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É Cristo que passa, A vocação cristã, 1

Inicia-se o ano litúrgico, e o Intróito da Missa propõe-nos uma consideração intimamente


1 relacionada com o princípio da nossa vida cristã: a vocação que recebemos. Vias tuas,
Domine, demonstra mihi, et semitas tuas edoce me : mostra-me, Senhor, os teus caminhos
e indica-me as tuas veredas. Pedimos ao Senhor que nos guie, que nos deixe ver seus
passos, para que possamos caminhar para a plenitude dos seus mandamentos, que é a
caridade.

Acredito que vós e eu, ao pensarmos nas circunstâncias que acompanharam a nossa
decisão de nos esforçarmos por viver integramente a fé, daremos muitas graças ao Senhor
e teremos a convicção sincera - sem falsas humildades - de que não houve nisso mérito
algum da nossa parte. Em geral, aprendemos a invocar Deus desde a infância, dos lábios
de pais cristãos; mais adiante, professores, companheiros e conhecidos nos ajudaram de
mil maneiras a não perder Jesus Cristo de vista.

Um dia - não quero generalizar; abre teu coração ao Senhor e conta-lhe a tua história -,
talvez um amigo, um simples cristão igual a ti, te fez descobrir um panorama profundo e
novo, e, ao mesmo tempo, antigo como o Evangelho. Sugeriu-te a possibilidade de te
empenhares seriamente em seguir Cristo, em ser apóstolo de apóstolos. Talvez tenhas
perdido então a tranqüilidade e não a tenhas recuperado, convertida em paz, enquanto
livremente, porque te apeteceu - que é a razão mais sobrenatural -, não respondeste sim a
Deus. E veio a alegria, forte, constante, que só desaparece quando te afastas dEle.

Não me agrada falar de escolhidos nem de privilegiados. Mas é Cristo quem fala, quem
escolhe. É a linguagem da Escritura: Elegit nos in ipso ante mundi constitutionem - diz
São Paulo - ut essemus sancti. Escolheu-nos antes da criação do mundo, para que sejamos
santos. Eu sei que isto não te enche de orgulho, nem te faz sentir-te superior aos outros
homens. Essa escolha, raiz da chamada, deve ser a base da tua humildade. Levanta-se por
acaso um monumento aos pincéis do grande pintor? Serviram para plasmar obras primas,
mas o mérito é do artista. Nós, cristãos, somos apenas instrumentos do Criador do mundo,
do Redentor de todos os homens.

É Cristo que passa, A vocação cristã, 2

Anima-me considerar um precedente narrado passo a passo nas páginas do Evangelho: a


2 vocação dos primeiros Doze. Vamos meditá-la devagar, pedindo a essas santas
testemunhas do Senhor que nos ensinem a seguir Cristo como elas o fizeram.

Aqueles primeiros apóstolos - que me inspiram grande devoção e carinho - eram bem
pouca coisa, segundo os critérios humanos. Quanto à posição social, com exceção de

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Mateus - que certamente ganhava bem a vida e que deixou tudo quando Jesus lho pediu -,
eram pescadores: viviam do dia a dia, labutando até de noite para poderem conseguir o
seu sustento.

Mas a posição social é o que menos importa. Não eram cultos, nem sequer muito
inteligentes, pelo menos no que se refere às realidades sobrenaturais. Até os exemplos e
as comparações mais simples eram para eles incompreensíveis, e recorriam ao Mestre:
Domine, edissere nobis parabolam , Senhor, explica-nos a parábola. Quando Jesus,
servindo-se de uma imagem, alude ao fermento dos fariseus, imaginam que os está
recriminando por não terem comprado pão.

Pobres, ignorantes. E nem sequer simples, abertos. Dentro das suas limitações, eram
ambiciosos. Discutem muitas vezes sobre qual deles será o maior quando, segundo a sua
mentalidade, Cristo instaurar na terra o reino definitivo de Israel. Discutem e exaltam-se
durante esse momento sublime em que Jesus está prestes a imolar-se pela humanidade: na
intimidade do Cenáculo.

Fé, pouca. O próprio Jesus Cristo o diz. Viram-no ressuscitar mortos, curar toda a espécie
de doenças, multiplicar o pão e os peixes, acalmar tempestades, expulsar demônios. E é
São Pedro, escolhido como cabeça, o único que sabe responder prontamente: Tu és o
Cristo, o Filho de Deus vivo. Mas é uma fé que ele interpreta à sua maneira, porque se
atreve a enfrentar Cristo Jesus, para que não se entregue em redenção pelos homens. E
Jesus tem que lhe responder: Retira-te de mim, Satanás, que me serves de escândalo,
porque não tens a sabedoria das coisas de Deus, mas das coisas dos homens. Pedro
raciocinava humanamente, comenta São João Crisóstomo, e concluía que tudo aquilo - a
Paixão e a Morte - era indigno de Cristo, reprovável. Por isso Jesus repreende-o e
diz-lhe: não, sofrer não é coisa indigna de mim; tu pensas assim porque raciocinas com
idéias carnais, humanas.

Mas será que aqueles homens de pouca fé sobressaíam talvez pelo seu amor a Cristo? Não
há dúvida de que o amavam, pelo menos de palavra. Em certas ocasiões, deixam-se
arrebatar pelo entusiasmo: Vamos nós também e morramos com Ele. Mas, na hora da
verdade, todos fogem, exceto João, que verdadeiramente amava com obras. Só este
adolescente, o mais jovem dos Apóstolos, permanece junto da Cruz. Os outros não
sentiam esse amor tão forte quanto a morte.

Estes eram os Discípulos escolhidos pelo Senhor; assim os escolhe Cristo; assim se
comportam antes de que, cheios do Espírito Santo, se convertam em colunas da Igreja.
São homens comuns, com defeitos, com fraquezas, com a palavra mais fácil que as obras.
E, entretanto, Jesus chama-os para fazer deles pescadores de homens, co-redentores,
administradores da graça de Deus.

É Cristo que passa, A vocação cristã, 3

Conosco aconteceu algo de semelhante. Sem grande dificuldade, poderíamos encontrar na


3 nossa família, entre os nossos amigos e companheiros - para não me referir ao imenso
panorama do mundo -, tantas outras pessoas mais dignas que nós de receberem a chamada
de Cristo. Mais simples, mais sábias, mais influentes, mais importantes, mais agradecidas,

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mais generosas.

Eu, ao pensar nestes pontos, sinto-me envergonhado. Mas percebo também que a nossa
lógica humana não serve para explicar as realidades da graça. Deus costuma procurar
instrumentos fracos, para que se perceba claramente que a obra é dEle. São Paulo evoca
com estremecimento a sua vocação: E por último, depois de todos, foi também visto por
mim, como por um aborto. Porque eu sou o mínimo dos Apóstolos, indigno de ser
chamado Apóstolo porque persegui a Igreja de Deus. Assim escreve Saulo de Tarso,
homem de uma personalidade e um vigor que a história nada mais fez do que agigantar.

Fomos chamados sem mérito algum da nossa parte, dizia: porque na base da vocação
encontra-se o conhecimento da nossa miséria, a consciência de que as luzes que iluminam
a alma - a fé -, o amor com que amamos - a caridade - e o desejo que nos sustém - a
esperança -, são dons gratuitos de Deus. Por isso, não crescer em humildade significa
perder de vista o propósito da eleição divina: ut essemus sancti, a santidade pessoal.

E agora, partindo dessa humildade, podemos compreender toda a maravilha da chamada


divina. A mão de Cristo colheu-nos de um trigal: o semeador aperta em sua mão chagada
o punhado de trigo. O sangue de Cristo banha a semente, empapa-a. Depois, o Senhor
lança ao ar esse trigo, para que, morrendo, seja vida e, afundando-se na terra, seja capaz
de multiplicar-se em espigas de ouro.

É Cristo que passa, A vocação cristã, 4

A Epístola da Missa lembra-nos que temos que assumir esta responsabilidade de


4 apóstolos com um espírito novo, cheios de animo, despertos. Já é hora de despertarmos
do sono, pois estamos mais perto da nossa salvação do que quando recebemos a fé. A
noite avança e o dia aproxima-se. Deixemos, pois, as obras das trevas, e revistamo-nos
das armas da luz.

Dir-me-eis que não é fácil, e não vos faltará razão. Os inimigos do homem, que são os
inimigos da sua santidade, tentam impedir essa vida nova, esse revestir-nos do espírito de
Cristo. Não encontro melhor enumeração dos obstáculos à fidelidade cristã do que a que
estabelece São João: concupiscentia carnis, concupiscentia oculorum et superbia vitae;
tudo o que há no mundo é concupiscência da carne, concupiscência dos olhos e soberba
da vida.

É Cristo que passa, A vocação cristã, 5

A concupiscência da carne não é apenas o impulso desordenado dos sentidos em geral,


5 nem o apetite sexual, que deve ser ordenado e em si não é mau, porque é uma nobre
realidade humana santificável. Por isso, nunca falo de impureza, mas de pureza, já que a
todos se dirigem as palavras de Cristo: Bem-aventurados os limpos de coração, porque
verão a Deus. Por vocação divina, uns terão que viver essa pureza no matrimônio; outros,
renunciando aos amores humanos, para corresponderem única e apaixonadamente ao
amor de Deus. Mas nem uns nem outros escravos da sensualidade, porém senhores do seu

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corpo e do seu coração, para poderem dá-los sacrificadamente aos outros.

Ao tratar da virtude da pureza, costumo acrescentar o qualificativo de santa. A pureza


cristã, a santa pureza, não é o orgulho de nos sentirmos puros, não contaminados. É saber
que temos os pés de barro, ainda que a graça de Deus nos livre dia a dia das ciladas do
inimigo. Considero uma deformação do cristianismo a insistência com que certas pessoas
escrevem ou pregam quase exclusivamente sobre esta matéria, esquecendo outras virtudes
que são capitais para o cristão e, em geral, para a convivência entre os homens.

A santa pureza não é a única nem a principal virtude cristã: é, entretanto, indispensável
para perseverarmos no esforço diário da nossa santificação; e sem ela não é possível
qualquer dedicação ao apostolado. A pureza é conseqüência do amor com que entregamos
ao Senhor a alma e o corpo, as potências e os sentidos. Não é negação, é afirmação
jubilosa.

Dizia que a concupiscência da carne não se reduz exclusivamente à desordem da


sensualidade: estende-se ao comodismo e à falta de vibração, que impelem a procurar o
mais fácil, o mais agradável, o caminho aparentemente mais curto, mesmo à custa de
concessões no caminho da fidelidade a Deus.

Comportar-se assim equivaleria a abandonar-se incondicionalmente ao império de uma


dessas leis, a do pecado, contra a qual nos previne São Paulo: Encontro, pois, esta lei em
mim: quando quero fazer o bem, o mal está junto de mim. Porque me deleito na lei de
Deus segundo o homem interior, mas vejo nos meus membros outra lei que se opõe à lei
do meu espírito e me subjuga à lei do pecado... Infelix ego homo!, infeliz de mim! Quem
me livrará deste corpo de morte? Ouçamos o que responde o próprio Apóstolo: a graça
de Deus, por Jesus Cristo Nosso Senhor. Podemos e devemos lutar contra a
concupiscência da carne, porque, se formos humildes, ser-nos-á concedida sempre a graça
do Senhor.

É Cristo que passa, A vocação cristã, 6

O outro inimigo, escreve São João, é a concupiscência dos olhos, uma avareza de fundo
6 que leva a apreciar apenas o que se pode tocar: os olhos que ficam como que colados às
coisas terrenas, mas também os olhos que, por isso mesmo, não sabem descobrir as
realidades sobrenaturais. Portanto, podemos entender a expressão da Sagrada Escritura
como uma referência à avareza dos bens materiais e, além disso, a essa deformação que
nos leva a observar o que nos rodeia - os outros, as circunstâncias da nossa vida e do
nosso tempo - com visão exclusivamente humana.

Os olhos da alma embotam-se; a razão julga-se auto-suficiente e capaz de entender todas


as coisas prescindindo de Deus. É uma tentação sutil, que se escuda na dignidade da
inteligência; da inteligência que nosso Pai-Deus outorgou ao homem para que o conheça e
o ame livremente. Arrastada por essa tentação, a inteligência humana considera-se o
centro do universo, entusiasma-se novamente com o sereis como deuses e, enchendo-se
de amor por si mesma, vira as costas ao amor de Deus.

Deste modo, a nossa existência pode entregar-se sem condições às mãos do terceiro

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inimigo, a superbia vitae. Não se trata simplesmente de pensamentos efêmeros de vaidade
ou de amor próprio: é um endurecimento generalizado. Não nos enganemos, porque
tocamos o pior dos males, a raiz de todos os extravios. A luta contra a soberba deve ser
constante, porque, como já se disse graficamente, essa paixão morre um dia depois de a
pessoa morrer. É a altivez do fariseu, a quem Deus reluta em justificar por encontrar nele
uma barreira de auto-suficiência. É a arrogância que leva a desprezar os demais homens, a
dominá-los, a maltratá-los: porque onde houver soberba, aí haverá também ofensa e
desonra.

É Cristo que passa, A vocação cristã, 7

Começa hoje o tempo do Advento e é bom que tenhamos considerado as insídias destes
7 inimigos da alma: a desordem da sensualidade e da fácil leviandade; o desatino da razão
que se opõe ao Senhor; a presunção altaneira, que esteriliza o amor a Deus e às criaturas.
Todos estes estados de ânimo são obstáculos certos, e seu poder perturbador é grande. Por
isso a liturgia nos faz implorar a misericórdia divina: A Ti, Senhor, elevo minha alma; em
Ti espero; não seja eu confundido, nem se riam de mim os meus adversários, rezamos no
Intróito. E na antífona do Ofertório repetiremos: Espero em Ti, não seja eu confundido!

Agora que se aproxima o tempo da salvação, é consolador ouvir dos lábios de São Paulo:
Depois que Deus Nosso Salvador manifestou sua benignidade e amor aos homens,
livrou-nos não pelas obras de justiça que tivéssemos feito, mas por sua misericórdia.

Se percorrermos as Santas Escrituras, descobriremos constantemente a presença da


misericórdia de Deus: enche a terra, estende-se a todos os seus filhos, super omnem
carnem; rodeia-nos, antecede-nos, multiplica-se para nos ajudar, e foi continuamente
confirmada. Ao ocupar-se de nós como Pai amoroso, Deus nos tem presentes em sua
misericórdia: uma misericórdia suave, agradável como a nuvem que se desfaz em tempo
de seca.

Jesus Cristo resume e compendia toda a história da misericórdia divina: Bem-aventurados


os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. E em outra ocasião: Sede
misericordiosos, como vosso Pai celestial é misericordioso. Ficaram também muito
gravadas em nós, entre tantas outras cenas do Evangelho, a clemência com a mulher
adúltera, as parábolas do filho pródigo, da ovelha perdida e do devedor perdoado, a
ressurreição do filho da viúva de Naim. Quantas razões de justiça para explicar este
grande prodígio! Morreu o filho único daquela pobre viúva, aquele que dava sentido à sua
vida e podia ajudá-la na sua velhice. Mas Cristo não faz o milagre por justiça; Ele o faz
por compaixão, porque se comove interiormente perante a dor humana.

Que segurança nos deve produzir a comiseração do Senhor! Clamará por mim e eu o
ouvirei, porque sou misericordioso. É um convite, uma promessa que não deixará de
cumprir. Aproximemo-nos, pois, confiadamente do trono da graça, a fim de alcançarmos
misericórdia e auxílio da graça no tempo oportuno. Os inimigos da nossa santificação
nada conseguirão, porque essa misericórdia de Deus nos protege por antecipado; e se por
nossa culpa e fraqueza caímos, o Senhor nos socorre e nos levanta. Tinhas aprendido a
evitar a negligência, a afastar de ti a arrogância, a adquirir piedade, a não ser
prisioneiro das questões mundanas, a não preferir o caduco ao eterno. Mas, como a

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debilidade humana não pode manter um passo decidido num mundo resvaladiço, o bom
Médico te indicou também remédios contra a desorientação, e o Juiz misericordioso não
te negou a esperança do perdão.

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A existência do cristão desenvolve-se neste clima da misericórdia divina. Esse é o âmbito


8 do esforço com que procura comportar-se como filho do Pai. E quais os principais meios
para conseguirmos que a vocação se fortaleça? Hoje te indicarei dois, que são quais eixos
vivos da conduta cristã: a vida interior e a formação doutrinal, o conhecimento profundo
da nossa fé.

Vida interior, em primeiro lugar. Como são poucos ainda os que a entendem! Ao
ouvirem,falar de vida interior, pensam na escuridão do templo, quando não no ambiente
rarefeito de certas sacristias. Há mais de um quarto de século venho dizendo que não é
isso. O que descrevo é a vida interior de um simples cristão, que habitualmente se
encontra em plena rua, ao ar livre; e que na rua, no trabalho, na família e nos momentos
de lazer permanece atento a Jesus o dia todo. E o que é isso senão vida de oração
contínua? Não é verdade que compreendeste a necessidade de ser alma de oração, com
uma relação de amizade com Deus que te leve a endeusar-te? Essa é a fé cristã e assim o
compreenderam sempre as almas de oração. Escreve Clemente de Alexandria: Torna-se
Deus o homem que quer o mesmo que Deus quer.

A princípio custa; é preciso esforçar-se por dirigir o olhar para o Senhor, por agradecer a
sua piedade paternal e concreta para conosco. Pouco a pouco, o amor de Deus - embora
não seja coisa de sentimentos - torna-se tão palpável como uma flechada na alma. É
Cristo que nos persegue amorosamente: Eis que estou à tua porta e bato. Como vai a tua
vida de oração? Não sentes às vezes, durante o dia, desejos de conversar mais com Ele?
Não lhe dizes: mais tarde te contarei isto, mais tarde conversarei sobre isto contigo?

Nos momentos expressamente dedicados a esse colóquio com o Senhor, o coração se


expande, a vontade se fortalece, a inteligência - ajudada pela graça - embebe em
realidades sobrenaturais as realidades humanas. E, como fruto, surgem sempre propósitos
claros, práticos, de melhorar a conduta, de tratar delicadamente, com caridade, todos os
homens, de nos empenharmos a fundo - com o empenho dos bons esportistas - nesta luta
cristã de amor e de paz.

A oração se torna contínua, como o palpitar do coração, como o pulso. Sem essa presença
de Deus, não há vida contemplativa; e, sem vida contemplativa, de pouco vale trabalhar
por Cristo, porque, se Deus não edifica a casa, em vão trabalham os que a constroem.

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Para se santificar, o simples cristão - que não é um religioso, que não se separa do mundo,
9 porque o mundo é o lugar do seu encontro com Cristo - não precisa de hábito externo nem
de sinais distintivos. Seus sinais são internos: a presença de Deus constante e o espírito de
mortificação. Na realidade, uma coisa só, porque a mortificação nada mais é que a oração
dos sentidos.

A vocação cristã é vocação de sacrifício, de penitência, de expiação. Temos que reparar


por nossos pecados - quantas vezes não teremos virado a cara para não vermos Deus! - e
por todos os pecados dos homens. Temos que seguir de perto os passos de Cristo:
trazendo sempre em nosso corpo a mortificação, a abnegação de Cristo, seu abatimento
na Cruz, para que também em nossos corpos se manifeste a vida de Jesus. O nosso
caminho é de imolação, e essa renúncia nos trará o gaudium cum pace, a alegria e a paz.

Não contemplamos o mundo com gesto triste. Têm prestado um fraco serviço à catequese,
talvez involuntariamente, esses biógrafos de santos que queriam descobrir a todo o custo
coisas extraordinárias nos servos de Deus, já desde os primeiros vagidos. E contam de
alguns deles que em sua infância não choravam, e às sextas-feiras não mamavam, por
mortificação... Vós e eu nascemos chorando, como Deus manda; e nos prendíamos ao
peito de nossa mãe sem nos preocuparmos com Quaresmas nem com Têmporas.

Agora, com o auxílio de Deus, aprendemos a descobrir ao longo dos dias - aparentemente
sempre iguais - spatium verae poenitentiae, um tempo de verdadeira penitência; e nesses
instantes fazemos propósitos de emendatio vitae, de melhorar a nossa vida. Este é o
caminho para sabermos acolher a graça e as inspirações do Espírito Santo na alma. E com
essa graça - repito - vem o gaudium cum pace, a alegria, a paz e a perseverança no
caminho.

A mortificação é o sal da nossa vida. E a melhor mortificação é a que combate - em


pequenos detalhes, durante o dia todo - a concupiscência da carne, a concupiscência dos
olhos e a soberba da vida. Mortificações que não mortifiquem os outros, que nos tornem
mais delicados, mais compreensivos, mais abertos a todos. Não seremos mortificados se
formos suscetíveis, se estivermos preocupados apenas com os nossos egoísmos, se
esmagarmos os outros, se não nos soubermos privar do supérfluo e, às vezes, do
necessário; se nos entristecermos quando as coisas não correm como tínhamos previsto.
Pelo contrário, seremos mortificados se nos soubermos fazer tudo para todos, para salvar
a todos.

É Cristo que passa, A vocação cristã, 10

A vida de oração e de penitência, e a consideração da nossa filiação divina, nos


10 transformam em cristãos profundamente piedosos, como crianças diante de Deus. A
piedade é a virtude dos filhos, e, para que o filho possa confiar-se aos braços de seu
pai, deve ser e sentir-se pequeno, necessitado. Tenho meditado com freqüência nessa

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vida de infância espiritual, que não se opõe à fortaleza porque exige uma vontade
enérgica, uma maturidade temperada, um caráter firme e aberto.

Piedosos, pois, como meninos; mas não ignorantes, por que cada um deve esforçar-se,
na medida de suas possibilidades, por estudar a fé com seriedade e espírito científico; e
tudo isso é teologia. Piedade de meninos, portanto, mas doutrina segura de teólogos.

O empenho em adquirir esta ciência teológica - a boa e firme doutrina crista - deve-se
em primeiro lugar ao desejo de conhecer e amar a Deus. Ao mesmo tempo, é
conseqüência da preocupação geral da alma fiel por descobrir o significado mais
profundo deste mundo, que é obra do Criador. Com periódica monotonia, há quem
procure ressuscitar uma suposta incompatibilidade entre a fé e a ciência, entre a
inteligência humana e a Revelação divina. Essa incompatibilidade apenas pode surgir,
e só aparentemente, quando não se entendem os dados reais do problema.

Se o mundo saiu das mãos de Deus, se Ele criou o homem à sua imagem e semelhança
e lhe deu uma chispa da sua luz, o trabalho da inteligência - mesmo que seja um
trabalho duro - deve desentranhar o sentido divino que já naturalmente têm todas as
coisas; e à luz da fé, percebemos também o seu sentido sobrenatural, que procede da
nossa elevação a ordem da graça. Não podemos admitir o medo à ciência, porque
qualquer trabalho, se for verdadeiramente científico, conduz à verdade. E Cristo disse:
Ego sum veritas, Eu sou a verdade.

O cristão deve ter fome de saber. Desde o cultivo dos saberes mais abstratos até às
habilidades do artesão, tudo pode e deve levar a Deus. Porque não há tarefa humana
que não seja santificável, que não seja motivo para a nossa própria santificação e
oportunidade para colaborarmos com Deus na santificação dos que nos rodeiam. A luz
dos seguidores de Jesus Cristo não deve permanecer no fundo do vale, mas no cume da
montanha, para que vejam as vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos
céus.

Trabalhar assim é oração. Estudar assim é oração. Investigar assim é oração. Não
saímos nunca do mesmo: tudo é oração, tudo pode e deve levar-nos a Deus, alimentar
esse convívio contínuo com Ele, da manhã até à noite. Todo o trabalho honrado pode
ser oração; e todo o trabalho que for oração, é apostolado. Desse modo, a alma se
enrijece numa unidade de vida simples e forte.

É Cristo que passa, A vocação cristã, 11

Nada mais vos queria dizer neste primeiro Domingo do Advento, em que já
11 começamos a contar os dias que nos faltam para o Natal do Salvador. Vimos a
realidade da vocação cristã, como o Senhor confiou em nós para levar almas à
santidade, para aproximá-las dEle, para uni-las à Igreja e estender o reino de Deus a
todos os corações. O Senhor nos quer entregues, fiéis, delicados. Ele nos quer santos,
muito seus.

Por um lado, a soberba, a sensualidade e o tédio, o egoísmo; por outro, o amor, a


dedicação, a misericórdia, a humildade, o sacrifício, a alegria. Temos que escolher.

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Fomos chamados a uma vida de fé, de esperança e de caridade. Não podemos cruzar os
braços e deixar-nos ficar num medíocre isolamento.

Certa vez, vi uma águia encerrada numa gaiola de ferro. Estava suja, meio depenada;
tinha entre as garras um pedaço de carne podre. Ocorreu-me pensar no que seria de
mim se abandonasse a vocação recebida de Deus. Fiquei com pena daquele animal
solitário, enjaulado, que tinha nascido para voar muito alto e olhar o sol de frente.
Podemos remontar até às humildes alturas do amor de Deus, do serviço a todos os
homens. Mas para isso é preciso que não haja recantos escondidos na alma, onde não
possa entrar o sol de Jesus Cristo. Temos que jogar fora todas as preocupações que nos
afastem dEle; e assim Cristo em tua inteligência, Cristo em teus lábios, Cristo em teu
coração, Cristo em tuas obras. Toda a vida, o coração e as obras, a inteligência e as
palavras, saturadas de Deus.

Olhai e levantai a cabeça, porque está próxima a vossa redenção, lemos no


Evangelho. O tempo de Advento é tempo de esperança. Todo o panorama da nossa
vocação cristã, essa unidade de vida que tem como nervo a presença de Deus, nosso
Pai, pode e deve ser uma realidade diária.

Pede-a comigo a Nossa Senhora, imaginando como Ela passaria aqueles meses à
espera do Filho que ia nascer. E Nossa Senhora, Santa Maria, fará com que sejas alter
Christus, ipse Christus, outro Cristo, o próprio Cristo!

É Cristo que passa, O triunfo de Cristo na humildade, 12

Lux fulgebit hodie super nos, quia natus est nobis Dominus, hoje brilhará sobre nós a
12 luz, porque nos nasceu o Senhor! Eis a grande novidade que comove os cristãos e que,
através deles, se dirige à humanidade inteira. Deus está aqui! Esta verdade deve tomar
posse de nossas vidas. Cada Natal deve ser para nós um novo encontro especial com
Deus, que deixe a sua luz e a sua graça penetrarem até o fundo da nossa alma.

Detemo-nos diante do Menino, de Maria e de José; estamos contemplando o Filho de


Deus revestido da nossa carne... Vem-me à memória a viagem que fiz a Loreto, em 15
de agosto de 1951, para visitar a Santa Casa por um motivo muito íntimo. Lá celebrei a
Santa Missa. Queria dizê-la com recolhimento, mas não tinha contado com o fervor da
multidão. Não tinha calculado que, nesse grande dia de festa, muitas pessoas dos
arredores viriam a Loreto, com a bendita fé dessa terra e com o amor que têm à
Madona. E a sua piedade, considerando as coisas - como diria? - unicamente do ponto
de vista das leis rituais da Igreja, levava-as a manifestações não muito apropriadas.

E assim, enquanto eu beijava o altar, nos momentos prescritos pelas rubricas da Missa,
três ou quatro camponeses beijavam-no ao mesmo tempo. Distraía-me, mas estava
emocionado. E também me atraía a atenção o pensamento de que naquela Santa Casa -
que a tradição assegura ser o lugar onde viveram Jesus, Maria e José -, em cima da
mesa do altar, se tinham gravado estas palavras: Hic Verbum caro factum est. Aqui,
numa casa construída pelas mãos dos homens, num pedaço da terra em que vivemos,
habitou Deus!

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É Cristo que passa, O triunfo de Cristo na humildade, 13

O Filho de Deus fez-se carne e é perfectus Deus, perfectus homo, perfeito Deus e
13 perfeito homem! Há neste mistério qualquer coisa que deveria emocionar os cristãos.
Estava e estou comovido; gostaria de voltar a Loreto... Vou lá em desejo, para reviver
os anos da infância de Jesus, repetindo e considerando: Hic Verbum caro factum est!

Iesus Christus, Deus Homo, Jesus Cristo, Deus-Homem! Eis uma das magnalia Dei,
uma das maravilhas de Deus em que temos de meditar e que precisamos agradecer a
este Senhor que veio trazer a paz na terra aos homens de boa vontade, a todos os
homens que querem unir a sua vontade à Vontade boa de Deus. Não só aos ricos, nem
só aos pobres! A todos os homens, a todos os irmãos! Pois irmãos somos todos em
Jesus: filhos de Deus, irmãos de Cristo. E sua Mãe é nossa Mãe.

Na terra, há apenas uma raça: a raça dos filhos de Deus. Todos devemos falar a mesma
língua: a que nosso Pai que está nos Céus nos ensina, a língua dos diálogos de Jesus
com seu Pai, a língua que se fala com o coração e com a cabeça, aquela que estamos
usando agora na nossa oração. É a língua das almas contemplativas, dos homens que
são espirituais por se terem apercebido da sua filiação divina; uma língua que se
manifesta em mil moções da vontade, em luzes vivas do entendimento, em afetos do
coração, em decisões de retidão de vida, de bem-fazer, de alegria, de paz.

É preciso ver o Menino, nosso Amor, no seu berço, olhar para Ele sabendo que
estamos perante um mistério. Precisamos aceitar o mistério pela fé, aprofundar no seu
conteúdo. Para isso necessitamos das disposições humildes da alma cristã: não
pretender reduzir a grandeza de Deus aos nossos pobres conceitos, às nossas
explicações humanas, mas compreender que esse mistério, na sua obscuridade, é uma
luz que guia a vida dos homens.

Vemos - diz São João Crisóstomo - que Jesus saiu de nós, da nossa substância
humana, e que nasceu de Mãe virgem; mas não entendemos como pôde ter-se
realizado esse prodígio. Não nos cansemos tentando descobri-lo: aceitemos antes com
humildade o que Deus nos revelou, sem esquadrinhar com curiosidade o que Deus nos
escondeu. Assim, com este acatamento, saberemos compreender e amar; e o mistério
será para nós um esplêndido ensinamento, mais convincente que qualquer raciocínio
humano.

É Cristo que passa, O triunfo de Cristo na humildade, 14

Ao falar diante do Presépio, sempre procurei ver Cristo Nosso Senhor desta maneira,
14 envolto em paninhos, sobre a palha de uma mangedoura; e, enquanto ainda é Menino e
não diz nada, vê-lo já como Doutor, como Mestre. Preciso considerá-lo assim, porque
tenho que aprender dEle. E, para aprender dEle, é necessário conhecer a sua vida: ler o
Santo Evangelho, meditar no sentido divino do caminhar terreno de Jesus.

10
Na verdade, temos que reproduzir em nossa vida a vida de Cristo, conhecendo Cristo à
força de ler a Sagrada Escritura e de a meditar, à força de fazer oração, como agora a
estamos fazendo diante do Presépio. É preciso entender as lições que nos dá Jesus já
desde Menino, desde recém-nascido, desde que seus olhos se abriram para esta bendita
terra dos homens.

Jesus, crescendo e vivendo como um de nós, revela-nos que a existência humana, a


vida comum e de cada dia, tem um sentido divino. Por muito que tenhamos
considerado estas verdades, devemos encher-nos sempre de admiração ao pensar nos
trinta anos de obscuridade que constituem a maior parte da vida de Jesus entre seus
irmãos, os homens. Anos de sombra, mas, para nós, claros como a luz do Sol. Mais:
resplendor que ilumina os nossos dias e que lhes dá uma autêntica projeção, pois
somos cristãos comuns, com uma vida vulgar, igual à de tantos milhões de pessoas nos
mais diversos lugares do mundo.

Assim viveu Jesus durante seis lustros: era fabri filius, o filho do carpinteiro. Virão
depois os três anos de vida pública, com o clamor das multidões. E as pessoas
surpreendem-se: Quem é este? Onde aprendeu tantas coisas? Pois a sua vida tinha sido
a vida comum do povo da sua terra. Era o faber, filius Mariae, o carpinteiro, filho de
Maria. E era Deus; e estava realizando a redenção do gênero humano; e estava a atrair
a Si todas as coisas.

É Cristo que passa, O triunfo de Cristo na humildade, 15

Como em relação a qualquer outro aspecto da sua vida, nunca deveríamos contemplar
15 esses anos ocultos de Jesus sem nos sentirmos afetados, sem os reconhecermos como o
que realmente são: chamadas que o Senhor nos dirige para sairmos do nosso egoísmo,
do nosso comodismo. O Senhor conhece as nossas limitações, o nosso individualismo e
a nossa ambição; a nossa dificuldade em nos esquecermos de nós mesmos e nos
entregarmos aos outros. Sabe o que é não encontrar amor e verificar que, mesmo
aqueles que dizem segui-lo, só o fazem a meias. Recordemos as cenas tremendas que
os Evangelistas nos descrevem e em que vemos os Apóstolos ainda cheios de
aspirações temporais e de projetos exclusivamente humanos. Mas Jesus escolheu-os,
mantém-nos juntos de si e confia-lhes a missão que recebeu do Pai.

Também a nós nos chama e nos pergunta, como a Tiago e a João: Potestis bibere
calicem quem ego bibiturus sum?; estais dispostos a beber o cálice - este cálice da
completa entrega ao cumprimento da vontade do Pai - que eu vou beber? Possumus!
Sim, estamos dispostos, é a resposta de João e de Tiago... Vós e eu estamos dispostos
seriamente a cumprir, em tudo, a vontade do nosso Pai-Deus? Demos ao Senhor nosso
coração inteiro, ou continuamos apegados a nós mesmos, aos nossos interesses, à nossa
comodidade, ao nosso amor próprio? Há em nós alguma coisa que não corresponda à
nossa condição de cristãos e que nos impeça de nos purificarmos? Hoje
apresenta-se-nos a ocasião de retificar.

É necessário que nos convençamos de que Jesus nos dirige pessoalmente estas
perguntas. É Ele quem as faz, não eu. Eu não me atreveria a fazê-las a mim próprio. Eu
vou continuando a minha oração em voz alta, e vós, cada um de vós, por dentro, está

11
confessando ao Senhor: Senhor, que pouco valho! Que covarde tenho sido tantas
vezes! Quantos erros! Nesta ocasião e naquela...; nisto e naquilo... E podemos
exclamar também: Ainda bem, Senhor, que me tens sustentado com a tua mão, porque
me sinto capaz de todas as infâmias... Não me largues, não me deixes; trata-me sempre
como a um menino. Que eu seja forte, valente, íntegro. Mas ajuda-me como a uma
criatura inexperiente. Leva-me pela tua mão, Senhor, e faz com que tua Mãe esteja
também a meu lado e me proteja. E assim, possumus!, poderemos, seremos capazes de
ter-Te por modelo.

Não é presunção afirmar possumus! Jesus Cristo ensina-nos este caminho divino e
pede-nos que o empreendamos, porque Ele o tomou humano e acessível à nossa
fraqueza. Por isso se rebaixou tanto: Este foi o motivo por que se abateu, tomando
forma de servo aquele Senhor que, como Deus, era igual ao Pai; mas abateu-se na
majestade e na potência; não na bondade nem na misericórdia.

A bondade de Deus quer facilitar-nos o caminho. Não rejeitemos o convite de Jesus,


não lhe digamos não, não nos façamos surdos ao seu chamamento, pois não existem
desculpas, não temos motivo nenhum para continuar a pensar que não podemos. Ele
ensinou-nos com o seu exemplo. Portanto, peço-vos encarecidamente, meus irmãos,
que não permitais que se vos tenha mostrado em vão modelo tão precioso, mas que vos
conformeis com Ele e vos renoveis no espírito da vossa alma.

É Cristo que passa, O triunfo de Cristo na humildade, 16

Vemos como é necessário conhecer Jesus, observar amorosamente a sua vida? Muitas
16 vezes fui à procura da definição, da biografia de Jesus na Sagrada Escritura.
Encontrei-a lendo aquela que o Espírito Santo registra em duas palavras: Pertransiit
benefaciendo. Todos os dias de Jesus Cristo na terra, desde o seu nascimento até à
morte, pertransiit benefaciendo, foram preenchidos fazendo o bem. Como também diz
a Escritura noutro lugar: Bene omnia fecit, fez tudo bem, terminou bem todas as coisas,
não fez senão o bem.

E tu? E eu? Lancemos um olhar sobre a nossa vida, para ver se temos alguma coisa que
emendar. Eu, sim, encontro em mim muito que fazer. E como me vejo incapaz, só por
mim, de praticar o bem, e como o próprio Jesus nos disse que sem Ele nada podemos ,
vamos, tu e eu, implorar ao Senhor a sua assistência por meio de sua Mãe, neste
colóquio íntimo, próprio das almas que amam a Deus. Não acrescento mais nada,
porque é cada um de vós que deve falar, segundo as suas necessidades. Por dentro, e
sem ruído de palavras, neste mesmo momento em que vos dou estes conselhos, aplico
esta doutrina à minha própria miséria.

12
É Cristo que passa, O triunfo de Cristo na humildade, 17

Pertransiit benefaciendo... O que fez Jesus para derramar tanto bem, e só bem, por
17 onde quer que passasse? Os Santos Evangelhos transmitiram-nos outra biografia de
Jesus, resumida em três palavras latinas que nos dão a resposta: Erat subditus illis,
obedecia. Hoje, que o ambiente está cheio de desobediência, de murmuração, de
desunião, devemos amar especialmente a obediência.

Sou muito amigo da liberdade, e precisamente por isso estimo tanto essa virtude cristã.
Devemos sentir-nos filhos de Deus e viver com o empenho de cumprir a vontade do
nosso Pai, de realizar tudo segundo o querer de Deus, simplesmente porque nos
apetece, que é a razão mais sobrenatural.

O espírito do Opus Dei, que tenho procurado praticar e ensinar há mais de trinta e
cinco anos, fez-me compreender e amar a liberdade pessoal. Quando Deus Nosso
Senhor concede a sua graça aos homens, quando os chama com uma vocação
específica, é como se lhes estendesse a mão, uma mão paternal, cheia de fortaleza,
repleta sobretudo de amor, porque nos busca um por um, como a suas filhas e filhos, e
porque conhece a nossa debilidade. O Senhor espera que façamos o esforço de agarrar
a sua mão, essa mão que nos estende. Deus pede-nos um esforço, que será prova da
nossa liberdade. E para consegui-lo, temos que ser humildes, temos que nos sentir
filhos pequenos, e amar a bendita obediência com que correspondemos à bendita
paternidade de Deus.

Precisamos deixar que o Senhor intervenha em nossas vidas e que intervenha


confiadamente, sem encontrar obstáculos nem recantos obscuros. Nós, os homens,
tendemos a defender-nos, a apegar-nos ao nosso egoísmo. Sempre tentamos ser reis,
nem que seja do reino da nossa miséria. Devemos compreender, através desta
consideração, o motivo pelo qual temos necessidade de recorrer a Jesus: é para que Ele
nos torne verdadeiramente livres, e desta forma possamos servir a Deus e a todos os
homens. Só assim perceberemos a verdade daquelas palavras de São Paulo: Agora,
porém, livres do pecado e feitos servos de Deus, tendes por fruto a santificação e por
fim a vida eterna. Porque o salário do pecado é a morte, ao passo que o dom gratuito
de Deus é a vida eterna em Nosso Senhor Jesus Cristo.

Estejamos precavidos, portanto, visto que a nossa tendência para o egoísmo não morre,
e a tentação pode insinuar-se de muitas maneiras. Deus exige que, ao obedecer,
ponhamos em movimento a fé, porque a sua vontade não se manifesta com aparato
ruidoso. As vezes, o Senhor sugere o seu querer como que em voz baixa, lá no fundo
da consciência; e é necessário escutarmos atentamente, para sabermos distinguir essa
voz e ser-lhe fiéis.

Muitas vezes fala-nos através de outros homens, e pode acontecer que, à vista dos
defeitos dessas pessoas, ou pensando que não estão bem informadas, que talvez não
tenham entendido todos os dados do problema, surja como que um convite para não
obedecer.

13
Tudo isso pode ter um significado divino, porque Deus não nos impõe uma obediência
cega, mas uma obediência inteligente, e temos que sentir a responsabilidade de ajudar
os outros com a luz do nosso entendimento. Mas sejamos sinceros conosco mesmos:
examinemos em cada caso se nos deixamos conduzir pelo amor à verdade ou antes
pelo egoísmo e pelo apego aos nossos próprios critérios. Quando as nossas idéias nos
separam dos outros, quando nos levam a quebrar a comunhão, a unidade com nossos
irmãos, é sinal certo de que não estamos agindo segundo o espírito de Deus.

Não o esqueçamos: para obedecer, repito, é precisa humildade. Vejamos de novo o


exemplo de Cristo. Jesus obedece, e obedece a José e a Maria. Deus veio à terra para
obedecer, e para obedecer às criaturas. São duas criaturas perfeitíssimas: Santa Maria,
nossa Mãe - mais do que Ela só Deus -, e aquele varão castíssimo, José. Mas criaturas.
E Jesus, que é Deus, obedecia-lhes! Temos que amar a Deus, para amar assim a sua
vontade, e ter desejos de corresponder aos chamamentos que nos dirige através das
obrigações da nossa vida de todos os dias: nos deveres de estado, na profissão, no
trabalho, na família, no convívio social, no nosso próprio sofrimento e no sofrimento
dos outros homens, na amizade, no empenho em realizar o que é bom e justo...

É Cristo que passa, O triunfo de Cristo na humildade, 18

Quando chega o Natal, gosto de contemplar as imagens do Menino Jesus. Essas


18 figuras, que nos mostram o Senhor tão humilhado, recordam-me que Deus nos chama,
que o Onipotente quis apresentar-se desvalido, quis necessitar dos homens. Da gruta de
Belém, Cristo diz a mim e a ti que precisa de nós; reclama de nós uma vida cristã sem
hesitações, uma vida de doação, de trabalho, de alegria.

Não conseguiremos jamais o verdadeiro bom humor, se não imitarmos deveras Jesus,
se não formos humildes como Ele. Insistirei de novo: vemos onde se oculta a grandeza
de Deus? Num presépio, nuns paninhos, numa gruta. A eficácia redentora de nossas
vidas só se produzirá se houver humildade, se deixarmos de pensar em nós mesmos e
sentirmos a responsabilidade de ajudar os outros.

É normal, às vezes até entre almas boas, criarem-se conflitos íntimos, que chegam a
produzir sérias preocupações, mas que carecem de qualquer base objetiva. Sua origem
está na falta de conhecimento próprio, que conduz à soberba: ao desejo de se tornarem
o centro da atenção e estima de todos, à preocupação de não ficarem mal, de não se
resignarem a fazer o bem e desaparecer, à ânsia de segurança pessoal... E assim, muitas
almas que poderiam gozar de uma paz extraordinária, que poderiam saborear um
imenso júbilo, transformam-se, por orgulho e presunção, em infelizes e infecundas!

Cristo foi humilde de coração. Ao longo da sua vida, não quis para si nenhuma coisa
especial, nenhum privilégio. Começa por permanecer nove meses no seio de sua Mãe,
como qualquer outro homem, com extrema naturalidade. O Senhor sabia de sobra que
a humanidade necessitava dEle com urgência. Tinha, portanto, fome de vir à terra para
salvar todas as almas. Mas não precipita o tempo; vem na sua hora, como chegam ao
mundo os outros homens. Desde a concepção até o nascimento, ninguém - a não ser
São José e Santa Isabel - percebe esta maravilha: Deus veio habitar entre os homens!

14
O Natal também está rodeado de uma simplicidade admirável: o Senhor vem sem
estrondo, desconhecido de todos. Na terra, só Maria e José participam da divina
aventura. Depois, os pastores, avisados pelos Anjos. E, mais tarde, os sábios do
Oriente. Assim se realiza o fato transcendente que une o céu à terra, Deus ao homem!

Como é possível tanta dureza de coração, que cheguemos a acostumar-nos a estes


episódios? Deus humilha-se para que possamos aproximar-nos dEle, para que
possamos corresponder ao seu amor com o nosso amor, para que a nossa liberdade se
renda, não só ante o espetáculo do seu poder, como também ante a maravilha da sua
humildade.

Grandeza de um Menino que é Deus! Seu Pai é o Deus que fez os céus e a terra, e Ele
ali está, num presépio, quia non erat eis locus in diversorio, porque não havia outro
lugar na terra para o dono de toda a Criação.

É Cristo que passa, O triunfo de Cristo na humildade, 19

Não me afasto da mais rigorosa verdade se digo que Jesus continua ainda hoje a buscar
19 pousada no nosso coração. Temos que lhe pedir perdão pela nossa cegueira pessoal,
pela nossa ingratidão. Temos que lhe pedir a graça de nunca mais lhe fecharmos a
porta de nossas almas.

O Senhor não nos oculta que a obediência rendida à Vontade de Deus exige renúncia e
entrega, porque o amor não reclama direitos; quer servir. Ele percorreu primeiro o
caminho. Jesus: como foi que obedeceste? Usque ad mortem, mortem autem crucis, até
à morte, e morte de Cruz. Temos que sair de nós mesmos, complicar a vida, perdê-la
por amor de Deus e das almas... Tu querias viver, e que nada te acontecesse; mas Deus
quis outra coisa... Existem duas vontades: a tua vontade deve ser corrigida para se
identificar com a Vontade de Deus, e não a de Deus torcida para se acomodar à tua.

Tenho visto, com alegria, muitas almas jogarem a vida - como Tu, Senhor, usque ad
mortem! - para cumprir o que a vontade de Deus lhes pedia, dedicando seus esforços e
seu trabalho profissional ao serviço da Igreja, pelo bem de todos os homens.

Aprendamos a obedecer, aprendamos a servir. Não há maior fidalguia do que


entregar-se voluntariamente a servir os outros. Quando sentimos o orgulho que referve
dentro de nós, a soberba que nos leva a pensar que somos super-homens, é o momento
de dizer não, de dizer que o nosso único triunfo há de ser o da humildade. Assim nos
identificaremos com Cristo na Cruz, sem nos sentirmos aborrecidos ou inquietos, nem
com mau humor, mas alegres, porque essa alegria, o esquecimento de nós mesmos, é a
melhor prova de amor.

15
É Cristo que passa, O triunfo de Cristo na humildade, 20

Permiti-me que volte de novo à naturalidade, à simplicidade da vida de Jesus, que já


20 vos tenho feito considerar tantas vezes. Esses anos ocultos do Senhor não são coisa
sem significado, ou uma simples preparação dos anos que viriam depois, os anos da
sua vida pública. Desde 1928, compreendi claramente que Deus desejava que os
cristãos tomassem por exemplo toda a vida do Senhor. Entendi especialmente a sua
vida escondida, a sua vida de trabalho comum entre os homens: o Senhor quer que
muitas almas encontrem o seu caminho nesses anos de vida silenciosa e sem brilho.
Obedecer à vontade de Deus, portanto, é sempre abandonar o egoísmo; mas não é
necessário que se reduza predominantemente a um afastamento das circunstâncias
habituais que rodeiam a vida dos homens, iguais a nós pelo seu estado, pela sua
profissão, pela sua situação na sociedade.

Sonho - e o sonho já se tornou realidade - com multidões de filhos de Deus


santificando-se na sua vida de cidadãos comuns, compartilhando ideais, anseios e
esforços com as demais pessoas. Preciso gritar-lhes esta verdade divina: se
permaneceis no meio do mundo, não é porque Deus se tenha esquecido de vós, não é
porque o Senhor não vos tenha chamado. Deus vos convidou a permanecer nas
ocupações e nas ansiedades da terra, porque vos fez saber que a vossa vocação
humana, a vossa profissão, as vossas qualidades não só não são alheias aos seus
desígnios divinos, mas foram santificadas por Ele como oferenda gratíssima ao Pai!

É Cristo que passa, O triunfo de Cristo na humildade, 21

Recordar a um cristão que a sua vida não tem outro sentido senão o de obedecer à
21 vontade divina não é separá-lo dos outros homens. Pelo contrário: em muitos casos, o
mandamento recebido do Senhor é que nos amemos uns aos outros como Ele nos amou
vivendo junto dos outros e tal como os outros, entregando-nos ao serviço do Senhor no
mundo, para dar a conhecer melhor a todas as almas o amor de Deus; para Lhes dizer
que se abriram os caminhos divinos da terra.

O Senhor não se limitou a dizer que nos amava, mas demonstrou-o com obras. Não
esqueçamos que Jesus Cristo se encarnou para ensinar, para que aprendamos a viver a
vida dos filhos de Deus. Recordemos o preâmbulo do evangelista São Lucas nos Atos
dos Apóstolos: Primum quidem sermonem feci de omnibus, ó Theophile, quae coepit
Jesus facere et docere, falei de tudo o que de mais notável Jesus fez e pregou. Veio
ensinar, mas fazendo; veio ensinar, mas sendo modelo, sendo o mestre e o exemplo
com a sua conduta.

Agora, diante de Jesus Menino, podemos continuar o nosso exame pessoal: estamos
decididos a procurar que a nossa vida sirva de modelo e ensinamento aos nossos
irmãos, aos nossos iguais, os homens? Estamos decididos a ser outros Cristos?

Não é suficiente dizê-lo com a boca. Tu - pergunto-o a cada um de vós e pergunto-o a

16
mim mesmo - tu, que por seres cristão és convidado a ser outro Cristo, mereces que se
repita de ti que vieste facere et docere, fazer tudo como um Filho de Deus, atento à
vontade de seu Pai, para que deste modo possas levar todas as almas a participarem das
coisas boas, nobres, divinas e humanas da Redenção? Estás vivendo a vida de Jesus
Cristo na tua vida habitual no meio do mundo?

Fazer as obras de Deus não é um bonito jogo de palavras, mas um convite a gastar-se
por Amor. Temos que morrer para nós mesmos, a fim de renascermos para uma vida
nova. Porque assim obedeceu Jesus, até à morte de Cruz, mortem autem crucis.
Propter quod et Deus exaltavit illum, Por isso Deus o exaltou. Se obedecermos à
vontade de Deus, a Cruz será também Ressurreição, exaltação. Cumprir-se-á em nós,
passo a passo, a vida de Cristo; poder-se-á afirmar que vivemos procurando ser bons
filhos de Deus, que passamos fazendo o bem, apesar da nossa fraqueza e dos nossos
erros pessoais, por mais numerosos que tenham sido.

E quando vier a morte, que virá inexoravelmente, esperá-la-emos com júbilo, como
tenho visto que o souberam fazer tantas pessoas santas no meio da sua existência
diária. Com alegria, porque, se imitarmos Cristo em fazer o bem - em obedecer e levar
a Cruz, apesar das nossas misérias - ressuscitaremos como Cristo: Surrexit Dominus
vere!, que ressuscitou realmente.

Jesus, que se fez menino - meditemos -, venceu a morte. Pelo aniquilamento, pela
simplicidade, pela obediência, pela divinização da vida comum e vulgar das criaturas,
o Filho de Deus foi vencedor!

Este foi o triunfo de Jesus Cristo. Assim nos elevou ao seu nível, ao nível dos filhos de
Deus, descendo ao nosso terreno, ao terreno dos filhos dos homens.

É Cristo que passa, O matrimônio, vocação cristã, 22

Estamos no Natal. Vêm-nos à lembrança os diversos fatos e circunstâncias que


22 rodearam o nascimento do Filho de Deus, e o olhar detém-se na gruta de Belém, no lar
de Nazaré. Maria, José e Jesus Menino ocupam, de modo muito especial, o centro do
nosso coração. Que nos diz, que nos ensina a vida ao mesmo tempo simples e
admirável dessa Sagrada Família?

Entre as muitas considerações que poderíamos fazer, quero comentar agora


principalmente uma. O nascimento de Jesus significa, como diz a Escritura, a
inauguração da plenitude dos tempos, o momento escolhido por Deus para manifestar
por inteiro seu amor aos homens, entregando-nos o seu próprio Filho. Essa vontade
divina cumpre-se no meio das circunstâncias mais normais e comuns: uma mulher que
dá à luz, uma família, uma casa. A Onipotência divina, o esplendor de Deus, passam
através das realidades humanas, unem-se ao elemento humano. A partir daí, nós, os
cristãos, sabemos que, com a graça do Senhor, podemos e devemos santificar todas as
realidades nobres da nossa vida. Não há situação terrena, por mais insignificante e
vulgar que pareça, que não possa ser ocasião de um encontro com Cristo e etapa do
nosso caminhar para o reino dos céus.

17
Por isso, não é de estranhar que a Igreja se alegre e se rejubile, contemplando a
modesta morada de Jesus, Maria e José. É grato - reza o hino de matinas desta festa -
recordar a pequena casa de Nazaré e a existência simples que ali se vive, celebrar com
cânticos a simplicidade humilde que rodeia Jesus, a sua vida escondida. Foi ali que,
ainda menino, Ele aprendeu o ofício de José, foi ali que cresceu em idade e participou
num trabalho de artesão. Junto dele sentava-se sua doce Mãe; junto de José vivia a
sua esposa bem-amada, feliz de poder ajudá-lo e oferecer-lhe seus cuidados.

Ao pensar nos lares cristãos, gosto de imaginá-los luminosos e alegres, como foi o da
Sagrada Família. A mensagem do Natal ressoa com toda a força: Glória a Deus no
mais alto dos céus, e paz na terra aos homens de boa vontade. Que a paz de Cristo
triunfe em vossos corações, escreve o Apóstolo. A paz de nos sabermos amados por
nosso Pai-Deus, incorporados em Cristo, protegidos pela Virgem Santa Maria,
amparados por José. Essa é a grande luz que ilumina nossas vidas e que, por entre as
dificuldades e misérias pessoais, nos impele a continuar para a frente, cheios de ânimo.
Cada lar cristão deveria ser um remanso de serenidade em que, por cima das pequenas
contrariedades diárias, se pudesse notar uma afeição profunda e sincera, uma
tranqüilidade profunda, fruto de uma fé real e vivida.

É Cristo que passa, O matrimônio, vocação cristã, 23

Para um cristão, o matrimônio não é uma simples instituição social, e menos ainda um
23 remédio para as fraquezas humanas: é uma autêntica vocação sobrenatural. Sacramento
grande em Cristo e na Igreja, diz São Paulo , e, ao mesmo tempo e inseparavelmente,
contrato que um homem e uma mulher estabelecem para sempre, porque - queiramos
ou não - o matrimônio instituído por Jesus Cristo é indissolúvel: sinal sagrado que
santifica, ação de Jesus que se apossa da alma dos que se casam e os convida a
segui-Lo, transformando toda a vida matrimonial em um caminhar divino sobre a terra.

Os casados estão chamados a santificar o seu matrimônio e a santificar-se a si próprios


nessa união; por isso, cometeriam um grave erro se edificassem a sua conduta
espiritual de costas para o lar, à margem do lar. A vida familiar, as relações conjugais,
o cuidado e a educação dos filhos, o esforço necessário para manter a família, para
garantir o seu futuro e melhorar as suas condições de vida, o convívio com as outras
pessoas que constituem a comunidade social, tudo isso são situações humanas, comuns,
que os esposos cristãos devem sobrenaturalizar.

A fé e a esperança têm que manifestar-se na serenidade com que se encaram os


problemas, pequenos ou grandes, que surgem em todos os lares, no ânimo alegre com
que se persevera no cumprimento do dever. Assim, a caridade inundará tudo e levará a
compartilhar as alegrias e os possíveis dissabores, a saber sorrir, esquecendo as
preocupações pessoais para atender os demais; a escutar o outro cônjuge ou os filhos,
mostrando-lhes que são queridos e compreendidos de verdade; a não dar importância a
pequenos atritos que o egoísmo poderia converter em montanhas; a depositar um amor
grande nos pequenos serviços de que se compõe a convivência diária.

Santificar o lar, dia a dia; criar, com o carinho, um autêntico ambiente de família: é
disso que se trata. Para santificar cada jornada, é preciso praticar muitas virtudes

18
cristãs; em primeiro lugar, as teologais, e depois todas as outras: a prudência, a
lealdade, a sinceridade, a humildade, o trabalho, a alegria... Mas no caso do
matrimônio, da vida matrimonial, é preciso começar com uma referência clara ao amor
dos cônjuges.

É Cristo que passa, O matrimônio, vocação cristã, 24

O amor puro e limpo dos esposos é uma realidade santa que eu, como sacerdote,
24 abençôo com as duas mãos. Na presença de Jesus Cristo nas bodas de Caná, a tradição
cristã tem visto freqüentemente uma confirmação do valor divino do matrimônio:
Nosso Salvador foi às bodas - escreve São Cirilo de Alexandria - para santificar o
princípio da geração humana.

O matrimônio é um sacramento que faz de dois corpos uma só carne; como diz com
expressão forte a teologia, sua matéria são os próprios corpos dos nubentes. O Senhor
santifica e abençoa o amor do marido pela mulher e o da mulher pelo marido:
estabelece não somente a fusão de suas almas, mas também a de seus corpos. Seja ou
não chamado à vida matrimonial, nenhum cristão pode desprezá-la.

O Criador deu-nos a inteligência, que é como uma centelha do entendimento divino, e


que nos permite - mediante a vontade livre, outro dom de Deus - conhecer e amar; e
deu ao nosso corpo a possibilidade de gerar, que é como uma participação do seu poder
criador. Deus quis servir-se do amor conjugal para trazer novas criaturas ao mundo e
aumentar o corpo da sua Igreja. O sexo não é uma realidade vergonhosa, mas uma
dádiva divina que se orienta limpamente para a vida, para o amor e para a fecundidade.

Este é o contexto, o pano de fundo em que se situa a doutrina cristã sobre a


sexualidade. Nossa fé não desconhece nada das coisas belas, generosas, genuinamente
humanas que há aqui em baixo. Ensina-nos que a regra do nosso viver não deve ser a
busca egoísta do prazer, porque só a renúncia e o sacrifício levam ao verdadeiro amor:
Deus amou-nos e convida-nos a amá-lo e a amar os outros com a verdade e a
autenticidade com que Ele nos ama. Quem conservar a sua vida, perdê-la-á, e quem
perder a vida por amor de mim, encontrá-la-á, escreveu São Mateus em seu
Evangelho, com frase que parece paradoxal.

As pessoas em cuidados consigo mesmas, que agem buscando acima de tudo a sua
própria satisfação, põem em risco a sua salvação eterna e já agora são inevitavelmente
infelizes e desgraçadas. Só quem se esquece de si mesmo e se entrega a Deus e aos
outros - também na vida matrimonial - pode ser feliz na terra, com uma felicidade que
é preparação e antecipação do céu.

