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JOS VAN USSEL

REPRESSÃO
SEXUAL
Tradução Sonia Alberti
Revisão Técnica Jane Russo

Prefácio
Jurandir Freire Costa

Coordenação Sérvulo Augusto Figueira

Assistente de Coordenação Jane Russo

EDITORA CAMPUS LTDA.


Rio de Janeiro 1980
"Publicado originalmente com o título SEXUAL UNTERDRÜCKUNG na série 'Rororo Sexologie' fundada
pelo Prof. Dr. Hans Giese Copyright © 1970 by Rowohlt Taschenbuch Verlag GmbH, Reinbeck bei
Hamburg”.

© 1980, Editora Campus Ltda.

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ISBN 85-7001-046-X (Edição original:


ISBN 3499680246 Rowohlt Taschenbuch Verlag GmbH, Hamburgo.)

FICHA CATALOGRAFICA CIP-Brasil.


Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, R. J.

Van Ussel, Jos, 1918 V372r Repressão sexual / Jos Van Ussel ; tradução
[de] Sonia Alberti ; revisão técnica [de] Jane Russo; prefácio [de] Jurandir Freire Costa. —
Rio de Janeiro: Campus, 1980.
(Contribuições em psicologia, psicanálise e psiquiatria; 4)

Tradução de: Sexualunterdrückung


Glossário
Bibliografia

1. Comportamento sexual — História 2. Repressão sexual I. Título II. Série

CDD - 155.3 155.309

80-0280 CDU - 159.922.1:159.964.212.4


Sumário

PREFÁCIO À EDIÇÃO EM PORTUGUÊS .......................................................................... 7


INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 12
1. DIFICULDADES TERMINOLÓGICAS .............................................................................13
2. O EXAME ....................................................................................................................16

O CRISTIANISMO E A SÍNDROME ANTI-SEXUAL .......................................................... 19


A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVI ........................................................................ 25
1. OS COLÓQUIOS DE ERASMO (1522) ..........................................................................25
2. CRITICAS AOS COLÔQUIOS ........................................................................................28
3. OS ESCRITOS DOS OUTROS HUMANISTAS ................................................................. 29
DO SÉCULO XVI AO SÉCULO XIX Primeira parte ......................................................... 32
1. ABURGUESAMENTO DA SOCIEDADE .........................................................................33
2. O HABITUS PSÍQUICO DO BURGUÊS ..........................................................................35
3. INTERIORIZAÇÃO .......................................................................................................36
4. EROTIZAÇÃO E HIPERSENSIBILIDADE .........................................................................38
5. INTIMIZAÇÃO .............................................................................................................40
6. PROBLEMATIZAÇÃO DO SEXUAL ...............................................................................43
7. INFLUÊNCIAS RELIGIOSAS ..........................................................................................46
DO SÉCULO XVI AO SÉCULO XIX Segunda parte ......................................................... 49
1. QUARTO DE DORMIR. CAMA. COMPANHEIROS DE CAMA........................................49
2. ROUPAS DE DORMIR..................................................................................................51
3. NUDEZ ........................................................................................................................52
4. APARECIMENTO DO PUDOR SEXUAL .........................................................................54
5. APROXIMAÇÃO SEXUAL .............................................................................................59
6. BASTIDORES DA LINGUAGEM SEXUAL .......................................................................61
A EXPANSÃO DA CÉLULA FAMILIAR ........................................................................... 65
1. EDUCAÇÃO E CÉLULA FAMILIAR ................................................................................65
2. CARACTERÍSTICAS DA CÉLULA FAMILIAR ...................................................................68
3. O RECUO DA "CASA" ..................................................................................................69
4. A FAMÍLIA BURGUESA DO SÉCULO XVIII ....................................................................74
A DIFERENCIAÇÃO DOS GRUPOS ETÁRIOS ................................................................. 79
1. INFANTILIZAÇÃO DAS CRIANÇAS ...............................................................................80
2. INFANTILIZACÃO DO ADOLESCENTE ..........................................................................87

O COMPORTAMENTO SEXUAL DOS ADOLESCENTES NO SÉCULO XVIII .......................... 91


1. CONTATO ENTRE ADULTOS E CRIANÇAS ...................................................................91
2. BRINCADEIRAS SEXUAIS .............................................................................................93
3. RELAÇÕES SEXUAIS PRÉ-CONJUGAIS .........................................................................93
4. A MASTURBAÇÃO ....................................................................................................108
O ESCLARECIMENTO SEXUAL DO SÉCULO XVIII ......................................................... 132
1. ESCLARECIMENTO SEXUAL DOS ADOLESCENTES ....................................................134
2. DEFENSORES E ADVERSÁRIOS DO ESCLARECIMENTO .............................................135
3. ANÁLISE DO CONTEÚDO DO ESCLARECIMENTO .....................................................137
4. FRANÇA ....................................................................................................................139
5. ALEMANHA ..............................................................................................................141
2. O FIM DO ESCLARECIMENTO ...................................................................................150
O ABURGUESAMENTO DO OCIDENTE ...................................................................... 152
A EMANCIPAÇÃO SEXUAL ....................................................................................... 158
1. ATÉ A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL .......................................................................158
2. ENTRE AS DUAS GUERRAS MUNDIAIS .....................................................................164
3. A "REVOLUÇÃO” SEXUAL DEPOIS DA SEGUNDA GUERRA MUNDIAL ......................166
4. TIPOLOGIA DAS "REVOLUÇÕES" SEXUAIS ................................................................169
5. REFORMISMO SEXUAL .............................................................................................171
6. A REVOLUÇÃO EXCLUSIVAMENTE SEXUAL ..............................................................175
7. A EMANCIPAÇÃO DO HOMEM E DA SOCIEDADE ....................................................178
FONTES A LUTA CONTRA A MASTURBAÇÃO NO SÉCULO XVIII .................................. 189
GLOSSÁRIO ........................................................................................................... 192
SOBRE O AUTOR

Jos van Ussel nasceu em 1918 em Mechelen, Bélgica;


estudou História da Arte, Arqueologia e História nas
Universidades de Louvin na Bélgica e Amsterdã na
Holanda; manteve atividades de ensino e de pesquisa
nas Universidades de Gent na Bélgica e Rotterdam na
Holanda.
Publicações:

Geschiedenin van het seksueele problem, Meppel,


1968, além de numerosos artigos em periódicos
especializados.
PREFÁCIO À EDIÇÃO EM PORTUGUÊS

Afirmar que o sexo foi reprimido graças ao capitalismo ou à revolução industrial já não
constitui surpresa. Os historiadores se encarregaram de provar o bem-fundado desta tese que,
1
corrigida nos excessos e asserções mais genéricas , incorporou-se à consciência do homem urbano
como uma verdade inconteste. O indivíduo moderno, pelo menos aquele pertencente às camadas
privilegiadas da sociedade, admite sem resistências que sua sexualidade foi sufocada pela
repressão.
A novidade do estudo de Ussel não reside, portanto, na demonstração convincente do já
sabido. É nas franjas do texto, no que corre paralelo à intenção central, que a originalidade do
trabalho se revela. Aí são pontuados com precisão os elementos históricos responsáveis pela
instituição do sexo reprimido. São descritos os minúsculos vaivéns cotidianos que, do século XVIII
em diante, criaram no homem europeu o que o autor chama de "hábito psíquico burguês". A
repressão sexual aparece como um item na composição deste hábito. Como um elo articulado na
cena mais ampla do universo disciplinar. Universo das pequenas regras higiênicas e pedagógicas;
dos pequenos rituais de urbanidade e polidez; das pequenas obrigações morais e cívicas, enfim, da
insidiosa teia punitivo-preventiva que, apoiando-se nas instâncias médicas, familiares e educativas,
deu forma e conteúdo ao civilizado burguês que conhecemos.
As consequências desta constatação são importantes. Menos pela polêmica conceituai
entre teóricos da repressão e teóricos da disciplina e regulação do sexo, que por sua incidência em
nossa realidade social. Nos últimos 10 ou 15 anos, as grandes cidades brasileiras foram invadidas
pela problemática da sexualidade. Os meios de comunicação de massa bombardeiam os indivíduos
com os perigos do sexo mal vivido e as delícias do sexo bem gozado. Homens e mulheres, adultos e
crianças encontram-se às voltas com a questão sexual, sofrendo seus efeitos repressivos ou
liberadores. As perguntas se avolumam; as interrogações crescem; os cientistas se pronunciam. Os
indivíduos trituram os cérebros buscando saber, em matéria de sexo, o que é permitido consumir
ou proibido proibir. O sexo é um verdadeiro ou falso problema na cultura brasileira?
Seguindo certa tradição do pensamento, seria fácil optar por uma das alternativas. Alguns
responderiam, sem pestanejar: falso problema. A questão sexual é uma questão burguesa ou
pequeno-burguesa. Basta ver o meio social em que ela circula, bares, praias, universidades,
consultórios de psicanalistas e laboratórios de sexologistas, para que sua origem de classe salte aos
olhos. Enquanto "problema", o sexo é preocupação dos sobrados e não dos mocambos. Mais um
modismo importado dos países centrais. Mais um produto da cisão que lacera a sociedade
brasileira. De um lado, os beneficiários da exploração. Os que usufruem, direta ou indiretamente,
da miséria dos outros e, por isso, podem liberar os corpos da penúria do trabalho para otimizar a
produção de prazer e discursos sobre o sexo. Do outro lado, os escravos da fome que, lutando para

1
Ver, por exemplo, Foucault, Michel, Vontade de Saber, Graal, 1978.
sobreviver, mal percebem a diferença entre prazer e obrigação, orgasmo e procriação. O mal do
sexo é, hoje, o que o mal du siècle foi ontem. Ornamento das elites aculturadas, insígnia dos bem
nascidos, destinada, no máximo, a consolidar a imagem democrático-modernizante com que o
poder tenta seduzir seus possíveis aliados. Fome de sexo é problema dos que não têm fome de
pão, isto sim verdadeiro problema brasileiro.
Ninguém pretende negar a quem quer que seja o direito de ver no sexo o umbigo do limbo.
Não se venha, entretanto, transformar querelas de boudoir em palavras de ordem política. A
questão neste caso não é a de falsidade ou verdade mas de respeito ou desrespeito aos que
sequer têm o que comer.
No polo oposto estariam os defensores da questão sexual. Para estes, o problema em
absoluto se reduz a uma matriz de classe. Se as massas trabalhadoras não percebem o regime
repressivo ao qual estão submetidas, isto apenas mostra a violência com que o capitalismo ou o
estado burocrático expropriou-lhes a autonomia sobre seus corpos. O direito ao prazer sexual é
uma prerrogativa do homem, universalmente inscrita em seu potencial biológico e cultural. A
história e a antropologia mostram que a atitude pró-sexual da sociedade nada tem a ver com
permissividade de classe. Este tipo de argumento mal disfarça o ranço moralista herdado da
repressão burguesa. Assimilar sexo e prazer à ociosidade é repetir, quase nos mesmos termos, o
velho jargão puritano.
Nem só de pão vive o homem. Interesse de classe e interesse de sexo não são antônimos
políticos. Apropriação do produto do trabalho e dos meios de produção implica em reapropriação
do sexo e dos mecanismos de prazer. São faces de uma mesma moeda, capítulos de um mesmo
processo de desalienação. O projeto revolucionário tem que incluir necessariamente todos estes
aspectos no seu ideário. A revolução ou será total, desde o início, ou não será. A questão sexual só
é ociosa para os donos do saber, prisioneiros de seus códigos acadêmicos e catecismos políticos.
Mas, queiram ou não estes novos mandarins, a liberação sexual passa ao largo destes rituais. O
sexo não se submete a questões de método. Sua verdade ainda não foi loteada por ideologias. Ele
explodiu, está aí, na vida e na experiência dos que não se deixam encabrestar por certezas certas
demais.
Ninguém pretende impor a quem quer que seja o direito à liberdade sexual, proposição
contraditória nos próprios termos. Não se venha, entretanto, tratar a questão sexual como
divertissement irresponsável de minorias desocupadas. Nem, o que é mais grave, contrapô-la ao
grito dos oprimidos, isto sim, procedimento ideológico, falso problema na cultura brasileira.
Inútil procurar distinguir o joio e o trigo. Em questões deste teor, cabe à história a última
palavra. Mais importante, a nosso ver, seria ampliar ó debate, acrescentando-lhe novas
interrogações. E, neste sentido, as indicações de Ussel são oportunas.
Habitualmente, tem-se a impressão de que as discussões sobre o assunto postulam a
existência de uma política unificada de repressão ao sexo. Esta política, orgânica em seus
instrumentos e objetivos, submeteria todos os segmentos sociais à mesma operação repressiva.
Ora, o que demonstra Ussel é a maneira diferencial com que o sexo foi abordado pelo poder.
Historicamente, o que se viu não foi uma estratégia repressiva única e centralizada desdobrando-
se sincronicamente em todos os recantos sociais. A repressão deu-se através de múltiplos agentes,
múltiplas formas de ação, múltiplos pontos de disseminação. Do mesmo modo, os objetos visados
variaram conforme as contingências históricas e as táticas do poder. No que concerne às faixas de
população atingida, por exemplo, foi a burguesia que, na Europa, primeiro veio a sofre; o impacto
das medidas repressivas criadas por seus ideólogos.
2
Não interessa, no momento, analisar este fato, à primeira vista, intrigante . O que importa
ressaltar no exemplo é o caráter seletivo, discriminado, socialmente heterogêneo da repressão. E,
se esta interpretação é aceita, perguntar se partidários e opositores da questão sexual não são
vítimas do mesmo preconceito universalista, quando buscam afirmar ou negar a validade do
problema, exclusivamente em função de sua relevância para o conjunto da sociedade.
Se no Brasil a repressão sexual da burguesia teve um percurso similar ao da burguesia
3
europeia — e há indícios que caucionam esta probabilidade — então a questão sexual é
seguramente uma questão de classe. Mas não no sentido dado pelos que procuram minimizar seus
efeitos, identificando-a a modismos sem densidade política. Questão de classe no sentido de ter
sido ela, a burguesia, sobretudo em seus escalões médios, o alvo privilegiado da repressão.
Portanto, é entendível que dela partam os primeiros sinais de insatisfação e rebeldia. A reação
tende a surgir onde o conflito é mais agudo.
Neste contexto, haveria razão em subestimar o relevo do problema, pelo simples fato de
não ter ele a mesma pregnância junto a outras classes sociais? As aspirações da minoria, mesmo se
são específicas e circunscritas, se opõem inevitavelmente às aspirações da maioria? Os critérios
dos que defendem o escalonamento de prioridades ou o adiamento de lutas políticas no combate
à opressão são inquestionáveis? O denominador comum estratégico deve preexistir, a título de
premissa ideológica, às várias formas de resistência ao poder, ou ser encontrado no curso e ao
cabo das lutas contra este mesmo poder?
Qualquer resposta imperativa seria ingênua. Como se sabe, as questões levantadas não se
restringem ao fato analisado. Dizem respeito a problemas políticos em geral. No Brasil, contudo,
pelo menos um evento histórico, o racismo, deveria ser considerado quando se avalia a
importância da questão sexual. O caso do preconceito racial mostrou as consequências de certa
lógica política que, defendendo a primazia da luta de classes, acabou por reforçar o mito da
democracia racial brasileira, formação ideológica inequivocamente criada pela burguesia branca.
Sob o pretexto de que o negro era segregado por ser pobre sonegou-se à consciência de
opressores e oprimidos o odioso fato de que o racismo existe e independe da situação
socioeconômica do negro.
Dar as costas à questão sexual, qualificando-a de burguesa, não seria retomar o trajeto
passado? E, inversamente, procurar apresentá-la como uma questão das massas não seria recair
em equívoco semelhante? Não significaria tentar abolir os desníveis e descontinuidades da
representação que se tem da realidade social, em detrimento da ação política sobre esta
realidade?

2
Citemos, brevemente, a satisfatória explicação dada por Foucault ao fenômeno. Para este autor, a disciplinarização da
sexualidade do indivíduo burguês foi uma condição necessária à expansão física, populacional da própria classe burguesa
Foucault, Michel, op. cit.
3
Ver, Costa Jurandir Freire, Ordem Médica e Norma Familiar, Graal. 1979.
Sob outro ângulo, o debate corrente em torno da questão sexual subtrai da discussão
elementos que merecem ser refletidos de maneira mais atenta. Assim, do mesmo modo que se
aceita a Plêiade de uma estratégia repressiva única, tende-se a ver no movimento de liberação um
todo prático-teórico, longe de corresponder à pluralidade de suas manifestações concretas.
Evidentemente, não pensamos que os defensores mais conscientes da liberdade sexual estejam
cegos à diversidade temática extraída do assunto ou às inflexões ideológicas por ele tomadas. O
que está em jogo é a relação entre intenção discursiva e instrumentação prática, entre efeitos
esperados e resultados obtidos.
Na letra do texto, o discurso sobre a liberação sexual define-se pela ruptura com o
saber/poder repressor e pelo esforço de construção de um espaço sexual livre de tutelas e
coerções. A conquista deste espaço, no entanto, vem sendo feita de maneira a contradizer, muitas
vezes, a proposição inicial. Para efeito de demonstração, tomemos a Plêiade de Reich (e ninguém
pode negar que se trata de um autor de peso, no que diz respeito ao tema) da auto regulação vital,
de onde emergiria o saudável equilíbrio sexual. Na prática, a Plêiade de que a natureza é
espontaneamente competente, imanentemente produtora de sexo livre, vem sendo curiosamente
encampada por um saber do tipo cientifico e um poder do tipo técnico-profissional, encarregados
de fazer brotar nos indivíduos o que é definido, por princípio, como espontâneo e naturalmente
livre. Ou seja, para que o espontâneo e o natural surjam tem-se de recorrer a uma sofisticada
tecnologia do corpo, do sexo e das emoções, comparável ao aparato disciplinar montado por
higienistas e pedagogos dos séculos anteriores, para reprimir o sexo. Começou-se a exigir dos
indivíduos a mesma série interminável de exercícios físicos e mentais, a mesma atenção incansável
para com os males sexuais, enfim, a mesma obsessão pelo corpo e pela saúde moral,
reconhecidamente caraterísticos do processo de disciplinarização da sociedade.
Pode-se objetar que sob as aparências do mesmo ganha vida o novo, desconhecido apenas
pelos caçadores de invariâncias culturais e estruturas formais na história das sociedades. O saber e
a técnica empregados no combate à repressão são necessários, assim como o é a vanguarda
militante no processo de revolução política. É improcedente, para não dizer reacionário, procurar
confundir o papel do agente revolucionário com o do ideólogo conservador. Esta espécie de
interpretação desmobiliza qualquer iniciativa de mudança, criando falsos impasses e paralisando a
atividade política.
A objeção é razoável. É possível que uma argumentação desta ordem possa ser usada pelos
que defendem a intocabilidade do status quo. Mas também não seria provável que esta forma de
ação política estivesse prolongando a tradição repressiva, quando admite que a sexualidade livre é
uma questão de técnicos, especialistas e cientistas? Não foi este o álibi dos primeiros agentes da
normalização sexual?
Conforme nos mostra Ussel, ciência e disciplinarização do sexo nasceram de um mesmo
artefato político: a consciência imposta aos indivíduos de que eles eram ignorantes quanto aos
destinos, origens e funcionamento do prazer sexual. Uma serviu de trampolim à outra. A ciência
distinguia o bom e o mau, o normal e o perverso, o sadio e o "degenerado" e, em seguida,
justificava a repressão em nome do saber. Saber que definiu a norma sexual "verdadeira",
"natural", "universal", base dos catálogos de normalidade e anormalidade, até hoje comandantes
da vida sexual dos indivíduos.
Em retrospectiva, tornou-se fácil condenar a inconsistência deste conhecimento ou a
brutalidade do procedimento. Humilhados e ofendidos por séculos a fio, os "infratores das leis
naturais" passaram a lutar por seus direitos humanos. A "consciência democrática", ferida,
recobrou a razão. Arrependeu-se e acreditou-se imunizada contra desvarios desta sorte.
No entanto, o movimento de redenção obedeceu às velhas batutas. Novamente, são os
especialistas e cientistas que se fazem porta-vozes da "natureza" e começam a redefinir o que é
natural e normal. Com outros objetivos, dir-se-á. Desta feita, é a liberdade que se busca; é a
tolerância que se exercita! Mas que garantia temos de que a liberdade de hoje seja a de amanhã?
Quem nos certifica que a natureza disponha de uma norma sexual qualquer, seja ela reprimida ou
liberada? A norma é uma necessidade da natureza ou do saber/poder que só se legitima sendo
normativo?
Pode-se argumentar que a questão é acaciana. Desde que existem, as ciências humanas
perguntam se a norma sexual é um dado da cultura ou da natureza, sem que, por isso, o problema
da repressão tenha sido resolvido. Não se trata, entretanto, de desviar a discussão para o terreno
da antropologia, filosofia ou áreas anexas do conhecimento. Embora reconheçamos que existe
uma certa ressonância ontológica na questão, o problema tocado é historicamente datado. A
questão da "verdadeira" essência do sexo, se natural ou cultural, é secundária. O importante é
assinalar que, não obstante as incertezas quanto à gênese do fenômeno, o monopólio da verdade
sexual continua nas mãos dos cientistas, que, por sinal, não hesitam em invocar as razões da
natureza quando defendem suas opiniões. Donde, talvez, o caráter impositivo de algumas
concepções de liberdade sexual que exibem como aval a palavra da ciência. Certos ataques ou
contra-ataques ao conservadorismo sexual já não dão mostras desta vontade de impor a todos a
tal cobiçada liberação de alguns? Como deixar de notar que a categoria do "enrustido" começa a
funcionar, em círculos de vanguarda, com uma aura inquietantemente próxima do estigma colado
aos "anormais" da ordem contestada? Seria apenas uma simples perversão das Plêiades de
liberação? Ou seria uma consequência provável da crença, partilhada por conservadores, e
contestadores, na infalível vocação da ciência para o justo, o reto, o moralmente libertário?
Este questionamento encerra, portanto, algumas perguntas que são, ao mesmo tempo,
desafios. A política de liberação vem buscando na ciência do sexo os caminhos para sua realização,
esquecendo que esta mesma ciência atrelou a sexualidade a interesses econômico-ideológicos de
classes sociais e grupos profissionais. Haveria, então, a possibilidade de se abordar o problema sem
recorrer à normalização exigida pela racionalidade científica que conhecemos? Ou, tentação
oposta mas não menos ilusória, sem fazer do irracionalismo, desesperada ou ingenuamente,
bandeira de luta contra o cinismo do poder?
Através da leitura de Ussel, o leitor poderá repensar questões e verdades, até então fora
de quaisquer dúvidas. Poderá repensar, por exemplo, se o sexo já entrou na era da liberdade e da
revolução, pela porta da ciência, ou se continua produzindo mitos que mostram à razão científica
seus limites e misérias.

