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FORMAÇÃO DISCURSIVA

Em Foucault:

Foucault pretende na Arqueologia do Saber descobrir o que funda a unidade de grandes famílias de
enunciados “que se impõem a nosso hábito - e que designamos como a medicina, ou a economia, ou
a gramática” . Em vez de coesão e coerência, ele ressalta as “séries lacunares e emaranhadas, jogos
de diferenças, de desvios, de substituições, de transformações”. Em vez de um tipo definido e
normativo de enunciação, encontra “formulações de níveis demasiado diferentes e de funções
demasiado heterogêneas para poderem se ligar e se compor em uma figura única e para simular,
através do tempo, além das obras individuais, uma espécie de grande texto ininterrupto”. Em vez de
“um alfabeto bem definido de noções”, se depara com “a presença de conceitos que diferem em
estrutura e regras de utilização, que se ignoram ou se excluem uns aos outros e que não podem
entrar na unidade de uma arquitetura lógica”. Em vez de “permanência de uma temática”, encontra
“possibilidades estratégicas diversas que permitem a ativação de temas incompatíveis, ou ainda a
introdução de um mesmo tema em conjuntos diferentes”. Delinear uma formação discursiva em
Foucault, portanto, é “descrever essas dispersões; de pesquisar se entre esses elementos, que
seguramente não se organizam como um edifício progressivamente dedutivo, nem como um livro
sem medida que se escreveria, pouco a pouco, através do tempo, nem como a obra de um sujeito
coletivo, não se poderia detectar uma regularidade: uma ordem em seu aparecimento sucessivo,
correlações em sua simultaneidade, posições assinaláveis em um espaço comum, funcionamento
recíproco, transformações ligadas e hierarquizadas”.

Em vez de se propor a isolar e descrever a estrutura interna dessas grandes famílias de


enunciados que separam textos, áreas, saberes, discursos, suas ilhas de coerência, em vez de
iluminar conflitos latentes, de reconstituir cadeias de inferência, quadros de diferenças, sua proposta
é estudar suas formas de repartição, descrever seus sistemas de dispersão:

“No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de
dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas
temáticas, se puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e funcionamentos,
transformações), diremos, por convenção, que se trata de uma formação discursiva (...).
Chamaremos de regras de formação as condições a que estão submetidos os elementos dessa
repartição (objetos, modalidade de enunciação, conceitos, escolhas temáticas). As regras de
formação são condições de existência (mas também de coexistência, de manutenção, de
modificação e de desaparecimento) em uma dada repartição discursiva”.

“certa forma de regularidade caracteriza, pois, um conjunto de enunciados, sem que seja necessário
- ou possível - estabelecer uma diferença entre o que seria novo e o que não seria. Mas as
regularidades (...) não se apresentam de maneira definitiva; (…) campos homogêneos de
regularidades enunciativas” (Foucault, p.164)

“(...) a análise das formações discursivas se volta para essa raridade [raridade efetiva dos
enunciados]; toma-a por objeto explícito; tenta determinar-lhe o sistema singular; e, ao mesmo
tempo, dá conta do fato de que pôde haver interpretação. Interpretar é uma maneira de reagir à
pobreza enunciativa e de compensá-la pela multiplicação do sentido; uma maneira de falar a partir
dela e apesar dela. Mas analisar uma formação discursiva é procurar a lei de sua pobreza, é medi-la
e determinar-lhe a forma específica. É, pois, em um sentido, pesar o "valor" dos enunciados. Esse
valor não é definido por sua verdade, não é avaliado pela presença de um conteúdo secreto; mas
caracteriza o lugar deles, sua capacidade de circulação e de troca, sua possibilidade de
transformação, não apenas na economia dos discursos, mas na administração, em geral, dos
recursos raros. Assim concebido, o discurso deixa de ser o que é para a atitude exegética: tesouro
inesgotável de onde se podem tirar sempre novas riquezas, e a cada vez imprevisíveis; providência
que sempre falou antecipadamente e que faz com que se ouça, quando se sabe escutar, oráculos
retrospectivos; ele aparece como um bem - finito, limitado, desejável, útil - que tem suas regras de
aparecimento e também suas condições de apropriação e de utilização; um bem que coloca, por
conseguinte, desde sua existência (e não simplesmente em suas "aplicações práticas"), a questão do
poder; um bem que é, por natureza, o objeto de uma luta, e de uma luta política” (Foucault,
p.136/137)

“...descrever um conjunto de enunciados, não em referência à interioridade de uma intenção, de um


pensamento ou de um sujeito, mas segundo a dispersão de uma exterioridade; descrever um
conjunto de enunciados para aí reencontrar não o momento ou a marca de origem, mas sim as
formas específicas de um acúmulo, não é certamente revelar uma interpretação, descobrir um
fundamento, liberar atos constituintes; não é, tampouco, decidir sobre uma racionalidade ou
percorrer uma teleologia. É estabelecer o que eu chamaria, de bom grado, uma positividade.
Analisar uma formação discursiva é, pois, tratar um conjunto de performances verbais, no nível dos
enunciados e da forma de positividade que as caracteriza; ou, mais sucintamente, é definir o tipo de
positividade de um discurso. Se substituir a busca das totalidades pela análise da raridade, o tema do
fundamento transcendental pela descrição das relações de exterioridade, a busca da origem pela
análise dos acúmulos, é ser positivista, pois bem, eu sou um positivista feliz, concordo facilmente”,
(Foucault, p.141/142).

