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Do indício ao índice ou

da fotografia ao museu

Daniel Soutif

O artigo aborda a relação entre a fotografia e o museu no instante comum do


nascimento de ambos, afirmando que os dois partilham de um mesmo estatuto
ontológico, aquele da mercadoria, tal como anunciado desde meados do século 19.
A partir daí o autor faz uma leitura da condição indicial inerente e inelutável de
uma e outro.

Fo t o g r a f i a , m u s e u , e x p o s i ç õ e s , í n d i c e .

O que se viu...? Mas o que não se viu...? Um pescoço bastante granuloso, que repugna como
sonho quase no chão. Uma nota verdadeira de uma doença. Fuinhas. Um pavão. O retrato de
cinco francos na redoma e as moedas mais Vercingétorix (época gaulesa) e aquele feito por
recentes, tudo que há no seu bolso, mas, Amédée (Napoleão III demais). Nas vigas,
emoldurado, encravado, estendido sobre veludo enfim, dois fetiches folclóricos que intimidam e
de algodão acolchoado, etiquetado com letras intrigam pelo mistério inumano de seus olhos
cursivas en bâtarde1 e arredondadas. Diplomas, em roseta e que parecem pertencer a um
menções honrosas pela criação de pássaros quarto reino da natureza. Acreditamos primeiro
domésticos. Um segundo prêmio dos gatos de que são máscaras negras, depois, cabides.
rua, um primeiro prêmio de patos de Barbarie. Finalmente, analisando, adivinhamos cabeças de
Dois vasos sanitários de porcelana paralelos, cabras, mas tão infantilmente pintadas e
brancos com fundo azul, motivos de flor e modeladas, que poderíamos tomá-las por
folhagem, com uma cabana romântica. Um deus cabeças de cobras, esverdeadas, oceladas,5 com
Marte muito parecido, em falso bronze artístico, esses olhos que eu disse. Duas serpentes píton
“artigo impecável para presente de festa”, com barba e dois chifres de camurça. É
carregando uma etiqueta presa a seu pescoço impressionante. Há, além disso, uma cabeça de
como uma caixa de carteiro: “À nossa querida cabra verdadeira envelhecida funcionando como
Madrinha, seus três gratos afilhados”. Um cabide. Ela tem o pêlo tão surrado, o ar tão
coelho empalhado extremamente instrutivo. vivo, que tememos que ela mastigue seu chapéu
Um tamanco de madeira, soldados de chumbo sobre a cabeça. Enfim, numa sala separada,
do período entre as guerras. Um busto recente dentro de um santuário mais íntimo, ovos de
de Temístocles. Um carregador com seu triciclo pássaros, alguns paramentos e as obras de Henri
em ferro branco e a chave para lhe dar corda, Pourrat. Nada agita mais o cérebro pelo
comprados na Samaritaine. Fuzis (alguns muito inesperado do espetáculo e a gratuidade do
bonitos) e uma “ocarina”2 com a qual (a etiqueta surpreendente.
lembra discretamente) um soldado belga, em Assim se apresenta em Marsac o museu das
1918, tocava a “Brabançonne”.3 Uma outra, senhoritas de Comte, duas irmãs que “o
“esculpida na época”, pelo “pobre papai” dessas tornaram realidade, ao legar – por ocasião de
donzelas e que Ramuz4 admirou bastante. suas mortes – seu mobiliário posto em vitrinas
Todos os tipos de patos vindos de lagos numa sala do primeiro andar de sua casa”. Ao
vizinhos. Uma cabeça de peru empalhada como menos o escritor Alexandre Vialette assim o
cabide, levemente pretensiosa, com um descrevia em uma crônica de 1952.6

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O que se viu? O que não se viu? Nada. Tudo. É que, antes de se tornar ela mesma objeto
Como você quiser. Não importa o que seja, em museificável, a fotografia, assim como o museu,
suma. Isto é, como o escritor-cronista o explica conserva. Ou melhor, sob um certo aspecto, ela
com toda clarividência: “Um Museu de museu. funda a própria idéia de conservação, isto é,
O Museu do museu em si. O Museu da idéia aquela de museu. Sem a fotografia, sem o
de museu”, ou seja, “a transfiguração do interesse conferido pela fotografia ao mais
objeto pela vitrina”. Como prova, uma modesto dos detritos, como ao mais anônimo
hipótese exemplar: dos humanos, podemos apostar que um museu
como esse das irmãs Comte jamais teria nascido
Pegue um cigarro Gauloise, deite-o sobre em qualquer lugar, seja ele Marsac ou a
veludo de algodão acolchoado, cubra com imaginação de um escritor inspirado.
um vidro, eis seu cigarro distante e glorioso.
Você criou um mistério. Com uma auréola. Apesar de Marcel Duchamp, apesar das
Seus visitantes acharão logo para seu senhoritas Comte, no fim de contas, é muito
gauloise uma história natural, uma lenda, recente a entrada maciça de não-importa-o-
um folclore. Eles vão descobri-la. Melhor, quê no museu sob as espécies de Pop Art, de
vão inventá-la. Nascerão dísticos instrutivos Nouveau Réalisme ou da Arte Povera, para
e vapores de defumador. Você criou uma citar apenas algumas correntes artísticas
poesia. E irá inspirar uma epopéia.7 famosas. Até o início dos anos 60, os museus
não acolhiam efetivamente, salvo raras
Eu não sei se o museu das irmãs Comte honra exceções – em especial, objetos surrealistas –,
efetivamente a pequena cidade de Marsac por senão produtos das belas artes, desviados,
conta de seu bazar heteróclito ou se ele só talvez, mas identificáveis, contudo, ainda como
existe na imaginação de Alexandre Vialette. Mas relevantes de categorias tradicionais, isto é,
pouco importa, já que, real ou apenas como pinturas ou esculturas.
imaginário, ele demarca de maneira
extremamente eficaz a idéia de museu. Melhor, Desde a época de sua invenção por Niepce,
ele sublinha idealmente o parentesco dessa idéia Daguerre e Fox Talbot, isto é, no mais tardar
com um outro procedimento de fratura e de 1839, a fotografia absorveu por sua vez, talvez
distanciamento do real: a fotografia, totalmente inconsciente, em todo caso, com
naturalmente. Notas de cinco francos, moedas, absoluta tranqüilidade, aquele não-importa-o-
vasos sanitários de porcelana, coelho quê cujo paradigma se exibe, fora de todo
empalhado, tamanco de madeira, busto de método, nas senhoritas Comte de Alexandre
Temístocles, entregador em ferro branco, fuzis, Vialatte. Não teríamos desde os primeiros
“ocarina”, fuinhas, pavão, retrato de ensaios do procedimento fotográfico, tudo
Vercingétorix ou de Amédée, ovos de pássaros, fotografado? A primeira fotografia da história
mostra, por volta de 1826, aquilo que
paramentos, tudo isso poderia ter sido extraído
Nicéphore Niepce via de sua janela, nem mais,
de outro modo de seu tempo, ter sido
nem menos. Hoje perdida, outra fotografia
conservado de outro modo na desordem, não
atribuída a Niepce conservava a imagem de uma
na vitrina, mas sobre papel, fotografado, em mesa posta. Desde 1839, ano da revelação do
suma. O catálogo levantado por Vialatte, então, procedimento ao público, pela célebre
não seria mais aquele de um “Museu do comunicação de Arago à Academia de Ciências
Objeto Qualquer”, mas a lista de legendas de Paris, Daguerre imortaliza sobre uma de suas
apropriadas de um lote de fotografias placas uma simples coleção de conchas.
encontrado. Toda coleção fotográfica do Reportemo-nos igualmente ao primeiro livro de
museu, não é, aliás, outra coisa senão, como fotografias publicado, o célebre The Pencil of
escreveu Jean-Marie Schaeffer, Nature, de Fox Talbot. Já encontraremos aí uma
confirmação ampla da fantástica ductilidade ou
sempre em parte uma coleção de objetos disponibilidade da invenção, ainda, contudo, na
encontrados ao lado de imagens que são primeira infância. Certamente destinadas mais a
obras de fotógrafos que se consideram ilustrar as maravilhosas propriedades da nova
criadores de valores estéticos, encontramos técnica do que os temas representados, as
ali fotos de reportagem, clichês científicos, pranchas reunidas por Fox Talbot surpreendem
retratos de álbuns de família, imagens também por seu caráter heteróclito. Assim, à
documentais, etc.?8 prancha que mostra uma vista dos bulevares de

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Paris, sucedem duas outras que fazem ver, da fotografia com a mercadoria industrial e serial
organizados sobre as prateleiras, os Articles of constitui assim um dos topoi, dificilmente
China e os Articles of Glass.9 A essas duas contornável, de toda reflexão sobre o tema. Por
imagens segue aquela do busto, não mais de outro lado, temos observado mais raramente,
Temístocles como os das irmãs Comte, mas o que, se a fotografia é de fato reprodutível, outra
de Pátroclo, e deste último se passa sem propriedade não menos notável de seu regime
transição para a famosa fotografia intitulada The de funcionamento é a proliferação sem limite de
Open Door, cuja personagem principal não é seus temas. Não só qualquer pessoa pode
outra coisa senão uma modesta vassoura que fotografar, mas, além disso, tudo pode ser
em nada estava predestinada à semelhante fotografado, sem reserva, com a condição,
glória histórica. Seguem-se imediatamente a claro, de que certas condições técnicas, aliás,
fotografia de uma folha de planta, depois aquela incessantemente recuadas, sejam respeitadas.
de duas prateleiras carregadas de livros. Inútil Nesse sentido, um só medium, a escrita, é
insistir, visto que outra fotografia, tirada no comparável à fotografia, que merece, pois,
mesmo ano da divulgação do processo por perfeitamente seu nome de “grafia” luminosa.12
Arago, fecha, quase explicitamente, o museu Qualquer que seja essa analogia, então, só
na fotografia. O que mostra essa imagem tirada restam dos astros até a vassoura de Fox Talbot,
por Hippolyte Bayard? Uma meia dúzia de passando para uma gota de leite flutuante no
estátuas de gesso ou, em suma, um pequeno espaço ou pelas estátuas de Hippolyte Bayard,
museu em imagem... tudo aquilo que é suscetível de emitir ou de
refletir um feixe de raios luminosos na direção
Recentemente quisemos estabelecer que a visão de uma superfície sensível, poderá deixar uma
fotográfica já estava em gestação em uma certa impressão fotográfica identificável como tal.
pintura, mais ou menos menor, nascida no final Certamente, tudo não podia ainda ser
do século 18, e que, assim, a fotografia não teria fotografado, certas coisas talvez jamais
instaurado nenhuma ruptura profunda na história poderão, mas, de agora em diante, milhões de
das formas de representação pictórica originárias objetos possuem suas representações
da invenção da perspectiva no princípio da fotográficas, e a todo momento a fotografia
Renascença.10 Para além do fato de se tratar ali produz a mesma fratura no tecido do real, o
de uma ilusão retrospectiva análoga àquela mesmo distanciamento, literalmente,
que, em geral, funda o conceito de precursor – revelador: fotografado, o tema da fotografia é
o qual supõe que aquilo, que só depois ipso facto transformado em objeto e, como
sabemos que veio antes, veiculava, em seu escreve Roland Barthes sobre o retrato
tempo, um sentido descoberto apenas fotográfico, “até mesmo, se pudermos dizer,
ulteriormente11 –, esse ponto de vista sobre a em objeto de museu”.13
fotografia tem evidentemente como falha
privilegiar a relação da fotografia com a câmara Basta dizer que seria completamente legítimo
escura, isto é, a parte ótica ou geométrica e parafrasear a passagem de Vialatte citada mais
perspectiva do procedimento, à custa de sua acima, substituindo a vitrina do museu pela
dimensão de impressão fotoquímica, não fotografia: “Pegue um gauloise... Uma vez
menos essencial, todavia. O mais grave, essa fotografado, eis seu cigarro distante e glorioso.
interpretação oblitera precisamente o fato Você criou um mistério. Com uma auréola...”
ainda mais fundamental, uma vez que ele Inútil precisar que essa paráfrase não faz mais do
distingue radicalmente a fotografia de seus que reforçar a legenda de uma fotografia já
precedentes pictóricos, de que tudo, quer dizer, existente. Para citar apenas um exemplo, não foi
não-importa-o-quê é suscetível de se tornar o para repousá-la sobre papel fotográfico que
tema de uma fotografia. Marcel Duchamp tirou de sua própria veste de
papel sua Cigarette de 1936?
Mais judiciosamente, desde que o Walter
Benjamin de “A obra de arte na era de sua Afora o museu imaginário de André Malraux,
reprodutibilidade técnica” se tornou – de forma que visou pura e simplesmente à abolição das
justa – uma das referências obrigatórias da paredes do museu – Museum without walls
reflexão teórica relativa tanto à arte como à (Museu sem paredes), informa a tradução
fotografia, tem-se com regularidade destacado a americana para o título da obra de Malraux –
reprodutibilidade da fotografia para opô-la à em favor de sua substituição pelo papel
unicidade das imagens pintadas. O parentesco fotográfico, a conjunção da instância museal e da