Jurandir Freire Costa


INTRODUÇÃO

Divergem as opiniões sobre a origem da síndrome anti-sexual. É uma característica do


século XIX e do vitorianismo? É um sinal característico da burguesia ou do cristianismo? Como não
se pode negar o intenso combate levado a cabo pelas Igrejas no século passado, nem os ataques
dos não-cristãos a que elas se expunham em consequência desta atitude negativa, julgou-se que a
anti-sexualidade era um produto da Igreja. E esta crença se confirmou ainda mais quando certos
cristãos progressistas, em vez de discutir as acusações, começaram também a incriminar as Igrejas.
Não havia dúvidas: o cristianismo quisera matar Eros.
Tentaremos demonstrar que, em relação à atitude anti-sexual ocidental, o cristianismo é
muito menos responsável do que a maioria das pessoas habitualmente pensa (e entre elas, alguns
escritores cristãos). Julgamos, antes, que o aburguesamento da sociedade foi o que permitiu o
surgimento de um tipo de homem totalmente novo e de novas relações humanas e
socioeconômicas, que, de forma inevitável, conduziram à síndrome anti-sexual.
Numerosas hipóteses foram formuladas sobre a origem da síndrome anti-sexual. Segundo
Kinsey, ela já existia entre os hititas, os judeus e os cristãos. Escritores cristãos, por outro lado,
falam da influência de filósofos romanos e gregos da baixa antiguidade. Em compensação, outros
fazem do cristianismo o responsável por tudo, pensando, mais particularmente, nos textos de São
Paulo e Santo Agostinho. Admite-se, também, que a síndrome anti-sexual é uma reação contra a
pretensa "libertação" da Renascença. Outros negam a tendência anti-sexual, vendo antes na ação
conduzida contra a sexualidade uma tentativa de elevação da sociedade. G. R. Taylor fala de um
tabu vitoriano, considerando-o como consequência de uma brusca passagem do tolerante século
XVIII (matriarcal) ao puritanismo vitoriano (patriarcal). Para o pastor americano R. E.
Fitch, após a libertação do século XVIII, o homem passou a desejar para si e para os seus
semelhantes uma disciplina mais rigorosa a fim de poder refrear seus instintos e comportar-se de
acordo com os bons costumes; o que é mau não poderia satisfazer o homem durante muito
tempo; logo, segundo Fitch, seria necessário ver no puritanismo uma tomada de consciência
coletiva, uma espécie de penitência; por esse motivo se teria prestado homenagem, durante
algum tempo, ao puritanismo mais do que ao "verdadeiro" pudor. Para outros autores, o
cristianismo teria seguido uma tendência puritana desde o século XVI, tornando-se, por isso, anti-
sexual; O. Brudendorff fala de uma regressão constante no decurso dos últimos dois mil anos. E. S.
Turner, pelo contrário, vê no puritanismo vitoriano apenas uma outra forma de sex-appeal: obtém-
se um máximo de excitação sexual com um mínimo de nudez. Contudo, segundo R. Biot, a história
dos costumes nos séculos XVII e XVIII mostra a existência muito difundida, na época, de uma
atitude desprovida de qualquer moralidade face ao casamento. A Plêiade de ligar o amor ao
casamento chegava a ser bizarra. Da imoralidade é que teria nascido o puritanismo. Esta tática,
que consistia em cobrir tudo com véus, teria conduzido a um "secreto refinamento do impudor".
A síndrome anti-sexual data de quatro mil, quatrocentos ou cem anos? Trata-se de uma
evolução ou de uma ruptura violenta? Até que ponto as influências religiosas determinaram esta
evolução? Com que objetivo foram instituídas as normas rigorosas da moralidade?
Se quisermos falar da origem da síndrome anti-sexual, teremos que precisar bem o que se
entende pelos conceitos de sexualidade, pró e anti-sexual, síndrome anti-sexual, amor, etc., isto é,
procurar as flutuações que estes conceitos sofreram ao longo dos tempos e determiná-los nas suas
relações socioeconômicas e culturais. Nos parágrafos seguintes será necessário examinar as
rupturas e os deslocamentos de limiares, assim como determinar melhor, em termos temporais, o
começo da síndrome anti-sexual. Só então torna-se possível construir uma hipótese interpretativa.
Enquanto este método de trabalho não for seguido, a história da sexualidade continuará a ser tão
vaga e não científica como o é atualmente.

1. DIFICULDADES TERMINOLÓGICAS

Para escrever a história do sexual faltam constatações semânticas e terminológicas claras


sobre conceitos tais como sexualidade, erotismo, amor, atração, carícia, sensualidade e outros. A
dificuldade cresce quando temos que referir esses conceitos a épocas mais antigas. Ocorrem então
problemas teóricos e problemas da ordem do conhecimento, já que utilizamos
multissemanticamente expressões cujos sentidos não dão margem à menor dúvida na linguagem
cotidiana.
Para começar, temos que estabelecer restrições ao emprego de um conceito pouco
definido, como é o de sexualidade. Este termo só apareceu no decurso do século XIX nas
sociedades industriais. No século XVIII não existia o adjetivo sexual para designar a diferença
genital entre o homem e a mulher. Por sexo entendia-se o sexo feminino. Falava-se também de
amour, de Minne, de Vênus. Não se encontra a palavra sexualidade nem na Bíblia, nem em
Homero, nem em Shakespeare. Marx e Lenin a utilizam muito pouco, e, na maior parte das vezes,
para pôr de sobreaviso contra uma excessiva atenção concedida ao sexo em geral. Não se pode
imputar a ausência desta palavra a uma falha de vocabulário. No século XVI, a língua francesa
possuía trezentas palavras para designar o ato sexual e quatrocentas para indicar as partes
genitais. O vocabulário sexual (da antiguidade e da Idade Média) era suficientemente grande. Os
linguistas demonstraram que a palavra é uma forma de comportamento, e que a língua e o
comportamento reunidos são produtos da educação, num certo quadro de cultura. Para falar da
sexualidade, as culturas sexualmente pobres dispõem somente de um vocabulário medíocre. São
obrigadas a utilizar uma única palavra, bastante vaga, sexual, para descrever numerosos aspectos
da vida.
É provável que o conceito sexualidade tenha aparecido no século XIX, quando se reuniram
num todo os componentes sexuais de numerosos comportamentos, porque o caráter sexual é só
um aspecto fragmentário do comportamento. Além disso, este conceito resulta de uma posição
hipersexualizada, pois não há a certeza de ser este aspecto o mais importante. Podemos adiantar
que uma cultura que se coloca frente à sexualidade de uma forma intensivamente negativa ou
positiva cria um conceptual frame, que está sexualizado de um forma mais intensa do que em
outras culturas. Não nos apercebemos das coisas unicamente peia maneira de ver que nos foi
ensinada (percepção funcional); nosso vocabulário também determina a imagem das coisas. Por
conseguinte, é muito possível que o conceito "sexualidade" não passe de uma construção
hipotética que, aliás, se constitui semanticamente, sem, porém, se ligar a nenhum acontecimento
explícito na ordem ontica. Se não reconhecermos isto claramente, corremos o risco de passara
utilizar inconscientemente uma metalinguagem. Caso nossa suposição esteja certa, vemo-nos
obrigados a ter muito cuidado com o manejo da palavra "sexualidade". Esta deve seu surgimento a
uma posição hipersexual; se continuarmos a empregá-la, tal posição continuará existindo. A
experiência de terapêuticas que tratam doentes em grupo mostra-nos como se pode sair do
círculo vicioso. Nos grupos mistos submetidos a tratamento os doentes tinham tendência a
descrever certos conflitos como sexuais. Em compensação ver certos conflitos como sexuais. Em
compensação, quando se tratava de grupos do mesmo sexo, julgavam dever explicar os mesmos
conflitos numa terminologia não-sexual. Se analisarmos contextualmente o emprego do conceito
"sexualidade" na literatura especializada, ou examinarmos quais são os assuntos tratados nas
obras de sexologia e nos estudos da história da sexualidade, obtém-se, sem dúvida, uma definição
máxima e mínima. Não podemos, porém, chegar a uma determinação precisa do núcleo e da
essência do conteúdo conceituai. O uso do termo "sexualidade" é tão evidente que nem nos
damos mais ao trabalho, sequer, de refletira seu respeito. Interessamo-nos mais pelas diferentes
concepções, católicas, protestantes e outras relativas ao sexo. Talvez se trate de tonalidades
dialetais de uma mesma língua a que atribuímos uma grande importância. Um japonês tem muita
dificuldade em tentar distinguir as línguas ocidentais, tanto elas, em sua opinião, se parecem umas
com as outras. É possível que o nosso posicionamento frente ao sexual esteja impregnado pela
sociedade industrial ocidental e que o conceito suscite conteúdos e afetos totalmente diferentes
para outros tempos e em outras culturas.
Nesse estudo, vamos entender, acerca do conceito de sexualidade, tudo o que
compreenda relações e ações de pessoas entre si ou consigo mesmas enquanto seres sexuados.
Queremos diferenciar quatro elementos: função de reprodução, satisfação de necessidades
biológicas, prazer e funções recreativas. Fora desse núcleo, consideraremos como sendo apenas
aparentemente sexuais as consequências das relações sexuais, como a fecundação, a gravidez, o
parto ou o aborto, doenças venéreas, etc.
Os pares conceituais pró e anti-sexual, liberdade e não-liberdade sexual levantam
dificuldades consideráveis. Muitas vezes se lê que o homem da Idade Média vivia mais livremente
e observava uma atitude pró-sexual. Por outro lado, falamos de uma síndrome anti-sexual no
século XIX, ou de uma liberdade sexual mais limitada. Devemos graduar estas Plêiades. Em
primeiro lugar, é um erro ligar os conceitos pró e anti-sexual a liberdade e não-liberdade sexual.
Uma atitude pró-sexual nem sempre se coaduna com uma maior liberdade sexual. Frumkin nos
mostra como as representações que aparecem são desacertadas quando empregamos o elemento
freedom para a construção de um continuum of prosexuality and antisexuality. Também não
podemos ignorar que os conceitos liberdade e não-liberdade são os extremos não existentes de
um contínuo. Provavelmente o que existe é uma gradação. Por outro lado, observamos, entre
outras coisas, a liberdade teórica (ideal) e a prática (real). Ela pode ainda ser externa, interna,
subjetiva ou objetiva. A partir dessas observações vamos definir a expressão maior liberdade
sexual da seguinte forma: pode-se falar de uma maior liberdade sexual num indivíduo ou numa
coletividade quando a escolha entre diversas atividades, todas efetivamente realizáveis, é mais
extensa. Por exemplo, consideramos sexualmente livres certas sociedades em que a masturbação,
os jogos sexuais entre adolescentes, as relações pré-conjugais, a homossexualidade, todas as
posições de acasalamento, da mesma forma que as relações não-coitais, são aceitas sem restrição.
Pode-se falar de uma menor liberdade quando a escolha é mais restrita, e diversamente
valorizada, sendo as atitudes ou os comportamentos reduzidos por uma pressão interior ou social,
a um menor número de atividades estereotipadas. No entanto, uma sociedade pode ter uma
maior liberdade e, ainda assim, ser anti-sexual. Por outro lado, uma sociedade, um grupo, um
indivíduo não são necessariamente anti-sexuais quando proíbem a si mesmos, por exemplo, a
masturbação, a homossexualidade e as relações pré-conjugais.
Examinemos agora os conceitos pró e anti-sexualidade. Uma sociedade pode ser pró-sexual
e proibir a homossexualidade, se imaginar poder, assim, elevar a taxa de natalidade. Uma outra
sociedade pode ser pró-sexual e recusar as relações sexuais pré-conjugais com receio de que elas
determinem uma desintegração da sociedade. Logo, não é o número nem a diversidade das
possibilidades de expressão que aqui são determinantes, mas sim a avaliação coletiva e individual,
o grau de integração do sexual nos valores culturais. Os tabus podem impor restrições ao
comportamento sexual; mas a origem, a intenção, a qualidade e a observância dos tabus são de
significação primordial. As prescrições mágicas e rituais, como a proibição de fazer o amor à noite
(com medo de que nascessem crianças cegas), e que se encontram até o fim do século XVII, a
preferência por certas posições no ato sexual (para se ter mais rapazes), o tabu do período
menstrual na mulher, a proibição das relações sexuais pré-conjugais, tudo isto não equivale ainda à
recusa da sexualidade. Na medida em que estas prescrições têm uma função mágica, higiênica ou
de organização da ordem social e não incidem diretamente sobre a sexualidade, não há nenhuma
anti-sexualidade. O mesmo sucede em relação à atitude oposta, pois de modo nenhum devemos,
falar de comportamento pró-sexual, a propósito da maior parte das regiões agrícolas ou de criação
de gado, em que, até o fim do século XIX, as relações sexuais pré-conjugais eram habituais e
serviam para provar a fecundidade.
Numerosos fatos, condutas, disposições e certas particularidades que vemos como
expressão de um comportamento interior determinam o reconhecimento de uma atitude pró ou
anti-sexual. Quais são as funções da sexualidade reconhecidas como positivas? É a procriação, a
auto realização, a necessidade fisiológica, a expressão do amor, o prazer, a função recreativa, o
êxtase, ou a sensualidade? Também podemos perguntar, pelo contrário, quais são as bases prévias
que engendram, por assim dizer automaticamente, uma atitude positiva perante a sexualidade.
Existem pressupostos que valorizem o sexual quase que automaticamente? Bem, alguns já foram
enumerados por nós, o reconhecimento da sensualidade e do prazer, isto é, uma descarga
suficientemente grande para fornecer tempo, atenção e energia ao sexual.
Da mesma forma que se pode traçar uma tipologia das opiniões sobre a sexualidade,
também se pode estabelecer uma tipologia dos pontos de vista pró e anti-sexuais, bem como das
sociedades em que reina uma maior ou menor liberdade sexual. Partimos do princípio de que,
numa civilização pró-sexual, todas as funções sexuais são experimentadas e nenhuma função
condiciona qualquer outra. É por este motivo que não se pode falar de atitude pró-sexual quando
se monopoliza a sexualidade no conjunto sexo, amor, casamento e procriação.
Ainda algumas observações sobre o conceito "síndrome anti-sexual". Uma síndrome é um
conjunto de fenômenos reunidos num indivíduo ou num grupo. Falamos de uma síndrome anti-
sexual quando somente se aceitam como componentes da sexualidade aqueles que se encontram
no casamento e na reprodução. A síndrome anti-sexual engloba neuroses e psicoses individuais e
coletivas, pedagogias irracionais, deformações psicossomáticas, opiniões e comportamentos que,
na nossa época, são, sem exceção, considerados como patológicos. Esta síndrome é objeto de
estudo para o historiador, o psicólogo, o pedagogo, o antropólogo e o sociólogo. Trata-se de um
fenômeno cujo estudo é importante para a história da civilização, da mesmo forma que o estudo
da industrialização, da urbanização, do progresso das ciências, revestindo-se de interesse porque
mostra que, quando se seguem normas morais irrealizáveis, algumas vezes não se atinge o
objetivo visado. Se considerarmos todas as atitudes perante a sexualidade que foram adotadas em
qualquer época e em qualquer região do mundo, desde as pró-sexuais até as anti-sexuais, a
síndrome anti-sexual tradicional das sociedades industriais ocuparia nesta escala um lugar quase
único. Poucas são as civilizações que recalcam mais a sexualidade.

2. O EXAME

É difícil dar uma resposta exaustiva a todas as perguntas que são formuladas neste
domínio, porque o terreno de investigação é excessivamente extenso e a documentação
insuficiente. Obras que deveriam conceder um largo espaço à sexualidade mal falam dela; é ainda
muito reduzido o número de biografias, livros, revistas, bibliotecas especializadas, monografias e
enciclopédias consagradas a este assunto, cujas abordagens ainda não foram suficientemente
estudadas. Não se pode escrever uma história da sexualidade sem um estudo prévio e avançado
de conceitos como o amor, o erotismo, a sensualidade, o prazer; o vestuário, a nudez, o pudor, a
tradição e a moralidade; o casamento, a família, a união livre, o casamento de ensaio, a
concubinagem e as outras formas de relações sexuais extraconjugais; os beijos e as carícias, a
pornografia e a censura; o papel dos sexos e a emancipação da mulher; a homossexualidade, a
contracepção; a criança abandonada, o filho natural e o infanticídio; a puberdade, o ensino e a
informação mistos. É certo que existem algumas histórias de sexualidade, mas são muito
anedóticas (a vida de Don Juan, as cortesãs célebres) e sobretudo muito anacrônicas. A história da
sexualidade dos últimos dois mil anos nem chegou a ser esquematizada em suas linhas gerais. Nem
se tentou fazer um resumo ou estabelecer uma teoria a partir da qual se pudessem formular
hipóteses, o que teria permitido um estudo empírico. Domínios importantes, como a heurística e a
interpretação de fenômenos sexuais históricos, não são examinados a fundo, nem mesmo
abordados. No entanto, os historiadores especializados dão-nos a Plêiade de já saberem tudo. Por
exemplo, deve-se admitir que a espécie humana ficou biologicamente imutável ou que houve
transformações? Se sim, em que época e em que condições? Há direito de utilizar, para épocas
passadas, conceitos como superego, ego, id? Que significavam outrora as palavras "paixão",
"pudor", "castidade", por que motivo um beijo, numa certa época, parecia aos teólogos da moral
tão perigoso que equivalia à perda da virgindade? Como se pode explicar a torrente de lágrimas do
século XVIII? De onde vinha a estimulação e quais eram esses estímulos? Ainda estamos à espera
de uma resposta para todas estas perguntas.
O ponto de partida do nosso estudo foi a história da instrução sexual. Nas sociedades
industriais a atitude perante a sexualidade modificou-se tão sensivelmente nestes últimos tempos
que o fenômeno de uma informação sexual explícita provoca a nossa estranheza. Como é possível
que os pais se sentissem constrangidos quando os filhos lhes perguntavam de onde vinham? Não
se trata de coisas inocentes e correntes, que não parecem necessitar do auxílio de uma pedagogia
especial? Assim, o historiador deve, por isso, se perguntar se o esclarecimento explícito não se
tornou um problema em uma determinada cultura e em determinadas camadas sociais. Verifica
depois que houve movimentos favoráveis ou desfavoráveis à informação: uma primeira vez, na
segunda metade do século XVIII; uma segunda vez, no período de 1890 até hoje. O ensino sexual
introdutório não era um problema apenas individual, mas também social. Durante perto de dois
séculos, algumas organizações pedagógicas advogaram a informação e apresentaram projetos. A
polêmica era viva: consagraram-se ao problema congressos, sessões, conferências e filmes.
Inúmeros livros, brochuras, artigos de revistas, discos tratavam igualmente do assunto.
O fenômeno é tão interessante por seus aspectos psicológicos (de psicologia profunda),
como pelos sociológicos. Tinha-se outrora a impressão de que algo extremamente valioso corria
perigo, como se um esclarecimento ou a sua falta fossem ser responsáveis por todo bem e todo
mal. Devemos explicar também esta contradição: por que este esclarecimento, a que tanto valor
se atribuía, foi, de fato, conquistado por uma pequeníssima parte da população, quer dizer, pelos
adolescentes da burguesia? Que espécie de informação foi escolhida e por quê? De um ponto de
vista teórico, a informação pode consistir em dados objetivos e juízos de valor sobre a sexualidade.
Pode ser mínima ou máxima, quer dizer, pode conter nenhum, alguns ou numerosos pormenores
sobre a sexualidade nos jovens e nos adultos, sobre a sexualidade normal ou anormal, atual ou
antiga, ocidental ou não-ocidental. A informação pode ter um valor positivo, visar um nível
elevado, recomendar atividades sexuais, exortar à prudência necessária, mas pode também ter um
valor negativo, opressivo, punitivo, paralisante.
Pode tomar a forma de uma iniciação solene. Esta iniciação pode desenrolar-se num clima
de medo ou de respeito pró-sexual; pode ser uma espécie de rito de conjuração anti-sexual, um
rito purificador de caráter traumatizante. Pode ser neurótica. Devemos, sobretudo, recordar duas
coisas: a) não se dá a informação por se sentir a sua necessidade; certas instâncias podem pensar
que, para certos ou para todos os grupos, para um sexo ou para os dois, a ignorância é preferível
ao conhecimento; ou, então, que "a experiência da rua" é melhor do que uma informação
consciente; b) nas épocas ou nas sociedades em que existem extensas possibilidades de
informação, pode-se tentar canalizar esta para se obter um certo resultado, por exemplo,
influenciar a interpretação dada ao sexo, definir como boas ou más certas manifestações de
sexualidade, ou advertir contra possíveis perigos.
O tema do esclarecimento nas nossas sociedades industriais pode ser desenvolvido a partir
desse pano de fundo. Os textos que apareceram depois do fim do século. XIX repetem
continuamente que a criança deve ficar absolutamente ignorante até uma certa idade, variando
dos três aos quatorze anos. Conta-se-lhe então, de uma certa forma, "de onde vêm as crianças",
isto é, lhe são dadas algumas indicações sobre a diferença dos sexos, sobre "o local onde as
crianças crescem" e "a maneira como são dadas à luz". Em certos casos prevê-se uma segunda
série de explicações, para uma idade mais avançada, sobre o papel do pai, entre outros assuntos. É
preciso não comparar este processo à iniciação que tem lugar, por exemplo, em numerosos povos
primitivos. Se a nossa informação tem características exteriores semelhantes, as diferenças são, no
entanto, essenciais. Porque, em vez de despertar o respeito, a reserva ou a aprovação, em vez de
marcar o início da atividade sexual, nossa informação não representa uma iniciação num mistério,
é, antes (pelo menos até à Segunda Guerra Mundial), um dos métodos utilizados para afastar os
jovens da sexualidade. Satisfaz mal a sede de conhecimentos, refreia a curiosidade, não dá
resposta a perguntas verdadeiramente importantes e, em grande parte, compõe-se de ordens ou
proibições pretensamente morais, mais ou menos explícitas. Um outro tipo de informação é a
instrução de predomínio biológico; é uma fuga para o domínio neutro dos dados científicos, que
não constituem uma resposta às necessidades reais dos jovens.
Não é apenas o conteúdo da informação que merece a nossa atenção, mas também a sua
forma. Durante a instrução, os pais e os outros educadores estão nervosos e empregam uma
linguagem pouco habitual. Tentam quase sempre evitar esta ingrata tarefa, impondo o silêncio à
curiosidade das crianças, ou então passando o fardo para outras pessoas: eclesiásticos,
professores, médicos, especialistas... Alguns pedagogos impõem ao adolescente um período de
ascese antes e depois da instrução. É verdade que a revelação, mesmo parcial, dos facts of life
pode ser uma rude prova, um traumatismo, apesar de todas as precauções.
Podemos, ainda, examinar outros aspectos, como, por exemplo, os conteúdos e a
terminologia empregados; ambos evoluíram, depois da segunda metade do século XVIII, no
sentido de uma dissimulação crescente da sexualidade e, após o fim do século XIX, no sentido
inverso. Podemos também perguntar que evolução se processa em relação à idade, ao sexo e ao
grupo social, ou ainda quem é esclarecido e como.
Ao estudar o fenômeno da instrução sexual, ficamos admirados com as semelhanças que
aparecem entre os dois períodos que vão de 1760 a 1800 e de 1880 a 1950. Muitos problemas
"sexuais” pretensamente atuais já eram muito discutidos no século XVIII: a instrução e a educação
sexuais, a masturbação, as relações sexuais pre ou extraconjugais, a contracepção, o número de
filhos, o amor, o casamento de ensaio, a prostituição, etc. Muito pouco se escreveu sobre estes
assuntos no século XVII, e ainda menos no século XVI. A problematização da sexualidade data da
segunda metade do século XVIII. Através das investigações macro históricas, descobrem-se outras
semelhanças, sobretudo entre o período que vai do século XVI ao século XIX e o que vai do fim do
século XIX até os nossos dias. A evolução é praticamente a mesma, mas desenrola-se em sentido
inverso. A partir do século XVI, a repressão da sexualidade aumenta continuamente; depois, no fim
do século XIX, começa a emancipação: já não se receia abordar os temas até então considerados
tabus. Quanto mais progride o aburguesamento, mais a sexualidade é reprimida. As classes
superiores e inferiores só tardiamente ficaram expostas ao aburguesamento e, portanto, à
repressão. Como o modo de comportamento burguês é posto como a única moral, a burguesia não
compreende o sistema de valores das outras classes e acha que são imorais. Era assim, e ainda é.
Prestamos grande atenção ao comportamento dos adolescentes porque eram os mais e os
primeiros expostos às novas tendências. Só quando consideramos devidamente o que lhes era
imposto é que percebemos as tarefas de que, mais tarde, os adultos iriam se encarregar.
Limitamos geograficamente o nosso estudo à França e à Alemanha, os dois países mais
progressistas no continente europeu. A evolução da Inglaterra preocupa-nos menos porque não
corresponde exatamente à do continente.
O CRISTIANISMO E A SÍNDROME ANTI-SEXUAL