Enquanto caminhamos pela terra, a dor é a pedra de toque do amor. No estado


matrimonial, considerando as coisas de uma maneira descritiva, poderíamos afirmar
que há anverso e reverso. De um lado, a alegria de se saber querido, o entusiasmo de
construir e fazer singrar um lar, o amor conjugal, o consolo de ver os filhos crescerem.
De outro, dores e contrariedades, o passar do tempo, que consome os corpos e ameaça
azedar os caracteres, a aparente monotonia dos dias que parecem sempre iguais.

19
Formaria um pobre conceito do matrimônio e do carinho humano quem pensasse que,
ao tropeçar com essas dificuldades, o amor e a alegria se acabam. Precisamente então,
quando os sentimentos que animavam aquelas criaturas revelam a sua verdadeira
natureza, é que a doação e a ternura se enraízam e se manifestam como um afeto
autêntico e profundo, mais poderoso do que a morte.

É Cristo que passa, O matrimônio, vocação cristã, 25

Essa autenticidade do amor requer fidelidade e retidão em todas as relações


25 matrimoniais. Comenta São Tomás de Aquino que Deus uniu às diversas funções da
vida humana um prazer, uma satisfação; esse prazer e essa satisfação são, portanto,
bons. Mas se o homem, invertendo a ordem das coisas, procura essa emoção como
valor último, desprezando o bem e o fim a que deve estar ligada e ordenada, perverte-a
e desnaturaliza-a, convertendo-a em pecado ou em ocasião de pecado.

A castidade - que não é simples continência, mas afirmação decidida de uma vontade
enamorada - é uma virtude que mantém a juventude do amor, em qualquer estado de
vida. Existe uma castidade dos que sentem despertar em si o desenvolvimento da
puberdade, uma castidade dos que se preparam para o casamento, uma castidade
daqueles a quem Deus chama ao celibato, uma castidade dos que foram escolhidos por
Deus para viverem no matrimônio.

Como não recordar aqui as palavras fortes e claras com que a Vulgata nos transmite a
recomendação do Arcanjo Rafael a Tobias, antes de este desposar Sara? O anjo
admoestou-o assim: Escuta-me e eu te mostrarei quem são aqueles contra os quais o
demônio pode prevalecer. São os que abraçam o matrimônio de tal modo que excluem
Deus de si e de sua mente, e se deixam arrastar pela paixão como o cavalo e o mulo,
que estão desprovidos de entendimento. Sobre esses o diabo tem poder.

Não há amor humano puro, franco e alegre no matrimônio se não se vive a virtude da
castidade, que respeita o mistério da sexualidade e o faz convergir para a fecundidade e
a entrega. Nunca falei de impureza e sempre evitei descer a casuísticas mórbidas e sem
sentido, mas, de castidade e de pureza, da afirmação jubilosa do amor, sim, falei
muitíssimas vezes e devo falar.

A respeito da castidade conjugal, assevero aos esposos que não devem ter medo de
expressar o seu carinho, antes pelo contrário, pois essa inclinação é a base da sua vida
familiar. O que o Senhor lhes pede é que se respeitem e que sejam mutuamente leais,
que se confortem com delicadeza, com naturalidade, com modéstia. Dir-lhes-ei
também que as relações conjugais são dignas quando são prova de verdadeiro amor e,
portanto, estão abertas à fecundidade, aos filhos.

Cegar as fontes da vida é um crime contra os dons que Deus concedeu à humanidade e
uma manifestação de que a conduta se inspira no egoísmo, não no amor. Então tudo se
turva, os cônjuges chegam a olhar-se como cúmplices; e produzem-se dissensões que, a
continuar nessa linha, são quase sempre insanáveis.

Quando a castidade conjugal acompanha o amor, a vida matrimonial torna-se

20
expressão de uma conduta autêntica, marido e mulher compreendem-se e sentem-se
unidos; quando o bem divino da sexualidade se perverte, a intimidade se destrói, e
marido e mulher já não se podem olhar nobremente nos olhos.

Os esposos devem edificar a sua vida em comum sobre um carinho sincero e limpo, e
sobre a alegria de terem trazido ao mundo os filhos que Deus lhes tenha conferido a
possibilidade de ter, sabendo renunciar a comodidades pessoais e tendo fé na
Providência. Formar uma família numerosa, se tal for a vontade de Deus, é penhor de
felicidade e eficácia, embora afirmem outra coisa os fautores de um triste hedonismo.

É Cristo que passa, O matrimônio, vocação cristã, 26

Não vos esqueçais de que, entre os esposos, há ocasiões em que não é possível evitar as
26 rusgas. Não alterqueis nunca diante dos filhos: fá-los-íeis sofrer e pôr-se-iam de um
dos lados, contribuindo talvez para aumentar inconscientemente a vossa desunião. Mas
brigar, sempre que não seja muito freqüente, também é uma manifestação de amor,
quase uma necessidade. A ocasião, não o motivo, costuma ser o cansaço do marido,
esgotado pelo trabalho profissional; a fadiga - oxalá não seja o aborrecimento - da
esposa, que teve de lutar com as crianças, com as empregadas ou com o seu próprio
caráter, às vezes pouco rijo, ainda que vós, mulheres, sejais mais enérgicas que os
homens, se vos propondes sê-lo.

Evitai a soberba, que é o maior inimigo da vossa vida conjugal: em vossas pequenas
brigas, nenhum dos dois tem razão. Aquele que estiver mais sereno deve dizer uma
palavra que contenha o mau humor até mais tarde. E mais tarde - a sós - discuti, que
logo fareis as pazes.

Vós, mulheres, pensai se porventura não descuidais um pouco o arranjo pessoal;


recordai, com o provérbio, que “a mulher bem-posta tira o homem de outra porta”: é
sempre atual o dever de vos apresentardes amáveis como quando éreis noivas, dever de
justiça, porque pertenceis ao vosso marido; e ele não deve esquecer, igualmente, que é
vosso e que conserva a obrigação de ser, durante toda a vida, afetuoso como um noivo.
Mau sinal se sorrísseis com ironia ao lerdes este parágrafo: seria sinal evidente de que
o afeto familiar se havia convertido em gélida indiferença.

É Cristo que passa, O matrimônio, vocação cristã, 27

Não se pode falar do matrimônio sem pensar ao mesmo tempo na família, que é o fruto
27 e a continuação da realidade que se inicia com o matrimônio. Uma família compõe-se,
não só do marido e da mulher, mas também dos filhos e, em um ou outro grau, dos
avós, dos demais parentes e das empregadas domésticas. O calor íntimo de que
depende o ambiente familiar deve chegar a todos eles.

É certo que há casais a quem o Senhor não concede filhos: é sinal, então, de que lhes
pede que continuem a querer-se com igual carinho e que dediquem as suas energias - se
puderem - a serviços e tarefas em benefício de outras almas. Mas o normal é que um

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casal tenha descendência. Para estes esposos, a primeira preocupação devem ser os
seus próprios filhos. A paternidade e a maternidade não terminam com o nascimento:
essa participação no poder de Deus, que é a faculdade de gerar, deve prolongar-se
mediante a cooperação com o Espírito Santo, para que culmine com a formação de
autênticos homens cristãos e autênticas mulheres cristãs.

Os pais são os principais educadores de seus filhos, tanto no aspecto humano como no
sobrenatural, e devem sentir a responsabilidade dessa missão, que exige deles
compreensão, prudência, saber ensinar e sobretudo saber amar; e que se empenhem em
dar bom exemplo. Não é caminho acertado para a educação a imposição autoritária e
violenta. O ideal dos pais concretiza-se antes em chegarem a ser amigos dos filhos:
amigos a quem se confiam as inquietações, a quem se consultam os problemas, de
quem se espera uma ajuda eficaz e amável.

É necessário que os pais consigam tempo para estar com os filhos e falar com eles. Os
filhos são o que há de mais importante: são mais importantes que os negócios, que o
trabalho, que o descanso. Nessas conversas, convém escutá-los com atenção,
esforçar-se por compreendê-los, saber reconhecer a parte de verdade - ou a verdade
inteira - que possa haver em algumas de suas rebeldias. E, ao mesmo tempo, ajudá-los
a canalizar retamente seus interesses e entusiasmos, ensiná-los a considerar as coisas e
a raciocinar, não lhes impor determinada conduta, mas mostrar-lhes os motivos
sobrenaturais e humanos que a aconselham. Em uma palavra, respeitar-lhes a
liberdade, já que não há verdadeira educação sem responsabilidade pessoal, nem
responsabilidade sem liberdade.

É Cristo que passa, O matrimônio, vocação cristã, 28

Os pais educam fundamentalmente com a sua conduta. O que os filhos e as filhas


28 procuram no pai e na mãe não são apenas uns conhecimentos mais amplos que os seus,
ou uns conselhos mais ou menos acertados, mas algo de maior categoria: um
testemunho do valor e do sentido da vida encarnado numa existência concreta,
confirmado nas diversas circunstâncias e situações que se sucedem ao longo dos anos.

Se tivesse que dar um conselho aos pais, dir-lhes-ia sobretudo o seguinte: que os
vossos filhos vejam - não alimenteis ilusões, eles percebem tudo desde crianças e tudo
julgam - que procurais viver de acordo com a vossa fé, que Deus não está apenas nos
vossos lábios, que está nas vossas obras, que vos esforçais por ser sinceros e leais, que
vos quereis e os quereis de verdade.

Assim contribuireis da melhor forma possível para fazer deles cristãos verdadeiros,
homens e mulheres íntegros, capazes de enfrentar com espírito aberto as situações que
a vida lhes apresente, de servir aos seus concidadãos e de contribuir para a solução dos
grandes problemas da humanidade, levando o testemunho de Cristo aonde quer que se
encontrem mais tarde, na sociedade.

22
É Cristo que passa, O matrimônio, vocação cristã, 29

Escutai os vossos filhos, dedicai-lhes também o vosso tempo, mostrai-lhes confiança,


29 acreditai no que vos disserem, ainda que uma vez ou outra vos enganem; não vos
assusteis com as suas rebeldias, posto que também vós, na mesma idade, fostes mais
ou menos rebeldes; saí-lhes ao encontro, até meio do caminho, e rezai por eles. E
vereis como recorrerão a seus pais com simplicidade - podeis estar certos, se agis assim
cristãmente -, em vez de recorrerem, com suas legítimas curiosidades, a um
amigalhaço desavergonhado e brutal. A vossa confiança, a vossa relação amigável com
os filhos, receberá em resposta a sinceridade deles para convosco. E isto é a paz
familiar, a vida cristã, embora não faltem contendas e incompreensões de pouca monta.

Como descreverei - pergunta um escritor dos primeiros séculos - a felicidade desse


matrimônio que a Igreja une, que a entrega confirma, que a bênção sela, que os anjos
proclamam, e que Deus Pai tem por celebrado?... Ambos os esposos são como irmãos,
servos um do outro, sem que se dê entre eles separação alguma, nem na carne nem no
espírito. Porque verdadeiramente são dois numa só carne, e onde há uma só carne
deve haver um só espírito... Ao contemplar esses lares, Cristo se alegra e envia-lhes a
sua paz; onde estão dois, ali está Ele também, e onde Ele está, não pode haver nada de
mau.

É Cristo que passa, O matrimônio, vocação cristã, 30

Procuramos resumir e comentar alguns traços desses lares em que se reflete a luz de
30 Cristo e que, por isso - repito -, são luminosos e alegres; lares em que a harmonia que
reina entre os pais se transmite aos filhos, à família inteira e a todos os ambientes que a
acompanham. Assim, em cada família autenticamente cristã, reproduz-se de algum
modo o mistério da Igreja, escolhida por Deus e enviada como guia do mundo.

A todo o cristão, seja qual for a sua condição - sacerdote ou leigo, casado ou solteiro -,
aplicam-se plenamente as palavras do Apóstolo que se lêem precisamente na Epístola
da festa da Sagrada Família: escolhidos de Deus, santos e amados. Isso somos todos,
cada um no seu lugar no mundo: homens e mulheres escolhidos por Deus para dar
testemunho de Cristo e levar aos que nos rodeiam a alegria de se saberem filhos de
Deus, apesar dos nossos erros e procurando lutar contra eles.

É muito importante que nunca falte o sentido vocacional do matrimônio, tanto na


catequese e pregação como na consciência daqueles a quem Deus queira nesse
caminho, já que estão real e verdadeiramente chamados a incorporar-se aos desígnios
divinos de salvação de todos os homens.

Por isso, talvez não se possa propor aos esposos cristãos melhor modelo que o das
famílias dos tempos apostólicos: o centurião Cornélio, que foi dócil à vontade de Deus,
e em cuja casa se consumou a abertura da Igreja aos gentios ; Áquila e Priscila, que
difundiram o cristianismo em Corinto e em Éfeso, e que colaboraram com o apostolado

23
de São Paulo ; Tabita, que com a sua caridade assistiu os necessitados de Jope. E tantos
outros lares de judeus e gentios, de gregos e romanos, aos quais chegou a pregação dos
primeiros discípulos do Senhor.

Famílias que viveram de Cristo e que deram a conhecer Cristo. Pequenas comunidades
cristãs, que atuaram como centros de irradiação da mensagem evangélica. Lares iguais
aos outros lares daqueles tempos, mas animados de um espírito novo, que contagiava
os que os conheciam e com eles se relacionavam.

Assim foram os primeiros cristãos e assim havemos de ser nós, os cristãos de hoje:
semeadores de paz e de alegria, da paz e da alegria que Jesus nos trouxe.

É Cristo que passa, Na Epifania do Senhor, 31

Não há muito tempo, tive ocasião de admirar um baixo-relevo em mármore que


31 representava a cena da adoração do Menino-Deus pelos Magos. Emoldurando esse
baixo-relevo, viam-se outros: quatro anjos, cada um com um símbolo - um diadema, o
mundo coroado pela cruz, uma espada, um cetro. Foi assim que alguém ilustrou
plasticamente, com símbolos bem conhecidos, o acontecimento que hoje
comemoramos: uns homens sábios - a tradição diz que eram reis - prostram-se diante
de um Menino, depois de perguntarem em Jerusalém: Onde está o rei dos judeus que
acaba de nascer?

Instado por essa pergunta, eu também contemplo agora Jesus reclinado numa
mangedoura , num lugar próprio para animais. Onde está, Senhor, a tua realeza: o
diadema, a espada, o cetro? Pertencem-lhe, e Ele não os quer; reina envolto em panos.
É um Rei inerme, que se apresenta indefeso; é uma criança. Como não havemos de
recordar aquelas palavras do Apóstolo: Aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de
servo ?

Nosso Senhor encarnou-se para nos manifestar a vontade do Pai. E eis que já do
próprio berço nos instrui. Jesus Cristo procura-nos - com uma vocação, que é vocação
de santidade - para com Ele consumarmos a redenção. Consideremos o seu primeiro
ensinamento: temos que corredimir procurando o triunfo, não sobre o próximo, mas
sobre nós mesmos. Como Cristo, precisamos aniquilar-nos, sentir-nos servidores dos
outros para os levar a Deus.

Onde está o Rei? Não será que Jesus deseja reinar antes de tudo no coração, no teu
coração? Por isso se fez Menino, porque quem há que não ame uma criança? Onde está
o Rei? Onde está o Cristo que o Espírito Santo procura formar em nossa alma? Não
pode estar na soberba, que nos separa de Deus; não pode estar na falta de caridade, que
nos isola. Aí não pode estar Cristo; aí o homem fica só.

No dia da Epifania, situados aos pés de Jesus Menino, de um Rei sem sinais externos
de realeza, podemos dizer-lhe: Senhor, tira a soberba de minha vida; destrói o meu
amor próprio, este desejo de me afirmar e me impor aos outros; faz com que o
fundamento da minha personalidade seja a identificação contigo.

24
É Cristo que passa, Na Epifania do Senhor, 32

Identificar-se com Cristo não é meta fácil. Mas também não é difícil, se vivermos
32 como o Senhor nos ensinou, se recorrermos diariamente à sua Palavra, se
impregnarmos a nossa vida da realidade sacramental - a Eucaristia - que Ele nos deixou
em alimento, porque o caminho do cristão é andadeiro, como lembra uma antiga
canção da minha terra. Deus chamou-nos clara e inequivocamente. Como os Reis
Magos, descobrimos uma estrela - que é luz e rumo - no céu da nossa alma.

Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo. Foi o que aconteceu conosco. Nós
também percebemos que pouco a pouco se acendia na alma um novo resplendor: o
desejo de sermos plenamente cristãos; se assim me posso exprimir, a ânsia de
tomarmos Deus a sério. Se cada um de nós se pusesse agora a contar em voz alta o
processo íntimo da sua vocação sobrenatural, os outros perceberiam que tudo isso era
divino. Agradeçamos a Deus Pai, a Deus Filho, a Deus Espírito Santo e a Santa Maria,
por meio da qual nos vêm todas as bênçãos do céu, este dom que, juntamente com a fé,
é a maior graça que o Senhor pode conceder a uma criatura: o firme anseio de alcançar
a plenitude da caridade, na convicção de que não só é possível, como também
necessária, a santidade no meio das ocupações profissionais, sociais...

Consideremos a delicadeza com que o Senhor nos dirige o convite. Exprime-se com
palavras humanas, como um enamorado: Eu te chamei pelo teu nome... Tu és meu.
Deus, que é a Formosura, a Grandeza, a Sabedoria, anuncia-nos que somos seus, que
nos escolheu como termo do seu amor infinito. É precisa uma forte vida de fé para não
desvirtuarmos esta maravilha que a Providência Divina deposita em nossas mãos. Fé
como a dos Reis Magos: a convicção de que nem o deserto, nem as tempestades, nem a
tranqüilidade dos oásis nos impedirão de chegar à meta do Presépio eterno: a vida
definitiva com Deus.

É Cristo que passa, Na Epifania do Senhor, 33

Um caminho de fé é um caminho de sacrifício. A vocação cristã não nos tira do nosso


33 lugar, mas exige que abandonemos tudo o que estorva o querer de Deus. A luz que se
acende é apenas o princípio; temos que segui-la, se desejamos que essa claridade se
torne estrela, e depois sol. Enquanto os Magos estavam na Pérsia - escreve São João
Crisóstomo -, não viam senão uma estrela; mas, quando abandonaram a sua pátria,
viram o próprio sol da justiça. Pode-se dizer que não teriam continuado a ver a estrela
se tivessem permanecido no seu país. Apressemo-nos, pois, nós também; ainda que
todos no-lo impeçam, corramos à casa desse Menino.

Vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo. Ao ouvir isto, o Rei Herodes
perturbou-se, e com ele toda a cidade de Jerusalém. Ainda hoje se repete a cena.
Perante a grandeza de Deus, perante a decisão, seriamente humana e profundamente
cristã, de viver de modo coerente com a fé. Não faltam pessoas que se enchem de
estranheza, e até se escandalizam e se desconcertam. Dir-se-ia que não concebem outra

25
realidade além das que cabem em seus estreitos horizontes terrenos. Perante os gestos
de generosidade que percebem na conduta dos que ouviram a chamada do Senhor,
sorriem com displicência, assustam-se, ou então - em casos que parecem
verdadeiramente patológicos - concentram todo o seu esforço em impedir a santa
determinação que uma consciência tomou com a mais plena liberdade.

Já tive ocasião de presenciar uma espécie de mobilização geral contra os que haviam
decidido dedicar toda a sua vida ao serviço de Deus e dos demais homens. Há gente
persuadida de que o Senhor não pode escolher seja quem for sem lhes pedir
autorização, e de que o homem não é capaz de responder sim ou não ao Amor, com a
mais plena liberdade. Para quem raciocina nesses termos, a vida sobrenatural de cada
alma é algo secundário; pensam que merece atenção, mas só depois de satisfeitos os
pequenos comodismos e egoísmos humanos. Se fosse assim, que restaria do
cristianismo? As palavras de Jesus, amorosas e exigentes ao mesmo tempo, serão só
para ouvir, ou para ouvir e pôr em prática? Ele disse: Sede perfeitos, como vosso Pai
celestial é perfeito.

Nosso Senhor dirige-se a todos os homens, para que caminhem ao seu encontro, para
que sejam santos. Não chama só os Reis Magos, que eram sábios e poderosos; antes
disso, tinha enviado aos pastores de Belém, não já uma estrela, mas um de seus anjos.
No entanto, quer uns quer outros - sejam pobres ou ricos, sábios ou menos sábios -
devem fomentar na sua alma uma disposição humilde que permita escutar a voz de
Deus.

Consideremos o caso de Herodes: era um poderoso da terra, e tem às suas ordens a


colaboração dos sábios: Reunindo todos os príncipes dos sacerdotes e os escribas do
povo, perguntou-lhes onde havia de nascer o Messias. Seu poder e sua ciência não o
levam a reconhecer Deus. Para o seu coração empedernido, o poder e a ciência são
instrumentos da maldade: o desejo inútil de aniquilar Deus, o desprezo pela vida de um
punhado de crianças inocentes.

Continuemos a ler o Santo Evangelho: Eles responderam: em Belém de Judá, pois


assim está escrito pelo profeta. “E tu, Belém, terra de Judá, não és certamente a
menor entre as cidades de Judá, porque de ti sairá o chefe que apascentará meu povo
de Israel” Não nos podem passar despercebidos estes detalhes de misericórdia divina:
aquele que vinha redimir o mundo nasce numa aldeia perdida. É que Deus não faz
distinção de pessoas , como nos repete insistentemente a Escritura. Ao convidar uma
alma a uma vida de plena coerência com a fé, não se detém em méritos de fortuna, em
títulos de nobreza, em altos graus de ciência. A vocação precede todos os méritos: A
estrela que tinham visto no Oriente precedia-os, até que, chegando sobre o lugar onde
estava o Menino, se deteve.

A vocação está em primeiro lugar; Deus nos ama antes de que saibamos sequer
dirigir-nos a Ele, e deposita em nós o amor com que podemos corresponder-lhe. A
bondade paternal de Deus corre ao nosso encontro. Nosso Senhor não se limita a ser
justo; vai muito mais longe: é misericordioso. Não espera que o procuremos;
antecipa-se, com manifestações inequívocas de carinho paternal.

26
É Cristo que passa, Na Epifania do Senhor, 34

Se a vocação está em primeiro lugar, se a estrela brilha antecipadamente para nos


34 orientar no nosso caminho de amor a Deus, não é lógico ter dúvidas quando ela se
oculta uma vez por outra. Quase sempre por nossa culpa, acontece em determinados
momentos da nossa vida interior o que aconteceu durante a viagem dos Reis Magos: a
estrela desaparece. Conhecemos já o resplendor divino da nossa vocação, estamos
persuadidos do seu caráter definitivo, mas talvez o pó que levantamos ao andar -
nossas misérias - forme uma nuvem opaca que não deixa passar a luz.

Que fazer então? Seguir os passos daqueles homens santos: perguntar. Herodes
serviu-se da ciência para proceder de modo injusto; os Reis Magos utilizam-na para
fazer o bem.

Mas nós, cristãos, não temos necessidade de perguntar a Herodes ou aos sábios da
terra. Cristo deu à sua Igreja a segurança da doutrina, a corrente de graça dos
Sacramentos; e cuidou de que houvesse pessoas que nos pudessem orientar, que nos
conduzissem, que nos trouxessem constantemente à memória o nosso caminho.
Dispomos de um tesouro infinito de ciência: a Palavra de Deus, guardada pela Igreja; a
graça de Cristo, que nos é administrada através dos Sacramentos; o testemunho e o
exemplo dos que vivem retamente ao nosso lado, e que souberam construir com suas
vidas um caminho de fidelidade a Deus.

Seja-me permitido um conselho: se alguma vez perdemos a claridade da luz,


recorramos sempre ao bom pastor. E quem é o bom pastor? O que entra pela porta da
fidelidade à doutrina da Igreja; aquele que não se comporta como o mercenário, o qual,
vendo chegar o lobo, abandona as ovelhas e foge; e o lobo as arrebata e dispersa o
rebanho. A palavra divina não é vã; e a insistência de Cristo - não percebemos o
carinho com que fala de pastores e de ovelhas, do redil e do rebanho? - é uma
demonstração prática da necessidade de um bom guia para a nossa alma.

Se não houvesse maus pastores, escreve Santo Agostinho, Ele não no-lo teria
prevendo. Quem é o mercenário? É o que vê o lobo e foge; o que procura a sua glória,
não a glória de Cristo: o que não se atreve a censurar os pecadores com liberdade de
espírito. O lobo fila uma ovelha pelo pescoço, o demônio induz um fiel a cometer
adultério. E tu te calas, não censuras. És mercenário; viste vir o lobo e fugiste. Talvez
digas: não, estou aqui, não fugi. Não, respondo, fugiste porque te calaste; e te calaste
porque tiveste medo.

A santidade da Esposa de Cristo sempre se demonstrou - como hoje continua a


demonstrar-se - pela abundancia de bons pastores. Mas a fé cristã, que nos ensina a ser
simples, não nos induz a ser ingênuos. Há mercenários que se calam, e há mercenários
que pronunciam palavras que não são de Cristo. Por isso, se porventura o Senhor
permite que fiquemos às escuras, mesmo em coisas de pormenor; se sentimos que a
nossa fé não é firme, recorramos ao bom pastor, àquele que entra pela porta, exercendo
o seu direito, àquele que - dando a vida pelos outros - quer ser, na palavra e na conduta,
uma alma enamorada: talvez um pecador também, mas que confia sempre no perdão e

27
na misericórdia de Cristo.

Se a nossa consciência nos reprova alguma falta - mesmo que não nos pareça grave -,
se estamos em dúvida, recorramos ao Sacramento da Penitência. Iremos ao sacerdote
que nos atende, àquele que sabe exigir de nós firmeza na fé, delicadeza de alma,
verdadeira fortaleza cristã. A Igreja concede-nos a mais plena liberdade para nos
confessarmos com qualquer sacerdote que possua as legítimas licenças; mas um cristão
de vida clara procura - livremente - aquele que reconhece como bom pastor, e que pode
ajudá-lo a levantar os olhos para tornar a ver no alto a estrela do Senhor.

É Cristo que passa, Na Epifania do Senhor, 35

Videntes autem stellam, gavisi sunt gaudio magno valde , diz o texto latino com
35 admirável reiteração: ao descobrirem novamente a estrela, exultaram cheios de grande
alegria. Por quê tanta alegria? Porque eles, que nunca duvidaram, recebem do Senhor a
prova de que a estrela não desapareceu: deixaram de contemplá-la sensivelmente, mas
tinham-na conservado sempre na alma. Assim é a vocação do cristão: se não se perde a
fé, se se preserva a esperança em Jesus Cristo, que estará conosco até à consumação
dos séculos , a estrela reaparece. E, ao verificarmos uma vez mais a realidade da
vocação, nasce uma alegria maior, que aumenta em nós a fé.

Entrando na casa, viram o Menino com Maria, sua Mãe, e, pondo-se de joelhos, o
adoraram. Nós também nos ajoelhamos diante de Jesus, do Deus escondido na
humanidade: repetimos-lhe que não queremos dar as costas à sua chamada divina, que
não nos afastaremos dEle; que tiraremos do nosso caminho tudo o que for obstáculo à
fidelidade; que desejamos sinceramente ser dóceis às suas inspirações. Tu, na tua alma,
e eu também - porque faço uma oração íntima, com um profundo clamor silencioso -
estamos contando agora ao Menino que temos ânsias de ser tão leais aos nossos
compromissos quanto os servos da parábola, para que nos possa também responder:
Alegra-te, servo bom e fiel.

E abrindo seus tesouros, ofereceram-lhe presentes de ouro, incenso e mirra.


Detenhamo-nos um pouco nesta passagem do Santo Evangelho. Como é possível que
nós, que nada somos e nada valemos, levemos oferendas a Deus? Diz a Escritura: Toda
a dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto. O homem não consegue sequer descobrir
inteiramente a profundidade e a beleza dos presentes do Senhor: Se conhecesses o dom
de Deus! , responde Jesus à mulher samaritana. Jesus Cristo ensinou-nos a esperar tudo
do Pai, a procurar, antes de mais nada, o reino de Deus e a sua justiça, porque tudo o
resto nos seria dado por acréscimo, e Ele sabe de que coisas estamos necessitados.

Na economia da salvação, Nosso Pai cuida de cada alma com amorosa delicadeza:
Cada um recebeu de Deus seu próprio dom, uns de uma maneira, outros de outra.
Poderia, pois, parecer inútil esforçar-nos por apresentar ao Senhor algo de que Ele
necessitasse; dada a nossa situação de devedores insolventes , nossas oferendas
assemelhar-se-iam às da Lei Antiga, que Deus já não aceita: Não quiseste sacrifícios
nem oblações, nem holocaustos pelos pecados, nem te são agradáveis as coisas que se
oferecem segundo a Lei.

28
Mas o Senhor sabe que dar é próprio de enamorados, e Ele mesmo nos indica o que
deseja de nós. Não lhe interessam as riquezas, nem os frutos, nem os animais da terra,
do mar ou do ar, porque tudo isso lhe pertence. Quer algo íntimo, que temos que
entregar-lhe com liberdade: Dá-me, meu filho, o teu coração. Estamos vendo? Ele não
se satisfaz compartilhando: quer tudo. Repito: não anda procurando as nossas coisas;
quer-nos a nós mesmos. Daí - e somente daí - surgem todos os outros presentes que
podemos oferecer ao Senhor.

Vamos dar-lhe, portanto, ouro: o ouro fino do espírito de desprendimento do dinheiro e


dos meios materiais. Não esqueçamos que são coisas boas, que procedem de Deus.
Mas o Senhor dispôs que as utilizássemos sem nelas deixar o coração, fazendo-as
render em proveito da humanidade.

Os bens da terra não são maus; pervertem-se quando o homem os erige como ídolos e
se prostra diante deles; enobrecem-se quando os convertemos em instrumentos a
serviço do bem, em uma tarefa cristã de justiça e de caridade. Não podemos correr
atrás dos bens materiais como quem vai à busca de um tesouro; nosso tesouro está
aqui, reclinado numa mangedoura; é Cristo, e nEle se devem concentrar todos os
nossos amores, porque onde estiver o nosso tesouro, lá estará também o nosso
coração.

É Cristo que passa, Na Epifania do Senhor, 36

Oferecemos incenso: os desejos - que sobem até o Senhor - de levar uma vida nobre,
36 da qual se desprenda o bonus odor Christi , O perfume de Cristo. Impregnar nossas
palavras e ações desse bonus odor é semear compreensão, amizade. Que a nossa vida
acompanhe a vida dos demais homens, para que ninguém se encontre ou se sinta só.
Nossa caridade deve ser também carinho, calor humano.

Assim no-lo ensina Jesus Cristo. Fazia séculos que a humanidade esperava a vinda do
Salvador; os profetas haviam-no anunciado de mil maneiras, e - embora grande parte
da Revelação de Deus aos homens se tivesse perdido em conseqüência do pecado e da
ignorância -, até nos confins da terra se conservava o desejo de Deus, a ânsia de
redenção.

Chega a plenitude dos tempos e, para levar a cabo essa missão, não aparece um gênio
filosófico, como Platão ou Sócrates; não se instala na terra um conquistador poderoso,
como Alexandre Magno. Nasce um Infante em Belém: é o Redentor do mundo. Mas,
antes de falar, ama com obras. Não traz nenhuma fórmula mágica, porque sabe que a
salvação que nos oferece tem que passar pelo coração do homem. Suas primeiras ações
são risos e choros de criança, sono inerme de um Deus humanado: para nos cativar,
para que saibamos acolhê-lo em nossos braços.

Uma vez mais ganhamos consciência do que é o cristianismo. Se o cristão não ama
com obras, fracassa como cristão, que é fracassar também como pessoa. Não podemos
pensar nos outros homens como se fossem números ou degraus para nós podermos
subir; ou massa para ser exaltada ou humilhada, adulada ou desprezada, conforme os
casos. Devemos pensar nos outros - em primeiro lugar, nos que estão ao nosso lado -

29
como verdadeiros filhos de Deus que são, com toda a dignidade desse título
maravilhoso.

Com os filhos de Deus temos que nos comportar como filhos de Deus: o nosso amor
deve ser sacrificado, diário, feito de mil detalhes de compreensão, de sacrifício
silencioso, de dedicação que não se percebe. Este é o bonus odor Christi, que fazia
dizer aos que viviam entre os nossos primeiros irmãos na fé: Vede como se amam!

Não falo de um ideal utópico. O cristão não é um Tartarin de Tarascon, empenhado em


caçar leões onde não os pode encontrar: nos corredores de sua própria casa. Quero falar
sempre de uma vida diária e concreta: da santificação do trabalho, das relações
familiares, da amizade. Se não somos cristãos nesses momentos, quando o seremos? O
bom perfume do incenso é o resultado de uma brasa que queima sem espetáculo uma
grande quantidade de grãos. O bonus odor Christi faz-se sentir entre os homens, não
pelas labaredas de um fogo de palha, mas pela eficácia de um rescaldo de virtudes: a
justiça, a lealdade, a fidelidade, a compreensão, a generosidade, a alegria.

É Cristo que passa, Na Epifania do Senhor, 37

E, com os Reis Magos, oferecemos também mirra, o sacrifício que não deve faltar na
37 vida cristã. A mirra traz-nos à lembrança a paixão do Senhor: na Cruz, dão-lhe a beber
mirra misturada com vinho , e com mirra ungiram seu corpo para a sepultura. Mas não
pensemos que a reflexão sobre a necessidade do sacrifício e da mortificação significa
introduzir uma nota de tristeza na festa alegre que hoje celebramos.

Mortificação não é pessimismo nem espírito acre. A mortificação nada vale sem a
caridade: por isso devemos procurar mortificações que, além de nos fazerem passar
pelas coisas da terra com domínio, não mortifiquem os que vivem ao nosso lado. O
cristão não pode ser nem um verdugo nem um miserável; é um homem que sabe amar
com obras, que prova o seu amor na pedra de toque da dor.

Mas devo dizer outra vez que, em geral, essa mortificação não consistirá em grandes
renúncias, que aliás não são freqüentes. Há de compor-se de pequenas vitórias: sorrir
para quem nos aborrece, negar ao corpo o capricho de uns bens supérfluos,
acostumar-se a escutar os outros, fazer render o tempo que Deus põe à nossa
disposição... E tantos outros detalhes, aparentemente insignificantes - contrariedades,
dificuldades, dissabores - que surgem ao longo do dia sem que os procuremos.

É Cristo que passa, Na Epifania do Senhor, 38

Termino com as palavras do Evangelho de hoje: Entrando na casa, viram o Menino


38 com Maria, sua Mãe. Nossa Senhora não se separa do seu Filho. Os Reis Magos não
são recebidos por um rei encimado no seu trono, mas por um Menino nos braços de sua
Mãe. Peçamos à Mãe de Deus, que é nossa Mãe, que nos prepare o caminho que
conduz à plenitude do amor: Cor Mariae dulcissimum, iter para tutum! Seu doce
coração conhece o caminho mais seguro para encontrarmos Cristo.

30
Os Reis Magos tiveram uma estrela; nós temos Maria, Stella maris, Stella Orientis,
Estrela do mar, Estrela do Oriente. Hoje dizemos-lhe: Santa Maria, Estrela do mar,
Estrela da manhã, ajuda os teus filhos. Nosso zelo pelas almas não deve conhecer
fronteiras, porque ninguém está excluído do amor de Cristo. Os Reis Magos foram as
primícias dos gentios; mas, uma vez consumada a Redenção, já não há judeu nem
grego, não há servo nem livre, não há homem nem mulher - não existe discriminação
de espécie alguma -, porque todos vós sois um em Jesus Cristo.

Nós, cristãos, não podemos ser exclusivistas nem separar ou classificar as almas; virão
muitos do Oriente e do Ocidente ; todos têm lugar no coração de Cristo. Seus braços -
voltamos a admirá-lo no Presépio - são de criança, mas são os mesmos que se abrirão
na Cruz, atraindo todos os homens a Si.

E o nosso último pensamento vai para esse homem justo, nosso Pai e Senhor São José,
que, como de costume, passa despercebido na cena da Epifania. Adivinho-o recolhido
em contemplação, protegendo com amor o Filho de Deus que, feito homem, foi
confiado aos seus cuidados paternais. Com a maravilhosa delicadeza de quem não vive
para si, o Santo Patriarca excedeu-se num serviço tão silencioso como eficaz.

Falamos hoje da vida de oração e de ânsias de apostolado. Queremos melhor mestre do


que São José? Se quiserdes um conselho, que repito incansavelmente há muitos anos,
ite ad Ioseph , recorrei a São José: ele nos mostrará caminhos concretos e modos
humanos e divinos de nos aproximarmos de Jesus. E em breve nos atreveremos, como
ele, a segurar nos braços, a beijar, vestir e cuidar deste Menino-Deus que para nós
nasceu. Com a homenagem da sua veneração, os Magos ofereceram a Jesus ouro,
incenso e mirra; José deu-lhe - por inteiro - o seu coração jovem e enamorado.

É Cristo que passa, Na oficina de José, 39

A Igreja inteira reconhece em São José o seu protetor e padroeiro. Ao longo dos
39 séculos, tem-se falado dele sublinhando diversos aspectos da sua vida, continuamente
fiel à missão que Deus lhe confiou. Por isso, desde há muitos anos, agrada-me
invocá-lo com este título muito íntimo: Nosso Pai e Senhor.

São José é realmente Pai e Senhor: protege e acompanha no seu caminho terreno
aqueles que o veneram, como protegeu e acompanhou Jesus enquanto crescia e se
tornava homem. Quando se procura ganhar intimidade com ele, descobre-se que o
Santo Patriarca é, além disso, Mestre de vida interior, porque nos ensina a conhecer
Jesus, a conviver com Ele, a tomar consciência de que fazemos parte da família de
Deus. E São José nos dá esses ensinamentos sendo, como foi, um homem comum, um
pai de família, um trabalhador que ganhava a vida com o esforço de suas mãos. E este
último aspecto reveste-se também de um significado que é para nós motivo de reflexão
e de alegria.

Ao celebrarmos hoje a sua festa, quero evocar a sua figura recordando o que dele nos
diz o Evangelho, para assim podermos descobrir melhor o que Deus nos transmite
através da vida simples do Esposo de Santa Maria.

31
É Cristo que passa, Na oficina de José, 40

Tanto São Mateus como São Lucas nos falam de São José como varão que descendia
40 de uma estirpe ilustre: a de Davi e Salomão, reis de Israel. Historicamente, os detalhes
desta ascendência são um pouco confusos, não sabemos qual das duas genealogias
enumeradas pelos evangelistas diz respeito a Maria - Mãe de Jesus segundo a carne - e
qual a José, que era pai do Senhor segundo a lei judaica. Nem sabemos se a cidade
natal de São José era Belém, onde se recenseou, ou Nazaré, onde vivia e trabalhava.

Sabemos, porém, que não era uma pessoa rica: era um trabalhador, como milhões de
outros homens em todo o mundo; exercia o ofício fatigante e humilde que Deus havia
escolhido para Si ao tomar a nossa carne e ao querer viver trinta anos entre nós como
outra pessoa qualquer.

A Sagrada Escritura diz-nos que José era artesão. Vários Padres acrescentam que foi
carpinteiro. São Justino, referindo a vida de trabalho de Jesus, afirma que fazia arados e
jugos. Baseando-se provavelmente nessas palavras, Santo Isidoro de Sevilha conclui
que José era ferreiro. Seja como for, era um operário que trabalhava a serviço de seus
concidadãos, que tinha uma habilidade manual, fruto de anos de esforço e de suor.

Das narrações evangélicas depreende-se a grande personalidade humana de José: em


nenhum momento surge aos nossos olhos como um homem apoucado ou assustado
perante a vida; pelo contrário, sabe enfrentar os problemas, ultrapassar as situações
difíceis, assumir com responsabilidade e iniciativa as tarefas que lhe são confiadas.

Não estou de acordo com a forma clássica de representar São José como um ancião,
ainda que com isso se tenha tido a boa intenção de ressaltar a perpétua virgindade de
Maria. Eu imagino-o jovem, forte, talvez com alguns anos mais do que a Virgem, mas
na plenitude da vida e do vigor humano.

Para viver a virtude da castidade, não é preciso esperar pela velhice ou pelo termo das
energias. A castidade nasce do amor e, para um amor limpo, nem a robustez nem a
alegria da juventude representam qualquer obstáculo. Jovem era o coração e o corpo de
São José quando contraiu matrimônio com Maria, quando soube do mistério da sua
Maternidade divina, quando viveu junto dEla respeitando a integridade que Deus
queria oferecer ao mundo, como um sinal mais da sua vinda às criaturas. Quem não for
capaz de entender um amor assim, é porque conhece muito mal o verdadeiro amor e
desconhece por completo o sentido cristão da castidade.

Como dizíamos, José era um artesão da Galiléia, um homem como tantos outros. E o
que pode esperar da vida um habitante de uma aldeia perdida como Nazaré? Apenas
trabalho, todos os dias, sempre com o mesmo esforço. E, no fim da jornada, uma casa
pobre e pequena, para recuperar as forças e recomeçar a tarefa no dia seguinte.

Mas o nome de José significa em hebreu Deus acrescentará. A vida santa dos que
cumprem a sua vontade, Deus acrescenta dimensões inesperadas: o que a torna
importante, o que dá valor a tudo - o divino. À vida humilde e santa de José, Deus

32
acrescentou - se assim me é permitido falar - a vida da Virgem Maria e a de Jesus,
Senhor Nosso. Deus nunca se deixa vencer em generosidade. José podia tornar próprias
as palavras pronunciadas por Santa Maria, sua Esposa: Quia fecit mihi magna qui
potens est, fez em mim coisas grandes Aquele que é Todo-Poderoso, quia respexit
humilitatem, porque olhou para a minha pequenez.

José era efetivamente um homem comum, em quem Deus confiou para realizar coisas
grandes. Soube viver - tal e como o Senhor queria - todos e cada um dos
acontecimentos que compuseram a sua vida. Por isso, a Santa Escritura louva José
afirmando dele que era justo. E, na língua hebraica, justo quer dizer piedoso, servidor
irrepreensível de Deus, cumpridor da vontade divina ; outras vezes, significa bom e
caridoso para com o próximo. Numa palavra, justo é aquele que ama a Deus e
demonstra esse amor cumprindo os mandamentos divinos e orientando toda a vida para
o serviço de seus irmãos, os homens.

É Cristo que passa, Na oficina de José, 41

A justiça não consiste na simples submissão a uma regra: a retidão deve nascer de
41 dentro, deve ser profunda, vital, porque o justo vive da fé. Viver da fé: essas palavras,
que mais tarde foram tema freqüente de meditação para o Apóstolo Paulo, vêem-se
amplamente realizadas em São José. Seu cumprimento da vontade de Deus não é
rotineiro nem formalista, mas espontâneo e profundo. A lei, que todo o judeu praticante
observava, não foi para ele um simples código nem uma fria recompilação de
preceitos, mas expressão da vontade do Deus vivo. Por isso soube reconhecer a voz do
Senhor quando lhe foi manifestada de forma inesperada e surpreendente.

A história do Santo Patriarca foi uma vida simples, mas não uma vida fácil. Depois de
momentos angustiantes, fica sabendo que o Filho de Maria foi concebido por obra do
Espírito Santo. E esse Menino, Filho de Deus, descendente de Davi segundo a carne,
nasce numa gruta. Os anjos celebram seu nascimento, e personalidades de terras
longínquas vêm adorá-lo. Mas o Rei da Judéia deseja a sua morte, e torna-se necessário
fugir. O Filho de Deus é, aparentemente, um menino indefeso, que terá de viver no
Egito.

É Cristo que passa, Na oficina de José, 42

Ao narrar estas cenas no seu Evangelho, São Mateus salienta constantemente a


42 fidelidade de José, que cumpre sem hesitações os mandatos de Deus, mesmo que
algumas vezes o sentido desses mandatos lhe possa parecer obscuro ou sem conexão
com o resto dos planos divinos.

Freqüentes vezes, os Padres da Igreja e os autores espirituais ressaltam esta firmeza da


fé de São José. Referindo-se às palavras do Anjo, que o manda fugir de Herodes e
refugiar-se no Egito , o Crisóstomo comenta: Ao ouvir isto, José não se escandalizou
nem disse: isto parece um enigma. Ainda há pouco me davas a conhecer que Ele
salvaria o seu povo, e agora não só não é capaz de se salvar a si mesmo, como somos

33
nós que temos de fugir, de empreender uma viagem e sofrer uma longa mudança: isso
é contrário à tua promessa. José não raciocina desse modo, porque é um varão fiel.
Também não pergunta pela data de regresso, apesar de o Anjo a ter deixado
indeterminada, posto que lhe tinha dito: permanece lá - no Egito - até que eu te avise.
Nem por isso levanta dificuldades, mas obedece, e crê, e suporta todas as provas
alegremente.

A fé de José não vacila, sua obediência é sempre estrita e rápida. Para compreendermos
melhor esta lição que aqui nos dá o Santo Patriarca, cumpre considerarmos que a sua fé
é ativa e que a sua docilidade não se assemelha à obediência de quem se deixa arrastar
pelos acontecimentos. Porque a fé cristã é o que há de mais oposto ao conformismo ou
à passividade e à apatia interiores.

José abandonou-se sem reservas nas mãos de Deus, mas nunca se recusou a refletir
sobre os acontecimentos, e assim pôde alcançar do Senhor esse grau de compreensão
das obras de Deus que é a verdadeira sabedoria. Desse modo, aprendeu pouco a pouco
que os planos sobrenaturais têm uma coerência divina, embora às vezes estejam em
contradição com os planos humanos.

Nas diversas circunstâncias de sua vida, o Patriarca não renuncia a pensar nem desiste
da sua responsabilidade. Pelo contrário, coloca toda a sua experiência humana a
serviço da fé. Quando volta do Egito, ouvindo que Arquelau reinava na Judéia em
lugar de seu pai Herodes, temeu ir para lá. Aprendeu a mover-se dentro do plano
divino e, como confirmação de que seus pensamentos vão ao encontro do que Deus
realmente quer, recebe a indicação de se retirar para a Galiléia.

Assim foi a fé de José: plena, confiante, íntegra, manifestada numa entrega eficaz à
vontade de Deus, numa obediência inteligente. E, junto com a fé, a caridade, o amor.
Sua fé funde-se com o Amor: com o Amor a um Deus que estava cumprindo as
promessas feitas a Abraão, a Jacó, a Moisés; com o carinho de esposo para com Maria,
e com o carinho de pai para com Jesus. Fé e amor na esperança da grande missão que
Deus, servindo-se dele também - um carpinteiro da Galiléia -, estava iniciando no
mundo: a redenção dos homens.

É Cristo que passa, Na oficina de José, 43

Fé, amor, esperança: estes são os eixos da vida de São José e os de toda a vida cristã. A
43 entrega de São José aparece-nos urdida por um entrelaçado de amor fiel, de fé
amorosa, de esperança confiante. A sua festa é, por isso, uma boa oportunidade para
que todos renovemos a nossa entrega à vocação de cristãos que o Senhor concedeu a
cada um.

Quando se deseja sinceramente viver de fé, de amor e de esperança, a renovação da


entrega não significa retomar uma coisa que estava em desuso. Quando há fé, amor e
esperança, renovar-se significa conservar-se nas mãos de Deus, apesar dos erros
pessoais, das quedas, das fraquezas: é confirmar um caminho de fidelidade. Renovar a
entrega, repito, é renovar a fidelidade àquilo que o Senhor quer de nós: é amar com
obras.

34
O amor tem necessariamente as suas manifestações características. Às vezes, fala-se do
amor como se fosse um impulso para a satisfação própria, ou um simples recurso para
completarmos em moldes egoístas a nossa personalidade. E não é assim: amor
verdadeiro é sair de si mesmo, entregar-se. O amor traz consigo a alegria, mas é uma
alegria com as raízes em forma de cruz. Enquanto estivermos na terra e não tivermos
chegado à plenitude da vida futura, não pode haver amor verdadeiro sem a experiência
do sacrifício, da dor. Uma dor que se saboreia, que é amável, que é fonte de íntima
alegria, mas que é dor real, porque supõe vencer o egoísmo e tomar o amor como regra
de todas e cada uma de nossas ações.

É Cristo que passa, Na oficina de José, 44

As obras do amor são sempre grandes, mesmo que se trate de coisas aparentemente
44 pequenas. Deus aproximou-se dos homens, pobres criaturas, e disse-nos que nos ama:
Deliciae meae esse cum filiis hominum , minhas delícias são estar com os filhos dos
homens. O Senhor mostra-nos que tudo tem importância: as ações que, com olhos
humanos, consideramos extraordinárias; essas outras que, pelo contrário, qualificamos
como algo de pouca categoria. Nada se perde. Nenhum homem é desprezado por Deus.
Todos nós, cada um seguindo a sua própria vocação - no seu lar, na sua profissão ou
ofício, no cumprimento das obrigações que lhe competem por seu estado, nos seus
deveres de cidadão, no exercício dos seus direitos -, todos somos chamados a participar
do reino dos céus.

É o que nos ensina a vida de São José: simples, normal e comum, feita de anos de
trabalho sempre igual, de dias humanamente monótonos, que se sucedem uns aos
outros. Tenho pensado muitas vezes nesse aspecto, ao meditar sobre a figura de São
José, e esta é uma das razões que me fazem sentir uma devoção especial por ele.

Quando, no seu discurso de encerramento da primeira sessão do Concílio Vaticano II,


no passado dia 8 de dezembro, o Santo Padre João XXIII anunciou que no cânon da
missa se mencionaria o nome de São José, uma altíssima personalidade eclesiástica
telefonou-me imediatamente para me dizer: Rallegramenti! Felicitações! Ao escutar a
notícia, pensei imediatamente no senhor, na alegria que lhe deve ter causado. Era
verdade: porque na assembléia conciliar, que representa a Igreja inteira reunida no
Espírito Santo, proclamava-se o imenso valor sobrenatural da vida de São José, o valor
de uma vida simples de trabalho feito diante de Deus, em total cumprimento da
vontade divina.

É Cristo que passa, Na oficina de José, 45

Descrevendo o espírito da associação a que dediquei a minha vida - o Opus Dei -,


45 tenho dito que se apóia, como que em seu eixo, no trabalho diário, no trabalho
profissional exercido no meio do mundo. A vocação divina confere-nos uma missão,
convida-nos a participar na tarefa única da Igreja, para sermos assim testemunhas de
Cristo perante os nossos iguais, os homens, e levarmos todas as coisas para Deus.

35
A vocação acende uma luz que nos faz reconhecer o sentido da nossa existência. É
convencermo-nos, sob o resplendor da fé, do porquê da nossa realidade terrena. Nossa
vida - a presente, a passada e a que há de vir - ganha um novo relevo, uma
profundidade de que antes não suspeitávamos. Todos os fatos e acontecimentos passam
a ocupar o seu verdadeiro lugar: entendemos para onde o Senhor nos quer conduzir, e
nos sentimos como que avassalados por essa tarefa que Ele nos confia.

Deus tira-nos das trevas da nossa ignorância, do nosso caminhar incerto por entre as
vicissitudes da história, e, seja qual for o posto que ocupemos no mundo, chama-nos
com voz forte, como o fez um dia com Pedro e com André: Venite post me, et faciam
vos fieri piscatores hominum , segui-me, e eu vos tornarei pescadores de homens.

Quem vive da fé pode encontrar a dificuldade e a luta, a dor e até a amargura, mas
nunca cairá no desânimo ou na angústia, pois sabe que a sua vida tem valor, sabe para
que veio a esta terra. Ego sum lux mundi - exclamou Cristo -; qui sequitur me non
ambulat in tenebris, sed habebit lumen vitae : Eu sou a luz do mundo; aquele que me
segue não caminha nas trevas, mas possuirá a luz da vida.

Para merecermos essa luz de Deus, precisamos amar, reconhecer humildemente a


necessidade de sermos salvos, e dizer com Pedro: Senhor, a quem iremos? Tu tens
palavras de vida eterna. E nós cremos e conhecemos que tu és Cristo, o Filho de Deus.
Se agirmos assim de verdade, se deixarmos a chamada divina penetrar no nosso
coração, também com verdade poderemos repetir que não caminhamos nas trevas, pois,
por cima das nossas misérias e dos nossos defeitos pessoais, brilha a luz de Deus, como
o sol brilha por cima da tempestade.

É Cristo que passa, Na oficina de José, 46

A fé e a vocação de cristãos afetam toda a nossa existência, não apenas uma parte. As
46 relações com Deus são necessariamente relações de entrega, e assumem um sentido de
totalidade. A atitude do homem de fé é olhar para a vida, em todas as suas dimensões,
sob uma perspectiva nova: a que Deus nos dá.

Todos vós, que hoje celebrais comigo esta festa de São José, sois homens dedicados ao
trabalho nas mais diversas profissões humanas, fazeis parte dos lares mais diversos,
pertenceis a tão diferentes nações, raças e línguas. Fostes educados em centros de
ensino, em oficinas ou escritórios, exercestes a vossa profissão durante anos, travastes
relações profissionais e pessoais com os vossos companheiros, participastes na solução
dos problemas coletivos das vossas empresas e da vossa sociedade.

Pois bem: recordo-vos, uma vez mais, que nada disso é alheio aos planos divinos. A
vossa vocação humana é parte, e parte importante, da vossa vocação divina. Esta é a
razão pela qual tendes que vos santificar - contribuindo ao mesmo tempo para a
santificação dos outros, dos vossos iguais - precisamente santificando o vosso trabalho
e o vosso ambiente: essa profissão ou ofício que preenche vossos dias, que dá uma
fisionomia peculiar à vossa personalidade humana, que é a vossa maneira de estar no
mundo; esse lar, a vossa família; e essa nação em que nascestes e que amais.

36
É Cristo que passa, Na oficina de José, 47

O trabalho acompanha inevitavelmente a vida do homem sobre a terra. Com ele


47 aparecem o esforço, a fadiga, o cansaço, manifestações da dor e da luta que fazem
parte da nossa existência humana atual, e que são sinais da realidade do pecado e da
necessidade da redenção. Mas o trabalho em si não é uma pena, nem uma maldição ou
um castigo: aqueles que falam assim não leram bem a Sagrada Escritura.

É hora de que todos nós, cristãos, anunciemos bem alto que o trabalho é um dom de
Deus, e que não faz nenhum sentido dividir os homens em diferentes categorias,
conforme os tipos de trabalho, considerando umas ocupações mais nobres do que as
outras. O trabalho, todo o trabalho, é testemunho da dignidade do homem, do seu
domínio sobre a criação; é meio de desenvolvimento da personalidade; é vínculo de
união com os outros seres; fonte de recursos para o sustento da família; meio de
contribuir para o progresso da sociedade em que se vive e para o progresso de toda a
humanidade.

Para um cristão, essas perspectivas alargam-se e ampliam-se, porque o trabalho se


apresenta como participação na obra criadora de Deus que, ao criar o homem, o
abençoou dizendo: Crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra e submetei-a, e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que se movem
sobre a terra. E porque, além disso, ao ser assumido por Cristo, o trabalho se nos
apresenta como realidade redimida e redentora: não é apenas a esfera em que o homem
se desenvolve, mas também meio e caminho de santidade, realidade santificável e
santificadora.

É Cristo que passa, Na oficina de José, 48

Convém não esquecer, portanto, que esta dignidade do trabalho se baseia no Amor. O
48 grande privilégio do homem é poder amar, transcendendo assim o efêmero e o
transitório. O homem pode amar as outras criaturas, dizer um “tu” e um “eu” cheios de
sentido. E pode amar a Deus, que nos abre as portas do céu, que nos constitui membros
da sua família, que nos autoriza a falar-lhe também de tu a Tu, face a face.

Por isso, o homem não se deve limitar a fazer coisas, a construir objetos. O trabalho
nasce do amor, manifesta o amor, orienta-se para o amor. Reconhecemos Deus não
apenas no espetáculo da natureza, mas também na experiência do nosso próprio
trabalho, do nosso esforço. O trabalho é assim oração, ação de graças, porque nos
sabemos colocados na terra por Deus, amados por Ele, herdeiros de suas promessas. É
justo que o Apóstolo nos diga: Quer comais, quer bebais, ou façais qualquer outra
coisa, fazei tudo para a glória de Deus.

37
É Cristo que passa, Na oficina de José, 49

O trabalho profissional é também apostolado, ocasião de entrega aos outros homens, o


49 momento de lhes revelar Cristo e levá-los a Deus Pai; é conseqüência da caridade que
o Espírito Santo derrama nas almas. Entre as indicações que São Paulo dá aos Efésios,
sobre o modo como se deve manifestar a mudança que neles operou a conversão, a sua
chamada ao cristianismo, encontramos esta: Aquele que furtava não furte mais, mas
trabalhe, ocupando-se com suas mãos em qualquer coisa honesta, a fim de ter com que
ajudar a quem esteja em necessidade. Os homens têm necessidade do pão da terra para
sustentar as suas vidas, e também do pão do céu para iluminar e dar calor aos seus
corações. Com o nosso próprio trabalho, com as iniciativas que possamos promover a
partir das nossas ocupações, nas nossas conversas, no convívio com os outros,
podemos e devemos concretizar esse preceito apostólico.

Se trabalhamos com esse espírito, a nossa vida, no meio das limitações próprias da
condição terrena, será uma antecipação da glória do céu, dessa comunidade com Deus
e com os santos, onde reinam somente o amor, a entrega, a fidelidade, a amizade, a
alegria. Na ocupação profissional diária e comum encontraremos a matéria - real,
consistente, valiosa - para realizarmos toda a vida cristã, para atualizarmos a graça que
nos vem de Cristo.

Nessa tarefa profissional, exercida de olhos postos em Deus, entrarão em jogo a fé, a
esperança e a caridade. As vicissitudes, as relações e os problemas próprios do trabalho
alimentarão a nossa oração. O esforço necessário para levar a cabo as tarefas diárias
será ocasião de vivermos essa Cruz que é essencial a todo o cristão. A experiência da
nossa fraqueza, os malogros que existem sempre em qualquer esforço humano,
dar-nos-ão mais realismo, mais humildade, mais compreensão com os outros. Os êxitos
e as alegrias convidar-nos-ão a dar graças e a pensar que não vivemos para nós
mesmos, mas para o serviço dos outros e de Deus.

É Cristo que passa, Na oficina de José, 50

Para viver assim, para santificar a profissão, é necessário em primeiro lugar trabalhar
50 bem, com seriedade humana e sobrenatural. Quero recordar aqui, por contraste, o que
conta um desses antigos relatos dos evangelhos apócrifos: O pai de Jesus, que era
carpinteiro, fazia arados e jugos. Certa vez - continua a narrativa - uma pessoa de boa
reputação encomendou-lhe uma cama. Mas aconteceu que um dos varais era mais
curto que o outro, e José não sabia o que fazer. Então o Menino Jesus disse a seu pai:
põe os dois paus no chão e alinha-os por uma das extremidades. José assim fez. Jesus
colocou-se do outro lado, pegou no varal mais curto e esticou-o, deixando-o tão
comprido quanto o outro. José, seu pai, encheu-se de admiração ao ver o prodígio e
cobriu o Menino de abraços e beijos, dizendo: feliz de mim, porque Deus me deu este
Menino.

