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Antropologia e teologia

- uma questão filosófica não resolvida -

1. Uma defesa da antropologia diante do comportamento da teologia

Chegou provavelmente o tempo em que temas vitais e ao mesmo tempo delicados não
devam ser abordadas com metáforas apologéticas ou com metonímias polêmicas. Assim, a
questão formulada no título Antropologia e Teologia — uma relação filosófica não resolvida,
não quer provocar defesas exaltadas ou ataques implacáveis e raivosos. Com as informações que
temos à disposição, em número infinito para nossa capacidade finita de manejo e elaboração,
podemos vir com formulações modestas de problemas, com clareza a maior possível nos nossos
enunciados e com conclusões as menos peremptóricas nos nossos raciocínios.
Quando falamos de uma “relação filosófica não resolvida” entre filosofia e teologia
queremos trazer fatos da atividade filosófica que revelam muitos aspectos. Mas o que se quer
destacar é que esta relação é filosófica em primeiro lugar, já que na filosofia, tem sido o maior
problema para todos os filósofos da tradição metafísica. E como não resolvida esta questão é o
motor da filosofia, em seu sentido mais amplo e mais profundo. Quanto ao interesse para os
dois campos em questão, as coisas se apresentam de modo paradoxal: a teologia que deveria
estar o menos interessada, pois já tem uma resposta, possui o maior interesse numa proposta de
solução. A antropologia que deveria estar o mais interessadas, pois nunca terá uma resposta,
talvez tenha o menor interesse numa proposta de solução. Esta situação paradoxal é que faz do
tema que abordarei brevemente, também um tema ambíguo: irei tomar a defesa da antropologia
e ela talvez não precise disso e reclamarei do comportamento da teologia e ela talvez mais
precise de uma defesa diante de suas certezas.
É por isso que o próprio tema corre o risco de se tornar inabordável da melhor forma,
que provavelmente não existe, e talvez, por isso mesmo, permanece sempre objeto de uma
abordagem fragmentária que nunca satisfaz.
E, por fim, provavelmente, o autor é posto, com esta sua preocupação, diante de uma
questão em cuja solução trabalha, mas não acredita que seu trabalho (nem o de ninguém) leve a
uma solução.
Para que o que foi dito, até agora, tenha valor é preciso ainda definir os dois termos da
relação: antropologia e teologia.
Os dois termos nos interessam desde a tradição judaico-cristã, já que os gregos não
conhecem vínculo entre antropologia e teologia que seja ontológico; a teologia grega que atinge
o ser humano apenas o faz através da pólis; é uma teologia política.
É na tradição cristã que teologia e filosofia aparecem com uma relação que interessa
ao nosso tema: de dois modos.
Uma é a relação entre a teologia que se municia da filosofia grega para sua
sistematização e a concepção do homem. Aí se situam as relações entre fé e razão, numa
primeira etapa, apenas como uma relação entre filosofia e teologia.
A outra questão é a da relação entre antropologia e teologia revelada que levou a uma
antropologia cristã e, por outro lado, terminou levando, na sistematização do tomismo por
Súarez, a uma divisão da metafísica geral em três metafísicas especiais — a cosmologia — a
antropologia — e a teologia natural.
Ainda que a partir daí a filosofia tenha por tarefa sua, a discussão das relações entre
antropologia e teologia, a discussão dessa relação trouxe os vícios da tutela da teologia sobre a
antropologia da tradição cristã. Por isso, a autonomia da antropologia era negada por razões
extra-filosóficas ou então ela sofria a tutela dentro dos próprios sistemas filosóficos, porque
neles predominava uma filosofia da história (vinculada com a teologia da história) que
incorporava o ser humano num todo que o transcendia e, portanto, impedia uma antropologia
filosófica independente.
Esta análise introdutória nos permite situar nossa questão que formulamos:
— Antropologia e teologia — uma relação filosófica não resolvida.
O exame de alguns aspectos irá mostrar se faz sentido o que nos propomos.
2. A era da busca do homem todo na antropologia