A atitude das Igrejas do século XIX aos nossos dias leva a crer que a síndrome anti-sexual
foi um produto do cristianismo. Existem indícios que tornam tentadora a extrapolação do
momento atual para a história dos últimos dois mil anos. E, como se sabia muito pouco acerca da
história da sexualidade, tal extrapolação efetivamente ocorreu. Os escritores cristãos,
embaraçados por estas "acusações'', tentaram desonerar-se da "falta" e atribuíram-na às Plêiades
e concepções dos filósofos romanos e gregos da baixa antiguidade, que, nos seus escritos,
defendiam uma moral mais rígida, para evitar que o mundo antigo caísse na degenerescência
sexual. O comportamento anti-sexual cristão não seria, pois, outra coisa que não uma
institucionalização das Plêiades destes filósofos antigos, tão admirados que, segundo os cristãos,
teriam chegado a uma justa compreensão das coisas. A sua defesa fundava-se numa tese não
verificada, e, no entanto, de bom grado utilizada por motivos morais e pedagógicos: a decadência
da Grécia antiga e de Roma teria correspondido exatamente a uma profunda corrupção morai,
embora a relação causal não esteja totalmente esclarecida.
Uma outra hipótese, segundo a qual a atitude anti-sexual imputada aos cristãos teria a sua
origem nos judeus ou, mais longe ainda, nos hititas, não está provada. No antigo judaísmo
encontram-se tanto pontos de vista pro-sexuais, pró-sexuais ascéticos, como uma negação da
sexualidade. Há na Bíblia um grande número de pontos de vista. Se quisermos dar à síndrome anti-
sexual uma raiz judaica, teremos que explicar por que o cristianismo escolheu um só ponto de
vista, entre tantos outros, e por que precisamente este. Mas o cristianismo, por sua vez, apresenta
uma tamanha variedade de atitudes que, com as mesmas provas e argumentos, se poderia afirmar
que a concepção de vida era tanto pró-sexual como anti-sexual. Logo, é particularmente difícil
situar exatamente o cristianismo. É certo que dispomos de declarações de autoridades oficiais,
mas estas, às vezes, são contraditórias, e não se pode atribuir a todas o mesmo valor. Por outro
lado, os pontos de vista oficiais e oficiosos estão muitas vezes em contradição. Deve dar-se um
valor diferente ao que se diz no Vaticano, no episcopado ou no púlpito? Quais são os pontos de
vista que têm mais peso e são efetivamente aceitos? Encontram-se juízos sobre o casamento a
diversos níveis: decisões de concilio, encíclicas, decretos, o direito canônico, tratados dogmáticos,
livros de teologia moral, bem como livros e brochuras populares. O melhor exemplo atual de uma
tal contradição é a discussão em torno da contracepção.
Algumas seitas cristãs que dizem apoiar-se nos mesmos textos fundamentais defendem às
vezes pontos de vista opostos no que diz respeito à contracepção, ao aborto, à homossexualidade,
à sexualidade extraconjugal, ao divórcio, às relações sexuais pré-conjugais, à masturbação, ao
lugar da mulher na Igreja e ao celibato. Do mesmo modo é preciso admitir a existência de
importantes diferenças geográficas dentro da própria Igreja. Basta recordar a situação dos
eclesiásticos e dos crentes na América do Sul, na África e nas ilhas dos mares do Sul, ou de
situações similares no século XV, ou em épocas anteriores; temos de supor que, nos Celtas, nos
Gauleses e nos Germanos a situação socioeconômica no momento da sua conversão ao
cristianismo influenciou profundamente os novos valores cristãos e levou a uma síntese específica
e a uma adaptação dos valores saídos da situação socioeconômica aos valores cristãos. Estas
adaptações existem ainda hoje, quando missionários cristãos convertem povos primitivos.
Combaterão alguns costumes, como o canibalismo, mas deixarão subsistir outros, que estão
profundamente enraizados nas antigas estruturas, como a poligamia. Replicar-se-á talvez que as
Igrejas nunca fazem concessões no plano dos valores fundamentais. Respondemos com esta
pergunta: quem nós diz — e em virtude de que autoridade — quais são estes valores
fundamentais? Talvez se apontem vagos princípios, o respeito à vida, o amor ao próximo, etc. Mas
o historiador sabe que estes conceitos indefinidos adquiriram ao longo dos tempos um outro
conteúdo, às vezes oposto. Na verdade, as Igrejas dão a impressão de defenderem há séculos os
mesmos valores, mas dispõem de um número quase ilimitado de declarações feitas por
autoridades cristãs. Portanto, não é difícil escolher a melhor para um caso apropriado. Feita esta
escolha, ainda restam as possibilidades de interpretação do texto empregado. O conceito "respeito
pela pessoa humana" exprimia há mil e quinhentos anos um interesse particular da Igreja para
com o tratamento dos escravos, e, no entanto, não implicava qualquer protesto contra a
escravatura. O conceito "respeito pela vida" é hoje utilizado para fazer incidir o juízo moral na
contracepção; este mesmo conceito servirá talvez, dentro de alguns anos, para tornar a
contracepção obrigatória, como já ocorre em algumas Igrejas protestantes.
Falávamos mais acima da dificuldade de definir o ponto de vista teórico da igreja cristã
perante a sexualidade. O problema tornou-se mais difícil porque a moral individual e a moral social
se sobrepõem. A teoria, porém, nem sempre corresponde à prática. Ainda aqui se distinguem
diferentes níveis.
Qual é o ideal definido como objetivo digno de ser seguido, e cuja realização é, no entanto,
praticamente impossível? Que ideal se nos apresenta como norma realizável? Quais são as
infrações permitidas e em que momento se incorpora em sanções, e quais? Que procura o
indivíduo, que deslizes se permite e não permite?
No que se segue vamos tentar elucidar um pouco tais perguntas. Há uma diferença entre o
sistema cristão de valores, teórico e mal definido, e o sistema moral, regulador do
comportamento, concreto e real. O primeiro diz respeito à ética, o segundo à moral, à moralidade,
aos usos e costumes. O sistema de comportamento real não é tão determinado pelos valores
ideais, mas muito mais pelas relações socioeconômicas. Podemos observá-lo hoje em certas
regiões afastadas, como a pequena aldeia holandesa de Staphorst. O costume da coabitação pré-
conjugal, prática que outrora existia em todos os países de cultura e de criação de gado, ainda hoje
ali persiste (o Kiltgang). É indubitável que os aldeões se dizem cristãos; ora, depois do século XIX,
as Igrejas consideram este velho costume como um pecado. No entanto, as novas construções
rurais são sempre dispostas de modo que os quartos das moças fiquem situados no andar térreo e
os pretendentes possam ali entrar facilmente por uma janela baixa. No conflito entre os valores
teóricos e a necessidade socioeconômica (neste caso trata-se do testemunho da fecundidade,
capital para o aldeão), esta última é que adquire importância. O que é notável no nosso exemplo é
o fato dos aldeões não considerarem de modo algum o seu comportamento como imoral ou em
desacordo com o cristianismo. Não têm consciência de qualquer dissonância cognitiva (Festinger),
porque ainda se encontram numa fase na qual a discrepância entre ser e dever ainda não é
percebida como psiquicamente perturbadora.
Durante mais de mil anos, a adesão ao cristianismo foi, antes de mais nada, verbal embora
não se tivesse o direito de pô-la teoricamente em dúvida. No entanto, o comportamento real era
muitas vezes determinado por outras normas. Até o século XVI, todos, mesmo os grandes
eclesiásticos, se consideravam acima das normas oficiais. A importância dada à conformidade do
pensamento e da ação, da teoria e da prática, é uma exigência de data recente, influenciada pela
teoria da higiene espiritual, encontrada principalmente na elite dos cristãos modernos. O burguês
do século XIX, cuja prática cotidiana diferia dos seus valores teóricos — tanto no domínio da
sexualidade quanto no da justiça social —, não era perturbado por esta contradição. Preocupava-
se com o seu bom nome e, por consequência, fazia uma espécie de dupla vida, o que antes não
existia. Com efeito, se até o fim do século XVIII se podia manter abertamente uma amante, a partir
do século XIX, isto passou a ter como condição de possibilidade o segredo. No primeiro caso, a
separação entre o ser e o dever era socialmente aceita e não provocava qualquer conflito
psicológico; no segundo caso era socialmente desaprovada, de tal forma que tornava-se necessário
dissimular uma parte da própria vida. A transformação, hoje visível num grupo de elite, manifesta-
se na procura de uma aproximação entre a norma e o comportamento efetivo, a fim de que se
possa ser autêntico e, ainda assim, manter uma vida respeitável. Esta modificação exprime-se
também na terminologia da moral: o burguês é desonesto, duplo e hipócrita; o homem moderno,
pelo contrário, é verdadeiro e sincero. Também se pode exprimir este contraste por conceitos
menos normativos: esquizoide por oposição a integral; portanto, uma diferença de estrutura de
personalidade.
Estas reflexões são importantes porque evitam escrever uma história anacrônica; não
temos o direito de projetar nossa estrutura psíquica em épocas passadas. Isto não exclui que
nessas épocas alguns indivíduos tivessem uma estrutura psíquica moderna.
Do ponto de vista moral e teológico, nada encontramos no Novo Testamento sobre a
sexualidade entre os jovens, a masturbação, a homossexualidade, as relações pré-conjugais, a
contracepção e o aborto. A passagem em que Jesus Cristo perdoa a mulher adúltera foi suprimida
*
na época de Constantino, numa altura em que o montanismo tinha uma grande influência. São
Paulo (1.ª carta aos Coríntios, 7, 25) diz que o Senhor não editou a lei relativa à virgindade; o
apóstolo apenas nos dá a sua própria opinião. Provavelmente, a comunhão e o batismo saíram de
cultos misteriosos que concediam um lugar relativamente importante à sexualidade. A religião
judaica, os essênios e os neoplatônicos não eram anti-sexuais. Podemos afirmar que estas
influências, bem como os tabus mágicos e rituais pré-cristãos, só posteriormente foram
considerados como anti-sexuais. Os valores cristãos entram mesmo em conflito com a atitude do
Estado. No Império Romano decadente exigia-se a emancipação da mulher, favorecia-se o
casamento e impunham-se tributos mais pesados aos celibatários, três atitudes opostas ao
cristianismo. Com o cristianismo chegar-se-á a uma polarização dos pontos de vista, a maior parte
das vezes explicada pela autoridade extraordinária atribuída a São Paulo, a alguns padres da Igreja

*
O Montanismo foi um movimento cristão fundado por Montano por volta de 156-157 (ou 172), que se organizou e difundiu em
comunidades na Ásia Menor, em Roma e no Norte de África. Por ter se originado na região da Frígia, Eusébio de Cesareia relata
em sua História Eclesiástica (V.14-16) que ela era chamada de Heresia Frígia na época. (Wiki)
e a Santo Agostinho. O ponto de vista de São Paulo não correspondia ao dos judeus nem ao dos
Evangelhos. Para ele, o objetivo do casamento era a satisfação do instinto sexual, Plêiade contrária
ao judaísmo. Via também entre o espírito e o corpo um contraste muito maior do que os judeus
rabinistas. Por outro lado, é necessário introduzir, mesmo que seja negada pela Igreja, a influência
de correntes como o maniqueísmo, que procura combater os extremistas que pregavam a
castração ou a recusa da reprodução mas que favoreciam mais as atitudes anti-sexuais do que as
pró-sexuais.
O comportamento para com a sexualidade depende, em geral, da atitude observada
perante a sensualidade, o prazer e a natureza; depende também da concepção de mundo adotada,
se é positiva ou negativa, dirigida para este mundo ou para o além, hedonista, epicurista ou
ascética. O cristianismo, que rejeitava a vida terrestre e optava pelo espírito no dualismo corpo-
espírito, não viria, contudo, a ser anti-sexual. A confrontação do homem com a sexualidade pode
realizar-se de formas diferentes. Certas seitas que praticam o ascetismo querem livrar-se do sexo
pelo sexo. Os modelos de vida cristã, os anacoretas, os santos dos séculos I e XVII também
tentaram viver sem seu corpo ou em oposição a ele. Logo, a sexualidade era muito pouco
considerada, da mesma forma que o erotismo, a mulher, o casamento, a família. Os que gozavam
de maior status na sociedade eram os homens voluntariamente consagrados ao celibato. Abaixo
deles ficava a maioria das pessoas, que tinha que velar pela reprodução e vivia de uma certa forma
em pecado, a não ser que abandonasse a família, como faziam alguns santos. Compreende-se
melhor este sistema quando se leva em conta que era regido por celibatários empenhados num
duro combate consigo mesmos e que, em consequência desta situação, eram hipersensíveis ao
menor sinal de sexualidade recalcada. Mesmo no isolamento do deserto, eram torturados. Os que
viviam no mundo tinham que se isolar psíquica e socialmente; encerravam-se em celas e
controlavam severamente todos os contatos com o mundo exterior. Devemos compreender este
comportamento com justiça, e não interpretar os escritos fora do seu contexto. Os ascetas não
fugiam da sexualidade por si mesma; mas, vendo o quanto era difícil dominar as suas
manifestações (motus genitalium), tornavam-se particularmente sensíveis a ela.
Para Santo Agostinho (talvez o maior teólogo moral de todos os tempos, a voluptuosidade
envolve o homem por inteiro, interna e externamente, de tal forma que os desejos da carne e as
excitações psíquicas se misturam, resultando no incomparável prazer do orgasmo; no instante em
que este se dá ao homem não restaria mais que uma ligeiríssima acuidade de consciência (De
Cívitate Dei, XIV, c, 16).
A sexualidade submeteria o homem de uma forma tão irredutível que o faria envergonhar-
se dela. Depois do pecado de Eva, as relações sexuais estariam para sempre ligadas a um
sentimento de vergonha. A fecundação realiza-se pela mesma via anatômica da menstruação, e no
sentido inverso (ibid., e, 26). Portanto, o nascimento transcorre entre a urina e os excrementos
(inter faeces et urinam nascimur).
O ponto de vista cristão pode ser ressaltado por uma comparação. No século VII antes de
Cristo, Bana escreveu seu Kadambari, na Índia. A seguinte citação se opõe quase que inteiramente
à De Civitate Dei. Bana diz da mulher:
"Com ela vou gozar um prazer indizível, semelhante ao nirvana, chamado voluptuosidade.
Todos os homens podem atingi-lo como uma outra forma de nirvana, mas só se pode obtê-
lo na reunião dos corpos. Embora seja um objeto dos sentidos, toca violentamente o
coração. Embora cegue os sentidos, os satisfaz. Embora atice o fogo do amor, extingue-o.
Embora acelere a respiração, e produza uma grande fatiga e um suor abundante, provoca
arrepios, devido à retenção da respiração. Apesar do prazer real, o corpo solicita ainda
mais prazer. Apesar de frequentes repetições, este prazer é sempre novo. Apesar da
precisão das sensações, é impossível defini-las exatamente"
Vemos aqui dois sistemas de valores, ambos de inspiração religiosa, ambos ascéticos à sua
maneira, concedendo um grande significado à sexualidade, um pela negação (com o perigo da
obsessão), o outro por uma aceitação positiva do sexo, a liberação.
Podemos explicar a posição adversa dos dois sistemas por uma máxima hindu: "Mais vale
encontrar-se nas costas do tigre, porque aquele que cair será devorado por ele".
No quadro das representações de valor, os teólogos da moral elaboraram o que foi um
sistema, particularmente na Idade Média. Algumas constantes são ali conservadas, como a
supervalorização da virgindade em relação ao casamento, a recusa das relações sexuais que não
sirvam para a procriação, a renúncia à sensualidade e ao prazer, a desvalorização da mulher em
relação ao homem e uma atitude essencialmente androcêntrica. Textos referentes a estes temas
podem ser encontrados nos estudos de J. Fuchs, P. Brown, J. T. Noonan, G. May, H. C. Lea, H. J.
Schmitz e outros, ou nas Vitae Patrum e nas Vitae Sanctorum. Não sabemos em que medida este
sistema foi aplicado à totalidade da comunidade cristã, nem como foi respeitado, mas em certos
grupos de elite tentou-se por vezes observá-lo estritamente. Todo o sistema fundado no ascetismo
conhece dificuldades de adaptação e tem consequências inesperadas. Há no cristianismo,
particularmente nas épocas de severa repressão, casos de patologia individual e social, como
epidemias de possessão pelo Diabo, misoginia, aparições-paranoia de santos (como, por exemplo,
aqueles que vivenciaram contatos psicossexuais à distância), medo da impotência e da frigidez e a
luta contra a masturbação. Podemos considerar as Vitae Patrum, as Vitae Sanctorum, os escritos
dos santos, certas ocorrências nos claustros que se tornaram conhecidas desde o século XVII, como
casos clínicos. A impressão causada por tais fenômenos imprimiu-se profundamente na mitologia,
no ritual e em muitas concepções do cristianismo. Se o compararmos com outras religiões,
veremos que o mundo cristão é centrado no homem: não há seres femininos nem hermafroditas.
A mulher foi excluída da Santíssima Trindade; contudo, veneramos a Virgem Maria. Segundo São
Tomás de Aquino, Maria ficou virgem porque o ato sexual é um emporcalhamento do "seio
materno"; e muitas vezes se negou que o nascimento do seu filho tivesse se efetuado pela via
vaginal. Outros elementos provam esta mesma atitude anti-sexual. Os anjos não têm sexo; só o
Diabo é que tem relações sexuais. Nenhuma divindade protege a sexualidade, a virilidade, as
relações sexuais, a homossexualidade, o amor, a atração, à exceção de alguns santos cuja magia
provém, sem dúvida, dos tempos pré-cristãos. O ritual não concede lugar algum ao sexo. Os hieros
gamos são impensáveis. Nem a mística, nem a cosmogonia, nem as obras de arte religiosa aceitam
a sexualidade. Com frequência, os santos são os inimigos do sexo. Elementos não sexuais ou pró-
sexuais são anti-sexualizados, como a história da queda, do pecado original, dos ágapes dos
primeiros cristãos, certas passagens do Novo ou do Antigo Testamento, o Cântico dos Cânticos.
Falamos de fenômenos anti-sexuais no interior do cristianismo por uma questão de
objetividade. Depois desta explicação será possível que ainda se duvide da origem cristã da
síndrome anti-sexual? Esta pergunta pode ser respondida de diversas maneiras; por exemplo, que
o que conhecemos do comportamento dos germanos não pode ser tachado de anti-sexualidade,
mesmo depois da sua conversão. Também não sabemos grande coisa sobre os numerosos
conventos mistos da Idade Média. Uma história do celibato e do casamento dos sacerdotes antes
do século XVI elucidaria numerosíssimos pontos. Como se comportavam os crentes, que diferenças
havia, segundo a sua situação geográfica, social, sua época e seu sexo? Como devemos incluir os
cantos e os costumes populares pró-sexuais no sistema de valores cristãos?
Qual é a nossa atitude em face dos poemas dos Minnesänger, dos dramas de Niedhart, das
descrições de anomalias sexuais ou das cenas dos bordéis de Roswitha von Gandersheim, do Lai de
Aristóteles de Rosenplüt e de Folz, dos folhetos populares dos séculos XIV e XV, do Decâmeron de
Bocaccio, do Roman de Ia Rose e das Cent Nouvelles Nouvelles? Não pintou Heer, no seu livro A
Idade Média de 1100 a 1311 (Das Mittelalter 1100-1311), a imagem de uma sociedade que não
vivia absolutamente segundo os preceitos cristãos? Como podemos enquadrar as relações que
conhecemos melhor sobre os séculos XV e XVI nos sistemas de valores cristãos?
Só poderemos responder a estas perguntas depois de minuciosas investigações. Mas
encontramo-nos aqui perante um problema heurístico: em que fontes nós podemos apoiar? Até
que ponto devemos pensar que foi sempre o vencedor quem escreveu a história? Praticamente só
existem textos cristãos. Do ponto de vista atual, temos que dizer que o cristianismo androcêntrico,
como o conhecemos, é um produto da Idade Média. O ideal, como era representado, se realizava,
de vez em quando, em pequenas comunidades religiosas. A par do sistema cristão oficial e teórico,
existia um sistema de valores informal, contendo normas não-cristãs. Este sistema informal
compreendia diversos subsistemas, por exemplo, o que só valia para a nobreza, a burguesia, os
aldeões, os artesãos, etc. Cada um destes subsistemas deveria ser de novo dividido em
subsistemas, um para o homem, outro para a mulher. Assim, o nobre jovem tinha relações sexuais
antes do casamento, mas exigia que a sua mulher fosse virgem. Entre os camponeses, a mulher
jovem devia estar grávida para se casar. Notemos que nenhuma classe obrigava outra classe a
seguir o seu sistema; era necessário, pelo contrário, seguir o sistema da sua classe. Mas, quando a
burguesia surgiu, forçou os outros a adotarem o seu sistema. Esta evolução começou no princípio
do século XVI.
A PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XVI

Inúmeras vezes se demonstrou que as atitudes e o modo de vida dos séculos XV e XVI eram
pró-sexuais. Admitia-se, em geral, que todos satisfizessem as suas necessidades sexuais, para não
pôr a saúde em perigo. Em algumas cidades as autoridade quiseram abrir bordéis. A sensualidade
era praticada de uma maneira que hoje não conhecemos. Tocava-se, acariciava-se, abraçava-se,
beijava-se; as amas e os pais masturbavam as crianças, para acalmá-las. Os adultos tinham, por
vezes, com os adolescentes, relações que hoje seriam qualificadas de sexuais. Só em princípios do
século XVIII é que a masturbação foi combatida pelos médicos, e mais tarde pela Igreja. As relações
sexuais pré-conjugais estavam institucionalizadas. E também, em algumas camadas sociais, as
relações extraconjugais eram permitidas. A contracepção imperfeita era condenada pelas igrejas.
Os príncipes e os nobres eram fiéis à promiscuidade, que quase nunca era criticada. Estudantes e
soldados faziam o que bem entendiam. O rigor do clero perante o celibato praticamente inexistia;
a família e os serviçais dormiam nus e no mesmo quarto. Banhavam-se nus e em grupo. Nas
solenidades era exposta nua a jovem mais bela da cidade. O vocabulário sexual era muito extenso.
Os jovens não precisavam ser esclarecidos, pois podiam ver, sentir e aprender com adultos o que
quisessem saber. No parágrafo seguinte veremos quais os temas sexuais abordados nas escolas;
mostraremos assim a liberdade do século XVI.