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instância fotográfica já foi assinalada muitas vezes parentesco de fotografia e museu, são
com maior ou menor clareza. Assim, em um suscetíveis de explicar a heterogeneidade
artigo intitulado On the Museum´s Ruins, comum àquilo que ambos expõem.
Douglas Crimp fundava uma análise pós-
modernista da noção de museu sobre uma Uma das vias desse problema foi largamente
interessante referência às diversas obras de desobstruída, uma vez que a fotografia foi desde
Rauschenberg que recorrem às fotografias então objeto de numerosos estudos que
serigrafadas. Aproximando o museu de diversas touxeram à tona seus traços mais
instituições de exclusão e de confinamento, o fundamentais.15 A este respeito, nós nos
asilo, a clínica e a prisão, estudados por Michel contentaremos, pois, em lembrar ou precisar
Foucault, Crimp as associa por outro lado, à certos pontos para as conclusões necessárias à
fotografia, ou “talvez mais precisamente” ao “uso análise. Ao contrário, em se tratando do museu,
repressivo e seletivo da fotografia”, museu e ainda que os estudos históricos sejam
fotografia constituindo assim juntos “as numerosos, o ponto crucial que permite
precondições do discurso que nós chamamos interpretar o parentesco de museu e fotografia
de arte moderna”. não parece ter sido percebido ainda com a
mesma clareza, mesmo que algumas vezes se
Combinando como que ao acaso fotografias tenha aproximado bastante dele.16 Digamos,
em diversas obras no início dos anos 60, para resumir em poucas palavras essa situação e
Rauschenberg teria desconstruído essa indicar já o sentido da proposta que será feita
ligação de “precondições” implícita no aqui, que, se desde então se tornou comum
discurso do museu. Mais precisamente, é ao considerar as fotografias a um só tempo ícones,
exibir na superfície de suas telas o predicado indícios e índices, não se tentou ainda analisar a
comum ao museu e à fotografia que instituição museal com a ajuda desses mesmos
Rauschenberg, segundo Crimp, efetuaria instrumentos conceituais cuja origem está para
essa desconstrução tipicamente pós- ser procurada nos trabalhos semióticos de
modernista. Esse predicado comum tem um Charles S. Peirce. Se isso tivesse sido feito,
nome: heterogeneidade absoluta. Com teríamos evidentemente concluído que o museu
efeito, se acreditarmos em Crimp, não pertence nem à classe dos ícones, nem
àquela dos indícios, mas, ao contrário, salienta
[Essa] absoluta heterogeneidade, que é o muito claramente aquela dos índices.
campo dividido pelo museu e pela
fotografia, é estendida sobre a superfície de Para começar, voltemos, então, ao significado
cada obra de Rauschenberg. Mais dos termos “ícone”, “indício” e ”índice”[“icône”,
importante, ela se amplia a cada obra. “indice”, “index”].17 Segundo a definição clássica
Assim, “o sonho de Malraux” se teria tornado, de Peirce, o ícone remete a seu objeto em
sempre segundo os termos de Crimp, “o virtude de sua semelhança com ele, o que
gracejo de Rauschenberg”.14 significa que certas propriedades do ícone
devem corresponder homologicamente a certas
Certamente não falta pertinência a essa análise, propriedades do mesmo objeto. Imagens,
e, sobretudo, ela tem o imenso mérito de diagramas, fórmulas lógicas ou algébricas,
colocar em evidência um ponto essencial à metáforas podem, assim, ser consideradas, a
inteligência da modernidade. No entanto, falta- títulos e graus diversos, icônicas. Em seu limite,
lhe uma dimensão fundamental. Se a o ícone perfeito de um objeto dado é o próprio
heterogeneidade absoluta é, de fato, um objeto, mas, nesse caso, a iconicidade
predicado partilhado pelos universos respectivos propriamente dita se dissolve, e então podemos
que constituem o museu e a fotografia, esse concluir desse limite que o ícone deve ao
predicado no fim das contas não constitui mais menos sob algumas configurações diferir de seu
do que um sintoma, e não uma causa. Assinalar objeto, sob o risco de não se confundir com ele
e nomear esse sintoma é um passo e desaparecer enquanto ícone. Que as
considerável, o problema é que a sua fotografias sejam, assim como as pinturas
interpretação não permanece menos completa. figurativas, ícones, é indubitável, mas essa não é
Em outras palavras, a questão que convém a sua qualidade primeira. Assim como
agora colocar é aquela, tanto teórica como numerosos autores sublinharam, a iconicidade
histórica, da natureza exata das relações fotográfica – que não é necessariamente
homológicas (ou não) que, fundando o evidente, uma vez que numerosas fotografias,

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detalhes tirados do conjunto, por exemplo, não determinado caso – a contigüidade espacial –, a
deixam adivinhar automatica ou imediatamente presença do objeto indicado é requerida,
de quais objetos elas são representação – é um enquanto em outro – a relação causal –, é
efeito do processo ao mesmo tempo sobretudo sua ausência que está em questão:
geométrico e físico-químico que gera a claro, assim que visível, o fogo não precisa mais
imagem fotográfica. Impressão da luz emitida ser sinalizado pela fumaça. Como conseqüência,
ou enviada por um objeto sobre uma Eco propõe-se a nomear como vetores de
superfície fotossensível, a fotografia, com atenção os signos do primeiro tipo cujo “papel
efeito, pertence em primeiro lugar a outra consiste em assinalar que a atenção do
classe de signos, que Peirce distinguiu tanto Destinatário deve ser fixada sobre um objeto ou
dos ícones quanto dos símbolos. uma situação particular”.20
No que concerne a essa classe de signos que Seria não menos simples e mais conforme à
compreende a um só tempo os indícios [indices] lógica da língua reservar a esses “vetores de
e os índices [index], é necessário, entretanto, atenção” o nome de “índice” e nomear
tomar cuidado para evitar – o que é essencial “indícios” os signos ou as representações
aqui – a confusão, de fato bem mais grave, resultantes de uma relação causal com seu
entre dois termos, duas subclasses bem distintas objeto. Essa solução característica também será
que a compõem. Essa confusão, infelizmente adotada aqui.
corrente, encontra sua origem, é verdade, nos
próprios escritos de Peirce. Ele, com efeito, A distinção é, em todo caso, tão importante,
utilizava uma só palavra – a palavra inglesa index que os dois termos se aplicam, de dois pontos
– para designar tanto os índices no sentido de vistas diferentes, em relação à fotografia,
próprio do termo quanto os indícios. Segundo enquanto só um dos dois vale para o museu.
Peirce, um índice é Na qualidade de impressão, a fotografia é
evidentemente indicial [indicielle]. Toda imagem
um signo ou uma representação que fotográfica é – a coisa é bem conhecida – o
remete a seu objeto não tanto porque tem efeito, no sentido determinista do termo,
qualquer similaridade ou analogia com ele daquilo que, por outros caminhos, ela mostra,
nem porque seja associado às isto é, se preferirmos, daquilo que ela é também
características gerais de que esse objeto se o ícone. É inclusive a natureza particular da
acha possuído, mas porque está em estrutura causal própria à fotografia, sua archè,
conexão dinâmica (aqui compreendida para retomar a expressão judiciosa de Jean-
como espacial) com o objeto individual, de Marie Schaeffer,21 que condena a fotografia à
uma parte, e, de outra, com os sentidos ou iconicidade. Sendo cada partícula da superfície
a memória da pessoa para a qual ele serve fotográfica regulada geometrica e físico-
de signo.18 quimicamente pelo objeto fotografado, essa
Se certos exemplos citados por Peirce – superfície toda não pode deixar de manter uma
baromêtro baixo e ar úmido como sinal de relação de homologia, ela mesma regulada por
chuva, cata-vento como sinal da direção do pelo menos uma parte desse objeto do qual ela
vento – implicam uma relação causal entre o será, assim, necessariamente o ícone. Podendo
que ele chama de objeto do signo e o signo outros tipos de estruturas causais gerar outros
em si, outros, a começar pelo indicador (o tipos de indícios, segue-se naturalmente que
dedo) apontado para indicar um objeto ou todos os indícios não estão, a exemplo da
uma direção, supõem ao contrário uma fotografia, condenados à iconicidade; assim, a
simples relação espacial. Umberto Eco está fumaça não é ícone do fogo, não menos do que
bem fundamentado ao sublinhar a o sintoma geral não é aquele da doença. Ícone,
ambigüidade do conceito de índice no sentido portanto, por ser indício de um tipo particular, a
de Peirce. Trata-se, como pergunta Eco, de fotografia é, inversamente, índice – ou antes,
um “signo que tem com o objeto indicado como veremos, “quase-índice” – porque ela é
uma conexão de contigüidade física (o dedo ícone. Em outros termos, sendo tudo o efeito
apontado) ou uma conexão causal (a fumaça daquilo do que ela é imagem, a fotografia aponta
produzida pelo fogo)”?19 simultaneamente com o dedo para aquilo que
ela mostra assim automaticamente como
A pergunta é muito importante, em particular no imagem. Sem dúvida, o objeto, como exige a
que nos interessa aqui, pois que em um aplicação da função indicadora [indicielle] à

