, com crevem imperativamente uma exigência, que é
pesos distintos, sem que um retire a validade do ou não é cumprida. A convivência dos princípi-
outro. os é conflitual e eles coexistem. A convivência
J.J. Gomes Canotilho5, em uma síntese con- das regras é antinômica e elas se excluem; b) os
ceitual da tendência ao reconhecimento da for- princípios permitem o balanceamento de valo-
ça normativa dos princípios, sugere alguns cri- res e de interesses consoante o seu peso e a
térios para diferenciá-los das regras: ponderação de outros princípios eventualmen-
a) o grau de abstração: os princípios são te conflitantes. As regras não deixam espaço
normas com um grau de abstração mais elevado para outra solução, pois, se a regra tem valida-
que as regras; de, deve ser cumprida na exata medida (obede-
ce à lógica do “tudo ou nada”); c) no conflito
b) o grau de determinabilidade na aplica-
entre princípios, é possível a ponderação e a
ção do caso concreto: as regras têm aplicação
harmonização. Mas, é insustentável a vali-
3
Edilsom Pereira de FARIAS, Colisão de direi- dade simultânea de regras contraditórias; d)
tos, p. 26. os princípios suscitam problemas de valida-
4
de e peso. As regras colocam apenas a ques-
Norberto BOBBIO, Teoria do ordenamento ju-
rídico, p. 91.
tão da validade6.
5 6
Direito constitucional, p. 166. Ob. Cit., p. 167.
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3. O fundamento da idéia de limite à Norberto Bobbio chamou atenção para a ra-
liberdade de conformação do legislador dical transformação na relação entre Estado e
cidadãos que o Estado Moderno operou:
As instituições modernas são alicerçadas na
idéia do equilíbrio entre atuação estatal e pre- “passou-se da prioridade dos deveres dos
servação das liberdades. A crise do Estado Li- súditos à prioridade dos direitos do cida-
beral, que sucumbiu por conta de suas próprias dão, emergindo um modo diferente de
mazelas, ensinou-nos sobre o caráter inevitável encarar a relação política, não mais pre-
e, muitas vezes, essencial da intervenção do dominantemente do ângulo do soberano,
Estado. Mas, por outro lado, as experiências e sim daquele do cidadão, em correspon-
totalitárias nos alertaram para a necessidade de dência com a afirmação da teoria indivi-
preservação dos direitos do homem, que exi- dualista da sociedade em contraposição
gem o reconhecimento do seu valor universal. à concepção organicista tradicional”8.
A face mais visível dessa nova sociedade
A idéia de limitação do Poder Público é ine- política é o conceito de Estado de Direito. Inici-
rente ao processo que redundou na criação do almente ligado à necessidade de proteger o in-
Estado Moderno, a forma de sociedade política divíduo do arbítrio estatal, tinha um conteúdo
que marca o nosso tempo. O grande meio de liberal. Em sua essência, o Estado de Direito
veiculação dessa necessidade de controle foi a veiculava o princípio da legalidade, o princípio
adoção do princípio da separação dos poderes, da tripartição dos poderes estatais e o reconhe-
que permitiu a atribuição a diferentes corpos do cimento dos direitos individuais. Evoluiu tal
exercício das três funções estatais, cada um dos conceito acompanhando a evolução do próprio
“poderes” responsável, em certa medida, pelo Direito Constitucional. Hoje, vige o conceito de
controle do outro, em um sistema de freios e Estado Democrático de Direito, abraçado pela
contrapesos. Constituição brasileira, com conteúdo mais am-
O surgimento do chamado Estado Moderno plo, anexando à noção clássica de Estado de Di-
foi resultado de um conjunto de movimentos, reito exigências democráticas que não podem ser
entre eles a reforma protestante, o renascimen- negligenciadas por um Estado Constitucional.
to e a ilustração, que entravam em choque com Uma característica do Estado de Direito se
os valores e as instituições do antigo regime. destaca, merecendo estudo à parte, em face de
Max Weber, um dos mais lúcidos analistas do sua importância para as Constituições contem-
processo de modernização, chamou tal modifi- porâneas: o sistema dos direitos fundamentais.
cação na sociedade de racionalização. Os primeiros “direitos fundamentais” reconhe-
A racionalização foi caracterizada por um cidos pelo Poder Público eram, antes de tudo,
desencantamento do mundo da vida. O funda- direitos individuais, como já referido neste tex-
mento espiritual cedeu lugar à razão. Uma razão to. Tinham objetivo de proteger o indivíduo do
que esquadrinha, calcula e, acima de tudo, nor- poder arbitrário do próprio Estado.
matiza. A racionalização foi marcada por uma
exigência crescente de eficácia, mas, também, Como se sabe, esses direitos fundamentais
por uma autonomização de esferas de valores talhados pelo liberalismo tinham por fim preser-
antes embutidas na religião, a saber: a ciência, a var uma esfera da vida ao indivíduo, deixando-a
moral e a arte7. A dominação política passou, a livre da ação do Estado. Nessa categoria de di-
partir desse momento, a ter um fundamento le- reitos estavam o direito de propriedade, a liber-
gal-racional, baseando-se as relações políticas dade de locomoção, a liberdade de imprensa etc.
na crença em normas objetivas coletivamente A concepção liberal dos direitos fundamen-
estabelecidas. tais foi superada e incluíram-se nas Constitui-
O processo histórico acima descrito promo- ções, como resultado do desenvolvimento de
veu, ainda, a autonomização do indivíduo, fren- outras exigências por parte da sociedade, direi-
te ao social, com um reconhecimento de um tos de natureza coletiva, que se valiam de uma
núcleo de direitos inatos, conforme sustentado teoria social. Rompeu-se a compreensão indivi-
inicialmente pelo revolucionário jusnaturalismo, dualista, sendo reconhecidos direitos funda-
direitos esses que aos poucos foram sendo po- mentais que cabiam ao homem não mais isola-
sitivados, exigindo proteção. damente, mas como membro de coletividades.