1. OS COLÓQUIOS DE ERASMO (1522)

A fonte ideal para este estudo é um livro escolar muito difundido: os Colóquios, de Erasmo
de Roterdam. Diz-se que este livro foi dedicado ao afilhado de Erasmo, Johannes Erasmus Froben,
então com seis anos de idade e filho de um amigo de Erasmo, impressor em Basiléia, onde o autor
viveu de 1521 a 1529. Conhecem-se, pelo menos, cento e trinta reimpressões dos Colóquios, treze
das quais ainda no século XVIII. Também são encontradas numerosas imitações e escritos
concorrentes e similares. Não se pode duvidar da grande difusão deste livro. A intenção de Erasmo
estava contida no título: Diálogos elaborados não só com o objetivo de melhorar o conhecimento
do latim nas crianças, mas sobretudo de educá-las em função da vida. Dos sessenta e quatro
diálogos, oito são primordiais para o nosso estudo.
"Apaixonados e moças" (Proci et puellae, 1523) é um diálogo vivo e muito legível entre um
jovem e uma moça da qual está perdidamente apaixonado. A moça não quer acreditar
imediatamente em tudo o que ele promete. Eis do que eles falam, traduzido numa terminologia
moderna: o amor-paixão (o jovem afirma "consumir-se"); a magia sexual e os afrodisíacos (a moça
tem um olhar "feiticeiro"); a seriedade do amor (o homem quer fazer dela sua esposa, não uma
companheira: "Não é por eu te amar que te acho tão encantadora, mas é por te achar tão
encantadora que eu te amo"); os meios pelos quais se pode adivinhar se o amor é sincero
(consideração do meio, de educação); as bases sólidas para uma vida em comum: o valor da beleza
física; o da virgindade (Erasmo não gosta das solteironas: "E como no vinho, é preciso bebê-lo
antes de azedar"; ficar virgem durante muito tempo não faz nenhum sentido); o sentido do ato
sexual (para a procriação e para o prazer); os deveres do homem e da mulher no casamento (a
mulher tem o direito de se recusar ao homem?); a atitude favorável ou não em relação à posse dos
filhos; o papel que a jovem desempenha no amor (de boa vontade se deixa raptar quando ama); o
valor do casamento (é benéfico); a castração (a castração religiosa é ato de um louco); o celibato
(que é uma forma de castração; a continência não é uma virtude); as relações sexuais pré-
conjugais.
"A virgem androfóbica" (Virgo misogamos, 1523). Erasmo era um dos filhos naturais de um
pastor holandês e da sua criada. Conhecia o celibato por experiência pessoal. Se não rejeita ex
cathedra a virgindade e a continência, esconde com dificuldade a sua desconfiança: "Na minha
opinião, é melhor ser uma pessoa honrada, levando uma vida limpa e sem culpa em meio às
tentações". Para quem quer ficar virgem, o melhor é ficar com os pais. Pois o que é que se
encontra nos claustros e nos conventos? Libertinos bêbados, aventureiros sexuais, lésbicas. Logo,
não é razoável fazer entrar jovens ingênuas no convento, onde é mais difícil continuar casta do que
no mundo. Além disso, a virgindade só convém a algumas mulheres. Uma jovem em idade de casar
(na linguagem de Erasmo apta viro, maturo coniugio, tempestiva viro) e que tem de ficar virgem
durante muito tempo, torna-se infeliz. Aliás, a sua aparência prova que ficou virgem, pois tem a
fisionomia de uma solteirona.
"Diálogo entre velhos" (Colloquium senile, 1524). Quatro homens idosos, amigos de
juventude durante os seus estudos em Paris, quarenta e dois anos antes, encontram-se em
Antuérpia e contam uns aos outros o que lhes sucedeu. Erasmo apresenta-nos quatro modos de
vida diferentes. Um dos amigos é Polygamus; surpreende pelo seu aspecto idoso. (O caso
Polygamus é evocado por Erasmo para explicar os pontos de vista do médico Galeno sobre as
consequências do Venus nimia, do excesso de relações sexuais.) Perguntam-lhe a razão do seu
prematuro declínio. Diz ele que é a sua vida amorosa, começada em Paris. Uma das suas amantes
ficou grávida. Levou-a para a casa dos pais e alimentou-a, contra a vontade do pai, com o dinheiro
que a mãe lhe dava. Finalmente, fez com que ela se casasse com um de seus amigos, mantendo,
no entanto, direitos sobre ela. Casa-se, por sua vez, oito vezes, porque todas as suas mulheres
morriam. Entretanto, não se incomodava com todos estes tormentos: é a favor da poligamia. Os
seus amigos dirigem-lhe censuras: "Ficaste magro e prematuramente velho. Abandonaste a ciência
pelas mulheres". Polygamus reconhece: "Saí da lama e caí no atoleiro". Um outro amigo, Glycion,
que parece tão jovem que Polygamus poderia ser seu avô, é apresentado como exemplo: Glycion
casou quando tinha vinte e dois anos, para ter filhos, e não por amor. Mas o amor veio mais tarde.
Sua mulher morreu após oito anos de casamento. Glycion não quis contrair nenhuma outra união.
"A puérpera" (1526). Uma jovem mãe, de dezesseis anos, fala de educação dos filhos. Este
diálogo (para alunos) é uma espécie de curso de puericultura. "Um pequenino ser ainda vermelho,
como no momento em que nasceu, que ainda exala o odor de sua mãe", exige muito calor e
muitos cuidados nos seus primeiros anos. É por isso que a mãe nunca o deve confiar a uma ama.
"Uma criança não se alimenta unicamente de leite, mas também do odor da mãe." Neste colóquio,
Erasmo elabora todo um programa: a superioridade discutível do homem sobre a mulher; a
relação corpo-alma; a função do corpo (com informações sobre diferentes órgãos; fala-se do feto
no útero; também se fazem comparações com as plantas e os animais); a influência do meio
ambiente sobre a criança. Erasmo refere-se a fatos que mais tarde seriam qualificados de
informação sexual: o feto cresce no útero, a mãe está deitada, a criança sai do ventre materno.
"O casamento desigual" (Coniugium impar, 1528), casamento entre um velho cavalheiro
sifilítico e uma "jovem na flor da idade", de dezesseis anos. É discutida a validade deste casamento.
Fala-se das relações íntimas entre cônjuges tão pouco harmônicos: imagine-se um pouco o prazer
que podem proporcionar estes beijos, estes abraços, estas carícias, estes jogos amorosos! Erasmo
descreve todas as particularidades da sífilis, inclusive a sua profilaxia: os beijos na boca são
estritamente proibidos, assim como beberem dois do mesmo copo.
"O jovem e a prostituta" (Adolescens et scortum, 1523). Após uma ausência bastante
prolongada, um jovem volta para junto da sua amiga, uma prostituta. Ela chama-lhe mea mentula,
meu pênis. Por ocasião de uma confissão feita em Roma, onde o jovem foi em peregrinação, o
padre confessor conta-lhe como foi punido por suas libertinagens na juventude. "Olha para mim:
tenho os olhos remelosos, as mãos trêmulas e as costas encurvadas." O jovem reflete e persuade a
sua amiga Lucrécia a deixar o bordel e ir viver com ele. Repetidamente se diz neste diálogo que os
padres são clientes assíduos dos bordéis, que os frades mendicantes deixam ali todas as suas
esmolas. No século XVI, por ironia, dá-se uma outra interpretação a este diálogo: Sophronius era
um espertalhão que conseguiu ter só para ele a sua Lucrécia, e ainda por cima gratuitamente.
"Estalagens" (Diversoria). Quadro dos usos e costumes nas doces estalagens francesas e
nas estalagens alemãs, sujas e repugnantes. Fala-se ali de mulheres e moças encantadoras,
amáveis, carinhosas, de roupas de dormir, do vestir e do despir, da sífilis, das casas de banhos e
outras.
"A mulher insatisfeita ou o casamento" (Uxor mempsigamos sive coniugium). Diálogo entre
a infeliz Xantipa, casada há menos de um ano e já mãe de um filho de sete meses, e uma amiga,
que a aconselha a não se separar do marido. De uma forma realista, fala-se ali do modo como as
mulheres tratam seus maridos, como devem proceder para agradá-los, da maneira como certos
vestidos realçam a silhueta; dos maridos bêbados e dos casais que discutem; do divórcio
("Desejaria que Deus castigasse os homens que nos retiraram o direito de nos separarmos"); das
incompatibilidades de caráter, da escolha do cônjuge e da monogamia; da sexualidade
extraconjugal e da maneira mais hábil de como o cônjuge deve agir; de preparação dos
afrodisíacos. Segundo Smith, Erasmo, nesse diálogo, fala de Thomas More, ulteriormente
canonizado, e de sua mulher. Xantipa seria a segunda mulher de Thomas More.
Em outros diálogos são também desenvolvidos temas que hoje se qualificariam de sexuais.
Vemos que o sexo estava integrado num contexto bastante vasto, não porque Erasmo
considerasse que seria melhor assim, mas porque na primeira metade do século XVI o sexo ainda
não estava separado do resto da vida. Nos seus escritos pedagógicos, por exemplo, Erasmo
consagra menos palavras à sexualidade do que à tagarelice dos alunos ou ao tema tão frequente
da moderação em todos os domínios. Supõe que os jovens para quem escreve já sabem o que diz
respeito ao sexo.
Um índice dos termos destes diálogos seria tão completo como o Handbook on sex
instructions in Swedish schools (1956), mas diferindo dele em muitos pontos: o conteúdo sexual
não é erigido em sistema; não há tema desenvolvido progressivamente (como o célebre ciclo:
diferenças entre os sexos; o crescimento da criança no ventre da mãe; o desenrolar do parto; o
papel do pai; etc.). Erasmo também não utiliza uma terminologia nebulosa e repleta de
circunlóquios; os seus textos são a expressão das relações na sociedade. São também notáveis o
humor e a ligeira ironia de seus diálogos.
Os escritos de Erasmo não são moralizadores: o jovem de Proci et puellae diz claramente
que quer se deitar com a jovem; esta repele-o de uma forma também realista. No fim da conversa
deseja-lhe uma boa noite. "Ah!, se tu me pudesses dar o que tu me desejas!", diz ele, e ela
responde: "Não serve de nada a gente apressar-se; o teu trigo ainda não está maduro". Depois, o
jovem pede-lhe um beijo e ela não lhe dá, porque deseja guardar a sua virgindade. O jovem
responde que um beijo não tem fiada a ver com a virgindade; ao que ela replica que é muito mais
perigoso. O leitor sente bem que esta recusa não põe um ponto final à questão das relações pré-
conjugais. Dois a três séculos depois, as relações pré-conjugais já não são uma questão pessoal,
mas moral. Mesmo sua discussão desaparece, cedendo lugar a argumentos decisivos, como "o
respeito pelo casamento", "o respeito pela mulher", "guardar as forças para mais tarde", "o maior
perigo de uma futura separação", "a satisfação de desejos egoístas'', etc.
Alguns escritores do século XX escreveram que Erasmo fora o primeiro a dar uma
informação sexual. Tal afirmação não é exata, pois os conceitos "informação" e "sexual" não
podiam ser empregados no século XVI com o mesmo sentido que hoje lhes é dado, e os escritores,
antes e depois de Erasmo, utilizaram nas suas obras elementos sexuais sem com isso desejarem
dar uma informação sexual.

2. CRITICAS AOS COLÔQUIOS

Nas Conferências Pedagógicas (Pädagogischen Unterhandeungen) (1977), lê-se "que os


ternos diálogos de Erasmo não são muito próprios para as crianças". Uma nota precisa: "São para
os adolescentes e não para as crianças". Um pedagogo alemão de meados do século XIX, Karl
Georg von Raumer, indigna-se com a escolha dos assuntos e com a maneira como Erasmo pinta
certas cenas: "Pinta a voluptuosidade da forma mais vulgar." Cinqüenta anos depois Willmann
escreve: "Que ninguém se tenha escandalizado com o conteúdo desta obra, demonstra uma vez
mais quão pouco se refletiu sobre ele". Passados mais cinqüenta anos, a acusação já não é tão
franca, dissimula-se na desconfiança: tenta-se, ao mesmo tempo, desculpar e incriminar os
pedagogos humanistas porque muito teriam sacrificado à beleza.
Não houve críticas aos Colóquios no século XVI? Sim. Foram atacados assim que
apareceram e foram até postos no Index, por Roma. Erasmo escreveu uma justificativa. Um exame
pormenorizado deixa ver que a crítica atacava as concepções contrárias ao dogma. A influência de
Erasmo foi combatida energicamente, e por interesses financeiros, em diálogos concorrentes,
como os de Morisotus, Duncanus, N. Cannius e outros.
Se estudarmos o Colloquiorum libre quatuor, do médico romano Morisotus, veremos "que
as jovens virgens e as mulheres desempenham ali um papel ainda mais importante do que em
Erasmo" (Bömer, 1911). O diálogo de Morisotus seria julgado no século XIX como ainda mais
obsceno. O autor põe continuamente as mulheres em primeiro plano, embora tenha escrito esta
obra para seu filho. Então, por que esta imitação? O próprio Morisotus diz numa crítica a Erasmo:
"Às vezes perguntamos se lemos a obra de um cristão ou de um pagão".
Há poucos motivos para pensar que Erasmo tenha cometido o erro tático de exacerbar
esta hostilidade com a publicação de outros diálogos que teriam provocado uma resistência ainda
maior. No seu escrito Da Utilidade dos Colóquios (Ober den Nutzen der Colloquia) (1526), Erasmo
fala dos homens pouco razoáveis que acharam ousado o diálogo "Apaixonados e moças"; escreve:
"Se o casamento é respeitável, o amor também o é". Segue-se uma crítica aos homens insensatos
que acham indecente tudo o que é amável e fraterno. Todos os que criticam este diálogo "não têm
nada a dizer ao que se lê às crianças sobre as passagens de Plauto ou sobre as Facetiae de Pogge.
Que magnífico juízo!". Erasmo também é acusado pelo diálogo Adolescens et scortum. Muitos
acham deslocada a escolha do assunto e ofendem-se com o modo como a prostituta chama o seu
amante (mea mentula), muito embora "mulheres honestas também o façam correntemente entre
nós". Aqueles a quem esse termo não convém podem mudá-lo para mea voluptas. Certifica
Erasmo que, afora esta palavra, a sua linguagem é perfeitamente casta. Smith insurge-se contra
esta afirmação: "Discordo inteiramente de Erasmo, pois acho que certas passagens dos Colóquios,
por exemplo na 'Puérpera', não são para jovens". Ainda hoje alguns conhecedores da literatura
humanista acham este diálogo indecente. Acusa-se Erasmo de "pequenas obscenidades". Tratam-
se de críticas anacrônicas. Não devemos esquecer que na época de Erasmo o casamento era
menos apreciado que o celibato. Portanto, defender o casamento era uma heresia. Aceitava-se a
sexualidade extraconjugal, bem como o prazer, com a condição de que fosse confessado (pelo
menos implicitamente) tratar-se de uma fuga à regra. Tolerava-se uma ligação, mas proibia-se um
segundo casamento, porque ia de encontro à opinião pública. Por isso é compreensível que os
ataques públicos de Erasmo tenham abalado mais seriamente o sistema do que o teria feito uma
mudança mais superficial de vida.

3. OS ESCRITOS DOS OUTROS HUMANISTAS

Segundo os especialistas, os Colóquios são bem insignificantes ao lado de outras leituras


que os humanistas achavam próprias para os adolescentes. Estes escritores são hoje acusados de
se terem permitido "liberdades que iam até o impudor". “A vida de numerosos amantes da
literatura, sobretudo na Itália, fazia às vezes pensar que se tratava de uma impostura flagrante, e
que estes boêmios hipócritas propunham voluntariamente um artigo deteriorado”. Tal é o juízo
atual.
Por volta de 1500, um professor, rodeado do cerimonial costumeiro, fez na Universidade
de Heildelberg um discurso sobre a fidelidade das prostitutas aos seus amantes. Um outro
professor falou da fidelidade das concubinas e um terceiro das diferentes espécies de
libertinagem. Udenhemius, reitor em Schlettsdadt, escreveu uma introdução elogiosa a estes
discursos e recomendou-os aos adolescentes, para que deles tirassem proveito. Segundo Erasmo,
havia assuntos em relação aos quais nunca era demasiado cedo para tomar uma atitude
independente; por exemplo: "Uma mãe deve alimentar o seu filho?" ou "uma mulher deve ou não
deve casar?" (No final do século XIX a escolha de tais temas não encontrará mais eco em
Reichling.)
O sexo também não estava ausente da literatura didática. Depois de 1585 utilizavam-se
livros de escola nos quais o autor, para explicar o que é um silogismo, vai buscar uma história do
Truculentus de Plauto. Uma prostituta quer tirar proveito de um de seus três amantes a pretexto
de ter tido um filho seu. O silogismo: 1) Como é que uma mulher pode ter um filho se nunca esteve
grávida? 2) Nunca vi o ventre de Fronesium crescer. 3) Logo, ela não teve um filho.
Nos livros de leitura são citados autores como Horácio, Juvenal, Ovídio (cuja Ars Amatoria
ainda no século XVIII era lida nas escolas), Propércio, Aristófanes (segundo Melanchthon, as
Comoediae são um vitae speculum). Os poetas do amor, Catulo, Tibulo e Marcial, foram recusados
por Lutero e Mosellanus, menos severamente julgados por Melanchthon, Hegendorphinus e
Sturm. J. Sturm diz que estes poetas não podem ser maus, pois a providência permitiu que
existissem; mais adiante, acrescenta que os ouvidos e a alma das crianças deveriam ser protegidos
de tudo o que não é santo e puro. Wimpheling e Erasmo defendem apaixonadamente Terêncio.
Plauto é julgado de uma forma positiva, com uma certa reserva, por Erasmo, Melanchthon,
Berlandus e Wimpheling (considerava este que não se devem suprimir as passagens indecentes em
Terêncio e Plauto, a menos que também a Bíblia seja censurada). Barlandus era um bom católico,
um sacerdote, um asceta. Isto não o impediu de escrever Joci, considerado como um escrito
concorrente das célebres Facetiae de Pogge. Um conhecedor julgou-os "pior que picantes",
embora sejam tirados de Thomas More, posteriormente canonizado. Em 1603 o editor ainda lhes
chama "castas e pudicas" (“Joci, sed casta, sed pudica"). Num dos seus Dialogi aparece um jovem
estudante que conta, de forma realista, que seu pai ameaçou castrá-lo se não estudasse mais. Seu
amigo lhe responde que, então, ele não vai mais poder amar as meninas. Barlandus defende o
teatro romano "cheio de violências e de aventuras com mulheres levianas”, pois tais condições não
seriam levadas a sério.
Nas escolas eram lidas e representadas peças que até hoje não são representadas para
adultos. Nem todos os pedagogos humanistas estavam de acordo com Terêncio, mas os que o
criticavam escreviam peças cujas cenas nada ficavam a dever-lhe em matéria de franqueza. O que
nos recorda ser necessário evitar um juízo demasiadamente apressado destas obras e procurar
saber o que era considerado indecente nesta época. Geldenhauer, em 1534, escrevia a propósito
de Terêncio e dos spectacula: "Se não tivesse de me preocupar com os ouvidos castos, vos diria em
que vergonhosas situações se encontravam os rapazes com estas comédias e estes dramas". Mas
Schoenaeus assegurava que a maioria era a favor de Terêncio, "que, como dizem, nunca ultrapassa
os limites do que é conveniente", e ele próprio julgava que entre os poetas antigos nunhum era
tão pouco obsceno, tão pouco incorreto na sua linguagem, tão pouco equívoco como ele. Se, mais
tarde, Schoenaeus parou de recomendar a leitura de Terêncio, isso ocorria somente em razão de
seus temas. Schoenaeus, cristão e excelente pedagogo, queria ser um "Terentius Chrístianus" e
(como Morisotus fez para os escritos de Erasmo) apresentar um mundo clássico cristianizado, mas
com muitos amores na cena e "cenas de sedução apaixonadas". Nannius, reitor em Alkmaar e mais
tarde professor em Louvain, escreve para os seus alunos um drama intitulado Vinctus. É uma série
de intrigas amorosas e cenas de amor "impudicas". Até mesmo o fim edificante, a catarse moral,
está ausente. Grande parte do drama se desenrola em um bordel onde Phelimatium declama
versos sobre a sua nostalgia do amor. "Triste é a prostituta que não pode agradar ao mesmo
tempo a dois amantes e tem de se contentar com um só. Por que é que temos dois seios, dois
olhos e dois lábios, se não podemos, com estes atrativos, atrair simultaneamente muitos
amantes?"
Filósofos e literatos dos séculos XIX e XX esforçaram-se em vão por compreender estas
aparentes contradições. A sua incompreensão era uma conseqüência da sua atitude moralizante.
Porque não é provável que os mesmos humanistas tenham sido ao mesmo tempo os spolia
gentium e os magistri vitae, como se pretende. Não se devem empregar termos modernos como
frivolidade ou sensualidade para textos do século XV. Quem continuar a fazê-lo estará ajudando a
perpetuar as contradições. Antes de mais nada, deveríamos conhecer as verdadeiras intenções
destes poetas e interpretar os seus textos, não segundo a nossa época, mas segundo a sua, porque
são escritos para homens cujos comportamento psíquico, limites de sensibilidade e capacidade de
sentir vergonha diferem dos nossos.
DO SÉCULO XVI AO SÉCULO XIX
Primeira parte

É a partir de 1550 que grupos mais importantes aderem aos pontos de vista de
reformadores isolados acerca da religião e da moral. Medidas cujo objetivo era engendrar uma
reestruturação da sociedade foram tomadas pelas autoridades espirituais e temporais. Os esforços
dos pedagogos, dos moralistas e dos homens da Igreja pareciam ser melhor organizados e ter um
maior alcance. Foi sobretudo a interação de aspirações e transformações socioeconômicas
importantes que favoreceu a realização dos objetivos fixados. A situação geral desta época parecia
propícia à realização de reformas; menos que nunca, faltavam os meios apropriados.
A explicação teórica que daremos desta evolução apoia-se em estudo do jurista belga Jean
Haesaert (Etiologie de Ia répression des outrages publics aux bonnes moeurs, Paris, 1931), e, mais
particularmente, na importante obra de Norbert Elias — Do Processo da Civilização (Über den
Process der Zivilisation), Basiléia, 1939. Este livro, por sua vez, apoia-se no estudo fundamental de
Max Horkheimer Autoridade e Família (Autorität und Familie), Paris, 1936. Como queremos nos
limitar à descrição e à explicação da gênese da hostilidade à sexualidade, tendo como base precisa
os fatos históricos, temos de renunciar a introduzir na nossa obra as hipóteses e as teorias de
Haesaert e de Horkheimer. Lamentamo-lo vivamente, sobretudo no que diz respeito à obra de
Horkheimer, porque vemos nela uma contribuição primordial para a explicação do processo de
evolução.
Ao contrário de Elias, distinguimos muitos processos. Pelo conceito geral de processo de
civilização, entendemos a evolução do ainda não-humano ao humano. Este processo caracteriza
numerosos setores da existência humana continuamente submetidos a regras sociais. Não vamos
opor o homem civilizado ao homem no estado natural, porque o conceito "homem em estado
natural" é uma contradição em si e o conceito "homem civilizado", um pleonasmo. O processo de
civilização determina o aparecimento de diferentes tipos de sociedade e homens civilizados. A
repressão da agressividade, por exemplo, não é igualmente severa em toda a parte; o mesmo
sucede com a repressão da sexualidade.
Na evolução do processo da civilização ocidental consideramos um período de quatro
séculos, a começar no fim do século XV ou no início do século XVI. Ao longo deste período macro
histórico aparecem importantes transformações que reagrupamos no conceito do processo de
modernização. Pouco a pouco emerge o tipo do homem moderno. Como no decurso deste
processo ocorre o deslocamento de uma sociedade de classes pluralista para uma sociedade em
que o burguês e os valores burgueses se encontram em primeiro plano, é melhor falar de um
processo de aburguesamento. O puritanismo, que progressivamente adquire importância, é um
elemento desta modernização.
Neste capítulo vamos tentar uma explicação do processo de modernização e de extensão
do puritanismo. Descrição e explicação serão fornecidas conjuntamente. De início nos
encontramos frente a uma série de causas reais e possíveis. As interações entre os diferentes
fatores de influência como o ideal, a influência da personalidade, a infraestrutura socioeconômica
não esclarecem o caso. Seria uma simplificação excessiva minimizar a influência do ideal, da
estrutura de poder e da personalidade. Isso não significa que não existam relações causais entre a
evolução macro histórica e as influências diretas ou indiretas das mudanças socioeconômicas.
Partindo da superestrutura ideal como uma constante, dirigimo-nos ao seguinte campo: as
transformações de organização na produção e na distribuição das riquezas (plano econômico)
influenciam a quantidade e a qualidade das relações sociais (plano social). O homem reconsidera-
se sobre uma outra relação (plano psicológico); aparecem transformações até na sua estrutura
física (plano biológico). Tudo isto influencia o conjunto dos juízos de valor (plano dos valores) e,
por consequência, também a educação. Logo, uma sociogênese precede a psicogênese.