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fotografia, está certamente ausente do campo duchampiano – deveria permitir sustentar a


que lhe é próprio, mas simultaneamente está ali hipótese que será adiantada.
presente, ou antes, quase presente, apresentada
se quisermos, uma vez que sua imagem é Coube a Rosalind Krauss ter sido a primeira a
oferecida ao olhar, ou melhor, dada a ver como chamar atenção não apenas para o parentesco
comportando um interesse ao menos suficiente que liga a prática artística de Duchamp à
para ter dado lugar a uma fotografia. Uma vez fotografia, mas, mais especificamente, para o
que somente o objeto propriamente dito, em papel da função indicial desse parentesco. Em
carne e osso, pode ser considerado a causa da um artigo famoso, Notes on the Index,24 Rosalind
fotografia, é a combinação, portanto, de sua Krauss repertoriava primeiro um conjunto de
ausência real com sua quase presença icônica procedimentos fotográficos em diversas obras
que permite considerar a fotografia a um só do artista, a começar pelo Grand Verre e,
tempo indicial e (quase) indiciável / (quase) particularmente, Tu M’. Depois, apoiando-se em
indicializável [indicielle et (quasi-) indexicale]. um texto de Duchamp que identificava o ready
Essa combinação constante não deve, made a um instantâneo, ela chegava às seguintes
entretanto, conduzir, como acontece conclusões a respeito dessas obras todas
freqüentemente, à confusão ou, ao menos à prontas roubadas da indústria:
indistinção dessas duas funções.
O paralelo do ready made com a
Se nos voltamos agora para o lado do museu, fotografia é estabelecido por seu processo
perceberemos não menos claramente que a de produção. Ele se deve a uma
natureza de seu funcionamento leva a colocá-lo transposição física de um objeto de seu
na classe dos índices, e apenas nessa, ao menos continuum d a r e a l i d a d e p a r a a c o n d i ç ã o
se quisermos permanecer nas três classes postas fixa da imagem de arte por um momento
antes em jogo. Além disso, um museu pode ser de isolamento ou seleção.25
certamente considerado um símbolo de poder,
de autoridade, ou simplesmente de riqueza, mas Dessa similaridade, Krauss concluía que a
jamais um ícone nem um indício [indice].22 Em conseqüência do ready made seria não apenas o
contrapartida, o museu é evidentemente um índice [index], mas, mais precisamente, um
vetor de atenção, isto é, um dedo apontado comutador, isto é, um desses signos que como
sobre os objetos que ele expõe, dito de outro “aqui”, “agora”, “eu”, “tu”, etc. não têm
modo, um índice. Prova – evidente – é o fato significação senão por referência direta a um
de o museu exigir a presença efetiva dos objetos objeto ou um ser realmente presente, que esses
sobre os quais ele tem por função chamar a signos têm precisamente por função designar
atenção de seus visitantes. Privado de objetos em uma situação de um dado discurso, fora da
para expor, o museu perde sua função indicial qual eles se esvaziam de conteúdo. É indubitável
[indexical] ou, ao menos, torna-se um índice que os comutadores sejam índices [index]; que
vazio, ainda que não seja certo que, vazio de os ready mades tenham algo a ver com os
todo conteúdo, o museu possa por si só indícios e os índices [indices et index], não
continuar a se impor como tal. O fato, aliás, é menos. Em contrapartida, o que é bastante
que nenhuma arquitetura especificamente discutível é que eles sejam identificáveis aos
museal foi antes necessária à constituição do índices [index]. Se o ready made – por exemplo,
museu enquanto instituição e que todos os o inevitável Fountain assinado R. Mutt – partilha
tipos de edifício, palácios principescos como o com a fotografia o procedimento de extração
Louvre e o Palácio de Luxembourg, em Paris, que o recorta e o tira da fatia de real ao qual ele
igrejas desativadas, conventos e, hoje em dia, pertencia antes da intervenção do artista, ele
entrepostos industriais, garagens ou usinas permanece, apesar de tudo, fisicamente o
desativadas, podem ser investidos da função mesmo, isto é, a bipolaridade – a fumaça e o
museal.23 fogo, o dedo apontado para o objeto indicado –
característica tanto dos indícios [indices] quanto
Antes de examinar certas propriedades do dos índices [index] não é dada ipso facto pela
museu considerado enquanto índice, o operação de fratura ou extração que, como a
contra-exemplo constituído por uma fotografia, exige todo ready made. Em seu
interpretação célebre – mas, de certo modo limite, a Fountain poderia ser considerada ícone
errônea ou aproximativa – de uma obra de um urinol, uma vez que ela permaneceu
histórica emblemática – o ready made praticamente idêntica a ele, ou ainda o indício

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[indice] de seu processo de produção industrial Ao produzir a Fontaine , e ao invocar a
e serial, mas certamente não um índice [index] estratégia do ready made, Duchamp
que nesse caso apontaria para si mesmo, o que, convertia o urinol de seu estatuto de
claro, todo índice faz – voltaremos a isso –, mas representante de uma classe a uma
sob a condição de apontar também para outra condição de eqüididade, que é
coisa que não seja ele, sem a qual ele não seria exclusivamente a deste objeto aqui . Desde
um índice [index]. Basta dizer que o ready made então, ele não é mais o significante através
só começa a ter relação com a função indicial do qual uma classe se exprime, mas sim
[indexicale] a partir do instante em que ele não uma declaração de unicidade que depende
apenas é tirado de seu contexto original, mas é do eixo físico de um elo, o elo entre este
também colocado em outro, no qual ele se objeto preciso e sua base, o qual é em
encontra indexado. Um tal contexto só poderia última instância o elo entre este objeto e
ser – é evidente – um lugar de exposição seu espaço de exposição.26
especificamente artístico, isto é, para ser franco,
o museu, o qual, só ele, na operação, merece Mas esse novo texto, não mais do que o
ser considerado indexante e análogo, senão à precedente, não distingue claramente entre o
fotografia, ao menos ao aparelho e ao suporte – indício e o índice, ainda que a confusão entre
o papel – fotográficos. Em outro estudo mais estrutura indexante e objeto indexado
recente e desenvolvido a respeito de Marcel permaneça, senão completa, ao menos ainda
Duchamp e a fotografia, Krauss se aproximou, ativa o suficiente para que, em todo caso, se
aliás, dessa conclusão, mas de outro ponto de mantenha bastante à margem à evidenciação do
vista, posto que então escrevia: papel do lugar de exposição na complexa

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operação de transmutação que, finalmente Inútil enfatizar que observação semelhante


conduz à constituição do ready made enquanto poderia, mutatis mutandis, ser renovada em
tal. Se o ready made é, portanto, parente nossos dias não só a respeito do Estado, mas
próximo da fotografia, se, sem ela, ele igualmente ao mecenato.
provavelmente teria sido inconcebível, convém
observar, entretanto, que esse parentesco passa O fato de, por outro lado, o índice museal auto-
pelo meio-termo do museu. Sem o parentesco indexar-se dessa maneira constitui
deste com aquela, isto é, sem a função indicial evidentemente a origem dos conflitos que, ao
do museu, produzir um ready made seria, com longo de sua história, opuseram com mais ou
efeito, impossível. menos regularidade os defensores das obras e,
naturalmente, os artistas. Que eles estejam
Neste ponto é necessária, portanto, uma convencidos da autonomia das obras e,
análise de função indicial própria ao museu. portanto, do necessário apagamento do
Não faremos aqui mais do que esboçar alguns dispositivo de sua exposição ou, ao contrário,
traços dessa lógica do índice museal. Esses persuadidos, a exemplo de Quatremère de
traços dirão respeito (em ordem) à Quincy,30 de que o museu as mutila ao as extrair
reflexividade desse índice, a sua complexidade de suas respectivas situações originais, todos
estrutural e, enfim, a sua relação com as outras aqueles que defendem a obra contra o museu
funções do museu, particularmente, a função se prendem de fato a sua reflexividade, isto é, a
histórica ou, antes, historiadora. sua propriedade de mostrar-se tanto quanto
aquilo que exibe. Conflito clássico, que sintetiza
Em primeiro lugar, convém assinalar que, como bem a célebre sentença chinesa segundo a qual
todo índice e, mais genericamente, como todo seria um idiota aquele que, quando lhe mostram
signo,27 o museu considerado enquanto índice a lua, olha o dedo.
designa a si mesmo como tal. Sob a condição de
mostrar algo, o museu mostra-se também Não se deixará de notar na passagem que uma
mostrando algo. É dessa reflexividade que o tensão análoga se reencontra, de modo ainda
museu tira sua capacidade de exercer, por outro mais pronunciado, na fotografia, tão próxima
lado, uma função de tipo simbólico. Mostruário àquela que em um caso (o do museu) conduz à
de riqueza, signo de poderio político, função simbólica e, em outro (o da fotografia),
manifestação mais ou menos suntuosa da solidez reconduz diretamente da indexação à função
histórica e cultural, instrumento pedagógico, o indicial [indicielle] e, portanto, à colocação entre
museu aspira sempre à qualidade de parênteses de toda função simbólica. Com
monumento. Não por acaso, um dos primeiros efeito, todo mundo sabe muito bem que,
museus criados durante a Revolução Francesa foi quando se olha uma fotografia, a percepção
o famoso Museu dos Monumentos Franceses, balança entre duas direções opostas: o objeto
sem contar os textos de época em que se trata representado ou a fotografia considerada por
dos “monumentos das artes e das ciências”.28 O sua vez objeto. Assim, Schaeffer pergunta:
predicado simbólico não podia deixar de deslizar
do conteúdo para o continente. Monumento a Como discernir entre o que é próprio à
seu modo, o museu surgiu imediatamente sob imagem e o que se remete ao real,
uma época enfática que lhe permitiu, em quando nos encontramos frente a uma
contrapartida, valorizar as potências políticas imagem que não o é em sua
que o alimentavam, como sublinha, por especificidade, senão enquanto
exemplo, esta anotação de Daniel J. Sherman apreendida como registro do real?31
acerca dos envios de obras para as províncias
pelo Estado francês: Olhar a fotografia enquanto fotografia, isto é, em
uma perspectiva modernista, enquanto arte que
Dificilmente exageramos ao dizer que o exibe a especificidade de seu medium, é, em
Estado deu menos importância às outros termos, tentar esquecer o tema, mas
pinturas propriamente ditas do que às para se ver imediatamente reconduzido ao
etiquetas nelas colocadas, com a mesmo, uma vez que a especificidade da
inscrição: “doação do Imperador”, ou, fotografia não é outra coisa senão o indício
mais tarde e mais modestamente – mas [indice] desse tema. É, aliás, precisamente nesse
não menos claro – “Dépôt de l’Etat” [sob círculo que se debate a análise modernista do
a guarda/acervo do Estado]. 29 Szarkowski de The Photographer’s Eye.32 A