José não podia dar graças a Deus por tais motivos; seu trabalho não podia ser dessa

38
espécie. São José não é o homem das soluções fáceis e milagreiras, mas o homem da
perseverança, do esforço e - quando necessário - do engenho. O cristão sabe que Deus
faz milagres: que os fez há séculos, que continuou a fazê-los depois e que continua a
fazê-los agora, porque non est abbreviata manus Domini , o poder de Deus não
diminuiu.

Mas os milagres são uma manifestação da onipotência salvadora de Deus, não um


expediente para remediar as conseqüências da inépcia ou para favorecer o nosso
comodismo. O milagre que o Senhor nos pede é a perseverança na vocação cristã e
divina, a santificação do trabalho de cada dia: o milagre de converter a prosa diária em
decassílabos, em verso heróico, pelo amor com que desempenhamos as ocupações
habituais. Deus nos espera aí, de tal forma que sejamos almas com senso de
responsabilidade, com preocupação apostólica, com competência profissional.

Por isso, como lema para o trabalho de cada um, posso indicar este: Para servir, servir.
Porque, para fazer as coisas, é preciso antes de mais nada saber terminá-las. Não
acredito na retidão de intenção de quem não se esforça por alcançar a competência
necessária para cumprir bem as tarefas que lhe são confiadas. Não basta querer fazer o
bem; é preciso saber fazê-lo. E, se realmente queremos, esse desejo traduzir-se-á no
empenho em utilizar os meios adequados para deixar as coisas acabadas, com
perfeição humana.

É Cristo que passa, Na oficina de José, 51

Mas esse serviço humano, essa capacidade que poderíamos chamar técnica, esse saber
51 realizar o ofício próprio, deve, além disso, estar informado por uma característica que
foi fundamental no trabalho de São José e que devia ser fundamental em todo o cristão:
o espírito de serviço, o desejo de trabalhar com o fim de contribuir para o bem dos
demais homens. O trabalho de José não foi um trabalho que visasse a auto-afirmação,
embora a dedicação a uma vida operativa tivesse forjado nele uma personalidade
amadurecida, bem delineada. O Patriarca trabalhava com a consciência de estar
cumprindo a vontade de Deus, pensando no bem dos seus, Jesus e Maria, e tendo em
vista o bem dos habitantes da pequena Nazaré.

Em Nazaré, José devia ser um dos poucos artesãos, se não o único. Possivelmente,
carpinteiro. Mas, como costuma acontecer nas pequenas povoações, também devia ser
capaz de fazer outras coisas: pôr em andamento um moinho que não funcionava, ou
consertar antes do inverno as fendas de um teto. José devia tirar muita gente de
dificuldades, com um trabalho bem acabado. Seu trabalho profissional era uma
ocupação orientada para o serviço, tinha em vista tornar mais grata a vida das outras
famílias da aldeia; e far-se-ia acompanhar de um sorriso, de uma palavra amável, de
um comentário dito como que de passagem, mas que devolve a fé e a alegria a quem
está prestes a perdê-las.

39
É Cristo que passa, Na oficina de José, 52

As vezes, quando se tratasse de pessoas mais pobres do que ele, José devia trabalhar
52 aceitando em troca alguma coisa de pouco valor, que deixasse a outra pessoa com a
satisfação de pensar que tinha pago. Normalmente, cobraria o que fosse razoável, nem
mais nem menos. Saberia exigir o que em justiça lhe era devido, já que a fidelidade a
Deus não pode significar renúncia a direitos que na realidade são deveres: São José
tinha de exigir o que era justo, pois com a recompensa desse trabalho precisava
sustentar a Família que Deus lhe havia confiado.

Exigir os direitos que nos assistem não deve ser fruto de um egoísmo individualista.
Não se ama a justiça, se não se deseja vê-la estendida aos outros. Como também não é
lícito encerrar-se numa religiosidade cômoda, esquecendo as necessidades alheias.
Quem deseja ser justo aos olhos de Deus esforça-se também por fazer com que se
pratique de fato a justiça entre os homens. E não apenas pelo bom motivo de que não
se injurie o nome de Deus, mas porque ser cristão significa acolher todas as instâncias
nobres que existem no ser humano. Parafraseando um conhecido texto do Apóstolo
São João , podemos dizer que quem se proclama justo com Deus, mas não é justo com
os outros homens, é um mentiroso; e a verdade não habita nele.

Como todos os cristãos que viveram aquele momento, também eu recebi com emoção e
alegria a decisão de celebrar a festa litúrgica de São José Operário. Essa festa, que é
uma canonização do valor divino do trabalho, mostra como a Igreja, na sua vida
coletiva e pública, se faz eco das verdades centrais do Evangelho, que Deus deseja ver
especialmente meditadas nos nossos dias.

É Cristo que passa, Na oficina de José, 53

Já falamos muito deste tema em outras ocasiões, mas permito-me insistir de novo na
53 naturalidade e na simplicidade da vida de São José, que não se distanciava de seus
vizinhos nem levantava barreiras desnecessárias.

Por isso, embora em alguns momentos ou situações isso possa ser conveniente,
normalmente não gosto de falar de operários católicos, de engenheiros católicos, de
médicos católicos, etc., como se se tratasse de uma espécie dentro de um gênero, como
se os católicos formassem um grupinho separado dos outros, dando assim a sensação
de que existe um fosso entre os cristãos e o resto da humanidade. Respeito a opinião
contrária, mas penso que é muito mais correto falar de operários que são católicos, ou
de católicos que são operários; de engenheiros que são católicos, ou de católicos que
são engenheiros: porque o homem que tem fé e que exerce uma profissão intelectual,
técnica ou manual, é e sente-se unido aos outros, igual aos outros, com os mesmos
direitos e obrigações, com o mesmo desejo de progredir, com o mesmo anseio de
enfrentar os problemas comuns e de encontrar solução para eles.

Assumindo todos esses aspectos, o católico saberá fazer da sua vida diária um

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testemunho de fé, de esperança e de caridade; testemunho simples, normal, sem
necessidade de manifestações espetaculares, pondo de manifesto - com a coerência da
sua vida - a presença constante da Igreja no mundo, já que todos os católicos são eles
mesmos Igreja, são membros, com pleno direito, do único Povo de Deus.

É Cristo que passa, Na oficina de José, 54

Desde há muito tempo gosto de recitar uma comovente invocação a São José, que a
54 própria Igreja nos propõe, entre as orações preparatórias da missa: José, varão
bem-aventurado e feliz, a quem foi concedido ver e ouvir o Deus que muitos reis
quiseram ver e ouvir, e não viram nem ouviram; e não apenas vê-lo e ouvi-lo, mas
também segurá-lo nos braços, beijá-lo, vesti-lo e guardá-lo: rogai por nós. Esta oração
nos servirá para entrarmos no último tema que hoje queria tocar: o convívio íntimo
entre José e Jesus.

Para São José, a vida de Jesus foi uma contínua descoberta da sua própria vocação.
Recordávamos atrás aqueles primeiros anos cheios de circunstâncias aparentemente
contraditórias: glorificação e fuga, majestade dos Magos e pobreza do presépio, cântico
dos Anjos e silêncio dos homens. Quando chega o momento de apresentar o Menino no
Templo, José, que leva a modesta oferenda de um par de pombas, vê Simeão e Ana
proclamarem que Jesus é o Messias. E seu pai e sua mãe escutavam com admiração ,
diz São Lucas. Mais tarde, quando o Menino fica no Templo sem que Maria e José o
saibam, ao encontrá-lo novamente, depois de o procurarem por três dias, o mesmo
evangelista diz que se maravilharam.

José surpreende-se, José admira-se. Deus vai-lhe revelando os seus desígnios e ele
esforça-se por entendê-los. Como toda a alma que queira seguir Jesus de perto,
descobre imediatamente que não é possível andar com passo cansado nem persistir na
rotina. Deus não se conforma com a estabilidade no nível atingido, com o descanso
naquilo que já se tem. Deus exige continuamente mais e mais, e seus caminhos não são
os nossos caminhos humanos. Como nenhum outro homem antes ou depois dele, São
José aprendeu de Jesus a permanecer atento às maravilhas de Deus, a ter a alma e o
coração abertos.

É Cristo que passa, Na oficina de José, 55

Mas se José aprendeu de Jesus a viver de um modo divino, atrever-me-ia a dizer que,
55 sob o aspecto humano, ensinou muitas coisas ao Filho de Deus. Há qualquer coisa que
não acabo de gostar no título de pai adotivo com que às vezes se designa José, porque
oferece o perigo de sugerir que as suas relações com Jesus eram frias e externas.
Certamente a nossa fé nos diz que José não era pai segundo a carne, mas essa não é a
única paternidade possível.

A José não só se deve o nome de pai - lemos num sermão de Santo Agostinho -, como
se deve mais a ele do que a qualquer outro. E acrescenta: De que forma era pai? Tanto
mais profundamente pai, quanto mais casta foi a sua paternidade. Alguns pensavam

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que era pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, tal como são pais os outros, os que geram
segundo a carne, e não recebem seus filhos somente como fruto do seu afeto espiritual.
Por isso diz São Lucas: pensava-se que era pai de Jesus. Por que diz apenas que se
pensava? Porque o pensamento e o juízo humanos se referem àquilo que costuma
acontecer entre os homens. E o Senhor não nasceu do germe de José. Mas à piedade e
à caridade de José nasceu um filho da Virgem Maria, que era Filho de Deus.

José amou Jesus como um pai ama o seu filho, dando-lhe tudo o que tinha de melhor.
Cuidou daquele Menino como lhe tinha sido ordenado, e fez dele um artesão:
transmitiu-lhe o seu oficio. Por isso os vizinhos de Nazaré se referiam a Jesus
indistintamente como faber e fabri filius : artesão e filho do artesão. Jesus trabalhou na
oficina de José e junto de José. Como seria José, como teria atuado nele a graça, para
ser capaz de desempenhar a tarefa de educar o Filho de Deus nos aspectos humanos?

Porque Jesus devia parecer-se com José: no modo de trabalhar, nos traços do seu
caráter, na maneira de falar. No realismo de Jesus, no seu espírito de observação, no
seu modo de se sentar à mesa e de partir o pão, no seu gosto em expor a doutrina de
maneira concreta, tomando como exemplo as coisas da vida corrente, reflete-se o que
foi a infância e a juventude de Jesus e, portanto, o seu convívio com José.

Não é possível desconhecer a sublimidade do mistério. Esse Jesus que é homem, que
fala com o sotaque de uma região determinada de Israel, que se parece com um artesão
chamado José, esse é o Filho de Deus. E quem pode ensinar alguma coisa a Deus? Mas
é realmente homem, e vive normalmente: primeiro como criança, depois como
adolescente, ajudando na oficina de José; finalmente como homem maduro, na
plenitude da idade. Jesus crescia em sabedoria, em idade e em graça, diante de Deus e
dos homens.

É Cristo que passa, Na oficina de José, 56

Nas coisas humanas, José foi mestre de Jesus; conviveu diariamente com Ele, com
56 carinho delicado, e cuidou dEle com abnegação alegre. Não será esta uma boa razão
para considerarmos este varão justo, este Santo Patriarca, em quem culmina a fé da
Antiga Aliança, como Mestre de vida interior? A vida interior não é outra coisa senão
uma relação de amizade assídua e intima com Cristo, para nos identificarmos com Ele.
E José saberá dizer-nos muitas coisas sobre Jesus. Por isso, não abandonemos nunca a
devoção que lhe dedicamos: Ite ad Ioseph, ide a José, como diz a tradição cristã,
servindo-se de uma frase tirada do Antigo Testamento.

Mestre de vida interior, trabalhador empenhado no seu ofício, servidor fiel de Deus, em
relação continua com Jesus: este é José. Ite ad Ioseph. Com São José, o cristão aprende
o que significa pertencer a Deus e estar plenamente entre os homens, santificando o
mundo. Procuremos a intimidade com José, e encontraremos Jesus. Procuremos a
intimidade com José, e encontraremos Maria, que encheu sempre de paz a amável
oficina de Nazaré.

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É Cristo que passa, A conversão dos filhos de Deus, 57

Entramos no tempo da Quaresma: tempo de penitência, de purificação, de conversão.


57 Não é tarefa fácil. O cristianismo não é um caminho cômodo: não basta estar na Igreja
e deixar que os anos passem. Na nossa vida, na vida dos cristãos, a primeira conversão
- esse momento único, que cada um de nós recorda, e em que se percebe claramente
tudo o que o Senhor nos pede - é importante; mas ainda mais importantes, e mais
difíceis, são as sucessivas conversões. E para facilitar o trabalho da graça divina com
estas conversões sucessivas, é preciso conservar a alma jovem, invocar o Senhor, saber
escutar, descobrir o que vai mal, pedir perdão.

Invocabit me et ego exaudiam eum, lemos na liturgia deste Domingo : se me


invocardes, eu vos escutarei, diz o Senhor. Devemos considerar esta maravilha que são
os cuidados que Deus tem conosco, sempre disposto a ouvir-nos, atento em cada
instante à palavra do homem. Seja em que tempo for - mas agora de um modo especial,
porque o nosso coração está bem disposto, decidido a purificar-se -, Ele nos escuta, e
não deixará de atender às súplicas de um coração contrito e humilhado.

O Senhor escuta-nos para intervir, para penetrar na nossa vida, para nos livrar do mal e
cumular-nos de bem. Eripiam eum et glorificabo eum , eu o livrarei e o glorificarei, diz
do homem. Portanto, esperança de glória. E aqui temos, como em outras ocasiões, o
começo desse movimento íntimo que é a vida espiritual. A esperança dessa
glorificação acentua a nossa fé e estimula a nossa caridade. E deste modo se põem em
movimento as três virtudes teologais, virtudes divinas que nos assemelham ao nosso
Pai-Deus.

Haverá melhor maneira de começarmos a Quaresma? Renovamos a fé, a esperança, a


caridade. Esta é a fonte do espírito de penitência, do desejo de purificação. A
Quaresma não é apenas uma ocasião de intensificarmos as nossas práticas externas de
mortificação; se pensássemos que é apenas isso, escapar-nos-ia o seu sentido mais
profundo na vida cristã, porque esses atos externos - repito - são fruto da fé, da
esperança e do amor.

É Cristo que passa, A conversão dos filhos de Deus, 58

Qui habitat in adiutorio Altissimi, in protectione Dei coeli commorabitur. Habitar sob
58 a proteção de Deus, viver com Deus: esta é a arriscada segurança do cristão.
Precisamos persuadir-nos de que Deus nos ouve, de que está com os olhos postos em
nós; assim se inundará de paz o nosso coração. Mas viver com Deus é
indubitavelmente correr um risco, porque o Senhor não se satisfaz compartilhando:
quer tudo. E aproximar-se um pouco mais dEle significa estarmos dispostos a uma
nova conversão, a uma nova retificação, a escutar mais atentamente as suas
inspirações, os santos desejos que faz brotar na alma, e a pô-los em prática.

Desde a nossa primeira decisão consciente de vivermos integramente a doutrina de

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Cristo, não há dúvida de que avançamos muito no caminho da fidelidade à sua Palavra.
Mas não é verdade que ainda restam tantas coisas por fazer? Não é verdade que resta
sobretudo tanta soberba? É precisa, sem dúvida, uma nova mudança, uma lealdade
mais plena, uma humildade mais profunda, de modo que, diminuindo o nosso egoísmo,
Cristo cresça em nós, já que illum oportet crescere, me autem minui , é preciso que Ele
cresça e eu diminua.

Não é possível ficarmos imóveis. Temos que avançar em direção à meta apontada por
São Paulo: Não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. A ambição é alta e
nobilíssima: a identificação com Cristo, a santidade. Mas não existe outro caminho, se
desejamos ser coerentes com a vida divina que Deus fez nascer em nossas almas pelo
Batismo. Avançar é progredir na santidade; e negar-se ao desenvolvimento normal da
vida cristã é retroceder. Porque o fogo do amor de Deus precisa ser alimentado, crescer
cada dia, ganhar raízes na alma: e o fogo mantém-se vivo quando se queimam coisas
novas. Por isso, se não aumenta, leva caminho de extinguir-se. Lembremo-nos das
palavras de Santo Agostinho: Se disseres basta, estás perdido. Procura sempre mais,
caminha sempre, progride sempre. Não permaneças no mesmo lugar, não retrocedas,
não te desvies.

A Quaresma coloca-nos agora diante destas perguntas fundamentais: progrido na


minha fidelidade a Cristo, em desejos de santidade, em generosidade apostólica na
minha vida diária, no meu trabalho quotidiano entre os meus colegas de profissão?

Cada um deve responder a estas perguntas sem ruído de palavras. E perceberá como é
necessária uma nova transformação, para que Cristo viva em nós, para que a sua
imagem se reflita sem distorções na nossa conduta.

Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e
siga-me. Isso é o que Cristo nos repete ao ouvido, intimamente: a Cruz, cada dia. Não
apenas - escreve São Jerônimo - no tempo da perseguição, ou quando se apresenta a
possibilidade do martírio, mas em todas as situações, em todas as obras, em todos os
pensamentos, em todas as palavras, neguemos aquilo que antes éramos e confessemos
o que agora somos, já que renascemos em Cristo.

Estas considerações não são, afinal, senão o eco daquelas outras palavras do Apóstolo:
É verdade que outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Comportai-vos
como filhos da luz, porque o fruto da luz consiste em caminhar com toda a bondade e
justiça e verdade: procurando o que é agradável ao Senhor.

A conversão é obra de um instante; a santificação é tarefa de toda a vida. A semente


divina da caridade, que Deus depositou em nossas almas, aspira a crescer, a
manifestar-se em obras, a dar frutos que correspondam em cada momento ao que é
agradável ao Senhor. Por isso é indispensável que estejamos dispostos a recomeçar, a
reencontrar - nas novas situações da nossa vida - a luz e o impulso da primeira
conversão. Esta é a razão pela qual nos devemos preparar com um exame profundo,
pedindo ajuda ao Senhor, para que possamos conhecê-lo melhor e conhecer-nos
melhor. Não existe outro caminho, se queremos converter-nos de novo.

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É Cristo que passa, A conversão dos filhos de Deus, 59

Exhortamur ne in vacuum gratiam Dei recipiatis , nós vos exortamos a não receber em
59 vão a graça de Deus. Porque a graça divina pode penetrar em nossas almas nesta
Quaresma, se não fecharmos as portas do coração. Precisamos cultivar as boas
disposições, o desejo de nos transformarmos a sério, de não brincar com a graça do
Senhor.

Não me agrada falar de temor, porque o que move o cristão é a Caridade de Deus, que
nos foi manifestada em Cristo, e que nos ensina a amar a todos os homens e a criação
inteira. Mas devemos sem dúvida falar de responsabilidade, de seriedade: Não queirais
enganar-vos a vós mesmos; com Deus não se brinca , adverte-nos o mesmo Apóstolo.

É preciso decidir-se. Não é lícito viver mantendo acesas, como diz o povo, uma vela a
São Miguel e outra ao diabo. É preciso apagar a vela do diabo. Temos que consumir a
nossa vida fazendo-a arder por completo ao serviço do Senhor. Se o nosso propósito de
santidade for sincero, se tivermos a docilidade de nos abandonarmos nas mãos de
Deus, tudo correrá bem. Porque Ele está sempre disposto a dar-nos a sua graça e,
especialmente neste tempo, a graça para uma nova conversão, para uma melhora na
nossa vida de cristãos. Não podemos considerar esta Quaresma como uma época a
mais, como uma simples repetição cíclica do tempo litúrgico. Este momento é único; é
uma ajuda divina que temos que aproveitar. Jesus passa ao nosso lado e espera de nós -
hoje, agora - uma grande mudança.

Ecce nunc tempus acceptabile, ecce nunc dies salutis ; este é o tempo oportuno, este
pode ser o dia da salvação. Ouvem-se novamente os silvos do Bom Pastor, seu
chamado carinhoso: Ego vocavi te nomine tuo. Chama-nos a cada um pelo nosso nome,
pelo apelativo familiar com que nos chamam as pessoas que nos amam. A ternura de
Jesus por nós não se pode traduzir em palavras.

Consideremos juntos esta maravilha do amor de Deus: o Senhor vem ao nosso


encontro, espera por nós, coloca-se à beira do caminho, para que tenhamos que vê-lo
necessariamente. E chama-nos pessoalmente, falando-nos das nossas coisas, que são
também suas, movendo a nossa consciência à compunção, abrindo-a à generosidade,
imprimindo em nossas almas o desejo de sermos fiéis, de nos podermos chamar seus
discípulos. Basta percebermos estas íntimas palavras da graça - que muitas vezes são
como uma censura afetuosa -, para nos darmos conta de que Ele não nos esqueceu
durante todo o tempo em que, por nossa culpa, deixamos de o ver. Cristo ama-nos com
o carinho inesgotável que se encerra em seu coração de Deus.

Reparemos como insiste: Eu te ouvi no tempo oportuno, eu te ajudei no dia da


salvação. Já que Ele te promete e te oferece oportunamente a glória - o seu amor -, e te
chama, tu, que irás dar ao Senhor? Como corresponderás, como corresponderei eu
também, a esse amor de Jesus que passa?

Ecce nunc dies salutis, aqui está diante de nós o dia da salvação. O chamado do Bom
Pastor chega até nós: Ego vocavi te nomine tuo, eu te chamei pelo teu nome. É preciso

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responder - amor com amor se paga - dizendo: Ecce ego quia vocasti me , chamaste-me
e aqui estou. Estou decidido a não permitir que este tempo de Quaresma passe como
passa a água sobre as pedras, sem deixar rasto. Deixar-me-ei empapar, transformar;
converter-me-ei, dirigir-me-ei de novo ao Senhor, amando-o como Ele deseja ser
amado.

Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, e com toda a tua alma, e com toda
a tua mente. Que resta do teu coração - comenta Santo Agostinho -, para que possas
amar-te a ti mesmo? Que resta da tua alma, que resta da tua mente? “Ex toto”, diz.
“Totum exigit te, qui fecit te”. Quem te fez exige tudo de ti.

É Cristo que passa, A conversão dos filhos de Deus, 60

Depois deste protesto de amor, temos que nos comportar como amadores de Deus. In
60 omnibus exhibeamus nosmetipsos sicut Dei ministros , comportemo-nos em todas as
coisas como servidores de Deus. Se te deres como Ele quer, a ação da graça
manifestar-se-á na tua conduta profissional, no teu trabalho, no empenho em fazer com
estilo divino as coisas humanas, grandes ou pequenas, porque, pelo Amor, todas elas
adquirem uma nova dimensão.

Mas nesta Quaresma não podemos esquecer que querer ser servidor de Deus não é
fácil. E para recordar as dificuldades, continuemos com o texto de São Paulo recolhido
na Epístola da Missa deste Domingo: Como servidores de Deus - escreve o Apóstolo -,
com muita paciência nas tribulações, nas necessidades, nas angústias, nos açoites, nas
prisões, nas sedições, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns; com pureza, com
doutrina, com longanimidade, com mansidão, com o Espírito Santo, com caridade
sincera, com palavras de verdade, com fortaleza de Deus. Nos momentos mais
díspares da vida, em todas as situações, temos que nos comportar como servidores de
Deus, sabendo que o Senhor está conosco, que somos seus filhos. Temos que ser
conscientes dessa raiz divina enxertada em nossa vida, e atuar em conseqüência.

As palavras do Apóstolo devem encher-nos de alegria, porque são como que uma
canonização da nossa vida de simples cristãos, que vivem no meio do mundo,
partilhando anseios, trabalhos e alegrias com os demais homens, seus iguais. Tudo isso
é caminho divino. O que o Senhor nos pede é que a todo o momento nos comportemos
como seus filhos e servidores.

Mas essas circunstâncias ordinárias da vida só serão caminho divino se


verdadeiramente nos convertermos, se nos entregarmos. Porque São Paulo emprega
uma linguagem dura. Promete ao cristão uma vida difícil, arriscada, em perpétua
tensão. Como se desfigurou o cristianismo quando se pretendeu fazer dele um caminho
cômodo! Mas também é desfigurar a verdade pensar que essa vida profunda e séria,
que conhece vivamente todos os obstáculos da existência humana, é uma vida de
angústia, de opressão ou de temor.

O cristão é realista, de um realismo sobrenatural e humano, sensível a todos os matizes


da vida: a dor e a alegria, o sofrimento próprio e alheio, a certeza e a perplexidade, a
generosidade e a tendência para o egoísmo. O cristão conhece tudo, e tudo enfrenta,

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cheio de integridade humana e da fortaleza recebida de Deus.

É Cristo que passa, A conversão dos filhos de Deus, 61

A Quaresma comemora os quarenta dias que Jesus passou no deserto, como preparação
61 para esses anos de pregação que culminam na Cruz e na glória da Páscoa. Quarenta
dias de oração e de penitência que, ao findarem, desembocam na cena que a liturgia de
hoje oferece à nossa consideração no Evangelho da Missa: as tentações de Cristo.

É uma cena cheia de mistério, que o homem em vão pretende entender - Deus que se
submete à tentação, que deixa agir o Maligno -, mas que pode ser meditada se
pedirmos ao Senhor que nos faça compreender a lição que encerra.

Jesus Cristo tentado. A Tradição esclarece a cena considerando que Nosso Senhor quis
também sofrer a tentação para nos dar exemplo em tudo. E assim é, porque Cristo foi
perfeito Homem, igual a nós, exceto no pecado , Depois de quarenta dias de jejum, em
que possivelmente se alimentou apenas de ervas, raízes e um pouco de água, Jesus
sente fome: fome verdadeira, como a de qualquer outra criatura. E quando o demônio
lhe propõe que converta as pedras em pão, o Senhor não só rejeita o alimento que o
corpo lhe pedia, como afasta de si uma incitação maior: a de usar do poder divino para
remediar, digamos assim, um problema pessoal.

Tê-lo-emos notado ao longo dos Evangelhos: Jesus não faz milagres em benefício
próprio. Converte a água em vinho para os esposos de Caná ; multiplica os pães e os
peixes para dar de comer a uma multidão faminta , Mas Ele ganha o pão, durante
muitos anos, com o seu próprio trabalho. Mais tarde, ao longo do seu peregrinar por
terras de Israel, viverá com a ajuda daqueles que o seguem.

São João relata-nos que, depois de uma longa caminhada, chegando Jesus ao poço de
Sicar, mandou os seus discípulos ao povoado para comprarem comida; e ao ver
aproximar-se a Samaritana, pediu-lhe água, porque não tinha com que tirá-la. Seu
corpo fatigado pela longa caminhada experimenta o cansaço, e há ocasiões em que
dorme para reparar as forças. Generosidade do Senhor que se humilhou, que aceitou
plenamente a condição humana, que não se serve do seu poder de Deus para fugir das
dificuldades ou do esforço; que nos ensina a ser fortes, a amar o trabalho, a apreciar a
nobreza humana e divina de saborear as conseqüências da entrega.

Na segunda tentação, quando o demônio lhe propõe que se atire do alto do Templo,
Jesus recusa-se novamente a usar do seu poder divino. Cristo não busca a vanglória, o
espetáculo, a comédia humana que procura utilizar Deus como pano de fundo da sua
própria excelência. Jesus Cristo quer cumprir a vontade do Pai sem adiantar os tempos
nem antecipar a hora dos milagres, antes pelo contrário, percorrendo passo a passo a
dura senda dos homens, o amável caminho da Cruz.

Coisa muito parecida vemos na terceira tentação: são-lhe oferecidos reinos, poder,
glória. O demônio pretende estender às ambições humanas essa atitude que se deve
reservar só para Deus: promete uma vida fácil a quem se prostrar diante dele, diante
dos ídolos. Nosso Senhor reconduz a adoração ao seu único e verdadeiro fim - Deus -,

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e reafirma a sua vontade de servir: Afasta-te de mim, Satanás, porque está escrito:
Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás.

É Cristo que passa, A conversão dos filhos de Deus, 62

Devemos aprender desta atitude de Jesus. Durante a sua vida na terra, não quis sequer a
62 glória que lhe pertencia, porque, assistindo-lhe o direito de ser tratado como Deus,
assumiu a forma de servo, de escravo. O cristão sabe assim que toda a glória é para
Deus, e que não pode utilizar a sublimidade e a grandeza do Evangelho em benefício
dos seus interesses e ambições humanas.

Devemos aprender de Jesus. Opondo-se a toda a glória humana, sua atitude está em
perfeita harmonia com a grandeza de uma missão única: a de Filho amadíssimo de
Deus, que se encarna para salvar os homens. Uma missão que o amor do Pai rodeou de
uma solicitude repassada de ternura: Filius meus es tu, ego hodie genui te. Postula a
me et dabo tibi gentes hereditatem tuam. Tu és o meu Filho, eu te gerei hoje. Pede-me,
e dar-te-ei as nações por herança.

O cristão que - em seguimento de Cristo - vive nesta atitude de completa adoração ao


Pai, recebe do Senhor palavras de amorosa solicitude: Porque espera em mim,
livrá-lo-ei; protegê-lo-ei, porque conhece o meu nome.

É Cristo que passa, A conversão dos filhos de Deus, 63

Jesus respondeu não ao demônio, ao príncipe das trevas. E logo se manifesta a luz.
63 Depois disso o diabo o deixou; e eis que os anjos se aproximaram e o serviam. Jesus
suportou a prova, uma prova verdadeira, porque, como comenta Santo Ambrósio, não
procedeu como Deus, usando do seu poder - senão, de que nos serviria o seu exemplo?
-, mas, como homem, serviu-se dos meios que tem em comum conosco.

O demônio citou malevolamente o Antigo Testamento: Deus mandará seus anjos para
que protejam o justo em todos os seus caminhos. Mas Jesus, recusando-se a tentar seu
Pai, devolve a esta passagem bíblica o seu verdadeiro sentido. E, como prêmio à sua
fidelidade, quando chega a hora, apresentam-se os mensageiros de Deus Pai para o
servirem.

Vale a pena considerar o método que Satanás emprega com Jesus Cristo Senhor Nosso:
argumenta com textos dos livros sagrados, desfigurando de forma blasfema o seu
sentido. Jesus não se deixa enganar: o Verbo feito carne conhece bem a Palavra Divina,
escrita para salvação dos homens, e não para sua confusão e condenação. Quem estiver
unido a Jesus Cristo pelo Amor - podemos concluir - não se deixará nunca enganar
pelo manejo fraudulento da Escritura Santa, porque sabe que é obra típica do demônio
procurar confundir a consciência cristã, esgrimindo dolosamente com os próprios
termos empregados pela eterna Sabedoria, tentando transformar a luz em trevas.

Contemplemos brevemente esta intervenção dos anjos na vida de Jesus, pois assim

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entenderemos melhor o seu papel - a missão angélica - em toda a vida humana. A
tradição cristã descreve os Anjos da Guarda como grandes amigos, colocados por Deus
ao lado de cada homem para o acompanharem em seus caminhos. Por isso nos convida
a procurar a sua intimidade, a recorrer a eles.

Ao fazer-nos meditar nestas passagens da vida de Cristo, a Igreja recorda-nos que,


neste tempo da Quaresma, em que nos reconhecemos pecadores, cheios de misérias,
necessitados de purificação, também há lugar para a alegria. Porque a Quaresma é
simultaneamente tempo de fortaleza e de júbilo: temos que encher-nos de coragem, já
que a graça do Senhor não nos há de faltar; Deus estará ao nosso lado e enviará seus
Anjos para que sejam nossos companheiros de viagem, nossos prudentes conselheiros
ao longo do caminho, nossos colaboradores em todas as nossas tarefas. In manibus
portabunt te, ne forte offendas ad lapidem pedem tuum , continua o salmo: os Anjos te
levarão nas mãos, para que teu pé não tropece em pedra alguma.

Temos que saber tratar os Anjos com intimidade: recorrer a eles agora, dizer ao nosso
Anjo da Guarda que estas águas sobrenaturais da Quaresma não resvalaram sobre a
nossa alma, mas penetraram nela até o fundo, porque temos o coração contrito.
Peçamos-lhe que leve até o Senhor a boa vontade que a graça fez germinar sobre a
nossa miséria, como um lírio nascido no meio do esterco. Sancti Angeli Custodes
nostri, defendite nos in proelio, ut non pereamus in tremendo iudicio. Santos Anjos da
Guarda, defendei-nos no combate, para que não pereçamos no tremendo Juízo.

É Cristo que passa, A conversão dos filhos de Deus, 64

Como se explica esta oração confiante, esta certeza de que não pereceremos no
64 combate? É um convencimento que parte de uma realidade que nunca me cansarei de
admirar: a nossa filiação divina. O Senhor, que nesta Quaresma pede que nos
convertamos, não é um Dominador tirânico, nem um Juiz rígido e implacável: é nosso
Pai. Fala-nos dos nossos pecados, dos nossos erros, da nossa falta de generosidade;
mas é para nos livrar de tudo isso, para nos prometer a sua Amizade e o seu Amor. A
consciência da nossa filiação divina dá alegria à nossa conversão: diz-nos que estamos
voltando para a casa do Pai.

A filiação divina é o fundamento do espírito do Opus Dei. Todos os homens são filhos
de Deus. Mas um filho pode reagir de muitas maneiras diante de seu pai. Temos de nos
esforçar por ser dos que procuram perceber que, ao querer-nos como filhos, o Senhor
fez com que vivêssemos em sua casa no meio deste mundo, que fôssemos da sua
família, que as suas coisas fossem nossas e as nossas suas, que tivéssemos essa
familiaridade e confiança com Ele que nos faz pedir, como uma criança, a própria lua!

Um filho de Deus trata o Senhor como Pai. Não como quem presta um obséquio servil,
nem com uma reverência protocolar, de mera cortesia, mas com plena sinceridade e
confiança. Deus não se escandaliza dos homens. Deus não se cansa com as nossas
infidelidades. Nosso Pai do Céu perdoa qualquer ofensa quando o filho volta de novo
para Ele, quando se arrepende e pede perdão. Nosso Senhor é de tal modo Pai, que
prevê os nossos desejos de sermos perdoados e a eles se antecipa, abrindo-nos os
braços com a sua graça.

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Não estou inventando nada. Recordemos a parábola que o Filho de Deus nos contou
para que entendêssemos o amor do Pai que está nos céus: a parábola do filho pródigo.

Quando ainda estava longe, diz a Escritura, viu-o seu pai e enterneceram-se-lhe as
entranhas; e, correndo ao seu encontro, lançou-lhe os braços ao pescoço e cobriu-o de
beijos. Estas são as palavras do livro sagrado: cobriu-o de beijos, comia-o a beijos.
Pode-se falar com mais calor humano? Pode-se descrever de maneira mais gráfica o
amor paternal de Deus pelos homens?

Perante um Deus que corre ao nosso encontro, não nos podemos calar, e temos que
dizer-lhe com São Paulo: Abba, Pater! , Pai, meu Pai!, porque, sendo Ele o Criador do
universo, não se importa de que não o tratemos com títulos altissonantes, nem reclama
a devida confissão do seu poder. Quer que lhe chamemos Pai, que saboreemos essa
palavra, deixando a alma inundar-se de alegria.

De certo modo, a vida humana é um constante retorno à casa do nosso Pai. Retorno
mediante a contrição, mediante a conversão do coração, que se traduz no desejo de
mudar, na decisão firme de melhorar de vida, e que, portanto, se manifesta em obras de
sacrifício e de doação. Retorno à casa do Pai por meio desse sacramento do perdão em
que, ao confessarmos os nossos pecados, nos revestimos de Cristo e nos tornamos
assim seus irmãos, membros da família de Deus.

Deus espera-nos como o pai da parábola, de braços estendidos, ainda que não o
mereçamos. O que menos importa é a nossa dívida. Como no caso do filho pródigo,
basta simplesmente abrirmos o coração, termos saudades do lar paterno,
maravilhar-nos e alegrar-nos perante o dom divino de nos podermos chamar e ser
verdadeiramente filhos de Deus, apesar de tanta falta de correspondência da nossa
parte.

É Cristo que passa, A conversão dos filhos de Deus, 65

O homem tem uma capacidade tão estranha para esquecer as coisas mais maravilhosas
65 e acostumar-se ao mistério! Consideremos de novo, nesta Quaresma, que o cristão não
pode ser superficial. Plenamente mergulhado no seu trabalho diário entre os demais
homens, seus iguais, atarefado, ocupado, em tensão, o cristão tem que estar ao mesmo
tempo totalmente mergulhado em Deus, porque é filho de Deus.

A filiação divina é uma verdade feliz, um mistério consolador. A filiação divina


empapa toda a nossa vida espiritual, porque nos ensina a procurar, conhecer e amar o
nosso Pai do Céu, e assim cumula de esperança a nossa luta interior e nos dá a
simplicidade confiante dos filhos pequenos. Mais ainda: precisamente porque somos
filhos de Deus, esta realidade leva-nos também a contemplar com amor e com
admiração todas as coisas que saíram das mãos de Deus Pai Criador. E deste modo
somos contemplativos no meio do mundo, amando o mundo.

Na Quaresma, a liturgia considera as conseqüências do pecado de Adão na vida do


homem. Adão não quis ser um bom filho de Deus, e revoltou-se. Mas ouve-se também

50
continuamente o eco desta felix culpa - culpa feliz, ditosa - que a Igreja inteira cantará,
cheia de alegria, na vigília do Domingo da Ressurreição.

Chegada a plenitude dos tempos, Deus Pai enviou ao mundo seu Filho Unigênito para
que restabelecesse a paz; para que, redimindo o homem do pecado, adoptionem
filiorum reciperemus , fôssemos constituídos filhos de Deus, libertados do jugo do
pecado, habilitados a participar na intimidade divina da Trindade. E assim se tornou
possível que este homem novo, esta nova enxertia dos filhos de Deus, libertasse toda a
criação da desordem, restaurando todas as coisas em Cristo , que nos reconciliou com
Deus.

Tempo de penitência, portanto. Mas, como vimos, não é uma tarefa negativa. A
Quaresma deve ser vivida com o espírito de filiação que Cristo nos comunicou e que
palpita em nossa alma. O Senhor chama-nos para que nos aproximemos dEle e
desejemos ser como Ele: Sede imitadores de Deus, como filhos muito queridos ,
colaborando humildemente, mas fervorosamente, com o divino propósito de unir o que
se quebrou, de salvar o que se perdeu, de ordenar o que o homem pecador desordenou,
de reconduzir o que se extraviou, de restabelecer a divina concórdia em toda a criação.

É Cristo que passa, A conversão dos filhos de Deus, 66

A liturgia da Quaresma ganha às vezes acentos trágicos, quando se medita no que


66 supõe para o homem o seu afastamento de Deus. Mas essa conclusão não é a última
palavra. A última palavra é Deus quem a pronuncia, e é a palavra do seu amor salvador
e misericordioso e, portanto, a palavra da nossa filiação divina. Por isso repito hoje
com São João: Vede que amor teve o Pai para conosco, querendo que nos
chamássemos filhos de Deus e que o fôssemos de verdade. Filhos de Deus, irmãos do
Verbo feito carne, dAquele de quem foi dito: nEle estava a vida, e a vida era a luz dos
homens. Filhos da Luz, irmãos da Luz: é o que nós somos! Portadores da única chama
capaz de abrasar os corações feitos de carne.

Calo-me agora para prosseguir a Santa Missa. Mas cada um deve pensar no que o
Senhor lhe pede, nos propósitos, nas decisões que a ação da graça quer promover
dentro de si.

E, ao percebermos essas exigências sobrenaturais e humanas de entrega e de luta,


lembremo-nos de que Jesus Cristo é o nosso modelo, de que Jesus, sendo Deus,
permitiu que o tentassem, para que assim nos enchêssemos de coragem e estivéssemos
certos da vitória. Porque Ele não perde batalhas, e nós, se estivermos unidos a Ele,
nunca seremos vencidos, mas poderemos chamar-nos e ser realmente vencedores: bons
filhos de Deus.

Vivamos contentes. Eu estou contente. Não o deveria estar, olhando para a minha vida,
fazendo esse exame pessoal de consciência que este tempo litúrgico da Quaresma nos
pede. Mas sinto-me contente porque vejo que o Senhor me procura uma vez mais, que
o Senhor continua a ser meu Pai. Sei que vós e eu, decididamente, com o resplendor e a
ajuda da graça, veremos que coisas temos que queimar, e as queimaremos; que coisas
temos que arrancar, e as arrancaremos; que coisas temos que entregar, e as

51
entregaremos.

A tarefa não é fácil. Mas contamos com um ponto de referência claro, com uma
realidade de que não devemos nem podemos prescindir: somos amados por Deus, e
deixaremos que o Espírito Santo atue em nós e nos purifique, para podermos assim
abraçar o Filho de Deus na Cruz, ressuscitando depois com Ele, porque a alegria da
Ressurreição tem as suas raízes na Cruz.

Maria, nossa Mãe, auxilium christianorum, refugium peccatorum: intercede junto de


teu Filho para que nos envie o Espírito Santo, que desperte em nossos corações a
decisão de caminharmos com passo firme e seguro, fazendo ressoar no mais íntimo da
nossa alma a chamada que encheu de paz o martírio de um dos primeiros cristãos: Veni
ad Patrem , vem, volta para teu Pai, que te espera.

É Cristo que passa, O respeito cristão pela pessoa e pela sua liberdade, 67

Acabamos de ler na Santa Missa um texto do Evangelho segundo São João que nos
67 relata a cena da cura milagrosa do cego de nascença. Penso que todos nos comovemos
uma vez mais perante o poder e a misericórdia de Deus, que não olha com indiferença
para a desgraça humana. Mas gostaria agora de fixar a atenção sobre outros aspectos,
para que compreendamos que, quando há amor de Deus, o cristão também não pode
permanecer indiferente perante a sorte dos outros homens e sabe por sua vez tratar a
todos com respeito; e que, quando esse amor decai, surge o perigo de se invadir,
fanática e impiedosamente, a consciência alheia.

Ao passar - diz o Santo Evangelho -, viu Jesus um cego de nascença. Jesus que passa.
Com freqüência me tenho maravilhado perante esta forma simples de relatar a
clemência divina. Jesus passa, e logo se apercebe da dor. Consideremos, em
contrapartida, como eram diferentes os pensamentos dos discípulos naquela ocasião.
Perguntam-lhe: Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?

Não nos deve causar estranheza que muitas pessoas, mesmo entre as que se consideram
cristãs, se comportem de forma parecida. Antes de mais nada, imaginam o mal. Sem
prova alguma, pressupõem-no; e não só admitem essa ordem de pensamentos, como
ainda se atrevem a manifestá-los num juízo aventurado, diante da multidão.

A conduta dos discípulos poderia benevolamente ser qualificada de leviana. Naquela


sociedade - aliás, como hoje; nisto, pouco se mudou -, havia outros, os fariseus, que
faziam dessa atitude uma norma. Lembremo-nos de que maneira Jesus Cristo os
denuncia: Veio João, que não come nem bebe, e dizem: Está possesso do demônio.
Veio o Filho do homem, que come e bebe, e dizem: É um comilão e bebedor de vinho,
amigo de publicanos e pecadores.

Ataques sistemáticos à fama, conspurcação da conduta irrepreensível. Essa crítica


mordaz e lancinante atingiu o próprio Jesus Cristo, e não é raro que alguns reservem o
mesmo sistema para os que, embora conscientes de suas lógicas e naturais misérias e
erros pessoais - pequenos e inevitáveis, dada a humana fraqueza, acrescentaria -,
desejam seguir o Mestre. Mas a comprovação dessas realidades não nos deve levar a

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justificar tais pecados e delitos - falatórios, como lhes chamam com uma compreensão
suspeita - contra o bom nome de ninguém. Jesus anuncia que, se o pai de família foi
alcunhado de Belzebu, não é de esperar que se conduzam melhor com os de sua casa ;
mas também esclarece que quem chamar néscio a seu irmão, será réu do fogo do
inferno.

Donde nasce esta apreciação injusta dos outros? É como se alguns usassem
continuamente umas viseiras que lhes alterassem a visão. Não acreditam, por princípio,
que seja possível a retidão ou, ao menos, a luta constante por comportar-se bem. Como
diz o antigo adágio filosófico, recebem tudo segundo a forma do recipiente: em sua
prévia deformação. Para eles, até as coisas mais retas refletem, apesar de tudo, uma
atitude retorcida que adota hipocritamente a aparência de bondade. Quando descobrem
claramente o bem - escreve São Gregório -, esquadrinham tudo para examinar se,
além disso, não haverá algum mal oculto.

É Cristo que passa, O respeito cristão pela pessoa e pela sua liberdade, 68

É difícil fazer entender a essas pessoas - cuja deformação quase se converte numa
68 segunda natureza - que é mais humano e mais verídico pensar bem do próximo. Santo
Agostinho dá este conselho: Procurai adquirir as virtudes que julgais faltarem aos
vossos irmãos, e já não vereis os seus defeitos, porque vós mesmos não os tereis. Para
alguns, esta forma de proceder identifica-se com a ingenuidade. Eles são mais
realistas, mais razoáveis.

Erigindo o preconceito como norma de juízo, ofenderão seja quem for sem mesmo
ouvir as suas razões. Depois, objetivamente, bondosamente, talvez concedam ao
injuriado a possibilidade de se defender - contra toda a moral e todo o direito -, porque,
em vez de arcarem com o ônus de provar a suposta falta, concedem ao inocente o
privilégio de demonstrar a sua inocência.

Não seria sincero se não confessasse que as considerações anteriores são algo mais do
que um rápido respigar em tratados de direito e de moral. Baseiam-se numa
experiência que não poucos viveram na sua própria carne, da mesma maneira que
muitos outros foram, com freqüência e durante longos anos, o alvo de exercícios de tiro
de murmurações, difamações e calúnias. A graça de Deus e um natural nada rancoroso
fizeram com que tudo isso não deixasse neles o menor travo de amargura. Mihi pro
minimo est, ut a vobis iudicer , pouco me importa ser julgado por vós, poderiam dizer
com São Paulo. Às vezes, empregando palavras mais correntes, terão acrescentado que
tudo isso lhes saiu sempre por uma bagatela. Essa é a verdade.

Por outro lado, entretanto, não posso negar que me causa tristeza pensar na alma de
quem ataca injustamente a honra alheia, porque o agressor injusto se arruína a si
mesmo. E sofro também por tantos que, em face de acusações arbitrárias e desaforadas,
não sabem onde pôr os olhos: ficam apavorados, não as julgam possíveis e perguntam
de si para si se não será tudo um pesadelo.

Há poucos dias, líamos na Epístola da Santa Missa o episódio de Susana, aquela


mulher casta, falsamente acusada de desonestidade por dois velhos corrompidos.

53
Susana desatou a chorar e respondeu aos seus acusadores: por todos os lados me sinto
angustiada; porque, se faço o que me propondes, virá sobre mim a morte; e, se me
nego, não escaparei de vossas mãos. Quantas vezes as insídias dos invejosos ou dos
intrigantes não colocam muitas criaturas honestas na mesma situação! Oferecem-lhes
esta alternativa: ou ofenderem o Senhor, ou verem denegrida a sua honra. A única
solução nobre e digna é ao mesmo tempo extremamente dolorosa, e têm que resolver:
E melhor para mim cair sem culpa nas vossas mãos do que pecar contra o Senhor.

É Cristo que passa, O respeito cristão pela pessoa e pela sua liberdade, 69

Voltemos à cena da cura do cego. Jesus Cristo replica aos seus discípulos que aquela
69 desgraça não é conseqüência do pecado, mas ocasião para que se manifeste o poder de
Deus. E, com maravilhosa simplicidade, decide que o cego veja.

Começa então, a par da felicidade, o tormento daquele homem. Não o deixarão em paz.
Primeiro são os vizinhos e os que antes o tinham visto pedir esmola. O Evangelho não
nos diz que se tivessem alegrado, mas que não acabavam de acreditar no sucedido,
apesar de o cego insistir que era ele mesmo quem antes não via e agora vê. Em lugar de
lhe permitirem usufruir serenamente daquela graça, levam-no aos fariseus, que lhe
perguntam de novo como foi. E ele responde pela segunda vez: Pôs lodo nos meus
olhos, lavei-me e vejo.

E os fariseus querem demonstrar que o que aconteceu - um bem e um grande milagre -


não aconteceu. Alguns lançam mão de raciocínios mesquinhos, hipócritas, muito pouco
equânimes: curou num sábado e, como é pecado trabalhar aos sábados, negam o
prodígio. Outros iniciam o que hoje se chamaria um inquérito. Vão aos pais do cego: É
este vosso filho, de quem vós dizeis que nasceu cego? Como vê, pois, agora? O medo
aos poderosos leva os pais a responderem com uma proposição que reúne todas as
garantias do método científico: Sabemos que este é nosso filho e que nasceu cego; mas,
como agora vê, não o sabemos, nem tampouco sabemos quem lhe abriu os olhos.
Perguntai-o a ele mesmo: tem idade, que responda por si.

Os que conduzem o inquérito não podem acreditar, porque não querem acreditar.
Chamaram outra vez o que tinha sido cego e disseram-lhe:... Nós sabemos que esse
homem - Jesus Cristo - é um pecador.

Em poucas palavras, o relato de São João mostra-nos um modelo de atentado terrível


contra o direito básico de sermos tratados com respeito, um direito que a todos nos
pertence por natureza.

O tema continua a ser atual. Não custaria nenhum trabalho apontar em nossa época
casos dessa curiosidade agressiva, que leva a indagar morbidamente da vida privada
dos outros. Um mínimo senso de justiça exige que, mesmo na investigação de um
presumível delito, se proceda com cautela e moderação, sem tomar por certo o que é
apenas uma possibilidade. Compreende-se até que ponto se deva qualificar como
perversão a curiosidade malsã em desentranhar o que não só não é um delito, como
pode até ser uma ação honrosa.

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Perante os mercadores da suspeita, que dão a impressão de organizarem um tráfico da
intimidade, é preciso defender a dignidade de cada pessoa, seu direito ao silêncio.
Costumam estar de acordo nesta defesa todos os homens honrados, sejam ou não
cristãos, porque está em jogo um valor comum: a legítima decisão de cada qual ser
como é, de não se exibir, de conservar em justa e pudica reserva as suas alegrias, as
suas penas e dores de família; e sobretudo de praticar o bem sem espetáculo, de ajudar
os necessitados por puro amor, sem obrigação de publicar essas tarefas a serviço dos
outros e, muito menos, de pôr a descoberto a intimidade da alma perante o olhar
indiscreto e oblíquo de gente que nada sabe nem deseja saber da vida interior, a não ser
para zombar impiamente.

Mas como é difícil vermo-nos livres dessa agressividade xereta! Multiplicaram-se os


métodos para não deixar o homem em paz. Refiro-me aos meios técnicos, como
também a sistemas de argumentar aceitos hoje em dia, contra os quais é difícil lutar, se
se deseja conservar a reputação. Partem muitas vezes do princípio de que todo mundo
se comporta mal; e com base nessa forma errônea de pensar, surge inevitável mente o
meaculpismo, a auto-crítica. Se uma pessoa não joga sobre si mesma uma tonelada de
lama, deduzem que, além de ser completamente má, é hipócrita e arrogante.

Noutras ocasiões, procede-se de maneira diferente: aquele que fala ou escreve,


lançando mão da calúnia, está disposto a admitir que você é um indivíduo íntegro, mas
que talvez os outros não pensem o mesmo, e podem portanto publicar que você é um
ladrão; como demonstra que não o é? Ou então: você afirma incansavelmente que a sua
conduta é limpa, nobre, reta. Importar-se-ia de considerá-la de novo, para verificar se
por acaso não é suja, ignóbil e retorcida?

É Cristo que passa, O respeito cristão pela pessoa e pela sua liberdade, 70

Não são exemplos imaginários. Estou persuadido de que qualquer pessoa ou qualquer
70 instituição de certo nome poderia aumentar a casuística. Criou-se em alguns setores a
falsa mentalidade de que o público, o povo, ou como queiram chamá-lo, tem o direito
de conhecer e interpretar os pormenores mais íntimos da existência dos outros.

Sejam-me permitidas umas palavras sobre algo que está bem unido à minha alma. Há
mais de trinta anos venho dizendo e escrevendo de mil formas diferentes que o Opus
Dei não tem em vista nenhuma finalidade temporal, política; que pretende única e
exclusivamente difundir entre multidões de todas as raças, de todas as condições
sociais, de todos os países, o conhecimento e a prática da doutrina salvadora de Cristo,
e contribuir para que haja mais amor de Deus na terra e, portanto, mais paz, mais
justiça entre os homens, filhos de um único Pai.

Muitos milhares de pessoas - milhões - em todo o mundo compreenderam do que se


tratava. Outros - muito poucos -, seja por que motivos for, parece que não. Se meu
coração está mais perto dos primeiros, honro e amo também os outros, porque em
todos merece respeito e estima a sua dignidade, e todos estão chamados à glória dos
filhos de Deus.

55
Mas nunca falta uma minoria sectária que, não entendendo o que eu e tantos outros
amamos, quereria que explicássemos as coisas de acordo com a sua mentalidade:
exclusivamente política, alheia aos valores sobrenaturais, atenta unicamente ao
equilíbrio de interesses e de pressões de grupos. Se não recebem uma explicação dessa
natureza, errônea e ajeitada a seu gosto, continuam a pensar que há mentira,
dissimulação, planos sinistros.

Devo dizer que esses casos não me entristecem nem me preocupam. Acrescentaria que
me divertem, se fosse possível esquecer que se comete uma ofensa ao próximo e um
pecado que clama diante de Deus. Sou aragonês e, até pelos aspectos humanos do meu
caráter, amo a sinceridade; sinto uma repulsa instintiva por tudo o que suponha
embuço. Sempre procurei responder com a verdade, sem prepotência, sem orgulho,
ainda que os que caluniavam fossem mal educados, arrogantes, hostis, desprovidos do
menor sinal de humanidade.

Tem-me vindo à cabeça, com freqüência, a resposta do cego de nascença aos fariseus,
que perguntavam pela enésima vez como se tinha produzido o milagre: Eu já vo-lo
disse, e vós o ouvistes. Para que quereis ouvi-lo de novo? Será que vós também
quereis fazer-vos seus discípulos?

É Cristo que passa, O respeito cristão pela pessoa e pela sua liberdade, 71

O pecado dos fariseus não consistia em não verem Deus em Cristo, mas em se
71 encerrarem voluntariamente em si mesmos; em não tolerarem que Jesus, que é a luz,
lhes abrisse os olhos. Esse nevoeiro tem resultados imediatos na vida de relação com
os nossos semelhantes. O fariseu que, julgando-se luz, não deixa que Deus lhe abra os
olhos, é o mesmo que tratará soberba e injustamente o próximo, rezando assim: Dou-te
graças porque não sou como os outros homens, ladrões, injustos e adúlteros, nem
como este publicano. E quanto ao cego de nascença, que persiste em contar a verdade
da cura milagrosa, ofendem-no: Saíste do ventre de tua mãe coberto de pecados, e
queres ensinar-nos? E expulsaram-no.

Entre os que não conhecem Cristo, há muitos homens honrados que, por elementar
circunspecção, sabem comportar-se delicadamente: são sinceros, cordiais, educados. Se
eles e nós não nos opusermos a ser curados por Cristo da cegueira que ainda resta em
nossos olhos, se permitirmos que o Senhor nos aplique esse lodo que, em suas mãos, se
converte no colírio mais eficaz, compreenderemos as realidades terrenas e
vislumbraremos as eternas sob uma luz nova, a luz da fé; teremos adquirido um olhar
limpo.

Esta é a vocação do cristão: a plenitude dessa caridade que é paciente, benigna, não
tem inveja, não é temerária, não se ensoberbece, não é ambiciosa, não é interesseira,
não se irrita, não pensa mal, não se alegra com a injustiça, compraz-se na verdade,
tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo sofre.

A caridade de Cristo não é apenas um bom sentimento em relação ao próximo: não se


detém no gosto pela filantropia. A caridade, infundida por Deus na alma, transforma
por dentro a inteligência e a vontade; dá base sobrenatural à amizade e à alegria de

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fazer o bem.

Contemplemos a cena da cura do coxo, narrada pelos Atos dos Apóstolos. Subiam
Pedro e João ao templo e, ao passarem, encontraram um homem sentado à porta, que
era coxo de nascença. Tudo nos lembra aquela outra cura do cego. Mas agora os
discípulos já não pensam que a desgraça se deva aos pecados pessoais do enfermo ou
às faltas de seus pais. E dizem-lhe: Em nome de Jesus Cristo Nazareno, levanta-te e
anda. Antes derramavam incompreensão, agora misericórdia; antes julgavam
temerariamente, agora curam milagrosamente no nome do Senhor. Sempre Cristo que
passa! Cristo que continua a passar pelas ruas e pelas praças do mundo, através de seus
discípulos, os cristãos. Peço-Lhe fervorosamente que passe pela alma de alguns dos
que me escutam neste momento.

É Cristo que passa, O respeito cristão pela pessoa e pela sua liberdade, 72

Surpreendia-nos no começo a atitude dos discípulos de Jesus perante o cego de


72 nascença. Comportavam-se na linha do refrão infeliz: pensa mal e acertarás. Depois,
chegam a conhecer melhor o Mestre, apercebem-se do que significa ser cristão, e a
partir daí suas opiniões inspiram-se na compreensão.

Em qualquer homem - escreve São Tomás de Aquino - existe sempre algum aspecto
que nos permite considerá-lo superior a nós, segundo as palavras do Apóstolo:
“Levados pela humildade, tende-vos uns aos outros por superiores” (Filip., 11, 3). De
acordo com estas palavras, todos os homens devem honrar-se mutuamente. A
humildade é a virtude que nos leva a descobrir que as manifestações de respeito pela
pessoa - pela sua honra, pela sua boa-fé, pela sua intimidade - não são
convencionalismos exteriores, mas as primeiras manifestações da caridade e da justiça.

A caridade cristã não se limita a socorrer os necessitados de bens econômicos; seu


primeiro propósito é respeitar e compreender cada indivíduo como tal, em sua
intrínseca dignidade de homem e de filho do Criador. Por isso, os atentados à pessoa -
à sua reputação, à sua honra - revelam que quem os comete não professa ou não pratica
algumas verdades da nossa fé cristã, e, em qualquer caso, que não possui o autêntico
amor de Deus. A caridade pela qual amamos a Deus e ao próximo é uma mesma
virtude, porque a razão do amor ao próximo é precisamente Deus, e amamos a Deus
quando amamos o próximo com caridade.

