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Introdução ao Antigo Testamento - EaD

Prof. Dr. Nelson Kilpp

I. Introdução Geral

1. A terminologia
O Antigo Testamento (AT) é a coletânea de livros da primeira parte do cânon cristão.
Essa coletânea surgiu no decorrer de mais de um milênio, fruto da reflexão teológica do
povo de Israel. Ele também constitui o texto sagrado do judaísmo. A designação Antigo
Testamento é de origem e uso exclusivo cristão, uma vez que a comunidade cristã quis
diferenciar a sua primeira Escritura Sagrada, o Antigo Testamento, de uma outra
coletânea de livros que surgiu no início de sua história e que ela decidiu chamar de Novo
Testamento (NT), uma vez que se entendia como o povo da “nova aliança” (1 Co 11,25;
2 Co 3.6; Gl 4.21ss). O apóstolo Paulo foi o primeiro a utilizar o termo “antiga aliança (=
testamento)” para designar os livros sagrados do judaísmo (2 Co 3.14). Este, no entanto,
normalmente denomina os seus escritos sagrados de Tenak, uma palavra artificial que
surgiu das primeiras consoantes dos títulos dos três grandes blocos de livros da Bíblia
Hebraica: Torá (Pentateuco), Nebi'im (Profetas) e Ketubim (Escritos [restantes]). Muitas
vezes, em respeito à tradição judaica e para evitar uma conotação de ultrapassado e menos
importante, também nós cristãos substituímos o termo Antigo Testamento por Primeiro
Testamento ou Bíblia Hebraica.

2. As nossas Bíblias
Atualmente há muitas Bíblias em língua portuguesa em circulação, algumas com
linguagem mais popular, outras de cunho mais acadêmico, algumas já antigas, outras bem
recentes, umas com notas e introduções, outras, sem auxílio nenhum para a leitura. Porém,
com raras exceções, todas essas versões são traduções dos originais hebraico, aramaico e
grego. Entre essas diversas versões da Bíblia em português, há algumas diferenças que
dizem respeito unicamente ao AT. De duas delas trataremos aqui: o número e a seqüência
dos livros do AT.

As bíblias editadas por editoras católicas contêm sete livros (e alguns trechos em Ester e
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Daniel) a mais que as bíblias editadas por editoras protestantes. Estes sete livros são:
Tobias, Judite, dois livros dos Macabeus, Sabedoria, Eclesiástico (ou Sirácida) e Baruc
(ou Baruque). Eles são normalmente denominados deuterocanônicos, isto é, canonizados
em uma segunda fase (alguns chamam estes trechos menos precisamente de apócrifos).
Assim, as bíblias protestantes têm 39 e as católicas, 46 livros no AT. Essa diferença
provém da existência de duas coletâneas de textos sagrados já no antigo judaísmo.
Enquanto que o judaísmo da Palestina aceitou como escritos sagrados somente 39 livros
- os que estão na atual Bíblia Hebraica e nas bíblias protestantes - a comunidade judaica
da diáspora no Egito, de fala grega, incluiu em seu cânon um número bem maior de
escritos. O cânon grego, chamado de Septuaginta (= Setenta; abreviado LXX) em alusão
aos 72 anciãos que teriam traduzido a obra para o grego, no século III aC, tornou-se
também a bíblia das primeiras comunidades cristãs, que geralmente falavam o grego.
Quando, em torno de 400 dC, Jerônimo traduziu o AT para o latim (Vulgata), ele o fez a
partir do hebraico/aramaico, mas incluiu os sete livros (e trechos) deuterocanônicos acima
mencionados, que se encontravam na LXX. Como, no âmbito católico, o texto da Vulgata
é considerado autoridade, preservaram-se, até hoje, os livros e trechos deuterocanônicos.
As igrejas oriundas da Reforma protestante orientaram-se na tradução feita pelo
reformador Martim Lutero para o alemão. Influenciada pelo espírito humanista, que
exigia a volta às origens, essa tradução foi feita dos originais hebraico e aramaico (partes
de Daniel e Esdras), ou seja, do cânon judaico, que não continha os livros
deuterocanônicos. Estes foram, no entanto, colocados por Lutero em apêndice, uma vez
que também foram considerados úteis para a edificação da comunidade, se bem que não
traziam, conforme o reformador, nenhuma novidade. Em épocas posteriores, no entanto,
o apêndice foi simplesmente omitido pelas editoras protestantes. Os livros e trechos
deuterocanônicos se encontram novamente em apêndice na versão da Tradução
Ecumênica da Bíblia (TEB).
A segunda diferença também tem a ver com as duas versões do cânon judaico: a Bíblia
Hebraica e a Septuaginta. Com exceção da já mencionada TEB, todas as Bíblias em língua
portuguesa, tanto protestantes quanto católicas, adotaram a seqüência dos livros do cânon
grego, também aceito pela Vulgata. Essa seqüência tem uma lógica bastante clara, o que
já reflete um determinado grau de reflexão teológica e sistematização dos conteúdos. Ela
agrega os livros em quatro blocos: Pentateuco – livros históricos – livros poéticos e
sapienciais – livros proféticos. Os primeiros dois blocos narram a história passada de
Israel, o terceiro bloco reflete a vida cultual e a ética do presente do povo, enquanto o
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último bloco, o profético, aponta para o futuro da atuação de Deus, abrindo o caminho
para a inclusão do NT.