206
fotografia, com efeito, nada pode fazer além constituídos permitiriam salvar os quadros, para
gerar a simples certeza de que seu tema, um dia “fazê-los servirem à história da arte”.37
ou outro, existiu em algum lugar. “Isso foi”, diz
Barthes admiravelmente a este respeito.33 Mas Do mesmo modo, em 1795, quando a
nós não conseguiríamos extrair dessa certeza o Comissão de Instrução Pública homologará o
que é que estaria sobre o plano simbólico. Sem projeto de um Museu dos Monumentos
a legenda, cuja ligação obrigatória com a franceses lançado por Alexandre Lenoir, ela
fotografia foi vigorosamente destacada por especificará que se deverá tratar de um
Benjamin, nenhum alcance simbólico pode, com museu histórico e cronológico em que se
efeito, surgir dessa certeza existencial, a menos encontrarão as épocas da escultura
que ela permaneça reduzida a si mesma – o que francesa em salas particulares, dando a
é o caso, se nos detivermos estritamente ao cada uma a característica, a fisionomia
que é dado no interior dos limites da moldura exata do século que ela representa.38
da fotografia. Do museu, ao contrário, pode-se
dizer que, enquanto índice, ele constitui uma Uma tal cronologia linear não é senão o mais
legenda monumental que, por definição, simples dos esquemas aos quais a função do
destaca, em todo caso, para além da moldura, museu se submeterá. Assim, na Alemanha, por
os objetos presentes em seu interior e – uma exemplo, ela (a função do museu) não deixará
vez que estes continuam, tanto dentro como de dialetizar hegelianamente.
fora, a ser distintos dele – e destaca em si,
simultaneamente, carga simbólica mais ou Estudando a formação do arquétipo que
menos considerável. constitui o Altes Museum, aberto ao público de
Berlim em 1830, Douglas Crimp pôde,
Índice [index] auto-reflexivo, o museu é, além efetivamente, mostrar como o monumento
disso, um índice complexo, articulado. Se arquitetônico neoclássico concebido por
partirmos das obras, o museu forma um Schinkel responde, palavra por palavra, aos
sintagma pluridimensional que começa na momentos da estética dialética do filósofo que
moldura do quadro ou na base da escultura e profetizou o fim da arte e sua superação pelo
prossegue com as cartelas,34 a parede, a sala e conceito filosófico. Assim como o mostra
assim por diante até o edifício todo. Tal Crimp, ao se apoiar sobre o exemplo da
complexidade é evidentemente devedora de rotunda central, em torno da qual gravita ao
organizações variadas, devidas, às vezes, ao mesmo tempo a arquitetura de Schinkel e a
acaso, depois, cada vez com mais freqüência, à visita que ela devia programar, o Altes Museum
medida que nos distanciamos do período da pretendia operar também a síntese das obras e
formação original dos museus, a uma do museu, termos, ao contrário,
deliberação consciente, às vezes diretamente irredutivelmente antagônicos aos olhos dos
comandada pela teoria estética ou filosófica. É adversários de seu projeto que, como Alois
certo que nem todos os museus se apresentam Hirt, pensavam que os “objetos de arte não
com o aspecto do bricabraque reunido pelas estão ali para o museu” e que “antes, o museu é
irmãs Comte. Muito pelo contrário. É que é construído para eles”.39
precisamente pelo viés da organização de Conquanto arquetípico, não é certo que o
diversas articulações do índice museal que modelo fornecido pelo Altes Museum se tenha
intervém a ligação – e, às vezes, submissão – da efetivamente imposto para todos os museus. O
instituição a outras funções, sendo a principal estudo de Sherman sobre os museus franceses
delas a função histórica, isto é, o papel exercido no século 19 fez, com efeito, aparecer a eficácia
pelo museu enquanto ilustração de uma história de outras determinações que não aquelas
da arte concebida de modo cronológico. Assim, derivadas da história da arte. Dessa maneira –
desde 1791, isto é, desde a aurora da enfatiza Sherman várias vezes – o papel dos
Revolução Francesa, um dos membros da fatores geográficos. Esse papel aparece, por
Comissão dos Monumentos, chamado exemplo, na insistência das autoridades
Lemonnier, vislumbrava em uma carta “esta idéia responsáveis pelos museus do interior quando
magnífica de fazer no Império tantos espaços35 procuram obter do Estado o envio de obras
públicos para as Ciências e as Artes para quantas ligadas à história da região em questão ou,
províncias36 houver”, esclarecendo reciprocamente, no fato de o Estado conceder
imediatamente que os museus assim mais facilmente sua ajuda financeira nos casos de

T E M Á T I C A • D A N I E L S O U T I F 207
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aquisições desse tipo, de uma obra que seja escultura modernistas – não era, quer se
ligada à região por seu tema, ou pela origem de tratasse de um retábulo do século 14 ou de um
seu autor.40 Sobretudo, apesar da racionalização mictório do 20, destinada inicialmente a esse
do museu sob o efeito da autoridade da história fim. Todo o problema da articulação do índice
da arte, estamos longe de o museu bricabraque museal reside efetivamente ali. Exceto os
ter-se tornado, segundo a fórmula de Yve-Alain objetos expressamente produzidos para o
Bois, “uma lembrança para os pintores museu – e, ainda uma vez, não mais para esse
modernistas como Courbet e Manet”. Muito domínio do que para outros –, a intenção não
pelo contrário, uma vez que, como esclarece equivale à realização, a separação entre o que o
esse autor após ter comentado certos museu deve deixar penetrar seus muros – isto
elementos evidenciados por Crimp, “foi grande é, indexar como digno desse privilégio – e
a queixa de numerosos artistas contra a aquilo que, ao contrário, deve ser abandonado a
confusão que representava para eles as salas do seu lugar e a seu tempo não é dada por
Luxembourg ou mesmo do Louvre”.41 nenhum critério prévio à constituição e
organização mais ou menos fundada em teoria
Bricabraque, ilustrações sistemáticas de uma por seu poder indexante. Em outras palavras,
filosofia de história da arte de tipo hegeliano retire o índice museal: com ele se apagará
não são, aliás, os únicos casos de aparências inelutavelmente também – no caso de ele
possíveis. Outras estruturações do índice possuir um – seu fundamento teórico. O que
museal foram empregadas. No mesmo estudo, restará, então? O mesmo bricabraque do ponto
Yve-Alain Bois comenta, a esse respeito, o de partida, aquele, em suma, das irmãs Comte.
caso do Landesmuseum de Hannover, dirigido
nos anos 20 por Alexander Dorner, que ali E eis o museu reconduzido à fotografia.
instituiu não uma linearidade histórica simples, Conseqüência inevitável, uma vez que, tanto em
mas uma articulação entre minisséries (as um caso como no outro, trata-se de fraturar –
diversas épocas) definidas cada uma como indício e índice em um caso, apenas o índice no
animadas – segundo um conceito tomado de outro – espaço e tempo! Museificar isto ou
empréstimo a Aloïs Riegl – por um Kunstwollen aquilo, fotografar isto ou aquilo, é ir igualmente
(querer artístico42) específico. Ao universalismo ao mesmo. Salvo que o aparelho fotográfico é
de Schinkel opôs-se assim em Hannover um mais leve do que o aparelho museal, o que não
tipo divergente de indexação das obras, que significa, longe disso, que a fotografia seja menos
visava recriar para cada família histórica pesada, mas, quando muito, que seu imenso
condições de visibilidade as mais próximas peso está alhures.
possíveis daquelas que caracterizavam sua
situação original. O limite dessa tendência é Tudo muda, diz Walter Benjamin em sua
evidentemente a Period Room, no qual o museu “Pequena História da Fotografia”, “se da
procura dissimular uma parte de seu poder fotografia como arte se passa para a arte
indexante, isto é, mais precisamente aquela como fotografia”.44
que toca diretamente a obra, a fim de restituir-
lhe – de maneira absolutamente ilusória, é Essa passagem – isso agora está claro –, coube
claro – seu contexto temporal próprio. De sua ao museu efetuá-la. A concomitância temporal
parte, o museu contemporâneo tem adotado da invenção da fotografia e da formação dos
freqüentemente uma fórmula radicalmente museus não é, portanto, um acaso histórico,
oposta àquela da Period Room, cujo White Cube mas sim uma convergência que vai buscar
(cubo branco), teorizado por Brian O’ alhures suas razões, alhures, quer dizer, em um
Doherty,43 marca, no outro extremo do determinismo ao qual se submeteram tanto a
espectro, limite não menos nítido. fotografia e sua invenção quanto o museu.
Ocorreu, mais uma vez a Walter Benjamin, ter
Não insistiremos mais sobre esse ponto, uma sido o primeiro a juntar os elementos essenciais
vez que de agora em diante ele está desse quebra-cabeça cuja peça central era
suficientemente estabelecido como um índice naturalmente o conceito de mercadoria e cujos
[index] complexo: o museu não pode deixar de demais elementos, além da fotografia e do
suscitar a questão da articulação dos elementos museu, são o fetichismo e, no ponto supremo –
que constituem sua capacidade de indexar se não por sua constituição, ao menos por sua
objetos, cuja maioria – com exceção, claro, manifestação –, as Exposições Universais que, a
daqueles pertencentes ao campo da pintura e da partir de 1851, marcaram o século 19.45

208
A se acreditar em Benjamin, na segunda versão consideravelmente o círculo da economia
de “Paris, capital do século 19”, “As Exposições mercantil, ao jogar no mercado em
Universais idealizam o valor de troca das quantidade ilimitada personagens,
mercadorias. Elas criam um quadro no qual seu paisagens, acontecimentos que até então
valor de uso passa para o segundo plano”.46 não eram de forma alguma exploráveis, ou
unicamente sob a forma de um quadro
Nesta última formulação, Benjamin faz mais do para o cliente.48
que resvalar a aplicação da função de indexação
– “uma moldura...” – das Exposições Universais. Basta dizer que Benjamin teria podido muito
Em um só golpe, ele revela com toda clareza o bem aplicar à fotografia as observações que
determinante subjacente a essa função partilhada reservou ao caricaturista, tanto em 1935 – “As
indiretamente, tal como se viu, pelo museu e fantasias de Grandville dão a todo o Universo a
pela fotografia. Esse determinante não é outra característica de uma mercadoria...” – quanto
coisa senão, evidentemente, a identidade em 1939 – “As Exposições Universais
abstrata – o valor de troca, isto é, o ser construíram um mundo feito de
mercadoria – que se dissimula sob a ‘especialidades’. As fantasias de Grandville
heterogeneidade absoluta – o valor de uso – de realizam a mesma coisa”.49
todos os objetos exponíveis, sejam eles Sem reduzir ao conceito de fetichismo – o que,
expostos à luz que inscreverá sua imagem claro, não é pouca coisa, mas sua teorização por
sobre o papel fotográfico ou àquela, “feérica” Marx só virá à luz em 1867, com a publicação
dos universos de cristal que, a exemplo do do primeiro livro do Capital – certos
Crystal Palace (construído por Paxton para observadores da época, além disso, discerniram
aquela [exposição], inaugural, de Londres em bastante bem, apesar da confusão insensata
1851), foram as Exposições Universais ou, oferecida pelas Exposições Universais, a
enfim, sob aquela – não mais feérica, mas outra singularidade do lugar reservado à fotografia,
magia – eternizante do universo dito fora do assim como seu parentesco direto com a
tempo do museu. E se, em todo caso, é mercadoria e a indústria. Tal é notadamente o
necessário um índice [index] para ao mesmo caso do personagem surpreendente e prolífico
tempo colocar o objeto – fotografado, escritor que foi o conde Leon de Laborde.
museificado ou simplesmente exposto – à Arqueólogo respeitado, conservador da seção
distância e designá-lo à atenção, é para, de Antigüidades do Museu do Louvre, membro
exibindo-a, uma vez que apenas ela é visível, do Institut,50 Laborde foi também um dos
anular a heterogeneidade absoluta. fundadores da Sociedade Heliográfica e da
Sociedade de Fotografia.51 A esse curioso
Na obra de Grandville, Benjamin vê a coquetel de competências, o mesmo
caricatura exata do fetichismo e, portanto, personagem acrescentará, ainda, aquela de
aquilo que ele julga ser o comentário mais observador e comentarista privilegiado da
justo das Exposições Universais, esses bazares primeira Exposição Universal que, como
platônicos devotados à glorificação do valor de sabemos, aconteceu em Londres, em 1851.
troca: “A entronização da mercadoria e o Encarregado do relatório sobre as belas artes,
esplendor das distrações que a envolvem, eis aí ele consagrou mais de mil páginas a essa missão.
o tema secreto da arte de Grandville”.47 Nesse caudaloso documento aparece – oh!
quão premonitoriamente – a tese segundo a
Sem reduzir a uma dimensão caricatural, qual “abaixo de um certo limite de
diríamos, evidentemente, o mesmo da superioridade, arte, ciência e literatura, tudo é
fotografia, e Benjamin não esteve longe de dar indústria”.52
esse passo. Na versão de 1935 do mesmo
texto, figurava, com efeito, imediatamente Argüindo a observação de que romances,
poesias, quadros não cessam de proliferar às
antes daquele consagrado às Exposições
centenas ou aos milhares, Laborde conclui
Universais e à Grandville, um parágrafo –
logicamente que “as produções da arte se
“Daguerre e os panoramas” – no qual eram
tornaram uma mercadoria (...) e os artistas,
sublinhadas, por um lado, a presença da
os fabricantes”.
fotografia na Exposição parisiense de 1855 e,
de outro, o fato de, desde a segunda metade Certamente, apenas algumas obras primas
do século, a fotografia ter ampliado sobrevivem finalmente a essa corrente de obras