Passou-se, também, a considerar o indivíduo
7
Sérgio Paulo ROUANET, Mal-estar na moder-
8
nidade, p. 121. A Era dos direitos, p. 3.
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titular de direitos a prestações do Estado, pre- uma posição que vê a tarefa do legislador como
vendo as constituições direitos econômicos, totalmente livre de condicionantes. Mas, por
sociais e culturais. outro lado, não podemos tomar como verdadei-
Alguns autores falam em direitos fundamen- ra a visão segundo a qual o legislador é apenas
tais de primeira geração, os titularizados pelos um mero executor das tarefas já definidas pelo
indivíduos e oponíveis ao Estado, e direitos fun- constituinte.
damentais de segunda gerações, os direitos Não é possível, conforme magistralmente
sociais, culturais, econômicos e os titularizados demonstrado por J. J. Gomes Canotilho na sua
por coletividades. Há quem fale, como Karel tese intitulada “Constituição Dirigente e Vincu-
Vasak e Etiene-R. Mbaya, em direitos de terceira lação do Legislador”, transpor para o campo do
geração, apoiados na idéia de fraternidade ou Direito Constitucional a noção administrativis-
na de solidariedade, como o “direito ao desen- ta de discricionariedade.
volvimento” do qual fala este segundo autor9. A imprestabilidade da noção de discriciona-
Jorge Miranda indica algumas tendências riedade ocorre, primordialmente, em função da
atualmente verificadas no domínio dos direitos especificidade da posição constitucional do
fundamentais, a saber: legislador, que, pelo princípio democrático, te-
ria assegurada uma liberdade de escolha além
“a diversificação do catálogo, muito para da que se atribui ao administrador.
lá das declarações clássicas; a acentua-
ção da dimensão objectiva dos direitos, Ressalte-se, ainda, que o princípio da legali-
como princípios básicos da ordem jurídi- dade exige do administrador que, mesmo no exer-
ca, sejam eles quais forem; a considera- cício do poder discricionário, submeta-se aos
ção do homem situado, traduzida na rele- fins definidos na lei, apenas cuidando de esco-
vância dos grupos e das pessoas colecti- lher meios adequados aos fins. Já na atividade
vas e na conexão com garantias instituci- legislativa não há essa estrita vinculação aos
onais; o reconhecimento de um conteú- fins, sendo dado ao legislador a possibilidade
do positivo, inclusive nos direitos de li- de também eleger, em várias ocasiões, fins a se-
berdade; a interferência não apenas do rem buscados.
legislador mas também da Administração Aceitamos a existência de uma liberdade de
na concretização e na efetivação dos di- conformação do legislador, porém, mitigada, re-
reitos; a complexidade de processos e de conhecendo, também, que ao legislador são
técnicas de regulamentação; a produção dirigidas exigências e limites. Não esquecemos
de efeitos não apenas verticais (frente ao a advertência de J. J. Gomes Canotilho de que
Estado) mas também horizontais (em re- “a lei, no Estado de Direito Democrático-Cons-
lação a particulares); o desenvolvimen- titucional, não é um ato livre dentro da consti-
to dos meios de garantia e a sua ligação tuição; é um acto, positiva e negativamente de-
aos sistemas de fiscalização da constitu- terminado pela lei fundamental”11.
cionalidade e da legalidade”10.
Fala-se em conformação de normas consti-
A criação das leis é um dos momentos mais
delicados do exercício das funções estatais. No tucionais, quando o legislador dá contornos à
momento em que estabelece as regras a serem definição do preceito constitucional, aclarando
seguidas por todos, o legislador adentra no cam- seu sentido. Por outro lado, fala-se em verda-
po da liberdade individual, muitas vezes limi- deira restrição de direitos quando, na atividade
tando direitos, atingindo interesses. Nos depa- concretizadora, limita-se o âmbito de proteção
ramos, no curso de nossa investigação, com uma desses direitos. Suzana Toledo Barros, analisan-
questão de inegável importância: tem o legisla- do a atividade do legislador, leciona que
dor liberdade de escolha no exercício de sua “uma lei não há que ser considerada res-
atividade? Ou o seu trabalho é apenas uma exe- tritiva se, objetivando aclarar o âmbito de
cução da Constituição? proteção de um direito, venha expurgar
Não nos interessam, pela inutilidade eviden- uma conduta que a própria Constituição,
te, as respostas extremas. Não podemos aceitar por meio de uma interpretação sistemáti-
9
ca, repele”,
Cf. Paulo BONAVIDES, Curso de direito cons-
titucional, p. 480-481. 11
Constituição dirigente e vinculação do legisla-
10
Manual de direito constitucional, p. 24. dor, p. 244.
