Chegou provavelmente o tempo em que temas vitais e ao mesmo tempo delicados não
devam ser abordadas com metáforas apologéticas ou com metonímias polêmicas. Assim, a
questão formulada no título Antropologia e Teologia — uma relação filosófica não resolvida,
não quer provocar defesas exaltadas ou ataques implacáveis e raivosos. Com as informações que
temos à disposição, em número infinito para nossa capacidade finita de manejo e elaboração,
podemos vir com formulações modestas de problemas, com clareza a maior possível nos nossos
enunciados e com conclusões as menos peremptóricas nos nossos raciocínios.
Quando falamos de uma “relação filosófica não resolvida” entre filosofia e teologia
queremos trazer fatos da atividade filosófica que revelam muitos aspectos. Mas o que se quer
destacar é que esta relação é filosófica em primeiro lugar, já que na filosofia, tem sido o maior
problema para todos os filósofos da tradição metafísica. E como não resolvida esta questão é o
motor da filosofia, em seu sentido mais amplo e mais profundo. Quanto ao interesse para os
dois campos em questão, as coisas se apresentam de modo paradoxal: a teologia que deveria
estar o menos interessada, pois já tem uma resposta, possui o maior interesse numa proposta de
solução. A antropologia que deveria estar o mais interessadas, pois nunca terá uma resposta,
talvez tenha o menor interesse numa proposta de solução. Esta situação paradoxal é que faz do
tema que abordarei brevemente, também um tema ambíguo: irei tomar a defesa da antropologia
e ela talvez não precise disso e reclamarei do comportamento da teologia e ela talvez mais
precise de uma defesa diante de suas certezas.
É por isso que o próprio tema corre o risco de se tornar inabordável da melhor forma,
que provavelmente não existe, e talvez, por isso mesmo, permanece sempre objeto de uma
abordagem fragmentária que nunca satisfaz.
E, por fim, provavelmente, o autor é posto, com esta sua preocupação, diante de uma
questão em cuja solução trabalha, mas não acredita que seu trabalho (nem o de ninguém) leve a
uma solução.
Para que o que foi dito, até agora, tenha valor é preciso ainda definir os dois termos da
relação: antropologia e teologia.
Os dois termos nos interessam desde a tradição judaico-cristã, já que os gregos não
conhecem vínculo entre antropologia e teologia que seja ontológico; a teologia grega que atinge
o ser humano apenas o faz através da pólis; é uma teologia política.
É na tradição cristã que teologia e filosofia aparecem com uma relação que interessa
ao nosso tema: de dois modos.
Uma é a relação entre a teologia que se municia da filosofia grega para sua
sistematização e a concepção do homem. Aí se situam as relações entre fé e razão, numa
primeira etapa, apenas como uma relação entre filosofia e teologia.
A outra questão é a da relação entre antropologia e teologia revelada que levou a uma
antropologia cristã e, por outro lado, terminou levando, na sistematização do tomismo por
Súarez, a uma divisão da metafísica geral em três metafísicas especiais — a cosmologia — a
antropologia — e a teologia natural.
Ainda que a partir daí a filosofia tenha por tarefa sua, a discussão das relações entre
antropologia e teologia, a discussão dessa relação trouxe os vícios da tutela da teologia sobre a
antropologia da tradição cristã. Por isso, a autonomia da antropologia era negada por razões
extra-filosóficas ou então ela sofria a tutela dentro dos próprios sistemas filosóficos, porque
neles predominava uma filosofia da história (vinculada com a teologia da história) que
incorporava o ser humano num todo que o transcendia e, portanto, impedia uma antropologia
filosófica independente.
Esta análise introdutória nos permite situar nossa questão que formulamos:
— Antropologia e teologia — uma relação filosófica não resolvida.
O exame de alguns aspectos irá mostrar se faz sentido o que nos propomos.
2. A era da busca do homem todo na antropologia
Romano Guardini dirá (1939): “Welt ist das ganze des Daseins” — “Mundo é a
totalidade do Dasein — da existência”. Com isso uma versão da filosofia de Heidegger termina
eliminando as metáforas que viciaram a relação entre antropologia e teologia — o dentro e fora,
o encima e o embaixo, o alto e o baixo, o interior e o exterior — e que provinham do
imaginário das ontologias clássicas.
A teologia torna-se um problema antropológico. Mas isso não resulta de uma redução
antropológica que surge em Feuerbach, nem de uma simples inversão de dois campos teóricos
da metafísica. A não-objetivação do ser humano e sua compreensão como um todo que é
mundo, permite pensar, filosoficamente (e teologicamente), Deus a partir do homem. Não como
sua supressão, mas como uma dimensão que se dá na própria existência.
A relação entre antropologia e teologia passa a ser filosófica, isto é, uma questão que o
ser humano levanta desde sua finitude, sem precisar submeter esta à relação ontológica de
dependência. Deus pode ser pensado a partir do mundo que é o todo do ser humano (do Dasein).
“Mundo não é apenas o ente em sua plenitude, que também deve ser visto, sentido,
captado, porque de outro modo faltará uma dimensão de desenvolvimento, mas desde o início,
enquanto um todo relacionado com a pessoa e seu destino. Desse modo, em cada pessoa
acontece a decisão sobre o sentido do mundo. Mas não apenas como um caso entre muitos, mas
de modo absoluto, pois pessoa é sempre e cada vez insubstituível. O fato de esta pessoa pôr em
jogo e perder sua salvação, não é reparado pelo fato de que uma outra pessoa conquista a sua
salvação”.