Espero que sejamos capazes de tirar conseqüências muito concretas destes minutos de
conversa na presença do Senhor. Principalmente o propósito de não julgarmos os
outros, de não os ofendermos nem sequer com a dúvida, de afogarmos o mal em
abundância de bem, semeando à nossa volta a convivência leal, a justiça e a paz.

E a decisão de nunca nos entristecermos se a nossa conduta reta for mal entendida
pelos outros, se o bem que - com a ajuda contínua do Senhor - procuramos realizar, for
interpretado de um modo retorcido, e por um processo ilícito atribuírem às nossas
intenções desígnios de mal, uma conduta dolosa e simuladora. Perdoemos sempre, com
o sorriso nos lábios. Falemos com clareza, sem rancor, quando nos parecer em
consciência que devemos falar. E deixemos tudo nas mãos do nosso Pai-Deus, com um

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divino silêncio - Iesus autem tacebat , Jesus calava-se -, se se trata de ataques pessoais,
por mais brutais e indecorosos que sejam. Preocupemo-nos apenas de fazer boas obras,
que Ele se encarregará de que elas brilhem diante dos homens.

É Cristo que passa, A luta interior, 73

Como toda a festa cristã, esta que hoje celebramos é especialmente uma festa de paz.
73 No seu antigo simbolismo, os ramos evocam a cena narrada pelo Gênesis: Depois de
ter esperado outros sete dias, Noé soltou de novo a pomba. E eis que pela tarde ela
voltou, trazendo no bico um ramo de oliveira com folhas verdes. Entendeu, pois, Noé
que as águas já não cobriam a terra. Recordamos agora que a aliança entre Deus e seu
povo é confirmada e estabelecida em Cristo, porque Ele é a nossa paz. Nessa
maravilhosa unidade e recapitulação do velho no novo, que caracteriza a liturgia da
nossa Santa Igreja Católica, lemos no dia de hoje estas palavras de profunda alegria:
Os filhos dos hebreus, levando ramos de oliveira, saíram ao encontro do Senhor,
clamando e dizendo: Glória nas alturas.

A aclamação a Jesus Cristo vem unir-se na nossa alma àquela outra que saudou o seu
nascimento em Belém. E por onde Jesus passava, conta São Lucas, as multidões
estendiam seus mantos pelo caminho. E quando já ia chegando à descida do monte das
Oliveiras, toda a multidão dos discípulos começou a louvar alegremente a Deus, em
altos brados, por todos os prodígios que tinha visto, dizendo: bendito seja o Rei que
vem em nome do Senhor, paz no céu e glória nas alturas.

Pax in coelo, paz no céu. Mas olhemos também para o mundo: por que não há paz na
terra? Não, não há paz na terra. Há somente aparência de paz, equilíbrio de medo,
compromissos precários. Não há paz nem mesmo na Igreja, sulcada por tensões que
retalham a alva túnica da Esposa de Cristo. Não há paz em muitos corações que tentam
em vão compensar a intranqüilidade da alma com o bulício contínuo, com a pequena
satisfação de bens que não saciam, porque deixam sempre o sabor amargo da tristeza.

As folhas de palma, escreve Santo Agostinho, são símbolo de homenagem, porque


significam vitória. O Senhor estava prestes a vencer, morrendo na Cruz; pelo sinal da
Cruz, ia triunfar sobre o Diabo, o príncipe da morte. Cristo é a nossa paz porque
venceu; e venceu porque lutou, no duro combate contra a maldade acumulada nos
corações humanos.

Cristo, que é a nossa paz, é também o Caminho. Se queremos a paz, temos que seguir
os seus passos. A paz é conseqüência da guerra, da luta, dessa luta ascética, íntima, que
cada cristão deve sustentar contra tudo o que em sua vida não for de Deus: contra a
soberba, a sensualidade, o egoísmo, a superficialidade, a estreiteza de coração. É inútil
clamar por sossego exterior se falta tranqüilidade nas consciências, no fundo da alma,
porque do coração saem os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as
fornicações, os furtos, os falsos testemunhos, as blasfêmias.

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É Cristo que passa, A luta interior, 74

Mas esta linguagem não será antiquada? Não foi por acaso substituída por um
74 vocabulário de ocasião, de claudicações pessoais encobertas sob uma roupagem
pseudo-científica? Não existe um acordo tácito para apontar como bens reais o
dinheiro, que tudo compra, o poder temporal, a astúcia que leva a ficar sempre por
cima, a sabedoria humana que se auto-define como adulta e imagina haver superado o
sagrado?

Não sou nem fui nunca pessimista, porque a fé me diz que Cristo venceu
definitivamente e, em penhor da sua conquista, nos deu uma palavra de ordem que é
também um compromisso: lutar. Nós, os cristãos, temos um propósito de amor, que
assumimos livremente com o chamado da graça divina: uma obrigação que nos anima
a lutar com tenacidade, porque sabemos que somos tão frágeis como os demais
homens. Mas, ao mesmo tempo, não podemos esquecer que, se nos servirmos dos
meios adequados, seremos o sal, a luz e o fermento do mundo: seremos o consolo de
Deus.

O nosso ânimo de perseverar com firmeza neste propósito de Amor é, além disso, um
dever de justiça. E a matéria desta exigência, comum a todos os fiéis, concretiza-se
numa batalha constante. Ao longo de toda a tradição da Igreja, retratam-se os cristãos
como milites Christi, soldados de Cristo. Soldados que levam a serenidade aos outros,
enquanto combatem continuamente contra as más inclinações pessoais. Às vezes, por
insuficiência de sentido sobrenatural, por uma descrença prática, não se quer entender a
vida na terra como milícia. Insinuam maliciosamente que, se nos considerarmos
soldados de Cristo, corremos o risco de utilizar a fé para fins temporais de violência, de
facções. Este modo de pensar é uma triste simplificação pouco lógica, que costuma
aparecer de mãos dadas com o comodismo e a covardia.

Nada mais alheio à fé cristã do que o fanatismo que acompanha os estranhos conúbios
entre o profano e o espiritual, sejam de que sinal forem. Esse perigo não existe, se
entendemos a luta tal como Cristo no-la ensinou: como guerra de cada um consigo
mesmo, como esforço sempre renovado de amar mais a Deus, de desterrar o egoísmo,
de servir a todos os homens. Renunciar a esta contenda, seja com que desculpa for, é
declarar-se de antemão derrotado, aniquilado, sem fé, de alma caída, dissipada em
complacências mesquinhas.

Para o cristão, o combate espiritual, diante de Deus e de todos os irmãos na fé, é uma
necessidade, uma conseqüência da sua condição. Por isso, se algum de nós não luta,
está traindo Jesus Cristo e todo o seu corpo místico, que é a Igreja.

É Cristo que passa, A luta interior, 75

A guerra do cristão é incessante, porque na vida interior se verifica um perpétuo


75 começar e recomeçar, que nos impede de orgulhosamente nos imaginarmos perfeitos.

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É inevitável que haja muitas dificuldades no nosso caminho; se não encontrássemos
obstáculos, não seríamos criaturas de carne e osso. Sempre teremos paixões que nos
puxem para baixo, e sempre precisaremos defender-nos contra esses delírios mais ou
menos veementes.

Perceber no corpo e na alma o aguilhão da soberba, da sensualidade, da inveja, da


preguiça, do desejo de subjugar os outros, não deveria representar uma descoberta. É
um mal antigo, sistematicamente confirmado pela nossa experiência pessoal; é o ponto
de partida e o ambiente habitual do nosso esforço por ganhar, num íntimo desporto, a
nossa corrida para a casa do Pai. Por isso nos ensina São Paulo: Quanto a mim, corro,
não como que à aventura; luto, não como quem açoita o ar; mas castigo o meu corpo e
conservo-o na escravidão, não suceda que, tendo pregado aos outros, venha eu a ser
condenado.

Para iniciar ou sustentar esta contenda, o cristão não deve esperar por manifestações
exteriores ou sentimentos favoráveis. A vida interior não é questão de sentimentos, mas
de graça divina e de vontade, de amor. Todos os discípulos foram capazes de seguir
Cristo no seu dia de triunfo em Jerusalém, mas quase todos o abandonaram à hora do
opróbrio da Cruz

Para amar de verdade, precisamos ser fortes, leais, com o coração firmemente ancorado
na fé, na esperança e na caridade. Só a ligeireza insubstancial muda caprichosamente
de objeto em seus amores, que não são amores, mas compensações egoístas. Quando
há amor, há integridade: capacidade de entrega, de sacrifício, de renúncia. E, no meio
da entrega, do sacrifício e da renúncia - com o suplício da contradição -, a felicidade e
a alegria. Uma alegria que nada nem ninguém nos poderá tirar.

Neste torneio de amor, não nos devem entristecer as nossas quedas, nem mesmo as
quedas graves, se recorremos a Deus com dor e bom propósito, mediante o sacramento
da Penitência. O cristão não é nenhum colecionador maníaco de uma folha de serviços
imaculada. Jesus Cristo Nosso Senhor não só se comove com a inocência e a fidelidade
de João, como se enternece com o arrependimento de Pedro depois da queda. Jesus
compreende a nossa debilidade e atrai-nos a Si como que por um plano inclinado,
desejando que saibamos insistir no esforço de subir um pouco, dia após dia.
Procura-nos como procurou os discípulos de Emaús, indo ao seu encontro; como
procurou Tomé e lhe mostrou as chagas abertas nas mãos e no lado, fazendo com que
as tocasse com seus dedos. Jesus Cristo está sempre à espera de que voltemos para Ele,
precisamente porque conhece a nossa fraqueza.

É Cristo que passa, A luta interior, 76

Suporta as dificuldades como um bom soldado de Cristo Jesus , diz-nos São Paulo. A
76 vida do cristão é milícia, guerra, uma formosíssima guerra de paz, que em nada se
identifica com as empresas bélicas humanas, porque estas se inspiram na divisão e
muitas vezes nos ódios, e a guerra dos filhos de Deus contra o seu próprio egoísmo se
baseia na unidade e no amor. Vivemos na carne, mas não militamos por motivos
carnais. Porque as armas da nossa milícia não são carnais, mas sim a fortaleza em
Deus para derrubar fortalezas, desbaratando com elas os projetos humanos e toda a

60
altivez que se levanta contra a ciência de Deus. É a escaramuça sem tréguas contra o
orgulho, contra a prepotência que nos induz a praticar o mal, contra os juízos
altaneiros.

Neste Domingo de Ramos, em que Nosso Senhor inicia a semana decisiva para a nossa
salvação, deixemo-nos de considerações superficiais e fixemos o olhar no que é
verdadeiramente importante. Vejamos bem: o que realmente devemos pretender é ir
para o céu. Senão, nada vale a pena. E se queremos ir para o céu, é indispensável
sermos fiéis à doutrina de Cristo; e para sermos fiéis, é indispensável porfiarmos com
constância na luta contra os obstáculos que se opõem à nossa felicidade eterna.

Sei que a idéia de combate evoca imediatamente a nossa fraqueza, e prevemos as


quedas, os erros. Deus conta com isso. É inevitável que, ao caminharmos, levantemos
poeira. Somos criaturas e estamos cheios de defeitos. Eu diria até que os teremos
sempre; são as sombras que fazem ressaltar mais em nossa alma a graça de Deus e as
nossas tentativas de corresponder ao favor divino. E esse claro-escuro nos tornará
humanos, humildes, compreensivos, generosos.

Não nos enganemos: se na nossa vida contamos com o nosso brio e com vitórias,
devemos contar também com desfalecimentos e derrotas. Essa foi sempre a
peregrinação terrena dos cristãos, mesmo dos que veneramos hoje nos altares.
Lembramo-nos de Pedro, de Agostinho, de Francisco? Nunca me agradaram essas
biografias de santos que, com toda a ingenuidade, mas também com falta de doutrina,
nos apresentavam as façanhas desses homens como se tivessem sido confirmados na
graça desde o seio materno. Não. As verdadeiras biografias dos heróis cristãos são
como as nossas vidas: lutavam e ganhavam, lutavam e perdiam. E então, contritos,
voltavam à luta.

Não nos estranhe sermos derrotados com relativa freqüência, geralmente ou até sempre
em matérias de pouca importância, que nos ferem como se tivessem muita. Se há amor
de Deus, se há humildade, se há perseverança e tenacidade em nossa milícia, essas
derrotas não terão excessiva importância, porque chegarão as vitórias, que serão glória
aos olhos de Deus. Não existem fracassos quando nos portamos com intenção reta e
com o propósito de cumprir a vontade de Deus, contando sempre com a sua graça e o
nosso nada.

É Cristo que passa, A luta interior, 77

Mas temos à nossa espreita um inimigo poderoso, que se opõe ao nosso desejo de
77 encarnar com perfeição a doutrina de Cristo: a soberba, que cresce quando não
procuramos descobrir, depois dos fracassos e das derrotas, a mão benfazeja e
misericordiosa do Senhor. Então a alma enche-se de penumbras - de triste escuridão -,
e julga-se perdida. E a imaginação inventa obstáculos que não são reais, que
desapareceriam se os encarássemos simplesmente com um pouco de humildade. A
soberba e a imaginação levam às vezes a alma a enveredar por tortuosos calvários; mas
nesses calvários não se encontra Cristo, porque onde está o Senhor sempre se goza de
paz e de alegria, ainda que a alma se sinta em carne viva e rodeada de trevas.

61
Outro inimigo hipócrita da nossa santificação: pensar que esta batalha interior tem que
se dirigir contra obstáculos extraordinários, contra dragões que respiram fogo. É mais
uma manifestação de orgulho. Queremos lutar, mas estrondosamente, com clamores de
trombetas e tremular de estandartes.

Devemos convencer-nos de que o maior inimigo da rocha não é a picareta ou o


machado, nem o golpe de qualquer outro instrumento, por mais contundente que seja: é
essa água miúda, que se infiltra, gota a gota, por entre as fendas do penhasco, até
arruinar a sua estrutura. O maior perigo para o cristão é desprezar a luta nessas
escaramuças que calam pouco a pouco na alma, até a tornarem frouxa, quebradiça e
indiferente, insensível aos apelos de Deus.

Ouçamos o Senhor, que nos diz: Quem é fiel no pouco, também o é no muito, e quem é
injusto no pouco, também o é no muito. É como se Ele nos lembrasse: luta a cada
instante nos detalhes aparentemente pequenos, mas grandes aos meus olhos; cumpre
com pontualidade o dever; sorri a quem precise, ainda que tenhas a alma dorida; dedica
sem regateios o tempo necessário à oração; acode em auxílio dos que te procuram;
pratica a justiça, ampliando-a com a graça da caridade.

São estas e outras semelhantes as moções que sentiremos cada dia dentro de nós, como
um aviso silencioso para que nos treinemos no desporto sobrenatural do domínio
próprio. Que a luz de Deus nos ilumine e nos leve a perceber as suas advertências; que
nos ajude a lutar, que esteja ao nosso lado na vitória; que não nos abandone na hora da
queda, porque assim nos encontraremos sempre em condições de nos levantarmos e de
continuar combatendo.

Não podemos parar. O Senhor pede-nos uma luta cada vez mais rápida, cada vez mais
profunda, cada vez mais extensa. Estamos obrigados a superar-nos, porque, nesta
competição, a única meta é chegar à glória do céu. E se não chegarmos ao céu, nada
terá valido a pena.

É Cristo que passa, A luta interior, 78

Quem deseja lutar serve-se dos meios adequados. E os meios não mudaram nestes
78 vinte séculos de cristianismo: oração, mortificação e freqüência de Sacramentos. Como
a mortificação é também oração - oração dos sentidos -, bastam-nos duas palavras para
descrever esses meios: oração e Sacramentos.

Gostaria que considerássemos agora esse manancial de graça divina que são os
Sacramentos, maravilhosa manifestação da misericórdia de Deus. Meditemos devagar
na definição do Catecismo de São Pio V: determinados sinais sensíveis que causam a
graça, e ao mesmo tempo a declaram, como que pondo-a diante dos olhos. Deus
Nosso Senhor é infinito, seu amor é inesgotável, sua clemência e sua piedade para
conosco não admitem limites. E, embora nos conceda a sua graça de muitas outras
maneiras, instituiu expressa e livremente - só Ele o podia fazer - esses sete sinais
eficazes, para que de um modo estável, simples e acessível a todos, os homens
pudessem participar dos méritos da Redenção.

62
Se se abandonam os Sacramentos, desaparece a verdadeira vida cristã. Não obstante,
sabemos que, particularmente nesta época, não falta quem pareça esquecer - e chegue
até a desprezar - esta corrente redentora da graça de Cristo. É doloroso falar desta
chaga de uma sociedade que se chama cristã, mas toma-se necessário fazê-lo, para que
em nossas almas se firme o desejo de recorrer com mais amor e gratidão a essas fontes
de santificação.

Decidem sem o menor escrúpulo adiar o batismo dos recém-nascidos, e assim


cometem um grave atentado contra a justiça e contra a caridade, privando esses seres
da graça da fé, do tesouro incalculável da inabitação da Santíssima Trindade na alma,
que vem ao mundo manchada pelo pecado original. Pretendem também desvirtuar a
natureza própria do Sacramento da Crisma, em que a Tradição viu sempre
unanimemente um fortalecimento da vida espiritual, uma efusão silenciosa e fecunda
do Espírito Santo, para que, sobrenaturalmente robustecida, a alma possa lutar - miles
Christi, como soldado de Cristo - nessa batalha interior contra o egoísmo e a
concupiscência.

Se se perde a sensibilidade para as coisas de Deus, dificilmente se entenderá também o


Sacramento da Penitência. A confissão sacramental não é um diálogo humano, mas um
colóquio divino; é um tribunal de segura e divina justiça, e sobretudo de misericórdia,
com um juiz amoroso que não deseja a morte do pecador, mas que se converta e viva.

É verdadeiramente infinita a ternura de Nosso Senhor. Reparemos com que delicadeza


trata os seus filhos. Fez do matrimônio um vínculo santo, imagem da união de Cristo
com a sua Igreja , um grande sacramento em que se alicerça a família cristã, que há de
ser, com a graça de Deus, um ambiente de paz e de concórdia, escola de santidade. Os
pais são cooperadores de Deus. Daí procede o amável dever de veneração que cabe aos
filhos. Com razão se pode chamar o quarto mandamento de dulcíssimo preceito do
Decálogo, como escrevi há muitos anos. Quando se vive o matrimônio como Deus
quer, santamente, o lar toma-se um recanto de paz, luminoso e alegre.

É Cristo que passa, A luta interior, 79

Pela Ordem sacerdotal, nosso Pai-Deus conferiu-nos a possibilidade de que alguns


79 fiéis, em virtude de uma nova e inefável infusão do Espírito Santo, recebessem um
caráter indelével na alma, que os configura com Cristo-Sacerdote, para atuarem em
nome de Jesus Cristo, Cabeça do seu Corpo Místico. Através desse sacerdócio
ministerial, que difere essencialmente - e não com uma simples diferença de grau do
sacerdócio comum de todos os fiéis -, os ministros sagrados podem consagrar o Corpo
e o Sangue de Cristo, oferecer a Deus o Santo Sacrifício, perdoar os pecados na
confissão sacramental e exercer o ministério da doutrina in iis quae sunt ad Deum , em
tudo e somente naquilo que se refere a Deus.

Por isso, o sacerdote deve ser exclusivamente um homem de Deus e repelir a idéia de
brilhar em campos onde os demais cristãos não precisam dele. O sacerdote não é um
psicólogo, nem um sociólogo, nem um antropólogo: é outro Cristo, o próprio Cristo,
para cuidar das almas de seus irmãos. Seria triste que o sacerdote, baseando-se numa
ciência humana - que, se se dedica à sua tarefa sacerdotal, cultivará somente como

63
amador e aprendiz -, se julgasse só por isso habilitado a pontificar em teologia
dogmática ou moral. A única coisa que faria seria demonstrar uma dupla ignorância -
na ciência humana e na ciência teológica -, mesmo que pelo seu ar superficial de sábio
conseguisse enganar alguns leitores ou ouvintes indefesos.

É fato público que alguns eclesiásticos parecem hoje dispostos a fabricar uma nova
Igreja, traindo Cristo, trocando os fins espirituais - a salvação das almas, uma a uma -
por fins temporais. Se não resistem a essa tentação, deixarão de cumprir o seu
ministério sagrado, perderão a confiança e o respeito do povo e causarão uma terrível
destruição dentro da Igreja; intrometendo-se, além disso, indevidamente, na liberdade
política dos cristãos e dos demais homens, com a conseqüente confusão - eles mesmos
se tornam perigosos - na convivência civil. A Sagrada Ordem é o sacramento do
serviço sobrenatural aos irmãos na fé; alguns parecem querer convertê-la em
instrumento terreno de um novo despotismo.

É Cristo que passa, A luta interior, 80

Mas continuemos a contemplar a maravilha dos Sacramentos. Na Unção dos enfermos,


80 como agora se chama a Extrema-Unção, assistimos a uma amorosa preparação da
viagem que terminará na casa do Pai. E pela Sagrada Eucaristia, sacramento - se assim
nos podemos expressar - da prodigalidade divina, Deus concede-nos a sua graça e se
nos entrega Ele mesmo: Jesus Cristo, que está sempre realmente presente - não apenas
durante a Santa Missa - com seu Corpo, sua Alma, seu Sangue e sua Divindade.

Penso repetidas vezes na responsabilidade que têm os sacerdotes de assegurar a todos


os cristãos esse canal divino dos Sacramentos. A graça de Deus vem em socorro de
cada alma; cada criatura requer uma assistência concreta, pessoal. As almas não podem
ser tratadas em massa! Não é lícito ofender a dignidade humana e a dignidade dos
filhos de Deus deixando de atender pessoalmente a cada um com a humildade de quem
se sabe instrumento e veículo do amor de Cristo: porque cada alma é um tesouro
maravilhoso; cada homem é único, insubstituível. Cada um vale todo o sangue de
Cristo.

Falávamos antes de luta. Mas a luta exige treino, alimentação adequada, remédios
urgentes em caso de doença, de contusões, de feridas. Os Sacramentos - principal
remédio da Igreja - não são supérfluos: quando os abandonamos voluntariamente, já
não podemos dar um só passo no seguimento de Jesus Cristo; necessitamos deles como
da respiração, da circulação do sangue ou da luz, para sabermos apreciar em qualquer
instante o que o Senhor quer de nós.

A ascética do cristão exige fortaleza, e essa fortaleza procede do Criador. Nós somos a
escuridão, e Ele é claríssimo resplendor; somos a enfermidade, e Ele a saúde vigorosa;
somos a escassez, e Ele a infinita riqueza; somos a fraqueza, e Ele, quem nos sustenta,
quia tu es, Deus, fortitudo mea , porque tu és sempre, ó meu Deus, a nossa fortaleza.
Nada há nesta terra capaz de se opor ao jorrar impaciente do Sangue redentor de Cristo.
Mas a pequenez humana pode toldar os olhos e ocultar-nos a grandeza divina. Daí que
todos os fiéis, especialmente os que têm por ofício dirigir - servir - espiritualmente o
Povo de Deus, tenham a responsabilidade de não cegar as fontes da graça, de não se

64
envergonharem da Cruz de Cristo.

É Cristo que passa, A luta interior, 81

Na Igreja de Deus, é obrigação de todos nós perseverarmos com firmeza no propósito


81 de ser sempre mais leais à doutrina de Cristo. Ninguém está dispensado. Se os pastores
não lutassem pessoalmente por adquirir delicadeza de consciência, respeito fiel ao
dogma e à moral - que constituem o depósito da fé e o patrimônio comum -,
tornar-se-iam realidade as palavras proféticas de Ezequiel: Filho do homem, profetiza
contra os pastores de Israel; profetiza e diz a esses pastores: Assim fala o Senhor
Deus: Ai dos pastores de Israel que se apascentam a si mesmos! Porventura não são
os rebanhos que devem ser apascentados pelos pastores? Vós bebestes o seu leite e
vestistes as suas lãs... Não fortalecestes as ovelhas fracas e não curastes as doentes,
não vendastes as que estavam feridas nem reconduzistes as transviadas; não buscastes
as que se tinham perdido e a todas tratastes com violência e dureza.

São repreensões fortes; porém, mais grave é a ofensa que se faz a Deus quando, tendo
recebido a incumbência de velar pelo bem espiritual de todos, se maltratam as almas,
privando-as da água limpa do Batismo, que regenera a alma; do óleo balsâmico da
Crisma, que a fortalece; do tribunal que perdoa, do alimento que dá a vida eterna.

Quando podem acontecer estas coisas? Quando se abandona esta guerra de paz. Quem
não luta expõe-se a qualquer das escravidões que sabem agrilhoar os corações de carne:
a escravidão de uma visão exclusivamente humana, a escravidão do desejo opressivo
de poder e de prestígio temporal, a escravidão da vaidade, a escravidão do dinheiro, a
servidão da sensualidade...

Se alguma vez tropeçarmos com pastores indignos desse nome - Deus pode permitir
semelhante prova -, não nos escandalizemos. Cristo prometeu assistência infalível e
indefectível à sua Igreja, mas não garantiu a fidelidade dos homens que a compõem. A
estes não faltará graça abundante e generosa, se souberem contribuir com o pouco que
Deus lhes pede: vigiar atentamente, empenhando-se em remover com a graça de Deus
os obstáculos à santidade. Se não houver luta, mesmo os que parecem estar muito alto
podem estar muito baixo aos olhos de Deus. Conheço as tuas obras, a tua conduta.
Consideram-te vivo, mas estás morto. Permanece atento e consolida o resto do
rebanho que está para morrer, pois não achei as tuas obras perfeitas diante do meu
Deus. Lembra-te da doutrina que recebeste e ouviste. Observa-a e arrepende-te.

São exortações do Apóstolo São João, no século I, dirigidas a quem detinha a


responsabilidade da Igreja na cidade de Sardes. Porque o possível debilitamento do
senso de responsabilidade em alguns pastores não é um fenômeno moderno; surge já
nos tempos dos Apóstolos, no próprio século em que Jesus Cristo Nosso Senhor viveu
na terra. É que ninguém está seguro, se deixa de lutar consigo mesmo. Ninguém se
pode salvar sozinho. Todos na Igreja necessitamos desses meios específicos que nos
fortalecem: da humildade, que nos persuade a aceitar ajuda e conselho; das
mortificações, que aplainam o coração, para que nele reine Cristo; do estudo da
Doutrina segura de sempre, que nos leva a conservar em nós a fé e a propagá-la.

65
É Cristo que passa, A luta interior, 82

A liturgia do Domingo de Ramos põe na boca dos cristãos este cântico: Levantai,
82 portas, os vossos dintéis; levantai-vos, portas antigas, para que entre o Rei da glória.
Quem permanecer recluído na cidadela do seu egoísmo não descerá ao campo de
batalha. Mas, se levantar as portas da fortaleza e permitir que entre o Rei da paz, sairá
com Ele a combater contra toda essa miséria que embaça os olhos e insensibiliza a
consciência.

Levantai as portas antigas. Esta exigência de combate não é nova no cristianismo. É a


verdade perene. Sem luta, não se consegue a vitória; sem vitória, não se alcança a paz.
Sem paz, a alegria humana é apenas uma alegria aparente, falsa, estéril, que não se
traduz em ajuda aos homens, em obras de caridade e de justiça, de perdão e de
misericórdia, em serviço de Deus.

Hoje em dia, dentro e fora da Igreja, em cima e em baixo, dá a impressão de que


muitos renunciaram à luta - a essa guerra pessoal contra as claudicações próprias -,
para se entregarem de armas e bagagem a servidões que envilecem a alma. Esse perigo
estará sempre à espreita de todos os cristãos.

Por isso, é preciso pedir insistentemente à Santíssima Trindade que tenha compaixão
de todos. Ao falar destas coisas, estremeço ante o pensamento da justiça de Deus.
Recorro à sua misericórdia, à sua compaixão, para que não olhe para os nossos
pecados, mas para os méritos de Cristo e de sua Santa Mãe, que é também nossa Mãe,
para os do Patriarca São José, que lhe serviu de Pai, para os dos Santos.

O cristão pode viver com a segurança de que, se tiver desejos de lutar, Deus o pegará
pela mão direita, como se lê na Missa da festa de hoje. Foi Jesus - que entra em
Jerusalém montado num pobre jumentinho, o Rei da Paz -, foi Jesus quem o disse: O
reino dos céus se alcança à força e são os violentos que o arrebatam. Essa força não se
traduz em violência contra os outros: é fortaleza para combater as fraquezas e misérias
próprias, valentia para não mascarar as infidelidades pessoais, audácia para confessar a
fé, mesmo quando o ambiente é adverso.

Hoje, como ontem, do cristão espera-se heroísmo. Heroísmo em grandes contendas, se


for preciso. Heroísmo - e será o normal - nas pequenas pendências de cada dia. Quando
se luta continuamente, com Amor e deste modo que parece insignificante, o Senhor
está sempre ao lado de seus filhos, como pastor amoroso: Eu mesmo apascentarei as
minhas ovelhas e as farei repousar. Procurarei a ovelha perdida, reconduzirei a
desgarrada, vendarei a que estava ferida, restabelecerei as enfermas... Viverão com
segurança na sua terra. Quando eu tiver quebrado as cadeias do seu jugo e as houver
libertado das mãos dos seus tiranos, saberão que eu sou o Senhor.

66
É Cristo que passa, A Eucaristia, mistério de fé e de amor, 83

Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a sua hora de passar deste
83 mundo ao Pai, havendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim. Este
versículo de São João anuncia ao leitor do seu Evangelho que algo de importante está
para acontecer nesse dia. É um preâmbulo ternamente afetuoso, paralelo ao do relato de
São Lucas: Ardentemente - afirma o Senhor - desejei comer convosco esta páscoa,
antes de padecer.

Comecemos desde já a pedir ao Espírito Santo que nos prepare para podermos entender
cada expressão e cada gesto de Jesus Cristo: porque queremos viver vida sobrenatural,
porque o Senhor nos manifestou a sua vontade de se dar a cada um de nós em alimento
da alma, e porque reconhecemos que só Ele tem palavras de vida eterna.

A fé leva-nos a confessar com Simão Pedro: Nós acreditamos e sabemos que tu és o


Cristo, o Filho de Deus. E é essa mesma fé, fundida com a nossa devoção, que nesses
momentos transcendentes nos incita a imitar a audácia de João, a aproximar-nos de
Jesus e a reclinar a cabeça no peito do Mestre , que amava ardentemente os seus e,
como acabamos de ouvir, iria amá-los até o fim.

Todas as formas de expressão se revelam pobres quando pretendem explicar, mesmo


de longe, o mistério da Quinta-Feira Santa. Mas não é difícil imaginar ao menos em
parte os sentimentos do Coração de Jesus Cristo naquela tarde, a última que passaria
com os seus antes do sacrifício do Calvário.

Tenhamos em mente a experiência tão humana da despedida de duas pessoas que se


amam. Desejariam permanecer sempre juntas, mas o dever - seja ele qual for -
obriga-as a afastar-se uma da outra. Não podem continuar sem se separarem, como
gostariam. Nessas situações, o amor humano, que, por maior que seja, é sempre
limitado, recorre a um símbolo: as pessoas que se despedem trocam lembranças entre
si, possivelmente uma fotografia, com uma dedicatória tão ardente que é de admirar
que o papel não se queime. Mas não conseguem muito mais, pois o poder das criaturas
não vai tão longe quanto o seu querer.

Porém, o Senhor pode o que nós não podemos. Jesus Cristo, perfeito Deus e perfeito
Homem, não nos deixa um símbolo, mas a própria realidade: fica Ele mesmo. Irá para
o Pai, mas permanecerá com os homens. Não nos deixará um simples presente que nos
lembre a sua memória, uma imagem que se dilua com o tempo, como a fotografia que
em breve se esvai, amarelece e perde sentido para os que não tenham sido
protagonistas daquele momento amoroso. Sob as espécies do pão e do vinho
encontra-se o próprio Cristo, realmente presente com seu Corpo, seu Sangue, sua Alma
e sua Divindade.

67
É Cristo que passa, A Eucaristia, mistério de fé e de amor, 84

Como compreendemos agora o clamor incessante dos cristãos, em todos os tempos,


84 diante da Hóstia santa! Canta, ó língua, o mistério do Corpo glorioso e do Sangue
precioso que o Rei de todos os povos, nascido de Mãe fecunda, derramou para resgate
do mundo. É preciso adorar devotamente este Deus escondido. Ele é o mesmo Jesus
Cristo que nasceu de Maria Virgem; o mesmo que padeceu e foi imolado na Cruz; o
mesmo de cujo peito trespassado jorraram água e sangue.

Este é o sagrado banquete em que se recebe o próprio Cristo, se renova a memória da


sua Paixão e, por meio dEle, a alma chega a um convívio íntimo com o seu Deus e
possui um penhor da glória futura. Assim resumiu a liturgia da Igreja, em breves
estrofes, os capítulos culminantes da história da caridade ardente que o Senhor nos
dispensa.

O Deus da nossa fé não é um ser longínquo, que contemple com indiferença a sorte dos
homens, seus anseios, suas lutas, suas angústias. É um Pai que ama seus filhos até o
extremo de lhes enviar o Verbo, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, para que,
pela sua encarnação, morra por eles e os redima; o mesmo Pai amoroso que agora nos
atrai suavemente a Si, mediante a ação do Espírito Santo que habita em nossos
corações.

A alegria da Quinta-Feira Santa nasce de compreendermos que o Criador se excedeu


no carinho por suas criaturas. E como se não bastassem todas as outras provas da sua
misericórdia, Nosso Senhor Jesus Cristo instituiu a Eucaristia para que pudéssemos
tê-lo sempre junto de nós e porque - tanto quanto nos é possível entender -, movido por
seu Amor, Ele, que de nada necessita, não quis prescindir de nós. A Trindade
enamorou-se do homem, elevado à ordem da graça e feito à sua imagem e semelhança ,
redimiu-o do pecado - do pecado de Adão, que recaiu sobre toda a sua descendência, e
dos pecados pessoais de cada um -, e deseja vivamente morar em nossa alma: Se
alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos a ele, e nele
faremos a nossa morada.

É Cristo que passa, A Eucaristia, mistério de fé e de amor, 85

Esta corrente trinitária de amor pelos homens perpetua-se de maneira sublime na


85 Eucaristia. Há já muitos anos, todos aprendemos no catecismo que a Sagrada Eucaristia
pode ser considerada como Sacrifício e como Sacramento; e que o Sacramento se nos
apresenta como Comunhão e como um tesouro no altar, no Sacrário.

A Igreja dedica outra festa ao mistério eucarístico, ao Corpo de Cristo - Corpus Christi
-, presente em todos os tabernáculos do mundo. Hoje, nesta Quinta-Feira Santa, vamos
deter-nos na Sagrada Eucaristia, Sacrifício e alimento, na Santa Missa e na Sagrada
Comunhão.

68
Falava da corrente trinitária de amor pelos homens. E onde podemos percebê-la melhor
do que na Missa? A Trindade inteira intervém no santo sacrifício do altar. Por isso
agrada-me tanto repetir na coleta, na secreta e na oração depois da Comunhão aquelas
palavras finais: Por Jesus Cristo, Nosso Senhor, vosso Filho - dirigimo-nos ao Pai -,
que convosco vive e reina na unidade do Espírito Santo Deus, por todos os séculos dos
séculos. Amém.

Na Missa, a oração ao Pai é constante. O sacerdote é um representante do Sacerdote


eterno, Jesus Cristo, que é ao mesmo tempo a vítima. E a ação do Espírito Santo na
Missa não é menos inefável nem menos certa. Pela virtude do Espírito Santo, escreve
São João Damasceno, efetua-se a conversão do pão no Corpo de Cristo.

Esta ação do Espírito Santo exprime-se claramente no momento em que o sacerdote


invoca a bênção divina sobre a oferenda: Vinde, santificador onipotente, eterno Deus, e
abençoai este sacrifício preparado para o vosso santo nome , este holocausto que dará
ao Nome santíssimo de Deus a glória que lhe é devida. A santificação que imploramos
é atribuída ao Paráclito, que o Pai e o Filho nos enviam. Reconhecemos também essa
presença ativa do Espírito Santo no sacrifício quando dizemos, pouco antes da
Comunhão: Senhor Jesus Cristo, Filho do Deus vivo, que, por vontade do Pai e com a
cooperação do Espírito Santo, por vossa morte destes a vida ao mundo....

É Cristo que passa, A Eucaristia, mistério de fé e de amor, 86

Toda a Trindade está presente no sacrifício do Altar. Por vontade do Pai e com a
86 cooperação do Espírito Santo, o Filho se oferece em oblação redentora. Aprendamos a
ganhar intimidade com a Trindade Beatíssima, Deus Uno e Trino: três Pessoas divinas
na unidade da sua substância, do seu amor e da sua ação santificadora cheia de eficácia.

Logo a seguir ao Lavabo, o sacerdote invoca: Recebei, ó Trindade Santa, esta oblação
que Vos oferecemos em memória da Paixão, da Ressurreição e da Ascensão de Nosso
Senhor Iesus Cristo. E, no final da Missa, temos outra oração de inflamado acatamento
ao Deus Uno e Trino: Placeat tibi, Sancta Trinitas, obsequium servitutis meae...
Seja-Vos agradável, ó Trindade Santíssima, o tributo da minha servidão, a fim de que
este sacrifício que eu, embora indigno, apresentei aos olhos da Vossa Majestade, seja
aceito por Vós e, por vossa misericórdia, atraia o vosso favor sobre mim e sobre todos
aqueles por quem o ofereci.

A Missa - insisto - é ação divina, trinitária, não humana. O sacerdote que celebra está a
serviço dos desígnios do Senhor, emprestando-lhe seu corpo e sua voz. Não atua,
porém, em nome próprio, mas in persona et in nomine Christi, na Pessoa de Cristo e
em nome de Cristo.

O amor da Trindade pelos homens faz com que, da presença de Cristo na Eucaristia,
nasçam para a Igreja e para a humanidade todas as graças. Este é o sacrifício
profetizado por Malaquias: Desde o nascer do sol até o ocaso, é grande meu nome
entre os povos; e em todo o lugar se oferece ao meu nome um sacrifício fumegante e
uma oblação pura. É o Sacrifício de Cristo, oferecido ao Pai com a cooperação do

69
Espírito Santo: oblação de valor infinito, que eterniza em nós a Redenção que os
sacrifícios da Antiga Lei não podiam alcançar.

É Cristo que passa, A Eucaristia, mistério de fé e de amor, 87

A Santa Missa situa-nos assim perante os mistérios primordiais da fé, porque é a


87 própria doação da Trindade à Igreja. Compreende-se deste modo que a Missa seja o
centro e a raiz da vida espiritual do cristão. É o fim de todos os sacramentos. Na Missa,
encaminha-se para a sua plenitude a vida da graça que foi depositada em nós pelo
Batismo e que cresce fortalecida pelo Crisma. Quando participamos da Eucaristia,
escreve São Cirilo de Jerusalém, experimentamos a espiritualização deificante do
Espírito Santo, que não só nos configura com Cristo - como acontece no Batismo -,
mas nos cristifica integralmente, associando-nos à plenitude de Cristo Jesus.

Na medida em que nos cristifica, a efusão do Espírito Santo leva-nos a reconhecer a


nossa condição de filhos de Deus. O Paráclito, que é caridade, ensina-nos a fundir com
essa virtude toda a nossa vida; e assim, consummati in unum , feitos uma só coisa com
Cristo, podemos ser entre os homens o que Santo Agostinho afirma da Eucaristia: sinal
de unidade, vínculo de Amor.

Não revelo nada de novo se digo que alguns cristãos têm uma visão muito pobre da
Santa Missa, que muitos a encaram como um mero rito exterior, quando não como um
convencionalismo social. É que os nossos corações, tão mesquinhos, são capazes de
acompanhar rotineiramente a maior doação de Deus aos homens. Na Missa, nesta
Missa que agora celebramos, intervém de um modo especial, repito, a Trindade
Santíssima. Para correspondermos a tanto amor, é preciso que haja da nossa parte uma
entrega total do corpo e da alma, pois ouvimos o próprio Deus, falamos com Ele; nós o
vemos e saboreamos. E quando as palavras se tornam insuficientes, cantamos,
animando a nossa língua - Pange, lingua! - a proclamar as grandezas do Senhor na
presença de toda a humanidade.

É Cristo que passa, A Eucaristia, mistério de fé e de amor, 88

Viver a Santa Missa é permanecer em oração contínua, convencer-se de que é para


88 cada um de nós um encontro pessoal com Deus, em que adoramos, louvamos, pedimos,
damos graças, reparamos por nossos pecados, nos purificamos e nos sentimos uma só
coisa em Cristo com todos os cristãos.

Talvez nos tenhamos perguntado algumas vezes como podemos corresponder a tanto
amor de Deus; talvez nesses momentos tenhamos desejado ver claramente exposto um
programa de vida cristã. A solução é fácil e está ao alcance de todos os fiéis: participar
amorosamente da Santa Missa, aprender na Missa a ganhar intimidade com Deus,
porque neste Sacrifício se encerra tudo o que o Senhor quer de nós.

Desejaria recordar agora o desenrolar das cerimônias litúrgicas, que tantas vezes temos
observado. Seguindo-as passo a passo, é bem possível que o Senhor nos faça descobrir

70
em que aspectos devemos melhorar, que vícios extirpar, como deve ser o nosso
relacionamento fraterno com todos os homens. O sacerdote dirige-se ao altar de Deus,
do Deus que alegra a nossa juventude. A Santa Missa inicia-se com um cântico de
alegria, porque Deus está presente. É a alegria que, unida ao reconhecimento e ao
amor, se manifesta no beijo depositado no altar, símbolo de Cristo e memória dos
santos: um espaço pequeno e santificado, porque nesta ara se prepara o Sacramento da
infinita eficácia.

O Confiteor coloca-nos perante a nossa indignidade; não é a lembrança abstrata da


culpa, mas a presença, bem concreta, dos nossos pecados e das nossas faltas. Por isso
repetimos: Kyrie eleison, Christe eleison, Senhor, tende piedade de nós; Cristo, tende
piedade de nós. Se o perdão de que necessitamos estivesse em função dos nossos
méritos, nasceria agora na nossa alma uma amarga tristeza. Mas, graças à bondade
divina, o perdão nos vem da misericórdia de Deus, a quem já louvamos - Glória! -,
porque só Vós sois o Santo, só Vós o Senhor, só Vós o Altíssimo, Jesus Cristo, com o
Espírito Santo, na glória de Deus Pai.

É Cristo que passa, A Eucaristia, mistério de fé e de amor, 89

Ouvimos a seguir a Palavra da Escritura, a Epístola e o Evangelho, luzes do Paráclito,


89 que fala com voz humana para que a nossa inteligência saiba e contemple, para que a
vontade se robusteça e a ação se cumpra, porque somos um só povo que confessa uma
só fé, um Credo, um povo congregado na unidade do Pai, do Filho e do Espírito
Santo.

Segue-se o Ofertório: o pão e o vinho dos homens. Não é muito, mas a oração os
acompanha: Em espírito de humildade e de coração contrito sejamos por Vós
recebidos, Senhor, e que o nosso sacrifício se cumpra hoje na vossa presença de modo
que Vos seja agradável, ó Senhor Deus. Irrompe de novo a lembrança da nossa miséria
e o desejo de que tudo o que se destina ao Senhor esteja limpo e purificado: Lavarei
minhas mãos, amo o decoro da tua casa.

Há poucos instantes, antes do Lavabo, invocávamos o Espírito Santo, pedindo-lhe que


abençoasse o Sacrifício oferecido ao seu santo Nome. Terminada a purificação,
dirigimo-nos à Trindade - Suscipe, Sancta Trinitas -, para que acolha o que oferecemos
em memória da vida, da Paixão, da Ressurreição e da Ascensão de Cristo, em honra de
Maria, sempre Virgem, e em honra de todos os Santos.

Que a oblação redunde em salvação de todos - Orate, fratres, reza o sacerdote -,


porque este sacrifício é meu e vosso, de toda a Santa Igreja. Orai, irmãos, mesmo que
sejam poucos os que se encontram reunidos, mesmo que esteja materialmente presente
um só cristão, ou apenas o celebrante, porque qualquer Missa é o holocausto universal,
o resgate de todas as tribos e línguas e povos e nações.

Pela Comunhão dos Santos, todos os cristãos recebem as graças de cada Missa, quer se
celebre perante milhares de pessoas ou tenha por único assistente um menino, talvez
distraído, que ajuda o sacerdote. Em qualquer caso, a terra e o céu se unem para entoar
com os Anjos do Senhor: Sanctus, Sanctus, Sanctus...

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Eu aplaudo e louvo com os Anjos. Não me é difícil, porque sei que me encontro
rodeado por eles quando celebro a Santa Missa. Estão adorando a Trindade. Como sei
também que, de algum modo, intervém a Santíssima Virgem, pela sua íntima união
com a Trindade Beatíssima e porque é Mãe de Cristo, da sua Carne e do seu Sangue,
Mãe de Jesus Cristo, perfeito Deus e perfeito Homem. Jesus Cristo, que foi concebido
nas entranhas de Maria Santíssima sem intervenção de homem, mas apenas pela
virtude do Espírito Santo, tem o mesmo Sangue de sua Mãe: e é esse Sangue que se
oferece no sacrifício redentor, no Calvário e na Santa Missa.

É Cristo que passa, A Eucaristia, mistério de fé e de amor, 90

Assim se entra no Canon, com a confiança filial que nos leva a chamar clementíssimo
90 ao nosso Pai-Deus. Pedimos-lhe pela Igreja e por todos na Igreja, pelo Papa, por nossa
família, pelos nossos amigos e companheiros. E o católico, que tem coração universal,
pede pelo mundo inteiro, porque nada pode ficar à margem do seu zelo vibrante. E para
que a oração seja acolhida, evocamos e entramos em comunicação com a gloriosa
sempre Virgem Maria e com um punhado de homens que foram os primeiros a seguir
Cristo e por Ele morreram.

Quam oblationem... Aproxima-se o momento da Consagração. Agora, na Missa, é


outra vez Cristo quem atua através do sacerdote: Isto é o meu Corpo. Este é o cálice do
meu Sangue. Jesus está conosco! Pela transubstanciação, renova-se a infinita loucura
divina ditada pelo Amor. Quando hoje se repetir esse momento, saibamos dizer ao
Senhor, sem ruído de palavras, que nada nos poderá separar dEle, que a disponibilidade
com que quis permanecer - inerme - nas aparências, tão frágeis, do pão e do vinho, nos
converteu voluntariamente em escravos: Praesta meae menti de te vivere, et te illi
semper dulce sapere ; fazei com que eu viva sempre de Vós e saboreie sempre a doçura
do vosso amor.

Mais pedidos, porque nós, homens, estamos quase sempre inclinados a pedir: por
nossos irmãos defuntos, por nós mesmos. Aqui evocamos todas as nossas infidelidades,
as nossas misérias. A carga é grande, mas Ele quer levá-la por nós e conosco. Termina
o Canon com outra invocação à Santíssima Trindade: Per Ipsum, et cum Ipso, et in
Ipso..., por Cristo, com Cristo e em Cristo, nosso Amor, a Vós, ó Pai Todo-Poderoso,
seja dada toda a honra e toda a glória, agora e para sempre, na unidade do Espírito
Santo.

É Cristo que passa, A Eucaristia, mistério de fé e de amor, 91

Jesus é o Caminho, o Medianeiro: nEle, tudo; fora dEle, nada. Em Cristo e ensinados
91 por Ele, atrevemo-nos a chamar Pai Nosso ao Todo-Poderoso: Aquele que fez o céu e a
terra é esse Pai entranhável que espera que voltemos para Ele continuamente, cada um
como novo e constante filho pródigo.

Ecce Agnus Dei... Domine, non sum dignus... Vamos receber o Senhor. Quando na

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terra se recebem pessoas investidas em autoridade, preparam-se luzes, música, trajes de
gala. Para hospedarmos Cristo na nossa alma, de que maneira não deveremos
preparar-nos? Já nos ocorreu pensar como nos comportaríamos, se só pudéssemos
comungar uma vez na vida?

Quando eu era criança, ainda não estava estendida a prática da Comunhão freqüente.
Lembro-me do modo como as pessoas se preparavam para comungar: havia esmero em
preparar bem a alma e o corpo. As melhores roupas, o cabelo bem penteado, o corpo
fisicamente limpo, talvez até com um pouco de perfume... Eram delicadezas próprias
de gente enamorada, de almas finas e retas, que sabiam pagar o Amor com amor.

Com Cristo na alma, termina a Santa Missa. A bênção do Pai, do Filho e do Espírito
Santo acompanha-nos durante todo o dia, na nossa tarefa simples e normal de santificar
todas as nobres atividades humanas.

Assistindo à Santa Missa, aprendemos a conviver com cada uma das Pessoas divinas:
com o Pai, que gera o Filho; com o Filho, que é gerado pelo Pai; e com o Espírito
Santo, que procede dos dois. Convivendo com qualquer uma das três Pessoas,
convivemos com um só Deus; e convivendo com os três, a Trindade, convivemos
igualmente com um só Deus, único e verdadeiro. Amemos a Missa, meus filhos,
amemos a Missa. E comunguemos com fome, mesmo que nos sintamos gelados,
mesmo que a emotividade não nos acompanhe: comunguemos com fé, com esperança,
com inflamada caridade.

É Cristo que passa, A Eucaristia, mistério de fé e de amor, 92

Não ama a Cristo quem não ama a Santa Missa, quem não se esforça por vivê-la com
92 serenidade e sossego, com devoção e carinho. O amor converte os enamorados em
pessoas de sensibilidade fina e delicada; leva-os a descobrir, para que se esmerem em
vivê-los, pormenores às vezes insignificantes, mas que trazem a marca de um coração
apaixonado. É assim que devemos assistir à Santa Missa. Por isso sempre desconfiei
das pessoas empenhadas em ouvir uma Missa curta e atropelada: pareciam-me
demonstrar com essa atitude, aliás pouco elegante, não terem percebido ainda o que
significa o Sacrifício do altar.

O amor a Cristo, que se oferece por nós, incita-nos a saber encontrar, uma vez
terminada a Missa, alguns minutos para uma ação de graças pessoal e íntima, que
prolongue no silêncio do coração essa outra ação de graças que é a Eucaristia. Como
havemos de nos dirigir a Ele, como falar-Lhe, como comportar-nos?

A vida cristã não se compõe de normas rígidas, porque o Espírito Santo não dirige as
almas em massa, mas em cada uma infunde propósitos, inspirações e afetos que a
ajudarão a reconhecer e a cumprir a vontade do Pai. Penso, não obstante, que em
muitas ocasiões o nervo do nosso diálogo com Cristo, da ação de graças após a Santa
Missa, pode ser a consideração de que o Senhor é para nós Rei, Médico, Mestre e
Amigo.

73
É Cristo que passa, A Eucaristia, mistério de fé e de amor, 93

É Rei, e anseia por reinar em nossos corações de filhos de Deus. Mas não imaginemos
93 reinados humanos; Cristo não domina nem procura impor-se, porque não veio para ser
servido, mas para servir.

Seu reino é a paz, a alegria, a justiça. Cristo, nosso Rei, não espera de nós raciocínios
vãos, mas fatos, porque nem todo aquele que diz Senhor! Senhor! entrará no reino dos
céus; mas o que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse entrará.

É Médico, e cura o nosso egoísmo se deixarmos que a sua graça penetre até o fundo da
alma. Jesus advertiu-nos que a pior doença é a hipocrisia, o orgulho que leva a
dissimular os pecados próprios. Com o Médico, é imprescindível que tenhamos uma
sinceridade absoluta, que lhe expliquemos toda a verdade e digamos: Domine, si vis,
potes me mundare , Senhor, se quiseres - e Tu queres sempre -, podes curar-me. Tu
conheces a minha debilidade; sinto estes sintomas e experimento estas outras
fraquezas. E descobrimos com simplicidade as chagas; e o pus, se houver pus. Senhor,
Tu que curaste tantas almas, faz com que, ao ter-te no meu peito ou ao contemplar-te
no Sacrário, te reconheça como Médico divino.

É Mestre de uma ciência que só Ele possui: a do amor sem limites a Deus e, em Deus,
a todos os homens. Na escola de Cristo, aprende-se que a nossa existência não nos
pertence. Ele entregou a sua vida por todos os homens e, se o seguimos, devemos
compreender que também nós não podemos apropriar-nos da nossa de maneira egoísta,
sem partilhar das dores dos outros. Nossa vida é de Deus e temos que gastá-la ao seu
serviço, preocupando-nos generosamente com as almas e demonstrando com a palavra
e o exemplo a profundidade das exigências cristãs.

Jesus espera que alimentemos o desejo de adquirir essa ciência, para nos repetir: Quem
tiver sede, venha a mim e beba. E respondemos: ensina-nos a esquecer-nos de nós
mesmos, para pensar em Ti e em todas as almas. Deste modo, o Senhor nos levará para
a frente com a sua graça, como quando começávamos a escrever - não nos lembramos
daqueles traços verticais que fazíamos na infância, guiados pela mão do professor? -, e
assim começaremos a saborear a felicidade de manifestar a nossa fé - que já é outra
dádiva de Deus - com traços inequívocos de conduta cristã, onde todos possam ler as
maravilhas divinas.

É Amigo, o Amigo: Vos autem dixi amicos. Chama-nos amigos e foi Ele quem deu o
primeiro passo; amou-nos primeiro. Mas não impõe o seu amor: oferece-o. E prova-o
com o sinal mais claro da amizade: Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a
vida por seus amigos. Era amigo de Lázaro, e chorou por ele quando o viu morto. E o
ressuscitou. Se nos vir frios, apáticos, talvez com a rigidez de uma vida interior que se
extingue, seu pranto será vida para nós: Eu te ordeno, meu amigo, levanta-te e anda ,
sai dessa vida mesquinha, que não é vida.

74
É Cristo que passa, A Eucaristia, mistério de fé e de amor, 94

Termina a nossa meditação de Quinta-Feira Santa. Se o Senhor nos ajudou - e Ele está
94 sempre disposto a fazê-lo, desde que lhe abramos o coração -, sentiremos a urgência de
lhe corresponder no que é mais importante: amar. E saberemos difundir essa caridade
entre os demais homens, com uma vida de serviço. Eu vos dei o exemplo , insiste Jesus,
falando aos seus discípulos depois de lhes ter lavado os pés na noite da Ceia.
Afastemos do coração o orgulho, a ambição, os desejos de predomínio e assim, à nossa
volta e em nós, reinarão a paz e a alegria, alicerçadas no sacrifício pessoal.

Finalmente, um pensamento filial e amoroso para Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe.
Peço desculpas se evoco mais uma recordação de infância, desta vez relativa a uma
imagem muito difundida na minha terra, no tempo em que São Pio X estimulava a
prática da comunhão freqüente. Representa Maria em adoração à Hóstia santa. Hoje,
como então e como sempre, Nossa Senhora ensina-nos a procurar a intimidade com
Jesus, a reconhecê-lo e a encontrá-lo nas diversas circunstâncias do dia e, de um modo
especial, nesse instante supremo - o tempo unindo-se à eternidade - do Santo Sacrifício
da Missa: Jesus com gesto de sacerdote eterno, atrai a Si todas as coisas, para as
colocar, divino afflante Spiritu, com o sopro do Espírito Santo, na presença de Deus
Pai.

É Cristo que passa, A morte de Cristo, vida do cristão, 95

Esta semana, que o povo cristão tradicionalmente chama Santa, oferece-nos uma vez
95 mais a ocasião de considerarmos - de revivermos - os momentos em que se consuma a
vida de Jesus. Tudo o que as diversas manifestações da piedade nos trazem à memória,
nestes dias, orienta-se certamente para a Ressurreição, que é o fundamento da nossa fé,
como escreve São Paulo. Mas não devemos percorrer com excessiva pressa esse
caminho; não devemos deixar cair no esquecimento uma coisa muito simples, que
talvez nos escape de vez em quando: é que não poderemos participar da Ressurreição
do Senhor se não nos unirmos à sua Paixão e à sua Morte. Para acompanharmos Cristo
na sua glória, no fim da Semana Santa, é preciso que penetremos antes no seu
holocausto e nos sintamos uma só coisa com Ele, morto no Calvário.

A entrega generosa de Cristo defronta-se com o pecado, essa realidade dura de aceitar,
mas inegável: o mistério da iniqüidade, a inexplicável maldade da criatura que se
levanta, por soberba, contra Deus. A história é tão antiga como a humanidade.
Recordemos a queda dos nossos primeiros pais; depois, toda essa cadeia de
depravações que balizam a marcha dos homens, e, finalmente, as nossas rebeldias
pessoais. Não é fácil considerar a perversão que o pecado implica e compreender tudo
o que a fé nos diz. Devemos tomar consciência de que, mesmo no plano humano, a
magnitude da ofensa se mede pela condição do ofendido, pelo seu valor pessoal, pela
sua dignidade social, pelas suas qualidades. E o homem ofende a Deus: a criatura
renega o seu Criador.

75
Mas Deus é Amor. O abismo de malícia que o pecado encerra foi transposto por uma
Caridade infinita. Deus não abandona os homens. Os desígnios divinos previram que,
para reparar as nossas faltas, para restabelecer a unidade perdida, não eram suficientes
os sacrifícios da Antiga Lei; fazia-se necessária a entrega de um Homem que fosse
Deus.

Podemos imaginar - para de algum modo nos aproximarmos deste mistério insondável
- que a Trindade Beatíssima se reúne em conselho, em sua contínua relação íntima de
amor imenso, e, como resultado dessa decisão eterna, o Filho Unigênito de Deus Pai
assume a nossa condição humana, carrega sobre si as nossas misérias e as nossas dores,
para acabar cravado com pregos num madeiro.

Este fogo, este desejo de cumprir o decreto salvador de Deus Pai, atravessa toda a vida
de Cristo, desde o seu próprio nascimento em Belém. Ao longo dos três anos em que
conviveram com Ele, os discípulos ouvem-no repetir incansavelmente que seu
alimento é fazer a vontade dAquele que o enviou. Até que, indo a meio a tarde da
primeira Sexta-Feira Santa, se conclui a sua imolação. Inclinando a cabeça, entregou o
espírito. É com essas palavras que o Apóstolo São João nos descreve a morte de Cristo.
Jesus, assumindo todas as culpas dos homens sob o peso da Cruz, morre pela força e
vileza dos nossos pecados.