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complementando a autora que meter-nos a noções vagas, presas fáceis da sub-
“as fronteiras entre restrição de direitos e jetividade do intérprete e aplicador, tais como a
simples conformação da norma constitu- idéia de “justiça” ou a exigência de “bom sen-
cional só podem ser demarcadas por pro- so”.
cesso de interpretação, diante, pois, de Em nosso país, não há, ainda, uma tradição
uma situação concreta, constituindo a jurídica que fundamente a imposição de tais li-
primeira questão a ser dirimida em sede mitações; apesar de terem surgido, nos últimos
de controle da constitucionalidade da lei tempos, obras doutrinárias a estudar o tema,
tida como restritiva a direito fundamen- especialmente sob a inspiração de experiências
tal”12. de outros países, não avançamos muito na ma-
A Constituição não erige apenas limites téria, havendo debilidade na apreciação jurisdi-
materiais, proibindo o legislador de editar deter- cional dos limites. Comentando a teoria admi-
minados atos, as chamadas determinantes ne- nistrativista do desvio de poder adotada pelo
gativas, mas, também, estabelece ordens, diri- Conselho de Estado francês, Victor Nunes Leal
gindo a atividade legislativa, as chamadas de- ensaia uma explicação sociológica para a ques-
terminantes positivas. Este segundo modelo de tão:
norma constitucional marca profundamente as “nossa concepção da divisão de pode-
constituições programáticas ou dirigentes. res, lastreada pela tradição imperial da
O surgimento de formas de controle da cons- quase completa desproteção do indiví-
titucionalidade da omissão legislativa, além de duo, em face dos atos administrativos ile-
indicar a existência de “direitos às normas”, con- gais ou abusivos, não comportaria tão
firma que a atividade legislativa é profundamen- extensa interferência dos órgãos jurisdi-
te condicionada pela Constituição, que, em al- cionais que constituem um poder autô-
guns casos, dirige uma ordem peremptória ao nomo na atividade dos órgãos adminis-
legislador. trativos, que pertencem a outro poder”14.
Desde o século passado, a necessidade de
Põe-se, por fim, o problema da densidade limite à atuação do Estado, presente na ideolo-
das normas constitucionais. Como é evidente, gia que construiu as instituições modernas, evo-
não há uma uniformidade na configuração dos luiu qualitativamente, ultrapassando os muros
preceitos constitucionais, existindo normas com da literalidade dos clássicos direitos do homem.
grau de densidade elevado, trazendo já contor- As novas exigências passaram a manifestar-se
nos precisos, enquanto há outras que são tão na prática, como se verá a seguir, com a Supre-
genéricas que exigem a mediação do trabalho ma Corte norte-americana e o Conselho de
do legislador para terem efetividade. Estado francês encetando controles da atuação
Diz-se possuir a norma abertura quando estatal baseados no due process of law e no
carece de definições mais aprofundadas e den- desvio de poder, respectivamente. Neste sécu-
sidade quando já traz os elementos necessários lo, na Alemanha, desenvolveu-se outro princí-
à sua aplicação. É no magistério do já citado pio com a mesma preocupação: o princípio da
Professor J. J. Gomes Canotilho que encontra- proporcionalidade.
mos de forma clara esses conceitos:
“a abertura de uma norma constitucional
significa, sob o ponto de vista metódico, 4. Instrumentos jurídicos de limitação à
que ela comporta uma delegação relativa liberdade do legislador
nos órgãos concretizadores; a densida-
de, por sua vez, aponta para a maior pro- 4.1. O desvio de poder legislativo
ximidade da norma constitucional relati-
vamente aos seus efeitos e condições de A teoria do desvio de poder origina-se na
aplicação”13. França. Nasce a partir de postulados teóricos
A limitação do poder do legislador tem que do Direito Administrativo. O contencioso admi-
ser operada por institutos jurídicos que se apre- nistrativo no Conselho de Estado francês, a
sentem como critérios objetivos, evitando re- partir da primeira metade do século passado,
avançou sobre os chamados “atos de império”,
12
O princípio da proporcionalidade e o controle que antes não eram passíveis de controle. Cons-
de constitucionalidade das leis restritivas de direitos
fundamentais, p. 151. 14
Apud José CRETELLA JÚNIOR, Desvio de
13
Direito constitucional, p. 189. poder na administração pública, p. 30.