1. ABURGUESAMENTO DA SOCIEDADE

Nas cidades que surgem a partir do século XII vivia uma burguesia que, em virtude da
racionalização crescente, estava exposta a pressões concorrenciais sempre cada vez mais fortes.
Esta racionalização e esta concorrência produziam uma separação entre o comércio e o trabalho
manual, separação que só é possível quando o grupo é suficientemente grande. O constante
crescimento das cidades preenchia esta condição. Quando se efetuou a diferenciação já não foi
possível reduzi-la. "A diversidade engendra a diversidade" (Doob). Quanto mais complexa se torna
uma civilização, mais numerosas podem ser as inovações, e isto num lapso de tempo mais breve.
Uma maior diferenciação significa uma divisão de trabalho num maior número de funções. Na sua
herdade, o camponês fazia sozinho quase tudo. Foi nas cidades que apareceu a profissão (E.
Durkheim). Exercendo um só ofício, cada qual dependia muito mais do resto da comunidade. Em
vez de uma solidariedade mecânica, como se observa nas sociedades sem divisão do trabalho,
chegou-se (segundo Durkheim) a uma solidariedade orgânica. Cada qual dependia do outro e tinha
de levá-lo em conta. A "racionalidade específica da civilização ocidental" (M. Weber) manifestava-
se também no funcionamento do Estado, que não podia funcionar racionalmente sem o
especialista, o qual, depois de ter recebido uma formação jurídica, deveria velar pela estabilidade
dos órgãos centrais. O Estado, que a princípio era uma associação de pessoas, evoluiu para a
institucionalização do Estado territorial (T. Mayer). Este novo Estado pacificava territórios cada vez
mais vastos, o que favorecia o comércio. O poder do rei estendia-se a grupos cada vez mais
importantes, incluindo os da nobreza e os do clero. A noção de classe sofreu uma transformação
completa. "A partir dos antigos estratos dominantes surgiram estratos ou classes sociais" (Brunner,
1956). Esta evolução continuou até à Revolução Francesa (que continuou a obra do rei) em que o
terceiro estado veio a ser a própria nação. Encontramo-nos aqui perante um processo de
modernização ou de aburguesamento lento, mas profundo, no qual o nascimento da profissão
desempenha um papel importante.
A quantidade e a qualidade das relações sociais foram assim transformadas. Há contatos
mais frequentes com um círculo maior de pessoas, mas estes contatos são superficiais, porque são
apenas aspectos parciais dos indivíduos que entram em relação uns com os outros. Se os homens
desempenham um papel, isto significa que substituem o contato de homem a homem — como era
o caso nas pequenas aldeias — por relações instrumentais, funcionais, contratuais ou outras.
Quando há homens que dependem uns dos outros, o que importa não é achar se o vizinho ou o
associado é simpático ou antipático, mas sim poder trabalhar em colaboração com ele. Tornam-se,
por exemplo, mais tolerantes, seja por necessidade social, seja por falta de interesse positivo ou
negativo em relação ao outro (um aumento da indiferença), seja porque só se alimentam contatos
fragmentários. L. W. Doob pretende que o grau de dependência em relação a outros permanece
constante: quando se vive num grupo restrito, a dependência é mais intensiva; quando se vive
num conjunto mais vasto, a dependência torna-se dispersa e, portanto, muito menos intensiva,
isto é, o afastamento aumenta. É em consequência de tais transformações que uma comunidade
pode tornar-se uma sociedade (F. Tonnies). Estas concepções podem ser ilustradas nos termos do
psicólogo social americano C. H. Cooley: o homem alimenta relações físicas regulares cada vez
menos importantes com um grupo primário (o grupo face to face da família, da aldeia) e integra-se
cada vez mais voluntariamente em grupos secundários cujos membros se conhecem menos bem.
O contato nas relações de papel a papel não passa de um contato fragmentário; não existe a
verdadeira comunicação existencial nem a interação. Consequentemente, as probabilidades de
sociabilidade tornam-se menores. O distanciamento em relação a si mesmo está ligado ao
distanciamento em relação ao outro, e pode-se facilmente observar, a partir do século XVII, e
sobretudo depois do século XVIII, um processo de dessociabilização. O homem dobra-se sobre si
mesmo e aprende a solidão num mundo frio, em suma, sofre de uma falta de contato com o grupo
primário. É interessante examinar as relações que existem entre o processo de dessociabilização e
muitos fenômenos sexuais, como a pretensa intensificação da masturbação desde o século XVIII: a
masturbação é uma forma de sexualidade dessociabilizada. Gostaríamos de saber se numerosos
fenômenos não poderão ser explicados, ao menos parcialmente, pelo processo de
dessociabilização, tais como: o aparecimento do tipo de união fundada no casamento (no qual o
homem e a mulher dependem mais um do outro), o dogma do casamento por amor, a
supervalorização do amor-paixão (comportamento anti ou associal), o ideal muito difundido da
célula familiar, a constante propagação da prostituição e outros.
Os povos primitivos e os homens que pertencem a outras civilizações não têm nojo do
próprio corpo nem do corpo do outro. Ainda no século XVI, eram muitos os que comiam juntos
com uma só colher, num só prato. Isto hoje já não existe senão entre pouquíssimas pessoas das
classes inferiores e, mais recentemente, nos grupos de jovens contestatórios. Observamos
também que estes dois grupos têm regras e higiene absolutamente diferentes do normal, que não
procuram desembaraçar o seu corpo dos odores naturais. Também nunca dirão que não "se
podem cheirar". Pela utilização do garfo e da colher, o homem abriu um fosso entre ele, o
alimento e os outros homens. Quando, no século XVII, se instaurou o uso dos talheres, aqueles
cuja apreensão sensível dos outros não foi modificada não compreenderam o sentido destes novos
costumes. Nesta época foram escritas coisas notáveis, como, por exemplo: "na verdade, é preciso
que os homens sejam sujos para precisarem usar garfos".
Podemos assim observar que esta evolução se desenrolava paralelamente à evolução
sexual: o homem distanciava-se mais com relação ao seu próprio corpo e ao corpo dos outros. É
compreensível que a aceitação do corpo, a acuidade dos sentidos e a sensualidade tenham
regredido. O corpo é escondido embaixo de tecidos sobrepostos, e seu odor é diluído através de
desodorizantes.
Dissemos mais acima que tanto a qualidade como a quantidade das relações se
modificaram. Os homens que provocavam estas relações também se tornaram outros. Tinham que
regular a própria vida afetiva através da auto coação e do autocontrole. A comunidade era
constituída por um grande número de pessoas que desempenhavam individualmente um papel
bem determinado e que tinham de desempenhar este papel a fim de garantir o êxito final. Eis um
exemplo atual que nos mostra isto claramente: o serviço postal não pode funcionar corretamente
se cada pequena engrenagem não desempenhar de maneira correta a sua função. A sociedade
precisa do sistema postal, o qual, por sua vez, depende dos transportes. Logo, é preciso,
necessariamente, que haja relações sociais e interações, que só funcionam bem se as convenções
forem observadas por todos; o que só é possível se cada qual estiver pronto a orientar-se e a
dominar-se. Todos os indivíduos devem compreender o quanto é cheio de responsabilidades o
lugar que ocupa na longa cadeia da interdependência. Nas regiões em que a estrutura da
personalidade ainda não foi totalmente transformada em proveito das sociedades industriais (por
exemplo, nos países subdesenvolvidos), um homem pode, por motivos (para nós) sem
importância, largar seu trabalho de forma imprevista. Assim, um operário não irá trabalhar, porque
ganhou dinheiro bastante na cidade, ou porque está fazendo sol, ou porque tem todo o empenho
em sair com uma garota, ou por qualquer outra razão. Por isso, a reorganização dos países
subdesenvolvidos coloca em primeiro plano a existência de uma quantidade suficiente de pessoas
cuja modelação das necessidades se adeque ao funcionamento de um aparelho administrativo
eficiente.

2. O HABITUS PSÍQUICO DO BURGUÊS

A função determina o padrão pelo qual os instintos são modelados. Investigações


antropológicas recentes mostraram a profundidade da influência das estruturas sociais sobre a
estrutura da personalidade, a ordenação do pensamento, a percepção, a imaginação, as
motivações conscientes ou inconscientes. A sociedade determina que tipo de personalidade pode
ser considerado como normal ou patológico. O burguês é caracterizado por um grande domínio de
si; dele se espera que estrangule os seus movimentos espontâneos, que domine sempre seus
afetos, e os regule, assim como seus instintos. Perante situações imprevistas, não deve apresentar
reações inadequadas, como o medo, o pânico, a cólera ou o desejo; deve permanecer dono de si,
recompor-se rapidamente. Graças à sua educação, estes processos acabam por ser quase uma
segunda natureza. Quem conseguir se dominar poderá trabalhar melhor e adaptar-se mais
facilmente à sociedade. Os homens que não o podem fazer são rejeitados e considerados como
desordenados, preguiçosos, inadaptados ou então como casos patológicos. O domínio de si
também permite ao homem pensar o presente em função do passado e do futuro. O burguês, e
particularmente o pequeno-burguês ou o burguês médio, não tinha o direito de mostrar — e isto
não apenas no domínio sexual — o que desejava, pensava ou sentia. Durante as refeições não
devia servir-se precipitadamente; na rua não devia correr, comer ou assobiar. Não devia mostrar
diretamente desejo, manifestar alegria ou chorar. Foi sobretudo o homem quem teve que
submeter-se a estas exigências. No século XVIII ainda era possível chorar francamente,
considerando-se como duro e suspeito o homem que não chorava. Dois séculos mais tarde, porém,
as lágrimas eram uma marca de fraqueza ou de feminilidade.
Tudo isto levou a uma transformação na escala de valores. O burguês procurava o bem-
estar e desprezava a frivolidade da nobreza; interessava-se pelas ciências úteis e rejeitava as
civilidades cortesãs; era moderado e econômico. Tinha as suas próprias concepções acerca da
honra e da fidelidade, era ordenado, correto e exato. Respeitava os Outros, era discreto e dizia
mentiras piedosas. Acima de tudo era trabalhador e não admitia a vida ociosa da nobreza. Quanto
à concepção burguesa do trabalho, difere da concepção bíblica. A Bíblia considera o trabalho como
um castigo: "Ganharás o teu pão com o suor do teu rosto". Para o burguês, o trabalho era,
doravante, uma virtude, um dever, uma profissão, a melhor maneira de dar um sentido à vida. Os
animais simbólicos da nobreza (leão, lobo, urso, águia, etc.) foram substituídos pelos da burguesia
(formiga, escaravelho, abelha, esquilo, etc.). O trabalho passava a ser um objetivo em si. Cantar;
divertir-se trabalhando, não assegurava uma produção máxima. Só se descansava depois de
terminado um trabalho ou para se preparar para uma nova tarefa, como se fosse um remédio. A
ociosidade é a mãe de todos os vícios. O prazer pelo prazer era um pecado. O corpo foi
transformado, de órgão de prazer que era, em órgão de realização. A burguesia desenvolveu um
espirito de realização, tornando impossível a experiência voluptuosa do sexo e de Bros. Um dos
símbolos deste espírito de realização é a cadeira, a cadeira ascética em que se está sentado,
separado dos outros, na melhor posição para trabalhar (hoje em dia, além dos lugares próprios
para se sentar, já existem mais lugares onde se pode deitar). No interior da sociedade observa-se
uma seleção. Quem melhor pode conformar o seu habitus psíquico terá as melhores
probabilidades de progredir numa sociedade de mobilidade vertical; Deve ousar introduzir
modificações e possuir uma maior dose de confiança em si, de iniciativa, de autodomínio e de
amor pelo trabalho; contrai facilmente relações instáveis. Enquanto se tem por modelo o homem
senhor de si próprio, rejeitam-se outras estruturas de personalidade. (Concede-se um pouco de
interesse a um tipo único, o artista, que se torna o não-conformista, o "doido" tolerado, às vezes
admirado pela sociedade.) A burguesia sente-se superior à nobreza, que enfraquece
progressivamente, e às classes sociais inferiores. Quando as sociedades industriais do leste se
aburguesarem, uma minoria da população mundial se sentirá bastante superior ao restante desta
população. A exportação do "burguês" como homem-modelo para os países não ocidentais
demonstra uma atitude totalmente nova de uma classe social perante o seu sistema de valores.
Outrora cada classe tinha de viver segundo as normas do seu próprio sistema. A burguesia é a
primeira classe que impõe o seu sistema, como incontestável, aos grupos que lhe são superiores
ou inferiores. A frase de Ernesto Renan "Toda a civilização é obra dos aristocratas" só é válida para
uma época da história.

3. INTERIORIZAÇÃO

À sociogênese da dessociabilização corresponde uma elevação do nível do indivíduo; este


fenômeno produziu-se durante a Renascença e acompanhou o nascimento e o desenvolvimento
do humanismo e do protestantismo. A partir do fim do século XV passou-se a escrever diários
íntimos. O grau de interiorização dos documentos pessoais aumentou no decurso dos séculos
seguintes. A amplitude da importância concedida ao domínio privado, a maior intimidade na
sexualidade eram só aspectos de um movimento mais geral. Esta interiorização era sociogenética.
Em outras formas de sociedade que não a sociedade burguesa, competia às autoridades vigiar o
aspecto social da vida dos instintos. Por meio de controles exteriores, de um aparelho policial e
através da força física, chega-se a uma certa conformidade. Era o reino da imposição exterior. Os
regulamentos editados eram heterônomos e a atitude adotada a seu respeito é semelhante à
nossa com relação ao código de trânsito. Uma contravenção suscita um sentimento de vergonha
ou de desgosto (porque nos deixamos prender, ou por causa do dinheiro que temos de pagar de
multa), mas jamais um sentimento de culpa. A nobreza tinha por objetivo a honestidade, a boa
educação, quer dizer, qualidades totalmente exteriores, mecânicas. Podia-se ser um homem
honesto e ao mesmo tempo um sádico, um libertino (Nicolson).
Numa sociedade complexa, este sistema de macro domínio exterior, ineficaz e às vezes
enfraquecido, devia ser substituído por um microssistema interior, eficaz e durável. Partimos da
imposição exterior para chegar à imposição interior (auto coação). A imposição interior significa
que se exerce diretamente uma imposição anônima, supra pessoal, inconsciente e invisível, que
deve garantir a boa marcha da sociedade. Este sistema de vigilância exigia muito da parte da
educação, e por isso os controles ulteriores podiam ser menos severos: um só pedagogo é mais útil
que dez policiais. Num sistema fundado na imposição exterior, as infrações à norma (mas só as que
eram descobertas) provocavam um sentimento de vergonha; podiam até determinar duelos ou
suicídios. Num sistema de imposição interior, todas as violações da regra fazem nascer um
sentimento de culpa. A pessoa não se sente culpada unicamente perante os outros, mas também
perante si própria. Em certas circunstâncias, o condicionamento exerce um tal peso sobre o
homem que este nunca mais pode se perdoar. As relações sexuais extraconjugais, que até então
eram um problema prático (não se quer ser apontado, ridicularizado, etc.), passaram a ser agora
um problema ético. Donde resulta que, de exterior que era, a honestidade se tornou uma
qualidade interiorizada. N. Elias mostrou que no princípio do século XVI o vocabulário usado para
repreender alguém por não assoar o nariz era o mesmo usado para repreender alguém por um
desnudamento excessivo (tal como se pode verificar nos livros de educação cada vez mais
numerosos publicados nesta época). Estas duas atitudes eram consideradas como uma falta de
respeito perante os outros, como suja, vil, inconveniente. Eram sempre tomadas em consideração
outras pessoas ou uma outra classe social (por exemplo, comportamento rústico). Mais tarde o
comportamento criticado passou a ser considerado como mau em si; era proibido, mesmo que se
estivesse só. A proibição vinha do próprio indivíduo. Até este momento eram usados argumentos
higiênicos. Mas "a motivação que provém de considerações sociais existe muito antes da
motivação fundada em considerações retiradas das ciências da natureza" (Elias). Algumas regras
de boa educação, apesar de fundadas em argumentos higiênicos, eram antibiológicas. Por
exemplo, a proibição de arrotar. A autossatisfação passou a ser combatida a partir do século XVIII,
primeiro com argumentos médicos e depois morais.
A autoimposição tem mais consequências vantajosas do que desvantajosas. O domínio de
si e a paz consigo mesmo são condições de civilização e de prazer, livre de toda a angústia. Uma
grande liberdade sexual só é possível quando há a certeza de se estar protegido contra o choque
da violência física. Nem sempre é correto considerar a imposição como oposta à liberdade. Uma
liberdade exige arranjos inconscientes, uma imposição interior, invisível. A coeducação, a
"liberdade" da linguagem, o biquíni, o strip-tease, o dançar abraçado pressupõem a certeza de que
os outros pensam segundo as mesmas normas, em suma, que estão em condições de conter e
transformar as emoções.
Pode-se explicar a passagem da imposição exterior à autoimposição com um exemplo: se
representarmos a situação dentro de um cinema (quer dizer, num ambiente em que o processo de
modernização já está bem estabelecido) verifica-se que, numa sala semi obscura, homens e
mulheres, jovens de ambos os sexos, estão sentados juntos, e, mesmo sem imposição exterior, não
devem recear uma explosão de emoções. Ali não se assassina, não se rouba, não se viola, apesar
das sugestões contidas em numerosos filmes. O processo de modernização pacificou esta zona
perigosa. A educação permitiu construir em todas as pessoas presentes uma estação de repouso,
que desempenha o papel de aparelho de controle social. Na verdade, a existência da ordem na sala
reside simplesmente na suposição de que cada um é capaz e está pronto a obedecer às suas
próprias injunções interiores. Bastaria que no interior deste terreno pacificado alguém pensasse
unicamente na sua satisfação imediata, sem consideração pelo passado ou pelo futuro, que ainda
não tenha sido submetido a nenhum condicionamento, não tenha nenhuma Plêiade das relações
entre os homens, para que a grande vulnerabilidade do sistema (em teoria) aparecesse
claramente. Todo o encontro de dois apaixonados, de pessoas numa praia, repousa num arranjo
não expresso: em vez de se deixar levar por uma explosão emocional e uma eventual violência
física, o indivíduo considera-se capaz de dispor de si próprio e ter a possibilidade de limitar suas
emoções.
A interiorização conduz a uma tensão interior. O perigo, que antes vinha do exterior,
ameaça agora do interior. O combate precedente, entre indivíduo e autoridade, dá lugar a um
combate interior ao indivíduo, entre diferentes instâncias psíquicas (id, ego, superego). Até então o
homem conhecia mais a polarização vertical entre o medo e o prazer, o gozo e a expiação,
portanto uma atitude ambivalente. Agora passa a ser submetido a uma tensão horizontal,
consequência do medo interiorizado da explosão dos sentimentos recalcados. Ter uma consciência
tranquila é mais importante que evitar um aviltamento. Tenta-se excluir a inquietação e a
insatisfação eliminando, pela educação, alguns instintos fragmentários. Outros elementos
incômodos são eliminados por recalque, separação, encapsulamento. No fim do século XIX Freud
estudou e sistematizou estes mecanismos.