Devemos meditar no Senhor, ferido dos pés à cabeça por nosso amor. Com uma frase
que se aproxima da realidade, embora não acabe de exprimir tudo, podemos repetir
com um escritor de há séculos: O corpo de Jesus é um retábulo de dores. À vista de
Cristo transformado num farrapo, convertido num corpo inerte descido da Cruz e
confiado a sua Mãe; à vista desse Jesus despedaçado, poderia concluir-se que essa cena
é a manifestação mais clara de uma derrota. Onde estão as multidões que o seguiam? E
o Reino cujo advento anunciava? No entanto, não é derrota, mas vitória. Agora Cristo
acha-se mais perto que nunca do momento da Ressurreição, da manifestação da glória
que conquistou com a sua obediência.

É Cristo que passa, A morte de Cristo, vida do cristão, 96

Acabamos de reviver o drama do Calvário, aquilo que me atreveria a chamar a primeira


96 Missa, a primordial, celebrada por Jesus Cristo. Deus Pai entrega seu Filho à morte.
Jesus, o Filho Unigênito, abraça-se ao lenho em que haviam de justiçá-lo, e seu
sacrifício é aceito pelo Pai; como fruto da Cruz, derrama-se sobre a humanidade o
Espírito Santo.

Na tragédia da Paixão, consuma-se a nossa própria vida e toda a história humana. A


Semana Santa não pode reduzir-se a uma simples recordação, porque é a consideração
do mistério de Jesus Cristo, que se prolonga em nossas almas; o cristão está obrigado a
ser alter Christus, ipse Christus, outro Cristo, o próprio Cristo. Pelo Batismo, todos
fomos constituídos sacerdotes da nossa própria existência, para oferecer vítimas
espirituais, que sejam agradáveis a Deus por Jesus Cristo , para realizar cada uma de
nossas ações em espírito de obediência à vontade de Deus, e assim perpetuarmos a
missão do Deus-Homem.

76
Por contraste, essa realidade nos leva a deter-nos nas nossas desditas, nos nossos erros
pessoais. É uma consideração que não nos deve desanimar nem colocar-nos na atitude
cética de quem renunciou às grandes esperanças, porque o Senhor reclama-nos tal
como somos, para que participemos da sua vida, para que lutemos por ser santos.

A santidade: quantas vezes pronunciamos esta palavra como se fosse um som vazio!
Para muitos, chega até a ser um ideal inacessível, um lugar comum da ascética, mas
não um fim concreto, uma realidade viva. Não pensavam assim os primeiros cristãos,
que usavam o nome de santos para se chamarem entre si, com toda a naturalidade e
com grande freqüência: Todos os santos vos saúdam , saudai a todos os santos em
Cristo Jesus.

Situados agora perante o momento do Calvário, em que Jesus já morreu e ainda se não
manifestou a glória do seu triunfo, temos uma excelente ocasião para examinarmos os
nossos desejos de vida cristã, de santidade; para reagirmos com um ato de fé perante as
nossas fraquezas e, confiantes no poder de Deus, fazermos o propósito de depositar
amor nas coisas do nosso dia-a-dia. A experiência do pecado tem que nos conduzir à
dor, a uma decisão mais amadurecida e mais profunda de ser fiéis, de nos
identificarmos deveras com Cristo, de perseverar custe o que custar nessa missão
sacerdotal que Ele confiou a todos os seus discípulos sem exceção, e que nos impele a
ser sal e luz do mundo.

É Cristo que passa, A morte de Cristo, vida do cristão, 97

O pensamento da morte de Cristo traduz-se num convite para que nos situemos com
97 absoluta sinceridade perante os nossos afazeres diários e tomemos a sério a fé que
professamos. A Semana Santa não pode, pois, ser um parêntesis sagrado no contexto
de um viver motivado exclusivamente por interesses humanos; deve ser uma ocasião
de adentrar nas profundezas do Amor de Deus, para assim podermos mostrá-lo aos
homens, com a palavra e com as obras.

Mas o Senhor estabelece condições. São Lucas conserva-nos uma declaração sua de
que não podemos prescindir: Se algum dos que me seguem não aborrece seu pai e sua
mãe, a mulher e os filhos, os irmãos e as irmãs, e até a sua própria vida, não pode ser
meu discípulo. São termos duros. É verdade que nem a palavra “odiar” nem a palavra
“aborrecer” exprimem bem o pensamento original de Jesus. De qualquer forma, as
palavras do Senhor foram fortes, porque também não se reduzem a um amar menos,
como por vezes se interpreta temperadamente, para suavizar a frase. É terrível uma
expressão tão contundente, não porque implique uma atitude negativa ou impiedosa -
pois o Jesus que agora fala é o mesmo que manda amar o próximo como à própria
alma, e que dá a sua vida pelos homens -, mas por ser uma locução que indica
simplesmente que, diante de Deus, não são possíveis as meias medidas. As palavras de
Cristo poderiam traduzir-se por amar mais, amar melhor, ou antes por não amar com
um amor egoísta nem tampouco com um amor de curto alcance: devemos amar com o
Amor de Deus.

É disso que se trata. Observemos com atenção a última das exigências de Jesus: et
animam suam. A vida, a própria alma, é o que o Senhor nos pede. Se somos fátuos, se

77
nos preocupamos apenas com a nossa comodidade pessoal, se encaramos a existência
dos outros e inclusive do mundo por referência exclusiva a nós mesmos, não temos o
direito de nos chamarmos cristãos e de nos considerarmos discípulos de Cristo. A
entrega tem que se realizar com obras e com verdade, não apenas com a boca. O amor
a Deus convida-nos a levar a cruz a pulso, a sentir também sobre nós o peso da
humanidade inteira, e a cumprir, dentro das circunstancias próprias do estado e do
trabalho de cada um, os desígnios ao mesmo tempo claros e amorosos da vontade do
Pai. Na passagem que comentamos, Jesus prossegue: E aquele que não carrega a sua
cruz e me segue, também não pode ser meu discípulo.

Temos que aceitar a vontade de Deus sem medo, precisamos formular sem vacilações o
propósito de edificar toda a nossa vida de acordo com o que a nossa fé nos ensina e
exige. Não há dúvida de que encontraremos luta, sofrimento e dor, mas, se possuímos
uma fé verdadeira, nunca nos consideraremos infelizes: mesmo com penas e até com
calúnias, seremos felizes, com uma felicidade que nos impelirá a amar os outros e a
fazê-los participar da nossa alegria sobrenatural.

É Cristo que passa, A morte de Cristo, vida do cristão, 98

Ser cristão não é título de mera satisfação pessoal: tem nome - substância - de missão.
98 Já antes recordávamos que o Senhor convida todos os cristãos a serem sal e luz do
mundo. Fazendo-se eco desse preceito, e com textos tirados do Antigo Testamento,
São Pedro escreve umas palavras que definem muito claramente essa missão: Vós sois
linhagem escolhida, sacerdócio real, gente santa, povo de conquista, para anunciar as
grandezas dAquele que vos arrancou das trevas para a sua luz admirável.

Ser cristão não é algo de acidental; é uma divina realidade que se insere nas entranhas
da nossa vida, dando-nos uma visão límpida e uma vontade decidida de agir como
Deus quer. Aprende-se assim que a peregrinação do cristão pelo mundo tem que se
converter num contínuo serviço, prestado de modos muito diversos, conforme as
circunstancias pessoais, mas sempre por amor a Deus e ao próximo. Ser cristão é agir
sem pensar nas pequenas metas do prestígio ou da ambição, nem em outras finalidades
aparentemente mais nobres, como a filantropia ou a compaixão perante as desgraças
alheias; é avançar em direção ao termo último e radical do amor que Jesus Cristo
manifestou ao morrer por nós.

Observam-se, por vezes, certas atitudes que são o resultado de não se saber captar esse
mistério de Jesus. Por exemplo, a mentalidade dos que encaram o cristianismo como
um conjunto de práticas ou atos de piedade, sem perceberem a sua relação com as
situações da vida de todos os dias, com a urgência de atender às necessidades dos
outros e de esforçar-se por remediar as injustiças.

Eu diria que os que têm essa mentalidade ainda não compreenderam o que significa
que o Filho de Deus se tenha encarnado, que tenha assumido corpo, alma e voz de
homem, que tenha participado do nosso destino até experimentar o despedaçamento
supremo da morte. Talvez involuntariamente, certas pessoas consideram Cristo como
um estranho no ambiente dos homens.

78
Outros, por sua vez, tendem a imaginar que, para poderem ser humanos, têm que pôr
em surdina alguns aspectos centrais do dogma cristão, e comportam-se como se a vida
de oração, a relação contínua com Deus, constituísse uma fuga às responsabilidades e
um abandono do mundo. Esquecem que foi o próprio Jesus quem nos deu a conhecer
até que extremo se devem levar o amor e o serviço. Só se procurarmos compreender o
arcano do amor de Deus, desse amor que chega até à morte, é que seremos capazes de
entregar-nos totalmente aos outros, sem nos deixarmos vencer pelas dificuldades ou
pela indiferença.

É Cristo que passa, A morte de Cristo, vida do cristão, 99

É a fé em Cristo - morto e ressuscitado, presente em todos e cada um dos momentos da


99 vida - que ilumina as nossas consciências, incitando-nos a participar com todas as
forças nas vicissitudes e nos problemas da história humana. Nessa história, que se
iniciou com a criação do mundo e que findará com a consumação dos séculos, o cristão
não é um apátrida. É um cidadão da cidade dos homens, com a alma absorvida pelo
desejo de Deus, cujo amor começa a entrever já nesta etapa temporal e no qual
reconhece o fim a que estamos chamados todos os que vivemos na terra.

Se tem interesse o meu testemunho pessoal, posso dizer que sempre concebi a minha
atividade de sacerdote e de pastor de almas como uma tarefa dirigida a situar cada um
em face das exigências totais da sua vida, ajudando as pessoas a descobrir aquilo que
Deus lhes pedia em concreto, sem estabelecer qualquer limitação a essa independência
santa e a essa abençoada responsabilidade individual, que são características de uma
consciência cristã. Esse modo de agir e esse espírito baseiam-se no respeito à
transcendência da verdade revelada e no amor à liberdade da criatura humana. Poderia
acrescentar que se baseiam também na certeza da indeterminação da História, aberta a
múltiplas possibilidades, que Deus não quis limitar.

Seguir Cristo não significa refugiar-se no templo, encolhendo os ombros perante a


evolução da sociedade, perante os acertos ou as aberrações dos homens e dos povos.
Muito pelo contrário, a fé cristã leva-nos a ver o mundo como criação do Senhor, a
apreciar, portanto, tudo o que é nobre e belo, a reconhecer a dignidade de cada pessoa,
feita à imagem de Deus, e a admirar o dom especialíssimo da liberdade, que nos faz
donos dos nossos próprios atos e nos permite - com a graça do céu - construir o nosso
destino eterno.

Amesquinharíamos a fé se a reduzíssemos a uma ideologia terrena, arvorando um


estandarte político-religioso para condenar, não se sabe em nome de que investidura
divina, os que não pensam do mesmo modo em problemas que são, por sua própria
natureza, suscetíveis de receber numerosas e diversas soluções.

79
É Cristo que passa, A morte de Cristo, vida do cristão, 100

A digressão que acabo de fazer tem por única finalidade pôr de manifesto uma
100 verdade central: lembrar que a vida cristã encontra o seu sentido em Deus. Os
homens não foram criados apenas para edificar um mundo o mais justo possível;
para além disso, fomos estabelecidos na terra para entrar em comunhão com o
próprio Deus. Jesus Cristo não nos prometeu nem a comodidade temporal nem a
glória terrena, mas a casa de Deus Pai, que nos espera no termo do caminho.

A liturgia da Sexta-Feira Santa inclui um hino maravilhoso - o Crux fidelis - em que


somos convidados a cantar e a celebrar o glorioso combate do Senhor, o troféu da
Cruz, o preclaro triunfo de Cristo. O Redentor do Universo, ao ser imolado, vence.
Deus, Senhor de todas as coisas criadas, não afirma a sua presença pela força das
armas, ou mesmo pelo poder temporal dos seus, mas pela grandeza do seu amor
infinito.

O Senhor não destrói a liberdade do homem: foi Ele precisamente que nos fez livres.
Por isso, não quer respostas forçadas; quer decisões que procedam da intimidade do
coração. E espera dos cristãos que vivamos de tal maneira que os que estão em
contacto conosco percebam, por cima das nossas próprias misérias, erros e
deficiências, o eco do drama de amor do Calvário. Tudo o que temos, recebemo-lo
de Deus, para sermos sal que salgue, luz que leve aos homens a notícia alegre de que
Ele é um Pai que ama sem medida. O cristão é sal e luz do mundo, não porque vence
ou triunfa, mas porque dá testemunho do amor de Deus; e não será sal se não servir
para salgar; não será luz se, com o seu exemplo e com a sua doutrina, não oferecer
um testemunho de Jesus, se perder o que constitui a razão de ser da sua vida.

É Cristo que passa, A morte de Cristo, vida do cristão, 101

Temos que aprofundar nos aspectos que a morte de Cristo nos revela, sem
101 permanecermos em formas exteriores ou em frases estereotipadas. É necessário
penetrar verdadeiramente nas cenas que revivemos nestes dias: a dor de Jesus, as
lágrimas de sua Mãe, a fuga dos discípulos, a coragem das santas mulheres, a
audácia de José e Nicodemos, que pedem a Pilatos o corpo do Senhor.

Aproximemo-nos, em suma, de Jesus morto, dessa Cruz que se recorta sobre o cume
do Gólgota. Mas aproximemo-nos com sinceridade, sabendo encontrar esse
recolhimento interior que é sinal de maturidade cristã. Desta forma, os
acontecimentos divinos e humanos da Paixão tomarão conta da nossa alma, como
palavra que Deus nos dirige para desvendar os segredos do nosso coração e
revelar-nos o que espera de nossas vidas.

Faz muitos anos, vi um quadro que se gravou profundamente em meu interior.


Representava a Cruz de Cristo e, junto do lenho, três anjos: um chorava
desconsoladamente; outro tinha um prego na mão, como que para se convencer de

80
que tudo aquilo era verdade; o terceiro estava recolhido em oração. Um programa
sempre atual para cada um de nós: chorar, crer e orar.

Perante a Cruz, dor de nossos pecados, dos pecados da humanidade, que levaram
Jesus à morte; fé, para aprofundarmos nessa verdade sublime que ultrapassa todo o
entendimento, e para nos maravilharmos ante o amor de Deus; oração, para que a
vida e a morte de Cristo sejam o modelo e o estímulo da nossa vida e da nossa
entrega. Só assim nos chamaremos vencedores; porque Cristo ressuscitado vencerá
em nós, e a morte se transformará em vida.

É Cristo que passa, Cristo presente nos cristãos, 102

Cristo vive. Esta é a grande verdade que enche de conteúdo a nossa fé. Jesus, que
102 morreu na cruz, ressuscitou, triunfou da morte, do poder das trevas, da dor e da
angústia. Não temais, foi a invocação com que um anjo saudou as mulheres que se
dirigiam ao sepulcro. Não temais. Vindes buscar Jesus Nazareno, que foi
crucificado. Já ressuscitou; não está aqui. Haec est dies quam fecit Dominus,
exsultemus et laetemur in ea: este é o dia que o Senhor fez, alegremo-nos.

O tempo pascal é tempo de alegria, de uma alegria que não se restringe a esta época
do ano litúrgico, mas que habita sempre no coração do cristão. Porque Cristo vive.
Não é Cristo uma figura que passou, que existiu num tempo e que se retirou,
deixando-nos uma lembrança e um exemplo maravilhosos.

Não. Cristo vive. Jesus é o Emmanuel: Deus conosco. A sua Ressurreição revela-nos
que Deus não abandona os seus. Pode a mulher esquecer-se do fruto do seu ventre,
não se compadecer do filho de suas entranhas? Pois ainda que ela se esquecesse, eu
não me esquecerei de ti , tinha Ele prometido. E cumpriu a sua promessa. Deus
continua a achar suas delícias entre os filhos dos homens.

Cristo vive na sua Igreja. “Digo-vos a verdade: a vós convém que eu vá, porque, se
não for, o Consolador não virá a vós. Mas, se for, eu vo-lo enviarei”. Tais eram os
desígnios de Deus: Jesus, morrendo na Cruz, dava-nos o Espírito de Verdade e de
Vida. Cristo permanece na sua Igreja: nos seus sacramentos, na sua liturgia, na sua
pregação e em toda a sua atividade.

De modo especial, Cristo continua presente entre nós nessa entrega diária que é a
Sagrada Eucaristia. Por isso, a Missa é o centro e a raiz da vida cristã. Em todas as
Missas está sempre o Cristo Total, Cabeça e Corpo. Por Cristo, com Cristo e em
Cristo. Porque Cristo é o Caminho, o Medianeiro; nEle encontramos tudo; fora dEle,
a nossa vida fica vazia. Em Jesus Cristo, e instruídos por Ele, atrevemo-nos a dizer -
audemus dicere - Pater noster, Pai nosso. Atrevemo-nos a chamar Pai ao Senhor dos
céus e da terra.

A presença de Jesus vivo na Hóstia Santa é a garantia, a raiz e a consumação da sua


presença no mundo.

81
É Cristo que passa, Cristo presente nos cristãos, 103

Cristo vive no cristão. A fé diz-nos que o homem em estado de graça se encontra


103 endeusado. Somos homens e mulheres, não anjos. Seres de carne e osso, com
coração e paixões, com tristezas e alegrias. Mas a divinização repercute no homem
inteiro, como uma antecipação da ressurreição gloriosa. Cristo ressuscitou dentre os
mortos e constituiu-se como primícias dos defuntos; porque, assim como por um
homem veio a morte, por um homem devia vir a ressurreição dos mortos. Assim
como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos serão vivificados.

A vida de Cristo é a nossa vida, conforme Jesus prometera aos seus Apóstolos na
Última Ceia: Todo aquele que me ama observa os meus mandamentos, e meu Pai o
amará, e viremos a ele, e nele faremos a nossa morada. O cristão deve, pois, viver
segundo a vida de Cristo, tornando próprios os sentimentos de Cristo, de tal maneira
que possa exclamar com São Paulo: Non vivo ego, vivit vero in me Christus , não
sou eu que vivo; é Cristo que vive em mim.

É Cristo que passa, Cristo presente nos cristãos, 104

Quis recordar, embora brevemente, alguns dos aspectos dessa vida atual de Cristo -
104 Iesus Christus heri et hodie, ipse et in saecula , Jesus Cristo ontem e hoje, o mesmo
pelos séculos - por nela se achar o fundamento de toda a vida cristã. Se olharmos à
nossa volta e considerarmos o curso da história da humanidade, observaremos
progressos e avanços. A ciência deu ao homem maior consciência do seu poder. A
técnica domina a natureza em maior grau que em épocas passadas e permite que a
humanidade sonhe com um nível mais alto de cultura, de vida material e de unidade.

Talvez alguns se sintam inclinados a matizar esse quadro, recordando que os


homens sofrem agora injustiças e guerras, inclusive piores que as do passado. Não
lhes falta razão. Mas, por cima dessas considerações, prefiro recordar que, na ordem
religiosa, o homem continua a ser homem e Deus continua a ser Deus. Neste terreno,
o cume do progresso já se verificou: é Cristo, Alfa e Ômega, princípio e fim.

Na vida espiritual, não existe uma nova época a atingir. Já está tudo dado em Cristo,
que morreu, e ressuscitou, e vive, e permanece para sempre. Mas é preciso
unirmo-nos a Ele pela fé, deixando que a sua vida se manifeste em nós, de maneira a
podermos dizer que cada cristão é não já alter Christus, outro Cristo, mas ipse
Christus, o próprio Cristo!

É Cristo que passa, Cristo presente nos cristãos, 105

Instaurare omnia in Christo, é o lema que São Paulo dá aos cristãos de Éfeso
105 informar o mundo inteiro com o espírito de Jesus, colocar Cristo na entranha de

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todas as coisas. Si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad meipsum , quando for
levantado ao alto sobre a terra, tudo atrairei a mim. Cristo, com a sua encarnação,
com a sua vida de trabalho em Nazaré, com a sua pregação e milagres pelas terras da
Judéia e da Galiléia, com a sua morte na Cruz, com a sua Ressurreição, é o centro da
Criação, Primogênito e Senhor de toda a criatura.

Nossa missão de cristãos é proclamar essa realeza de Cristo, anunciá-la com a nossa
palavra e as nossas obras. O Senhor quer os seus em todas as encruzilhadas da terra.
Chama alguns ao deserto, para que se desentendam dos avatares da sociedade dos
homens e com o seu testemunho recordem aos demais que Deus existe. Confia a
outros o ministério sacerdotal. Mas quer a grande maioria dos homens no meio do
mundo, nas ocupações terrenas. Estes cristãos devem, pois, levar Cristo a todos os
ambientes em que desenvolvem as suas tarefas humanas: à fábrica, ao laboratório,
ao cultivo da terra, à oficina do artesão, às ruas das grandes cidades e aos caminhos
de montanha.

Gosto de recordar a este propósito o episódio da conversa de Cristo com os


discípulos de Emaús. Jesus caminha ao lado daqueles dois homens que perderam
quase toda a esperança, a tal ponto que a vida começa a parecer-lhes sem sentido.
Compreende a sua dor, penetra em seus corações, comunica-lhes um pouco da vida
que nEle habita. Quando, ao chegarem à aldeia, Jesus faz menção de continuar
viagem, os dois discípulos detêm-no e quase o obrigam a ficar com eles.
Reconhecem-no depois, ao partir o pão; o Senhor, exclamam, esteve conosco. Então
disseram um para o outro: Não é verdade que sentíamos o coração abrasar-se
dentro de nós, enquanto nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?.
Cada cristão deve tornar Cristo presente entre os homens; deve viver de tal modo
que à sua volta se perceba o bonus odor Christi , o bom odor de Cristo; deve agir de
tal modo que, através das ações do discípulo, se possa descobrir o rosto do Mestre.

É Cristo que passa, Cristo presente nos cristãos, 106

O cristão sabe-se enxertado em Cristo pelo Batismo; habilitado a lutar por Cristo,
106 pela Confirmação; chamado a atuar no mundo pela participação na função real,
profética e sacerdotal de Cristo; transformado numa só coisa com Cristo pela
Eucaristia, sacramento da unidade e do amor. Por isso, como Cristo, deve viver de
rosto voltado para os outros homens, olhando com amor para todos e cada um dos
que o rodeiam, para a humanidade inteira.

A fé leva-nos a reconhecer Cristo como Deus, a vê-lo como nosso Salvador, a


identificar-nos com Ele, agindo como Ele agiu. O Ressuscitado, depois de tirar o
Apóstolo Tomé de suas dúvidas, mostrando-lhe as chagas, exclama:
Bem-aventurados os que não me viram e creram. E São Gregório Magno comenta:
Aqui fala-se de nós de um modo particular, porque nós possuímos espiritualmente
Aquele a quem não vimos corporalmente. Fala-se de nós, mas com a condição de
que as nossas ações estejam de acordo com a nossa fé. Não crê verdadeiramente
senão aquele que na sua conduta põe em prática o que crê. Por isso diz São Paulo
daqueles que da fé só possuem palavras: professam conhecer Deus, mas negam-no
com as obras.

83
Não é possível separar em Cristo o seu ser de Deus-Homem da sua função de
Redentor. O Verbo se fez carne e veio à terra ut omnes homines salvi fiant , para
salvar todos os homens. Com todas as nossas misérias e limitações pessoais, somos
outros Cristos, o próprio Cristo, chamados também a servir a todos os homens.

É necessário que ressoe muitas vezes aquele mandamento que continuará a ser novo
através dos séculos. Caríssimos - escreve São João -, não pretendo escrever-vos um
mandamento novo, mas um mandamento antigo, que recebestes desde o começo; o
mandamento antigo é a palavra divina que ouvistes. E, não obstante, eu vos digo
que o mandamento de que vos falo é um mandamento novo, que é verdadeiro em si
mesmo e em vós, porque as trevas desapareceram e brilha já a luz verdadeira.
Quem diz estar na luz, e aborrece seu irmão, está ainda em trevas. Quem ama o seu
irmão mora na luz e nele não existe escândalo.

O Senhor veio trazer a paz, a boa nova, a vida, a todos os homens. Não apenas aos
ricos, nem apenas aos pobres. Não apenas aos sábios, nem apenas à gente simples. A
todos. Aos irmãos que somos, pois somos filhos de um mesmo Pai Deus. Não existe,
pois, senão uma raça: a raça dos filhos de Deus. Não existe mais do que uma cor: a
cor dos filhos de Deus. E não existe senão uma língua: essa que, falando ao coração
e à cabeça, sem ruído de palavras, nos dá a conhecer Deus e faz com que nos
amemos uns aos outros.

É Cristo que passa, Cristo presente nos cristãos, 107

É esse amor de Cristo que cada um de nós deve esforçar-se por realizar na sua
107 própria vida. Mas para sermos ipse Christus - o próprio Cristo -, é preciso que nos
contemplemos nEle. Não basta ter uma idéia geral do espírito de Jesus, mas é
preciso aprender dEle pormenores e atitudes. E sobretudo é preciso contemplar a sua
passagem pela terra, as suas pisadas, para extrair daí força, luz, serenidade, paz.

Quando amamos uma pessoa, desejamos conhecer até os menores detalhes da sua
existência, do seu caráter, para assim nos identificarmos com ela. É por isso que
temos que meditar na história de Cristo, desde o seu nascimento num presépio até à
sua morte e sua ressurreição. Nos meus primeiros anos de atividade sacerdotal,
costumava oferecer exemplares do Evangelho ou livros em que se narrasse a vida de
Jesus. Porque é preciso que a conheçamos bem, que a tenhamos toda inteira na
cabeça e no coração, de modo que, em qualquer momento, sem necessidade de livro
algum, fechando os olhos, possamos contemplá-la como num filme, de forma que,
nas mais diversas situações da nossa existência, acudam à memória as palavras e os
atos do Senhor.

Assim nos sentiremos integrados na sua vida. Porque não se trata apenas de pensar
em Jesus, de imaginar as cenas que lemos. Temos que intervir plenamente nelas, ser
protagonistas. Seguir Cristo tão de perto quanto Santa Maria, sua Mãe; quanto os
primeiros Doze, as santas mulheres e aquelas multidões que se comprimiam ao seu
redor. Se agirmos assim, se não criarmos obstáculos, as palavras de Cristo
penetrarão até o fundo da alma e transformar-nos-ão. Porque a palavra de Deus é

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viva e eficaz, e mais penetrante que espada de dois gumes, e introduz-se até às
dobras da alma e do espírito, até às articulações e medulas, e discerne os
pensamentos e as intenções do coração.

Se queremos levar até o Senhor os outros homens, temos que abrir o Evangelho e
contemplar o amor de Cristo. Poderíamos deter-nos nas cenas-cume da Paixão
porque, como Ele mesmo disse, ninguém tem maior amor que aquele que dá a vida
pelos seus amigos. Mas podemos também considerar o resto da sua vida, o seu
modo habitual de lidar com os que se cruzavam com Ele.

Cristo, perfeito Deus e perfeito Homem, conduziu-se de um modo humano e divino


para fazer chegar aos homens a sua doutrina de salvação e manifestar-lhes o amor de
Deus. Deus condescende com o homem, assume a nossa natureza sem reservas, à
exceção do pecado.

Causa-me uma profunda alegria considerar que Cristo quis ser plenamente homem,
com carne como a nossa. Emociona-me contemplar a maravilha de um Deus que
ama com coração de homem.

É Cristo que passa, Cristo presente nos cristãos, 108

Entre tantas cenas narradas pelos evangelistas, detenhamo-nos a considerar algumas,


108 começando pelos relatos dos momentos de convivência de Jesus com os Doze. O
Apóstolo João, que derrama no seu Evangelho a experiência de uma vida inteira,
narra a sua primeira conversa com Jesus, com o encanto das coisas que nunca mais
se esquecem. Mestre, onde moras? Disse-lhes Jesus: Vinde e vede. Foram, pois, e
viram onde morava, e ficaram com Ele aquele dia.

Diálogo divino e humano, que transformou as vidas de João e André, de Pedro,


Tiago e tantos outros; que preparou seus corações para escutarem a palavra
imperiosa que Jesus lhes dirigiu junto do mar da Galiléia. Caminhando Jesus pelas
margens do mar da Galiléia, viu dois irmãos, Simão, chamado Pedro, e André, seu
irmão, lançando as redes ao mar, pois eram pescadores. E disse-lhes: Segui-me, e
farei que sejais pescadores de homens. Imediatamente os dois deixaram as redes e o
seguiram.

Nos três anos seguintes, Jesus convive com os seus discípulos, conhece-os, responde
às suas perguntas, resolve as suas dúvidas. É verdadeiramente o Rabi, o Mestre que
fala com autoridade, o Messias enviado por Deus. Mas é ao mesmo tempo acessível,
íntimo. Um dia, retira-se em oração; os discípulos encontravam-se por perto, quem
sabe olhando-o e procurando adivinhar as suas palavras. Quando volta, um deles
pede-lhe: Domine, doce nos orare, sicut docuit et Ioannes discípulos suos;
ensina-nos a orar, como João ensinou aos seus discípulos. E Jesus respondeu-lhes:
quando vos puserdes a orar, haveis de dizer: Pai, santificado seja o teu nome...

Com a mesma autoridade de Deus e carinho de homem, o Senhor recebe os


Apóstolos quando, admirados com os frutos da sua primeira missão, comentavam
com Ele as primícias do seu apostolado: Retirai-vos comigo a um lugar isolado e

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descansai um pouco.

Uma cena muito similar se repete já no fim da permanência de Jesus sobre a terra,
pouco antes da Ascensão. Chegada a manhã, Jesus apareceu na margem; mas os
discípulos não o reconheceram. E Jesus disse-lhes: Rapazes, tendes alguma coisa
que comer? Aquele que perguntara como homem, fala depois como Deus: Lançai as
redes à direita da barca e achareis. Lançaram-nas, pois, e já não as podiam tirar
pela quantidade de peixes que havia. Então o discípulo a quem Jesus amava disse a
Pedro: É o Senhor.

E Deus espera-os na margem: Ao saltarem para terra, viram preparadas umas


brasas acesas com peixe em cima e pão. E Jesus disse-lhes: Trazei para cá os
peixes que acabais de pescar. Simão Pedro subiu à barca e trouxe a rede para
terra, cheia de cento e cinqüenta e três grandes peixes. E, apesar de serem tantos, a
rede não se rompeu. Disse-lhes Jesus: Vinde, comei. E nenhum dos discípulos se
atrevia a perguntar-lhe: Quem és?, sabendo que era o Senhor. Jesus aproximou-se,
tomou o pão e o distribuiu, e o mesmo fez com o peixe.

Jesus manifesta essa delicadeza e carinho não só com um grupo pequeno de


discípulos, mas com todos: com as santas mulheres, com representantes do Sinédrio
- como Nicodemos - e com publicanos - como Zaqueu -, com doentes e sãos, com
doutores da lei e pagãos, com as pessoas individualmente e com multidões inteiras.

Os Evangelhos contam-nos que Jesus não tinha onde reclinar a cabeça, mas
contam-nos também que tinha amigos queridos e de confiança, desejosos de
recebê-lo em sua casa. E falam-nos da sua compaixão pelos doentes, da sua dor
pelos que ignoram e erram, da sua indignação perante a hipocrisia. Jesus chora a
morte de Lázaro, ira-se com os mercadores que profanam o Templo, deixa que seu
coração se enterneça perante a dor da viúva de Naim.

É Cristo que passa, Cristo presente nos cristãos, 109

Cada um desses gestos humanos é gesto de Deus. Em Cristo habita toda a plenitude
109 da divindade corporalmente. Cristo é Deus feito homem, homem perfeito, homem
cabal. E, nos seus aspectos humanos, dá-nos a conhecer a divindade.

Ao recordarmos esta delicadeza humana de Cristo, que gasta a sua vida a serviço
dos outros, fazemos muito mais do que descrever um possível modo de nos
comportarmos. Estamos descobrindo Deus. Toda a obra de Cristo tem um valor
transcendente: dá-nos a conhecer o modo de ser de Deus, convida-nos a crer no
amor de Deus, que nos criou e nos quer trazer à sua intimidade. Manifestei o teu
nome aos homens que me deste no mundo; eles eram teus, e mos deste; e eles
puseram em prática a tua palavra. Agora souberam que tudo o que me deste vem de
Ti , exclamou Jesus na longa oração que o evangelista João nos conserva.

Por isso, o relacionamento de Jesus com os homens não fica em meras palavras ou
em atitudes superficiais. Jesus toma a sério o homem e quer dar-lhe a conhecer o
sentido divino da sua vida. Jesus sabe exigir, colocar cada um em face dos seus

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deveres, tirar os que o escutam do comodismo e conformismo, para levá-los a
conhecer o Deus três vezes santo. A fome e a dor comovem Jesus, mas comove-o
sobretudo a ignorância. Jesus viu a multidão que esperava por ele, e enterneceu-se
no seu íntimo porque andavam como ovelhas sem pastor. Começou então a
instruí-los sobre muitas coisas.

É Cristo que passa, Cristo presente nos cristãos, 110

Percorremos algumas páginas dos Santos Evangelhos para contemplar Jesus no seu
110 convívio com os homens e aprender a levar a Cristo os nossos irmãos, sendo nós
mesmos Cristo. É preciso aplicar essa lição à vida diária, à nossa própria vida.
Porque a vida comum e normal, aquela que vivemos entre os demais concidadãos,
nossos iguais, não é nenhuma coisa sem altura e sem relevo. É precisamente nessas
circunstâncias que o Senhor quer que a imensa maioria de seus filhos se santifique.

É necessário repetir muitas e muitas vezes que Jesus não se dirigiu a um grupo de
privilegiados, mas veio revelar-nos o amor universal de Deus. Todos os homens são
amados por Deus, de todos espera amor. De todos. Sejam quais forem as suas
condições pessoais, sua posição social, sua profissão ou ofício. A vida comum e
vulgar não é coisa de pouco valor; todos os caminhos da terra podem ser ocasião de
um encontro com Cristo, que nos chama à identificação com Ele para realizarmos -
no lugar onde estivermos - a sua missão divina.

Deus chama-nos através das vicissitudes da vida diária, no sofrimento e na alegria


das pessoas com quem convivemos, nas aspirações humanas dos nossos
companheiros, nos pequenos acontecimentos da vida familiar. Chama-nos também
através dos grandes problemas, conflitos e tarefas que definem cada época histórica
e que atraem o esforço e os ideais de grande parte da humanidade.

É Cristo que passa, Cristo presente nos cristãos, 111

Compreende-se muito bem a impaciência, a angústia e os anseios inquietos daqueles


111 que, com alma naturalmente cristã , não se resignam perante as situações de injustiça
pessoal e social que o coração humano é capaz de criar. Tantos séculos de
convivência entre os homens, e ainda tanto ódio, tanta destruição, tanto fanatismo
acumulado em olhos que não querem ver e em corações que não querem amar.

Os bens da terra, repartidos entre poucos; os bens da cultura, encerrados em


cenáculos. E, lá fora, fome de pão e de sabedoria; vidas humanas - que são santas,
porque vêm de Deus - tratadas como simples coisas, como números de uma
estatística. Compreendo e partilho dessa impaciência, levantando os olhos para
Cristo, que continua a convidar-nos a pôr em prática o mandamento novo do amor.

Todas as situações por que a nossa vida atravessa nos trazem uma mensagem divina,
pedem-nos uma resposta de amor, de entrega aos outros. Quando vier o Filho do
homem em toda a sua majestade e acompanhado de todos os seus anjos, sentar-se-á

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no trono da sua glória e fará comparecer diante de si todas as nações, e separará
uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos, pondo as ovelhas à
sua direita e os cabritos à esquerda.

Então o rei dirá aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu pai, tomai
posse do reino que vos está preparado desde o princípio do mundo. Porque tive
fome e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era peregrino, e me
hospedastes; estava nu, e me vestistes; doente, e me visitastes; preso, e viestes
ver-me. Ao que os justos lhe responderão: Senhor, quando te vimos com fome, e te
demos de comer; com sede, e te demos de beber; quando te vimos peregrino, e te
hospedamos; nu, e te vestimos; ou quando te vimos doente ou na prisão, e te fomos
visitar? E o rei, em resposta, dir-lhes-á: na verdade vos digo, sempre que o fizestes
a um destes meus irmãos mais pequenos, a mim o fizestes.

Temos que reconhecer Cristo que nos sai ao encontro nos nossos irmãos, os homens.
Nenhuma vida humana é uma vida isolada, mas entrelaça-se com as outras vidas.
Nenhuma pessoa é um verso solto: fazemos todos parte de um mesmo poema
divino, que Deus escreve com o concurso da nossa liberdade.

É Cristo que passa, Cristo presente nos cristãos, 112

Não há nada que possa ser alheio ao interesse de Cristo. Falando com profundidade
112 teológica, isto é, se não nos limitamos a uma classificação funcional; falando com
rigor, não se pode dizer que haja realidades - boas, nobres ou mesmo indiferentes -
que sejam exclusivamente profanas, uma vez que o Verbo de Deus estabeleceu a sua
morada entre os filhos dos homens, teve fome e sede, trabalhou com suas mãos,
conheceu a amizade e a obediência, experimentou a dor e a morte. Porque em Cristo
aprouve ao Pai situar a plenitude de todo o ser, e reconciliar por Ele todas as
coisas consigo, restabelecendo a paz entre o céu e a terra, por meio do sangue que
derramou na cruz.

Temos que amar o mundo, o trabalho, as realidades humanas. Porque o mundo é


bom: foi o pecado de Adão que quebrou a divina harmonia das coisas criadas. Mas
Deus Pai enviou seu Filho Unigênito para que restabelecesse a paz; para que,
convertidos em filhos por adoção, pudéssemos libertar a criação da desordem e
reconciliar todas as coisas com Ele.

Cada situação humana é irrepetível, fruto de uma vocação única que se deve viver
com intensidade, realizando nela o espírito de Cristo. Deste modo, vivendo
cristãmente entre os nossos iguais, de uma maneira normal mas coerente com a
nossa fé, seremos Cristo presente entre os homens.

88
É Cristo que passa, Cristo presente nos cristãos, 113

Ao considerarmos a dignidade da missão a que Deus nos chama, talvez possa surgir
113 na alma humana a presunção, a soberba. Seria uma falsa consciência da vocação
cristã aquela que nos cegasse e nos fizesse esquecer que somos feitos de barro, que
somos pó e miséria. Na verdade, não há mal apenas no mundo, à nossa volta; o mal
está dentro de nós e aninha-se no nosso próprio coração, tornando-nos capazes de
vilanias e egoísmos. Só a graça de Deus é rocha forte: nós somos areia, e areia
movediça.

Se percorremos com o olhar a história dos homens ou a situação atual do mundo, é


doloroso verificar como, depois de vinte séculos, existem tão poucos que se chamam
cristãos e que os que se adornam com esse nome são tantas vezes infiéis à sua
vocação. Faz alguns anos, uma pessoa que não tinha mau coração, mas não tinha fé,
apontou para um mapa-múndi e comentou comigo: Eis o fracasso de Cristo. Tantos
séculos procurando introduzir na alma dos homens a sua doutrina, e veja os
resultados: não há cristãos.

Não falta quem pense assim nos nossos dias. Mas Cristo não fracassou; sua vida e
sua palavra fecundam continuamente o mundo. A obra de Cristo, a tarefa que seu
Pai lhe encomendou está-se realizando; sua força atravessa a história trazendo-nos a
verdadeira vida, e quando já todas as coisas estiverem submetidas a Ele, então o
próprio Filho ficará submetido, enquanto homem, Àquele que tudo lhe submeteu, a
fim de que Deus seja tudo em todas as coisas.

Nessa tarefa que vai realizando no mundo, Deus quis que fôssemos seus
cooperadores, quis correr o risco da nossa liberdade. Toca-me o fundo da alma a
figura de Jesus recém-nascido em Belém: uma criança indefesa, inerme, incapaz de
oferecer resistência. Deus entrega-se às mãos dos homens, aproxima-se e desce até
nós.

Jesus Cristo, que tinha a natureza de Deus, não reivindicou o seu ser igual a Deus,
mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de escravo. Deus condescende com
a nossa liberdade, com a nossa imperfeição, com as nossas misérias. Consente que
os tesouros divinos se contenham em vasos de barro, que os demos a conhecer
misturando as nossas deficiências humanas com a sua força divina.

É Cristo que passa, Cristo presente nos cristãos, 114

A experiência do pecado não nos deve, pois, fazer duvidar da nossa missão. É certo
114 que os nossos pecados podem tornar difícil que se reconheça Cristo, e por isso
devemos enfrentar as nossas próprias misérias pessoais, procurar a purificação.
Porém, conscientes de que Deus não nos prometeu a vitória absoluta sobre o mal
durante esta vida, mas nos pede luta. Sufficit tibi gratia mea, basta-te a minha graça,
respondeu Deus a São Paulo, quando lhe pedia que o libertasse do aguilhão que o

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humilhava.

O poder de Deus manifesta-se na nossa fraqueza e incita-nos a lutar, a combater os


nossos defeitos, mesmo que saibamos que nunca obteremos uma vitória completa
durante o nosso peregrinar terreno. A vida cristã é um constante começar e
recomeçar, um renovar-se cada dia.

Cristo ressuscitará em nós, se nos tornarmos co-participantes da sua Cruz e da sua


Morte. Temos que amar a Cruz, a entrega, a mortificação. O otimismo cristão não é
um otimismo meloso, nem a simples confiança humana de que tudo correrá bem. É
um otimismo que mergulha suas raízes na consciência da liberdade e na fé na graça;
é um otimismo que nos leva a ser exigentes conosco mesmos, a esforçar-nos por
corresponder à chamada de Deus.

Desse modo, não já apesar da nossa miséria, mas de certo modo através da nossa
miséria, da nossa vida de homens feitos de carne e de barro, Cristo se manifesta - no
esforço por sermos melhores, por realizarmos um amor que aspira a ser puro, por
dominarmos o egoísmo, por nos entregarmos plenamente aos outros, convertendo a
nossa existência num serviço constante.

É Cristo que passa, Cristo presente nos cristãos, 115

Não quero concluir sem uma última reflexão. O cristão - ao tornar Cristo presente
115 entre os homens, sendo ele mesmo ipse Christus, o próprio Cristo -, não procura
apenas viver numa atitude de amor, mas esforça-se por dar a conhecer o Amor de
Deus através desse amor humano.

Jesus concebeu toda a sua vida como uma revelação desse amor: Filipe - respondeu
a um de seus discípulos -, quem me vê, vê também o Pai. Na esteira desse
ensinamento, o Apóstolo João convida os cristãos a manifestarem com obras o amor
de Deus, depois de o terem conhecido: Caríssimos, amemo-nos uns aos outros,
porque a caridade procede de Deus; e todo aquele que ama é filho de Deus e
conhece a Deus. Quem não possui este amor não conhece a Deus, porque Deus é
amor. Nisto se manifestou o amor de Deus por nós, em que enviou o seu Filho
Unigênito ao mundo, para que por Ele tenhamos a vida. E nisto consiste o seu
amor, em que não fomos nós que amamos a Deus, mas foi Ele que nos amou
primeiro e enviou o seu Filho como vitima de propiciação por nossos pecados.
Caríssimos, se assim nos amou Deus, também nós devemos amar-nos uns aos
outros.

É Cristo que passa, Cristo presente nos cristãos, 116

É necessário, pois, que a nossa fé seja viva, que nos leve realmente a crer em Deus e
116 a manter um diálogo constante com Ele. A vida cristã deve ser vida de oração
contínua, que procura estar na presença do Senhor da manhã até à noite e da noite
até à manhã. O cristão não é nunca um homem solitário, porque vive num contínuo

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colóquio com Deus, que está junto de nós e nos céus.

Sine intermissione orate, prescreve o Apóstolo, orai sem interrupção. E Clemente


Alexandrino escreve, recordando esse preceito apostólico: Manda-se que louvemos e
honremos o Verbo, a quem conhecemos como salvador e rei; e por Ele ao Pai, não
em dias escolhidos, como fazem os outros, mas constantemente, ao longo de toda a
vida e de todas as formas possíveis.

No meio das ocupações de cada dia, no momento de vencer a tendência para o


egoísmo, ao sentir a alegria da amizade com os outros homens, em todos esses
instantes o cristão deve reencontrar Deus. Por Cristo e no Espírito Santo, o cristão
tem acesso à intimidade de Deus Pai, e percorre o seu caminho em busca desse reino
que não é deste mundo, mas que neste mundo se incoa e se prepara.

É preciso procurar Cristo na Palavra e no Pão, na Eucaristia e na Oração. E tratá-lo


como se trata um amigo, um ser real e vivo como é Cristo, porque ressuscitou.
Cristo, lemos na Epístola aos Hebreus, como permanece sempre, possui eternamente
o sacerdócio. Daí que pode perpetuamente salvar aqueles que por seu intermédio se
apresentam a Deus, posto que está sempre vivo para interceder por nós.

Cristo, Cristo ressuscitado, é o companheiro, o Amigo. Um companheiro que se


deixa ver apenas entre sombras, mas cuja realidade inunda toda a nossa vida e nos
faz desejar a sua companhia definitiva. O Espírito e a Esposa dizem: vem. Diga
também quem escuta: vem. Por isso quem tem sede, venha; e o que quiser tome a
água da vida, a felicidade eterna... E o que dá testemunho destas coisas diz:
Certamente venho em breve. Assim seja. Vem, Senhor Jesus.

É Cristo que passa, A Ascensão do Senhor aos céus, 117

Uma vez mais, a liturgia põe diante dos nossos olhos o último dos mistérios da vida
117 de Jesus Cristo entre os homens: a sua Ascensão aos céus. Desde o seu Nascimento
em Belém, muitas coisas aconteceram: encontramo-lo no berço, adorado por
pastores e por reis; contemplamo-lo nos longos anos de trabalho silencioso, em
Nazaré; acompanhamo-lo pelas terras da Palestina, pregando aos homens o reino de
Deus e fazendo o bem a todos. E, mais tarde, nos dias da sua Paixão, sofremos ao
presenciar como o acusavam, com que fúria o maltratavam, com quanto ódio o
crucificavam.

À dor seguiu-se a alegria luminosa da Ressurreição. Que fundamento tão claro e tão
firme para a nossa fé! Não deveríamos continuar duvidando. Mas talvez ainda
sejamos fracos, como os Apóstolos, e perguntemos a Cristo neste dia da Ascensão:
É agora que vais restaurar o reino de Israel? ; é agora que vão desaparecer
definitivamente todas as nossas perplexidades e todas as nossas misérias?

O Senhor responde-nos subindo aos céus. Tal como os Apóstolos, ficamos meio
admirados, meio tristes ao ver que nos deixa. Na realidade, não é fácil
acostumarmo-nos à ausência física de Jesus. Comove-me recordar que Jesus, num
gesto magnífico de amor, foi-se embora e ficou; foi para o céu e entrega-se a nós

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como alimento na Hóstia Santa. Sentimos, no entanto, a falta da sua palavra
humana, da sua forma de atuar, de olhar, de sorrir, de fazer o bem. Gostaríamos de
voltar a vê-lo de perto, quando se senta à beira do poço, cansado da dura caminhada
, quando chora por Lázaro , quando se recolhe em prolongada oração , quando se
compadece da multidão.

Sempre me pareceu lógico - e me cumulou de alegria - que a Santíssima


Humanidade de Jesus Cristo subisse à glória do Pai. Mas penso também que esta
tristeza, própria do dia da Ascensão, é uma manifestação do amor que sentimos por
Jesus, Senhor Nosso. Sendo perfeito Deus, Ele se fez homem, perfeito homem,
carne da nossa carne e sangue do nosso sangue. E separa-se de nós, indo para o céu.
Como não havíamos de notar a sua falta?

É Cristo que passa, A Ascensão do Senhor aos céus, 118

Se soubermos contemplar o mistério de Cristo, se nos esforçarmos por vê-lo com os


118 olhos limpos, perceberemos que é possível, mesmo agora, aproximar-se
intimamente de Jesus, em corpo e alma. Cristo marcou-nos claramente o caminho:
pelo Pão e pela Palavra; alimentando-nos com a Eucaristia e conhecendo e
praticando o que nos veio ensinar, ao mesmo tempo que conversamos com Ele na
oração. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu
nele. Aquele que retém os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama. E
aquele que me ama será amado por meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele.

Não são simples promessas. São o âmago, a realidade de uma vida autêntica: a vida
da graça, que nos impele a entrar numa relação pessoal e direta com Deus. Se
observardes os meus preceitos, permanecereis no meu amor, assim como eu
observei os preceitos de meu Pai e permaneço no seu amor. Esta afirmação de
Jesus, no discurso da Última Ceia, é o melhor preâmbulo para o dia da Ascensão.
Cristo sabia que era necessário ir-se embora porque, de um modo misterioso que não
acertamos a compreender, depois da Ascensão é que chegaria - numa nova efusão de
Amor divino - a terceira Pessoa da Trindade Santíssima: Digo-vos a verdade:
convém que eu vá. Se não for, o Paráclito não virá a vós. Mas, se for, eu vo-lo
enviarei.

Foi-se e envia-nos o Espírito Santo, que governa e santifica a nossa alma. Ao atuar
em nós, o Paráclito confirma o que Cristo nos anunciava: que somos filhos de Deus
e que não recebemos o espírito de escravidão, para continuarmos agindo por temor,
mas o espírito de adoção de filhos, em virtude do qual clamamos: “Abba”, Pai!

Vemos? É a ação trinitária nas nossas almas. Todo o cristão tem acesso a essa
inabitação de Deus no mais íntimo do seu ser, desde que corresponda à graça que o
leva a unir-se a Cristo no Pão e na Palavra, na Sagrada Hóstia e na oração. A Igreja
submete todos os dias à nossa consideração a realidade do Pão vivo, e consagra-lhe
duas das grandes festas do ano litúrgico: a da Quinta-Feira Santa e a do Corpus
Christi. Hoje, vamos deter-nos na forma de conseguir intimidade com Jesus
escutando atentamente a sua Palavra.

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É Cristo que passa, A Ascensão do Senhor aos céus, 119

Uma oração ao Deus da minha vida. Se Deus é vida para nós, nada tem de estranho
119 que a nossa existência de cristãos deva estar entretecida de oração. Mas não
pensemos que a oração é um ato que se realiza e depois se abandona. O justo
compraz-se na lei de Iavé e tende a acomodar-se a essa lei durante o dia e durante
a noite. Pela manhã penso em Ti ; e, de tarde, a Ti se eleva minha oração como o
incenso. O dia inteiro pode ser tempo de oração: da noite até à manhã e da manhã
até à noite. Mais ainda: como nos recorda a Escritura Santa, o próprio sono deve ser
oração.

Lembremo-nos do que os Evangelhos nos contam de Jesus. Às vezes, passava a


noite inteira ocupado num colóquio íntimo com seu Pai. Como cativou os primeiros
discípulos a figura de Cristo em oração! Depois de contemplarem esta atitude
constante do Mestre, pedem-lhe: Domine, doce nos orare , Senhor, ensina-nos a orar
assim.

São Paulo - oratione instantes , contínuos na oração, escreve - difunde por toda a
parte o exemplo vivo de Cristo. E São Lucas, numa pincelada, retrata a maneira de
agir dos primeiros fiéis: Animados de um mesmo espírito, perseveravam juntos na
oração.

A têmpera do bom cristão adquire-se, mediante a graça, na forja da oração. E, por


ser vida, este alimento que é a oração não segue uma trilha única. O coração saberá
desafogar-se habitualmente, por meio de palavras, nessas orações vocais ensinadas
pelo próprio Deus - o Pai Nosso - ou por seus anjos - a Ave Maria. Outras vezes,
utilizaremos orações acrisoladas pelo tempo, nas quais se verteu a piedade de
milhões de irmãos na fé: as da liturgia - lex orandi -, ou as que nasceram do ardor de
um coração enamorado, como tantas antífonas marianas: Sub tuum praesidium...,
Memorare..., Salve Regina...

Em outras ocasiões, serão suficientes duas ou três expressões lançadas ao Senhor


como setas, iaculata: jaculatórias, que aprendemos na leitura atenta da história de
Cristo: Domine, si vis potes me mundare - Senhor, se quiseres, podes curar-me;
Domine, tu omnia nosti, tu scis quia amo te - Senhor, Tu sabes tudo, Tu sabes que
eu te amo; Credo, Domine, sed adiuva incredulitatem meam - Creio, Senhor, mas
ajuda a minha incredulidade, fortalece a minha fé; Domine, non sum dignus -
Senhor, não sou digno!; Dominus meus et Deus meus - Meu Senhor e meu Deus!...
Ou outras frases, breves e afetuosas, que brotam do fervor íntimo da alma e
correspondem a circunstancias particulares.

A vida de oração deve apoiar-se, além disso, em alguns minutos diários dedicados
exclusivamente ao trato com Deus. São momentos de colóquio sem ruído de
palavras, junto do Sacrário sempre que possível, para agradecer ao Senhor por essa
espera - como está só! - de vinte séculos. A oração mental é esse diálogo com Deus,
de coração a coração, em que intervém a alma toda: a inteligência e a imaginação, a
memória e a vontade. É uma meditação que contribui para dar valor sobrenatural à

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nossa pobre vida humana, à nossa vida diária e corrente.

Graças a esses momentos de meditação, às orações vocais, às jaculatórias,


saberemos converter o nosso dia num contínuo louvor a Deus, sempre com
naturalidade e sem espetáculo. Assim, à semelhança dos enamorados, que não tiram
nunca os sentidos da pessoa que amam, manter-nos-emos sempre na sua presença; e
todas as nossas ações - mesmo as mais pequenas e insignificantes - transbordarão de
eficácia espiritual.

Por isso, quando um cristão envereda por este caminho de intimidade ininterrupta
com o Senhor - e é um caminho para todos, não uma senda para privilegiados -, a
vida interior cresce, segura e firme; e o homem consolida-se nessa luta,
simultaneamente amável e exigente, por realizar até o fundo a vontade de Deus.

A partir da vida de oração, podemos entender esse outro tema que a festa de hoje
nos propõe: o apostolado, a realização dos ensinamentos de Jesus transmitidos aos
Apóstolos pouco antes de subir aos céus: Vós me servireis de testemunhas em
Jerusalém e em toda a Judéia e Samaria e até os confins do mundo.

É Cristo que passa, A Ascensão do Senhor aos céus, 120

Com a maravilhosa normalidade do divino, a alma contemplativa expande-se em


120 ímpetos de ação apostólica: Ardia-me o coração dentro do peito, ateava-se o fogo
em minha meditação. Que fogo é este, senão o mesmo de que fala Cristo: Fogo vim
trazer à terra e que hei de querer senão que arda?. Fogo de apostolado, que se
robustece na oração: não há melhor meio do que este para desenvolver, por toda a
redondeza do mundo, essa batalha pacífica em que cada cristão é chamado a
participar - cumprir o que resta por padecer a Cristo.

Jesus subiu aos céus, dizíamos. Mas, pela oração e pela Eucaristia, o cristão pode ter
com Ele a mesma intimidade que tinham os primeiros Doze, inflamar-se no seu zelo
apostólico, para com Ele realizar um serviço de co-redenção, que é semear a paz e a
alegria. Servir, portanto, porque o apostolado não é outra coisa. Se contarmos
exclusivamente com as nossas próprias forças, nada obteremos no terreno
sobrenatural; se formos instrumentos de Deus, conseguiremos tudo: Tudo posso
nAquele que me conforta. Por sua infinita bondade, Deus resolveu servir-se destes
instrumentos ineptos. Daí que o apóstolo não tenha outro fim senão deixar agir o
Senhor, mostrar-se inteiramente disponível, para que Deus realize - através das suas
criaturas, através da alma escolhida - a sua obra salvadora.

Apóstolo é o cristão que se sente enxertado em Cristo, identificado com Cristo, pelo
Batismo; habilitado a lutar por Cristo, pelo Crisma; chamado a servir a Deus com a
sua ação no mundo, pelo sacerdócio comum dos fiéis, que lhe confere uma certa
participação no sacerdócio de Cristo - embora essencialmente diferente daquela que
constitui o sacerdócio ministerial - e o torna capaz de participar no culto da Igreja e
de ajudar os homens a caminhar para Deus, mediante o testemunho da palavra e do
exemplo, mediante a oração e a expiação.

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Cada um de nós tem que ser ipse Christus, o próprio Cristo. Ele é o único
Medianeiro entre Deus e os homens ; e nós unimo-nos a Ele para com Ele
oferecermos todas as coisas ao Pai. Nossa vocação de filhos de Deus, no meio do
mundo, exige não apenas que procuremos atingir a nossa santidade pessoal, mas que
avancemos pelos caminhos da terra, para convertê-los em atalhos que, através dos
obstáculos, levem as almas ao Senhor; que tomemos parte, como cidadãos comuns,
em todas as atividades temporais, para sermos levedura que informe a massa inteira.

Cristo subiu aos céus, mas transmitiu a tudo o que é humano e honesto a
possibilidade concreta de ser redimido. São Gregório Magno aborda este grande
tema cristão com palavras incisivas: Partia assim Jesus para o lugar de onde era e
regressava do lugar em que continuava morando. Com efeito, no momento em que
subia ao céu, unia com a sua divindade o céu e a terra. Na festa de hoje, devemos
destacar solenemente o fato de ter sido suprimido o decreto que nos condenava, o
juízo que nos submetia à corrupção. A natureza a que se dirigiam aquelas palavras:
“Tu és pó e em pó te hás de tornar” (Gen. III, 19) -, essa mesma natureza subiu hoje
ao céu com Cristo.

Não me cansarei de repetir, portanto, que o mundo é santificável, e que compete


especialmente aos cristãos levar a cabo essa tarefa: purificando-o das ocasiões de
pecado com que os homens o desfeiam e oferecendo-o ao Senhor como hóstia
espiritual, apresentada e dignificada mediante a graça de Deus e o nosso esforço. Em
rigor, não se pode dizer que haja nobres realidades exclusivamente profanas, uma
vez que o Verbo se dignou assumir uma natureza humana íntegra e consagrar a terra
com a sua presença e com o trabalho de suas mãos. A grande missão que recebemos
no Batismo é a co-redenção. A caridade de Cristo nos compele a tomar sobre os
ombros uma parte dessa tarefa divina de resgatar as almas.

