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Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º.

Seminário
Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-
288-0061-6

Henry Thoreau: Crítica e percepção de seu tempo – uma análise de Desobediência Civil
Carlos Guilherme Rocha∗

“...é preciso estender a autoridade da União até as pessoas dos cidadãos, que são os
verdadeiros objetos do governo” (HAMILTON, 1973: 116), assim o governo era pensado por
Alexander Hamilton (1755? – 1804). Já para Henry Thoreau (1812 – 1862) o governo não
passaria de uma inconveniência, segundo o mesmo, “o melhor governo é o que não governa
de modo algum” (THOREAU, 2001: 1). Entre Hamilton e Thoreau muita coisa se passou.
Mesmo sendo ambos do norte dos Estados Unidos, os contextos vivenciados foram bastante
distintos. O primeiro se encontrava numa das ex-colônias britânicas recém independentes, que
muitas dúvidas tinham quanto ao seu futuro – e mesmo presente –, sobre a manutenção da
união estabelecida por estas colônias pela ocorrência da Guerra de Independência; já Thoreau
estava num dos maiores países do planeta, que ia do Atlântico ao Pacífico, em pleno processo
de desenvolvimento econômico, que de intimidado passou a ser intimidador. Enfim, o projeto
de Hamilton foi bem sucedido, a grande nação estava formada.
Este Estado forte idealizado por Hamilton, pouco mais de meio século depois, era então
alvo de críticas por parte de Henry Thoreau, como visto no seu famoso ensaio “Desobediência
Civil”, de 1849 (inicialmente chamado de “Resistência ao Governo Civil”). Thoreau era
grande defensor da liberdade individual e da autonomia do ser; para ele o estado do governo
estadunidense naquele período ia na contra-mão de seus princípios. Ao final da década de
1840 a idéia de “desobediência civil” é então cunhada por Thoreau, prática que defende a
resistência às leis e medidas governamentais consideradas injustas, pois a consciência
individual vem em primeiro lugar. Se submeter a estas leis é perder a consciência, deixar de
ser homem. Thoreau julgava por tirânico o governo de seu país, justificando assim o direito à
revolução, modo como classificava a desobediência civil.
A consciência e natureza individuais são os grandes valores para Thoreau. Segundo o
pensador “a única obrigação que tenho direito de assumir é fazer a qualquer momento aquilo
que julgo certo” (THOREAU, 2001: 2), assim cada qual deveria seguir sua “lei natural”, na
total ausência de artificialidades. Se algo – ou alguém – não puder viver de acordo com sua
própria deve morrer; ou seja, tanto para “matar” quanto para “não deixar morrer” aquilo que
não é natural não deveria intervir, o rumo natural deve ser soberano. Daí pode-se entender a
grande aversão de Thoreau à escravidão e à Guerra do México. Os Estados Unidos não tinha o

Graduando em História - Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ)

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direito de se sobrepor aos escravos nem ao México, e deveria interromper esta intervenção
ilegítima, mesmo que custasse a vida da nação.
Thoreau também fazia severas críticas aos que se posicionavam contra o governo e suas
atitudes, mas nada faziam além de proferir suas opiniões. Para o pensador estes eram apenas
“patronos da virtude”, mas não virtuosos. O homem não pode se dobrar perante a lei injusta,
ele deve combatê-la com atos, e nem deve simplesmente esperar que a lei seja alterada para a
justa, isto pode demorar tempo demais. Mesmo o voto - hoje considerado por muitos como
uma “arma valiosa” - era visto como um ato ineficaz, para Thoreau não passaria de um mero
jogo; como visto nas seguintes passagens

Toda votação é um tipo de jogo, [...], com uma leve coloração moral, onde se brinca
com o certo e o errado sobre questões morais. [...] Nem mesmo o ato de votar pelo o
que é certo implica fazer algo pelo que é certo. É apenas uma forma de expressar
publicamente o meu anêmico desejo de que o certo venha a prevalecer. (THOREAU,
2001: 4-5 grifo do autor)

Assim ele fazia uma severa crítica a um valor carregado de significado na nova nação, a
representação; que teve papel fundamental na “Era Jacksoniana”, na qual foi o principal valor
político, sendo a expansão do sufrágio uma das principais medidas do governo.
Nota-se também a importância que Thoreau dá a atos práticos do indivíduo, que
poderiam ser considerados simplórios e ineficientes, como nas seguintes passagens

Não discuto com inimigos distantes, mas com aqueles que, bem perto de mim,
cooperam com a posição de homens que estão longe daqui e defendem-na; estes
últimos homens seriam inofensivos se não fosse por aqueles.
Pois não importa que os primeiros passos pareçam pequenos: o que se faz bem feito
faz-se para sempre. (THOREAU, 2001: 4 e 8)

Tais trechos reforçam ainda mais o peso que Thoreau aplica à individualidade, afirmando que
esta tem poder suficiente para exercer mudanças, e que isto não caberia apenas a um projeto
governamental que se sobrepõe à autonomia do ser.
Outro aspecto encontrado em “Desobediência Civil” é a aversão de Thoreau ao exército
permanente e seu grande poder. A opinião do escritor quanto à força militar norte-americana é
precisa. Os Estados Unidos, ainda no final do século XVIII e início do XIX, passaram a