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tatava-se, naquele momento, que haviam ele- sua competência mas em vista de fim di-
mentos regrados mesmo nos atos discricionári- verso daquele para o qual o ato poderia
os, elementos esses que poderiam ser objeto de legalmente ser cumprido”17.
fiscalização. Apesar das evidentes diferenças entre a ati-
Em uma mudança na jurisprudência do Con- vidade administrativa e a atividade legiferante,
selho de Estado, surgiu um recurso chamado de posteriormente houve a transposição da idéia
“excesso de poder” para controlar os atos de do desvio de poder para o campo do controle
autoridades públicas em alguns aspectos. No dos atos legislativos. Caio Tácito nos ensina
início, o recurso controlava o vício de incompe- que a idéia de aplicar a teoria do desvio de
tência do órgão de onde emanava o ato, pas- poder à análise constitucional foi pioneiramen-
sando, em pouco tempo, a alcançar, também, o te sustentada por Santi Romano18.
vício de forma. Eduardo García de Enterría afir- O que fundamenta a migração do direito ad-
ma ter sido a técnica do desvio de poder ministrativo para o campo do direito constituci-
“a terceira via de penetração na esfera onal é a constatação de que, tal qual a atividade
isenta da discricionariedade: a liberda- administrativa, a atividade legiferante é finalís-
de de decisão conferida ao órgão não o tica, havendo, portanto, a possibilidade de se
autoriza a afastar-se do fim em conside- controlar o ato legislativo, cotejando a sua fina-
ração ao qual a potestade se outorgou”15. lidade com a regra de competência que atribuiu
A técnica do desvio de poder serve como o poder ao órgão legislativo e outras normas
critério a controlar o chamado mérito do ato ad- constitucionais pertinentes à matéria.
ministrativo, que se apresenta quando há a uti- Na França, não avançou muito sobre a ma-
lização do poder discricionário pelo administra- téria, em razão da especificidade do controle
dor. Segundo Seabra Fagundes, o mérito do ato francês da constitucionalidade das leis, que, por
administrativo “se relaciona com a intimidade ser um controle político e não judicial, limitou a
do ato administrativo, concerne ao seu valor aplicação da teoria do desvio de poder sobre a
intrínseco, à sua valorização sob critérios com- atividade do legislador.
parativos”. O mesmo autor complementa:
No Brasil, registra-se, já há algum tempo, a
“ao ângulo do merecimento, não se diz aplicação pelo Poder Judiciário da teoria do des-
que o ato é ilegal ou legal, senão que é vio de poder legislativo em sede de controle de
ou que não é o que devia ser, que é bom constitucionalidade das leis.
ou mau, que é pior ou melhor do que Em 1951, o Ministro Orozimbo Nonato, do
outro. E por isto é que os administrativis- Supremo Tribunal Federal, sustentou que, com
tas o conceituam, uniformemente, como base na caracterização do desvio de poder, era
um aspecto do ato administrativo, relati- inconstitucional uma lei que estabelecia, na ci-
vo à conveniência, à oportunidade, à uti- dade de Santos-SP, imposto de licença sobre as
lidade intrínseca do ato, à sua justiça, à cabines de banho, pois, segundo seu entendi-
finalidade, aos princípios da boa gestão, mento, “o poder de taxar não pode chegar à des-
à obtenção dos desígnios genéricos e medida do poder de destruir”19.
específicos, inspiradores da atividade Em decisão de agosto de 1967, cujo relator
estatal”16. era o Ministro Prado Kelly, o Supremo conside-
Tal postulado teórico, portanto, sustenta rou inconstitucional dispositivo que buscava,
que não devem ser reputados válidos os atos no bojo de uma lei de organização judiciária,
beneficiar apenas um serventuário, sob o argu-
administrativos editados com finalidade distin- mento de que não obedecia ao escopo do inte-
ta daquela estabelecida pela regra de compe- resse público20.
tência que atribui o poder à autoridade. Fulmina O principal problema da aplicação da teoria
os atos editados com finalidade outra que não do desvio do poder legislativo está na dificul-
aquela que aparenta buscar.
Na definição de André de Laubadère, 17
Apud Celso Antônio Bandeira de MELLO, Dis-
“há desvio de poder quando uma au- cricionariedade e controle jurisdicional, p. 56.
toridade administrativa cumpre um ato de 18
Desvio de poder legislativo, Revista Trimestral
15 de Direito Público, n. 1: 67.
Curso de direito administrativo, p. 400.
19
16
Apud Maria Sylvia Zanella DI PIETRO, Direi- Cf. Suzana Toledo BARROS, p. 99.
20
to Administrativo, p. 180. Cf. Caio TÁCITO, ob.cit., p. 66.
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dade, já anteriormente referida, de se aplicar ao da fase do desenvolvimento do devido proces-
Direito Constitucional conceitos próprios do so legal, que persiste até 193522.
Direito Administrativo, como por exemplo a no- O controle da “razoabilidade” das normas
ção de discricionariedade, essencial a esta era feito sob o pretexto de proteger os direitos
teoria. individuais. Visava, principalmente, a defesa do
A atividade do legislador não está tão vin- direito de propriedade e da liberdade contratu-
culada a fins como a atividade do administra- al, numa clara indicação de que a ideologia eco-
dor, sendo que, em muitos momentos, ao legis- nômica que guiava as decisões era o liberalis-
lador se apresentam apenas os “fins últimos” mo, do laissez-faire laissez-passer.