“...mesmas condições de exercício da função enunciativa” (p.173).

“...maneiras de formar enunciados, caracterizados uns e outros por certos objetos, certas posições de
subjetividade, certos conceitos e certas escolhas estratégicas...” (p.173)

“Uma formação discursiva não é, pois, o texto ideal, contínuo e sem aspereza, que corre sob a
multiplicidade das contradições e as resolve na unidade calma de um pensamento coerente; não é,
tampouco, a superfície em que se vem refletir, sob mil aspectos diferentes, uma contradição que
estaria sempre em segundo plano, mas dominante. É antes um espaço de dissensões múltiplas; um
conjunto de oposições diferentes cujos níveis e papéis devem ser descritos. A análise arqueológica
revela o primado de uma contradição que tem seu modelo na afirmação e na negação simultânea de
uma única e mesma proposição, mas não para nivelar todas as oposições em formas gerais de
pensamento e pacificá-las à força por meio de um a priori coator. Trata-se, ao contrário, de
demarcar, em uma prática discursiva determinada, o ponto em que elas se constituem, definir a
forma que assumem, as relações que estabelecem entre si e o domínio que comandara. Em suma,
trata-se de manter o discurso em suas asperezas múltiplas e de suprimir, em consequência disso, o
tema de uma contradição uniformemente perdida e reencontrada, resolvida e sempre renascente, no
elemento indiferenciado do logos” (p.175/176)

“...cada formação discursiva não pertence (de qualquer forma não pertence necessariamente) a um
único desses sistemas [de relações], mas entra simultaneamente em diversos campos de relações em
que não ocupa o mesmo lugar e não exerce a mesma função(...). (…) uma análise comparativa que
não se destina a reduzir a diversidade dos discursos nem a delinear a unidade que deve totalizá-los,
mas sim a repartir sua diversidade em figuras diferentes. A comparação arqueológica não tem um
efeito unificador, mas multiplicador.

“O campo de relações que caracteriza uma formação discursiva é o lugar de onde as simbolizações
e os efeitos podem ser percebidos, situados e determinados”.

A análise arqueológica foucaultiana quer mostrar como e por que a prática política e outras práticas
fazem parte das condições de emergência, de inserção e de funcionamento do sentido e da forma de
determinados discursos (p.184).

a descrição arqueológica dos discursos se desdobra na dimensão de uma história geral; ela procura
descobrir todo o domínio das instituições dos processos econômicos, das relações sociais nas quais
pode articular-se uma formação discursiva; ela tenta mostrar como a autonomia do discurso e sua
especificidade não lhe dão, por isso, um status de pura idealidade e de total independência histórica;
o que ela quer revelar é o nível singular em que a história pode dar lugar a tipos definidos de
discurso que têm, eles próprios, seu tipo de historicidade e que estão relacionados com todo um
conjunto de historicidades diversas (p.185/186)

o aparecimento de uma formação discursiva se correlaciona, muitas vezes, com uma vasta
renovação de objetos, formas de enunciação, conceitos e estratégias (...); mas não é possível fixar o
conceito determinado ou o objeto particular que manifesta, repentinamente, sua presença. Não é
preciso, pois, descrever semelhante acontecimento segundo as categorias que podem convir à
emergência de uma formulação ou ao aparecimento de uma palavra nova. Inútil fazer a esse
acontecimento perguntas como: "Quem é o autor? Quem falou? Em que circunstâncias e em que
contexto? Animado por que intenções e tendo que projetos?" O aparecimento de uma nova
positividade não é assinalado por uma frase nova - inesperada, surpreendente, logicamente
imprevisível, estilisticamente desviante - que viria inserir-se em um texto e anunciaria quer o
começo de um novo capítulo, quer a intervenção de um novo locutor.
(…) É necessário definir precisamente em que consistem essas modificações: substituir a referência
indiferenciada à mudança - ao mesmo tempo continente geral de todos os acontecimentos e
princípio abstrato de sua sucessão - pela análise das transformações. O desaparecimento de uma
positividade e a emergência de uma outra implica diversos tipos de transformações. Indo das mais
particulares às mais gerais, pode-se e deve-se descrever como se transformaram os diferentes
elementos de um sistema de formação (...); como se transformaram as relações características de um
sistema de formação (...); como as relações entre diferentes regras de formação foram transformadas
(...); como, enfim, se transformam as relações entre diversas positividades (...). Em vez de invocar a
força viva da mudança (como se esta fosse seu próprio princípio), ou lhe procurar as causas (como
se nunca passasse de puro e simples efeito), a arqueologia tenta estabelecer o sistema das
transformações em que consiste a "mudança"; tenta elaborar essa noção vazia e abstrata para dar-lhe
o status analisável da transformação (...) pela análise das transformações diversas.

“...é colocá-la novamente em questão como formação discursiva; é estudar não as contradições
formais de suas proposições, mas o sistema de formação de seus objetos, tipos de enunciação,
conceitos e escolhas teóricas. É retomá-la como prática entre outras práticas” p.208

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