T E M Á T I TC EA M •
Á T KI A T H •A R DI A
C A N N
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banais. Assim, em um século, para cada quatro Antigüidade fora acolhida pela Grécia com
ou cinco retratos dignos desse nome, segundo reconhecimento; a Idade Média recebeu
Laborde, “Fazem-se cerca de 500.000 retratos, como um dom do céu a imprensa, que é a
sem contar dois ou três milhões de retratos em escritura mecânica; (...) hoje, a fotografia,
daguerreótipo (apenas em 20 anos)”. ou, a arte mecânica em uma perfeição
ideal, inicia o mundo às belezas das
Obras primas ou não, não saberíamos, diante criações divinas e humanas.
de tal abundância, manter as “distinções pueris”
e continuar a separar drasticamente as Frase surpreendente que, lida ao pé da letra, faz
“produções de arte” e os “produtos da da fotografia a origem e o fundamento de toda a
indústria”. É necessário ousar concluir, e estética. Confundidas em uma mesma epifania
Laborde o faz com absoluta clarividência, com pela ação da luz sobre os sais de prata, a beleza
palavras que ainda hoje praticamente não natural (divina) e a beleza artificial (humana)
perderam a atualidade: esperam que a fotografia venha revelá-las
mecanicamente aos olhos do mundo.
Entramos na sala dos leiloeiros como se vai
ao mercado; por que as obras de arte não A visão de Laborde rompe consideravelmente,
seriam julgadas, apreciadas, cotadas por conta de seu radicalismo, com aquelas de
segundo regras que as confundem com as outros comentaristas da época, absorvidos em
raias e os linguados do mercado ao lado? sua maioria nas controvérsias suscitadas pelo
Seria loucura queixar-se disso, não seria estatuo – artístico ou não? – da fotografia.
justo que o objeto de arte escapasse desse Certos aspectos dessas controvérsias são, não
contato; é o destino de toda mercadoria. obstante, bastante significativos. É necessário
aqui assinalar notadamente que o próprio lugar
Em suma então, afora a parte ínfima que se da fotografia das Exposições Universais era
reserva ao gênio e sua obra prima, toda arte é ocasião de discussões mais ou menos vivas.
indústria e, reciprocamente, toda indústria é Reagindo ao fato de a fotografia ter sido instalada
arte. É necessário, então, fazer de todos os – aparelhos e provas – no Palácio da Indústria
operários, de todo mundo, artistas. Nesse (nos Champs-Elysées) e não naquele, na
fantástico concerto artístico-industrial que ignora Avenida Montaigne, em que tinham sido
pura e simplesmente o antagonismo das classes agrupadas a pintura, a escultura e a gravura, um
sociais, pois, desde a Revolução de 1789,
dos membros fundadores da Sociedade
“verdadeiro ponto de partida da arte moderna”,
Francesa de Fotografia, Paul Périer, protestava
“o reconhecimento dos princípios democráticos
contra essa discriminação em nome dos
arrasta consigo a igualdade em todas as classes e
“fotógrafos artistas”, cujas obras deveriam,
em todas as coisas”, a fotografia ocupa,
segundo ele, “encontrar seu lugar no santuário
certamente, um lugar que não é apenas de
das artes”.53 O que se revela nessas polêmicas é
primeiro plano. Em um arrebatamento que é
a posição estratégica da fotografia na grande
necessário citar in extenso, ela é, além do mais,
cena fetichista da Exposição, posição-chave
apresentada por Laborde como condutora da
entre arte e indústria, de agora em diante
história da reprodução rumo a seu termo e,
estando ambas submissas à transitividade
então, da identificação da arte com a indústria.
Eis o texto que, escrito quase simultaneamente generalista da mercadoria. Os industriais, em
ao evento, antecipa em praticamente 80 anos todo caso, não se enganaram, e
os trabalhos de Benjamin: compreenderam rápido que entre essas duas
exposições, que, em suma, não se produziam
A intervenção das máquinas foi, nessa tão freqüentemente, restaria sempre a
propagação da arte, uma época e o possibilidade de expor suas mercadorias não
equivalente a uma revolução: os meios dentro de uma vitrina, mas em papel fotográfico.
reprodutores são o auxiliar democrático por O júri de 1855 não observara, acerca das
excelência. Contestar essa ação é cegueira: imagens expostas pelos irmãos Bisson, que de
desdenhar essa influência seria insensatez; seu ateliê saíam “com igual sucesso”
não prever o futuro dessa associação do reproduções de estampas de Rembrandt ou
gênio das artes com a potência dos novos “fotografias de luminárias e candelabros” e
meios de reprodução de baixo custo seria outras “provas de modelos e de desenhos”,
coisa de um espírito tacanho. A fonte do tendo as fábricas dos industriais recorrido a seus
bronze que multiplicou as obras primas da serviços?54 Não é mais necessário multiplicar as

210
referências, uma vez que deveria estar claro fotografia: está inscrito na própria natureza de
agora que, se a Grandville coube ter seu procedimento, de sua archè. Triplamente
caricaturado o mundo feito de “especialidades” inscrita, aliás, uma vez que, enquanto para o
que se revelava nas Exposições Universais, a espectador da fotografia o objeto fotografado se
fotografia pôde vangloriar-se de se ter feito sob torna intocável, ainda que permaneça
o modo da generalidade absoluta, a um só plenamente visível, puramente visível, é sem
tempo indício e (quase) índice. E foi apenas tocar nem o objeto fotografado, nem sua
nesse contexto, (in)formado de algum modo imagem – pois esta é acheiropoiete,58 não feita
pela fotografia, que o museu teria podido pela mão do homem, fetiche perfeito, em
realizar sua função própria, isto é, aquela de suma59 – que a fotografia se apodera tanto de
índice não de toda mercadoria, como a um quanto do outro.
fotografia, que pode (quase) indexar tudo aquilo
da qual ela pode ser indício [indice], mas, Tocar ou não tocar? Essa questão, indicial em
especificamente, da mercadoria absoluta: o seu princípio, coloca-se no centro tanto da
hiperfetiche, a obra de arte, devotada, de agora história da pintura quanto naquela da fotografia.
em diante, nesses novos tempos de “arte como Ela é até mesmo anterior, segundo alguns,
fotografia”, a presentificar esta divindade invisível àquela da mímesis, uma vez que, pintadas como
reguladora, de agora em diante, do curso das estêncil, as mãos de Lascaux podem ser vistas,
coisas humanas, o mercado.55 tal como enfatizou Philippe Dubois, se não
como fotografias, ao menos como fotogramas
Não obstante, é apenas nas fotografias de Atget ou raiogramas, do mesmo modo que a sombra
mostrando a cidade, “esvaziada como um desenhada, a qual, nos dizeres de Plínio, seria a
imóvel que ainda não encontrou um novo verdadeira origem de todos os quadros.60
locatário”, que Benjamin verá enfim surgir a Transformada em imperativo sacralizante – não
manifestação fotográfica do movimento, “pela toque! –, a palavra que gera essa questão
qual o homem e o mundo ambiente se tornam inscreve-se igualmente em todos os cantos do
estranhos um ao outro”, ao passo que se abre museu, uma vez que, desde que atravessamos a
“esse campo livre em que toda intimidade cede entrada, a regra absoluta, sem a qual o índice
lugar ao aclaramento dos detalhes”.56 Esse museal perderia sua eficácia, é que não se tocará
estranhamento, essa perda de intimidade já mais aquilo que o índice determina como se,
estavam, todavia, em toda sua evidência, ainda que oferecido à vista, tudo aquilo se
inscritos, desde a aurora da fotografia, na tivesse fixado para pertencer, de agora em
superfície de algumas das primeiras imagens diante fora do tempo, a um outro mundo,
impressas pela luz sobre as placas de Daguerre, estranho àquele dos humanos e de suas mãos.
os papéis de Fox Talbot ou de Bayard. A essas Sombras, espelhos e outras imagens
imagens, e a numerosas daquelas que as acheiropoietes, entre as quais se deve contar
seguiram, ampliando cada vez mais o campo de naturalmente na primeira fila o Santo Sudário de
ação do procedimento, poderíamos, portanto, Turim, atravessam, portanto, a pintura e a
aplicar esta outra observação, tomada de fotografia, a arte toda, pela simples razão de que
empréstimo do autor do mais fotográfico e todos esses ícones se formam sob o modo
museal de todos os livros, livro dos livros e ruína indicial da conexão física com seus referentes:
dos livros ao mesmo tempo, o famoso Livro das tocando-os, de uma maneira ou de outra, eles
Passagens, que, de fato, é constituído se formam sem que ninguém, sobretudo um
exclusivamente por citações indexadas, isto é, artista, tenha posto a mão.
em suma, fotografadas, expostas, museificadas:
Um sintoma singular dessa dialética do contato –
As Exposições Universais foram uma escola, tato e não tato – é oferecido pela pintura foto-
na qual as multidões, separadas à força do realista, que surgiu principalmente nos Estados
consumo, convenceram-se do valor de Unidos por volta do final dos anos 60. Quais
troca das mercadorias a ponto de se são, portanto, as propriedades partilhadas pelas
identificar com elas: “É proibido tocar os obras que foram denominadas foto-realistas?
objetos expostos”.57 Nas prática, essas propriedades se reduzem a
duas: 1.) um quadro foto-realista deve se
Essa proibição, própria ao museu e a toda oferecer à vista como pintura, isto é, sob o
exposição, seja ela universal ou não, não modo do “isto não é uma fotografia”; 2.)
necessita ser enunciada naquilo que concerne à simultaneamente, ele deve deixar transparecer a