Em nossos dias, tanto a profundidade como a amplitude dos conhecimentos parece


exigir uma concepção de unidade do saber. É quando se trata dos estudos sobre o ser humano, a
antropologia, a radicalidade e a dispersão dos campos de pesquisa e as conseqüências das
decisões que estão sendo tomadas e que podem atingir a vida humana como um todo estão a
clamar por uma compreensão do todo do ser humano.
Não se trata do todo da história humana, de uma filosofia da história. Esta parece já ter
alimentando um número interminável de ilusões sobre o destino do homem e quase todas
levaram a catástrofes. Na busca desse todo não está em questão o fim da história que nos faria
ver o ser humano como um observador imparcial e, por conseqüência desde fora. O que nos
angustia é que temos ainda, sempre um conhecimento parcial do ser humano, tanto do ponto de
vista da filosofia como, sobretudo, das ciências. E agora parece, mais que nunca, que estamos
arrependidos de nossa onipotência de filósofos da história e estamos em busca de uma
antropologia, não como estudo de aspectos do ser humano, mas que seja filosófica, no sentido
mais poderoso e universal desse objetivo.
Parafraseando um pensamento do Cardeal Carlos Maria Montini — “A igreja não
satisfaz expectativas, celebra mistérios” — podemos dizer: não buscamos antecipações sobre
nosso destino, queremos conhecimento sobre o enigma do ser humano.
O problema do fim da história, do sentido da história, foi o motivo para preferir-se a
filosofia da história à antropologia filosófica. É esta também a razão porque, em nome da
primeira, a filosofia da história, se pretendia controlar as afirmações da segunda, a antropologia
filosófica. Na filosofia da história se descobriam normas, ou mesmo uma normatividade como
tal, para definir os limites dos enunciados da antropologia filosófica, onde as teorias e as
afirmações eram mais temidas para os conhecimentos que já se presumia dispor sobre o ser
humano.
De onde vem esse conflito? Por que os enunciados da filosofia da história parecem
mais confiáveis e parecem ser uma autoridade para os enunciados da antropologia?
Para compreender isso, temos que retornar no tempo até um imaginário, talvez o
arqui-imaginário da humanidade.
Quando foram compilados os textos que compõe o Gênesis da Bíblia, já se dera o fato
antropológico, fundamental: a dispersão da espécie humana pela planeta.
A evolução, o desenvolvimento, a expansão do homo sapiens, ainda sem história
escrita, mas deixando seus sinais e seus ossos para alegria dos paleontólogos e dos
pesquisadores do ramo dos antropóides que evoluiu até o homo sapiens sapiens, foram
retrointegrados e assim integrados numa história de queda original e redenção na versão bíblica.
Uma teologia da história passa a ser a monitora do discurso sobre o ser humano. Assim, o falar
sobre a natureza humana está sob o signo de uma corrupção primeira que impede uma
antropologia que não esteja sob suspeita. As filosofias objetivas da história que se desenvolvem
como herança da teologia da história, passam a ser o lugar da discussão sobre o ser humano,
condenando a antropologia a um lugar filosófico menor, quando não totalmente suspeito. É que
investigar a natureza humana pode conduzir ao exame de uma natureza como tal, sem o adjetivo
decaída e isso colocaria em perigo a verdade da teologia e da filosofia da história: a história
humana com começo, meio e fim, descrita desde fora, desde o lugar de um espectador
imparcial.
Como hoje estamos mais que em qualquer época, à procura do homem todo de sua
natureza como tal — e não do homem entre dois acontecimentos — a queda e a salvação, o
começo e o fim, e, ao mesmo tempo, nos aproximamos de respostas centrais sobre o ser
humano, nas biociências, sobretudo, pela decifração do genoma humano, a antropologia
filosófica é o maior desafio. Dela esperamos uma concepção de totalidade que nos indique
como abranger num todo que não seja soma, a investigação sobre o ser humano que progride tão
vertiginosamente no campo biológico. Esse todo constituirá um elemento de transcendência que
dará à antropologia filosófica o lugar que ocupava a filosofia da história. Na antropologia em
que se decidirá o sentido de qualquer conhecimento científico e suas conseqüências para os
seres humanos.