definidos pela Constituição, não havendo, para
o ato concreto a ser editado, uma finalidade es- Nesse período histórico, em que o mundo
pecífica definida pelo Constituinte, sendo-lhe conhecia a emergência da legislação social, o
dado definir os fins. governo norte-americano teve dificuldade de
Em alguns casos, não se caracterizará o des- estabelecer certos direitos trabalhistas, em vir-
vio de poder, apesar de ser possível notar-se a tude da resistência da Suprema Corte, que invo-
irrazoabilidade ou a desproporcionalidade da cava o princípio da razoabilidade na defesa da
medida. Isso ocorrerá quando o legislador, per- liberdade de contrato e declarava a inconstitu-
seguindo o fim definido pelo Constituinte, to- cionalidade de medidas como a que estabelecia
mar medida de eficácia duvidosa ou que preju- uma jornada máxima de trabalho. Várias deci-
dique direito cuja proteção se afigure, no caso sões reconheciam a inconstitucionalidade de
concreto, mais importante do que o direito que atos normativos sob o fundamento de violação
a medida legislativa visa proteger. ao conteúdo substancial da cláusula do devido
processo legal, tendendo, a maioria das deci-
4.2. O princípio da razoabilidade sões, a um subjetivismo, o que rendeu ensejo
às mais diversas críticas23.
O princípio da razoabilidade tem suas ori-
gens ligadas ao desenvolvimento da doutrina Alguns autores referem-se a esse período
do due process of law, de matriz anglo-saxã. como sendo o do “governo dos juízes”, em re-
Apesar de sua origem remeter-se a preceitos da ferência ao grande número de decisões atinen-
Magna Carta, de 1215, foi a práxis constitucio- tes ao mérito de decisões de governo, decisões
nal da Suprema Corte norte-americana que deli- essas, como já falado, baseadas em critérios
neou o chamado devido processo legal e com subjetivos.
ele o princípio da razoabilidade. A política do New Deal, do presidente Roo-
A evolução de uma noção meramente pro- sevelt, foi decisiva na superação dessa fase his-
cedimental do due process of law, que marcou o tórica, acabando por consolidar mudanças es-
seu nascedouro, para uma noção substantiva, truturais, exigidas pelo capitalismo de então,
hoje reconhecida, não foi tranqüila. Essa traje- consagrando o intervencionismo estatal e o
tória da jurisprudência da Suprema Corte em tor- chamado Estado do Bem-Estar24.
no da cláusula do devido processo legal pode Uma terceira fase na história da aplicação da
ser dividida em três fases nitidamente distin- doutrina do due process of law pela Suprema
tas21. Corte dos Estados Unidos, que vem de 1937
Uma primeira fase, que vai de 1835 a 1890,
foi caracterizada por sua natureza adjetiva, pro- 22
“Após alguns ensaios de aplicação do substan-
cessual. Reconhecia-se, nessa fase, o direito a tive due process, a Corte finalmente invalidou, por
um procedimento regular. Consagraram-se as inconstitucional, uma lei estadual que impedia que os
garantias processuais do contraditório e da residentes de Louisiana contratassem seguros de seus
ampla defesa. bens com empresas de fora do Estado. A decisão que
melhor simbolizou esse período, todavia, foi proferi-
No final do século passado, nota-se a extra- da em Lochner vs. New York, onde, em nome da
polação do campo processual para uma prática liberdade de contrato, considerou-se inconstitucional
de verificação dos fundamentos de justiça na uma lei de Nova York que limitava a jornada de traba-
decisão do legislador. Inaugura-se uma segun- lho dos padeiros”. Luís Roberto BARROSO, Inter-
pretação e Aplicação da Constituição, p. 201.
21
Aqui utilizamos os marcos temporais apresen- 23
Cfr. Suzana de Toledo BARROS. ob. cit., p.
tados por Raquel Denize STUM, Princípio da pro- 58-61.
porcionalidade no direito constitucional brasileiro,
24
p. 153. Raquel Denize STUM, Ob. Cit., p. 157.
290 Revista de Informação Legislativa
aos dias atuais, é caracterizada pela restrição do não se tenha projetado aqui a noção substanti-
seu uso a contextos não econômicos, o que in- va do instituto.
clui a liberdade de expressão, a liberdade de Apesar da forte influência norte-americana
culto, o direito à imagem, o direito à privacida- na formação de nosso direito constitucional,
de, entre outros direitos. especialmente por meio dos institutos do fede-
Trata, pois, o princípio da razoabilidade de ralismo e do controle judicial de controle da cons-
uma exigência dirigida ao legislador no sentido titucionalidade das leis, não avançamos muito
de que, ao limitar direitos individuais, seja pro- no entendimento dessa faceta material da cláu-
cedida uma verificação da legitimidade dos fins sula do devido processo legal, diferentemente
da medida adotada. Com isso, abre-se ao Poder da Argentina, que já consolidou o princípio da
Judiciário a possibilidade de examinar o mérito razoabilidade em seu sistema constitucional.
do ato legislativo, procedendo um julgamento O princípio da razoabilidade é reconhecido
valorativo, com o intuito declarado de preser- pelos doutrinadores e pela jurisprudência naci-
var, o quanto possível, as liberdades individu- onais. No campo doutrinário, a mais freqüente
ais franqueadas pela Constituição. referência está no Direito Administrativo, em que
Há uma dificuldade concreta em definir a ra- o princípio tem a função de balizar a atividade
zoabilidade, que vem do caráter amplo do due discricionária do administrador. Weida Zanca-
process. A própria Suprema Corte dos Estados ner, administrativista paulista, alerta-nos que o
Unidos, em mais de uma oportunidade, reco- princípio da razoabilidade “exige, simplesmen-
nheceu essa dificuldade. No julgamento do caso te, que a Administração Pública no exercício da
Solesbee vs. Balkcon, o Juiz Felix Frankfurter atuação discricionária seja racional, equilibra-
afirmou que “due process of law é aquilo que da, sensata e de modo compatível com o bem
diz respeito às mais profundas noções do que é jurídico que ela pretende curar”27.