É Cristo que passa, A Ascensão do Senhor aos céus, 121

Tenhamos presente que a Redenção, que se consumou quando Jesus morreu na


121 vergonha e na glória da Cruz - escândalo para os judeus, loucura para os gentios -,
continuará a realizar-se por vontade de Deus até que chegue a hora do Senhor. Não
são coisas compatíveis viver segundo o Coração de Jesus Cristo e não nos sentirmos
enviados, como Ele, peccatores salvos facere , a salvar todos os pecadores,
convencidos de que nós mesmos necessitamos de confiar cada vez mais na
misericórdia de Deus. Daí o desejo veemente de nos considerarmos co-redentores
com Cristo, de salvar com Ele todas as almas, porque somos, queremos ser ipse
Christus, o próprio Jesus Cristo; e Ele deu-se a si mesmo em resgate por todos.

Temos à nossa frente uma grande tarefa. Não é possível permanecermos passivos,
porque o Senhor nos declarou expressamente: Negociai até que eu volte. Enquanto
esperamos o regresso do Senhor, que voltará para tomar posse plena do seu Reino,
não podemos estar de braços cruzados. A propagação do Reino de Deus não é
apenas tarefa oficial dos membros da Igreja, que representam Cristo por terem
recebido dEle os poderes sagrados. Vos autem estis corpus Christi : vós também sois
corpo de Cristo - frisa o Apóstolo -, com mandato específico de negociar até o fim.

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Ainda há tanto que fazer! Mas será que em vinte séculos não se fez nada? Em vinte
séculos trabalhou-se muito. Não me parece nem objetiva nem honesta a persistência
com que alguns se empenham em menosprezar a tarefa dos que nos precederam. Em
vinte séculos realizou-se um grande trabalho e, com freqüência, realizou-se muito
bem. Em certas épocas, houve desacertos, recuos, como também hoje há retrocessos,
medo, timidez, ao mesmo tempo que não faltam atitudes de valentia e generosidade.
Mas a família humana renova-se constantemente; em cada geração é necessário
continuar com o empenho de ajudar o homem a descobrir a grandeza da sua vocação
de filho de Deus, e inculcar-lhe o mandamento do amor ao Criador e ao próximo.

É Cristo que passa, A Ascensão do Senhor aos céus, 122

Cristo ensinou-nos definitivamente o caminho desse amor a Deus: o apostolado é o


122 amor a Deus que transborda e se dá aos outros. A vida interior exige crescimento na
união com Cristo, pelo Pão e pela Palavra. E a preocupação de apostolado é a
manifestação exata, adequada e necessária da vida interior. Quando se saboreia o
amor de Deus, sente-se o peso das almas. Não se pode dissociar a vida interior do
apostolado, como não é possível separar em Cristo o seu ser de Deus-Homem da sua
função de Redentor. O Verbo quis encarnar-se para salvar os homens, para os fazer
uma só coisa com Ele. Esta é a razão da sua vinda ao mundo: Por nós, homens, e
por nossa salvação desceu dos céus, rezamos no Credo.

Para o cristão, o apostolado é algo congênito: não tem nada de artificial, de


justaposto, não é externo à sua atividade diária, à sua ocupação profissional.
Tenho-o dito sem cessar, desde que o Senhor dispôs que surgisse o Opus Dei.
Trata-se de santificar o trabalho ordinário, de santificar-se nessa tarefa e de
santificar os outros mediante o exercício da respectiva profissão, permanecendo
cada um no seu estado de vida.

O apostolado é como a respiração do cristão; não pode um filho de Deus viver sem
esse palpitar espiritual. Recorda-nos a festa de hoje que o zelo pelas almas é um
mandamento amoroso do Senhor: ao subir para a sua glória, Ele nos envia pelo orbe
inteiro como suas testemunhas. Grande é a nossa responsabilidade, porque ser
testemunha de Cristo implica, antes de mais nada, procurar comportar-se segundo a
sua doutrina, lutar para que a nossa conduta recorde Jesus e evoque a sua figura
amabilíssima. Temos que conduzir-nos de tal maneira que, ao ver-nos, os outros
possam dizer: este é cristão porque não odeia, porque sabe compreender, por que
não é fanático, porque está acima dos instintos, porque é sacrificado, porque
manifesta sentimentos de paz, porque ama.

É Cristo que passa, A Ascensão do Senhor aos céus, 123

Com a doutrina de Cristo, não com as minhas idéias, acabo de traçar um caminho
123 ideal para o cristão. Temos de convir em que é alto, sublime, atrativo. Mas talvez
nos perguntemos: será possível viver assim na sociedade de hoje?

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É verdade que o Senhor nos chamou em momentos em que se fala muito de paz, e
não há paz: nem nas almas, nem nas instituições, nem na vida social, nem entre os
povos. Fala-se continuamente de igualdade e de democracia, e proliferam as castas:
fechadas, impenetráveis. Chamou-nos num tempo em que se clama por
compreensão; e a compreensão brilha pela sua ausência, mesmo entre pessoas que
agem de boa fé e querem praticar a caridade, porque, não o esqueçamos, a caridade,
mais do que em dar, consiste em compreender.

Atravessamos uma época em que os fanáticos e os intransigentes - incapazes de


admitir as razões dos outros - se protegem de antemão tachando de violentas e
agressivas as suas vítimas. Chamou-nos, enfim, quando se ouve tagarelar muito
sobre unidade, e talvez seja difícil conceber maior desunião, não já entre os homens
em geral, mas entre os próprios católicos.

Nunca faço considerações políticas, porque não é esse o meu ofício. Para descrever
sacerdotalmente a situação do mundo atual, basta-me pensar de novo numa parábola
do Senhor: a do trigo e do joio. O reino dos céus é semelhante a um homem que
semeou boa semente em seu campo; mas, enquanto os trabalhadores dormiam, veio
certo inimigo seu, espalhou joio no meio do trigo, e foi-se. Está tudo bem claro: o
campo é fértil e a semente é boa; o Senhor do campo lançou a mãos cheias a
semente no momento propício e com arte consumada; além disso, organizou uma
vigilância para proteger a semeadura recente. Se depois apareceu o joio, foi porque
não houve correspondência, porque os homens - os cristãos especialmente -
adormeceram e permitiram que o inimigo se aproximasse.

Quando os servidores irresponsáveis perguntam ao Senhor por que cresceu o joio no


seu campo, a explicação salta aos olhos: Inimicus homo hoc fecit , foi o inimigo!
Nós, os cristãos, que devíamos estar vigilantes para que as coisas boas postas pelo
Criador no mundo se desenvolvessem a serviço da verdade e do bem, nós
adormecemos - triste preguiça, esse sono! -, enquanto o inimigo e todos os que o
servem se moviam sem descanso. Bem vemos como cresceu o joio: que semeadura
tão abundante e por toda a parte!

Não tenho vocação para profeta de desgraças. Não desejo com as minhas palavras
apresentar um panorama desolador, sem esperança. Não pretendo queixar-me destes
tempos em que vivemos por providência do Senhor. Amamos esta nossa época,
porque é o âmbito em que temos de alcançar a nossa santificação pessoal. Não
admitimos nostalgias ingênuas e estéreis: o mundo nunca esteve melhor. Desde
sempre, desde o nascimento da Igreja, quando ainda se escutava a pregação dos
primeiros Doze, surgiam já com violência as perseguições, começavam as heresias,
propalava-se a mentira e desencadeava-se o ódio.

Mas também não é lógico negar que o mal parece ter prosperado. Dentro de todo
esse campo de Deus, que é a terra, que é herança de Cristo, irrompeu o joio: e não
apenas joio, mas abundância de joio! Não nos podemos deixar enganar pelo mito do
progresso perene e irreversível. O progresso retamente ordenado é bom e Deus o
quer. Mas hoje tem-se mais em conta esse outro falso progresso, que cega os olhos a
tanta gente, porque com freqüência não se percebe que a humanidade, em alguns de
seus passos, volta para trás e perde o que antes havia conquistado.

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O Senhor - repito - deu-nos o mundo por herança. E é necessário termos a alma e a
inteligência despertas; temos que ser realistas, sem derrotismos. Só uma consciência
cauterizada, só a insensibilidade produzida pela rotina, só o aturdimento frívolo
podem permitir que se contemple o mundo sem ver o mal, a ofensa a Deus, o
prejuízo, às vezes irreparável, que se causa às almas. Temos que ser otimistas, mas
com um otimismo que nasça da fé no poder de Deus - Deus não perde batalhas -,
com um otimismo que não proceda da satisfação humana, de uma complacência
néscia e presunçosa.

É Cristo que passa, A Ascensão do Senhor aos céus, 124

Que fazer? Disse que não procurava descrever crises sociais ou políticas, derrocadas
124 ou mazelas culturais. Sob a perspectiva da fé cristã, venho-me referindo ao mal no
sentido preciso de ofensa a Deus. O apostolado cristão não é um programa político
nem uma alternativa cultural: consiste na difusão do bem, no contágio do desejo de
amar, numa semeadura concreta de paz e de alegria. E desse apostolado derivarão
sem dúvida benefícios espirituais para todos: mais justiça, mais compreensão, mais
respeito do homem pelo homem.

Há muitas almas à nossa volta; e não temos o direito de ser obstáculo ao seu bem
eterno. Estamos obrigados a ser plenamente cristãos, a ser santos, a não defraudar
Deus nem todos aqueles que esperam do cristão o exemplo e a doutrina.

O nosso apostolado deve basear-se na compreensão. Insisto novamente: a caridade,


mais do que em dar, consiste em compreender. Não escondo que aprendi na minha
própria carne quanto custa não ser compreendido. Sempre me esforcei por fazer-me
compreender, mas há quem se empenhe em não me compreender: eis outra razão,
prática e viva, para que deseje compreender a todos. Mas não há de ser um impulso
circunstancial o que nos obrigue a ter esse coração amplo, universal, católico. O
espírito de compreensão é expressão da caridade cristã do bom filho de Deus:
porque o Senhor quer que estejamos presentes em todos os caminhos retos da terra,
para espalhar a semente da fraternidade - não a do joio -, da desculpa, do perdão, da
caridade, da paz. Nunca nos sintamos inimigos de ninguém.

O cristão tem que se mostrar sempre disposto a conviver com todos, a dar a todos -
com o seu trato - a possibilidade de se aproximarem de Cristo Jesus. Há de
sacrificar-se de bom grado por todos, sem estabelecer distinções, sem dividir as
almas em compartimentos estanques, sem lhes aplicar rótulos, como se fossem
mercadorias ou insetos dissecados. Não pode o cristão separar-se dos outros, porque
então a sua vida seria miserável e egoísta: deve fazer-se tudo para todos, para
salvar a todos.

Quem dera que vivêssemos assim, que soubéssemos impregnar a nossa conduta
desta semeadura de generosidade, deste desejo de convivência, de paz! Desse modo,
fomentar-se-ia a legítima independência pessoal dos homens e cada um assumiria a
sua responsabilidade pelas tarefas que lhe incumbem na ordem temporal. O cristão
saberia defender acima de tudo a liberdade alheia, para poder depois defender a sua
própria. Teria a caridade de aceitar os outros como são - porque não há ninguém que

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não arraste consigo uma cauda de misérias e não cometa erros -, ajudando-os com a
graça de Deus e com delicadeza humana a vencer o mal, a arrancar o joio, a fim de
que todos possamos mutuamente amparar-nos e viver com dignidade a nossa
condição de homens e de cristãos.

É Cristo que passa, A Ascensão do Senhor aos céus, 125

A tarefa apostólica, que Cristo confiou a todos os seus discípulos, produz, portanto,
125 resultados concretos na esfera social. Não é admissível pensar que, para sermos
cristãos, seja preciso voltarmos as costas ao mundo, sermos uns derrotistas da
natureza humana. Tudo, até o mais ínfimo dos acontecimentos honestos, encerra um
sentido humano e divino. Cristo, perfeito homem, não veio destruir o que é humano,
mas enobrecê-lo, assumindo a nossa natureza humana, à exceção do pecado: veio
compartilhar todas as aspirações do homem, exceto a triste aventura do mal.

O cristão deve estar sempre disposto a santificar a sociedade a partir de dentro,


permanecendo plenamente no mundo, mas sem ser do mundo naquilo que o mundo
encerra - não por ser característica real, mas por defeito voluntário, pelo pecado - de
negação de Deus, de oposição à sua amável vontade salvífica.

É Cristo que passa, A Ascensão do Senhor aos céus, 126

A festa da Ascensão do Senhor sugere-nos também outra realidade: esse Cristo que
126 nos anima a empreender esta tarefa no mundo espera-nos no céu. Por outras
palavras: a vida na terra, que nós amamos, não é a realidade definitiva; pois não
temos aqui cidade permanente, mas andamos em busca da futura cidade imutável.

Cuidemos, porém, de não interpretar a Palavra de Deus dentro dos limites de


horizontes estreitos. O Senhor não nos incita a ser infelizes enquanto caminhamos,
esperando a consolação apenas no mais além. Deus nos quer felizes também aqui, se
bem que anelando pelo cumprimento definitivo dessa outra felicidade, que só Ele
pode consumar plenamente.

Nesta terra, a contemplação das realidades sobrenaturais, a ação da graça em nossas


almas, o amor ao próximo como fruto saboroso do amor a Deus, representam já uma
antecipação do céu, uma incoação destinada a crescer de dia para dia. Nós, os
cristãos, não suportamos uma vida dupla: mantemos uma unidade de vida, simples e
forte, em que se fundamentam e se compenetram todas as nossas ações.

Cristo espera-nos. Vivemos já como cidadãos do céu , sendo plenamente cidadãos da


terra, no meio das dificuldades, das injustiças, das incompreensões, mas também no
meio da alegria e da serenidade que nos dá saber-nos filhos amados de Deus.
Perseveremos no serviço do nosso Deus, e veremos como aumenta em número e em
santidade este exército cristão de paz, este povo de co-redenção. Sejamos almas
contemplativas, absorvidas num diálogo constante com Deus, procurando a
intimidade com o Senhor a toda a hora: desde o primeiro pensamento do dia até o

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último da noite; pondo continuamente o nosso coração em Jesus Cristo, Nosso
Senhor; achegando-nos a Ele por Nossa Mãe, Santa Maria, e por Ele, ao Pai e ao
Espírito Santo.

E se, apesar de tudo, a subida de Jesus aos céus nos deixar na alma um travo de
tristeza, acudamos à sua Mãe, como fizeram os Apóstolos: Tornaram então a
Jerusalém... e oravam unanimemente... com Maria, a Mãe de Jesus.

É Cristo que passa, O Grande Desconhecido, 127

Ao narrarem os acontecimentos daquele dia de Pentecostes, em que o Espírito Santo


127 desceu em forma de línguas de fogo sobre os discípulos de Nosso Senhor, os Atos
dos Apóstolos fazem-nos assistir à grande manifestação do poder de Deus com que a
Igreja iniciou a sua caminhada entre as nações. A vitória que Cristo - pela sua
obediência, pela sua imolação na Cruz e pela sua Ressurreição - havia obtido sobre a
morte e o pecado, revelou-se então em todo o seu divino esplendor.

Os discípulos, que já eram testemunhas da glória do Ressuscitado, experimentam


agora a força do Espírito Santo: suas inteligências e corações abrem-se a uma nova
luz. Tinham seguido Cristo e acolhido com fé os seus ensinamentos, mas nem
sempre haviam conseguido penetrar totalmente o seu sentido: era necessário que
chegasse o Espírito de Verdade, para lhes fazer compreender todas as coisas.
Sabiam que só em Jesus podiam encontrar palavras de vida eterna, e estavam
dispostos a segui-lo e a dar a vida por Ele; mas eram fracos e, quando chegou a hora
da prova, fugiram, deixaram-no só. No dia de Pentecostes, tudo isso passou: o
Espírito Santo, que é espírito de fortaleza, tornou-os firmes, seguros, audazes. A
palavra dos Apóstolos ressoa agora com energia e ímpeto pelas ruas e praças de
Jerusalém.

Os homens e mulheres que tinham afluído das mais diversas regiões e povoavam
naqueles dias a cidade, escutam assombrados. Partos, medos e elamitas, e os que
habitam a Mesopotâmia, a Judéia e a Capadócia, o Ponto e a Ásia, a Frígia e a
Panfília, o Egito e a Líbia vizinha de Cirene, e os que vieram de Roma, tanto judeus
como prosélitos, cretenses e árabes, todos ouvimos falar das maravilhas de Deus
em nossas próprias línguas. Estes prodígios que se realizam diante dos seus olhos
levam-nos a prestar atenção à pregação apostólica. O mesmo Espírito Santo que
atuava nos discípulos do Senhor tocou-lhes também o coração e conduziu-os à fé.

Conta-nos São Lucas que, depois de São Pedro ter falado, proclamando a
Ressurreição de Cristo, muitos dos que o rodeavam se aproximaram perguntando: O
que devemos fazer, irmãos? O Apóstolo respondeu-lhes: Fazei penitência e seja
batizado cada um de vós em nome de Jesus Cristo, para remissão de vossos
pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo. E o texto sagrado conclui dizendo
que, naquele dia, ingressaram na Igreja cerca de três mil pessoas.

A vinda solene do Espírito Santo no dia de Pentecostes não foi um acontecimento


isolado. Não há quase nenhuma página dos Atos dos Apóstolos em que não se fale
dEle e da ação com que guia, dirige e anima a vida e as obras da primitiva

100
comunidade cristã: é Ele quem inspira a pregação de São Pedro , quem confirma os
discípulos na fé , quem sela com a sua presença a chamada dirigida aos gentios ,
quem envia Saulo e Barnabé a terras distantes para abrirem novos caminhos à
doutrina de Jesus. Numa palavra, sua presença e sua ação dominam tudo.

É Cristo que passa, O Grande Desconhecido, 128

Esta realidade profunda que o texto da Escritura Santa nos dá a conhecer não é uma
128 recordação do passado, uma idade de ouro da Igreja que tenha ficado para trás, na
história. Elevando-se acima das misérias e dos pecados de cada um de nós, é
também a realidade da Igreja de hoje e da Igreja de todos os tempos. Eu rogarei ao
Pai - anunciou o Senhor aos seus discípulos - e Ele vos dará outro Consolador, para
que fique convosco eternamente. Jesus manteve as suas promessas: ressuscitou,
subiu aos céus e, em união com o Pai Eterno, envia-nos o Espírito Santo para que
nos santifique e nos dê a vida.

A força e o poder de Deus iluminam a face da terra. O Espírito Santo continua


assistindo a Igreja de Cristo, para que seja - sempre e em tudo - o sinal erguido
diante das nações para anunciar à humanidade a benevolência e o amor de Deus. Por
maiores que sejam as nossas limitações, nós, os homens, podemos olhar com
confiança para os céus e sentir-nos cheios de alegria: Deus nos ama e nos livra dos
nossos pecados. A presença e a ação do Espírito Santo na Igreja são o penhor e a
antecipação da felicidade eterna, dessa alegria e dessa paz que Deus nos
proporciona.

Como aqueles primeiros que se aproximaram de São Pedro no dia de Pentecostes,


também nós fomos batizados. E através do Batismo, nosso Pai-Deus tomou posse
das nossas vidas, incorporou-nos à vida de Cristo e enviou-nos o Espírito Santo. O
Senhor, diz a Escritura Santa, salvou-nos fazendo-nos renascer pelo batismo,
renovando-nos pelo Espírito Santo, que Ele derramou copiosamente sobre nós por
Jesus Cristo Salvador nosso, para que, justificados pela graça, cheguemos a ser
herdeiros da vida eterna conforme a esperança que temos.

A experiência da nossa fragilidade e dos nossos erros, a desedificação que pode


causar o espetáculo doloroso da pequenez ou até da mesquinhez de alguns que se
chamam cristãos, o aparente fracasso ou a desorientação de alguns movimentos
apostólicos, tudo isso - que é comprovar a realidade do pecado e das limitações
humanas - pode, no entanto, constituir uma prova para a nossa fé e fazer com que se
insinuem a tentação e a dúvida: onde estão a força e o poder de Deus? É o momento
de reagir, de pormos em prática com mais pureza e energia a nossa esperança e,
portanto, de procurarmos que seja mais firme a nossa fidelidade.

101
É Cristo que passa, O Grande Desconhecido, 129

Gostaria de relatar um episódio da minha vida pessoal, ocorrido há muitos anos. Um


129 dia, um amigo de bom coração, mas que não tinha fé, disse-me, apontando para um
mapa-mundi: Veja! De norte a sul e de leste a oeste! Que quer que veja?,
perguntei-lhe. Respondeu-me: O fracasso de Cristo. Tantos séculos procurando
introduzir a sua doutrina na vida dos homens, e veia os resultados. Num primeiro
momento, enchi-me de tristeza: é uma grande dor, com efeito, considerar que são
muitos os que ainda não conhecem o Senhor e que, dentre os que o conhecem, são
muitos também os que vivem como se não o conhecessem.

Mas essa sensação durou apenas um instante, para dar lugar ao amor e ao
agradecimento, porque Jesus quis fazer de cada homem um cooperador livre da sua
obra redentora. Não fracassou: a sua doutrina e a sua vida estão fecundando
continuamente o mundo. A redenção que Ele levou a cabo é suficiente e
superabundante.

Deus não quer escravos, mas filhos, e portanto respeita a nossa liberdade. A
salvação prossegue, e nós participamos dela: é vontade de Cristo que - segundo a
expressão forte de São Paulo - cumpramos na nossa carne, na nossa vida, aquilo que
falta à sua paixão, pro Corpore eius, quod est Ecclesia, em benefício do seu Corpo,
que é a Igreja.

Vale a pena jogar a vida, entregar-se por inteiro, para corresponder ao amor e à
confiança que Deus deposita em nós. Vale a pena, acima de tudo, decidir-se a tomar
a sério a fé cristã. Quando recitamos o Credo, professamos crer em Deus Pai,
Todo-Poderoso; em seu Filho Jesus Cristo, que morreu e foi ressuscitado; no
Espírito Santo, Senhor e fonte da vida. Confessamos que a Igreja, una, santa,
católica e apostólica, é o Corpo de Cristo, animado pelo Espírito Santo.
Alegramo-nos ante a remissão dos pecados e a esperança da ressurreição futura. Mas
essas verdades penetram até o fundo do coração, ou ficam talvez nos lábios? A
mensagem divina de vitória, de alegria e de paz do Pentecostes deve ser o
fundamento inquebrantável do modo de pensar, reagir e viver de todo o cristão.

É Cristo que passa, O Grande Desconhecido, 130

Non est abbreviata manus Domini, não se tornou mais curta a mão de Deus : Deus
130 não é hoje menos poderoso do que em outras épocas, nem é menos verdadeiro seu
amor pelos homens. A nossa fé ensina que a criação inteira, o movimento da terra e
dos astros, as ações retas das criaturas e tudo quanto há de positivo no curso da
história, tudo, numa palavra, veio de Deus e para Deus se ordena.

A ação do Espírito Santo pode passar-nos despercebida, porque Deus não nos dá a
conhecer seus planos e porque o pecado do homem turva e obscurece os dons
divinos. Mas a fé recorda-nos que o Senhor atua constantemente: foi Ele que nos

102
criou e nos conserva o ser; é Ele quem, com a sua graça, conduz a criação inteira
para a liberdade da glória dos filhos de Deus.

Por isso, a tradição cristã resumiu num só conceito a atitude que devemos adotar
perante o Espírito Santo: docilidade. Temos que ser sensíveis àquilo que o Espírito
divino promove à nossa volta e em nós mesmos: aos carismas que distribui, aos
movimentos e instituições que suscita, aos efeitos e decisões que nos faz nascer no
coração. O Espírito Santo realiza no mundo as obras de Deus: como diz o hino
litúrgico, Ele é dador de graças, luz dos corações, hóspede da alma, descanso no
trabalho, consolo no pranto. Sem a sua ajuda, nada há no homem que seja inocente e
valioso, pois é Ele quem lava o que está manchado, cura o que está enfermo, aquece
o que está frio, reconduz o extraviado e encaminha os homens até o porto da
salvação e da felicidade eterna.

Mas nossa fé no Espírito Santo deve ser plena e completa: não é uma crença vaga na
sua presença no mundo; é uma aceitação agradecida dos sinais e realidades a que
Ele quis vincular especialmente a sua força. Quando vier o Espírito de Verdade -
anunciou Jesus -, Ele me glorificará, porque receberá do que é meu e vo-lo
anunciará. O Espírito Santo é o Espírito enviado por Cristo para realizar em nós a
santificação que Ele nos mereceu na terra.

É por isso que não pode haver fé no Espírito Santo se não houver fé em Cristo, na
doutrina de Cristo, nos sacramentos de Cristo, na Igreja de Cristo. Não é coerente
com a fé cristã, não crê verdadeiramente no Espírito Santo quem não ama a Igreja,
quem não tem confiança nEla, quem só se compraz em apontar as deficiências e as
limitações dos que a representam, quem a julga de fora e é incapaz de se sentir seu
filho. E sou levado a considerar também como é extraordinariamente importante e
abundantíssima a ação do Divino Paráclito durante a celebração da Santa Missa nos
nossos altares, enquanto o sacerdote renova o sacrifício do Calvário.

É Cristo que passa, O Grande Desconhecido, 131

Nós, os cristãos, trazemos os grandes tesouros da graça em vasos de barro ; Deus


131 confiou seus dons à frágil e débil liberdade humana e, embora sejamos sem dúvida
assistidos pela força do Senhor, a nossa concupiscência, o nosso comodismo e o
nosso orgulho repelem por vezes essa assistência e levam-nos a cair em pecado. Há
mais de um quarto de século, ao recitar o Credo e afirmar minha fé na divindade da
Igreja, una, santa, católica e apostólica, em muitas ocasiões acrescento: apesar dos
pesares. Quando uma vez por outra comento este costume e alguém me pergunta a
que me quero referir, respondo: aos teus pecados e aos meus.

Tudo isso é certo, mas não autoriza de modo algum a julgar a Igreja com critérios
humanos, sem fé teologal, atendendo apenas à maior ou menor qualidade de certos
eclesiásticos ou de certos cristãos. Proceder assim é permanecer na superfície. O
mais importante na Igreja não é ver como nós, os homens, correspondemos, mas ver
o que Deus realiza. A Igreja é nem mais nem menos Cristo presente entre nós, Deus
que vem até à humanidade para salvá-la, chamando-nos com a sua Revelação,
santificando-nos com a sua graça, sustentando-nos com a sua ajuda constante, nos

103
pequenos e nos grandes combates da vida diária.

Podemos chegar a desconfiar dos homens, e cada um deve desconfiar pessoalmente


de si mesmo e coroar seus dias com um mea culpa, com um ato de contrição
profundo e sincero.

Mas não temos o direito de duvidar de Deus. E duvidar da Igreja, da sua origem
divina, da eficácia salvadora da sua pregação e dos seus sacramentos é duvidar do
próprio Deus, é não crer plenamente na realidade da vinda do Espírito Santo.

Antes que Cristo fosse crucificado - escreve São João Crisóstomo -, não havia
nenhuma reconciliação. E enquanto não houve reconciliação, não foi enviado o
Espírito Santo... A ausência do Espírito Santo era sinal da ira divina. Agora que o
vês enviado em plenitude, não duvides da reconciliação. Mas, se perguntarem:
Onde está agora o Espírito Santo? Podia-se falar da sua presença quando havia
milagres, quando eram ressuscitados os mortos e curados os leprosos. Porém, como
saber agora que está verdadeiramente presente? Não vos preocupeis.
Demonstrar-vos-ei que o Espírito Santo está também agora entre nós...

Se não existisse o Espírito Santo, não poderíamos dizer: Senhor Jesus, pois ninguém
pode invocar Jesus como Senhor, a não ser no Espírito Santo (1 Cor XII, 3). Se não
existisse o Espírito Santo, não poderíamos orar com confiança. Com efeito, ao
rezar, dizemos: Pai nosso, que estais nos céus (Mt VI, 9). Se não existisse o Espírito
Santo, não poderíamos chamar Pai a Deus. E como sabemos isso? Porque o
Apóstolo nos ensina: E por sermos filhos, Deus enviou aos nossos corações o
Espírito de seu Filho, que clama: Abba, Pai! (Gal IV, 6).

Portanto, quando invocares Deus Pai, lembra-te de que foi o Espírito Santo que, ao
mover a tua alma, te deu essa oração. Se não existisse o Espírito Santo, não haveria
na Igreja palavra alguma de sabedoria ou de ciência, porque está escrito: dada pelo
Espírito a palavra da sabedoria (1 Cor XII, 8)... Se o Espírito Santo não estivesse
presente, a Igreja não existiria. Mas se a Igreja existe, não há dúvida de que o
Espírito Santo não falta.

Acima das deficiências e limitações humanas, insisto, a Igreja é precisamente o sinal


e, de certo modo - não no sentido estrito em que se definiu dogmaticamente a
essência dos sete sacramentos da Nova Aliança -, o sacramento universal da
presença de Deus no mundo. Ser cristão é ter sido regenerado por Deus e enviado
aos homens para lhes anunciar a salvação. Se tivéssemos uma fé firme e
experimentada, e se déssemos a conhecer Cristo com audácia, veríamos como
continuam a realizar-se diante dos nossos olhos milagres como os da era apostólica.

Porque também hoje se devolve a vista aos cegos, que haviam perdido a capacidade
de olhar para o céu e contemplar as maravilhas de Deus; também hoje se dá
liberdade aos coxos e entrevados, que se achavam tolhidos por suas paixões e já não
tinham um coração que soubesse amar; também hoje se dá ouvido aos surdos, que
não desejavam ter notícia de Deus; e se consegue que falem os mudos, que tinham
amordaçada a língua por não quererem confessar suas derrotas; também hoje se
ressuscitam mortos, em quem o pecado havia destruído a vida. Mais uma vez se
verifica que a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais penetrante que qualquer

104
espada de dois gumes. E, tal como os primeiros fiéis cristãos, também nós nos
alegramos ao admirar a força do Espírito Santo e sua ação sobre a inteligência e a
vontade de suas criaturas.

É Cristo que passa, O Grande Desconhecido, 132

Vejo todos os acontecimentos da vida - os de cada existência individual e, de algum


132 modo, os das grandes encruzilhadas da História - como outras tantas chamadas que
Deus dirige aos homens para que encarem de frente a verdade; e como ocasiões que
se oferecem aos cristãos para que anunciem com suas próprias obras e palavras,
ajudados pela graça, o Espírito a que pertencem.

Cada geração de cristãos tem que redimir e santificar o seu próprio tempo: para isso,
precisa compreender e compartilhar os anseios dos outros homens, seus iguais, a fim
de lhes dar a conhecer, com dom de línguas, como devem corresponder à ação do
Espírito Santo, à efusão permanente das riquezas do Coração divino. Compete-nos a
nós, cristãos, anunciar nestes dias, a esse mundo a que pertencemos e em que
vivemos, a mensagem antiga e nova do Evangelho.

Não é verdade que toda a gente de hoje - assim, em geral e em bloco - esteja fechada
ou permaneça indiferente ao que a fé cristã ensina sobre o destino e o ser do homem;
não é verdade que os homens destes tempos se ocupem só das coisas da terra e se
desinteressem de olhar para o céu. Ainda que não faltem ideologias - e pessoas a
sustentá-las - que permanecem fechadas, há em nossa época anseios elevados de
mistura com atitudes rasteiras, heroísmos a par de covardias, idealismos ao lado de
desilusões; criaturas que sonham com um mundo novo mais justo e mais humano,
embora outras, decepcionadas talvez com o fracasso dos seus primitivos ideais, se
refugiem no egoísmo de cuidar apenas da sua própria tranqüilidade ou de
permanecer imersas no erro.

A todos esses homens e a todas essas mulheres, estejam onde estiverem, em seus
momentos de exaltação ou em suas crises e derrotas, temos que fazer chegar o
anúncio solene e firme de São Pedro, durante os dias que se seguiram ao
Pentecostes: Jesus é a pedra angular, o Redentor, a totalidade da nossa vida, porque
fora dEle não foi dado aos homens outro nome debaixo do céu pelo qual possamos
ser salvos.

É Cristo que passa, O Grande Desconhecido, 133

Entre os dons do Espírito Santo, diria que há um de que todos nós, cristãos,
133 necessitamos especialmente: o dom da sabedoria, que nos faz conhecer e saborear
Deus, e nos coloca assim em condições de poder avaliar com verdade as situações e
as coisas desta vida. Se fôssemos conseqüentes com a nossa fé, ao olharmos à nossa
volta e contemplarmos o espetáculo da história e do mundo, não poderíamos deixar
de sentir crescer em nossos corações os mesmos sentimentos que animaram o de
Jesus Cristo: Ao ver aquelas multidões, compadeceu-se delas, porque estavam

105
desamparadas e abatidas, como ovelhas sem pastor.

Não é que o cristão não enxergue tudo o que há de bom na humanidade, que não
aprecie as alegrias puras, que não participe dos anseios e ideais terrenos. Pelo
contrário, sente tudo isso no mais recôndito da sua alma e de tudo partilha e tudo
vive com especial profundidade, já que conhece melhor que qualquer homem os
arcanos do espírito humano.

A fé cristã não amesquinha o animo nem cerceia os impulsos nobres da alma, posto
que os engrandece ao revelar o seu verdadeiro e mais autêntico sentido: não estamos
destinados a uma felicidade qualquer, pois fomos chamados a penetrar na intimidade
divina, a conhecer e a amar Deus Pai, Deus Filho, Deus Espírito Santo e, na
Trindade e na Unidade de Deus, todos os anjos e todos os homens.

Esta é a grande ousadia da fé cristã: proclamar o valor e a dignidade da natureza


humana e afirmar que, mediante a graça, que nos eleva à ordem sobrenatural, fomos
criados para alcançar a dignidade de filhos de Deus. Ousadia certamente incrível, se
não se baseasse no decreto salvador de Deus Pai e não tivesse sido confirmada pelo
sangue de Cristo e reafirmada e tornada possível pela ação constante do Espírito
Santo.

Temos que viver de fé, crescer na fé, até que se possa dizer de cada um de nós, de
cada cristão, o que escrevia há muitos séculos um dos grandes Doutores da Igreja
Oriental: Assim como os corpos transparentes e nítidos, ao receberem os raios da
luz, se tornam resplandecentes e irradiam brilho, assim também as almas que são
conduzidas e ilustradas pelo Espírito Santo se tornam espirituais e levam aos outros
a luz da graça. Do Espírito Santo provém o conhecimento das coisas futuras, a
inteligência dos mistérios, a compreensão das verdades ocultas, a distribuição dos
dons, a cidadania celeste, a conversação com os anjos. DEle a alegria que nunca
termina, a perseverança em Deus, a semelhança com Deus, e o que de mais sublime
se pode conceber: o fazer-se Deus.

A consciência da magnitude da dignidade humana - de modo eminente e inefável,


pois fomos constituídos filhos de Deus pela graça - forma no cristão uma só coisa
com a humildade, pois o que nos salva e dá vida não são as nossas forças, mas o
favor divino. É uma verdade que não se pode esquecer nunca, porque de outro modo
o endeusamento se perverteria e se transformaria em presunção, em soberba e, mais
cedo ou mais tarde, em desmoronamento espiritual ante a experiência da própria
fraqueza e miséria.

Atrever-me-ei a dizer que sou santo? - interrogava-se Santo Agostinho. Se dissesse


santo como sinônimo de santificador e não necessitado de ninguém que me
santificasse, seria soberbo e mentiroso. Mas se por santo entendemos o santificado,
conforme o que se lê no Levítico: sede santos, porque Eu, Deus, sou santo, então
também o corpo de Cristo, até o último homem situado nos confins da terra, em
união com a sua Cabeça e sob a sua Cabeça, diga audazmente: sou santo!

Amemos a Terceira Pessoa da Trindade Beatíssima; escutemos na intimidade do


nosso ser as moções divinas - esses alentos, essas censuras -, caminhemos pela terra
dentro da luz derramada em nossas almas; e o Deus da esperança nos cumulará de

106
toda a sorte de paz, para que essa esperança cresça em nós cada vez mais e mais,
pela virtude do Espírito Santo.

É Cristo que passa, O Grande Desconhecido, 134

Viver segundo o Espírito Santo é viver de fé, de esperança, de caridade: é deixar que
134 Deus tome posse de nós e mude pela raiz os nossos corações, para os moldar à sua
medida. Uma vida cristã amadurecida, profunda e rija, não é coisa que se improvise,
porque é fruto do crescimento da graça de Deus em nós. Nos Atos dos Apóstolos,
descreve-se a situação da primitiva comunidade cristã numa frase breve, mas cheia
de sentido: Perseveravam todos na doutrina dos Apóstolos, na participação da
fração do pão e na oração.

Foi assim que viveram os primeiros cristãos, e é assim que devemos nós viver: a
meditação da doutrina da fé, até a fazermos própria; o encontro com Cristo na
Eucaristia; o diálogo pessoal - a oração sem anonimato - face a face com Deus,
devem constituir como que a substância última da nossa conduta. Se isso faltar,
talvez haja reflexão erudita, atividade mais ou menos intensa, devoções e práticas de
piedade. Mas não haverá existência cristã autêntica, porque faltará a compenetração
com Cristo, a participação real na obra divina da salvação.

É uma doutrina que se aplica a qualquer cristão, porque todos fomos igualmente
chamados à santidade. Não há cristãos de segunda categoria, obrigados a pôr em
prática apenas uma versão reduzida do Evangelho: todos recebemos o mesmo
Batismo e, se bem que exista uma ampla diversidade de carismas e de situações
humanas, um só é o Espírito que distribui os dons divinos, uma só a fé, a esperança,
a caridade.

Podemos, pois, tomar como dirigida a nós a pergunta do Apóstolo: Não sabeis que
sois templo de Deus e que o Espírito Santo habita em vós? , e recebê-la como
convite para uma relação mais pessoal e direta com Deus. Infelizmente, para alguns
cristãos, o Paráclito é o Grande Desconhecido: um nome que se pronuncia, mas que
não é Alguém - uma das três Pessoas do único Deus -, com quem se fala e de quem
se vive.

Ora, é preciso que procuremos a sua intimidade com assídua simplicidade e com
confiança, como a Igreja nos ensina a fazê-lo através da Liturgia. Assim
conheceremos melhor a Deus e ao mesmo tempo compreenderemos mais
plenamente o imenso dom que significa chamar-se cristão: compreenderemos toda a
grandeza e toda a verdade desse endeusamento, dessa participação na vida divina a
que antes me referia.

Porque o Espírito Santo não é um artista que desenhe em nós a divina substância,
como se fosse alheio a ela; não é assim que nos conduz à semelhança divina. Sendo
Deus e procedendo de Deus, Ele mesmo se imprime nos corações que o recebem,
como o selo sobre a cera e, dessa forma, pela comunicação de si mesmo e pela
semelhança, restabelece a natureza consoante a beleza do modelo divino e restitui
ao homem a imagem de Deus.

107
É Cristo que passa, O Grande Desconhecido, 135

Para determinarmos, mesmo de uma maneira muito geral, um estilo de vida que nos
135 anime a procurar o convívio com o Espírito Santo - e, ao mesmo tempo, com o Pai e
o Filho - e a ter familiaridade com o Paráclito, podemos atentar para três realidades
fundamentais: docilidade - repito -, vida de oração e união com a Cruz.

Em primeiro lugar, docilidade, porque é o Espírito Santo quem, com suas


inspirações, vai dando tom sobrenatural aos nossos pensamentos, desejos e obras. É
Ele quem nos impele a aderir à doutrina de Cristo e a assimilá-la com profundidade;
quem nos dá luz para tomarmos consciência da nossa vocação pessoal e força para
realizarmos tudo o que Deus espera de nós. Se formos dóceis ao Espírito Santo, a
imagem de Cristo ir-se-á formando cada vez mais em nós e assim nos iremos
aproximando cada dia mais de Deus Pai. Os que são conduzidos pelo Espírito de
Deus, esses são filhos de Deus.

Se nos deixarmos guiar por esse princípio de vida presente em nós, que é o Espírito
Santo, a nossa vitalidade espiritual irá crescendo e abandonar-nos-emos nas mãos do
nosso Pai-Deus com a mesma espontaneidade e confiança com que uma criança se
lança nos braços de seu pai. Se não vos fizerdes semelhantes às crianças, não
entrareis no reino dos céus, disse o Senhor. Velho caminho interior de infância,
sempre atual, que não é mimalhice nem falta de maturidade humana: é maturidade
sobrenatural, que nos leva a aprofundar nas maravilhas do amor divino, a reconhecer
a nossa pequenez e a identificar plenamente a nossa vontade com a de Deus.

É Cristo que passa, O Grande Desconhecido, 136

Em segundo lugar, vida de oração, porque a entrega, a obediência, a mansidão do


136 cristão nascem do amor e para o amor se orientam. E o amor leva à vida de relação,
à conversa assídua, à amizade. A vida cristã requer um diálogo constante com Deus
Uno e Trino, e é a essa intimidade que o Espírito Santo nos conduz. Quem sabe das
coisas do homem, senão o espírito do homem, que está dentro dele? Assim, as
coisas de Deus, ninguém as conheceu a não ser o Espírito de Deus. Se mantivermos
uma relação assídua com o Espírito Santo, também nós nos faremos espirituais, nos
sentiremos irmãos de Cristo e filhos de Deus, e saberemos invocá-lo sem hesitação,
como Pai que é de cada um de nós.

Acostumemo-nos a procurar o convívio com o Espírito Santo, que é quem nos há de


santificar; a confiar nEle, a pedir sua ajuda, a senti-lo perto de nós. Assim se irá
dilatando o nosso pobre coração, teremos mais ânsias de amar a Deus e, por Ele, a
todas as criaturas. E reproduzir-se-á em nossas vidas aquela visão final do
Apocalipse: o Espírito e a Esposa, o Espírito Santo e a Igreja - e cada cristão -, que
se dirigem a Jesus, a Cristo, e lhe pedem que venha, que fique conosco para sempre.

108
É Cristo que passa, O Grande Desconhecido, 137

União com a Cruz, finalmente, porque, na vida de Cristo, o Calvário precedeu a


137 Ressurreição e o Pentecostes, e esse mesmo processo se deve reproduzir na vida de
cada cristão: Somos - diz São Paulo - co-herdeiros com Jesus Cristo, contanto que
soframos com Ele, a fim de sermos com Ele glorificados. O Espírito Santo é fruto da
Cruz, da entrega total a Deus, da procura exclusiva da sua glória e da completa
renúncia a nós mesmos. Só quando o homem, fiel à graça, decide colocar no centro
da sua alma a Cruz, negando-se a si mesmo por amor de Deus, desprendendo-se
realmente do egoísmo e de toda a falsa segurança humana, quer dizer, só quando
vive verdadeiramente de fé, só então é que recebe com plenitude o grande fogo, a
grande consolação do Espírito Santo.

É então que chegam também à alma aquela paz e aquela liberdade que Cristo nos
conquistou , e que nos são comunicadas com a graça do Espírito Santo. Os frutos do
Espírito Santo são caridade, alegria, paz, paciência, benignidade, bondade,
longanimidade, mansidão, fé, modéstia, continência, castidade ; e onde está o
Espírito do Senhor, lá está a liberdade.

É Cristo que passa, O Grande Desconhecido, 138

No meio das limitações inseparáveis da nossa situação presente - porque o pecado


138 ainda habita de algum modo em nós -, o cristão percebe com nova claridade toda a
riqueza da sua filiação divina, na medida em que se reconhece plenamente livre por
trabalhar nas coisas do Pai, e se sente possuído de uma alegria que se torna
constante, por nada ser capaz de destruir a sua esperança.

Além disso, é também nessa hora que se torna capaz de admirar todas as belezas e
maravilhas da terra, de apreciar toda a riqueza e toda a bondade, de viver o amor
com toda a inteireza e toda a pureza para que foi criado o coração humano. É nessa
altura que a sua dor perante o pecado não degenera nunca em reação amarga,
desesperada ou arrogante, porque a compunção e o reconhecimento da fraqueza
humana o levam a identificar-se de novo com as ânsias redentoras de Cristo e a
sentir mais profundamente a solidariedade com todos os homens. É então, enfim,
que o cristão experimenta em si, com segurança, a força do Espírito Santo, de
maneira que nem as suas próprias quedas o abatem: porque são um convite para que
recomece e para que continue a ser testemunha fiel de Cristo em todas as
encruzilhadas da terra, apesar das suas misérias pessoais; misérias que, nestes casos,
costumam ser faltas leves e mal turvam a sua alma, ou, se são graves, encontram no
Sacramento da Penitência, procurado com compunção, o meio de fazê-lo retomar à
paz de Deus e de convertê-lo novamente em boa testemunha das misericórdias
divinas.

Assim é, em breve resumo que mal consegue traduzir em pobres palavras humanas a
riqueza da fé, a vida do cristão, quando se deixa guiar pelo Espírito Santo. Por isso,

109
só posso concluir tomando minha a súplica contida num dos hinos litúrgicos da festa
de Pentecostes, que é como um eco da oração incessante de toda a Igreja: Vem,
Espírito Criador, visita as inteligências dos teus, enche de graça celeste os corações
que criaste. Em tua escola, faz-nos conhecer o Pai, como também o Filho; faz,
enfim, que acreditemos eternamente em Ti, Espírito que procedes de Um e Outro.

É Cristo que passa, Por Maria, a Jesus, 139

Um olhar sobre o mundo, um olhar sobre o Povo de Deus , neste mês de Maio que
139 começa, faz-nos contemplar o espetáculo da devoção mariana que se manifesta em
tantos costumes, antigos ou novos, mas vividos com um mesmo espírito de amor.
Dá alegria verificar que a devoção à Virgem está sempre viva, despertando nas
almas cristãs o impulso sobrenatural de se comportarem como domestici Dei, como
membros da família de Deus.

Estou certo de que cada um de nós, ao ver nestes dias como tantos cristãos
exprimem de mil formas diferentes o seu carinho pela Virgem Santa Maria, se
sentirá também mais dentro da Igreja, mais irmão de todos os seus irmãos. É como
uma reunião de família, em que os filhos já adultos, que a vida separou, voltam a
encontrar-se junto de sua mãe por ocasião de uma festa. E se uma vez ou outra
discutiram entre si e se trataram mal, naquele dia é diferente; naquele dia sentem-se
unidos, reconhecem-se todos no afeto comum.

Maria edifica continuamente a Igreja, reúne-a, mantém-na coesa. É difícil ter uma
devoção autêntica à Virgem e não sentir-se mais vinculado aos outros membros do
Corpo Místico e mais unido à sua cabeça visível, o Papa. Por isso gosto de repetir:
Omnes cum Petro ad Iesum per Mariam!, todos, com Pedro, a Jesus por Maria! E,
ao reconhecermo-nos parte da Igreja e convidados a sentir-nos irmãos na fé,
descobrimos mais profundamente a fraternidade que nos une a toda a humanidade:
porque a Igreja foi enviada por Cristo a todos os homens e a todos os povos.

O que acabo de dizer é algo que já todos experimentamos, pois não nos têm faltado
ocasiões de comprovar os efeitos sobrenaturais de uma sincera devoção à Virgem.
Cada um poderia contar muitas coisas. E eu também. Vem agora à minha memória
uma romaria que fiz em 1933, a uma ermida da Virgem em terra castelhana: a
Sonsoles.

Não era uma romaria tal como se entende habitualmente. Não era ruidosa nem
multitudinária: íamos apenas três pessoas. Respeito e amo essas outras
manifestações públicas de piedade, mas pessoalmente prefiro tentar oferecer a Maria
o mesmo carinho e o mesmo entusiasmo por meio de visitas pessoais ou em
pequenos grupos, com sabor de intimidade.

Naquela romaria a Sonsoles, conheci a origem dessa invocação à Virgem, um


detalhe sem muita importância, mas que é uma manifestação filial da gente daquela
terra. A imagem de Nossa Senhora que se venera naquele lugar esteve escondida
durante certo tempo, na época das lutas entre cristãos e muçulmanos na Espanha. Ao
fim de alguns anos, foi encontrada por uns pastores que - segundo conta a tradição -,

110
ao vê-la, exclamaram: Que olhos tão formosos! São sóis!*

(*): Em castelhano: Son soles (N. T.).

É Cristo que passa, Por Maria, a Jesus, 140

Desde aquele ano de 1933, em numerosas e habituais visitas a santuários de Nossa


140 Senhora, tive ocasião de refletir e meditar sobre a realidade deste carinho de tantos
cristãos pela Mãe de Jesus. E sempre pensei que esse carinho era uma
correspondência de amor, uma prova de agradecimento filial. Porque Maria está
muito unida a essa manifestação máxima do amor de Deus: a Encarnação do Verbo,
que se fez homem como nós e carregou com as nossas misérias e pecados. Maria,
fiel à missão divina para que foi criada, excedeu-se e excede-se continuamente no
serviço aos homens, que foram chamados todos eles a ser irmãos de seu Filho Jesus.
E assim a Mãe de Deus é também agora, realmente, a Mãe dos homens.

Assim é, porque assim o quis o Senhor. E o Espírito Santo dispôs que ficasse
escrito, para conhecimento de todas as gerações: Estavam, junto à cruz de Jesus, sua
mãe, e a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Cleofas, e Maria Madalena. E Jesus,
vendo sua Mãe e, junto dela, o discípulo que Ele amava, disse à sua Mãe: Mulher,
eis aí o teu filho. Depois, disse ao discípulo: Eis aí a tua Mãe. E a partir daquele
momento, o discípulo a teve por Mãe.

João, o discípulo amado de Jesus, recebe Maria e introdu-la em sua casa, em sua
vida. Os autores espirituais viram nessas palavras do Santo Evangelho um convite
dirigido a todos os cristãos para que todos saibamos também introduzir Maria em
nossas vidas. Em certo sentido, é um esclarecimento quase supérfluo, porque Maria
quer sem dúvida que a invoquemos, que nos aproximemos dEla com confiança, que
recorramos à sua maternidade, pedindo-lhe que se manifeste como nossa Mãe.

Mas é uma mãe que não se faz rogar, que até se antecipa às nossas súplicas, porque
conhece as nossas necessidades e vem prontamente em nosso auxílio, demonstrando
com obras que se lembra constantemente de seus filhos. Cada um de nós, ao evocar
a sua própria vida e ao ver como nela se manifesta a misericórdia divina, pode
descobrir mil motivos para se sentir de um modo muito especial filho de Maria.

É Cristo que passa, Por Maria, a Jesus, 141

Os textos das Sagradas Escrituras que nos falam de Nossa Senhora mostram-nos
141 precisamente como a Mãe de Jesus acompanha seu Filho passo a passo,
associando-se à sua missão redentora, alegrando-se e sofrendo com Ele, amando
aqueles a quem Jesus ama, ocupando-se com solicitude maternal de todos os que
estão ao seu lado.

Pensemos, por exemplo, no relato das bodas de Caná. Entre tantos convidados de
uma dessas ruidosas bodas do meio rural, a que comparecem pessoas de vários

111
povoados, Maria percebe que falta vinho. Só Ela o percebe, e sem demora. Como se
nos revelam familiares as cenas da vida de Cristo! Porque a grandeza de Deus
convive com as coisas normais e comuns. É próprio de uma mulher e de uma
solícita dona de casa notar um descuido, prestar atenção a esses pequenos detalhes
que tornam agradável a existência humana: e foi assim que Maria se comportou.

Reparemos também que é João quem relata o episódio de Caná: é o único


evangelista que registra esse gesto de solicitude maternal. São João quer
recordar-nos que Maria esteve presente no começo da vida pública do Senhor, e com
isso demonstra que soube aprofundar na importância da presença da Senhora. Jesus
sabia a quem confiava sua Mãe: a um discípulo que a amara, que aprendera a
querer-lhe como à sua própria mãe e que era capaz de entendê-la.

Relembremos agora os dias que se seguiram à Ascensão, na expectativa do


Pentecostes. Os discípulos, cheios de fé pelo triunfo de Cristo ressuscitado, e
ansiosos ante a promessa do Espírito Santo, querem sentir-se unidos, e vamos
encontrá-los cum Maria, Matre Iesu, com Maria, a Mãe de Jesus. A oração dos
discípulos acompanha a oração de Maria; era a oração de uma família unida.

Desta vez, quem nos transmite esse dado é São Lucas, o evangelista que mais
longamente narrou a infância de Jesus. É como se quisesse dar-nos a entender que,
assim como Maria teve um papel primordial na Encarnação do Verbo, de modo
análogo esteve também presente nas origens da Igreja, que é o Corpo de Cristo.

Desde o primeiro momento da vida da Igreja, todos os cristãos que têm procurado o
amor de Deus - esse amor que se nos revela e se faz carne em Jesus Cristo -
encontraram-se com a Virgem e experimentaram de maneiras muito diferentes o seu
desvelo maternal. A Virgem Santíssima pode chamar-se verdadeiramente Mãe de
todos os cristãos. Santo Agostinho disse-o com palavras claras: Cooperou com a sua
caridade para que nascessem na Igreja os fiéis, membros daquela cabeça de que
Ela é efetivamente Mãe segundo o corpo.

Não é, pois, de estranhar que um dos testemunhos mais antigos da devoção a Maria
seja precisamente uma oração cheia de confiança. Refiro-me a uma antífona
composta há séculos e que ainda hoje continuamos a repetir: À vossa proteção nos
acolhemos, Santa Mãe de Deus. Não desprezeis as súplicas que em nossas
necessidades vos dirigimos, mas livrai-nos sempre de todos os perigos, ó Virgem
gloriosa e bendita.

É Cristo que passa, Por Maria, a Jesus, 142

Surge assim em nós, de forma espontânea e natural, o desejo de procurarmos a


142 intimidade com a Mãe de Deus, que é também nossa Mãe; de convivermos com Ela
como se convive com uma pessoa viva, já que sobre Ela não triunfou a morte, antes
está em corpo e alma junto de Deus Pai, junto de seu Filho, junto do Espírito Santo.

Para compreendermos o papel que Maria desempenha na vida cristã, para nos
sentirmos atraídos por Ela, para desejarmos a sua amável companhia com afeto

112
filial, não necessitamos de grandes investigações, embora o mistério da Maternidade
divina tenha uma riqueza de conteúdo que nunca aprofundaremos bastante.

A fé católica soube reconhecer em Maria um sinal privilegiado do amor de Deus.


Deus nos chama, já agora, seus amigos; sua graça atua em nós, regenera-nos do
pecado, dá-nos forças para que, no meio das fraquezas próprias de quem ainda é pó
e miséria, possamos refletir de algum modo o rosto de Cristo. Não somos meros
náufragos a quem Deus tenha prometido salvar, porque a salvação se realiza desde
já em nós. A nossa relação com Deus não é a de um cego que anseia pela luz
enquanto geme entre as angústias da escuridão; é a de um filho que se sabe amado
por seu Pai.

Dessa cordialidade, dessa confiança, dessa segurança nos fala Maria. Por isso o seu
nome chega tão direto ao coração. A relação de cada um de nós com a sua própria
mãe pode servir-nos de modelo e de pauta para o nosso relacionamento com a
Senhora do Doce Nome, Maria. Temos que amar a Deus com o mesmo coração com
que amamos nossos pais, nossos irmãos, os outros membros da família, nossos
amigos ou amigas: não temos outro coração. E com esse mesmo coração temos que
procurar a intimidade com Maria.

Como se comporta um filho ou uma filha normal com sua mãe? De mil maneiras,
mas sempre com carinho e confiança. Com um carinho que em cada caso fluirá por
condutos nascidos da própria vida, e que nunca são uma coisa fria, mas costumes
íntimos de lar, pequenos detalhes diários que o filho precisa ter com sua mãe e de
que a mãe sente falta se alguma vez o filho os esquece: um beijo ou uma carícia ao
sair de casa ou ao voltar, uma pequena delicadeza, umas palavras expressivas...

Em nossas relações com a nossa Mãe do Céu, existem também essas normas de
piedade filial que são os moldes do nosso comportamento habitual com Ela. Muitos
cristãos adotam o antigo costume do escapulário; ou adquirem o hábito de saudar -
não são precisas palavras, basta o pensamento - as imagens de Maria que se
encontram em todo o lar cristão ou adornam as ruas de tantas cidades; ou vivem essa
maravilhosa oração que é o terço, em que a alma não se cansa de dizer sempre as
mesmas coisas, como não se cansam os namorados, e em que se aprende a reviver os
momentos centrais da vida do Senhor; ou então acostumam-se a dedicar à Senhora
um dia da semana - precisamente este em que agora estamos reunidos: o sábado -,
oferecendo-lhe alguma pequena delicadeza e meditando mais especialmente na sua
maternidade.

Há muitas outras devoções marianas que não é necessário recordar neste momento.
Não se trata de introduzi-las todas na vida de cada cristão - crescer na vida
sobrenatural é muito diferente de um simples ir amontoando devoções -, mas devo
afirmar, ao mesmo tempo, que não possui a plenitude da fé cristã quem não vive
algumas delas, quem não manifesta de algum modo o seu amor por Maria.

Os que consideram ultrapassadas as devoções à Santíssima Virgem dão sinais de


terem perdido o profundo sentido cristão que elas encerram, e de terem esquecido a
fonte de que nascem: a fé na vontade salvífica de Deus Pai; o amor a Deus Filho,
que se fez realmente homem e nasceu de uma mulher; a confiança em Deus Espírito
Santo, que nos santifica com a sua graça. Foi Deus quem nos deu Maria: não temos

113
o direito de rejeitá-la, antes pelo contrário, devemos recorrer a Ela com amor e com
alegria de filhos.

É Cristo que passa, Por Maria, a Jesus, 143

Consideremos atentamente este aspecto. Pode ajudar-nos a compreender coisas


143 muito importantes, já que o mistério de Maria nos faz ver que, para nos
aproximarmos de Deus, temos que nos tornar pequenos. Em verdade vos digo -
exclamou o Senhor, dirigindo-se aos seus discípulos -, se não vos fizerdes como
crianças, não entrareis no reino dos céus.

Fazer-se criança: renunciar à soberba, à auto-suficiência; reconhecer que, sozinhos,


nada podemos, porque necessitamos da graça, do poder do nosso Pai-Deus para
aprender a caminhar e para perseverar no caminho. Ser criança exige abandonar-se
como se abandonam as crianças, crer como crêem as crianças, pedir como pedem as
crianças.

São coisas que aprendemos no convívio com Maria. A devoção à Virgem não é
blandície nem languidez: é consolo e júbilo que se apossam da alma, precisamente
porque exige um exercício profundo e íntegro da fé, que nos faz sair de nós mesmos
e colocar a nossa esperança no Senhor. O Senhor é meu pastor - canta um dos
salmos -, nada me faltará. Em verdes prados me faz descansar, conduz-me junto às
águas refrescantes; refaz minha alma e guia-me por caminhos retos pela virtude do
seu nome. Ainda que eu atravesse um vale tenebroso, nada temerei, porque Tu estás
comigo.