3. Para além do humanismo e contra uma teologia da história

Mas a filosofia da história não seguiu apenas os passos da teologia da história, em


detrimento da antropologia, desde os pressupostos da tradição bíblica sobre a origem do ser
humano. Ao ser incorporada na tradição teológica, a filosofia grega, a definição do ser humano
como animal racional também sofreu uma torsão. Esse animal que tinha a palavra como
ferramenta em nome da razão para sobreviver segundo sua natureza, passou a ser visto como
alguém que deve fazer uso correto de sua razão para se inserir num processo de
aperfeiçoamento, que o levará a ser o que deve ser. Quem sabe o que ele deve ser é novamente a
teologia que lhe indica o destino como animal racional. Sua natureza não lhe garante o uso
correto da racionalidade, por isso não é a natureza, a physis, dos gregos que pode ser colocada
no começo do conhecimento, como em Aristóteles, mas a natureza decaída e essa necessita de
um apoio divino. Mas esse apoio não é para que o ser humano seja ser humano, mas para que
seja mais inserindo-o numa história na qual de todo modo já está: a história da salvação.
Assim, também o ser humano como animal racional não nos dá o direito a uma
antropologia que seja apenas antropologia, ou antropologia filosófica, a não ser que se insira na
“vida segundo o espírito” (Lima Vaz).
Assim, humanismo grego é corrigido pelo humanismo cristão que tira daquele uma
definição do homem, mas o desloca da perspectiva teocêntrica. Novamente uma antropologia é
incorporada pela teologia, numa teologia da história. Coisa semelhante vemos ocorrer ao
examinarmos a relação do homem, na filosofia de Aristóteles com o theion, o divino dos gregos.
Ainda que pensada pelos gregos de maneira objetivista a questão do ser, sobretudo a partir de
Aristóteles, constitui objeto da episteme zetoumene, o conhecimento que deveria fundamentar e
garantir a universalidade do conhecimento das ciências. O ser humano, enquanto logon echon,
não tinha um caráter de ser específico, privilegiado. Ele fazia parte da physis e o fato de a alma
ser, como diz Aristóteles, “de algum modo todas as coisas”, só o aproximava do theion por
analogia: o estado de plenitude do nóesis noéseos, do pensamento de pensamento, que o ser
humano só tinha por momentos, na teoria, na contemplação.
Não há nenhuma ligação, nenhum vínculo ontológico entre o theion e o anthropos. O
motor imóvel “sublunaribus non curat”. Assim, Peri psyches é uma verdadeira antropologia,
talvez a primeira do mundo. Todos os atributos que o autor do tratado Da alma elenca a respeito
do ser humano não o situam em qualquer espécie de comunidade com o primeiro motor.
Quando Aristóteles — começa a fazer companhia a Platão, na Idade Média, passa a
existir, por causa da justificação filosófica da criação, um vínculo ontológico entre o ser das
coisas e o ser do homem com o ser subsistente, o ipsum esse ou esse subsistens.
A antropologia medieval une as concepções aristotélica, platônica e bíblica, para
determinar o que é ser humano. Mas como o elemento normativo é constituído pela tradição
bíblica, esta antropologia é absorvida pela teologia e progressivamente por uma teologia da
história.
Esta posição da antropologia ainda continua a predominar nas concepções do começo
da modernidade, sobretudo no humanismo e nas suas filosofias da história que não se
desvinculavam de certos traços da teologia da história.
Houve, no entanto, um tipo de ruptura que desagregou a tradição tomista, no campo da
antropologia. Segundo Lima Vaz: “Nos séculos que se seguiram até o fim da Idade Média,
assistimos ao aparecimento de novas tendências do pensamento filosófico e teológico,
orientadas em sentido oposto à síntese tomásica em antropologia. O voluntarismo inaugurado
por Duns Scotus no século 14, o nominalismo que prevaleceu no século 15, operaram no sentido
da desagregação da síntese medieval entre filosofia e teologia, percorrendo um caminho que irá
conduzir à filosofia moderna e a uma nova concepção do homem” (Lima Vaz, p. 70-71).