imparcial, reto e justo”25. O princípio da razoabilidade, em sua aplica-
Em um esforço teórico de sistematização da ção à atividade administrativa, tem, segundo
matéria, Luís Roberto Barroso apresentou uma Celso Antônio Bandeira de Mello, fundamento
definição bastante rica, segundo a qual nos mesmos preceitos constitucionais que dão
base aos princípios da legalidade e da finalida-
“o princípio da razoabilidade é um parâ- de, ou seja, os arts. 5º, II e LXIX, 37 e 84 da
metro de valoração dos atos do Poder nossa Carta Magna28.
Público para aferir se eles estão informa-
dos pelo valor superior inerente a todo Na jurisprudência, apesar de mais freqüen-
ordenamento jurídico: a justiça”. temente tratar de temas administrativos, há de-
Afirmando que tal princípio é mais fácil de ser cisões que se referem ao princípio no exercício
sentido do que conceituado, asseverou que ele do controle da constitucionalidade das leis.
“se dilui em um conjunto de proposições que A principal crítica dirigida ao uso do princí-
não o libertam de uma dimensão excessivamen- pio da razoabilidade associa o substantive due
te subjetiva”. Por fim, o referido constituciona- process of law ao chamado “governo dos juí-
lista arremata: zes”, alertando para a possível reedição dos
fatos que marcaram um período da história judi-
“é razoável o que seja conforme a razão, cial dos Estados Unidos de recordação não
supondo equilíbrio, moderação e harmo- muito boa.
nia; o que não seja arbitrário ou capri- Mas, o subjetivismo pode ser substituído, e
choso; o que corresponda ao senso co- o tem sido pelos autores que tratam do proble-
mum, aos valores vigentes em dado mo- ma, por uma aplicação cuidadosa das noções
mento ou lugar”26. de equilíbrio e moderação. Não é tarefa difícil es-
No Brasil, a Constituição adota a cláusula tabelecer um conceito comum de “ato arbitrário”
do devido processo legal, enunciada entre os a servir de parâmetro negativo a ser imposto ao
direitos fundamentais. Sua principal aplicação Estado. Mas, por outro lado, só a reiterada aplica-
prática, porém, tem sido no campo do direito ção do critério pode dar ao conceito as caracterís-
processual. Isso não significa, entretanto, que ticas de objetividade de que ele necessita.
25 27
Apud Adhemar Ferreira MACIEL, Due pro- Razoabilidade e moralidade na Constituição de
cess of law, Revista de Informação Legislativa. n. 1988, Revista Trimestral de Direito Público, n. 2:
124: 97. 209.
26 28
ob. cit., p. 204. Ob.Cit., p. 55.
Brasília a. 35 n. 140 out./dez. 1998 291
4.3. O princípio da proporcionalidade ou da A aplicação do princípio da proporcionali-
proibição do excesso dade, como forma de averiguar a constituciona-
lidade ou não de determinada medida legislati-
O princípio da proporcionalidade, também va, exige que sejam manipulados os três sub-
conhecido por princípio da proibição do exces- princípios sucessivamente, como um verdadei-
so, manifestou-se primeiramente, ainda sem a ro “teste” da proporcionalidade entre o meio
forma hoje conhecida, na Suíça29. Apesar disso, escolhido pelo legislador e o fim que alega bus-
esse princípio tem no direito constitucional ale- car.
mão o seu principal espaço de aplicação. Sua O princípio da adequação é o primeiro pas-
noção mais aceita na atualidade foi construída a so na aferição da constitucionalidade da lei frente
partir de indicadores formulados pela jurispru- ao princípio da proporcionalidade. Indaga tal
dência do Tribunal Constitucional Federal ale- subprincípio se a medida é adequada à obten-
mão. ção do fim que o legislador pretende atingir.
No século passado, já eram registradas, na O segundo passo é a aplicação do princípio
Alemanha, as idéias que baseariam o entendi- da necessidade. Nele reside a exigência de que
mento hoje existente de proporcionalidade. Je- o legislador não pode tomar medida restritiva
llinek, em 1791, advertia que “o Estado somente de direito fundamental se existem outras medi-
pode limitar com legitimidade a liberdade do in- das menos gravosas que podem ser adotadas.
divíduo na medida em que isso for necessário à Havendo, assim, meio mais idôneo para a con-
liberdade e à segurança de todos”30. secução do fim pretendido, não se justifica a
Porém, somente neste século, no segundo adoção da medida restritiva.
pós-guerra, é que o princípio da proporcionali- Nesse momento da aplicação do princípio
dade ganha força, com a sua adoção pelo Tribu- da proporcionalidade, o juiz deve indicar qual é
nal Constitucional Federal alemão. o meio mais adequado ao fim. Na lição de Ra-
A experiência do regime implantado pelo quel Denize Stumm,
Partido Nacional-Socialista mostrou não ser “a opção feita pelo legislador ou o execu-
suficiente a previsão de um complexo catálogo tivo deve ser passível de prova no sen-
de direitos fundamentais em uma Carta Política, tido de ter sido a melhor e única possibi-
como o que havia sido editado na Constituição lidade viável para a obtenção de certos
de Weimar. fins e de menor custo ao indivíduo”32.