Porque Maria é Mãe, sua devoção nos ensina a ser filhos: a amar deveras, sem
medida; a ser simples, sem essas complicações que nascem do egoísmo de
pensarmos só em nós; a estar alegres, sabendo que nada pode destruir a nossa
esperança. O princípio do caminho que leva à loucura do amor de Deus é um amor
confiado por Maria Santíssima. Assim o escrevi há muitos anos, no prólogo a uns
comentários ao Santo Rosário, e desde então voltei a comprovar muitas vezes a
verdade dessas palavras. Não vou tecer aqui muitas considerações para comentar
essa idéia: prefiro, antes, convidar cada um a fazer a experiência, a descobri-lo por si
mesmo, procurando manter uma relação amorosa com Maria, abrindo-lhe o coração,
confiando-lhe suas alegrias e penas, pedindo-lhe que o ajude a conhecer e a seguir
Jesus.

É Cristo que passa, Por Maria, a Jesus, 144

Se procurarmos Maria, encontraremos Jesus. E aprenderemos a entender um pouco


144 do que há no coração de um Deus que se aniquila, que renuncia a manifestar o seu
poder e a sua majestade para se apresentar sob a forma de escravo. Falando em
termos humanos, poderíamos dizer que Deus se excede, pois não se limita ao que
seria essencial ou imprescindível para nos salvar, mas vai mais longe. A única
norma ou medida que nos permite compreender de algum modo a maneira como

114
Deus age é perceber que não tem medida, ver que nasce de uma loucura de amor que
o leva a tomar a nossa carne e a carregar com o peso dos nossos pecados.

Como é possível perceber tudo isso, reparar que Deus nos ama, e não enlouquecer
também de amor? É necessário deixar que essas verdades da nossa fé calem na alma,
até mudarem toda a nossa vida. Deus nos ama: o Onipotente, o Todo-Poderoso, o
que fez os céus e a terra!

Deus interessa-se até pelas mais pequenas coisas das suas criaturas: e chama-nos,
um a um, pelo nosso próprio nome. Essa certeza, que procede da fé, faz-nos olhar o
que nos cerca sob uma nova luz, e leva-nos a perceber que, permanecendo tudo
como antes, tudo se torna diferente, porque tudo é expressão do amor de Deus.

A nossa vida converte-se assim numa contínua oração, num bom humor e numa paz
que nunca se acabam, num ato de ação de graças desfiado ao longo das horas. Minha
alma glorifica o Senhor - cantou a Virgem Maria - e meu espírito exulta de alegria
em Deus, meu Salvador: porque olhou para a baixeza de sua serva. Por isso, desde
agora me chamarão bem-aventurada todas as gerações, porque fez em mim grandes
coisas o Todo-Poderoso, cujo nome é santo.

A nossa oração pode acompanhar e imitar essa oração de Maria. Como Ela,
sentiremos o desejo de cantar, de pro clamar as maravilhas de Deus, para que a
humanidade inteira e todos os seres participem da nossa felicidade.

É Cristo que passa, Por Maria, a Jesus, 145

Não é possível mantermos uma relação filial com Maria e pensarmos apenas em nós
145 mesmos, nos nossos problemas. Não podemos permanecer em relação intima com a
Virgem e ter problemas pessoais carregados de egoísmo. Maria leva a Jesus, e Jesus
é primogenitus in multis fratribus, primogênito entre muitos irmãos. Conhecer Jesus
é, portanto, compreender que não podemos ter outro sentido para a nossa vida a não
ser o da entrega ao serviço do próximo. Um cristão não pode deter-se apenas nos
seus problemas pessoais, mas deve viver de olhos postos na Igreja Universal,
pensando na salvação de todas as almas.

Deste modo, até as facetas que se poderiam considerar mais privadas e íntimas -
como a preocupação pelo progresso interior - não são na realidade pessoais, já que a
santificação se funde numa só coisa com o apostolado. Devemos, pois, ser
esforçados na nossa vida interior e no desenvolvimento das virtudes cristãs, mas de
olhos postos no bem de toda a Igreja, já que não poderíamos fazer o bem e dar a
conhecer Cristo se em nossas vidas não houvesse um esforço sincero por converter
em realidade prática os ensinamentos do Evangelho.

Impregnados deste espírito, nossas orações, ainda que comecem por temas e
propósitos aparentemente pessoais, acabam sempre por desembocar no serviço aos
outros. E se caminhamos pela mão da Santíssima Virgem, Ela fará com que nos
sintamos irmãos de todos os homens: porque somos todos filhos desse Deus de
quem Ela é Filha, Esposa e Mãe.

115
Os problemas dos outros devem ser problemas nossos. A fraternidade cristã deve
estar tão arraigada no fundo da alma, que nenhuma pessoa nos seja indiferente.
Maria, Mãe de Jesus - a quem Ela criou, educou e acompanhou durante a sua vida
terrena, e com quem está agora nos céus -, ajudar-nos-á a reconhecer Jesus que
passa ao nosso lado, que se nos torna presente nas necessidades dos nossos irmãos,
os homens.

É Cristo que passa, Por Maria, a Jesus, 146

Naquela romaria de que antes falava, enquanto caminhávamos até à ermida de


146 Sonsoles, passamos junto de uns campos de trigo. A messe brilhava ao sol,
embalada pelo vento. Veio então à minha memória um texto do Evangelho, umas
palavras que o Senhor dirigiu ao grupo dos seus discípulos: Não dizeis vós que
dentro de quatro meses virá a colheita? Pois eu vos digo: erguei os olhos e vede os
campos que já branqueiam para a ceifa. Pensei uma vez mais que o Senhor queria
suscitar em nossos corações o mesmo empenho, o mesmo fogo que dominava o seu.
E, afastando-me um pouco do caminho, colhi umas espigas para que me servissem
de lembrança.

É preciso abrir os olhos, saber olhar ao nosso redor e reconhecer essas chamadas que
Deus nos dirige através dos que nos cercam. Não podemos viver de costas para a
multidão, encerrados no nosso pequeno mundo. Não foi assim que Jesus viveu. Os
Evangelhos falam-nos muitas vezes da sua misericórdia, da sua capacidade de
participar da dor e das necessidades dos outros: compadece-se da viúva de Naim ,
chora a morte de Lázaro , preocupa-se com as multidões que o seguem e não têm
que comer , compadece-se sobretudo dos pecadores, dos que caminham pelo mundo
sem conhecerem a luz nem a verdade: Ao desembarcar, Jesus viu uma grande
multidão e compadeceu-se dela, porque eram como ovelhas sem pastor. E começou
a ensinar-lhes muitas coisas.

Quando somos verdadeiramente filhos de Maria, compreendemos essa atitude do


Senhor, nosso coração se dilata e revestimo-nos de entranhas de misericórdia.
Dóem-nos, então, os sofrimentos, as misérias, os erros, a solidão, a angústia, a dor
dos outros homens, nossos irmãos. E sentimos a urgência de ajudá-los em suas
necessidades e de lhes falar de Deus, para que saibam tratá-lo como filhos e possam
conhecer as delicadezas maternais de Maria.

É Cristo que passa, Por Maria, a Jesus, 147

Encher o mundo de luz, ser sal e luz : assim descreveu o Senhor a missão dos seus
147 discípulos. Levar até os últimos confins da terra a boa nova do amor de Deus. A isso
devem todos os cristãos dedicar a sua vida, de um modo ou de outro.

Direi mais: temos que sentir o profundo anseio de não permanecer sós, temos que
fazer com que muitos outros se animem a contribuir para essa missão divina de levar

116
a alegria e a paz aos corações dos homens: Na medida em que progredirdes, atraí os
outros convosco, escreve São Gregório Magno. Desejai ter companheiros no
caminho para o Senhor.

Mas tenhamos presente que, cum dormirent homines, enquanto os homens dormiam,
veio o semeador do joio, diz o Senhor numa parábola. Nós, os homens, estamos
expostos a deixar-nos vencer pelo sono do egoísmo, da superficialidade, dispersando
o coração em mil experiências passageiras, evitando aprofundar no verdadeiro
sentido das realidades terrenas. Má coisa esse sono, que sufoca a dignidade do
homem e o torna escravo da tristeza!

Há um caso que nos deve doer de modo especial: o daqueles cristãos que poderiam
dar mais e não se decidem; que poderiam entregar-se totalmente, vivendo todas as
conseqüências da sua vocação de filhos de Deus, mas relutam em ser generosos.
Deve doer-nos porque a graça da fé não nos foi dada para que permaneça oculta,
mas para que brilhe diante dos homens ; porque, além disso, está em jogo a
felicidade temporal e eterna dos que assim procedem. A vida cristã é uma maravilha
divina, com promessas de satisfação e serenidade, com a condição, porém, de que
saibamos apreciar o dom de Deus , sendo generosos sem medida.

É necessário, pois, despertar os que tenham caído nesse mau sono: lembrar-lhes que
a vida não é um divertimento, mas tesouro divino que deve frutificar. E é necessário
também ensinar o caminho aos que têm boa vontade e bons desejos, mas não sabem
como levá-los à prática. Somos urgidos a fazê-lo pelo próprio Jesus Cristo. Cada um
de nós tem que ser não apenas apóstolo, mas apóstolo de apóstolos: que arraste os
outros consigo, que os mova a dar a conhecer Cristo por sua vez.

É Cristo que passa, Por Maria, a Jesus, 148

Talvez se possa perguntar como transmitir esse conhecimento às pessoas. E


148 respondo: com naturalidade, com simplicidade, vivendo cada qual como vive, no
meio do mundo, entregue ao seu trabalho profissional e ao cuidado da família,
participando das aspirações nobres dos homens, respeitando a legítima liberdade de
cada um.

Há já quase trinta anos, Deus pôs em meu coração o anseio de fazer compreender às
pessoas de qualquer estado, condição ou ofício, esta doutrina: a vida corrente pode
ser santa e plena de Deus; o Senhor chama-nos a santificar as ocupações habituais,
porque também nelas se encontra a perfeição do cristão. Consideremo-lo uma vez
mais, contemplando a vida de Maria.

Não esqueçamos que a quase totalidade dos dias que Nossa Senhora passou na terra
decorreram de forma muito parecida à de milhões de outras mulheres, ocupadas em
cuidar da família, em educar os filhos, em levar a cabo as tarefas do lar. Maria
santifica as coisas mais pequenas, aquelas que muitos consideram erroneamente
como intranscendentes e sem valor: o trabalho de cada dia, os pormenores de
atenção com as pessoas queridas, as conversas e visitas por motivos de parentesco
ou de amizade. Bendita normalidade, que pode estar repassada de tanto amor de

117
Deus!

Porque é isso o que explica a vida de Maria: o seu amor. Um amor levado até ao
extremo, até ao esquecimento completo de si mesma, feliz de estar onde Deus a
quer, cumprindo com esmero a vontade divina. Isso é o que faz com que o menor de
seus gestos não seja nunca banal, mas cheio de conteúdo. Maria, nossa Mãe, é para
nós exemplo e caminho. Temos que procurar ser como Ela, nas circunstâncias
concretas em que Deus quis que vivêssemos.

Se procedermos assim, daremos aos que nos rodeiam o testemunho de uma vida
simples e normal, com as limitações e os defeitos próprios da nossa condição
humana, mas coerente. E ao perceberem que somos iguais a eles em todas as coisas,
os outros sentir-se-ão impelidos a perguntar-nos: Como se explica a vossa alegria?
Donde vos vêm as forças para vencer o egoísmo e o comodismo? Quem vos ensina a
viver a compreensão, a reta convivência e a entrega, o serviço aos outros?

É então o momento de lhes manifestar o segredo divino da existência cristã, de lhes


falar de Deus, de Cristo, do Espírito Santo, de Maria; o momento de procurar
transmitir, através das nossas pobres palavras, a loucura do amor a Deus que a graça
derramou em nossos corações.

É Cristo que passa, Por Maria, a Jesus, 149

São João conserva no seu Evangelho uma frase maravilhosa da Virgem, num
149 episódio que já consideramos antes: o das bodas de Caná. Narra-nos o evangelista
que, dirigindo-se aos criados, Maria lhes disse: Fazei o que Ele vos disser. É disso
que se trata: de levar as almas a situar-se diante de Jesus e a perguntar-lhe: Domine,
quid me vis facere?, Senhor que queres que eu faça?

O apostolado cristão - e refiro-me agora, especificamente, ao apostolado de um


simples cristão, ao de um homem ou mulher que vive como outro qualquer entre os
seus iguais - é uma grande catequese em que, através do relacionamento pessoal, de
uma amizade leal e autêntica, se desperta nos outros a fome de Deus e se ajuda cada
um a descobrir novos horizontes - com naturalidade, com simplicidade, como disse,
com o exemplo de uma fé bem vivida, com a palavra amável, mas cheia da força da
verdade divina.

Sejamos audazes. Contamos com o auxílio de Maria, Regina Apostolorum. E Nossa


Senhora, sem deixar de se comportar como Mãe, sabe colocar os seus filhos em face
de suas precisas responsabilidades. Aos que dEla se aproximam e contemplam a sua
vida, Maria faz sempre o imenso favor de os levar até à cruz, de os colocar bem
diante do exemplo do Filho de Deus. E nesse confronto em que se decide a vida
cristã, Maria intercede para que a nossa conduta culmine com uma reconciliação do
irmão menor - tu e eu - com o Filho primogênito do Pai.

Muitas conversões, muitas decisões de entrega ao serviço de Deus foram precedidas


de um encontro com Maria. Nossa Senhora fomentou os desejos de procura, ativou
maternalmente as inquietações da alma, fez ansiar por uma mudança, por uma vida

118
nova. E, assim, aquele fazei o que Ele vos disser converteu-se em realidades de
amorosa entrega, em vocação cristã que ilumina desde então toda a nossa vida.

Estes momentos de conversa diante do Senhor, em que meditamos sobre a nossa


devoção e carinho por sua Mãe, podem, pois, reavivar a nossa fé. O mês de Maio
está começando. O Senhor quer que não desperdicemos esta ocasião de crescer no
seu Amor através de um trato íntimo com sua Mãe. Saibamos ter com Ela, em cada
dia, esses pormenores filiais - pequenas coisas, atenções delicadas -, que se irão
tornando grandes realidades de santidade pessoal e de apostolado, quer dizer, de
empenho constante por contribuir para a salvação que Cristo veio trazer ao mundo.

Sancta Maria, spes nostra, ancilla Domini, sedes Sapientiae, ora pro nobis! Santa
Maria, esperança nossa, escrava do Senhor, sede da Sabedoria, rogai por nós!

É Cristo que passa, Na festa do Corpus Christi, 150

Hoje, festa do Corpus Christi, meditamos juntos na profundidade do amor do


150 Senhor, que o levou a permanecer oculto sob as espécies sacramentais; e é como se
ouvíssemos fisicamente aqueles seus ensinamentos à multidão: Eis que saiu o
semeador a semear. E, enquanto semeava, parte da semente caiu junto do caminho,
e vieram as aves do céu e comeram-na. Outra parte caiu em terreno pedregoso,
onde não havia muita terra, e logo brotou, porque estava a superfície; mas saindo o
sol, queimou-se e, como não tinha raiz, secou. Outra parte caiu entre espinhos, e os
espinhos cresceram e sufocaram-na. Outra parte caiu em terra boa e deu fruto: uns
grãos cem, outros sessenta, outros trinta.

A cena é atual. Também agora o Semeador divino lança a sua semente. A obra da
salvação continua a realizar-se, e o Senhor quer servir-se de nós: deseja que nós, os
cristãos, abramos ao seu amor todos os caminhos da terra; convida-nos a propagar a
mensagem divina, com a doutrina e com o exemplo, até os últimos recantos da terra.
Pede-nos que, sendo cidadãos tanto da sociedade eclesial como da civil, ao
desempenharmos com fidelidade os nossos deveres, sejamos cada um de nós outro
Cristo, santificando o trabalho profissional e as obrigações do nosso próprio estado.

Se olharmos ao nosso redor, para este mundo que amamos porque é obra saída das
mãos de Deus, observaremos que a parábola se converte em realidade: a palavra de
Jesus Cristo é fecunda, suscita em muitas almas desejos de entrega e de fidelidade.
A vida e o comportamento dos que servem a Deus mudaram a História, e até muitos
dos que não conhecem o Senhor se deixam guiar, talvez até sem o saberem, por
ideais nascidos do cristianismo.

Vemos também que parte da semente cai em terra estéril, entre espinhos e abrolhos:
há corações que se fecham à luz da fé. Os ideais de paz, de reconciliação, de
fraternidade, são aceitos e proclamados, mas - não poucas vezes - são desmentidos
pelos fatos. Alguns homens empenham-se inutilmente em aferrolhar a voz de Deus,
impedindo a sua difusão pela força bruta ou servindo-se de uma arma menos
ruidosa, mas talvez mais cruel, porque insensibiliza o espírito: a indiferença.

119
É Cristo que passa, Na festa do Corpus Christi, 151

Gostaria que, ao considerarmos tudo isto, tomássemos consciência da nossa missão


151 de cristãos e volvêssemos os olhos para a Sagrada Eucaristia, para Jesus que,
presente entre nós, nos constituiu seus membros: Vos estis corpus Christi et membra
de membro , vós sois o corpo de Cristo e membros unidos a outros membros. Nosso
Deus decidiu permanecer no Sacrário para nos alimentar, para nos fortalecer, para
nos divinizar, para dar eficácia ao nosso trabalho e ao nosso esforço. Jesus é
simultaneamente o semeador, a semente e o fruto da semeadura: é o Pão da vida
eterna.

Este milagre da Sagrada Eucaristia, que continuamente se renova, encerra todas as


características do modo como Jesus se comporta. Perfeito Deus e perfeito homem,
Senhor dos céus e da terra, Ele se oferece a cada um como sustento, da maneira mais
natural e comum. Assim espera o nosso amor, desde há quase dois mil anos. É muito
tempo e não é muito tempo: porque, quando há amor, os dias voam.

Vem à minha memória uma encantadora poesia galega, uma das cantigas de Afonso
X, o Sábio. É a lenda de um monge que, na sua simplicidade, suplicou a Santa Maria
que lhe deixasse contemplar o céu, ainda que fosse por um instante. A Virgem
acolheu seu desejo, e o bom monge foi levado ao Paraíso. Quando regressou, não
reconhecia nenhum dos moradores do mosteiro: a sua oração, que lhe parecera
brevíssima, havia durado três séculos. Três séculos não são nada para um coração
que ama. Assim compreendo eu esses dois mil anos de espera do Senhor na
Eucaristia. É a espera de um Deus que ama os homens, que nos procura, que nos
quer tal como somos - limitados, egoístas, inconstantes -, mas com capacidade para
descobrir seu infinito carinho e nos entregarmos a Ele por inteiro.

Por amor e para nos ensinar a amar, veio Jesus à terra e ficou entre nós na
Eucaristia. Como tivesse amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim.
Com estas palavras começa São João o relato do que sucedeu naquela véspera da
Páscoa, em que Jesus - refere-nos São Paulo - tomou o pão e, dando graças,
partiu-o e disse: Isto é o meu corpo, que será entregue por vós; fazei isto em
memória de mim. E do mesmo modo, depois da ceia, tomou o cálice, dizendo: Este
cálice é o novo testamento do meu sangue; fazei isto em memória de mim todas as
vezes que o beberdes.

É Cristo que passa, Na festa do Corpus Christi, 152

É o momento simples e solene da instituição do Novo Testamento. Jesus derroga a


152 antiga economia da Lei e revela-nos que Ele mesmo será o conteúdo da nossa
oração e da nossa vida.

Reparemos na alegria que inunda a liturgia de hoje: Seja o louvor pleno, sonoro,
alegre. É o júbilo cristão que canta a chegada de outro tempo: Terminou a antiga

120
Páscoa, inicia-se a nova. O velho é substituído pelo novo, a verdade faz a sombra
desaparecer, a noite é eliminada pela luz.

Milagre de amor. Este é verdadeiramente o pão dos filhos : Jesus, o Primogênito do


Pai Eterno, se oferece a todos nós em alimento. E o mesmo Jesus Cristo, que aqui
nos robustece, espera-nos no céu como comensais, co-herdeiros e sócios , porque
aqueles que se nutrem de Cristo morrerão de morte terrena e temporal, mas depois
viverão eternamente, porque Cristo é a vida imperecível.

Para o cristão que se conforta com o maná definitivo da Eucaristia, a felicidade


eterna começa já agora. O que era velho passou; deixemos de lado as coisas
caducas, seja tudo novo para nós: os corações, as palavras e as obras.

Esta é a Boa Nova. É novidade, notícia, porque nos fala de uma nova profundidade
de Amor de que antes não suspeitávamos. É boa, porque nada há de melhor que
unir-nos intimamente a Deus, Bem de todos os bens. É a Boa Nova, porque, de
alguma maneira, e de um modo indescritível, nos antecipa a eternidade.

É Cristo que passa, Na festa do Corpus Christi, 153

Jesus esconde-se no Santíssimo Sacramento do altar para que nos atrevamos a


153 procurar a sua companhia, para ser nosso sustento, e para que assim nos tornemos
uma só coisa com Ele. Quando disse: Sem mim, nada podeis fazer , não condenou o
cristão à ineficácia nem o obrigou a uma busca árdua e difícil da sua Pessoa. Ficou
entre nós com uma disponibilidade total.

Nos momentos em que nos reunimos diante do altar, enquanto se celebra o Santo
Sacrifício da Missa, quando contemplamos a Sagrada Hóstia exposta no ostensório
ou a adoramos escondida no Sacrário, devemos reavivar a nossa fé, pensar na nova
existência que vem até nós, e comover-nos perante o carinho e a ternura de Deus.

E perseveravam todos na doutrina dos Apóstolos, na comunicação da fração do pão


e nas orações. É assim que as Escrituras nos descrevem a conduta dos primeiros
cristãos: congregados pela fé dos Apóstolos em perfeita unidade, ao participarem da
Eucaristia; unânimes na oração. Fé, Pão, Palavra.

Jesus na Eucaristia é penhor firme da sua presença em nossas almas; do seu poder,
que sustenta o mundo; das suas promessas de salvação, que ajudarão a família
humana a habitar perpetuamente na casa do céu, quando chegar o fim dos tempos,
em torno de Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo: Trindade Beatíssima, Deus
Único. É toda a nossa fé que se põe em movimento quando cremos em Jesus, na sua
presença real sob os acidentes do pão e do vinho.

121
É Cristo que passa, Na festa do Corpus Christi, 154

Não entendo como se pode viver cristãmente sem sentir a necessidade de uma
154 amizade constante com Jesus na Palavra e no Pão, na oração e na Eucaristia. E
entendo perfeitamente que, ao longo dos séculos, as sucessivas gerações de fiéis
tenham ido concretizando essa piedade eucarística: umas vezes, com práticas
multitudinárias, professando publicamente a sua fé; outras, com gestos silenciosos e
calados, na sagrada paz do templo ou na intimidade do coração.

Antes de mais, devemos amar a Santa Missa, que tem que ser o centro do nosso dia.
Se vivemos bem a Missa, como não havemos de continuar depois o resto da jornada
com o pensamento no Senhor, com o desejo irreprimível de não nos afastarmos da
sua presença, para trabalhar como Ele trabalhava e amar como Ele amava?
Aprendemos então a agradecer ao Senhor mais outra delicadeza: que não tenha
querido limitar a sua presença ao instante do Sacrifício do Altar, mas tenha decidido
permanecer na Hóstia Santa que se reserva no Tabernáculo, no Sacrário.

Devo dizer que, para mim, o Sacrário foi sempre Betânia, o lugar tranqüilo e
aprazível onde está Cristo, onde lhe podemos contar as nossas preocupações, nossos
sofrimentos, nossos anseios e nossas alegrias, com a mesma simplicidade e
naturalidade com que lhe falavam aqueles seus amigos Marta, Maria e Lázaro. Por
isso, ao percorrer as ruas de uma cidade ou de uma aldeia, alegra-me descobrir,
mesmo de longe, a silhueta de uma igreja: é um novo Sacrário, uma nova ocasião de
deixar que a alma se escape para estar em desejo junto do Senhor Sacramentado.

É Cristo que passa, Na festa do Corpus Christi, 155

Quando o Senhor instituiu a Sagrada Eucaristia, na Última Ceia, era de noite, o que
155 manifestava - comenta São João Crisóstomo - que os tempos se tinham cumprido.
Caía a noite sobre o mundo, porque os velhos ritos, os antigos sinais da misericórdia
infinita de Deus para com a humanidade se iam realizar plenamente, abrindo
caminho a um verdadeiro amanhecer: a nova Páscoa. A Eucaristia foi instituída
durante a noite, preparando de antemão a manhã da Ressurreição.

Também em nossas vidas temos que preparar essa alvorada. Tudo o que é caduco e
nocivo, tudo o que não presta - o desânimo, a desconfiança, a tristeza, a covardia -,
tudo isso deve ser jogado fora. A Sagrada Eucaristia introduz a novidade divina nos
filhos de Deus, e devemos corresponder in novitate sensus , com uma renovação de
todos os nossos sentimentos e de toda a nossa conduta. Foi-nos dado um princípio
novo de energia, uma raiz poderosa, enxertada no Senhor. Não podemos voltar ao
antigo fermento, nós que temos o Pão de hoje e de sempre.

122
É Cristo que passa, Na festa do Corpus Christi, 156

Nesta festa, em cidades de um extremo ao outro da terra, os cristãos acompanham o


156 Senhor em procissão. Escondido na Hóstia, Ele percorre as ruas e as praças - como
na sua vida terrena - saindo ao encontro dos que o querem ver, fazendo-se
encontradiço dos que não o procuram. Jesus aparece assim, uma vez mais, no meio
dos seus: como reagimos perante essa chamada do Mestre?

As manifestações externas de amor devem nascer do coração e prolongar-se através


do testemunho de uma conduta cristã. Se fomos renovados pela recepção do Corpo
do Senhor, devemos manifestá-lo com obras. Que os nossos pensamentos sejam
sinceros: de paz, de entrega, de serviço. Que as nossas palavras sejam verdadeiras,
claras, oportunas; que saibam consolar e ajudar, que saibam sobretudo levar aos
outros a luz de Deus. Que as nossas ações sejam coerentes, eficazes, acertadas: que
tenham esse bonus odor Christi , o bom odor de Cristo, por recordarem o seu modo
de se comportar e de viver.

A procissão do Corpo de Deus torna Cristo presente nas aldeias e cidades do mundo.
Mas essa presença, repito, não deve ser coisa de um dia, ruído que se ouve e se
esquece. Essa passagem de Jesus lembra-nos que devemos descobri-lo também nas
nossas ocupações habituais. A par da procissão solene desta quinta-feira, deve
avançar a procissão silenciosa e simples da vida comum de cada cristão, homem
entre os homens, mas feliz de ter recebido a fé e a missão divina de se conduzir de
tal modo que renove a mensagem do Senhor sobre a terra. Não nos faltam erros,
misérias, pecados. Mas Deus está com os homens, e devemos colocar-nos à sua
disposição para que Ele se sirva de nós e se torne contínua a sua passagem entre as
criaturas.

Peçamos, pois, ao Senhor que nos conceda a graça de ser almas de Eucaristia, que a
nossa relação pessoal com Ele se traduza em alegria, em serenidade, em propósitos
de justiça. E assim facilitaremos aos outros a tarefa de reconhecerem Cristo,
contribuiremos para colocá-lo no cume de todas as atividades humanas.
Cumprir-se-á a promessa de Jesus: Eu, quando for exaltado sobre a terra, tudo
atrairei a mim.

É Cristo que passa, Na festa do Corpus Christi, 157

Jesus, dizia no começo, é o Semeador. E, por intermédio dos cristãos, prossegue a


157 sua semeadura divina. Cristo aperta o trigo em suas mãos chagadas, embebe-o no
seu sangue, limpa-o, purifica-o e lança-o no sulco que é o mundo. Lança os grãos
um a um, para que cada cristão, no seu próprio ambiente, dê testemunho da
fecundidade da Morte e da Ressurreição do Senhor.

Se estamos nas mãos de Cristo, devemos impregnar-nos do seu Sangue redentor,


deixar-nos lançar ao vento, aceitar a nossa vida tal como Deus a quer. E

123
convencer-nos de que, para frutificar, a semente tem que enterrar-se e morrer.
Depois, ergue-se o talo e surge a espiga; e da espiga, o pão, que será convertido por
Deus no Corpo de Cristo. Dessa forma voltamos a reunir-nos em Jesus, que foi o
nosso Semeador. Porque um só é o pão, e, embora sejamos muitos, formamos um só
corpo, pois todos participamos desse único pão.

Não percamos nunca de vista que não há fruto onde antes não houve semeadura: é
preciso, portanto, espalhar generosamente a palavra de Deus, fazer com que os
homens conheçam Cristo e, conhecendo-o, tenham fome dEle. A festa do Corpus
Christi - Corpo de Cristo, Pão da Vida - é uma boa ocasião para meditarmos nessa
fome que se observa nos homens: fome de verdade, de justiça, de unidade e de paz.
Perante a fome de paz, devemos repetir com São Paulo: Cristo é a nossa paz, pax
nostra. Os desejos de verdade hão de recordar-nos que Jesus é o caminho, a verdade
e a vida. Aos que aspiram à unidade, devemos colocá-los diante de Cristo, que ora
para que sejamos consummati in unum, consumados na unidade. A fome de justiça
deve conduzir-nos à fonte originária da concórdia entre os homens: ser e
sabermo-nos filhos do Pai, irmãos.

Paz, verdade, unidade, justiça. Que difícil parece às vezes a tarefa de transpor as
barreiras que impedem a convivência humana! E, não obstante, nós, cristãos, somos
chamados a realizar esse grande milagre da fraternidade: conseguir, com a graça de
Deus, que os homens se tratem cristãmente, levando uns as cargas dos outros ,
vivendo o mandamento do Amor, que é o vínculo da perfeição e o resumo da Lei.

É Cristo que passa, Na festa do Corpus Christi, 158

Não se nos pode ocultar que resta ainda muito por fazer. Em certa ocasião,
158 contemplando talvez o suave movimento das espigas já graúdas, disse Jesus aos seus
discípulos: A messe é grande, mas os operários são poucos. Rogai, pois, ao Senhor
da messe que mande operários para a sua messe. Como então, também agora faltam
peões que queiram suportar o peso do dia e do calor. E se nós, os que trabalhamos,
não formos fiéis, acontecerá o que descreveu o profeta Joel: Destruída a colheita, a
terra ficou de luto: porque o trigo está seco, o vinho arruinado e o azeite perdido.
Os lavradores estão confusos, os vinhateiros gritam por causa do trigo e da cevada.
Não há colheita.

Não há colheita quando não se está disposto a aceitar generosamente um trabalho


constante, que pode tornar-se longo e cansativo: lavrar a terra, semear, cuidar dos
campos, fazer a ceifa e a debulha... É na história, no tempo, que se edifica o Reino
de Deus. O Senhor confiou-nos a todos essa tarefa, e ninguém pode sentir-se
dispensado dela. Ao adorarmos e contemplarmos hoje Cristo na Eucaristia,
pensemos que ainda não chegou a hora do descanso, que a jornada continua.

Lê-se no livro dos Provérbios: Aquele que cultiva a sua terra terá pão em
abundância. Procuremos aplicar esta passagem à nossa vida espiritual: quem não
lavra o terreno de Deus, quem não é fiel à missão divina de se entregar ao serviço
dos outros, ajudando-os a conhecer Cristo, dificilmente conseguirá entender o que é
o Pão eucarístico. Ninguém aprecia o que não lhe custou esforço. Para apreciarmos e

124
amarmos a Sagrada Eucaristia, temos que percorrer o caminho de Jesus: ser trigo,
morrer para nós mesmos, ressurgir cheios de vida e dar fruto abundante: cem por
um!.

Esse caminho resume-se numa única palavra: amar. Amar é ter o coração grande,
sentir as preocupações dos que estão ao nosso lado, saber perdoar e compreender:
sacrificar-se, com Jesus Cristo, por todas as almas. Se amarmos com o coração de
Cristo, aprenderemos a servir, e defenderemos a verdade claramente e com amor.
Para amar desse modo, é preciso que cada um extirpe da sua própria vida tudo o que
estorva a vida de Cristo em nós: o apego à nossa comodidade, a tentação do
egoísmo, a tendência para a exaltação pessoal. Só se reproduzirmos em nós a vida
de Cristo, poderemos transmiti-la aos outros; só se experimentarmos a morte do grão
de trigo, poderemos trabalhar nas entranhas da terra, transformá-la por dentro,
torná-la fecunda.

É Cristo que passa, Na festa do Corpus Christi, 159

Talvez possa surgir uma vez por outra a tentação de pensar que tudo isso é tão
159 bonito quanto um sonho irrealizável. Falei de renovar a fé e a esperança;
permaneçamos firmes, com a certeza absoluta de que as nossas aspirações se verão
cumuladas pelas maravilhas de Deus. Mas para isso é indispensável que nos
ancoremos de verdade na virtude cristã da esperança.

Não nos acostumemos aos milagres que se operam diante dos nossos olhos: ao
admirável prodígio de que o Senhor desça todos os dias às mãos do sacerdote. Jesus
quer que estejamos despertos, para que nos convençamos da grandeza do seu poder,
e para que ouçamos novamente a sua promessa: Venite post me, et faciam vos fieri
piscatores hominum , se me seguirdes, farei de vós pescadores de homens; sereis
eficazes e atraireis as almas para Deus. Devemos confiar, pois, nessas palavras do
Senhor, entrar na barca, empunhar os remos, içar as velas e lançar-nos a esse mar do
mundo que Cristo nos entrega por herança. Duc in altum et laxate retia vestra in
capturam! - fazei-vos ao largo e lançai as vossas redes para pescar.

Este zelo apostólico que Cristo infundiu em nossos corações não deve esgotar-se -
extinguir-se - por falsa humildade. Se é verdade que arrastamos misérias pessoais,
também é verdade que o Senhor conta com os nossos erros. Não escapa ao seu olhar
misericordioso que nós, os homens, somos criaturas com limitações, com fraquezas,
com imperfeições, inclinadas a pecar. Porém, manda-nos que lutemos, que
reconheçamos os nossos defeitos; não para nos acovardarmos, mas para nos
arrependermos e fomentarmos o desejo de ser melhores.

Além disso, devemos lembrar-nos sempre de que somos apenas instrumentos:


Porquanto, que é Apolo, que é Paulo? Ministros daquele em quem vós crestes, e
segundo o dom que Deus conferiu a cada um. Eu plantei, Apolo regou; mas quem
deu o crescimento foi Deus. A doutrina, a mensagem que devemos propagar, tem
uma fecundidade própria e infinita, que não é nossa, mas de Cristo. É o próprio
Deus quem está empenhado em realizar a obra salvadora, em redimir o mundo.

125
É Cristo que passa, Na festa do Corpus Christi, 160

Fé, pois, sem permitir que o desalento nos domine, sem nos determos em cálculos
160 meramente humanos. Para vencer os obstáculos, é necessário começar por trabalhar,
mergulhar de corpo e alma na tarefa, de tal maneira que o próprio esforço nos leve a
abrir novos caminhos. Perante qualquer dificuldade, esta é a panacéia: santidade
pessoal, entrega ao Senhor.

A santidade consiste em viver tal como nosso Pai dos céus dispôs que vivêssemos. É
difícil? Sim, o ideal é muito elevado. Mas, por outro lado, é fácil: está ao alcance da
mão. Quando uma pessoa adoece, acontece às vezes que não se consegue encontrar
o remédio adequado. No terreno sobrenatural, não é assim. O remédio está sempre
junto de nós: é Cristo Jesus, presente na Sagrada Eucaristia, que nos dá, além disso,
a sua graça através dos outros Sacramentos que instituiu.

Repitamos com a palavra e com as obras: Senhor, confio em Ti, basta-me a tua
providência ordinária, a tua ajuda de cada dia. Não é questão de pedir a Deus
grandes milagres. Devemos, antes, pedir-lhe que aumente a nossa fé, que ilumine a
nossa inteligência, que fortaleça a nossa vontade. Jesus permanece sempre junto de
nós, e comporta-se sempre como quem é.

Desde o começo da minha pregação, tenho prevenido contra um falso


endeusamento. Não te perturbes se te conheces tal como és: assim, de barro. Não te
preocupes. Porque tu e eu somos filhos de Deus - eis o endeusamento bom -,
escolhidos pela chamada divina desde toda a eternidade: Escolheu-nos o Pai, por
Jesus Cristo, antes da criação do mundo, para que sejamos santos na sua presença.
Nós, que pertencemos especialmente a Deus, que somos seus instrumentos apesar da
nossa pobre miséria pessoal, seremos eficazes se não perdermos o conhecimento da
nossa fraqueza. As tentações dão-nos a dimensão da nossa própria fragilidade.

Se nos sentimos abatidos, por experimentarmos - talvez de um modo


particularmente vivo - a nossa mesquinhez, é o momento de nos abandonarmos por
completo, com docilidade, nas mãos de Deus. Conta-se que, certo dia, um mendigo
saiu ao encontro de Alexandre Magno e pediu-lhe uma esmola. Alexandre deteve-se
e ordenou que o fizessem senhor de cinco cidades. O pobre, confuso e aturdido,
exclamou: “Eu não pedia tanto!” E Alexandre respondeu: “Tu pediste como quem
és; eu te dou como quem sou”.

Mesmo nos momentos em que percebemos mais profundamente a nossa limitação,


podemos e devemos olhar para Deus Pai, para Deus Filho e para Deus Espírito
Santo, sabendo-nos participantes da vida divina. Não há nunca motivo suficiente
para voltarmos a cara para trás : o Senhor está ao nosso lado. Temos que ser fiéis,
leais, fazer frente às nossas obrigações, encontrando em Jesus o amor e o estímulo
para compreender os erros dos outros e vencer os nossos próprios erros. Assim,
todos esses abatimentos - os teus, os meus, os de todos os homens -, servirão
também de suporte para o reino de Cristo.

126
Reconheçamos as nossas mazelas, mas confessemos o poder de Deus. O otimismo, a
alegria, a convicção firme de que o Senhor quer servir-se de nós, têm de informar a
vida cristã. Se nos sentimos parte da Igreja Santa, se nos consideramos sustentados
pela rocha firme de Pedro e pela ação do Espírito Santo, decidir-nos-emos a cumprir
o pequeno dever de cada instante: a semear cada dia um pouco. E a colheita fará
transbordar os celeiros.

É Cristo que passa, Na festa do Corpus Christi, 161

Terminemos este tempo de oração. Saboreando na intimidade da alma a infinita


161 bondade divina, lembremo-nos de que, pelas palavras da Consagração, Cristo se
tornará realmente presente na Hóstia, com seu Corpo, seu Sangue, sua Alma e sua
Divindade. Adoremo-lo com reverência e com devoção; renovemos na sua presença
o oferecimento sincero do nosso amor; digamos-lhe sem medo que o amamos;
agradeçamos-lhe esta prova diária de misericórdia, tão cheia de ternura, e
fomentemos o desejo de nos aproximarmos da Comunhão com confiança. Eu me
surpreendo diante deste mistério de Amor: o Senhor procura como trono o meu
pobre coração, para não me abandonar se eu não me afasto dEle.

Reconfortados pela presença de Cristo, alimentados com o seu Corpo, seremos fiéis
durante esta vida terrena; e mais tarde, no céu, junto de Jesus e de sua Mãe,
chamar-nos-emos vencedores. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó
morte, o teu aguilhão? Demos, pois, graças a Deus, que nos trouxe a vitória por
Nosso Senhor Jesus Cristo.

É Cristo que passa, O Coração de Cristo, paz dos cristãos, 162

Deus Pai dignou-se conceder-nos, no coração de seu Filho, infinitos dilectionis


162 thesauros , tesouros inesgotáveis de amor, de misericórdia, de carinho. Se quisermos
descobrir a evidência de que Ele nos ama - de que não só escuta as nossas orações,
como a elas se antecipa -, basta-nos seguir o mesmo raciocínio de São Paulo: Aquele
que nem ao seu próprio Filho perdoou, antes o entregou à morte por todos nós,
como não nos dará com Ele todas as coisas?.

A graça renova o homem por dentro e converte-o, de pecador e rebelde, em seno


bom e fiel. E a fonte de todas as graças é o amor que Deus nos dedica e que nos
revelou, não apenas com palavras, mas também com fatos. Foi o amor divino que
levou a segunda Pessoa da Santíssima Trindade - o Verbo, o Filho de Deus Pai - a
assumir a nossa carne, isto é, a nossa condição humana, à exceção do pecado. E o
Verbo, a Palavra de Deus, é Verbum spirans amorem, é a Palavra da qual procede o
Amor.

O Amor revela-se-nos através da Encarnação, desse caminhar redentor de Jesus


Cristo pela nossa terra, até ao sacrifício supremo da Cruz. E, na Cruz, manifesta-se
por meio de um novo sinal: Um dos soldados abriu o lado de Jesus com uma lança,
e imediatamente saiu sangue e água. Água e sangue de Jesus, que nos falam de uma

127
entrega realizada até ao último extremo, até ao consummatum est , ao “tudo está
consumado”, por amor.

Na festa de hoje, ao considerarmos uma vez mais os mistérios centrais da nossa fé,
maravilhamo-nos de que as realidades mais profundas - o amor de Deus Pai, que nos
entrega seu Filho; o amor do Filho, que o leva a caminhar serenamente para o
Gólgota - se traduzam em gestos muito próximos dos homens. Deus não se dirige a
nós em atitude de poder e de domínio. Aproxima-se de cada um tomando forma de
servo, feito semelhante aos homens. Jesus nunca se mostra distante ou altaneiro. Por
vezes, durante os seus anos de pregação, chegamos a vê-lo desgostoso, por lhe doer
a maldade humana. Mas, se prestamos um pouco de atenção, logo compreendemos
que o desgosto e a ira lhe nascem do amor: são um novo convite para que
abandonemos a infidelidade e o pecado. Quero eu porventura a morte do ímpio - diz
o Senhor Deus -, e não antes que se converta do seu mau caminho e viva? Estas
palavras explicam-nos toda a vida de Cristo e fazem-nos compreender por que se
apresentou diante de nós com um Coração de carne, com um Coração como o nosso,
que é prova fidedigna de amor e testemunho constante do mistério inenarrável da
caridade divina.

É Cristo que passa, O Coração de Cristo, paz dos cristãos, 163

Não posso deixar de confidenciar algo que constitui para mim motivo de pena e ao
163 mesmo tempo de estímulo para agir: é pensar nos homens que ainda não conhecem
Cristo, que ainda não vislumbram a profundidade da bem-aventurança que nos
espera nos céus, e que andam pela terra como cegos, em perseguição de uma alegria
cujo verdadeiro nome ignoram, ou se perdem por caminhos que os afastam da
autêntica felicidade. Como se entende bem o que deve ter sentido o Apóstolo Paulo
na cidade de Trôade, naquela noite em que, entre sonhos, teve uma visão! Um
homem macedônio postou-se diante dele, rogando-lhe: passa a Macedônia e
ajuda-nos. Terminada a visão, logo procuraram - Paulo e Timóteo - passar à
Macedônia, certos de que Deus os chamava a pregar o Evangelho àquelas gentes.

Não sentimos também que Deus nos chama, que - através de tudo o que sucede à
nossa volta - nos incita a proclamar a boa nova da vinda de Jesus? Mas às vezes nós,
cristãos, apoucamos a nossa vocação, caímos na superficialidade e perdemos o
tempo em disputas e rixas. Ou, o que é pior ainda, não falta quem se escandalize
falsamente com o modo como os outros vivem certos aspectos da fé ou
determinadas devoções; e, em lugar de abrirem eles o caminho, esforçando-se por
vivê-las da maneira que consideram reta, se põem a destruir e a criticar. É claro que
podem surgir, e de fato surgem, deficiências na vida dos cristãos. Mas o que importa
não somos nós e as nossas misérias: só Ele, só Jesus, é que importa. É de Cristo que
devemos falar, não de nós mesmos.

As reflexões que acabo de fazer vão ao encontro de certos comentários sobre uma
suposta crise na devoção ao Sagrado Coração de Jesus. Não há tal crise. A
verdadeira devoção foi e continua a ser nos nossos dias uma atitude viva, cheia de
sentido humano e de sentido sobrenatural. Seus frutos têm sido e continuam a ser
frutos saborosos de conversão, de entrega, de cumprimento da vontade de Deus, de

128
penetração amorosa nos mistérios da Redenção.

Coisa bem diversa, pelo contrário, são as manifestações do sentimentalismo


ineficaz, vazio de doutrina, empanturrado de pietismo. Eu também não gosto das
imagens adocicadas, dessas representações do Sagrado Coração que não podem
inspirar devoção alguma a pessoas com senso comum e com senso sobrenatural de
cristãos. Mas não é prova de boa lógica converter certos abusos práticos, que
acabam desaparecendo por si, num problema doutrinal, teológico.

Se há crise, é no coração dos homens, que - por miopia, por egoísmo, por estreiteza
de vistas - não conseguem vislumbrar o insondável amor de Cristo Senhor Nosso.
Desde que se instituiu a festa de hoje, a liturgia da Santa Igreja soube oferecer o
alimento da verdadeira piedade, incluindo entre as leituras da missa um texto de São
Paulo em que nos é proposto todo um programa de vida contemplativa -
conhecimento e amor, oração e vida -, e que começa por esta devoção ao Coração de
Jesus. O próprio Deus, pela boca do Apóstolo, nos convida a avançar por esse
caminho: Que Cristo habite pela fé em vossos corações; e que, arraigados e
alicerçados na caridade, possais compreender com todos os santos qual a
amplitude e a grandeza, a altura e a profundidade do mistério; e conhecer também
aquele amor de Cristo que excede todo o conhecimento, para que estejais repletos
de toda a plenitude de Deus.

A plenitude de Deus é-nos revelada e conferida em Cristo, no amor de Cristo, no


Coração de Cristo. Porque é o Coração dAquele em quem habita toda a plenitude da
divindade corporalmente. Por isso, se perdermos de vista este grande desígnio de
Deus - a corrente de amor instaurada no mundo pela Encarnação, pela Redenção e
pelo Pentecostes -, não poderemos compreender as delicadezas do Coração do
Senhor.

É Cristo que passa, O Coração de Cristo, paz dos cristãos, 164

Consideremos toda a riqueza que se encerra nestas palavras: Sagrado Coração de


164 Jesus.

Quando falamos de um coração humano, não nos referimos apenas aos sentimentos;
aludimos à pessoa toda - que quer, que ama, que convive com os outros. E, no modo
de os homens se exprimirem, que a Sagrada Escritura acolheu para nos dar a
entender as coisas divinas, o coração é considerado como o resumo e a fonte, a
expressão e o fundo íntimo dos pensamentos, das palavras, das ações. Um homem
vale o que valer o seu coração, poderíamos dizer com palavras da nossa linguagem.

Ao coração pertencem a alegria: Alegre-se meu coração com o teu auxílio ; o


arrependimento: Meu coração é como cera que se derrete dentro do meu peito ; o
louvor a Deus: Do meu coração brota formoso canto ; a decisão necessária para
ouvir o Senhor: Meu coração está disposto ; a vigília amorosa: Eu durmo, mas meu
coração vigia. E ainda a dúvida e o temor: Não se perturbe o vosso coração, crede
em Mim.

129
O coração não se limita a sentir; também sabe e entende. A lei de Deus é recebida
no coração e nele permanece escrita. E a Escritura acrescenta: Da abundância do
coração fala a boca. O Senhor lançou em rosto a uns escribas esta censura: Por que
pensais mal em vossos corações?. E, para resumir todos os pecados que um homem
pode cometer, disse: Do coração saem os maus pensamentos, os homicídios, os
adultérios, as fornicações, os furtos, os falsos testemunhos, as blasfêmias.

Quando na Sagrada Escritura se fala do coração, não se alude a um sentimento


passageiro, que produz emoção ou lágrimas. Fala-se do coração para indicar a
pessoa que, como o próprio Jesus Cristo nos manifestou, se orienta toda ela - alma e
corpo -, para o que considera seu bem: porque onde está o teu tesouro, aí está o teu
coração.

Por isso, quando falamos do Coração de Jesus, pomos de manifesto a certeza do


amor de Deus e a verdade da sua entrega por nós. Recomendar a devoção a esse
Sagrado Coração equivale a recomendar que nos orientemos integralmente - com
tudo o que somos: alma, sentimentos, pensamentos, palavras e ações, trabalhos e
alegrias - para Jesus todo.

Nisto se traduz a verdadeira devoção ao Coração de Jesus: em conhecer a Deus e


nos conhecermos a nós mesmos, e em olhar para Jesus e recorrer a Jesus, que nos
anima, nos ensina, nos guia. A única superficialidade que pode existir nesta devoção
é a do homem que, não sendo integralmente humano, não consegue alcançar a
realidade de um Deus feito carne.

É Cristo que passa, O Coração de Cristo, paz dos cristãos, 165

Jesus na Cruz, com o coração trespassado de Amor pelos homens, é uma resposta
165 eloqüente - as palavras são desnecessárias - à pergunta sobre o valor das coisas e das
pessoas. Valem tanto os homens, a sua vida e a sua felicidade, que o próprio Filho
de Deus se entrega para os redimir, para os purificar, para os elevar. Quem não
amará o seu Coração tão ferido?, perguntava uma alma contemplativa, ao
aperceber-se disso. E continuava perguntando: Quem não retribuirá o amor com
amor? Quem não abraçará um Coração tão puro? Nós, que somos de carne,
pagaremos amor com amor, abraçaremos o nosso Ferido, a quem os ímpios
atravessaram as mãos e os pés, o lado e o Coração. Peçamos que se digne prender
nosso coração com o vínculo do seu amor e feri-lo com uma lança, pois é ainda
duro e impenitente.

São pensamentos, afetos, colóquios que as almas enamoradas entretiveram com


Jesus desde sempre. Mas, para entender esta linguagem, para saber de verdade o que
é o coração humano, e o Coração de Cristo, e o amor de Deus, é preciso ter fé e
humildade. Foi com fé e humildade que Santo Agostinho nos deixou estas palavras
universalmente famosas: Para Ti nos criaste, Senhor, e o nosso coração está
inquieto enquanto em Ti não descansar.

Quando descura a humildade, o homem passa a querer apropriar-se de Deus, não


daquela maneira divina que o próprio Cristo tornou possível quando disse: Tomai e

130
comei: isto é o meu corpo , mas tentando reduzir a grandeza divina aos limites
humanos. A razão, essa razão fria e cega - que não é a inteligência nascida da fé,
nem sequer a inteligência reta da criatura capaz de saborear e amar as coisas -,
converte-se na sem-razão de quem tudo submete às suas pobres experiências
habituais, que amesquinham a verdade sobrenatural e recobrem o coração humano
de uma crosta insensível às moções do Espírito Santo. Nossa pobre inteligência
estaria perdida se não fosse o poder misericordioso de Deus, que rasga as fronteiras
da nossa miséria: Dar-vos-ei um coração novo e revestir-vos-ei de um novo espírito;
tirarei o vosso coração de pedra e dar-vos-ei em seu lugar um coração de carne. E
a alma recupera a luz e enche-se de alegria ante as promessas da Escritura Santa.

Eu tenho pensamentos de paz e não de aflição , declarou Deus por boca do profeta
Jeremias. A liturgia aplica essas palavras a Jesus, porque nEle se manifesta
claramente que é assim que Deus nos ama. Não vem condenar-nos, não vem
lançar-nos em rosto a nossa indigência ou a nossa mesquinhez: vem salvar-nos,
perdoar-nos, desculpar-nos, trazer-nos a paz e a alegria. Se reconhecermos esta
maravilhosa relação do Senhor com seus filhos, nossos corações mudarão
necessariamente, e veremos abrir-se diante dos nossos olhos um panorama
absolutamente novo, cheio de relevo, de profundidade e de luz.

É Cristo que passa, O Coração de Cristo, paz dos cristãos, 166

Mas vejamos bem: Deus não nos declara que, em lugar do coração, nos dará uma
166 vontade de puro espírito. Não. Dá-nos um coração, e um coração de carne, como o
de Cristo. Eu não disponho de um coração para amar a Deus, e de outro para amar as
pessoas da terra. Com o mesmo coração com que amei os meus pais e estimo os
meus amigos, com esse mesmo coração amo a Cristo, e o Pai, e o Espírito Santo, e
Santa Maria. Não me cansarei de repeti-lo: temos que ser muito humanos; porque,
de outro modo, também não poderemos ser divinos.

O amor humano, o amor aqui em baixo na terra, quando é verdadeiro, ajuda-nos a


saborear o amor divino. E assim entrevemos o amor com que chegaremos a gozar de
Deus e aquele que nos há de unir uns aos outros, lá no céu, quando o Senhor for
tudo em todas as coisas. E ao começarmos a entender o que é o amor divino,
seremos impelidos a mostrar-nos habitualmente mais compassivos com os outros,
mais generosos, mais dedicados.

Temos que dar o que recebemos, ensinar o que aprendemos. Sem arrogância, com
simplicidade, temos que fazer os outros participarem desse conhecimento do amor
de Cristo. Ao realizar o seu trabalho, ao exercer a profissão na sociedade, cada um
pode e deve converter as suas ocupações numa tarefa de serviço. O trabalho bem
acabado - que progride e faz progredir, que tem em conta os avanços da cultura e da
técnica - desempenha uma grande função, que será sempre útil à humanidade inteira,
desde que tenha por motivo a generosidade, não o egoísmo; o bem de todos, não o
proveito próprio: desde que esteja impregnado de sentido cristão da vida.

É no âmbito desse trabalho, na própria trama das relações humanas, que devemos
manifestar a caridade de Cristo e seus resultados concretos de amizade, de

131
compreensão, de afeto humano, de paz. Assim como Cristo passou fazendo o bem
por todos os caminhos da Palestina, assim temos nós que desenvolver uma grande
sementeira de paz pelos caminhos humanos da família, da sociedade civil, das
relações profissionais, da cultura e do descanso. Será a melhor prova de que nos
chegou ao coração o reino de Deus: Nós sabemos que fomos transferidos da morte
para a vida - escreve o Apóstolo São João - porque amamos os nossos irmãos.

Mas ninguém pode viver esse amor se não se formar na escola do Coração de Jesus.
Só se olharmos e contemplarmos o Coração de Cristo, é que conseguiremos que o
nosso se livre do ódio e da indiferença; somente assim saberemos reagir cristãmente
perante os sofrimentos alheios e perante a dor.

Recordemos a cena relatada por São Lucas, quando Cristo andava pelas
proximidades da cidade de Naim. Jesus vê a angústia daquelas pessoas com quem se
cruzou ocasionalmente. Podia ter passado ao largo, ou esperar por um chamado, por
um pedido. Mas nem se afasta nem espera. Toma Ele próprio a iniciativa, movido
pela aflição de uma viúva que havia perdido tudo o que lhe restava: o filho.

O evangelista explica que Jesus se compadeceu: talvez se tivesse emocionado


externamente, como por ocasião da morte de Lázaro. Jesus Cristo não era nem é
insensível ao sofrimento que nasce do amor, nem se compraz em separar os filhos de
seus pais: passa além da morte para dar a vida, para que estejam perto os que se
amam, embora exija antes e ao mesmo tempo a proeminência do Amor divino, que
deve informar a autêntica existência cristã.

Cristo tem consciência de estar rodeado de uma multidão que ficará atônita perante
o milagre e irá apregoando o acontecido por toda a região. Mas o Senhor não se
comporta artificialmente, não pretende realizar um grande gesto: sente-se
simplesmente afetado pelo sofrimento daquela mulher e não pode deixar de a
consolar. Aproximou-se dela e disse-lhe: Não chores. Foi como se lhe dissesse: não
te quero ver em lágrimas, porque eu vim trazer a alegria e a paz à terra. A seguir,
vem o milagre, manifestação do poder de Cristo-Deus. Mas antes tivera lugar a
comoção de sua alma, manifestação evidente da ternura do coração de
Cristo-Homem.

É Cristo que passa, O Coração de Cristo, paz dos cristãos, 167

Se não aprendermos de Jesus, não amaremos nunca. Se pensarmos, como alguns,


167 que conservar o coração limpo, digno de Deus, significa não misturá-lo, não
contaminá-lo com afetos humanos, então o resultado lógico será tornarmo-nos
insensíveis à dor dos outros. Só seremos capazes de uma caridade oficial, seca e
sem alma; não da verdadeira caridade de Jesus Cristo, que é ternura, calor humano.
Com isto não dou pé a falsas teorias, que são tristes desculpas para desviar os
corações de Deus e levá-los a más ocasiões e à perdição.

Na festa de hoje, temos de pedir ao Senhor que nos conceda um coração bom, capaz
de se compadecer das penas das criaturas, capaz de compreender que, para remediar
os tormentos que acompanham e não poucas vezes angustiam as almas neste mundo,

132
o verdadeiro bálsamo é o amor, a caridade: todos os outros consolos apenas servem
para distrair por um momento, e deixar mais tarde um saldo de amargura e
desespero.

Se queremos ajudar os outros, temos que amá-los - insisto - com um amor que seja
compreensão e entrega, afeto e voluntária humildade. Assim entenderemos por que
o Senhor decidiu resumir toda a Lei nesse duplo mandamento que é na realidade um
só: o amor a Deus e o amor ao próximo, com todo o coração.

Talvez pensemos agora que, às vezes, nós os cristãos - não os outros: tu e eu - nos
esquecemos das aplicações mais elementares desse dever. Talvez pensemos em
tantas injustiças que não se remedeiam, em abusos que não se corrigem, em
situações de discriminação que se transmitem de geração em geração sem que se
comece a pôr em prática uma solução de fundo.

Não posso nem me compete propor a forma concreta de resolver esses problemas.
Mas, como sacerdote de Cristo, é meu dever recordar o que diz a Escritura Santa.
Meditemos na cena do Juízo descrita pelo próprio Jesus: Afastai-vos de num,
malditos, e ide para o fogo eterno, que foi preparado para o diabo e seus anjos.
Porque tive fome e não me destes de comer; tive sede e não me destes de beber; fui
peregrino e não me recebestes; nu, e não me cobristes; enfermo e encarcerado, e
não me visitastes.

Um homem e uma sociedade que não reajam perante as tribulações ou as injustiças,


e não se esforcem por aliviá-las, não são nem homem nem sociedade à medida do
amor do Coração de Cristo. Os cristãos - conservando sempre a mais ampla
liberdade à hora de estudar e de aplicar as diversas soluções, e, portanto, com um
lógico pluralismo - devem identificar-se no mesmo empenho em servir a
humanidade. De outro modo, o seu cristianismo não será a Palavra e a Vida de
Jesus: será um disfarce, um logro perante Deus e perante os homens.