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fotografia sob a qual a pintura estaria como que batalha, mas é na resposta que ela vai receber
depositada, sem obliterar o “isto é uma de Eugène Durieu que ela se revela com toda a
fotografia” que requer a imagem que serve a um sua clareza. Debate de fotógrafos, uma vez que
só tempo de suporte e guia desse depósito. Durieu era nada menos que o presidente da
Sociedade Francesa de Fotografia, na qual Périer,
Em certo sentido, portanto, a pintura foto- de sua parte, assumira a vice-presidência. Mais
realista inscreve-se na tradição do trompe-l’oeil ainda, debate de fotógrafos do mesmo quilate,
salvo em raras exceções (o espelho é o dado que a Sociedade em questão agrupava –
paradigma, mas voltaremos a isto mais tarde), a apesar de suas diferenças – os partidários do
dialética do trompe-l’oeil clássico confronta a estatuto artístico da fotografia. Portanto, desse
pintura diretamente ao objeto em favor do qual debate duplamente interno, é necessário
ela pretende paradoxalmente mimetizar seu precisar os termos, pois, pioneiramente talvez,
próprio esvanecimento. Ao contrário, a pintura ali se exprimiu com clareza um dos pontos de
foto-realista é trompe-l’oeil porque quer fazer inflexão essenciais da modernidade. Visando –
crer na presença real não de um objeto, mas como já observáramos – admitir a fotografia no
sim de uma fotografia sobre a qual ela pretende, “santuário das artes”, Périer está pronto, em
de um lado, se dissimular pelo mimetismo, ao virtude do princípio de que apenas os resultados
mesmo tempo em que ela o recobre, se contam, a todas as concessões, isto é, como ele
afirmando, portanto, não obstante como diz, a romper o “pacto de fidelidade até a
pintura. Se nos ativermos por um instante ao morte” que liga a fotografia a “objetivas e
procedimento empregado pela maioria dos bacias”. Para galgar o nível de arte, mesmo que,
pintores foto-realistas, descobriremos uma modestamente, pela menor porta, o fotógrafo
estranha encruzilhada, na qual, por um lado, se deve, portanto – segundo ele –, ousar tomar de
toca novamente um dos aspectos mais empréstimo os meios da pintura e se fazer
controversos do século 19 a respeito da arte “desenhista hábil ou colorista”, permanecendo,
fotográfica e, por outro, prefigura-se, de certo contudo, “um colaborador prudente e
modo, toda uma dimensão da arte de hoje. respeitoso”. Em uma palavra, visto que isso lhe
Como sabemos, a maioria das pinturas foto- permite aceder à arte, Périer está pronto a tocar
realistas é, se quisermos, depositada, suas fotografias. E é isso que Durieu recusa de
praticamente ponto por ponto, sobre a tela na maneira absoluta, afirmando energicamente:
qual, durante a operação, é projetado o “Chamar o pincel em socorro da fotografia sob
diapositivo da fotografia que serve de matriz; isto o pretexto de introduzir-lhe arte é exatamente
é, o pintor foto-realista, armado freqüentemente excluir a arte fotográfica.62
de um aerógrafo, toca a fotografia com a Durieu – é interessante lembrar que ele
pintura. Se quisermos nos lembrar que a colaborou com Delacroix em uma série de
questão do retoque foi no século 19 um dos fotografias na qual o pintor se inspirou63 –
pontos sensíveis do debate envolvendo as recusa, portanto, o retoque e, se ele o recusa, é
ambições artísticas da fotografia, começaremos a porque ele toca na especificidade do meio
entrever que o foto-realismo pode aparecer fotográfico. Cada arte, segundo ele, possui suas
plenamente como um retoque gigantesco, um regras especiais e, ao se querer transgredir essa
repintar monstruoso, dedicado ao trabalho
especificidade misturando-as, nada se obtém
impossível de recobrir a fotografia de um filme
além de “apenas alguma coisa qualquer sem
ou de uma película – é assim mesmo – de
nome, que apresenta no máximo um interesse
pintura mimética, esta última naturalmente não
de curiosidade”.
cessando de transbordar por todas as partes.
Deixe-me tocar meus negativos, e mesmo De passagem, nota-se que, ainda que dotado de
meus positivos, se eu os melhoro e os elevo um nome, cada quadro foto-realista é uma
um patamar acima. exemplificação exata de apenas alguma coisa
qualquer desse gênero. Mas, antes de retornar a
Nessa petição – datada de 1855 – de Paul isso, é necessário destacar o caráter
Périer,61 naturalmente é a questão do estatuto extremamente avançado, audacioso até, da
da fotografia que está em jogo: arte ou não? posição de Durieu. Mais de 100 anos antes da
Mas, para além desse debate enviesado, tentativa de delimitação da especificidade do
desenrola-se outra batalha mais profunda. A meio fotográfico por Szarkowski e seu The
palavra “tocar” utilizada por Périer assinala essa Photographer’s Eye, a argumentação de Durieu já

212
é estritamente modernista. No momento em expressão não é de Warhol, mas de Delacroix64
que o impressionismo (freqüentemente –, o pintor foto-realista deixa a fotografia guiar
creditado por ter iniciado – coagido e forçado sua mão como se a pintura não pudesse mais
pela fotografia – simultaneamente a dobra da subsistir senão fazendo-se o indício da fotografia,
pintura sobre sua própria especificidade e o como se o suporte da pintura, a tela, se tivesse
modernismo como tal) ainda se encontrava no tornado a própria fotografia. Nesse sentido, o
limbo, um fotógrafo, com certeza singularmente foto-realismo pretende assim assumir
clarividente, antecipou, pois, essa mesma plenamente todas as incidências da fotografia
démarche por seu próprio medium. Por conta sobre a pintura ou, se quisermos, todos os
desse simples fato, parece legítimo concluir que quadros que, de maneira mais ou menos
a participação da fotografia na constituição da confessada, mais ou menos negada, tomaram
modernidade é ainda mais importante, porque suas imagens emprestadas do inimigo.65 E essa
ainda mais positiva do que aquela, no entanto admissão consiste precisamente em opor a
considerável, que correntemente se lhe todas as formas de abstração que quiseram
concede. A outra conclusão, mais escondida, salvar a pintura da fotografia por seu virar-se
mas não menos essencial, que se impõe sobre um meio cada vez mais estreitamente
igualmente é que uma das dimensões surdas delimitado, uma estratégia que, ao contrário,
dessa dialética gravitava sempre – começamos a parece radicalmente baixar as armas frente ao
percebê-la somente nos últimos 15 anos – em adversário. Isso, porém, não passa de uma
torno da questão do tato, do contato, do toque armadilha. Pois se, antes mesmo de pintar, o
ou do tocar, em síntese, do indício e do índice. pintor foto-realista instala logo de entrada a
imagem fotográfica sobre o suporte da pintura –
A remissão dessa discussão esclarece, em todo aquela famosa tela virgem, sobre a qual
caso, sob um novo ângulo o sintoma foto- Greeneberg disse um dia que chagáramos ao
realista. Mesmo sem a ajuda da referência à ponto obrigatório de reconhecê-la já como um
controvérsia entre Périer e Durieu, era quadro–, é para, uma vez que ele [o pintor]
certamente fácil ver que o foto-realismo iria comece a pintar, tocar essa imagem, cuja
inscrever sua síntese de meios em um contexto especificidade, como bem o queria Durieu,
marcado pelo formalismo modernista, do qual implica precisamente não se dever (re)tocá-la.
ele é sem dúvida contemporâneo, mesmo que Em outras palavras, depositando de maneira
patológico, da Pop Art ou da arte conceitual, indicial [indicielle] a pintura sobre a fotografia, o
ainda que também possamos encontrar para foto-realismo pretende de fato privá-la de seu
ele, por outros caminhos, uma genealogia que o próprio estatuto de indício [indice]. Essa
liga a antecedentes – trompe-l’oeil à la William estratégia, claro, fracassa. Reduzida a reencenar
Frederick Harnett ou John F. Peto, precisionismo um episódio da história da fotografia, não pode
de Demuth, Sheeler ou Crawford – evitar, como o diz um texto célebre de Marx
característicos da tradição pictórica americana. acerca de outro assunto, cair na comédia, isto
Tudo isso é verdade, mas a lembrança das é, o simulacro.
polêmicas dos primeiros fotógrafos em torno da
questão do retoque conduz, entretanto, à Tentativa de anular a fotografia pelo apagamento
hipótese de que na pictorialidade híbrida, quase de seu caráter indicial [indiciel], o foto-realismo
teratológica, do foto-realismo aconteceu algo visa simultaneamente romper a lógica do índice
mais do que uma simples regressão ou uma que, implicado pela fotografia e encarnado na
simples negação da pintura modernista. Esse instituição do museu, abre a obra de arte ao
algo mais evidentemente não é outra coisa bricabraque do real. Todos conhecem, aliás, a
senão a tentativa, naturalmente desesperada, de temática partilhada pelos pintores foto-realistas:
anular a eficácia – sobre a pintura e, para além motos, carros, trailers, luminosos, vitrinas,
dela, sobre a arte – das funções que têm por cavalos, garotas vestidas com rendas e por aí vai.
nome indício e índice. Uma vez pintado, esse bricabraque não requer
mais nem o índice da fotografia, nem o do
Ao depositar uma camada de pintura mimética museu. Descolado da fotografia, uma vez que
sobre fotografias, o foto-realismo quis obliterar o ele permanece e que a fotografia torna-se
caráter indicial da fotografia e esperava obter ausente pela camada de pintura, esse
essa anulação com um procedimento que de bricabraque é então devolvido a seu real de
algum modo macaqueia esse mesmo caráter. origem, simples referente da imagem, e não
“Máquina atrelada a uma máquina” – a mais sua causa. Do mesmo modo, ele se vê