4. EROTIZAÇÃO E HIPERSENSIBILIDADE

Estas tensões latentes, mas presentes a todo momento, provocaram, entre outras coisas,
uma maior sensibilidade aos sinais diretos ou simbólicos do reprimido. Por exemplo, a repressão
da agressividade determina tabus em relação à utilização das facas. Na Idade Média era possível
levar à boca, com a faca, um pedaço de carne. Hoje, as regras de boa educação proíbem o
emprego da faca quando este não é necessário (não se deve cortar as batatas; é preciso partir o
pão com a mão). Da mesma forma, a repressão da sexualidade determina uma série de regras de
boa educação e, mais tarde, preceitos morais que preconizavam um respeito mútuo constante, a
fim de não aumentar as tensões latentes. A partir do século XVI estas regras passaram a ser,
inicialmente, ensinadas aos adolescentes.
Coube aos jovens, do século XVIII em diante, reprimir suas necessidades sexuais de forma a
dirigir para os estudos a energia e a atenção deste modo acumuladas. Constatamos, porém, que,
para muitos, manter a repressão da sexualidade exigia um dispêndio de energia e atenção muito
grande. Outra consequência desta evolução foi o fato de tais regras intensificarem a sensibilidade
que as havia produzido; assim, quanto mais os corpos eram cobertos, mais se corria o risco de ficar
emocionado à vista de uma semi nudez. A educação tornou-se cada vez mais severa, a fim de que
o homem pudesse ajustar-se ao modelo que ele próprio se impunha. Um número cada vez maior
de palavras, gestos e partes do corpo passam a ser considerados como sinais possíveis de perigo e
prazer, sendo, portanto, carregados de tensão erótica. A interiorização suscitou uma maior
sensibilidade à estimulação. O que determinou uma maior erotização; foi de forma totalmente
involuntária que a sociedade burguesa provocou o aparecimento desta erotização.
Fatores biológicos provocam igualmente, em certas circunstâncias, um aumento da
sensibilidade. Se quisermos examinar a fundo as origens e a problematização do sexual, será útil
estudar, além da psicogênese e da sociogênese, os fatores biogenéticos. Estamos pensando, aqui,
na influência do processo de domesticação no homem. Está provado que a domesticação aumenta
a atividade sexual de animais domésticos ou que vivem em cativeiro. Não seria inverossímil que
tais modificações aparecessem também nos homens. Pensamos nas influências provenientes de
uma mudança de quarto, de alimentação, nos hábitos do vestuário ou na maneira de viver, como
também do aumento da variabilidade devido ao declínio da pressão de seleção.
Uma maior sensibilidade pode também ocasionar uma maior hostilidade. Nos séculos XV e
XVI todo mundo sentia prazer ante a nudez das mulheres e das jovens. No século XIX, pelo
contrário, este prazer já não era abertamente apreciado, porque representava uma provocação, a
recordação penosa de algo que a duras penas fora banido da consciência. Durante a segunda
metade do século XVIII, passou-se a sexualizar numerosos estímulos neutros, tais como a
equitação, o aquecimento dos quartos, as roupas quentes demais, o conforto das poltronas e das
camas, o agrado pelas bebidas quentes, os livros, os quadros, a riqueza da alimentação, o riso, a
abundância de perfumes, as especiarias, o som "demasiadamente suave ao ouvido" da música da
época, a harmônica de lâminas de vidro "que ameaça os pobres mortais de nossa época,
particularmente o sexo feminino, de perderem a sua pureza" (K. G. Bauer — 1971 — acrescenta
mesmo que "o tocar deste instrumento provoca nos nervos uma emoção convulsiva").
A partir destas descrições e de outras semelhantes, vemos que, em outras épocas, o modo
de encarar a estimulação era diferente. No fim do século XIX, nenhum crítico protestava — como
havia ocorrido no século anterior — contra o fato de certos solistas escolherem voluntariamente
fragmentos que estimulavam a sexualidade, sentirem prazer sexual enquanto tocavam e
transmitirem esta sensualidade aos seus ouvintes. A presença de tão numerosas emoções,
oferecendo uma escolha mais ampla e um refinamento dos prazeres mais solicitados, poderia ser
recebida com alegria. Mas numa sociedade cuja tendência para a repressão sexual era cada vez
maior, não havia lugar para algo assim. A alternativa era a hostilidade a tais estímulos. Uma
censura efetiva se fazia necessária. As tensões latentes, cada vez maiores no homem, aumentando
a sua sensibilidade, desenvolviam nele, ao mesmo tempo, um raro particular, fazendo-o adivinhar
as coisas "que não se deviam fazer", o que suscitava um reforço das "boas maneiras". É indubitável
que as tensões entre os vários aspectos do ego também fizeram aparecer formas curiosas de
pudor, que, sobretudo a partir do século XVIII, adquiriram uma certa importância: é ali que se
encontra a origem do puritanismo ocidental.
5. INTIMIZAÇÃO

Para o homem moderno, a sexualidade parece ser o domínio mais íntimo da sua vida
moral. Também aqui assistimos a uma evolução. Contemporâneos de Goethe achavam o seu
Werther inconveniente porque nele se mostravam, "da forma mais indecente", os sentimentos
íntimos do seu herói. Pouco a pouco a sexualidade foi sendo de tal modo recalcada que passou a
só ser possível liberá-la graças a um especialista, um psicoterapeuta ou um psicanalista. (Em
consequência da enorme publicidade em torno do sexo, esta suscetibilidade perdeu novamente a
sua força; as pessoas acham mais incômodos os inquéritos sobre a higiene — quantas vezes muda
as suas roupas íntimas por semana? — ou sobre os seus meios financeiros.)
O burguês manifestou uma grande resistência quando o quiseram tornar consciente do
que antes havia recalcado. Esta resistência foi muitas vezes designada pelo nome de "hipocrisia".
No entanto, é preciso não esquecer que tal resistência é necessária ao homem para conservar o
seu equilíbrio psíquico. Comportamentos anormais são tolerados desde que não se tenha que
reconhecê-los publicamente. A prostituição é tolerada desde que se mantenha escondida; quando
o burguês lê que no século XV havia príncipes que iam com o seu séquito à casa de prostitutas
célebres, e às expensas da cidade, ou quando ouve dizer que essas prostitutas se misturavam
livremente nas reuniões públicas, não pode deixar de sentir-se moralmente indignado. Ofende-se
quando lhe demonstram suas violações às regras, ou a irracionalidade do seu comportamento
contraceptivo; resolve sozinho seus problemas, recusa-se tomar consciência deles, e, sobretudo,
discuti-los. Logo, trata-se de um homem dividido, na mesma medida em que a sociedade toma
progressivamente um caráter dividido. Nesta sociedade a compulsão à intimização tornava-se cada
vez maior e mais clara levando a uma separação entre os setores privado e público da existência. A
partir do século XVI as emoções tornaram-se mais reservadas: matar, espancar, arrancar os
cabelos com desespero, manifestar a sua alegria ou a sua dor, zombar do pária social, deram lugar
a manifestações interiorizadas. Parecia que a paz, a calma cresciam ao mesmo tempo que a
uniformidade e o tédio, no lugar da antiga proximidade surgia um maior distanciamento. O
nascimento, a doença, a morte, as crises da existência humana, o medo, a histeria, a loucura, as
lágrimas, o riso, o ódio, o amor e quase tudo o que dizia respeito à sexualidade, incluindo o que
nada tinha a ver com ela, foram dissimulados atrás dos muros, das máscaras, nos bastidores,
isolados na esfera da intimidade, nos esconderijos da psique, ou então "postos de quarentena".
As consequências desta interiorização eram visíveis. O espetáculo da rua modificou-se. Por
representações medievais, sabe-se que, então, a vida não se desenrolava no interior das casas,
mas fora delas. Como entre os gregos, os romanos — e também os árabes, nos nossos dias —, a
casa era aberta. Havia um teto por cima da cabeça, mas a rua prolongava-se casa adentro. Da
mesma forma que o psiquismo não conhecia os caminhos ocultos, a casa não tinha intimidade.
Da mesma forma que as emoções passaram a ser rodeadas por "muros" invisíveis,
diferentes setores da existência foram também arrastados para trás de muros de pedra. A porta
principal da casa, que se podia transpor mesmo sem ser esperado — conforme a hospitalidade
daqueles tempos — foi fechada à chave. Para os amigos instaurou-se o caminho mais longo,
menos direto, da porta de serviço. Mais tarde instalou-se uma aldrava ou uma campainha.
Finalmente, todos passaram a ter que anunciar sua visita. No interior da casa, tudo o que recorda
as relações homem-mulher, o corpo e as suas funções, passou a dissimular-se atrás de bastidores
psíquicos, atrás de bastidores de linguagem, atrás das paredes e sob o vestuário. A cama fica
escondida num compartimento especial. Podemos aceitar que, em muitas culturas, o processo de
civilização tenha levado a uma sexualidade individualizada e intimizada. Numa cultura em que o
sexual não é aceito como valioso, estes fenômenos se mostrarão ainda mais claros.
Mais que os ouvidos e as mãos, os olhos passam a ser os mediadores do prazer. Olhar
representações eróticas era mais possível e mais tolerado do que pegar e manusear. Aos poucos, a
pretensa pornografia vai assumindo um papel cada vez maior. No século XVII e durante um certo
período do século XVIII ainda era possível exprimir crua e claramente o que se desejava ou sentia
sexualmente. Encontram-se exemplos desta linguagem direta na literatura ou nos cantos
populares. A adolescente sabia que tinha necessidade de um homem e podia falar disto ao pai.
John Locke fala dos jovens e da sua compreensível "necessidade de mulheres", necessidade que
eles exprimem claramente. Esta maneira franca e direta encontra-se na maior parte dos escritores,
até o fim do século VIII, mesmo quando condenam qualquer atividade sexual antes do casamento.
No século XVIII os educadores ainda aceitavam a existência do instinto e até mesmo seu início
precoce devido às influências civilizadoras. Seria falso explicar este comportamento como um
"reconhecimento do direito à sexualidade", porque, da mesma maneira direta, se recusava ou
rejeitava uma proposta neste sentido. As medidas de proteção às jovens e às mulheres são
unívocas no seu objetivo.
No século XIX, pelo contrário, exprimir abertamente esta necessidade era sinal de
corrupção moral. Os educadores partiam da Plêiade de que tal coisa não existia em nenhum
adolescente, com exceção de casos patológicos ou de amoralidade. Em vez de autorizarem uma
certa liberdade de expressão, os responsáveis autorizavam, secreta e ocasionalmente, certos
meios químicos com o intuito de impedir a manifestação do instinto sexual (nas casernas, nos
conventos, nos internatos, etc.). Ainda hoje se observa uma certa franqueza na linguagem e nas
relações entre os sexos nos meios não-burgueses, particularmente na juventude operária e rural, e
entre os soldados. Por um lado, considerava-se este comportamento como o mais natural e o mais
saudável e, por outro lado, como amoral. Os contatos que se tornam cada vez mais fragmentários
e a divisão interior do homem aumentam a possibilidade de se reconhecerem as normas apenas
teoricamente. Salva-se a aparência, mas as normas não são observadas. Isto pode significar não ser
preciso combatê-las violentamente, e, portanto, o historiador pode ter a impressão de que são
geralmente aceitas. Esta reflexão leva-nos a julgar as relações e as situações daquela época com
prudência. Tem-se a impressão de que a Idade Média era uma época de libertinagem, tão
abundantes são as "provas" a favor desta tese. A partir do século XVI, sabe-se muito menos de
coisas sobre as infrações à regra, porque era maior a possibilidade de fingir uma submissão a ela. A
par de tudo isto, os moralistas impunham normas muito severas, e estas eram menos discutidas.
Mas não sabemos qual é a distância entre a norma e a realidade. A hipocrisia, muitas vezes
considerada como tipicamente vitoriana e característica do século XIX, começou, pelo menos, dois
séculos antes (se não se rejeitar a hipótese de cada época possuir uma forma particular de
hipocrisia). No entanto, apareceu no século XIX sob aspectos mais diversificados e foi praticada por
grupos maiores e mais influentes.
Do que foi dito acima, pode-se concluir que, pouco a pouco, em certas camadas mais do
que em outras, entre os jovens em primeiro lugar mais do que entre os adultos, apareceu uma
imagem do homem e do mundo na qual a sexualidade, enquanto fator de civilização, não estava
integrada. É certo que existia como fenômeno extra e infracultural, ou como componente não
integrado da personalidade. Da mesma forma que a sociedade negava a sexualidade, o indivíduo
tinha de renegar suas sensações sexuais, recalcá-las ou considerá-las como não existentes. Tudo o
que ocorria com o corpo era encarado pelos adolescentes com uma repugnância cada vez maior, o
que poderia ser provado através de um estudo da história da puberdade fisiológica, enquanto
experiência vivida pelos adolescentes. O mundo da vivência na fantasia era igualmente submetido
a fortes tabus, por um lado, porque este tipo de vivência crescia como conseqüência da menor
possibilidade de sua realização e, por outro, devido à interiorização da autoconsciência e do
conhecimento ético.
Até mesmo o compreensível interesse pela sexualidade, que vai do desejo de saber ao
estudo científico especializado, passou a ser julgado de uma forma cada vez mais negativa,
fazendo com que a curiosidade sexual dos jovens fosse satisfeita num ambiente de culpa e de
pecado, e a sexologia regrediu em relação às outras ciências. Foram sobretudo os jovens que
ficaram expostos a esta influência, cujo objetivo era banir o sexual até mesmo da esfera do
privado, nada é permitido. A criança e o jovem devem ser assexuados.
A organização do espírito humano, tal como se mostra numa personalidade, isto é, a
integração interna do indivíduo e a paralela inserção do indivíduo em sua cultura, se dá num
determinado quadro histórico e sociológico. No que tange à sexualidade, a formação da
personalidade tornava-se cada vez menos eficaz; algumas vezes ela nem mesmo existia, já que os
dois processos da individualização e da racionalização se desenrolam no início da vida, num estado
de cegueira, e, mais tarde, num período (o casamento) em que a personalidade já está marcada.
O surgimento das personalidades somente se tornou possível com o processo de
civilização, que era pouco favorável à integração dos componentes sexuais. Esta hipótese é
sublinhada nos escritos do escritor francês Lucien Febvre. Em sua opinião, "te retard de vue" seria
característico da psicologia do século XVI. Em relação aos séculos posteriores, o elemento visual
teria desempenhado uma parte muito menor na percepção das coisas. Podemos completar as
concepções de Febvre dizendo que a percepção visual era menos independente e não se
sobressaía quando comparada com a percepção auditiva, o tato e o olfato. Antes, as pessoas se
dirigiam mais segundo a percepção dos instrumentos dos sentidos em conjunto, de tal forma que
as coisas isoladas perdiam seu caráter de isolamento. A apreensão do mundo, do homem, da vida,
da natureza e do sobrenatural era pré-científica, pré-racional; era mágica, animística e holística.
Não se via barreira alguma, nenhum conflito entre o objetivo, a realidade e a imaginação, a
natureza e o sobrenatural, o consciente e o inconsciente, o indivíduo e a sociedade, o interior e o
exterior. E, a partir deste modo de encarar a vida e o mundo, o amor, Eros, e Sexus não eram
contraditórios. As atividades sexuais não eram consideradas como atividades parciais de órgãos
quase independentes. A masturbação não era reprovada enquanto atividade sexual, mas
considerada como uma solução para as necessidades funcionais e biológicas, cuja origem não se
encontrava no indivíduo, mas na própria natureza que nele atuava.
No século XVI, quando teve início a dominância dos olhos na percepção, esta evoluiu do
sintético para o analítico, permitindo uma maior apreensão de pormenores através da percepção
visual. A. Vesalius decompunha visualmente, isto é, analiticamente, a anatomia do homem. O
microscópio e o telescópio estudaram visual e analiticamente a natureza. A percepção pelos olhos
representava um enriquecimento: trazia consigo a onipotência do racionalismo, que resolveu
numerosos problemas, após tê-los estudado sob um outro ângulo. A desmistificação (a
entmythologisierung, de Bultmann) e a neutralização da emoção (a entemotionalisierung, de
Neumann) tinham começado. Isto indicava, antes de mais nada, um empobrecimento. O
percebido, o visto, mas também o indivíduo, a sociedade, os diferentes aspectos da existência e
das funções humanas, pareciam isolados, separados sobre um fundo neutro. As relações, muitas
vezes dificilmente reconhecíveis, entre o homem e aqueles que o rodeiam, entre o homem e o seu
próximo, entre o homem e ele próprio, foram intelectualizadas. No que tange à percepção exata, o
sentimento era sobrepujado pela compreensão intelectual. Num mundo arrastado nesta evolução,
Descartes projetou seu sistema filosófico e pôde, com ele, ganhar influência. Nunca, antes, tanta
gente fora capaz de conceber com tanta facilidade a essência verdadeira do homem como sendo a
atividade espiritual, que é separada do corpo, a partir do ponto de vista da oposição dualista. Esta
evolução influenciou a contínua regressão de um elemento irracional e sensual, como a
sexualidade, para a qual ainda não havia lugar no mundo cérebro-mental do conhecimento e do
pensamento.

6. PROBLEMATIZAÇÃO DO SEXUAL

Já anteriormente, e por várias vezes, mostramos como e por que o sexual era reprimido. A
repressão era "lógica", útil e, no quadro dos valores burgueses, em parte inevitável. Também era
"lógico" que o sexual fosse mais reprimido do que a agressividade. Mesmo sendo verdade que o
homem é naturalmente agressivo (o que não está provado, a despeito de Lorenz, Storr e outros), a
agressividade poderia ter um emprego mais útil numa sociedade que se industrializa, que
manifesta um grande interesse pelo desenvolvimento técnico, que coloniza e se expande de outras
formas A sexualidade, pelo contrário, não traz nada, não é rentável, é contrária à produção.
Na repressão do sexual, encontramo-nos perante o fato consumado de as necessidades
sexuais serem endógenas e se renovarem constantemente. São necessários fortes tabus, mas estes
nunca resolvem completamente o problema. A dessexualização leva "logicamente" à obsessão, à
compulsão sexual. Pensa-se hoje que a existência de conflitos interiores determina uma maior
consciência, embora esta teoria raramente seja utilizada para o sexual. B. Snell definia o self como
1
source of reactions which set in when the feelings are blocked . O amor infeliz, a ausência do ser
amado, as experiências decepcionantes, os conflitos entre os desejos libidinais e as proibições
fontes de desprazer, em suma, as experiências emocionais de tendência negativa, engendram
tensões e angústias. Esta situação de conflito estimula a consciência. O conflito entre necessidade
sexual endógena (que varia quantitativa e qualitativamente, segundo, o contexto cultural do
momento, mas não é suprimido) e os tabus leva a consciência a um maior interesse pelo sexo. Isto
explica a preocupação excessiva com o sexual nas épocas e nos meios em que ele era reprimido ao
máximo. Portanto, a emancipação sexual representa também uma liberação da obsessão, e, por

1
''Uma fonte de reações que se instalam quando os sentimentos são inibidos.'' à sexualidade, que, então, não se aloja mais
somente no córtex ou na consciência, mas também no coração, nos órgãos, na pele e nas pontas dos dedos.
consequência, uma diminuição da atenção exclusiva concedida
Os dois ou três últimos séculos podem ser considerados como um experiment in living, um
ensaio no campo das ciências que estudam as relações humanas, no qual um único modelo é
testado. O desenrolar dos experimentos e o que ocorre em seu interior são passíveis de um
conhecimento imediato. Neste caso, a sexualidade tornou-se um problema. Não dizemos que ela
não o seja em outros momentos, mas devemos insistir no fato de, a partir do século XVII, o sexual
ter-se convertido, de uma forma bastante específica, num problema; aliás, um problema muito
maior do que era necessário, um problema que se coloca como um empecilho para sua própria
solução, um problema que esconde muitos outros ainda mais importantes. Neste contexto, cria-se
inevitavelmente uma escalada de tabus que não resolvem nada. É por esta razão que encontramos
em todas as obras que tratam do problema sexual, desde a segunda metade do século XVIII, um
pessimismo negro e um tom alarmado.
A situação era ainda agravada pelo fato de a sexualidade ser considerada como um
problema de ética e não de economia, de psicologia ou de medicina. A hierarquia dos valores
morais foi invertida. Montaigne ainda podia declarar publicamente, no século XVI, que preferia
cometer o adultério a mentir. Três séculos mais tarde teria, talvez, sido possível pensar assim, mas
a hierarquia de valores oficiais afirmava, quase sempre, o contrário.
Até meados do século XX, a influência dos teólogos da moral e dos moralistas estendeu-se
sempre, cada vez mais, sobre o domínio da dita sexologia objetiva; tolerava-se cada vez menos que
psicólogos, historiadores, médicos e biólogos tratassem estes temas de uma forma descritiva e,
ainda menos, de uma forma normativa (referimo-nos às polêmicas referentes a Kinsey, à pílula, ao
aborto, à homossexualidade, etc.). Uma ação adequada para a emancipação sexual foi dificultada
porque o problema sexual parece ser, na consciência de muitas pessoas, um problema individual.
Foi por isso que um aspecto relativamente simples da existência, um prazer fácil que pode ser
saboreado por pessoas não instruídas, uma alegria que pode pôr em contato os homens, acima de
todas as fronteiras sociais e linguísticas, uma ocasião única de se transcender e de se desempenhar
um pequeno papel, tudo isto se tornou um problema, uma questão séria e até, às vezes,
traumatizante.
A problematização da sexualidade sofreu influência da posição, então existente, frente ao
sexual, a qual, por sua vez, foi influenciada pela primeira. Gostaríamos de falar também sobre o
importante papel desempenhado pela diferença cada vez maior de estatuto entre o homem e a
mulher. Nas civilizações de agricultores, a mulher tinha um estatuto mais elevado do que nas
civilizações de caçadores ou burguesas; seu trabalho era quase igual ao do homem (a camponesa
é, de fato, um camponês que põe filhos no mundo); custava menos que um empregado e, como
dote, trazia terras e gado. Na civilização burguesa lhe eram atribuídas as crianças, a cozinha, a
igreja (Kinder, Küche, Kirche), e o sistema não lhe concedia qualquer reconhecimento particular por
seu trabalho. Era grande a influência que a ideologia burguesa tinha sobre os fundamentos de uma
vida pró-sexual, que são: o prazer, a sensualidade, a alegria e o armazenamento de tempo e
energia para o sexual. O burguês procura, antes de mais nada, a realização de um ideal que, no
século XIX, era visto como ideal cristão ou mesmo como o ideal de toda humanidade, isto é, a
unidade de sexualidade, casamento, amor e reprodução. A sexualidade fora do casamento era
combatida. O mesmo ocorria com o amor livre, as relações extraconjugais; com a sexualidade fora
da procriação: a homossexualidade, a sexualidade infantil e a sexualidade depois do climatério. Ela
"não leva a nada". O laço entre sexualidade e prazer não só foi omitido em toda a informação
sexual do século XVIII até meados do século XX, como, mesmo nos livros para adultos, ocupava um
lugar cada vez menor. Enquanto antes do século XVIII era concedida uma atenção muito limitada à
sexualidade infantil, no decurso do século XIX ela foi "descoberta" e combatida. Progressivamente,
associa-se por completo a sexualidade „à procriação. Por conseqüência, rejeita-se toda a atividade
sexual antes dá puberdade (que é cada vez mais tardia) e depois da passagem da idade. Após se
ter estabelecido no século XIX que a mulher não segregava esperma, sua vivência sexual pareceu
também não ter sentido, e era lógico negar o orgasmo feminino (como Lorde Acton fazia), ou
considerá-lo como uma perversão. As carícias, a sensualidade, o erotismo e o flerte tornaram-se
supérfluos. Com a separação dos modos de comportamento homossexual e heterossexual
(existem razões para acreditarmos que, antigamente, nas sociedades industriais ocidentais, essas
linhas de demarcação nítida não existissem, como ainda ocorre em muitas culturas não
ocidentais), a homossexualidade passou a ser um problema mais grave, mais preciso e,
consequentemente, intolerável e submetido aos mesmos mecanismos, isto é, à redução do
problema social ao individual: moralização, sexualização, recalcamento e repressão. Durante o
século XVIII, e sobretudo durante o século XIX, outros comportamentos foram muitas vezes
considerados como sexualmente anormais e sujeitos a sanções, como, por exemplo, o
exibicionismo, o fetichismo, os contatos sexuais que não levavam ao coito e outros. R. König
escreve a este respeito que "a particular sensibilidade das classes médias para a sexualidade,
imputada a um valor civilizador geral ou universal, não passa de uma representação de valor,
tornada histórica ainda muito jovem, que antes não existia".
A sexualidade enquanto função reprodutora necessitava de um mínimo de atividade sexual
e um só tipo de relação sexual, a saber, o que oferece a maior probabilidade de fecundação. Um
grande apetite sexual, posições variadas ou contatos fora do coito eram reprovados. A
sexualidade, que até então se estendia a todo o conjunto do corpo, reduzia-se a uma atividade
genital parcial, desprovida de erotismo e de fantasia. Numerosos comportamentos eram
excessivamente sexualizados e a sexualidade tornava-se genital. Só hoje, após o início da
emancipação sexual, nos damos conta de que o excessivo interesse pela sexualidade era um
obstáculo que nos impedia de ver a natureza relacionai, e não sexual, de numerosos problemas.
Entre os séculos XVI e XIX, o interesse concedido à sexualidade tende cada vez mais para o
misterioso, o repugnante, o indecente. No princípio do século XX, o não-reconhecimento do sexual
pelos estudiosos mais eminentes das humanidades passa a ser natural: a auto-satisfação torna-se
um pecado grave e provoca doenças perigosas; a homossexualidade é um sinal de corrupção
moral; as doenças venéreas castigam os clientes assíduos dos prostíbulos; quase todas as mulheres
são frígidas com seus maridos; não existe um processo de contracepção moralmente admitido; o
interesse estritamente intelectual pela sexualidade é socialmente reprovado: pessoas inteligentes
teriam sucumbido em consequência de sua sexualidade.
Era, da mesma forma, natural que entre os potentes sexuais, mais do que entre os não-
potentes, a sexualidade começasse, aos poucos, a ser odiada, combatida e afastada. Mesmo Freud,
no fundo, é ainda o ideólogo da moral sexual burguesa. Dá à sexualidade uma importância
excessiva: a sua concepção da mulher, das pretensas perversões sexuais, da auto-satisfação e do
casamento é perfeitamente burguesa. Não devemos nos deixar levar pela imagem que dele
fizeram seus inimigos e seus amigos. Se examinarmos de perto suas obras e, além disso, tirarmos
de sua vida privada dados mais fiéis que os obtidos em biografias romanceadas, como a de
Jones, verificamos que ele representa a sexualidade procriadora. Ao mesmo tempo, não se
pode negar que Freud se distanciava do burguês num ponto: trazia a sexualidade para a esfera do
consciente.
Apesar da crítica que se pode fazer ao sistema burguês, é preciso reconhecer que lhe
devemos muito. Quer sejam de ordem técnica, higiênica ou outra, há progressos que nunca se
teriam realizado sem o aburguesamento. É injusto e, antes de mais nada, incorreto, levar em
conta, em nosso julgamento, somente as concepções e relações burguesas que são
menosprezadas atualmente. Por outro lado, devemos ver bem que estes progressos não eram
fenômenos de ordem residual ou secundária; as guerras, a falta de mão-de-obra especializada, o
aumento da produção, a luta contra o perigo de infecção entre a população abastada, as perigosas
correntes revolucionárias e outras trouxeram, por vezes, melhorias imprevistas, que não
resultavam forçosamente de um exame consciente e racional dos problemas sociais. Daí não
serem mais que melhorias superficiais, incapazes de abalar o sistema. Os problemas importantes
continuam sem ser abordados ou resolvidos. Qualquer outra interpretação é metafísica e refutada
pela realidade.