Por fim, há o princípio da proporcionalidade
Após um período de certa indefinição con- em sentido estrito, que cuida da ponderação
ceitual, a referida Corte estabeleceu, em decisão entre direitos, bens ou interesses. Em via de re-
de março de 1971, o seguinte standard: gra, uma medida legislativa visa proteger deter-
“o meio empregado pelo legislador deve minados direitos, bens ou interesses. Ocorre que,
ser adequado e necessário para alcançar ao incidir na realidade, a medida, por via oblí-
o objetivo procurado. O meio é adequa- qua, acaba por atingir outros direitos, bens ou
do quando com seu auxílio se pode al- interesses constitucionalmente protegidos, li-
cançar o resultado desejado; é necessá- mitando-os. Apresenta-se, nesse caso, uma co-
rio, quando o legislador não poderia ter lisão de direitos, que se resolve pela pondera-
escolhido um outro meio, igualmente ção de valores. Caso seja constatada a prece-
eficaz, mas que não limitasse ou limitasse dência, no caso concreto, dos direitos a serem
de maneira menos sensível o direito fun- limitados, não deve prevalecer a medida, por
damental31”. desproporcional, devendo ser declarada a sua
Com o tempo, a jurisprudência iria evoluir inconstitucionalidade.
para o entendimento segundo o qual o princí- Suzana Toledo Barros afirma, para a clarifi-
pio da proporcionalidade tem uma estrutura cação dos conceitos, que
complexa, sendo ele formado por três subprin- “a diferença básica entre o princípio da
cípios, a saber: o princípio da adequação, o prin- necessidade e o princípio da proporcio-
cípio da necessidade e o princípio da proporci- nalidade em sentido estrito está, portan-
onalidade em sentido estrito. to, no fato de que o primeiro cuida de
uma otimização com relação a possibili-
29
Cfr. Paulo BONAVIDES, ob.cit., p. 332. dades fáticas, enquanto este envolve
30
Idem, p. 328.
31 32
Idem, p. 330. Ob.Cit, p. 79.
292 Revista de Informação Legislativa
apenas a otimização de possibilidades proporcionalidade. Apenas constatamos que,
jurídicas”33. apesar de já introduzido em nosso meio, neces-
A “sede material” do princípio da proporci- sita ser tratado com atenção pela doutrina e pela
onalidade está nos direitos fundamentais, que jurisprudência para, em conformidade com nos-
clamam por uma proteção efetiva, e no conceito so sistema constitucional, conferir-se a tal prin-
de Estado de Direito. Assim, conclui-se que, na cípio uma feição mais concreta que lhe dê efeti-
aplicação da nossa Carta Política, podemos in- vas condições de aplicação.
vocar o princípio da proporcionalidade, por fun- Diversos países, sob influência do consti-
dar-se tal princípio em institutos por ela adota- tucionalismo tedesco, já conhecem e adotam o
dos. princípio da proporcionalidade como princípio
Na jurisdição constitucional em nosso país, de direito positivo constitucional, destacando-
não houve, ainda, um desenvolvimento do con- se, neste rol, Portugal e Espanha.
ceito de proporcionalidade a ensejar uma apli- Consideramos que, entre os três critérios
cação tão ampla como a que esse princípio co- aqui estudados, o princípio da proporcionalida-
nhece no direito alemão. Apesar disso, já exis- de é o que melhor cumpre a tarefa de limitar a
tem decisões referindo-se ao princípio quando liberdade de conformação do legislador.
declara o Supremo a inconstitucionalidade de O princípio da proporcionalidade, com os
dispositivo legal. seus subprincípios, mostra-se compatível com
Ainda se verifica, nessas decisões, uma cer- o conceito de Robert Alexy, já citado neste tra-
ta confusão, às vezes uma identificação com- balho, segundo o qual os princípios são man-
pleta, com o princípio da razoabilidade. Em deci- datos de otimização, pois o critério da proporci-
são de 1993, cujo relator foi o Ministro Sepúlve- onalidade auxilia no momento em que o intér-
da Pertence, o Supremo Tribunal Federal decla- prete deve aquilatar o alcance da norma enunci-
rou a inconstitucionalidade de lei do Estado do ada nos princípios. Assim, é grande a sua im-
Paraná, sob a alegação de ofensa ao princípio portância na interpretação especificamente
da “proporcionalidade e razoabilidade das leis”. constitucional34.
Vejamos a redação da ementa:
Sobre a relevância do princípio da propor-
Ementa – Gás liquefeito de petróleo: cionalidade, Paulo Bonavides afirma que a sua
lei estadual que determina a pesagem de aplicação ao Direito Constitucional é
botijões entregues ou recebidos para
substituição a vista do consumidor, com “tão revolucionária e tão importante quan-
pagamento imediato de eventual diferen- to a da Tópica há algumas décadas na
ça a menor: argüição de inconstituciona- esfera da Teoria do Direito e dos méto-
lidade fundada nos arts. 22, IV e VI (ener- dos interpretativos, graças a ela, larga-
gia e metrologia), 24 e paras., 25 e par. 2, mente renovados e reavaliados”35.