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assim separado do museu, já que a pintura foto- essa deformação. É a conseqüência


realista pretende exatamente tirar a manchete propriamente pictural dessa encruzilhada que,
para si mesma, isto é, indexar a si mesma seguindo Arasse, reteremos aqui. Refletido
enquanto arte em detrimento tanto da fotografia duas vezes, o objeto visto em um espelho
quanto do referente que essa (quase) pintado no quadro tende ao informe e, como
indicializava [(quasi-) indexait]. Dito de outro escreve Arasse,
modo, a presença da palavra “realismo” na
qualificação foto-realista não é portanto senão mestre do pintor por sua pureza que
um ardil, como é um ardil ou um engodo a remete impecavelmente (sem mancha, sine
referência ao espelho que corre tanto na história macula) o reflexo exato do objeto, o
da pintura quanto da fotografia. espelho se torna no quadro o reino da
mancha, isto é, por essa mesma razão o
Certamente Leonardo aconselhava aos emblema da pintura.68
pintores controlar sua obra, uma vez
acabada, comparando-a ao reflexo de seu Espelho pintado por Van Eyck no centro do
tema em um espelho: retrato do casal Arnolfini ou erigido por Manet
atrás da balconista do Bar des Folies Bergère,
Se quiser ver se o efeito geral de sua para retomar dois dos exemplos comentados
pintura corresponde ao objeto representado por Arasse, o espelho é sempre o lugar no
segundo a natureza, pegue um espelho e quadro em que a pintura se vê forçada a se
coloque-o de modo a refletir o objeto real, desmarcar em relação a seu referente para se
depois compare o reflexo com sua pintura e fazer pura maculação, mancha cega e cegante.69
considere cuidadosamente se o tema das
duas imagens está conforme aos dois, Os únicos retoques que Eugène Durieu
particularmente ao espelho. Devemos aceitava de bom grado conceder que se
tomar o espelho por mestre – quero dizer, colocassem sobre uma fotografia eram aqueles
o espelho plano – pois sobre sua superfície que consistiam em “fazer desaparecer com um
as coisas oferecem muitos pontos em traço de nanquim um ponto branco que uma
comum com uma pintura... Sua pintura, se bolha de ar ou algum acidente análogo tenha
você sabe compô-la direito, produzira deixado na prova”.70
igualmente o efeito de uma coisa natural
vista em um espelho.66 Os retoques em questão visavam, portanto, ao
suprimir as manchas que não são o indício do
Mas, então, o que se passava quando um referente, restituir a integridade perfeita do meio
pintor queria representar em seu quadro um fotográfico para uma imagem que, por uma
espelho? Essa questão é colocada por Daniel razão ou outra, estaria localmente privada dela.
Arasse em um estudo admirável intitulado Les Basta dizer, e Durieu o disse, que esses
Mirois de la peinture (“Os espelhos da pintura”). retoques não são verdadeiramente retoques,
Eis sua resposta: mas antes clausuras acrescentadas ao meio para
preservar sua pureza. Ali se fecha também o
Para permitir que se reconheça em seu impasse aberto pelo foto-realismo. Imitando seu
quadro um espelho como tal, isto é, para
imenso retoque, seu repintar paranóico, ponto
fazer reconhecer como tal o espaço
por ponto sobre a fotografia, a pintura foto-
refletido do espelho, o pintor deve
realista fracassa frente a essa [n]aquilo que os
instaurar, para aquela porção da
pintores do passado foram bem-sucedidos
superfície pintada que ocupa o espelho,
frente aos espelho que, digamos, eles tomavam
um efeito de realidade diferente daquele
por mestres. As manchas de pintura com as
– seja ele qual for – que subtende o
quadro em seu todo. 67 quais o foto-realismo toca a fotografia, jamais
produzem mancha, ainda que aquilo que – à
Uma vez que o espelho é o espaço do reflexo, custa da pintura – não pára de retornar às telas
a representação do espelho, tornada por sua foto-realistas é, apesar da obliteração de sua
vez objeto de outro reflexo (aquele efetuado indexação pelo indício fotográfico, o objeto e o
por essa pintura do qual supõe ser seu modelo), real, isto é, nesse caso, a versão americana do
não pode passar senão por ser a deformação do museu das irmãs Comte. Finalmente, a pintura
objeto que ele mesmo reflete. No contexto foto-realista não teria, portanto, outro valor
perspectivo, o jogo de ângulos legitima, aliás, senão o de se ter feito o catálogo antecipado da

214
arte – fotográfico de ponta a ponta – do qual ela no século 20. (N.Rt.)
não soube proteger o museu. 5 Oceladas (ocelés, no original) – a palavra provém de
“ocelos”: em forma de olho, olhos pequenos, olhos
Do indício ao índice, isto é, nessa franja de simples dos artrópodes; cada um dos pontos que
interferência que ao mesmo tempo perturba a matizam certos órgãos, como penas, pêlos, etc. (N.Rt.)
fotografia e explica a perturbação que ela 6 Vialatte, Alexandre. Chroniques,1952. Apud: Dagognet,
instaura, isto é, ainda nesse passo que vai da François Le musée sans fin. Seysell: Le champ vallon,
fotografia ao museu, trama-se desde mais de 1984: 143 sq.
um século e meio a maioria das questões que 7 Id., ibid.: 147.
agitam, constroem ou desconstroem a 8 Schaeffer, Jean-Marie. L´ image précaire, du dispositif
produção de arte. Aparelho fotográfico, photographique. Paris: Seuil, 1987: 158.
aparelho museal remetem um ao outro como
9 Talbot, Willian Henry Fox. The Pencil of Nature, A facsimile of
em espelho. Já presente no dispositivo museal,
the 1844-46 Edition with New Introduction by Beaumont
a fotografia não pode entrar nele uma segunda Newhall. Nova York: Da Capo Press, 1969.
vez. Simetricamente, ao passar a porta do
10 Ver Galassi, Peter. “Before Photography” no catálogo da
museu, a pintura se perde, tal como o clamava
exposição Before Photography, Painting and the
Quatremère de Quincy desde a aurora desse Invention of Photography, Nova York: Museu de Arte
processo. Como todo resto, ela se devota – Moderna, 1981 (Trad. francesa no catálogo da
valor de troca hiperfetichista – a não ser mais exposição L´invention d´un art, Paris: Centre Georges
do que a fotografia de si mesma. Começa, Pompidou, 1989).
segundo a palavra de Baudelaire, sua 11 “O precursor é aquele que só sabemos posteriormente que
“decrepitude” e, no mesmo movimento, a veio antes”, fórmula atribuída à Georges Canguilhem por
porta do monumento – que deveria ter sido Jean-Jacuqes Salomon, “Georges Canguilhem ou la
modernité”, Revue de métaphysique et de morale, 1985,
seu paraíso – se abre largamente para esse real n. 1, Paris: Armand Colin: 53. Cf.: “Um precursor seria
multiforme cujo estafeta foi o mictório um pensador de vários tempos, do seu próprio e
travestido em fonte por Marcel Duchamp. Ao daqueles ou daqueles que nós lhe assinalamos como
querer proteger o museu do bricabraque com seus continuadores, como os executadores de sua
empreitada inacabada. O precursor é, portanto, um
a ajuda do curto-circuito que ele esperava de pensador que o historiador crê poder extrair de seu
um fino filme de pintura, o foto-realismo não enquadramento cultural para inseri-lo em outro, aquele
faria – uma vez que esse circuito estava fechado que retorna para considerar os conceitos, os discursos e
há muito tempo – outra coisa senão indexar o os gestos especulativos ou experimentais como podendo
ser deslocados ou recolocados em um espaço
peso desmesurado da fotografia. intelectual, em que a reversibilidade das relações foi
obtida pelo esquecimento do aspecto histórico do objeto
de que ele é tratado.” (Georges Canguilhem, Etudes
Daniel Soutif é filósofo e crítico de arte. Atualmente é diretor do Centro d´histoire e de philosophie des sciences , Paris, Vrin, 1968:
de Arte de Prato (nas cercanias de Florença). De suas inúmeras obras, a 21.). Os historiadores de arte ganhariam muito em se
mais recente é L'Art du XXe siècle – De l'art moderne à l'art inspirar nessas linhas que dizem respeito à história das
contemporain. 1939-2002, coletânea de ensaios de vários autores por
ele organizada. Uma versão anterior e resumida deste artigo foi
ciências, mas que, mutatis mutandis, valem igualmente
publicada com o título “Pictures and an Exhibition” em Artforum, número no seu próprio campo de estudo.
7, março de 1991. A tradução para o português foi feita a partir da 12
versão integral publicada em Les Cahiers du Musée National d’art A respeito da primeira invenção do verbo “fotografar” –
Moderne, número 35, (edição especial “Exposition de la photographie”). phôteinographeistaï – por Filoteu, o sinaíta, igualmente
Paris: Centre Georges Pompidou, primavera 1991. chamado Filoteu de Batos, ver o breve mas brilhante,
estudo de Georges Didi-Huberman. “Aquele que
inventou o verbo ‘fotografar’...” Antigone, revue littéraire
Tradução: Ana Tereza Lopes, Guilherme Bueno de photographie, n. 14, inverno 1990: 23 sq
Revisão técnica: Glória Ferreira, Guilherme 13 Barthes, Roland, La chambre claire, note sur la photographie.
Bueno Paris: Cahiers du Cinema/Gallimard/Seuil, 1980: 29
(tradução em língua portuguesa: Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000).
Notas
14 Crimp, Douglas “On the Museum´s Ruins” In: October n. 13.
1 En bâtarde: tipo de letra cursiva utilizada em documentos Cambridge: MIT Press, verão 1980: 41-57.
antigos. (N.Rt.)
15 Ver especialmente Barthes, op. cit.; Vanlier , Henri. Philosofie
2 Ocarina – instrumento de sopro feito em argila que
de la photographie. Brax: Les Cahiers de la Photographie
produz som semelhante ao da flauta. No original
(edição especial), 1983; Dubois, Philippe L´acte
“canne-ocarina”. (N.Rt.)
photographique et autres essais, Bruxelas: Fernand
3 La Brabançonne – hino nacional da Bélgica. (N.Rt.) Nathan-Labor, 1989 (reeditado com o título L’Acte
Photographique et autres essais. Paris: Fernand Nathan,
4 Ramuz, Charles-Ferdinand (1878-1947), escritor e poeta 1990. Edição brasileira: O ato fotográfico e outros
suíço, considerado um dos maiores autores de seu país