7. INFLUÊNCIAS RELIGIOSAS

N. Elias demonstrou que o aburguesamento da sociedade industrial ocidental estimulou o


processo de modernização. Não concede às Igrejas qualquer influência no nascimento da síndrome
anti-sexual. Para ele, o processo de desenvolvimento é o único responsável pela direção seguida
por tal síndrome. As seitas religiosas não teriam sido uma força capaz de dar orientação e impulso;
teriam antes favorecido a revolução cultural, que ultrapassava largamente o quadro da Igreja,
processo de que elas próprias teriam tirado proveito. Certos argumentos confirmam as hipóteses
de Elias. É importante notar o aparecimento de um modelo de homem civilizado único, por toda a
parte, apesar das diferenças, em termos de teoria e de prática, existentes no seio dos grupos
religiosos. Aliás, entre povos que praticam a mesma religião são encontradas diferenças notáveis
no comportamento sexual. Se compararmos os modos de vida em quatro cidades católicas no
século XVIII — Paris, Veneza, Viena e Madri —, o fator religioso não explica as diferenças; não
explica por que, tanto em países católicos como em países protestantes, se encontram bordéis,
filhos naturais, relações sexuais pré-conjugais e extraconjugais. O problema da informação sexual
não apareceu simultaneamente na França católica e na Alemanha protestante? Afirma-se que o
príncipe alemão Augusto o Forte tinha 700 mulheres e 345 filhos. Não estará isto mais próximo do
harém oriental do que da anti-sexualidade "tipicamente cristã”? Era diferente a atitude de Luís XIV
ou a do cardeal de Richelieu? Podemos compreender numerosas diferenças geográficas, se
levarmos em conta o progresso ou o atraso em relação ao processo de modernização e também (o
que vem a dar no mesmo) as diferenças sociais. A diferença entre os pontos de vista das seitas
religiosas parece muito grande, mas é pequena em comparação com as diferenças de
comportamento no interior das camadas da população. Em meados do século XX, depois,
portanto, de numerosos decênios de nivelamento, Kinsey mostrou que há mais semelhança entre
o comportamento de um jovem operário e de um jovem pertencente a um grupo muito afastado,
do que entre o comportamento deste mesmo jovem operário e o de um filho de funcionário que
habita a poucos metros dele, e que, no entanto, pertence à mesma religião.
A influência das Igrejas era grande, sobretudo no que diz respeito aos valores oficiais, mas
não o bastante para determinar totalmente o modelo real de relacionamento. É também
necessário compreender por que o processo de modernização tomou uma determinada direção.
Por que não se desenrolou como nas outras civilizações? A antiga cultura chinesa conhecia um
outro grau e, sobretudo, um outro tipo de repressão sexual e de puritanismo. As altas civilizações
mesopotâmica, grega, romana e pré-colombiana conheceram um processo civilizatório no qual não
havia repressão sexual. Há civilizações primitivas muito repressivas e altas civilizações pró-sexuais
e vice-versa.
Apesar da síndrome anti-sexual não ter uma origem cristã, ainda assim podemos constatar
uma equiparação entre os sistemas de valores burguês e cristão. Mas, devido à sua participação na
formação do processo de modernização, as Igrejas têm sua influência aumentada. Segundo Max
Weber, a Igreja da Idade Média não se preocupava demais com a vida das pessoas, pelo contrário,
preocupava-se muito pouco com isso.
A partir do século XVI, as Igrejas serviam cada vez mais de intermediários entre o homem e
a sexualidade. Criaram neste domínio uma autoridade que também pretendia ser válida para os
não cristãos e, durante muito tempo, resistiu às conquistas das ciências. Sua influência pôde
aumentar graças à moralização e à pedagogização exercidas, desde o século XVI, por elas e por
grupos seculares, e que ultrapassavam os limites da época. O grande interesse que concediam à
educação da juventude é um sinal característico de todas as reformas. Se tomarmos o ponto de
vista sectário de um grupo religioso (com sua necessidade de autoproteção, segundo a
mentalidade in-group), a escola nos parecerá ter sido escolhida como o "baluarte da religião". Mas,
se estudarmos os pontos comuns às diferentes escolas, descobre-se uma corrente de elementos
moralizadores que são mais importantes, atuam mais profunda e constantemente do que as
tendências que fizeram da escola "o melhor instrumento da consolidação e da irradiação da
religiosidade". No século XVIII esta intenção pedagógica moralizadora era tão precisa que já neste
momento se falava do século pedagógico. Essa caracterização é, em parte, somente um símbolo
verbal da aceleração imprimida a um movimento que cresceu nos séculos seguintes e que tem,
hoje, uma amplitude universal.
Em resumo, pode-se dizer que o puritanismo, de que o tabu vitoriano é um aspecto, não
foi conscientemente desejado. Não lhe pode ser atribuída uma origem, pois parece tratar-se do
fruto involuntário da ação e da junção de diferentes elementos. O seu nascimento pode comparar-
se ao desenvolvimento de um sistema de ruas. As ruas são relações sociais que se tornaram
visíveis. O sistema que as engloba se desenvolveu aos poucos. Há séculos atrás, na época de sua
implantação, era impossível prever sua atual irracionalidade e pouca funcionalidade.
Também pode-se comparar o processo que engendrou o puritanismo com a nossa atitude
perante o "tempo". Quem não pertence a uma sociedade industrial julga nossas relações com o
"tempo" neuróticas, a partir do modo como tornamo-nos escravos de uma medida exata do
tempo. No entanto, ninguém decidiu, num determinado momento, que assim devia ser. Foi
preciso introduzir uma medida mais exata do tempo devido ao estreitamento da rede social
complexa e à necessidade de relacionar as atividades dos homens umas com as outras. Um
camponês contentava-se em medir aproximadamente o tempo pelo Sol. Nas cidades instaurou-se
a ampulheta e depois apareceu o relógio. Progressivamente, o tempo passou a ser mostrado em
locais mais numerosos. Hoje trazemos a hora no pulso. Mesmo que o queiramos, nossa sociedade
já não poderia funcionar sem hora. Só a existência numa época pós-industrial permitiria um
comportamento diferente em face do tempo. Isto já está sendo parcialmente realizado. Durante os
fins-de-semana e nas férias, os homens consideram como descontração o fato de deixarem de lado
o relógio.
Nas nossas análises tentamos mostrar que não há diferenças essenciais entre as
representações de valor dos médicos, dos pedagogos ou dos eclesiásticos, da mesma forma que
entre os católicos, os protestantes, os humanistas ou os anticlericais. Como o tabu sexual regrediu
um pouco, descobrimos que a morte talvez esteja ligada a um tabu ainda mais forte. O jogo de
esconder com a sexualidade é apenas uma parte do jogo maior, no qual estão envolvidos
numerosos setores da nossa existência: o puritanismo é só uma parte de um vasto complexo de
tabus, característico do aburguesamento da sociedade.
DO SÉCULO XVI AO SÉCULO XIX
Segunda parte

1. QUARTO DE DORMIR. CAMA. COMPANHEIROS DE CAMA

No princípio da Idade Média, o cavaleiro tinha o mesmo alojamento que o seu cavalo. Só
progressivamente é que apareceu a casa com dois quartos. Este tipo persistiu até o século XX nas
regiões e nas classes reticentes ao processo de modernização. A maior parte das casas burguesas
do século XVI tinha dois compartimentos: uma sala, onde à noite se instalava a cama comum, e
uma cozinha, onde se comia. Muitas vezes os pequeno-burgueses, os camponeses, os artesãos não
tinham cama. Os camponeses dormiam deitados sobre folhas secas ou em bancos, montes de
palha e sacos, todos juntos e num só compartimento: o pai, a mãe, os parentes mais afastados, os
criados e os hóspedes. Reservava-se um outro compartimento para o gado. O estábulo ficava ao
lado da sala comum, porque o calor dos animais, no inverno, ajudava a reduzir o frio
excessivamente rigoroso. As criadas e os criados dormiam por vezes no estábulo. Como só ficaram
de pé algumas grandes casas, fazemos uma Pléiade falsa destas habitações: o que hoje chamamos
cabanas pode ter sido considerado, naquela época, como residências magníficas. Na ilha de Elba,
na época em que Napoleão ali esteve, não era raro sete pessoas dormirem numa só e mesma
cama, "sem distinção de sexo e completamente nuas" (J. Presser). No ano de 1960, em Londres,
8.000 pessoas ainda moravam em "common lodging houses", 15.000 em 1931 e 34.000 em 1899.
A melhoria do modo de vida levou a uma melhoria das habitações: o quarto de dormir foi
isolado das outras divisões. Poderia daqui concluir-se que o isolamento do quarto de dormir
provocou uma intensificação do pudor. Esta explicação é sedutora, porque parece muito simples.
No entanto, pensamos ser melhor compreender este processo ao contrário. O aumento da
diferenciação e da especialização são dois pontos importantes na história da civilização ocidental.
Trata-se de saber como e por que a diferença aumentou a um ritmo determinado, num sentido
determinado, em domínios determinados da vida e em classes determinadas. Não se pode afirmar
com certeza que, na separação entre o estábulo e a sala de jantar-estar-dormir, o aparecimento de
um dormitório separado tenha-se imposto como uma primeira necessidade. Só no século XVIII, por
exemplo, é que a sala de jantar fez o seu aparecimento. Uma comparação antropológica com os
hábitos noturnos de civilizações diferentes oferece-nos outras possibilidades de explicação. Pode-
se perguntar se é justificável, segundo os critérios racionais, como, por exemplo, o da utilidade, o
espaço relativamente grande utilizado para dormir nas casas de elite.
Uma vez separado, o quarto de dormir conservou, no entanto, seu caráter público. A cama
era o móvel de aparato do rico. As visitas eram recebidas na cama, tocava-se música na cama; era
ali que as ordens ao pessoal eram dadas. Pouco a pouco desapareceu o caráter semi-oficial do
quarto de dormir e da cama. Eram zonas perigosas e foram privatizadas. Afastavam-se delas as
visitas. Os criados-de-quarto e os próprios camareiros, que antes dormiam com o patrão ou a
patroa, desapareceram. O pessoal de serviço, na maior parte das vezes, era do mesmo sexo que a
pessoa de quem se ocupava, salvo no clero romano católico. O quarto de dormir foi separado do
mundo exterior por cortinas sempre mais numerosas e mais espessas.
No século XIX reinava no quarto de dormir uma atmosfera misteriosa de templo. A
penetração de gente estranha era quase um crime contra a decência. Em fins daquele século
deixou-se ali entrar outra vez, pouco a pouco, o ar e a luz, supostamente por razões higiênicas. No
entanto, sabemos que os pretensos motivos higiênicos não eram senão a racionalização de
atitudes morais.
No princípio da Idade Média a cama não existia. Não havia um local determinado para
dormir. Estendia-se no chão um pouco de palha, alguns ramos ou um saco. As pessoas ricas
passaram depois a ter o saco de palha mais alto, para não estarem em contato com a água, a
sujeira ou os ratos. Quando a cama se tornou um móvel, foram-lhe dados os mesmos sinais
característicos do quarto: envolvida em cortinados, formava um alvéolo no interior do mesmo. As
cortinas tiravam aos móveis o caráter de camas; foram suprimidas todas as reminiscências da zona
perigosa. O sentimento de privacy que se tinha nestas velhas camas foi mais acentuado quando,
no século XIX, foram construídas camas mais abertas. Viu-se pela primeira vez uma cama de cobre,
simples e funcional, na exposição universal de 1878, no pavilhão inglês.
Até o fim do século XIX as casas eram superlotadas; nas grandes casas, nos castelos,
formigavam pessoas que dormiam juntas em pequenos quartos, nas cozinhas, nos corredores, nas
escadas, em qualquer parte, em bancos ou no chão. Na estalagem as pessoas de "bem" não
tinham o menor escrúpulo em dormir na mesma cama com os amigos. Em certas regiões, o antigo
uso da hospitalidade era ainda mais vivo: a menina da casa ou uma criada vinha deitar-se com o
hóspede. A necessidade de contato social era então muito mais forte: ficar só não era apenas
deslocado, mas também perigoso. Passava-se muito tempo nas hospedarias, nas cervejarias, nos
clubes, mesmo durante o dia. Mais tarde alguns grupos se destacaram desta comunidade, em que,
a princípio, todos, grandes e pequenos, nobres e mercadores, se sentavam juntos à mesma mesa.
Ainda hoje se observa este costume nas estalagens do campo. Numa sociedade estática, onde cada
qual tem um lugar bem determinado, ninguém se sente constrangido com este contato entre
grandes e pequenos. O comportamento esnobe é considerado ridículo.
Que imagem podemos guardar dos hábitos noturnos dos adolescentes, quando estudamos
textos do século XVIII? Os filhos deitavam-se na mesma cama com os pais e viam-nos despirem-se
e vestirem-se. Deitavam-se, também, perto dos criados do outro sexo, seminus. O irmão e a irmã
dormiam juntos até à puberdade, e mesmo mais tarde. Os artesãos, os companheiros e os
aprendizes deitavam-se dois a dois. Contudo, no fim do século XVIII tornou-se raro que os filhos da
nobreza e da alta burguesia dormissem na cama de um empregado da casa (mesmo do outro
sexo); nos pensionatos, no entanto, ainda se deitavam dois a dois com frequência. Os internatos
progressistas, como os dos Filantropos, eram uma exceção. J. B. Basedow diria aos seus alunos, em
1774, que era melhor — se possível — dormirem sós na sua cama, e não no mesmo quarto de uma
pessoa do sexo oposto. Isto era ainda frequente nos camponeses, nas classes inferiores e na
pequena-burguesia. Pestalozzi, em 1780, não via a menor objeção ao fato de rapazes e moças de
origem camponesa dormirem no mesmo quarto. C. A. Peschek reprovava violentamente este
costume, a ponto de recomendar a supressão da cama para os pobres que dormiam juntos: uma
cama era supérflua e, se não houvesse cama, não haveria a necessidade de fazer dormir as
crianças todas juntas. Se não se possuem duas camas, deve-se, pelo menos, vestir as crianças de
sexos diferentes com "calções de dormir".
Nos pensionatos ocorria a mesma evolução. Inicialmente havia um dormitório comum, ou
quartos em que dormiam muitas pessoas, e até mais de uma pessoa por cama. Depois disso, cada
um passou a ter o seu próprio leito e, por fim, o seu próprio quarto. A separação também se fazia
por idades. A partir do século XVI são encontrados nos escritos pedagógicos conselhos relativos ao
dormir junto. A regra essencial é que o menos importante deve respeitar o mais importante, o que
equivale a reconhecer os direitos do superior hierárquico. No entanto, já Erasmo escrevia, em
1530, que a nudez feria a decência e era contrária à natureza. Logo, já não se trata de uma regra
de bom comportamento, mas de um preceito moral. Mais tarde ainda foi invocado o pretexto
(para que as pessoas deixassem de dormir nuas) de que era muito possível surgir a necessidade de
uma fuga no meio da noite. Substituía-se assim o ponto de vista moral por uma racionalização
evidente. A proibição de dormir nu foi seguida da proibição de se tocar durante o sono; era preciso
não meter as pernas entre as do companheiro de cama. Mais tarde proibiu-se muito simplesmente
dormir a dois. Novamennte a justificativa é digna de nota. O pedagogo J. Stuve (segunda metade
do século XVIII) escrevia a este propósito: "Dormir junto provoca um alto grau de trocas e
absorções mútuas de transpirações. A absorção dos poros é calculada em uma libra por dia..."
Fundamentava-se assim a condenação moral numa reprovação higiênica, que encontrava a sua
origem nas crenças populares e nos livros de vulgarização médica.

2. ROUPAS DE DORMIR

Nas estalagens da Idade Média era norma compartilhar a cama com um desconhecido.
Podemos citar numerosas passagens que nos permitem concluir tratar-se de um fato corrente.
Num diálogo dos Colóquios, Erasmo conta que nas estalagens alemãs era costume as pessoas
despirem-se e meterem-se nuas na cama, sem consideração de sexo e na presença de todos.
Mesmo em certas ordens religiosas, era costume dormir nu. No século XVI, uma pessoa que se
deitasse de camisa faria crer que estava doente ou que tinha um defeito físico. Em De Civilitate
Morum Puerorum Libellus (1526), Erasmo não fala de roupas de dormir, mas escreve que se
deveria ter o corpo coberto. Margarida de Navarra fala, no seu Heptamerom (1559), de roupas de
dormir para mulheres como curiosidades. No século XVI este luxo difundiu-se nos meios que
ditavam a moda.
Procurava-se despertar o sentido do pudor nos adolescentes. No entanto, é fácil mostrar
que, em geral, no fim do século XVIII, os jovens não aceitavam usar trajes noturnos. A. Franklin
enumera os vestuários que os pensionistas de um colégio deviam trazer; além dos gorros de noite,
não se fala em trajes noturnos. No século XVIII repetia-se constantemente aos jovens que a cama e
o sono eram questões sérias. Portanto, devia evitar-se toda a leviandade. As decisões eram
tomadas por motivos higiênicos, que, na realidade, tinham que eliminar a indecência: os alunos
deviam dormir imediatamente, para estarem bem dispostos na manhã seguinte, sair da cama
rapidamente, ao acordar, não dormir de costas (isto favorecia a masturbação), tapar-se bem, para
evitar os resfriamentos, usar um traje de noite, para poder fugir rapidamente em caso de
necessidade. Em 1787, Stuve declara que dormir nu ou seminu é perigoso: "Provoca uma parada
dos sucos e dos líquidos".
A evolução faz-se hoje em sentido oposto. Na classe dominante, dormir nu tornou-se
moda, a pretexto de considerações higiênicas; as classes mais humildes, pelo contrário, conservam
o costume que, sem dúvida, lhes ficou da burguesia do século XIX. A diferença entre as gerações
também é notável: hoje em dia, os jovens que dormem nus são certamente mais numerosos do
que os pais.
No século XVIII as opiniões sobre o traje de noite ainda estavam divididas. O puritanismo
exigia cobrir-se muito, a luta contra a masturbação exigia o mínimo de calor possível. Um dos
pontos sujeitos à discussão era: deve-se usar uma camisola ou calças? No fim do século XVIII,
Peschek atacou o uso das camisolas. Por que os rapazes e as moças de todas as camadas sociais as
usam? É um costume de monge que só convêm aos doentes; e quem pode saber o que se passa
debaixo da camisola? Mas como, na ausência da mesma, os órgãos genitais podiam ser tocados
facilmente, concebeu-se um traje antimasturbatório, especial para a noite; os adolescentes eram
encerrados numa espécie de camisa-de-força que se assemelhava a um saco. Em 1786, S. G, Vogel
propusera uma outra inovação, que iria resolver todos os problemas: "um fino calção de linho para
impedir tocar os órgãos genitais e salvaguardar o pudor". Virão nossos pijamas destes "finos
calções de linho"?
N. Elias mostrou como o tabu de dormir sem roupas favoreceu o aparecimento da
camisola. Num certo sentido, o tabu impregnou o vestuário com seu caráter reprovador; a
camisola passou, portanto, a se associar ao aspecto negativo da nudez e à necessidade de
escondê-la. Assim, apareceu um novo tipo de traje de noite com o objetivo de expulsar da
consciência sua origem e sua função, parecendo ser muito pouco destinado ao quarto de dormir e
assemelhando-se cada vez mais com os trajes diurnos. Nos meios puritanos a camisola acabou
sendo considerada como uma espécie de segunda virgindade. As pessoas casadas já não ousavam
despir-se uma diante da outra e tinham relações sexuais no escuro e vestidas. Do casal Robert e
Elizabeth Browning, célebre pelos ardentes poemas de amor que Elizabeth dedicou a seu marido,
conta-se que nunca se viram nus em toda a sua vida.