A Bíblia Hebraica, por outro lado, tem somente três blocos de livros: Pentateuco (Torá)
– Profetas (Nebi'im) – Escritos (restantes; Ketubim). Também o NT conhece estes três
blocos (cf., por exemplo, Lc 24.44: “na lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos”). Estes
blocos, no entanto, não estão organizados de acordo com o conteúdo dos livros. A Torá
(= lei) equivale aos cinco livros do Pentateuco (= “cinco rolos”). Entre os Profetas
encontram-se primeiramente quatro livros históricos (Js; Jz; Sm e Rs; os últimos dois
ainda não eram subdivididos). Estes são chamados, na tradição judaica, de “profetas
anteriores”; também estes falam de profetas e foram atribuídos, pelo judaísmo, à autoria
de profetas. Seguem, então, os “profetas posteriores”, que abarcam os três grandes
profetas (Is; Jr e Ez; ainda falta o livro de Daniel) e os doze profetas menores
(considerados, na origem, um só rolo). Todos os outros livros perfazem o último bloco
da Bíblia Hebraica, o dos Escritos (Ketubim; na ordem são: Sl, Jó, Pv, Rt, Ct, Ec, Lm, Et,
Dn, Ed, Ne e Cr). A falta de uma sistemática clara se evidencia especialmente neste último
bloco da Bíblia Hebraica. Tudo leva a crer que a seqüência da Bíblia Hebraica - adotada
no Brasil apenas pela versão TEB – não é reflexo de uma sistematização do conteúdo,
mas espelha a história da gradativa canonização dos escritos do AT.

3. História da canonização
Canonização é o processo através do qual determinados escritos adquirem autoridade,
tornando-se, assim, normativos, ou seja, canônicos (cânon = norma) para um povo, uma
comunidade ou um grupo. Depois que os textos e os livros do AT foram escritos, ainda
levou bastante tempo até que eles se tornassem canônicos para a comunidade judaica.
Muito pouco se sabe sobre essa história. Ela provavelmente tem seu início com a atuação
de Esdras (cf. Ed 7.6,25s; Ne 8). O primeiro bloco a ser considerado canônico certamente
foi a Torá (Pentateuco), devido à importância de seu conteúdo. Esta primeira fase do
processo estava provavelmente concluída no final do século IV aC, pois quando os
samaritanos se afastaram da comunidade de Jerusalém, fundando seu próprio culto no
monte Garizim (depois da conquista de Alexandre), levaram consigo como texto sagrado
(somente) o Pentateuco (até hoje os samaritanos só reconhecem o Pentateuco como
Escritura Sagrada).
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Pode-se dizer que o bloco dos Profetas (anteriores e posteriores) recebeu autoridade
canônica ainda antes do século II, pois o prólogo que Jesus Sirac (em torno de 190 aC)
antepõe ao livro deuterocanônico do Eclesiástico parece pressupor o bloco profético
como algo pronto e fechado ao lado da Torá (Lei). Além disso, a ausência do livro de
Daniel neste bloco profético talvez se deva ao fato de este bloco já estar completo e
fechado por ocasião do surgimento de Daniel (em torno de 165 aC). O terceiro e último
bloco de escritos sagrados foi decidido e fechado por rabinos e escribas judeus somente
no final do primeiro ou início do segundo século após Cristo. Temos conhecimento de
várias controvérsias entre os rabinos do século I dC sobre se determinados livros (como
Pv, Ct ou Eclesiástico) deveriam ou não ser considerados inspirados. Isso demonstra que
ainda não havia consenso sobre o rol dos livros canônicos na época. Diversos motivos,
como o movimento apocalíptico judaico e o crescimento das comunidades cristãs,
obrigaram os responsáveis pela comunidade judaica da Palestina a acelerar o processo de
tomada de decisão sobre quais livros deveriam ser normativos e incluídos no rol de livros
sagrados (“que mancham as mãos”) e quais deveriam ser rejeitados.