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ensaios. Campinas: Papirus, 2003). Schaeffer, op. cit. 24 Krauss, Rosalind E. “Notes on the Index” October n. 3 e 4.
Krauss, Rosalind E. Le photographique , pour une théorie Cambridge: MIT Press (primavera- outono 1977),
des écarts, Paris: Macula, 1990. reeditado em Krauss, The Originality of the Avant-Garde
16
and Other Modernist Myths, Cambridge, Massachusetts e
Ver, para citar apenas um exemplo, Buren, Daniel. Londres: The MIT Press, 1985: 196-221 (edição
“Fonction du musée” (1970), reeditado em Bronson, francesa: L’originaltié de l’avant-garde et autres mythes
A.A, Pery Galé (ed.). Museums by Artists, Toronto: Art modernistes. Paris: Macula, 1993: 65-91).
Metropole, 1983: 57 sq. (Para a edição em português do
texto de Buren, ver: Duarte, Paulo Sergio (org.). Textos e 25 Id., ibid.: 206 (edição francesa: 74. A tradução do mesmo
entrevistas escolhidos [1967-2000]. Rio de Janeiro: texto por Jean-Pierre Criqui apresenta ligeiras
Centro de Arte Hélio Oiticica, 2001: 57-62). modificações em relação àquela feita por Soutif. N.Rt.).
17
Depois de Krauss, Philippe Dubois formula a mesma tese
Ainda que indice e index também possam ser traduzidos de maneira que deixa aparecer mais claramente a
simultaneamente para o português como índice, optamos insuficiência. Segundo esse autor (op. cit.: 229), os ready
por seguir a outra possibilidade de vertê-los para, indício mades podem ser descritos “como casos extremos em
e índice, respectivamente, que nos parece conforme ao que o produto final não só não se parece, mas não é
espírito do texto. Em outras passagens, sobretudo nos nem mesmo o traço físico de um objeto exterior a ser
casos em que as derivações das palavras puderem “representado”: ele é o próprio objeto que se tornou
resultar em ambigüidades, indicaremos o original entre obra enquanto tal, por um ato de decisão artística, por
colchetes. (N.Rt.) simples operação de seleção, de suspensão do
18 Charles S. Peirce, Dictionary of Philosophy and Psychology, continuum do real e da inscrição no universo da arte”. É
artigo “index” (1901). (Tradução francesa in: Peirce, bem verdade, ainda que falte a análise da função
Charles S. Écrits sur le signe [traduzidos e comentados propriamente dita desse “universo”.
por Gerard Deledalle] Paris: Seuil, 1978: 158. 26 Krauss, Rosalind E. “Marcel Duchamp ou le champ
19 Eco, Umberto. Le signe. Histoire et analyse d’un concept. imaginaire” In: Degrés, n. 26-27, primavera 1981,
Bruxelas: Labor, 1988: 63. Antes mesmo de contigüidade reeditado e traduzido in: Krauss , Le photographique,
física, Eco deveria ter falado, para o primeiro caso, em op. cit.: 85.
contigüidade espacial. 27 Cf. Recanati, François. La transparence et l´ énonciation.
20 Id., ibid: 65. Paris: Seuil, 1979.
28 Cf. Pommier, op. cit., passim.
21 Schaeffer, op. cit.: capítulo I, passim.
29 Sherman, op. cit.: 14.
22 Sejamos mais precisos: talvez seja possível considerar os
museus o índice do poder ou da riqueza que eles 30 De Quincy, Quatremère. Considérations morales sur la
simbolizam, mas jamais do que eles mostram. destination des ouvrages de l´art. Paris: Crapelet, 1815
23 Desde um dos primeiros relatos – aquele apresentado por (Reimpressão: Corpus des oeuvres de philosophie en
L.G. Brecquigny em 2 de dezembro 1790 junto a langue française. Paris: Fayard, 1989).
Comissão dos Monumentos – consagrados sob a 31 Schaeffer, op. cit.: 158.
Revolução Francesa aos dépôts dos monumentos das
32 Szarkowski, John. The photographer´s Eye, Nova York: The
ciências e das artes que ela pretendia instituir, a questão
do abrigo desses “museus” foi abordada. Brecquigny Museum of Modern Art, 1966, e igualmente, o
escreveu: “Escolheríamos para servir de museu algumas comentário desse texto por Phillips, Christopher in: “The
igrejas desativadas daquelas numerosas que serão Judgment Seat of Photography”, October n. 22.
suprimidas e que sem essa [função] permanecerão Cambridge: MIT Press, outono 1982. (republicado in:
inutilidade absoluta. Ao consagrá-la a esse uso, a Bolton, Richard (ed). The Contest of Meaning. Critical
Histories of Photography. Cambridge, Massachusetts e
vantagem será dupla. O edifício será construído, e a
Londres: The MIT Press, 1989: 15 sq.) Esse artigo é
disposição será tal que ali haveria poucas mudanças a
traduzido aqui com o título de “Le tribunal de la
fazer a fim de torná-lo própria ao novo serviço para o photographie”: 19 sq.
qual será usado”. Edouard Pommier, que cita essa
passagem (“Naissance de musées de province” In: Nora, 33 “O nome do noema da fotografia será, portanto: ‘foi
Pierre, Les lieux de mémoire II , La nation 2. Paris: assim’” (“Le nom du noème de la photographie sera
Gallimard: 472-473) acrescenta, conforme Brecquigny, o donc: “Ça-a-été” ...)” Barthes, op. cit.: 120.
detalhe de que o “guarda” – o futuro conservador – 34 Cartela – espaço liso, em pedestal, ou em ornato
“será colocado no campanário...” Sobre a constituição
arquitetural no qual se inscreve uma legenda;
dos museus franceses e sobre a natureza dos prédios enquadramento decorativo esculpido que cerca um
utilizados para guardar as obras de arte do início do motivo, um quadro, um objeto. No original, cartel.
século 19, ver também Sherman, Daniel J. Worthy (N.Rt.)
Monuments, Art Museums and the Politics of Culture in
35 Dépôt, no original (N.Rt.).
Nineteenth-Century France. Cambridge, Massachusetts e
Londres: Harvard University Press, 1989. Sobre a 36 Département, no original – divisão do território francês em
concepção de uma arquitetura especificamente museal –
vigor desde a Revolução Francesa, chefiado por um
de inspiração hegeliana – (cf. adiante o exemplo do Altes
prefeito assistido por um conselho geral. (N.Rt.)
Museum de Berlin construído por Schinkel), ver também
a nota 39. 37 Citado por Pomier, op. cit.: 473.

216
38 Citado por Poulot, Dominique. “Alexandre Lenoir et les Napoléon, 1856. Id., ibid.: 191.
Monuments français”. In: Nora, Pierre (dir.), Les lieux de 55
mémoire, op. cit.: 504. Cf. Soutif, op. cit.: 37.
56 Benjamin, “Petite histoire…” In: Essais 1, op. cit.: 162.
39 Citado por Crimp, Douglas. “The Post-Modern
Museum”, Parachute n. 46, Montreal, mar-abr-mai 57 Cf. notas 50 e 51.
1987: 61 sq. A parte desse artigo que se refere ao
58 Acheiropoiete (literalmente, “não feito por mãos humanas”,
Altes Museum foi republicada com um aparato de notas
mais completas com o título de “The End of Art and como traduzido em seguida pelo autor) é um termo
the Origin of the Museum” in Art Journal, XI.VI. n. 4 , usado por historiadores de arte e teólogos para se referir
inverno 1987: 261-266. a determinados ícones sagrados que teriam sido
produzidos diretamente por meio do divino, sem a
40 Sherman, op. cit.: 29, 43-44. intervenção ou intermediação humana, tais como o véu
41 Bois, Yve-Alain. “Exposition: esthétique de la distraction, de Verônica, faces do Cristo, etc. Ver a esse respeito –
espace de démonstration”, Cahiers du Musée national d de onde essa referência foi extraída: Latour, Bruno. What
´art moderne n. 29, outono 1989, Paris, Centre Georges is iconoclash? Or is there a world beyond the image
Pompidou: 62. wars? (In: www.ensmp.fr/~latour/article/84-
ICONOCLASH%20PDF.pdf.) e Mondzain, Maria-José.
42 O termo Kunstwollen de Riegl tem apresentado as mais Qu’est-ce oir une image? (In: www.canal-u.fr/canalu;
diversas traduções, dadas as inúmeras interpretações procurar a conferência pelo nome da autora). (N.Rt.)
de que tem sido alvo desde sua origem. Fizemos aqui 59
a tradução literal, conforme procedeu o autor do Cf. Soutif, op. cit.: 34-35.
artigo. (N.Rt.) 60 Cf. Dubois, op. cit.: 116 sq.
43 O’Doherty, Brian. Inside the White Cube, Ideology of the 61 Périer, Paul. “Exposition Universelle: photographes français”
Gallery Space. Santa Monica: The Lapis Press, 1986. Bulletin de la Société française de Photographie, julho
44 Benjamin, Walter. “Petite histoire de la photographie” 1855, apud Rouillé, op. cit.: 273.
(1931), in Essais 1, 1922-1934, Paris, Denoël- 62 Durieu, Eugène. “Sur la retouche des épreuves
Gonthier, 1983: 164. photographiques”, Bulletin ..., outubro 1855, apud
45 Ver acerca desse ponto os desenvolvimentos apresentados Rouillé, op. cit.: 275.
em Soutif, Daniel. “Du bon et du mauvais usage de 63 Cf. Sagne, Jean. Delacroix et la photographie. Paris:
l´objet”. Transversalité 1, Bordeaux: CapcMusée d ´art Herscher, s.d.
contemporain, 1990: 33-38.
64 Delacroix, Eugène. “Revue des arts”, Revue des deux
46 Benjamin, Walter. “Paris capitale du XIXe siécle, exposé de mondes, setembro 1850, apud Rouillé, op. cit.: 406. Cf.
1939”, in Paris, capitale du XIXe siécle. Le livre des Sagne, op. cit.: 11.
passages, trad. franc., Paris: Cerf, 1989: 51.
65 Ver sobre esse tema, outra obra clássica de Aaron Scharf,
47 Id., ibid.
Art and Photography, Harmondsworth: Pelican, 1974:
48 Id., ibid.: 38. Coke, Van Derek The Painter and the Photograph: from
49 Id., ibid.: 40 e 51. Delacroix to Warhol, Albuquerque: University of New
Mexico Pres, 1964 (reimpressão 1986) e Billeter, Erika
50 L’Institut – L’Institut de France, criado em 1795, é a instância Malerei und Photographie im Dialog von 1840 bis Heute,
oficial máxima da intelectualidade e uma das instituições Zurich: Kunsthaus, 1977.
mais respeitadas da França por reunir as cinco grandes
66 Da Vinci, Leonardo. Carnets, Paris: Gallimard, 1987,
Academias do saber: a Académie Française, a Académie
des Inscriptions et Belles Lettres, a Académie de tome 2: 252.
Sciences, a Académie de Beaux Arts e a Academie de 67
Sciences Morales et Politiques (N.Rt.). Arasse, Daniel. “Les miroirs de la peinture”. In: L´imitation,
aliénation ou source de liberté? Rencontres de l´École du
51 Sobre Laborde, ver Jammes, André, Eugenia Parry Janis, The Louvre. Paris: La Documentation Française, 1984: 74.
Art of French Calotype with a Critical Dictionary of 68
Photographers, 1845-1870. Princeton: Princeton Id., ibid.
University Press, 1983: 196-197. 69 A esse respeito é necessário assinalar um pequeno texto
52 Laborde, Léon de. Travaux de la Comission française sur pouco conhecido de Benedetto Croce intitulado Une
l’industrie des nations, Exposition Universelle de Londres, t. théorie de la “tache” (Trad. francesa in: Croce, Benedetto,
VIII, 1856: 450-503, apud. Rouillé, André. La Gilles A. Tiberghien (org. e trad.). Essais d’Esthétique.
photographie en France. Textes et controverses: une Paris: Gallimard, 1991), na qual o filósofo italiano
anthologie 1816-1871, Paris: Macula, 1989: 218-225. apresenta a teoria de um autor chamado Vittorio
Imbriani. Nesse texto lemos: “E a mancha é o sine qua
53 Périer, Paul “Exposition Universelle”. In: Bulletin de la Société non do quadro, o essencial indispensável que pode por
française de photographie, maio 1955, apud Rouillé, op. vezes fazer esquecer certas outras qualidades ausentes,
cit.: 210. mas que não pode ser substituída por nenhuma outra”
(p.24).
54 Exposition Universlle de 1855 , Rapports du jury mixte
70 Durieu, op. cit.: 274.
international publiés sous la direction de S.A.I. le prince

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