4. A superação da ontologia clássica e a inversão da relação entre antropologia e teologia


Nesta quarta etapa de nossa exposição iremos apresentar sinteticamente o processo
histórico desenrolado na filosofia, desde o fim da Idade Média e do Renascimento e que
conduziu, ao mesmo tempo, à superação do tomismo, ao começo da filosofia moderna, ao fim
da ontologia clássica, e a uma nova concepção de ser, possibilitando uma mudança na
concepção do homem que levaria à afirmação de uma antropologia independente da teologia,
não contra a teologia, mas iniciando aquilo que adiante se mostrará: a inversão da relação entre
antropologia e teologia, onde Deus se torna um problema do homem.
O tesouro mais bem protegido na filosofia medieval, a ontologia, a metafísica,
receberia, na sistematização realizada por F. Suarez, uma transformação radical.
A visão de Sto. Tomas, baseada na tradição aristotélica e platônica, apresenta uma
ontologia de caráter realista, e sustenta um vínculo entre o ipsum esse e o ser das coisas e do
mundo. Um dos elementos dessa visão onto-teológica é a distinctio realis entre essência e
existência. A razão principal dessa posição é o problema da criação e da relação do ens a se com
o ens ab alio.
Suarez introduz, mesmo querendo salvar o tomismo com sua sistematização a
distinctio rationis entre essentia e existentia e muda assim a relação entre ens infinitum e ens
finitum. O distinctio então e quoad nos e a realitas da res é formal, com relação a nós, nosso uso
do conhecimento.
Suarez usou para esta mudança elementos da filosofia scotista e abandona a primeira
linha da ontologia aristotélica onto-teológica que seguira Sto. Tomas e se insere na segunda
vertente de Aristóteles, a do ser do ente que leva a uma compreensão formal do ser, como
conceptus obiectivus, como conteúdo significativo.
Se há uma distinctio rationis entre essentia e existentia, entre ser e ente, então a
existência e o ser não acrescentam nada, nenhuma propriedade ao ente. O caráter formal do ser
tem relevância apenas no conhecimento e não há uma espécie de vínculo ontológico entre ser e
ente.
Realiza-se, assim, através de Suarez e Ch. Wolff que o segue, a abertura do caminho
para Kant. “Ser não é, manifestamente um predicado real; é uma simples posição”.
Desse modo, o ideal do realismo tomista da ontologia e da teologia, da onto-teologia é
posto em dúvida, é substituído. Realiza-se a passagem para a filosofia moderna e nela vale uma
frase de Heidegger em Ser e tempo: “O pior idealismo é melhor do que o melhor realismo”.
Transformada a relação entre essência e existência transforma-se o conceito de ser.
A superação da ontologia objetivista que se realiza a partir de Descartes e sobretudo
em Kant, pelo idealismo transcendental, somento foi possível numa corrente que vai até Suarez.
Por isso temos que examinar os equívocos da evolução do tomismo e as tentativas de
uma leitura nova transcendental, (desde Maréchal, Lonergan) em autores como Lotz, Siewerth,
Puntel, Coreth, Cirne Lima, de temas medievais escolásticos e ainda outros autores do
pensamento contemporâneo. As transformações da filosofia revelam muitos elementos cujos
conceitos podem ser repensados e calibrados a partir das próprias transformações —
transcendental, fenomenológica e linguisticista.