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estabelecer uma série de academias militares e a dar grande importância para a ciência militar,
sendo, pelo tempo da Guerra do México, o Exército permanente composto por
aproximadamente 13 mil homens; considerando a Marinha e a Cavalaria - os outros dois
ramos das Forças Armadas norte-americanas - este número é muito mais elevado. Quantidade
considerável para um país do século XIX cuja população livre beirava os 20 milhões de
habitantes.
Porém a mais severa crítica de Thoreau se direcionava à cobrança de impostos. Para o
filósofo era inconcebível a idéia de sustentar o Estado, era algo que ia contra seu pensamento
de “lei natural”, como nas seguintes palavras

Quando defronto um governo que me diz “A bolsa ou a vida!”, por que deveria
apressar-me em lhe entregar o meu dinheiro? Ele talvez esteja passando por um
grande aperto, sem saber o que fazer. Não posso ajudá-lo. Ele deve cuidar de si
mesmo; deve agir como eu ajo. [...] Não sou individualmente responsável pelo bom
funcionamento da máquina da sociedade. Não sou o filho do maquinista. (THOREAU,
2001:11)

O governo, segundo Thoreau, deveria então ser mantido por suas próprias forças, por
sua própria iniciativa. E durante 50 anos foi assim. Entre 1790 e 1840, o sistema financeiro
governamental foi liderado pelos estados, estes se mantinham por meio de investimentos em
infra-estrutura e promoção de corporações – em geral de capital misto. Deste modo, os
estados tinham como fonte de renda pedágios, venda de terras, dividendos de bancos e outras
corporações. Este modelo era tão bem sucedido que os estados do nordeste praticamente não
cobravam impostos, entre estes estava o Massachusetts de Thoreau.
Porém, a partir da década de 1840 este sistema começou a mudar, os governos locais e
federal passaram a ter maior atuação no sistema financeiro. Sendo que suas principais fontes
de renda eram os impostos, principalmente o imposto sobre a propriedade. Esta mudança por
certo reverberou em “Desobediência Civil”.
Para além das críticas ao estado do governo de seu país, e de suas proposições de
mudança, é muito interessante notar como Thoreau tem a percepção do sistema pelo qual o
Estado consegue exercer seu poder, o que fica claro principalmente nas últimas questões
levantadas, críticas ao exército e à taxação. E como esta percepção se assemelha à definição

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de Estado para o sociólogo alemão Norbert Elias (1897 – 1990). Segundo Elias a
configuração do Estado se dá quando

Os meios financeiros arrecadados pela autoridade [central] sustentam-lhe o monopólio


da força militar, o que por seu lado mantém o monopólio da tributação. [...] Se um
desaparece, o outro segue-o automaticamente. [...] É preciso haver uma divisão social
muito avançada de funções antes que possa surgir uma máquina duradoura,
especializada para administração do monopólio. E só depois que surge esse complexo
aparelho é que o controle sobre o exército e a tributação assumem seu pleno caráter
monopolista. (ELIAS, 1994: 98)

Thoreau mostra uma idéia muito semelhante nas seguintes passagens

Se no ano corrente mil homens não pagassem os seus impostos, isso não seria uma
iniciativa tão violenta e sanguinária quanto o próprio pagamento, pois neste caso o
Estado fica capacitado para cometer violências e para derramar o sangue dos
inocentes.
Desta forma, a massa de homens serve ao Estado não na sua qualidade de homens,
mas sim como máquinas, entregando os seus corpos. Eles são o exército permanente, a
milícia, os carcereiros, os policiais, posse comitatus, e assim por diante. (THOREAU,
2001: 8 e 2)

E assim, como Elias, Thoreau mostra a importância vital que os monopólios da tributação e
da violência têm para o Estado. Bem como enfatiza a importância da administração
governamental para o sucesso do Estado.
Em resumo, sem os impostos o Estado estaria impossibilitado de pagar uma força
armada que obrigue a seus cidadãos o pagamento de impostos, assim como seus funcionários,
essenciais para a administração do Estado. E fica claro que Thoreau considera eficiente a idéia
de “desobediência civil”, pois rompe com os monopólios que se impulsionam mutuamente.
Por fim, deve ser salientado que Thoreau não propõe o final imediato do governo e do
Estado, segundo o mesmo, “o que desejo imediatamente é um governo melhor, e não o fim do
governo” (THOREAU, 2001: 1), para o pensador os homens ainda não estariam preparados
para viver sem governo. Na verdade, Thoreau não deseja tratar do governo ou do Estado, sua
grande preocupação é o indivíduo, que este possa ser livre, para que o próprio Thoreau

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pudesse ser livre. E que na guerra contra o Estado a desobediência civil, antes de uma arma é
a pedra base na qual o homem se apóia para que se mantenha como homem, para que seja leal
aos seus próprios princípios.

Bibliografia

ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador: formação do Estado e civilização. v.2 Rio de


Janeiro: Jorge Zahar. 1993.

GAT, Azar. The development of military thought: the nineteenth century. Oxford: Oxford
University Press. 1992.

HAMILTON, Alexander. Capítulo XV In: HAMILTON; MADISON; JAY. O Federalista.


Ed. Abril Cultural. 1973.

SELLERS, Charles; MAY, Henry; MCMILLEN, Neil R. Uma reavaliação da história dos
Estados Unidos: de colônia a potência imperial. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

THOREAU, Henry David. Desobediência Civil. 2001. Disponível em


<www.dominiopublico.gov.br>

WALLIS, John J. American Government Finance in the Long Run: 1790 to 1990. Journal of
Economic Perspectives, v. 14, n. 1, dez-mar, pp. 61-82, 2000.

WEIGLEY, Russell F. The American way of war: a history of United States military strategy
and policy. Indiana: Indiana University Press, 1977.

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