“É esse caráter que temos em vista, quando dizemos que o mundo é Dasein, as
palavras Dasein e mundo significam o mesmo. Apenas na palavra Dasein se olha desde a pessoa
e sua decisão de salvação e na palavra mundo o olhar vem do todo e seu estar-posto-em-jogo”
(Guardini, Welt und Person, 1962, p. 72-73).
Essas citações de Romano Guardini nos revelam o impacto que teve a revolução
antropológica dos anos 20 sobre a obra de um pensador que escreveu nos dois campos, filosofia
e teologia, um grande número de obras teóricas e de interpretações literárias e teológicas. O que
se pode observar pelas passagens referidas que foram extraídas do livro, Mundo e pessoa -
Ensaios sobre a doutrina cristã do homem, é a mudança de categorias antropológicas que o
autor passa a utilizar sob a influência da obra de Heidegger, Ser e tempo, e das diversas
pesquisas realizadas no fim dos anos 20 por Gehlen, Scheler e Plessner, entre outros. Guardini
incorporou nessa obra escrita em 1938 um novo repertório conceitual para falar sobre as
relações do ser humano com o mundo e com o universo descrito pela teologia.
Trata-se da superação de uma terminologia antropológica de caráter dualista, típica da
tradição metafísica. Desse modo tornou-se possível uma nova relação entre antropologia e
teologia. Os dois universos puderam celebrar, na linguagem de Guardini, não apenas um
encontro conceitual, mas um modo novo de situar os problemas centrais de ambos os campos,
tanto da antropologia como da teologia. Romano Guardini pode servir-nos como exemplo de
superação de um velho problema entre antropologia filosófica e teologia. Certamente ele é
apenas um dos autores que intuiram as profundas modificações trazidas pela inovação
paradigmática na antropologia. Isso significou a superação de um dualismo entre espírito e
corpo para tomar em seu lugar a linguagem ligada à questão da abertura do mundo, do ser-no-
mundo, do ser-aí e de uma idéia nova de totalidade. É por isso que Romano Guardini pode
afirmar que "mundo é a totalidade do Dasein." Deve-se talvez compreender a palavra Dasein
em Guardini, mais como existência do que como ser-aí. Mas o conteúdo desse conceito e de
muitos outros já não é mais dualista. E assim remete a um novo modo de perceber a importância
do novo paradigma antropológico para a teologia.
BIBLIOGRAFIA
_______. Metafísica.
FREUD, S. (1949). Gesammelte Werke, Vol. V. London: Imago Publishing Co. Ltda.
_______. (1949). Gesammelte Werke, Vol. VII. London: Imago Publishing Co. Ltda.
_______. (1949). Gesammelte Werke, Vol. XII. London: Imago Publishing Co. Ltda.
_______. (1995). Hermeneutik im Rückblick. G.W., v. 10, Tübingen: J.C.B. Mohr (Paul
Siebeck).
GEKLE, H. (1996). Tod in Spiegel - Zu Lacan Theorie des Imaginären, Frankfurt a.M:
Suhrkamp.
GLAUNER, F. (1998). "Der Transzendentale Ort der Rede von Sprachtranszendens. Zu den
Grundlagen einer Metakritik der sprachanalytischen Kantkritik". In: Kant-Studien. Ano 89,
caderno 3, Berlin, New York: Walter de Gruyter.
HEIDEGGER, M. (1949). Brief über den Humanismus. Frankfurt a.M.: Vittorio Klosterman.
(HB).
_______. (1962). Die Technik und die Kehre. Tübingen: Günther Neske Pfullingen. (TK).
_______. (1999). Metaphysik und Nihilismus. Frankfurt a.M.: Vittorio Klosterman. (MN).
_______. (1988). Ontologie (Hermeneutik der Faktizität). Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann.
(GA, 63).
_______. (1989). Beiträge zur Philosophie, (Vom Ereignis). Frankfurt a.M.: Vittorio
Klostermann. (GA).
_______. (1982). Hölderlins Hymne Andenken. Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann. (GA).
_______. (1983). Einsführung in die Metaphisyk. Frankfurt a.M.: Vittorio Klostermann. (GA).
_______. (1997). Der deutsche Idealismus. Fichte, Schelling und Hegel. Frankfurt a.M.:
Vittorio Klostermann. (DI)
_______. (1955). Was ist Metaphysik. Frankfurt a.M.: Vittorio Klosterman. (WM).
HERTZ, N. (1994). O fim da linha - Ensaios sobre a psicanálise e o sublime. Rio de Janeiro:
Imago.
POEGGELER, Otto. Metaphysik und Seinstopik bei Heidegger. In: Philosphisches Jahrbuch,
Ano 70. 1. Halbb. 1962. p. 120-137, Muenchen.
SIEWERTH, Gustav. Martin Heidegger und die Frage nach Gott. In: Hochland, Ano 53. Agosto
de 1961 – p. 516-526. Muenchen.
_______. (1993). Seminário sobre a verdade - Lições preliminares sobre o parágrafo 44 de 'Ser
e tempo'. Rio de Janeiro: Vozes.
VOLPI, F. (1994). La existencia como praxis. Las raizes aristotélicas de la terminologia de Ser
e tempo. In: Hermenêutica y racionalidad, Ed. Gianni Vattimo, Barcelona: Grupo Editorial
Norma.