5. Um novo paradigma antropológico - O homem formador de mundo

Uma vez superada a ontologia clássica e introduzido um conceito de ser a partir do


homem, temos uma introdução de uma certo idealismo. Uma transcendentalidade que não vem
mais do ser como tal, mas do ser humano.
Heidegger com sua introdução de um terceiro nível, o ser-aí, o Dasein, ao lado do ser
do ente e do ente enquanto ente de Aristóteles, introduz a compreensão do ser como um modo
de ser do homem e com isso ser passa o ser um conceito que é o caminho por onde o homem
chega aos entes e a si mesmo.
Ser não é mais propriedade ou atributo de um ente supremo, mas se dá na
compreensão de ser como um modo de ser do homem. Como o Dasein, o ser-aí, que
compreende o ser é ser-no-mundo, o existencial mundo então será o elemento determinante da
antropologia filosófica, como uma totalidade ligada ao homem.
Assim, a antropologia filosófica se torna independente e determinante de qualquer
teologia que terá que surgir desde o modo de ser-no-mundo e então constituir-se como
conhecimento.
Exploremos um texto de 1929/1930 em que Heidegger expõe as questões preliminares
para uma possível antropologia filosófica a partir de seu modo de interpretação do ser humano
como ser-no-mundo.
No volume 29/30 Heidegger vai à procura de um elemento de fundamentação que se
situe fora dos tradicionais princípios da metafísica como nous, spiritus, animus, consciência,
representação, que estão todos referidos a uma dimensão de interioridade e cuja eficácia
fundadora é indecidível dado que se situa no universo privado de uma esfera ligada a conceitos
de origem intuitiva ou de crenças.
Ao recorrer ao conceito de mundo que pode ser descrito como uma estrutura que se
pode articular desde três perspectivas: a) uma perspectiva história (Vom Wesen des Grundes); b)
uma análise estrutural do Dasein (Ser e tempo); c) uma análise comparativa (Grundbegriffe der
Metaphysik), o filósofo introduz o conceito de mundo através de recursos fenomenológico-
hermenêuticos que partem de proposições decidíveis.
Com isso o filósofo se situa aquém do debate entre idealismo e realismo. Tende
certamente para um idealismo de caráter mitigado: desde o modo de ser-no-mundo do Dasein é
dada a condição de possibilidade de acesso à realidade.
Desde a estrutura a priori fática de ser-no-mundo já estamos praticamente num mundo
em que nos compreendemos e as coisas que nos rodeiam e somos com os outros.
Não necessitamos, dessa maneira, uma instância mediadora entre nosso modo de ser e
a realidade. Dispensa-se a ponte, entre consciência e mundo. Há um trânsito desde sempre entre
as palavras e as coisas, entre os sentidos e os objetos. A fenomenologia reconquistou a
proximidade com o mundo que, se havia perdido. Podemos descrever o modo de sermos e de as
coisas serem pelos instrumentos da fenomenologia.
Com a analítica existencial Heidegger supera a ruptura produzida na modernidade
entre eu e mundo no terreno da fundamentação e se situa de um modo original a questão do ser
que passou pela modernidade. Supera o causalismo kantiano como vetor de racionalidade como
outras propostas de teoria do conhecimento.
Mas esta superação não se dá por uma nova teoria do conhecimento mas pela
exposição da base existencial pressuposta para qualquer teoria do conhecimento a partir do
Dasein enquanto ser-em.
No curso de 1929/30 se realiza uma mudança conseqüente na questão do ser humano.
Como não é mais necessária uma teoria entre nossas hipóteses e a realidade, a abordagem do ser
humano pode ser feita pelo trabalho descritivo fenomenológico.
Foge-se, assim, de dois anacronismos típicos da tradição. Primeiro, o ser humano é
tratado como o único ser que se pergunta por si mesmo que se converte em tema de seu
interesse. E, segundo, por isso, não é mais tratado como uma coisa ou um objeto, entre as coisas
que assim também aparecem como mundo.
Mas na obra referida, desde a concepção estrutural de Ser e tempo e por um caminho
comparativo, dá-se, ainda, um outro passo essencial. Em vez de o ser humano ser tratado a partir
de uma teoria do conhecimento produzida por ele mesmo, o ser humano é analisado pelos
