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A SALA DO FAZ DE

CONTA

Qual o aposento mais importante de uma casa? A cozinha porque ali se realiza a magia de dar aroma
e gosto a coisas esquisitas e transformar produtos horripilantes como peixe morto em inesquecível
badejo ao coentro e alho? O quarto de dormir onde guerreiros e guerreiras amam e descansam? A
sala que mesmo substituindo lareiras coloca em seu lugar a TV e em seu nome e poder impõe a
“juntividade” que isola?
Seja qual for à resposta será sempre válida, dependendo do ponto de vista de quem a exercita. Mas,
se respostas diferentes são plenamente aceitas é porque quando se fez a pergunta acima, não de
explicitou que se buscava aposento com a finalidade do educar. Refaz-se, então, a pergunta: Qual o
aposento mais importante para educá-lo?
A sala dos professores, verdadeira usina de criatividade onde se amalgama pensamentos,
construindo projetos e planejamentos? A sala de aula onde verdadeiros educadores já aposentaram
a tolice de crer que conhecimento é coisa que vem de fora e assim necessita ser ministrado? O
pátio lá fora onde se exercita a sociabilidade, se descobre como administrar frustrações e
desencantos e se aprende a construir amizades? Desta vez, ainda que os três exemplos possam
abrigar ilimitados valores, a resposta correta seria afirmar: “nenhum destes!”.

Nenhum destes, porque os estudos neuropsicológicos que hoje alcançam e mudam as estruturas da
antiga educação enfatizam que em qualquer idade se aprende, mas que as janelas de oportunidades
não se escancaram com a mesma intensidade em qualquer faixa etária e, assim, existe na evolução
biológica do ser humano um inefável momento de magia, onde tudo quanto se conquista nos
transforma e nos transporta pela vida inteira do que seremos. Em outras palavras, aprender é bom e
é gostoso e mais ainda, é essencial. Antonio Marina lembra com sabedoria indiscutível que é curto o
viver e que há muito o aprender, mas que não se vive se não se aprende. Mas a aprendizagem que se
conquista, ainda que sempre nos transforme nunca nos transformará tanto e com tal significação que
as que se manifestam no espaço breve dos 18 meses aos seis anos. E a certeza indiscutível do
significado desse período é que nos mostra que o aposento mais importante de uma casa ou de uma
escola será sempre sua sala do faz de conta.

“Sala” é preciso que se diga que muitas vezes pode ser apenas um cantinho; que pode ser rica ou
pobrezinha, posto que seu preço nada tenha a ver com seu valor, que pode ter caros brinquedos
eletrônicos ou singelas sucatas que serão transformadas pelo imaginário, mas que,
incontestavelmente, deveria ser sempre direito intocável de toda criança. Esta fantástica “sala”
precisaria ser, como toda democracia o é, estruturada por princípios que preservassem o sonho e
respeitassem o direito à fantasia, precisaria em alguns momentos ser palco de fantoches ou teatro de
revistas e ser mobiliada de telefones de brinquedos, livros para ver e outros para rabiscar, discos
para ouvir, blocos de cores, casinhas de todo jeito, garagens com todas as caras, fazendinhas de
qualquer tamanho. O essencial não é o brinquedo perfeito que, definitivo, rouba espaços ao sonho,
mas ao contrário, o produto singelo que transformado pela imaginação pode cavalgar por nuvens e
por ondas. Uma verdadeira sala do faz-de-conta precisaria permitir o cenário transformável a toda
hora e o movimento solto sem qualquer restrição e nesse mundo seria livre o direito de criar,
construir, relacionar, comparar e representar, organizar e manipular. Sem o saber, quem nessa sala
entrasse ainda que por um instante, estaria solucionando problemas, falando consigo mesmo e com
os outros e descobrindo que linguagem e pensamento constituem coisa única, separadas apenas para
mais fácil análise. Haveria de ser uma sala que pudesse oportunizar descobertas pelo tato, aventuras
na diferenciação entre escutar e ouvir e experiências com o olfato, desafios ao paladar.
Quando aluno de Ginásio intrigava-me buscar compreender o que minhas professoras chamavam de
“o mais que perfeito”. Deus do céu pensava eu, se perfeito era, como sonhar que pudesse existir
ousadia que o superasse? Agora, já velho, talvez compreenda o significado dessa expressão.
Provavelmente sem nem mesmo saber, já naqueles tempos, ao se buscar o mais que perfeito, se
estaria idealizando uma casa ideal ou escola completa com sua insubstituível sala do faz-de-conta.

Fonte: http://www.celsoantunes.com.br/a-sala-do-faz-de-conta/

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