Todo esse processo de canonização mostra que os escritos bíblicos somente aos poucos
se tornaram canônicos. Havia, é claro, critérios para considerar um texto sagrado. Critério
básico, segundo o historiador Flávio Josefo, era que o livro tinha que ter inspiração
“profética”. Também havia um critério cronológico: os textos considerados mais antigos
ou atribuídos a autores antigos eram mais facilmente aceitos como profeticamente
inspirados do que escritos que surgiram após a atuação de Esdras, quando o espírito
profético, conforme a opinião da época, era mais raro. Certamente também o conteúdo
dos livros foi um importante fator para a sua inclusão ou exclusão do rol de livros
sagrados, como se depreende da discussão rabínica. Tudo isso demonstra que o “sagrado”
dos textos não é evidente por si nem pode, a rigor, ser dado pela decisão que uma
comunidade tomou no passado. O caráter sagrado do cânon, ou seja, a Palavra de Deus
nas palavras humanas, deve ser constantemente descoberto através do labor
hermenêutico.

4. A importância do AT para a comunidade cristã


À primeira vista, parece que o AT não tem mais nenhuma importância para a comunidade
cristã. Em Jesus Cristo, “as coisas antigas já passaram; eis que se fizeram novas” (1 Co
5.17). De fato, Jesus Cristo representa o fim dos sacrifícios sangrentos (Jo 1.29; 1 Pe
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1.19), das leis de pureza e impureza (Mc 7), da circuncisão (At 15) e de outras leis. Com
Jesus também se rompem as barreiras nacionalistas de Israel (Mc 7.24ss; Mt 8.5ss) bem
como se condena toda obediência meramente formal à Lei, pois leva à hipocrisia e à
altivez (Lc 11.42ss). Ainda assim, conforme o próprio testemunho do NT, o evento de
Cristo não pode ser entendido sem o recurso ao AT (cf. Lc 24.13ss, em especial v.27). O
próprio Jesus afirma que não veio para “revogar a Lei ou os Profetas” (Mt 5.17), pois os
mandamentos continuam espelhando a vontade de Deus (cf. Mc 12.28ss). Mas
característico é que Jesus não nivela todas as afirmações do AT. Ele pode contrapor à lei
que permite o divórcio (Dt 24.1) o texto de Gn 1.27. Ele também pode radicalizar o
mandamento “Não matarás” (Ex 20.13; Dt 5.17) através da antítese: “Eu, porém, vos digo
que [...] quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento.” Estas
interpretações novas de Jesus são tentativas de auscultar, nos textos do AT, a vontade de
Deus para a sua atualidade.

A Escritura Sagrada de Jesus e das primeiras comunidades cristãs foi, sem dúvida, o AT,
a ponto de os primeiros cristãos poderem ser confundidos com uma seita judaica. Para
estas comunidades, a igreja está em continuidade com a história do povo de Israel
registrada no AT, não só porque, para ela, Jesus representa o cumprimento das profecias
veterotestamentárias, mas também porque o Deus de Israel é o mesmo que o Pai de Jesus
e o Deus da igreja cristã. Em outras palavras, o Deus que se revelou em Jesus e atua,
através do Espírito Santo, na igreja cristã já se manifestou de forma análoga nos tempos
do AT.

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