É Cristo que passa, O Coração de Cristo, paz dos cristãos, 168

Mas não quero deixar de propor ainda uma outra consideração: temos que lutar sem
168 esmorecimento por fazer o bem, precisamente por sabermos como é difícil que nós,
os homens, nos decidamos seriamente a praticar a justiça - e ainda falta muito para
que a convivência terrena se inspire no amor, e não no ódio ou na indiferença. Não
ignoramos também que, embora se consiga atingir uma razoável distribuição dos
bens e uma harmoniosa organização da sociedade, jamais desaparecerá a dor da
doença, da incompreensão ou da solidão, da morte das pessoas que amamos, da
experiência das nossas limitações.

Diante desses pesares, o cristão só tem uma resposta autêntica, uma resposta que é
definitiva: Cristo na Cruz, Deus que sofre e que morre, Deus que nos entrega o seu
coração, aberto por uma lança, por amor a todos. Nosso Senhor abomina as
injustiças e condena quem as comete. Mas respeita a liberdade de cada indivíduo e
por isso permite que elas existam. Deus Nosso Senhor não causa a dor das criaturas,
mas tolera-a porque - depois do pecado original - ela faz parte da condição humana.

133
Contudo, seu Coração cheio de Amor pelos homens levou-o a carregar, juntamente
com a Cruz, todos esses tormentos: o nosso sofrimento, a nossa tristeza, a nossa
angústia, a nossa fome e sede de justiça.

A doutrina cristã sobre a dor não é um programa de consolos fáceis. É, em primeiro


lugar, uma doutrina de aceitação do sofrimento, que é de fato inseparável de toda a
vida humana. Não posso ocultar - com alegria, porque sempre preguei e procurei
viver que onde está a Cruz está Cristo, o Amor - que a dor tem aparecido
freqüentemente em minha vida; e mais de uma vez tive vontade de chorar. Em
outras ocasiões, senti que crescia o meu desgosto perante a injustiça e o mal. E
provei o dissabor de ver que não podia fazer nada, que, apesar dos meus desejos e
dos meus esforços, não conseguia melhorar certas situações iníquas.

Quando falo de dor, não falo apenas de teorias. Nem me limito a registrar
experiências alheias quando confirmo que, se alguma vez sentimos vacilar a alma
perante a realidade do sofrimento, o remédio é olhar para Cristo. A cena do Calvário
proclama a todos que as aflições devem ser santificadas, se vivemos unidos à Cruz.

Porque as nossas tribulações, cristãmente vividas, se convertem em reparação, em


desagravo, em participação no destino e na vida de Jesus, que voluntariamente
experimentou, por Amor aos homens, toda a gama da dor, todo o gênero de
tormentos. Nasceu, viveu e morreu pobre; foi atacado, insultado, difamado,
caluniado e condenado injustamente; conheceu a traição e o abandono dos
discípulos; experimentou a solidão e as amarguras do suplício e da morte. Ainda
hoje Cristo continua a sofrer nos seus membros, na humanidade inteira que povoa a
terra, e da qual Ele é a Cabeça, o Primogênito e o Redentor.

A dor tem um lugar nos planos de Deus. Esta é a realidade, ainda que nos custe
entendê-la. O próprio Jesus Cristo, como homem, teve dificuldade em suportá-la:
Pai, se é possível, afasta de mim este cálice; não se faça, porém, a minha vontade,
mas a tua. Nesta tensão entre o suplício e a aceitação da vontade do Pai, Jesus vai
para a morte serenamente, perdoando aos que o crucificam.

Mas precisamente essa aceitação sobrenatural da dor representa, ao mesmo tempo, a


maior conquista. Morrendo na Cruz, Jesus venceu a morte: da morte, Deus tira a
vida. A atitude de um filho de Deus não é a de quem se resigna à sua trágica
desventura; é antes a satisfação de quem saboreia antecipadamente a vitória. Em
nome desse amor vitorioso de Cristo, os cristãos devem lançar-se por todos os
caminhos da terra, para serem semeadores de paz e de alegria, com a sua palavra e
com as suas obras. Temos de lutar - é uma luta de paz - contra o mal, contra a
injustiça, contra o pecado, para proclamar assim que a atual condição humana não é
a definitiva, que o amor de Deus, manifestado no Coração de Cristo, alcançará o
glorioso triunfo espiritual dos homens.

É Cristo que passa, O Coração de Cristo, paz dos cristãos, 169

Evocávamos antes os acontecimentos de Naim. Poderíamos citar agora muitos


169 outros, porque os Evangelhos estão cheios de cenas semelhantes. Esses relatos

134
sempre comoveram e continuarão a comover os corações das criaturas; porque não
encerram apenas o gesto sincero de um homem que se compadece dos seus
semelhantes, mas são essencialmente a revelação da imensa caridade do Senhor. O
Coração de Jesus é o Coração de Deus encarnado, do Emmanuel - Deus conosco.

A Igreja, unida a Cristo, nasce de um coração ferido. É desse Coração, aberto de


par em par, que nos é transmitida a vida. Embora de passagem, como não recordar
aqui os Sacramentos, através dos quais Deus opera em nós e nos faz participar da
força redentora de Cristo? Como não recordar com particular agradecimento o
Santíssimo Sacramento da Eucaristia, o Santo Sacrifício do Calvário e a sua
constante renovação incruenta na nossa Missa? Jesus entrega-se a nós em alimento;
Jesus Cristo vem até nós. E por isso tudo mudou, e no nosso ser se manifestam
forças - a ajuda do Espírito Santo - que se apossam da nossa alma, que informam as
nossas ações, o nosso modo de pensar e de sentir. O Coração de Cristo é paz para o
cristão.

O fundamento da entrega que o Senhor nos pede não se encontra apenas nos nossos
desejos ou nas nossas forças, tantas vezes acanhados e impotentes; apóia-se
primeiramente nas graças que nos alcançou o Amor do Coração de Deus feito
Homem. Por isso podemos e devemos perseverar na nossa vida interior de filhos de
Nosso Pai que está nos céus, sem ceder ao desânimo ou ao desalento. Gosto de
mostrar como o cristão, na sua existência habitual e corrente, nos pormenores mais
simples, nas circunstâncias normais da sua jornada de trabalho, põe em prática a fé,
a esperança e a caridade, porque é nisso que reside a essência da conduta de uma
alma que conta com o auxílio divino e que, no exercício dessas virtudes teologais,
encontra a alegria, a força e a serenidade.

Estes são os frutos da paz de Cristo, da paz que nos traz o seu Coração Sacratíssimo.
Porque - digamo-lo uma vez mais - o amor de Jesus pelos homens é um dos aspectos
insondáveis do mistério divino, do amor do Filho pelo Pai e pelo Espírito Santo. O
Espírito Santo, laço de amor entre o Pai e o Filho, encontra no Verbo um Coração
humano.

Não é possível falar destas realidades centrais da nossa fé sem percebermos as


limitações da inteligência humana e as grandezas da Revelação. Mas, embora não
possamos abarcar essas verdades, embora a nossa razão se pasme diante delas, nós
as cremos humilde e firmemente: sabemos, apoiados no testemunho de Cristo, que
são assim; que o Amor, no seio da Trindade, se derrama sobre todos os homens por
meio do Amor do Coração de Jesus.

É Cristo que passa, O Coração de Cristo, paz dos cristãos, 170

Viver no Coração de Jesus, unir-se a Ele estreitamente é, portanto, converter-se em


170 morada de Deus. Aquele que me ama será amado por meu Pai , anunciou-nos o
Senhor. E Cristo e o Pai, no Espírito Santo, vêm à alma e fazem nela a sua morada.

Quando compreendemos estes fundamentos - mesmo em parte -, a nossa maneira de


ser transforma-se. Temos fome de Deus e fazemos nossas as palavras do Salmo:

135
Meu Deus, eu Te busco solícito; sedenta de Ti está minha alma; minha carne Te
deseja como terra árida, sem água. E Jesus, que fomentou as nossas ânsias, sai ao
nosso encontro e diz-nos: Se alguém tem sede, venha a Mim e beba. Oferece-nos o
seu Coração, para que encontremos nele o nosso descanso e a nossa fortaleza. Se
aceitarmos o seu chamado, perceberemos como as suas palavras são verdadeiras, e
aumentará a nossa fome e a nossa sede, até desejarmos que Deus estabeleça em
nosso coração o lugar do seu repouso e não afaste de nós o seu calor e a sua luz.

Ignem veni mittere in terram, et quid volo nisi ut accendatur? Vim trazer fogo à
terra, e que quero senão que arda? Agora que nos abeiramos um pouco do fogo do
Amor de Deus, deixemos que seu impulso mova as nossas vidas, sonhemos com a
possibilidade de levar o fogo divino de um extremo ao outro do mundo, de o dar a
conhecer aos que nos rodeiam, para que também eles conheçam a paz de Cristo e,
com ela, encontrem a felicidade. Um cristão que viva unido ao Coração de Jesus não
pode ter outras metas: a paz na sociedade, a paz na Igreja, a paz na sua própria alma,
a paz de Deus, que se consumará quando vier a nós o seu reino.

Maria, Regina Pacis, Rainha da Paz, porque tiveste fé e acreditaste que se cumpriria
o anúncio do Anjo, ajuda-nos a crescer na fé, a ser firmes na esperança, a aprofundar
no Amor. Porque isso é o que hoje quer de nós o teu Filho, ao mostrar-nos o seu
Sacratíssimo Coração.

É Cristo que passa, A Virgem Santa, causa da nossa alegria, 171

Assumpta est Maria in coelum, gaudent angeli. Maria foi levada por Deus aos céus,
171 em corpo e alma. Há alegria entre os anjos e entre os homens. Por quê este gozo
íntimo que hoje experimentamos, com o coração parecendo querer saltar do peito,
com a alma inundada de paz? Porque celebramos a glorificação da nossa Mãe e é
natural que nós, seus filhos, sintamos um júbilo especial ao vermos como é honrada
pela Trindade Beatíssima.

Cristo, seu santíssimo Filho, nosso irmão, no-la deu por Mãe no Calvário, quando
disse a São João: Eis aí a tua Mãe. E nós a recebemos, com o discípulo amado,
naquele instante de imenso desconsolo. Santa Maria acolheu-nos na dor, quando se
cumpriu a antiga profecia: E uma espada trespassará a tua alma. Todos somos seus
filhos; Ela é Mãe da humanidade inteira. E agora a humanidade comemora a sua
inefável Assunção: Maria sobe aos céus, Filha de Deus Pai, Mãe de Deus Filho,
Esposa de Deus Espírito Santo. Mais do que Ela, só Deus.

É um mistério de amor. A razão humana não consegue compreendê-lo. Só a fé pode


esclarecer como é que uma criatura foi elevada a uma dignidade tão grande, até se
converter no centro amoroso para o qual convergem as complacências da Trindade.
Sabemos que é um segredo divino. Mas, tratando-se da nossa Mãe, sentimo-nos
capazes de entendê-lo mais do que outras verdades de fé, se é possível falar assim.

Como nos teríamos comportado se tivéssemos podido escolher a nossa mãe? Penso
que teríamos escolhido a que temos, cumulando-a de todas as graças. Foi o que
Cristo fez, pois, sendo Onipotente, Sapientíssimo e o próprio Amor , seu poder

136
realizou todo o seu querer.

Observemos como os cristãos descobriram há tanto tempo esse raciocínio: Convinha


- escreve São João Damasceno - que aquela que no parto havia conservado íntegra
a sua virgindade, conservasse sem nenhuma corrupção o seu corpo depois da
morte. Convinha que aquela que tinha trazido em seu seio o Criador feito criança,
habitasse na morada divina. Convinha que a Esposa de Deus entrasse na casa
celestial. Convinha que aquela que tinha visto seu Filho na Cruz, recebendo assim
em seu coração a dor de que havia estado livre no parto, o contemplasse sentado a
direita do Pai. Convinha que a Mãe de Deus possuísse o que pertence ao seu Filho,
e que fosse honrada como Mãe e Escrava de Deus por todas as criaturas.

Os teólogos têm formulado com freqüência um argumento semelhante, destinado a


captar de algum modo o sentido desse cúmulo de graças de que Maria se encontra
revestida e que culmina com a sua Assunção aos céus. Dizem: Convinha; Deus
podia fazê-lo; portanto, fê-lo. É a explicação mais clara da razão pela qual o Senhor
concedeu à sua Mãe todos os privilégios, desde o primeiro instante da sua conceição
imaculada. Ficou livre do poder de Satanás; é formosa - tota pulchra! -, limpa, pura
na alma e no corpo.

É Cristo que passa, A Virgem Santa, causa da nossa alegria, 172

Mas prestemos atenção: se, por um lado, Deus quis exaltar sua Mãe, por outro, não
172 há dúvida de que, durante a sua vida terrena, Maria não foi poupada nem à
experiência da dor, nem ao cansaço do trabalho, nem ao claro-escuro da fé. Aquela
mulher do povo que um dia prorrompeu em louvores a Jesus, exclamando:
Bem-aventurado o ventre que te trouxe e os peitos que te amamentaram, o Senhor
responde: Antes bem-aventurados os que escutam a palavra de Deus e a põem em
prática. Era o elogio de sua Mãe, do seu fiat , do faça-se sincero, rendido, posto em
prática até às últimas conseqüências, e que não se manifestou em ações aparatosas,
mas no sacrifício escondido e silencioso de cada dia.

Ao meditarmos nestas verdades, compreendemos um pouco mais a lógica de Deus,


percebemos que o valor sobrenatural da nossa vida não depende de que se tornem
realidade as grandes façanhas que às vezes forjamos com a imaginação, mas da
aceitação fiel da vontade divina, de uma disposição generosa em face dos pequenos
sacrifícios diários.

Para sermos divinos, para nos endeusarmos, temos que começar por ser muito
humanos, vivendo de frente para Deus a nossa condição de homens comuns,
santificando esta aparente pequenez. Assim viveu Maria. A cheia de graça, aquela
que é objeto das complacências de Deus, aquela que está acima dos anjos e dos
santos, teve uma existência normal. Maria é uma criatura como nós, com um
coração como o nosso, capaz de gozos e alegrias, de sofrimentos e lágrimas. Antes
de Gabriel lhe ter comunicado o querer de Deus, Nossa Senhora ignorava que havia
sido escolhida desde toda a eternidade para ser a Mãe do Messias. Considera-se
cheia de baixeza. Por isso reconhece logo, com profunda humildade, que nEla fez
grandes coisas Aquele que é Todo-Poderoso.

137
A pureza, a humildade e a generosidade de Maria contrastam com a nossa miséria,
com o nosso egoísmo. É natural que, depois de nos apercebermos disso, nos
sintamos impelidos a imitá-la; somos criaturas de Deus, como Ela, e basta que nos
esforcemos por ser fiéis, para que também em nós o Senhor faça grandes coisas.
Não será obstáculo a nossa pouca valia, porque Deus escolhe o que vale pouco para
que assim brilhe melhor a potência do seu amor.

É Cristo que passa, A Virgem Santa, causa da nossa alegria, 173

Nossa Mãe é modelo de correspondência à graça, e, ao contemplarmos a sua vida, o


173 Senhor nos dará luz para que saibamos divinizar a nossa existência de todos os dias.
Ao longo do ano, quando celebramos as festas marianas, e em bastantes momentos
de cada dia, nós, cristãos, pensamos muitas vezes na Virgem. Se aproveitarmos
esses instantes, imaginando como a nossa Mãe se comportaria nas tarefas que temos
que realizar, iremos aprendendo pouco a pouco, e acabaremos por parecer-nos com
Ela, como os filhos se parecem com sua Mãe.

Imitar, em primeiro lugar, o seu amor. A caridade não se limita aos sentimentos:
deve estar presente nas palavras, mas sobretudo nas obras. A Virgem não se limitou
a dizer fiat, mas cumpriu em todos os momentos essa decisão firme e irrevogável.
Assim também nós: quando o amor de Deus nos aguilhoar e soubermos o que Ele
quer, deveremos comprometer-nos a ser fiéis, leais, mas a sê-lo efetivamente.
Porque nem todo o que diz Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus; mas o que faz
a vontade do meu Pai celestial, esse entrará no reino dos céus.

Temos que imitar a sua natural e sobrenatural elegância. Maria é uma criatura
privilegiada na história da salvação: nEla o Verbo se fez carne e habitou entre nós.
Foi testemunha delicada, que passa despercebida; não foi amiga de receber louvores,
porque não ambicionou a sua própria glória. Maria assiste aos mistérios da infância
de seu Filho, mistérios, se assim se pode dizer, cheios de normalidade; mas à hora
dos grandes milagres e das aclamações populares, desaparece. Em Jerusalém,
quando Cristo - montado sobre um jumentinho - é vitoriado como Rei, Maria não se
encontra presente. Mas reaparece junto da Cruz, quando todos fogem. Este modo de
se comportar tem o sabor - não procurado - da grandeza, da profundidade, da
santidade da sua alma.

Procuremos aprender também seu exemplo de obediência a Deus, nessa delicada


combinação de escravidão e fidalguia. Em Maria não há nada que lembre a atitude
das virgens néscias, que obedecem, mas estouvadamente. Nossa Senhora ouve com
atenção o que Deus quer, pondera o que não entende, pergunta o que não sabe.
Depois, entrega-se por completo ao cumprimento da vontade divina: Eis aqui a
escrava do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra. Vemos a maravilha?
Santa Maria, mestra de toda a nossa conduta, ensina-nos agora que a obediência a
Deus não é servilismo, não subjuga a consciência; pelo contrário, move-nos
interiormente a descobrir a liberdade dos filhos de Deus.

138
É Cristo que passa, A Virgem Santa, causa da nossa alegria, 174

O Senhor ter-nos-á feito descobrir muitos outros traços da correspondência fiel da


174 Santíssima Virgem, que de per si nos convidam a tomá-los como modelo: sua
pureza, sua humildade, sua firmeza de caráter, sua generosidade, sua fidelidade...
Mas eu gostaria de falar de um aspecto que abrange todos os outros, porque é o
clima do progresso espiritual: a vida de oração.

Para aproveitarmos a graça que nossa Mãe nos traz no dia de hoje, e para
secundarmos em qualquer momento as inspirações do Espírito Santo, pastor de
nossas almas, devemos estar comprometidos seriamente numa atividade de íntima
relação com Deus. Não nos podemos esconder no anonimato: se não for um
encontro pessoal com Deus, a vida interior não existe. A superficialidade não é
cristã. Admitir a rotina na conduta ascética equivale a assinar o atestado de óbito da
alma contemplativa. Deus nos procura um por um; e temos que responder-lhe um
por um: Aqui estou, Senhor, porque me chamaste.

Oração - todos o sabemos - é falar com Deus. Mas podemos perguntar-nos: falar, de
quê? De que há de ser, senão das coisas de Deus e das que preenchem os nossos
dias? Do nascimento de Jesus, do seu caminhar por este mundo, do seu ocultamento
e da sua pregação, dos seus milagres, da sua Paixão Redentora, da sua Cruz e da sua
Ressurreição. E na presença do Deus Uno e Trino, tendo por Medianeira Santa
Maria e por advogado São José, Nosso Pai e Senhor - a quem tanto amo e venero -,
falaremos do nosso trabalho de todos os dias, da família, das relações de amizade,
dos grandes projetos e das pequenas mesquinharias.

O tema da minha oração é o tema da minha vida. Eu faço assim. E à vista desta
situação em que me encontro, surge naturalmente o propósito, determinado e firme,
de mudar, de melhorar, de ser mais dócil ao amor de Deus. Um propósito sincero,
concreto. E não pode faltar o pedido urgente, mas confiado, de que o Espírito Santo
não nos abandone, porque tu és, Senhor, a minha fortaleza.

Somos cristãos comuns, trabalhamos em campos muito diferentes; toda a nossa


atividade corre pelos trilhos da normalidade; tudo se desenvolve a um ritmo
previsível. Os dias parecem iguais, até monótonos... Pois bem: esse programa,
aparentemente tão comum, tem um valor divino: é algo que interessa a Deus, porque
Cristo quer encarnar-se nos nossos afazeres, animando por dentro as ações mais
humildes.

Este pensamento é uma realidade sobrenatural, límpida, inequívoca; não é uma


consideração destinada a consolar, a confortar aqueles que, como nós, não
conseguirão gravar seus nomes no livro de ouro da história. Cristo está interessado
nesse trabalho que temos que realizar - uma e mil vezes - no escritório, na fábrica,
na oficina, na escola, no campo, no exercício da profissão manual ou intelectual;
como está interessado no sacrifício escondido que representa não derramarmos
sobre os outros o fel do nosso mau humor.

139
Repassemos na oração estas considerações, sirvamo-nos delas precisamente para
dizer a Jesus que o adoramos, e estaremos sendo contemplativos no meio do mundo,
no meio do ruído da rua: em todos os lugares. Esta é a primeira lição, na escola da
vida de relação com Jesus Cristo. Dessa escola, Maria é a melhor mestra, porque a
Virgem manteve sempre essa atitude de fé, de visão sobrenatural, perante tudo o que
acontecia à sua volta: Conservava todas essas coisas, ponderando-as em seu
coração.

Supliquemos hoje a Santa Maria que nos torne contemplativos, que nos ensine a
compreender as chamadas contínuas que o Senhor nos dirige, batendo à porta do
nosso coração. Peçamos-lhe: Mãe nossa, tu, que trouxeste à terra Jesus, por quem
nos é revelado o amor do nosso Pai-Deus, ajuda-nos a reconhecê-lo no meio das
ocupações de cada dia; remove a nossa inteligência e a nossa vontade, para que
saibamos escutar a voz de Deus, o impulso da graça.

É Cristo que passa, A Virgem Santa, causa da nossa alegria, 175

Mas não pensemos só em nós mesmos: temos que dilatar o coração até abarcar a
175 humanidade inteira. Pensemos, antes de mais nada, nos que nos rodeiam - parentes,
amigos, colegas -, e vejamos como podemos levá-los a sentir mais profundamente a
amizade com Nosso Senhor. Se se trata de pessoas retas e honradas, capazes de estar
habitualmente mais perto de Deus, devemos encomendá-las concretamente a Nossa
Senhora. E pedir também por tantas almas que não conhecemos, porque todos
estamos navegando na mesma barca.

Sejamos leais, generosos. Fazemos parte de um só corpo, do Corpo Místico de


Cristo, da Igreja Santa, a que estão chamados muitos que procuram nobremente a
verdade. Por isso temos obrigação estrita de manifestar aos outros a qualidade, a
profundidade do amor de Cristo. O cristão não pode ser egoísta; se o fosse,
atraiçoaria a sua própria vocação. Não é de Cristo a atitude dos que se limitam a
guardar a sua alma em paz - falsa paz é essa -, despreocupando-se do bem dos
outros. Se aceitamos o significado autêntico da vida humana - e ele nos foi revelado
pela fé -, não podemos continuar tranqüilos, persuadidos de que pessoalmente nos
portamos bem, se não conseguimos de forma prática e concreta que os outros se
aproximem de Deus.

Há um obstáculo real na tarefa de apostolado: o falso respeito, o temor de tocar


temas espirituais, a suspeita de que uma conversa assim não será bem recebida em
determinados ambientes, porque se podem ferir suscetibilidades. Quantas vezes esse
raciocínio é a máscara do egoísmo! Não se trata de ferir ninguém; muito pelo
contrário, trata-se de servir. Embora sejamos pessoalmente indignos, a graça de
Deus converte-nos em instrumentos de utilidade para os outros, porque lhes
comunicamos a boa nova de que Deus quer que todos os homens se salvem e
cheguem ao conhecimento da verdade.

E será lícito intrometer-se desse modo na vida dos outros? É necessário. Cristo
interveio na nossa vida sem nos pedir licença. Fez o mesmo com os primeiros
discípulos: Passando pelo mar da Galiléia, viu Simão e seu irmão André, que

140
lançavam as redes ao mar, pois eram pescadores. E disse-lhes Jesus: segui-me e eu
vos farei pescadores de homens. Cada um de nós conserva a liberdade, a falsa
liberdade de responder não a Deus, como aquele jovem carregado de riquezas de
que nos fala São Lucas. Mas o Senhor e nós - em obediência às suas palavras: ide e
ensinai - temos o direito e o dever de falar de Deus, deste grande tema humano,
porque o desejo de Deus é a coisa mais profunda que brota do coração do homem.

Santa Maria, Regina Apostolorum, rainha de todos os que suspiram por dar a
conhecer o amor de teu Filho: tu, que entendes tão bem as nossas misérias, pede
perdão por nossa vida; pelo que em nós podia ter sido fogo e foi um punhado de
cinzas; pela luz que deixou de iluminar; pelo sal que se tornou insípido. Mãe de
Deus, Onipotência Suplicante: traze-nos, junto com o perdão, a força para vivermos
verdadeiramente de fé e de amor, para podermos levar aos outros a fé de Cristo.

É Cristo que passa, A Virgem Santa, causa da nossa alegria, 176

O melhor caminho para não perdermos nunca a audácia apostólica, a fome eficaz de
176 servir a todos os homens, não é outro senão a plenitude da vida de fé, de esperança e
de amor; numa palavra, a santidade. Não encontro outra receita além dessa:
santidade pessoal.

Hoje, em união com a Igreja, celebramos o triunfo da Mãe, Filha e Esposa de Deus.
E assim como nos sentíamos felizes no tempo da Páscoa da Ressurreição, três dias
após a morte do Senhor, agora nos sentimos alegres porque Maria, depois de
acompanhar Jesus de Belém até à Cruz, está junto dEle em corpo e alma, gozando
da glória por toda a eternidade. Esta é a misteriosa economia divina: Nossa Senhora,
que teve a graça de participar plenamente na obra da nossa salvação, tinha que
seguir de perto os passos do seu Filho: a pobreza de Belém, a vida oculta de trabalho
em Nazaré, a manifestação da divindade em Caná da Galiléia, as afrontas da Paixão
e o Sacrifício divino da Cruz, a bem-aventurança eterna do Paraíso.

Tudo isso nos diz respeito diretamente, porque esse itinerário sobrenatural deve ser
também o nosso caminho. Maria mostra-nos que essa senda é acessível, que é
segura. Ela nos precedeu no caminho da imitação de Cristo, e a glorificação da
Nossa Mãe é a firme esperança da nossa própria salvação; por isso a chamamos spes
nostra e causa nostrae laetitiae, nossa esperança e causa da nossa felicidade.

Não podemos perder nunca a esperança de chegar a ser santos, de aceitar os convites
de Deus, de perseverar até o fim. Deus, que começou em nós a obra da santificação,
levá-la-á a cabo. Porque se o Senhor é por nós, quem será contra nós? Ele, que não
poupou o seu próprio Filho, mas o entregou à morte por todos nós, como deixará de
nos dar com Ele qualquer outra coisa?

Nesta festa, tudo convida à alegria. A firme esperança na nossa santificação pessoal
é um dom de Deus; mas o homem não pode permanecer passivo. Recordemos as
palavras de Cristo: Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua
cruz cada dia e siga-me. Estamos vendo? A cruz, cada dia. Nulla dies sine cruce!,
nenhum dia sem cruz: nenhum dia em que não carreguemos a cruz do Senhor, em

141
que não aceitemos o seu jugo. Por isso não quis deixar de recordar aqui que a alegria
da ressurreição é conseqüência da dor da Cruz.

Mas nada havemos de temer, porque o próprio Senhor nos disse: Vinde a mim, vós
que estais sobrecarregados com trabalhos, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o
meu jugo e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e encontrareis
repouso para vossas almas; porque o meu jugo é suave e o meu fardo leve. Vinde -
comenta São João Crisóstomo -, não para prestar contas, mas para serdes
libertados dos vossos pecados; vinde porque eu não tenho necessidade da glória
que podeis proporcionar-me; tenho necessidade da vossa salvação... Não temais ao
ouvir falar de jugo, porque é suave; não temais se falo de carga, porque é ligeira.

O caminho da nossa santificação pessoal passa diariamente pela Cruz; e não é um


caminho infeliz, porque o próprio Cristo vem em nossa ajuda, e com Ele não há
lugar para a tristeza. In laetitia, nulla dies sine cruce!, gosto de repetir; com a alma
trespassada de alegria, nenhum dia sem Cruz.

É Cristo que passa, A Virgem Santa, causa da nossa alegria, 177

Voltemos ao tema que a Igreja nos propõe: Maria subiu aos céus em corpo e alma,
177 os anjos se alvoroçam! Penso também no júbilo de São José, seu castíssimo Esposo,
que a esperava no Paraíso. Mas tornemos à terra. A fé nos confirma que aqui em
baixo, na vida presente, estamos em tempo de peregrinação, de viagem; não faltarão
os sacrifícios, a dor, as privações. Não obstante, a alegria há de ser sempre o
contraponto do caminho.

Servi o Senhor com alegria : não há outro modo de servi-lo. Deus ama a quem dá
com alegria , a quem se dá por inteiro, num sacrifício prazeroso, porque não há
motivo algum que justifique o desconsolo.

Talvez achemos excessivo este otimismo, porque todos os homens conhecem as


suas insuficiências e os seus fracassos, experimentam o sofrimento, o cansaço, a
ingratidão, talvez o ódio. Nós, os cristãos, se somos iguais aos outros, como
podemos estar livres destas constantes da condição humana?

Seria ingênuo negar a reiterada presença da dor e do desanimo, da tristeza e da


solidão, durante o nosso peregrinar por esta terra. Pela fé, aprendemos com
segurança que tudo isso não é produto do acaso e que o destino da criatura não é
caminhar para a aniquilação dos seus desejos de felicidade. A fé nos ensina que tudo
tem um sentido divino, porque se insere no âmago do chamado que nos leva à casa
do Pai. A compreensão sobrenatural da existência terrena do cristão não simplifica a
complexidade humana; mas assevera ao homem que essa complexidade pode estar
atravessada pelo nervo do amor de Deus, pelo cabo, forte e indestrutível, que une a
vida na terra à vida definitiva na Pátria.

A festa da Assunção de Nossa Senhora propõe-nos a realidade desta feliz esperança.


Somos ainda peregrinos, mas a nossa Mãe precedeu-nos e indica-nos já o termo do
caminho: repete-nos que é possível lá chegar, e que lá chegaremos, se formos fiéis.

142
Pois a Santíssima Virgem não é apenas nosso exemplo: é auxílio dos cristãos. E ante
a nossa súplica - Monstra te esse Matrem , mostra que és Mãe -, não sabe nem quer
negar-se a cuidar de seus filhos com solicitude maternal.

É Cristo que passa, A Virgem Santa, causa da nossa alegria, 178

A alegria é um bem cristão. Só desaparece com a ofensa a Deus, porque o pecado é


178 fruto do egoísmo e o egoísmo é causa de tristeza. Mesmo então, essa alegria
permanece no rescaldo da alma, pois sabemos que Deus e sua Mãe nunca se
esquecem dos homens. Se nos arrependemos, se brota do nosso coração um ato de
dor, se nos purificamos no santo sacramento da penitência, Deus vem ao nosso
encontro e perdoa-nos. E já não há tristeza: é muito justo regozijar-se, porque teu
irmão tinha morrido e ressuscitou; estava perdido e foi encontrado.

Estas palavras são o final maravilhoso da parábola do filho pródigo, que nunca nos
cansaremos de meditar: Eis que o Pai vem ao teu encontro; inclinar-se-á sobre os
teus ombros, dar-te-á um beijo, penhor de amor e de ternura; fará com que te
entreguem um vestido, um anel, o calçado. Tu ainda temes uma repreensão, e Ele te
devolve a tua dignidade; temes um castigo, e te dá um beijo; tens medo de uma
palavra irada, e prepara um banquete para ti.

O amor de Deus é insondável. Se procede assim com quem o ofendeu, o que não
fará para honrar sua Mãe imaculada, Virgo Fidelis, Virgem Santíssima, sempre fiel?

Se o amor de Deus se mostra tão grande, quando a capacidade do coração humano -


com freqüência traidor - é tão pequena, como não se manifestará no Coração de
Maria, que nunca opôs o menor obstáculo à Vontade divina?

Observemos como a liturgia da festa se faz eco da impossibilidade de entender a


misericórdia infinita do Senhor com raciocínios humanos: mais do que explicar,
canta; fere a imaginação, para que cada um se entusiasme no seu louvor, pois todos
ficaremos aquém da realidade: Apareceu no céu um grande prodígio: uma mulher,
vestida de sol, e a lua debaixo dos pés, e em sua cabeça uma coroa de doze estrelas.
O rei se enamorou da tua beleza. Como resplandece a filha do rei, em seus vestidos
tecidos de ouro!

A liturgia termina com umas palavras de Maria em que a maior humildade se


conjuga com a maior glória: Todas as gerações me chamarão bem-aventurada,
porque fez em mim grandes coisas Aquele que é Todo-Poderoso.

Cor Mariae Dulcissimum, iter para tutum, Coração Dulcíssimo de Maria, dá força e
segurança ao nosso caminho na terra: sê tu mesma o nosso caminho, porque tu
conheces as vias e os atalhos certos que, por meio do teu amor, levam ao amor de
Jesus Cristo.

143
É Cristo que passa, Cristo-Rei, 179

Termina o ano litúrgico, e no Santo Sacrifício do Altar renovamos ao Pai o


179 oferecimento da Vítima, Cristo, Rei de santidade e de graça, Rei de justiça, de amor
e de paz, como dentro de pouco leremos no Prefácio. Todos sentimos na alma uma
imensa alegria ao considerarmos a santa Humanidade de Nosso Senhor: um rei com
coração de carne, como o nosso; que é o autor do universo e de cada uma das
criaturas, e que não se impõe com atitudes de domínio, mas mendiga um pouco de
amor, mostrando-nos em silêncio as suas mãos chagadas.

Como é possível, então, que tantos o ignorem? Por que se ouve ainda esse protesto
cruel: Nolumus hunc regnare super nos , não queremos que Ele reine sobre nós? Há
na terra milhões de homens que se defrontam assim com Jesus Cristo, ou melhor,
com a sombra de Jesus Cristo, porque, na realidade, o verdadeiro Cristo, não o
conhecem, nem viram a beleza do seu rosto, nem perceberam a maravilha da sua
doutrina.

Diante desse triste espetáculo, sinto-me inclinado a desagravar o Senhor. Ao escutar


esse clamor que não cessa, e que se compõe não tanto de palavras como de obras
pouco nobres, experimento a necessidade de gritar bem alto: Oportet illum regnare!
, convém que Ele reine.

Muitos não suportam que Cristo reine. Opõem-se a Ele de mil formas: nas estruturas
gerais do mundo e da convivência humana; nos costumes, na ciência, na arte. Até
mesmo na própria vida da Igreja! Eu não falo - escreve Santo Agostinho - dos
malvados que blasfemam contra Cristo. São raros, com efeito, os que blasfemam
com a língua, mas são muitos os que blasfemam com a conduta.

Alguns incomodam-se até mesmo com a expressão Cristo-Rei: por uma superficial
questão de palavras, como se o reinado de Cristo pudesse confundir-se com
fórmulas políticas; ou porque a confissão da realeza do Senhor os levaria a admitir
uma lei. E não toleram a lei, nem mesmo a do entranhável preceito da caridade,
porque não querem aproximar-se do amor de Deus: são os que ambicionam servir
apenas o seu próprio egoísmo.

O Senhor impeliu-me a repetir, desde há muito tempo, um grito silencioso:


Serviam!, servirei. Que Ele nos aumente as ânsias de entrega, de fidelidade à sua
chamada divina - com naturalidade, sem ostentação, sem ruído -, no meio da rua.
Agradeçamos-Lhe do fundo do coração. Elevemos uma oração de súditos, de
filhos!, e a nossa língua e o nosso paladar experimentarão o gosto do leite e do mel,
e nos saberá a favo cuidar do reino de Deus, que é um reino de liberdade, da
liberdade que Ele nos conquistou.

144
É Cristo que passa, Cristo-Rei, 180

Gostaria que considerássemos como esse Cristo - terna criança -, que vimos nascer
180 em Belém, é o Senhor do mundo: pois por Ele foram criados todos os seres nos céus
e na terra; Ele reconciliou todas as coisas com o Pai, restabelecendo a paz entre o
céu e a terra, por meio do sangue que derramou na Cruz. Hoje Cristo reina à direita
do Pai, como declararam os dois anjos de vestes brancas aos discípulos atônitos que
contemplavam as nuvens, depois da Ascensão do Senhor: Homens da Galiléia, por
que estais aí olhando para o céu? Esse Jesus que vos foi arrebatado ao céu, virá do
mesmo modo como acabais de vê-lo subir ao céu.

Por Ele reinam os reis , com a diferença de que os reis, as autoridades humanas,
passam; e o reino de Cristo permanecerá por toda a eternidade , seu reino é um
reino eterno e seu domínio perdura de geração em geração.

O reino de Cristo não é um modo de falar nem uma figura de retórica. Cristo vive
também na sua condição de homem, com aquele mesmo corpo que assumiu na
Encarnação, que ressuscitou depois da Cruz e que subsiste glorificado na Pessoa do
Verbo, juntamente com a sua alma humana. Cristo, Deus e homem verdadeiro, vive
e reina, e é o Senhor do mundo. Só por Ele se conserva com vida tudo o que vive.

Mas, então, por que não se apresenta agora em toda a sua glória? Porque o seu reino
não é deste mundo , embora esteja no mundo. Replicou Jesus a Pilatos: Eu sou rei.
Para isso nasci: para dar testemunho da verdade. Todo aquele que pertence à
verdade escuta a minha voz. Os que esperavam do Messias um poderio temporal,
visível, enganavam-se, porque o reino de Deus não consiste no comer e no beber,
mas na justiça, paz e gozo no Espírito Santo.

Verdade e justiça; paz e gozo no Espírito Santo. Esse é o reinado de Cristo: a ação
divina que salva os homens e que culminará quando a História terminar e o Senhor,
que se senta no mais alto do Paraíso, vier julgar definitivamente os homens.

Quando Cristo inicia a sua pregação na terra, não oferece um programa político, mas
diz simplesmente: Fazei penitência, porque o reino dos céus está próximo.
Encarrega os discípulos de anunciarem essa boa nova , e ensina a pedir na oração o
advento do reino. Eis o reino de Deus e a sua justiça: uma vida santa; isso é o que
temos que procurar em primeiro lugar , a única coisa verdadeiramente necessária.

A salvação pregada por Nosso Senhor Jesus Cristo é um convite dirigido a todos: O
reino dos céus é semelhante a um rei que celebrou as núpcias de seu filho e enviou
os criados a chamar os convidados para as bodas. Por isso, o Senhor revela que o
reino dos céus está no meio de vós.

Ninguém é excluído da salvação, se livremente abre as portas às amorosas


exigências de Cristo: nascer de novo , tornar-se semelhante às crianças, com
simplicidade de espírito , afastar o coração de tudo o que afasta de Deus. Jesus quer
fatos, não apenas palavras , e um esforço denodado, porque somente os que lutarem

145
serão merecedores da herança eterna.

A perfeição do reino - o juízo definitivo de salvação ou de condenação - não se dará


na terra. O reino agora é como uma semente , como o grão de mostarda em
crescimento ; seu fim será como a pesca com rede de arrastão, da qual - uma vez
trazida para terra - serão retirados para diferentes destinos os que praticaram a
justiça e os que cometeram a iniqüidade. Mas, enquanto aqui vivemos, o reino
assemelha-se ao fermento que uma mulher tomou e misturou com três medidas de
farinha, até que toda a massa ficou fermentada.

Quem compreende o reino que Cristo propõe, percebe que vale a pena arriscar tudo
para consegui-lo: é a pérola que o mercador adquire à custa de vender tudo o que
possui, é o tesouro achado no campo. O reino dos céus é uma conquista difícil, e
ninguém tem a certeza de alcançá-lo ; mas o clamor humilde do homem arrependido
consegue que as suas portas se abram de par em par. Um dos ladrões que foram
crucificados com Jesus suplica-lhe: Senhor, lembra-te de mim quando entrares no
teu reino. E Jesus respondeu-lhe: em verdade te digo: hoje estarás comigo no
Paraíso.

É Cristo que passa, Cristo-Rei, 181

Como és grande, Senhor nosso Deus! Tu és quem dá à nossa vida sentido


181 sobrenatural e eficácia divina. Tu és a causa de que, por amor de teu Filho,
possamos repetir com todas as forças do nosso ser, com a alma e com o corpo:
Convém que Ele reine!, enquanto ressoa a canção da nossa fraqueza, pois sabes que
somos criaturas - e que criaturas! - feitas de barro, não apenas nos pés , mas também
no coração e na cabeça. De forma divina, vibraremos exclusivamente por Ti.

Cristo deve reinar, acima de tudo, na nossa alma. Mas que resposta lhe daríamos se
nos perguntasse: como me deixas reinar em ti? Eu lhe responderia que, para que Ele
reine em mim, necessito da sua graça abundantemente: só assim é que o último
latejo do coração, o último alento, o olhar menos intenso, a palavra mais
intranscendente, a sensação mais elementar se traduzirão num hosanna ao meu
Cristo Rei.

Se pretendemos que Cristo reine, temos que ser coerentes, começando por
entregar-lhe o nosso coração. Se não o fizermos, falar do reinado de Cristo será
palavreado sem substância cristã, manifestação externa de uma fé inexistente,
manejo fraudulento do nome de Deus para barganhas humanas.

Se a condição para que Jesus reine em minha alma, na tua alma, fosse contar
previamente com um lugar perfeito dentro de nós, teríamos motivos para desesperar.
Mas não temas, filha de Sião: eis que o teu Rei vem montado sobre um jumentinho.
Vemos? Jesus contenta-se com um pobre animal por trono. Não sei o que se passa
convosco; quanto a mim, não me humilha reconhecer-me aos olhos do Senhor como
um jumento: Sou como um burrinho diante de Ti; mas estarei sempre a teu lado,
porque me tomaste pela tua mão direita , Tu me conduzes pelo cabresto.

146
Pensemos nas características do jumento, agora que vão ficando tão poucos. Não no
burro velho e teimoso, rancoroso, que se vinga com um coice traiçoeiro, mas no
burrinho jovem, de orelhas esticadas como antenas, austero na comida, duro no
trabalho, de trote decidido e alegre. Há centenas de animais mais belos, mais hábeis
e mais cruéis. Mas Cristo escolheu esse para se apresentar como rei diante do povo
que o aclamava. Porque Jesus não sabe o que fazer com a astúcia calculista, com a
crueldade dos corações frios, com a formosura vistosa mas oca. Nosso Senhor ama a
alegria de um coração jovem, o passo simples, a voz sem falsete, os olhos limpos, o
ouvido atento à sua palavra de carinho. É assim que reina na alma.

É Cristo que passa, Cristo-Rei, 182

Se deixarmos que Cristo reine na nossa alma, não nos converteremos em


182 dominadores; seremos servidores de todos os homens.

Serviço. Como gosto dessa palavra! Servir ao meu Rei e, por Ele, a todos os que
foram redimidos pelo seu sangue. Se nós, cristãos, soubéssemos servir! Confiemos
ao Senhor a nossa decisão de aprender a realizar essa tarefa de serviço, porque só
sentindo poderemos conhecer e amar Cristo, dá-lo a conhecer e conseguir que outros
mais o amem.

Como havemos de mostrá-lo às almas? Com o exemplo: que sejamos suas


testemunhas em todas as nossas atividades, mediante a nossa voluntária servidão a
Jesus Cristo, porque Ele é o Senhor de todas as realidades da nossa vida, porque é a
única e a última razão da nossa existência. Depois, quando tivermos prestado esse
testemunho do exemplo, seremos capazes de instruir com a palavra, com a doutrina.
Cristo agiu assim: Coepit facere et docere , primeiro ensinou com obras, e depois
com a sua pregação divina.

Servir os outros, por Cristo, exige que sejamos muito humanos. Se a nossa vida for
desumana, Deus nada edificará sobre ela, pois normalmente não constrói sobre a
desordem, sobre o egoísmo, sobre a prepotência. Temos que compreender a todos,
temos que conviver com todos, temos que desculpar a todos, temos que perdoar a
todos. Não diremos que o injusto é justo, que a ofensa a Deus não é ofensa a Deus,
que o mau é bom. No entanto, perante o mal, não responderemos com outro mal,
mas com a doutrina clara e com a ação boa: afogando o mal em abundância de bem.
Assim Cristo reinará na nossa alma e nas almas dos que nos rodeiam.

Alguns tentam construir a paz no mundo sem semear amor de Deus em seus
corações, sem servir por amor de Deus as criaturas. Assim, como será possível
realizar uma missão de paz? A paz de Cristo é a paz do reino de Cristo; e o reino de
Nosso Senhor deve cimentar-se no desejo de santidade, na disposição humilde de
receber a graça, numa esforçada ação de justiça, num derramamento divino de amor.

147
É Cristo que passa, Cristo-Rei, 183

Não é um sonho irrealizável ou inútil. Se nós, os homens, nos decidíssemos a


183 albergar o amor de Deus em nossos corações! Cristo, Senhor Nosso, foi crucificado
e, do alto da Cruz, redimiu o mundo, restabelecendo a paz entre Deus e os homens.
Jesus Cristo recorda a todos: Et ego, si exaltatus fuero a terra, omnia traham ad
meipsum , se vós me colocardes no cume de todas as atividades da terra, cumprindo
o dever de cada instante, dando testemunho de mim no que parece grande e no que
parece pequeno, omnia traham ad meipsum, tudo atrairei a mim. Meu reino entre
vós será uma realidade.

Cristo, Nosso Senhor, continua empenhado nesta semeadura de salvação dos


homens e de toda a criação, deste nosso mundo, que é bom porque saiu bom das
mãos de Deus. Foi a ofensa de Adão, o pecado da soberba humana, que rompeu a
divina harmonia da Criação.

Mas Deus Pai, quando chegou a plenitude dos tempos, enviou seu Filho Unigênito,
que, por obra do Espírito Santo, tomou carne em Maria sempre Virgem para
restabelecer a paz, para que, redimindo o homem do pecado, adoptionem filiorum
reciperemus , fôssemos constituídos filhos de Deus, capazes de participar da
intimidade divina; para que assim fosse concedido a este homem novo, a esta nova
estirpe dos filhos de Deus , o poder de libertar todo o universo da desordem,
restaurando em Cristo todas as coisas , que por Ele foram reconciliadas com Deus.

Foi para isso que nós, os cristãos, fomos chamados, essa é a nossa tarefa apostólica e
a preocupação que deve consumir a nossa alma: conseguir que o reino de Cristo se
torne realidade, que não haja mais ódios nem crueldades, que estendamos pela terra
o bálsamo forte e pacífico do amor. Peçamos hoje ao nosso Rei que nos faça
colaborar humilde e fervorosamente com o propósito divino de unir o que se
quebrou, de salvar o que está perdido, de ordenar o que o homem desordenou, de
levar a seu termo o que se extraviou, de reconstruir a concórdia entre todas as coisas
criadas.

Abraçar a fé cristã é comprometer-se a continuar entre as criaturas a missão de


Jesus. Cada um de nós tem que ser alter Christus, ipse Christus, outro Cristo, o
próprio Cristo. Só assim poderemos empreender essa tarefa grande, imensa,
interminável: santificar por dentro todas as estruturas temporais, levando até elas o
fermento da Redenção.

Nunca falo de política. Não encaro a tarefa dos cristãos na terra como se tivesse por
fim fazer brotar uma corrente político-religiosa - seria uma loucura -, nem mesmo
com o bom propósito de infundir o espírito de Cristo em todas as atividades dos
homens. O que é preciso situar em Deus é o coração de cada um, seja ele quem for.
Procuremos falar a cada cristão, para que lá onde estiver - nas circunstâncias que
não dependem apenas da sua posição na Igreja ou na vida civil, mas também do
resultado das mutáveis situações históricas -, saiba dar testemunho da fé que
professa, com o exemplo e com a palavra.

148
Por ser homem, o cristão vive no mundo com pleno direito. Se aceitar que Cristo
habite em seu coração, que Cristo reine, a eficácia salvadora do Senhor estará
intensamente presente em todas as suas ocupações humanas. E não interessa que
sejam ocupações altas ou baixas, como se costuma dizer, pois um ápice humano
pode ser aos olhos de Deus uma baixeza; e o que chamamos baixo ou modesto pode
ser um ápice cristão, de santidade e de serviço.

É Cristo que passa, Cristo-Rei, 184

Quando trabalha, como é de sua obrigação, o cristão não deve iludir nem esquivar-se
184 às exigências próprias da natureza das coisas. Se pela expressão abençoar as
atividades humanas, se entendesse anular ou escamotear a sua dinâmica própria,
negar-me-ia a usar essas palavras. Pessoalmente, nunca me convenci de que as
ocupações habituais dos homens devessem ostentar um qualificativo confessional, à
moda de um letreiro postiço. Embora respeite a opinião contrária, parece-me que se
correria o perigo de usar em vão o santo nome da nossa fé, e de utilizar, além disso,
a etiqueta católica - como já se tem visto em certas ocasiões - para justificar atitudes
e operações que, às vezes, nem sequer são honradamente humanas.

Se, à exceção do pecado, o mundo e tudo o que nele se contém é bom, por ser obra
de Deus Nosso Senhor, o cristão, lutando continuamente por evitar as ofensas a
Deus - uma luta positiva de amor -, deve dedicar-se a todas as realidades terrenas,
ombro a ombro com os outros cidadãos; e defender todos os bens derivados da
dignidade da pessoa.

E existe um bem que, de forma especial, deverá promover sempre: o da liberdade


pessoal. Só se defender a liberdade individual dos outros, com a correspondente
responsabilidade pessoal, poderá defender igualmente a sua própria, com honradez
humana e cristã. Repito e repetirei sem cessar que o Senhor nos concedeu
gratuitamente um grande dom sobrenatural, que é a graça divina; e outra
maravilhosa dádiva humana, a liberdade pessoal, que - para não se corromper,
convertendo-se em libertinagem - exige de nós integridade, empenho eficaz em
desenvolver a conduta dentro da lei divina, pois onde se encontra o Espírito de
Deus, lá se encontra a liberdade.

O Reino de Cristo é reino de liberdade: não existem nele outros servos além dos que
livremente se deixam aprisionar, por amor a Deus. Bendita escravidão de amor, que
nos torna livres! Sem liberdade, não podemos corresponder à graça; sem liberdade,
não nos podemos entregar livremente ao Senhor, pelo motivo mais sobrenatural de
todos: porque nos apetece.

Alguns dos que me escutam já me conhecem há muitos anos. Podem testemunhar


que tenho passado toda a minha vida pregando a liberdade pessoal, com igual
responsabilidade pessoal. Procurei-a e procuro-a por toda a terra, como Diógenes
procurava um homem. E cada dia que passa amo-a mais, amo-a sobre todas as
coisas da terra: é um tesouro que nunca saberemos apreciar suficientemente.

149
Quando falo de liberdade pessoal, não me valho disso como desculpa para abordar
outros problemas, talvez muito legítimos, mas que não dizem respeito ao meu ofício
de sacerdote. Sei que não me compete tratar de temas seculares e transitórios, que
pertencem à esfera temporal e civil, e são matérias que o Senhor deixou à livre e
serena controvérsia dos homens. Sei também que os lábios do sacerdote, evitando
por completo parcialidades humanas, somente devem abrir-se para conduzir as
almas a Deus, à sua doutrina espiritual salvadora, aos sacramentos que Jesus Cristo
instituiu, à vida interior que nos aproxima do Senhor, dando-nos a consciência de
sermos seus filhos e, portanto, irmãos de todos os homens sem exceção.

Celebramos hoje a festa de Cristo-Rei. E não me afasto do meu ofício de sacerdote


quando digo que, se alguém entendesse o reino de Cristo em termos de programa
político, não teria aprofundado no fim sobrenatural da fé e estaria a um passo de
oprimir as consciências com cargas que não são de Jesus, pois seu jugo é suave e
sua carga leve. Amemos de verdade todos os homens; acima de tudo, amemos
Cristo; e, então, não teremos outro remédio senão amar a legítima liberdade dos
demais homens, numa convivência pacífica e sensata.

É Cristo que passa, Cristo-Rei, 185

Talvez me digam que são poucos os que querem ouvir estas coisas e menos ainda os
185 que desejam pô-las em prática. Consta-me que a liberdade é uma planta forte e sã,
que se aclimata mal entre as pedras e os espinhos, ou nos caminhos calcados pelos
homens. Já o sabíamos antes de Cristo ter vindo à terra.

Lembremo-nos do Salmo II: Por que se amotinaram as nações, e os povos traçaram


planos vãos? Sublevaram-se os reis da terra e os príncipes coligaram-se contra o
Senhor e contra o seu Cristo. Como vemos, nada de novo. Opunham-se a Cristo
antes de Ele ter nascido; a Ele se opuseram enquanto seus pés pacíficos percorriam
os caminhos da Palestina; perseguiram-no depois e agora, atacando os membros do
seu Corpo místico e real. Por quê tanto ódio, por quê este encarniçar-se contra a
cândida simplicidade, por quê este universal esmagamento da liberdade de cada
consciência?

Quebremos as suas cadeias e sacudamos de nós o seu jugo. Quebram o jugo suave,
sacodem das costas a sua carga, maravilhosa carga de santidade e justiça, de graça,
de amor e paz. Enfurecem-se diante do amor, riem-se da bondade inerme de um
Deus que renuncia ao uso das suas legiões de anjos para se defender. Se o Senhor
admitisse a barganha, se sacrificasse um punhado de inocentes para satisfazer uma
maioria de culpados, ainda poderiam tentar um entendimento com Ele. Mas não é
essa a lógica de Deus. Nosso Pai é verdadeiramente pai, e está disposto a perdoar
milhares de fautores do mal, se houver somente dez justos. As pessoas dominadas
pelo ódio não podem entender esta misericórdia, e afincam-se na sua aparente
impunidade terrena, alimentando-se da injustiça.

Aquele que habita nos céus, ri-se, e o Senhor zomba deles. Ele lhes fala então na
sua ira, e no seu furor os aterroriza. Como é legítima a ira de Deus, como é justo o
seu furor, e como é grande também a sua clemência!

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Eu, porém, fui constituído por Ele Rei sobre Sião, seu monte santo, para promulgar
a sua Lei. Disse-me o Senhor: Tu és meu filho, eu te gerei hoje. A misericórdia de
Deus Pai deu-nos por Rei o seu Filho. Quando ameaça, ao mesmo tempo se
enternece: anuncia-nos a sua ira e entrega-nos o seu amor. Tu és meu filho: dirige-se
a Cristo e dirige-se a ti e a mim, se estamos decididos a ser alter Christus, ipse
Christus, outro Cristo, o próprio Cristo.

As palavras não conseguem acompanhar o coração, que se emociona perante a


bondade de Deus. Diz-nos: Tu és meu filho. Não um estranho, não um servo
benevolamente tratado, não um amigo, que já seria muito. Filho! Concede-nos livre
trânsito para vivermos com Ele a piedade de filhos e também - atrevo-me a afirmar -
a desvergonha de filhos de um Pai que é incapaz de lhes negar seja o que for.

É Cristo que passa, Cristo-Rei, 186

Há muita gente empenhada em comportar-se injustamente? Sim, mas o Senhor


186 insiste: Pede-me, e eu te darei as nações por herança, e em teu domínio as
extremidades da terra. Tu as governarás com vara de ferro, e qual vaso de oleiro as
quebrarás. São promessas fortes, e são de Deus: não podemos disfarçá-las. Não em
vão Cristo é o Redentor do mundo; Ele reina, soberano, à direita do Pai. É o terrível
anúncio do que nos espera a cada um - quando a vida passar, porque passa - e a
todos - quando a História acabar -, se o coração se endurecer no mal e na falta de
esperança.

No entanto, Deus, que pode vencer sempre, prefere convencer. E agora, ó reis,
atendei; instruí-vos, vós que governais a terra. Servi o Senhor com temor, e louvai-o
com tremor. Abraçai a boa doutrina, não seja que no fim o Senhor se aborreça e
pereçais fora do bom caminho, quando daqui a pouco se inflamar a sua ira. Cristo é
o Senhor e o Rei. Nós vos anunciamos que Deus cumpriu a promessa feita a nossos
pais; cumpriu-a diante de nossos filhos ressuscitando Jesus, como também está
escrito no salmo segundo: Tu és meu Filho, eu te gerei hoje...

Agora, pois, meus irmãos, sabei que por Ele vos é anunciada a remissão dos
pecados e de todas as manchas de que não pudestes ser justificados pela lei de
Moisés: por Ele é justificado todo aquele que crê. Tomai, pois, cuidado, para que
não recaia sobre vós o que foi dito pelos profetas: Vede, ó desprezadores,
admirai-vos e desaparecei, que eu faço uma obra nos vossos dias, uma obra em que
não acabareis de acreditar, por mais que vo-la contem.

É a obra da salvação, o reinado de Cristo nas almas, a manifestação da misericórdia


de Deus. Bem-aventurados todos os que a Ele se acolhem!. Nós, os cristãos, temos o
direito de enaltecer a realeza de Cristo, porque - embora a injustiça seja abundante,
embora muitos não desejem este reinado de amor - na própria história da
humanidade, que é o cenário do mal, se vai tecendo a obra da salvação eterna.

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É Cristo que passa, Cristo-Rei, 187

Ego cogito cogitationes pacis et non afflictionis. Eu penso pensamentos de paz, e


187 não de tristeza, diz o Senhor. Sejamos homens de paz, homens de justiça, praticantes
do bem, e o Senhor não será para nós Juiz, mas amigo, irmão, Amor.

Que os anjos de Deus nos acompanhem neste caminhar - alegre! - pela terra. Antes
do nascimento do nosso Redentor, escreve São Gregório Magno, nós tínhamos
perdido a amizade dos anjos. A culpa original e os nossos pecados cotidianos
tinham-nos afastado da sua pureza... Mas desde o momento em que nós
reconhecemos o nosso Rei, os anjos nos reconheceram como seus concidadãos.

E como o Rei dos céus quis assumir a nossa carne terrena, os anjos já não se
afastam da nossa miséria. Não se atrevem a considerar inferior à sua esta natureza
que eles adoram, vendo-a exaltada, acima deles, na pessoa do Rei do céu; e já não
têm inconveniente em considerar o homem como seu companheiro.

Maria, a Mãe santa do nosso Rei, a Rainha do nosso coração, cuida de nós como só
Ela o sabe fazer. Mãe compassiva, trono da graça: nós te pedimos que saibamos
compor na nossa vida e na vida dos que nos rodeiam, verso a verso, o poema singelo
da caridade, quasi flumen pacis , como um rio de paz. Pois tu és um mar de
inesgotável misericórdia: Os rios vão dar todos ao mar, e o mar não transborda.

© 2013 Fundação Studium

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