múltiplos elementos que o filósofo aciona na arquitetônica da obra, sem o juízo prévio de uma
teoria do conhecimento, mas por um novo modo de introduzir a questão do mundo.
Aparentemente inocente esta operação tem conseqüências fantásticas, por exemplo,
para a antropologia filosófica. As antropologias da metafísica eram focadas na metafísica desde
pressupostos de teorias do conhecimento construídas de um presumido ser humano que nelas é
apenas objeto.
Rompia-se, assim, com Heidegger a distância que nunca se transpunha entre as
hipóteses e nossa experiência, não sendo mais necessário preenchê-la com teorias de
conhecimento objetificadoras.
Eram as teorias do conhecimento que perturbavam nosso olhar sobre o mundo do
homem e nos proibiam examiná-lo como ele se dá em seu modo de ser. Supera-se a constante
objetificação a que era reduzida a antropologia filosófica na metafísica, ora pendendo para a
espiritualização ora para a corporeicização.
A liberdade de horizontes assim encontrada nos permite tratar de modo abrangente a
questão do ser humano e, uma vez “repensada a metafísica a partir do tédio fundamental”
encontrar nos três conceitos da “nova metafísica” mundo, finitude, solidão, a possível
plataforma para desenvolver a questão do ser humano de modo comparativo e problematizador
desde o conceito de mundo que recebera já uma análise estrutural em Ser e tempo.
A pedra não tem mundo, o animal é pobre de mundo e o homem é formador de
mundo, postula Heidegger. É dessa maneira que a questão de mundo permite expor uma
progressiva diferença entre o animal e o ser humano, baseada na abertura para o mundo. Os dois
modos de abertura, o do animal como abertura empobrecedora que o faz prisioneiro de seu
entorno, de seu habitat, do anel de sua instintualidade porque o mundo o invade e o possui e o
modo de ser do homem como abertura enriquecedora, porque sempre acontecendo, nunca
acabada, sempre se dilatando como projeto e por isso não oferecendo um lugar seguro mas uma
possibilidade de ser um poder-ser que nunca se fecha e nunca permite um mundo completo.
O animal pobre de mundo tem um mundo definitivo, o ser humano formador de
mundo, sempre projeta mundo, deixa o mundo ser mundo de formas sempre novas e por isso a
sua maneira de ser mundo é tê-lo sempre como perda e reconquista. É essa sua riqueza de
mundo. O pobre de mundo é rico de mundo definitivo (instinto, segurança). O formador (rico)
de mundo é pobre porque sempre tem apenas o mundo como projeto, possibilidade (sem
instinto, insegurança).
É então desta primeira passagem comparativa que se descortina a especificidade do ser
humano que o autor então irá descrever generosamente através da abertura para o todo, para o
ser do ente, onde se instaura a diferença ontológica já no enunciado, a partir do enquanto, do
algo enquanto algo pensado na sua complexidade.
Assim, começa a se perfilar a ligação do ser humano com o logos em dois níveis: no
nível apofântico e no nível hermenêutico. O modo de ser do homem introduz a linguagem que
aponta para a dupla estrutura do enunciado, como estrutura do compreender e estrutura do
mostrar que nasceu do modo de ser-no-mundo. O conceito de mundo passa a a ser determinante
para o surgimento e a possibilidade da linguagem.
Essa posição que representa um momento privilegiado na filosofia heideggeriana pode
ser o ponto de partida para pensarmos a antropologia desde um ponto de vista que se situa para
além dos modos clássicos que surgiram nos anos 30 na Europa. Não se trata mais de buscar os
pólos alternativos para a abordagem do ser humano que oscilavam entre a espiritualização e a
corporeização como momentos explicativos fundamentais do ser humano. A antropologia
filosófica da qual vimos alguns traços centrais, se insere no novo movimento cujo ponto de
partida certamente se situa na filosofia alemã do começo dos anos 30 e tem seus principais
representantes em Max Scheler, Helmuth Plessner e Arnold Gehlen, tendo que ser levada de
modo absolutamente privilegiado à presença da fenomenologia iniciada por Husserl e
transformada em fenomenologia hermenêutica por Heidegger.