238, além de violação ao princípio de pro-
porcionalidade e razoabilidade das leis
restritivas de direitos: plausibilidade jurí- 5. Conclusões
dica da argüição que aconselha a sus- 1. A idéia de limitação do poder é inerente
pensão cautelar da lei impugnada, a fim ao Estado Moderno, especialmente à versão
de evitar danos irreparáveis a economia
mais atual de Estado Democrático de Direito,
do setor, no caso de vir a declarar-se a
inconstitucionalidade: liminar deferida” justificando-se positivamente a imposição, ao
(Reqte: Confederação Nacional do Co- legislador, de exigências quanto ao equilíbrio
mércio. Reqdos: Governador do Estado entre meios e fins no exercício de suas funções.
do Paraná e Assembléia Legislativa do 2. Os princípios constitucionais se apresen-
Estado do Paraná. tam como normas juridicamente vinculantes,
Como se nota, não há, ainda, um grau de sendo mandatos de otimização (Alexy). As Cons-
sistematização a permitir que, objetivamente, tituições contemporâneas são verdadeiros ca-
conheça-se o alcance do princípio. Não quere- tálogos de princípios, sendo essa a forma como
mos, com isso, pregar a transposição acrítica ao
direito nacional da doutrina germânica reco- 34
Cf. Inocêncio Mártires COELHO, Interpreta-
nhecedora dos subprincípios do princípio da ção constitucional, e Márcia Haydée Porto de CAR-
VALHO, Hermenêutica constitucional.
33 35
Ob.Cit., p. 81. Ob.Cit. p.320.
Brasília a. 35 n. 140 out./dez. 1998 293
_____________
se apresenta, no mundo jurídico, a maioria dos . Constituição dirigente e vinculação do
direitos fundamentais. legislador. Coimbra: Coimbra, 1994.
3. A teoria do desvio de poder se aplica à CANOTILHO, J. J. Gomes & MOREIRA, Vital.
atividade legislativa que é, assim como a admi- Fundamentos da constituição. Coimbra: Coim-
nistrativa, finalística, mas enfrenta problemas bra, 1991.
práticos em virtude da imprestabilidade para o COELHO, Inocêncio Mártires. Interpretação Cons-
direito constitucional de alguns conceitos pró- titucional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris,
prios do direito administrativo, fundamentais 1997.
para a noção de desvio de poder, como, por exem- CARVALHO, Márcia Haydée Porto de. Hermenêu-
tica constitucional. Florianópolis: Obra Jurídica,
plo, o conceito de discricionariedade. 1997.
4. O princípio da razoabilidade pode ser de-
CRETELLA JÚNIOR, José. O “desvio de poder”
duzido do texto da Constituição brasileira, que na administração pública. 4ª. Ed. Rio de Janei-
enuncia a cláusula do due processo of law, ne- ro: Forense, 1997.
cessitando, porém, de definições mais claras a DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito adminis-
respeito do seu conteúdo, pois a análise entre trativo. São Paulo: Atlas, 1995.
meios e fins fundada em uma noção de justiça
pode redundar em decisões judiciais subjetiva- ENTERRÍA, Eduardo Garcia de & FERNÁNDEZ,
Tomás-Ramón. Curso de direito administrati-
mente marcadas pelo aplicador da Constituição, vo. Trad. Arnaldo Setti. São Paulo: RT, 1990.
sendo a jurisprudência da Suprema Corte norte-
FARIAS, Edilson Pereira de. Colisão de Direitos.
americana, especialmente na fase atual que apli- Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1996.
ca o princípio da razoabilidade a contextos não
econômicos, uma importante fonte inspiradora. FERNÁNDEZ, Tomás-Ramón & ENTERRÍA,
5. O princípio da proporcionalidade, em vir- Eduardo Garcia de. Curso de direito adminis-
tude do grau de objetividade alcançado na dou- trativo. Trad. Arnaldo Setti. São Paulo: RT, 1990.
trina e na prática da Corte Constitucional da GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Cons-
tituição de 1988. 2ª Ed. São Paulo: RT, 1991.
Alemanha, é o instrumento, entre os referidos
neste texto, que mais se adequa às necessida- HESSE, Konrad. Escritos de derecho constitucional.
des constatadas de limitação da liberdade do Trad. Pedro Cruz Villalón. Madri: Centro de
legislador. Ainda avulta a sua importância como Estúdios Constitucionales, 1983.
cânone da interpretação constitucional dos prin- MACIEL, Adhemar Ferreira. Due process of law.
cípios, entendidos como mandatos de otimiza- Revista de informação legislativa. Brasília, v. 124,
ção, pois seus subprincípios da necessidade e p. 95-100, Out./dez. 1994.
da adequação “testam” as circunstâncias de fato MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de di-
reito administrativo. 4ª Ed. São Paulo: Malhei-
e de direito às quais se remetem os princípios. ros, 1993.
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294 Revista de Informação Legislativa

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