6. "Mundo é a totalidade do Dasein (da existência)".


(Romano Guardini)

Romano Guardini dirá (1939): “Welt ist das ganze des Daseins” — “Mundo é a
totalidade do Dasein — da existência”. Com isso uma versão da filosofia de Heidegger termina
eliminando as metáforas que viciaram a relação entre antropologia e teologia — o dentro e fora,
o encima e o embaixo, o alto e o baixo, o interior e o exterior — e que provinham do
imaginário das ontologias clássicas.
A teologia torna-se um problema antropológico. Mas isso não resulta de uma redução
antropológica que surge em Feuerbach, nem de uma simples inversão de dois campos teóricos
da metafísica. A não-objetivação do ser humano e sua compreensão como um todo que é
mundo, permite pensar, filosoficamente (e teologicamente), Deus a partir do homem. Não como
sua supressão, mas como uma dimensão que se dá na própria existência.
A relação entre antropologia e teologia passa a ser filosófica, isto é, uma questão que o
ser humano levanta desde sua finitude, sem precisar submeter esta à relação ontológica de
dependência. Deus pode ser pensado a partir do mundo que é o todo do ser humano (do Dasein).
“Mundo não é apenas o ente em sua plenitude, que também deve ser visto, sentido,
captado, porque de outro modo faltará uma dimensão de desenvolvimento, mas desde o início,
enquanto um todo relacionado com a pessoa e seu destino. Desse modo, em cada pessoa
acontece a decisão sobre o sentido do mundo. Mas não apenas como um caso entre muitos, mas
de modo absoluto, pois pessoa é sempre e cada vez insubstituível. O fato de esta pessoa pôr em
jogo e perder sua salvação, não é reparado pelo fato de que uma outra pessoa conquista a sua
salvação”.
“É esse caráter que temos em vista, quando dizemos que o mundo é Dasein, as
palavras Dasein e mundo significam o mesmo. Apenas na palavra Dasein se olha desde a pessoa
e sua decisão de salvação e na palavra mundo o olhar vem do todo e seu estar-posto-em-jogo”
(Guardini, Welt und Person, 1962, p. 72-73).
Essas citações de Romano Guardini nos revelam o impacto que teve a revolução
antropológica dos anos 20 sobre a obra de um pensador que escreveu nos dois campos, filosofia
e teologia, um grande número de obras teóricas e de interpretações literárias e teológicas. O que
se pode observar pelas passagens referidas que foram extraídas do livro, Mundo e pessoa -
Ensaios sobre a doutrina cristã do homem, é a mudança de categorias antropológicas que o
autor passa a utilizar sob a influência da obra de Heidegger, Ser e tempo, e das diversas
pesquisas realizadas no fim dos anos 20 por Gehlen, Scheler e Plessner, entre outros. Guardini
incorporou nessa obra escrita em 1938 um novo repertório conceitual para falar sobre as
relações do ser humano com o mundo e com o universo descrito pela teologia.
Trata-se da superação de uma terminologia antropológica de caráter dualista, típica da
tradição metafísica. Desse modo tornou-se possível uma nova relação entre antropologia e
teologia. Os dois universos puderam celebrar, na linguagem de Guardini, não apenas um
encontro conceitual, mas um modo novo de situar os problemas centrais de ambos os campos,
tanto da antropologia como da teologia. Romano Guardini pode servir-nos como exemplo de
superação de um velho problema entre antropologia filosófica e teologia. Certamente ele é
apenas um dos autores que intuiram as profundas modificações trazidas pela inovação
paradigmática na antropologia. Isso significou a superação de um dualismo entre espírito e
corpo para tomar em seu lugar a linguagem ligada à questão da abertura do mundo, do ser-no-
mundo, do ser-aí e de uma idéia nova de totalidade. É por isso que Romano Guardini pode
afirmar que "mundo é a totalidade do Dasein." Deve-se talvez compreender a palavra Dasein
em Guardini, mais como existência do que como ser-aí. Mas o conteúdo desse conceito e de
muitos outros já não é mais dualista. E assim remete a um novo modo de perceber a importância
do novo paradigma antropológico para a teologia.

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