3. NUDEZ

Em geral, pensa-se que, no início do século XVI, a nudez não era objeto de tabus na vida
cotidiana e em momentos especiais. Dormia-se nu, as pessoas despiam-se e vestiam-se umas na
frente das outras; lavavam-se nuas, quer no interior da casa, quer num lugar público. A casa de
banho era o local de encontro dos eclesiásticos, dos burgueses e dos jovens de ambos os sexos.
Encontravam-se ali as pessoas apaixonadas, as prostitutas com os seus clientes. As próprias aldeias
tinham os seus estabelecimentos de banhos. Famílias inteiras iam ali por vezes, nuas ou seminuas.
Estar nu era algo socialmente admitido e funcionalmente justificado. Representava-se Cristo, Adão
e Eva, os santos, os príncipes, os eremitas no deserto, os anjos, os deuses e as deusas da
antiguidade ou os personagens do Antigo Testamento, total ou parcialmente, nus. Apreciava-se
também a nudez nas representações e nos espetáculos. Erasmo conta a este respeito que o
palanquim de Santa Genoveva era transportado, numa procissão, toto corpore nudi, por quatro
monges.
Tudo prova que a nudez não pertencia à esfera do pecado, da estimulação sexual ou do
voyerismo. Abalos emocionais, desmaios, situações traumáticas que aconteciam, principalmente
desde a segunda metade do século XVIII, entre os jovens, não existiam naquela época. Mas a
expansão da sífilis no século XVI deu origem a um tal choque que os estabelecimentos de banhos
foram fechados. Também o deslocamento do limiar do pudor e da excitação fez com que se
começasse a ver a nudez nos outros e a senti-la em si mesmo.
Esta passou a ser vivida como um estado de ameaça pessoal e a visão de uma pessoa nua
como uma violação da intimidade alheia. No século XVI desapareceu o nu não funcional; a partir de
sua segunda metade as pessoas insurgem-se cada vez mais contra o nu artístico. Pouco a pouco
desapareceu a nudez total, e, mais tarde, também a parcial. Na segunda metade do século XVIII,
moralistas e pedagogos progressistas protestam contra o nu artístico, por ser de fácil acesso aos
jovens. Se compararmos as belas representações anatômicas da Renascença com as de épocas
mais tardias, verifica-se que, nos séculos seguintes, a nudez só era representada quando
indispensável. Além disso, ao nu eram associados elementos que deviam acentuar o aspecto
funcional da representação, por exemplo elementos anatômicos ou médicos.
No interior da casa a nudez, a princípio, ainda era tolerada. A presença de amigos ou de
serviçais não causava embaraço, mas este costume também começou a desaparecer no fim do
século XVIII. A precocidade da burguesia no que tange a este processo tornou-se visível.
Provavelmente, o processo de formação de tabus era encabeçado pelos jovens dos extratos
médios. Nas escolas e pensionatos que freqüentavam, eram ensinadas as novas regras da boa
educação. Quanto mais nítida a separação entre o mundo dos adultos e o dos jovens, melhor se
conseguia criar para estes um mundo purificado de toda a nudez, ao qual as gerações seguintes
poderiam se ajustar espontaneamente.
Na luta contra a nudez observa-se o mesmo desenvolvimento "lógico" encontrado na
proibição de dormir a dois. A regulamentação dos banhos no Sena conheceu diferentes etapas:
a) todos se banham nus e juntos; b) as mulheres passam a ter um lugar reservado para elas
enquanto os homens podem se banhar em qualquer parte; c) passa a haver também um lugar
reservado aos homens, onde podem banhar-se nus; d) pouco a pouco, torna-se obrigatório o uso
de uma espécie de roupa de banho (caleçon). É claro que nesta progressão outras fases se
intercalam. Entre 1730 e 1749, os comboieiros de madeira que atravessavam Paris no Sena já não
tinham o direito de fazê-lo nus. No século XVIII, as pessoas ricas e a alta burguesia já não iam aos
banhos públicos. Havia, para eles, estabelecimentos especiais muito procurados, com água quente,
por onde era costume passar antes de se ir ver a amante.
O retrocesso da nudez teve por consequência o aparecimento de um problema artificial, já
que (segundo Freud) a curiosidade sexual leva ao desejo de conhecer as partes escondidas do
objeto sexual de outras formas, a fim de que seja possível alcançar uma representação completa
deste objeto. Esta curiosidade, no entanto, não só apresenta dificuldades em ser satisfeita, como é
moralmente reprovada. Na segunda metade do século XVIII, a simples verbalização de um
conhecimento sobre o corpo já era considerada escabrosa. Olhar o corpo dos outros era;
impossível; os pedagogos proibiam até que se olhasse o próprio corpo. Os educadores
progressistas mostravam aos jovens cadáveres de crianças ou esqueletos.
Para combater a insegurança com relação ao corpo humano, começou-se a incentivar uma
nudez consciente. Este movimento se fundou principalmente em argumentos higiênicos. Lorde
Monboddo, juiz escocês do século XVIII e pioneiro das Pléiades modernas, propagou o nudismo, a
que deu o nome de "airbaths". No princípio do século XIX, Jean Paul escreve que as crianças
deveriam correr e brincar nuas como nos tempos antigos dos germanos e dos gregos. Em sua
opinião, o principal motivo seria desenvolver a resistência física. Mas, nas experiências
pedagógicas do fim do século passado, a nudez já era recomendada como terapêutica e meio de
informação. Em 1913, em Berlim, fundou-se um círculo Monboddo, para a cultura harmoniosa do
corpo e do espírito. A nudez tornou-se o privilégio e o sinal distintivo de uma certa elite.
O fato da nudez, enquanto experiência quase cotidiana, ter regredido, aumentou a
estimulação erótica. O nu tornou-se chocante, sugestivo, sedutor. Observa-se um clímax na
revelação, que corresponde ao seu desenvolvimento cronológico. Alguns elementos foram
reprimidos antes e com mais força que outros. Tal clímax também está presente no aumento das
emoções sexuais. Aqui se insere o strip-tease. Como o decote só é excitante quando a nudez dos
seios é tabu — o que não é válido para a maior parte da humanidade, porque o culto do seio é
tipicamente ocidental — o striptease tradicional só deve o seu efeito aos véus. No entanto,
emoções muito fortes podem matar o erotismo. Quando Goethe viu pela primeira vez uma mulher
nua, a sua emoção foi semelhante à que teria sentido frente a um monstro.
Quanto mais o nu desaparecia da vida pública, mais era encontrado na arte. Antes dos
séculos XV e XVI era justificado pela necessidade da reprodução exata do modelo; depois do século
XVI a arte parece ter passado a servir de escapatória ao prazer do nu. O nu não existia senão pelo
amor ao nu. A influência da antiguidade sobre a Renascença certamente desempenhava um papel
importante, mas só o processo de modernização explica por que se conservou esta influência e
não outras: A revalorização do nu só era possível sob a proteção do carisma artístico; esta
revalorização era motivada por um desejo de beleza estética.

4. APARECIMENTO DO PUDOR SEXUAL

Quando era hábito — como no fim da Idade Média e ainda no século XVI — comer a carne
com as mãos, de um mesmo prato, beber o vinho numa mesma caneca, servir-se da sopa numa
mesma panela, os homens mantinham relações com os outros e com o próprio corpo
completamente diferentes das que são mantidas hoje em dia. Não havia uma parede invisível
entre o corpo de cada um e o dos outros, entre a sua consciência e o seu corpo. Quando os
homens sabem aceitar as funções do corpo e também apreciá-las, quando não ficam constrangidos
com as funções fisiológicas de seus órgãos, dificilmente se pode afirmar que renegam seu corpo.
Se a estima do corpo implícita é grande, diminui a possibilidade do surgimento de sentimentos de
vergonha. A expansão do sentimento de vergonha é, antes de mais nada, uma conseqüência da
mudança da estrutura social.
Numa sociedade ou num grupo onde os estratos sociais estavam nitidamente divididos,
quem pertencesse a um escalão superior não deveria ter vergonha de guardar para si a melhor
fatia das coisas; muito naturalmente quem estivesse num escalão inferior desempenhava o seu
papel e guardava a sua reserva. Uma pessoa dos estratos superiores que se despisse na presença
de seu subalterno não estaria se diminuindo, por ser pouco dependente deste. Não tinha pudor
porque não havia ameaça. Os reis franceses e os grandes senhores do século XVII recebiam seus
subalternos mais importantes no seu quarto de dormir, na sua cama, ou até na sua chaise percée.
A amante de Voltaire, a marquesa de Châtelet, não via mal algum em mandar que seus lacaios
atirassem um jarro de água quente por entre as suas pernas, sentada na banheira, completamente
nua. Todo o mau pensamento era excluído porque, aos olhos dos servidores, ela não era uma
mulher, e o servidor não era um homem, mas sim um lacaio.
O processo de modernização deu ao retrocesso da nudez uma direção bem determinada.
Como a zona genital oferecia o maior motivo de pudor, surgiu a Pléiade de que o primeiro
vestuário devia cobrir as partes pudendas. Mas, nos grupos que não estavam submetidos a
qualquer corrente de influências, a prática foi, com freqüência, muito diferente. Nas zonas
agrícolas as crianças andavam seminuas até os doze anos e pouco se preocupavam em cobrir o
sexo. E, quando se inventou uma nova espécie de roupa para reprimir a masturbação, propôs-se
que os rapazes e as moças usassem, até os quinze anos, uma saia larga, sem calças. Cobrir o sexo
não era lá coisa muito importante. Não esqueçamos que até o século XIX a roupa era muito cara;
limitava-se, pois, a um mínimo, que era usado até se gastar por completo. Como as casas não eram
suficientemente aquecidas, usavam-se, de preferência, roupas compridas; no entanto, os que
trabalhavam usavam roupas curtas, para poderem se mover facilmente. Diz-se que, no século XVI,
o camponês usava mais "botas que calças". É demasiado simplista medir quantitativamente a
nudez. A fórmula "quanto mais pobre se é, mais nu se anda" só vale para os tempos de miséria.
Mas também nesse momento o corpo a descoberto ainda não é nudez. O pobre tinha mais
vergonha da sua pobreza do que da sua nudez.
Concepções mágicas, como o fato de se defender contra as forças maléficas, também
reforçavam a opinião favorável ao encobrimento dos órgãos genitais. Existem provas de que, em
épocas anteriores, o genital era menos sujeito a tabus. No século XV, por exemplo, o traje
masculino acentuava de forma notável o sexo do homem (a braguette): através do traje via-se a
parte coberta. Até o fim do século XVIII, as mulheres e as jovens não usavam calças, nem no campo
nem na pequena-burguesia das cidadezinhas. Casanova observa nas suas Memórias que as criadas
não usavam calças debaixo dos seus amplos vestidos, a não ser quando tinham que subir numa
escada. Provavelmente naquela época, o pudor não era tão sexual, o sexual não era tão genital, e a
simples visão dos genitais não tinha consequências tão destrutivas, tanto para o observador como
para o observado.
Com a expansão do puritanismo, a primeira vestimenta que se concebeu para esconder a
"nudez" — como Adão e Eva depois da queda — foi uma calça ou uma espécie de saia. A sequência
das partes do corpo que foi preciso esconder é característica. Em primeiro lugar, o órgão genital é
coberto de tabus. A partir do século XVII começa-se a rodear, o seio feminino de pensamentos de
vergonha. No século XVIII ainda reina alguma incerteza em torno do seio dos homens e dos
rapazes. Vieram depois todas as partes do corpo. Esta evolução acompanhava o clímax da
estimulação, que, por sua vez, era culturalmente influenciado por ela. O mesmo ocorria com a
sequência do vestir e do despir, com a gradação do sentimento de pecado, da nudez e dos toques,
como eram colocados por certos grupos cristãos. Tratava-se de uma progressão genitalmente
centrada. Em outras épocas e em outras culturas observava-se um outro tipo de sensibilidade.
O pudor sociogênico estendeu-se a todo o corpo. Um dos extremos desta evolução é o
traje de banho completo, dos homens e dos rapazes, antes da Segunda Guerra Mundial. Ao mesmo
tempo, o pudor estendia-se pouco a pouco ao vestuário, às roupas íntimas, aos lugares onde se
fica nu ou quase nu. Os fenômenos que se ligavam ao pudor eram de natureza principalmente
gênito-sexual, mas, do século XVII ao século XVIII, são colocados na esfera sexual fatos e situações
que lhes são praticamente estranhos, como a defecação, a amamentação, a higiene do corpo, etc.
Esta escala é tão nova para os adultos como para os jovens. Na prática, certas situações eram
"esquecidas". Assim, no século XVIII é ainda normal que, numa escola mista, um rapaz ou uma
moça se dispam parcialmente em presença de todos para receberem um castigo físico. Alguns
textos mencionam até o fato de, em certas regiões, os jovens da burguesia exporem e acariciarem
seu sexo na frente dos adultos; ninguém achava esta situação indecente. No século XX o corpo
pouco a pouco se descobre em ordem inversa.
A partir do século XVI, nos países ocidentais, a nudez é, de início, igualada à sexualidade, o
que não é evidente. A nudez era, antes de mais nada, vivida e encarada como nudez genital; a
repressão contra este tipo de nudez (e de indecência) reforçava a Pléiade de que nudez,
genitalidade e sexualidade eram quase a mesma coisa. Por outro lado, a associação estabelecida
entre o privado e a nudez faz aparecer a concepção, discutível, segundo a qual o setor mais íntimo
do homem seria o físico, o sexual, e não o psíquico, o espírito. Não é possível indicar a razão pela
qual a nudez feria mais o pudor do que as manifestações, por vezes organizadas, durante as quais
eram expostos coletivamente sentimentos poéticos/religiosos ou outros.
A amplitude do campo no qual se originam os sentimentos de pudor também sofreu uma
mudança; a conseqüência disso, de uma forma geral, foi uma educação anti-sexual e anticorporal.
A princípio, esta referia-se apenas à obrigação de cobrir o sexo, a menos que a nudez fosse
funcionalmente justificada; para o banho, a higiene ou as necessidades naturais. Ao final desta
evolução, nos séculos XIX e XX, verificava-se que tanto os jovens quanto os adultos já não ousavam
despir-se na frente do médico, banhavam-se de camisa e desprezavam sua higiene genital. Da
mesma forma que os missionários mais tradicionais davam aos pobres primitivos certos preceitos
morais que não eram compreendidos pela população, e, portanto, não chegavam a ser adotados
senão por alguns jovens, também se pode deduzir dos textos de pedagogia moral que os jovens
não compreendiam o sentido das novas regras, tornando necessária uma descrição pormenorizada
de certos comportamentos. Além disso, novos elementos foram acrescentados. Em 1729, La Salle
proibia que se falasse das partes do corpo circunscritas pelo pudor, coisa que Erasmo ainda
autorizava. Por fim, tomaram-se medidas referentes ao vestuário e às roupas íntimas, ao
comprimento das saias, das mangas e das meias; à forma do busto, aos decotes, à largura das
coxas, dos quadris, à textura dos tecidos; em suma, cada tipo de roupa passou a ter seus pequenos
tabus (e, ao mesmo tempo, sua possibilidade de sedução). A roupa masculina também foi
regulamentada, embora em menor escala. Essas numerosas prescrições a serem diariamente
seguidas possuíam uma grande influência anti-sexual e anticorporal. A possível influência de uma
educação sexual verbal era menor quando comparada com as centenas de regulamentações
relativas ao sentar, andar, ficar de pé, inclinar-se, cruzar as pernas, levantar-se de uma cadeira
baixa, vestir-se e despir-se numa ordem dada, poder ficar nu durante um momento determinado
num lugar determinado, olhar para os outros, olhar para si próprio e admirar as obras de arte.
Uma das conseqüências não previstas disso tudo foi o constante estado de "alerta" que os jovens
se viram obrigados a manter, o que significava estar sempre se recordando do que era considerado
indecente: o perigo a combater suscitava, portanto, um interesse maior do que seria de se esperar
em circunstâncias mais liberais e sem regulamentação. A juventude cabia seguir essas regras sem
pensar; a tentativa de conversar sobre suas razões teria sido, repelida como indecente. Seu
enraizamento foi tão profundo que seu descondicionamento requeria muito tempo e, às vezes, só
era atingido parcialmente.
Se estudarmos a situação no século XVIII, vê-se que o objetivo dos pedagogos moralistas
era quase o mesmo que em épocas anteriores, embora houvesse incerteza quanto a que meios
empregar.
Sob este aspecto, pode-se distinguir diferentes grupos, cada qual com a sua estratégia. Os
educadores do tipo antigo, como M. A. von Winterfeld, preferiam uma educação discreta, com um
mínimo de pudor: seria preferível dar a conhecer aos jovens coisas consideradas como fora de
propósito nos meios puritanos e, de qualquer modo, impossíveis de serem evitadas; a melhor
educação sexual seria oferecida "in natura ou através do olhar". Esta concepção, outrora
conservadora, é hoje progressista. O filantropo J. H. Campes corrigia este "erro" numa nota: o
pudor nos é absolutamente necessário, "a nós, que não somos selvagens". O pudor devia ser
despertado o mais cedo possível, de modo a não ser necessário dar-lhe demasiada atenção nas
fases posteriores da vida. Segundo Campes, seria já no berço que, por razões táticas, a Pléiade de
vergonha deveria ser associada a outras partes do corpo. Portanto, este segundo grupo não deseja
mais do que uma extensão limitada do pudor, o que tem todas as vantagens da ignorância sexual e
a desvantagem, menor, de provocar um interesse excessivo pela sexualidade na idade em que a
sensibilidade é despertada.
Além dos pedagogos que de modo algum estavam interessados em condicionar o
sentimento de vergonha e dos que queriam educar as crianças de uma forma tão anódina quanto
possível, alguns rejeitavam todo o condicionamento, em primeiro lugar porque era impossível
educar para o pudor sem feri-lo e, por outro lado, porque a criança e o adolescente deviam ser
absolutamente insensíveis. Evitar-se-iam problemas fundamentais, pois a criança não deveria
experimentar sentimentos de vergonha, mas sim estar livre deles. Numerosos pedagogos
moralistas que procuravam o ideal da criança inocente, por exemplo Rousseau, adotaram este
ponto de vista. O homem primitivo não sentia qualquer vergonha; a fortiori, a criança primitiva
também não, porque nem sequer possuía a Pléiade do mal. Qualquer educação significaria sujar e
provocar. Por isso Rousseau preferia a utilização de "palavras grosseiras" a circunlóquios de duplo
sentido, que, no entanto, são compreendidos pela criança e despertam a sua atenção. P. Villaume,
que também pertencia a este grupo, considerava o pudor como não natural e proveniente da
civilização. Para procederem bem, cabia aos educadores adotar uma atitude calma, não
pedagógica. Até a idade de três anos, deveria ser possibilitado à criança o emprego de todas as
palavras, devendo-se tratar as partes pudendas como qualquer outra parte do corpo, como o
rosto; deste modo se evitaria despertar uma atenção supérflua: "se quisermos exigir
absolutamente o pudor, que nos sirvamos então da limpeza".
Alguns pedagogos quiseram atingir o seu objetivo com um método digno de confiança, isto
é, inculcando na criança um sentimento de pavor: K. G. Bauer fala-nos de pais que avisavam os
seus filhos que um animal viria arrancar com os dentes seus órgãos genitais se estes não fossem
cobertos. Pedagogos progressistas já não concediam muita atenção aos genitais: atingiam o seu
fim indiretamente, recomendando rapidez no vestir e no despir, sem brincadeiras, olhares e, de
preferência, em meio a um completo silêncio.
A sexualidade passou a ser encarada como algo extremamente perigoso. O jovem
considerava a mulher e a jovem como seres "indignos de confiança", que emitiam uma força
mágica quando as pessoas se aproximavam muito delas. O jovem e o adulto eram apresentados à
mocinha como cheios de más intenções; só as mocas ingênuas não se apercebiam disto. O medo
era inculcado nas mocinhas: medo da masturbação, das relações sexuais pré-conjugais, do banho,
dos livros, etc. K. G. Bauer ia ainda mais longe: inculcar-lhes este sentimento de medo nem sempre
era eficaz, porque os sedutores hábeis expunham as medrosas ao ridículo: desta forma, os jovens
audaciosos eram incitados a mostrar seu destemor. A base da educação do pudor deveria ser a
aversão e o escândalo. O elemento voluptuosidade deveria ser separado da sexualidade. Como se
pode retirar à criança o prazer de tocar o seu sexo? A esta pergunta que P. Villaume fez em 1787,
respondeu Bauer: despertando nela a repulsa. Cadáveres eram, então, mostrados aos
adolescentes, com o pretexto de informá-los, mas, na realidade, para despertar sua aversão.
Rousseau, que não recuava perante os paradoxos, defendia tanto a inocência ingênua como a
repulsa. Uma linguagem inofensiva tinha por função evitar, na criança, uma curiosidade perigosa.
Além disso, era preciso empregar uma linguagem crua, e associá-la a pensamentos aversivos, deste
modo se conseguindo asfixiar a fantasia. Todo o desejo de pensar no sexo devia ser aniquilado pela
aversão assim provocada. Trinta anos depois de Rousseau, a aversão pelo genital e pela zona anal
misturavam-se intimamente. "O pudor das crianças deve consistir na repulsa pelas partes do corpo
que conhecem como instrumentos de excreção." O mesmo ocorre com a repulsa mágica do
sangue menstruai e do esperma. "Por quê? Por um lado, porque os órgãos genitais são utilizados
como instrumentos de evacuação das secreções supérfluas e sujas, principalmente na mulher; por
outro lado, porque o fato de dormir a dois é uma falta de asseio repugnante" (Bauer). Para
Blumenbach, um melhor resultado seria atingido com a apresentação do "sexo como uma porcaria
repugnante". Segundo a concepção do pedagogo sexual S. G. Vogel, o sexual, isto é, o imoral,
deveria "ser explicado como uma porcaria repulsiva".
Em fins do século XVIII os preceitos válidos para os jovens burgueses estavam praticamente
estabelecidos. Nos séculos XIX e XX foram ampliados de forma a atingir outras camadas. Apareceu
assim um modelo geral de ética sexual que, sem qualquer risco, permitia contatos entre as
diferentes camadas da população. As crianças burguesas, moralmente salvaguardadas, podiam
agora brincar com outras crianças burguesas. Logo que os valores burgueses conquistaram as
outras classes sociais, graças à educação, os filhos da burguesia puderam brincar sem perigo com
os filhos de operários "bem educados". O alastramento do ideal sexual burguês se constituía numa
prova da integração crescente da sociedade industrial, do alargamento da cadeia de
interdependência, do contato que aumentava entre as diferentes camadas. A partir dos "contatos
feitos à distância" entre alguns locii sociais (enclaves do patriciado urbano) que não formavam um
continuum geográfico, cresceu, aos poucos, um modelo uniforme. Com isso, a separação das
outras classes inicialmente aumentou. Mas o fato desta minoria, na qualidade de grupo dirigente,
comandar influências poderosas, fazia com que o que antes era uma diferença de classe da elite
urbana ultrapassasse os limites urbanos, passando a influenciar outras classes e os demais locii.
Desta forma surgiu um modelo sexual geral que passou a ser o único modelo moralmente
reconhecido. Os comportamentos e os valores das outras classes deixaram de ser julgados segundo
a significação que tinham para estas classes. Uma classe que sabia manejar a alavanca do poder se
distanciava fanaticamente das outras classes e as submetia. Fora desse modelo burguês, nenhum
outro era tolerado. O condicionamento no interior da célula familiar era tão forte que, mesmo na
fase adulta, já não era possível um descondicionamento. Assim, apareceram gerações sucessivas
com um posicionamento frente ao sexual idêntico e quase patológico. No lugar da antiga
endogamia somática, que se dava em círculos relativamente fechados de casamento e reprodução
(os Isolate), apareceu a disciplina inter e até intrapsíquica. A família se fechou para o mundo
externo e, já que a dessociabilização na sociedade dificultava a receptividade para novos contatos,
podemos falar de uma herança de modelos de comportamento.
Neste domínio, como em muitos outros, podemos reiterar as questões que levantamos no
princípio deste estudo. Deve-se conceder uma grande importância à ruptura com a ética vitoriana?
Nas opiniões anteriormente citadas reencontramos de novo a atitude característica do século XIX:
"sex is dirty". No século XIX não se falava de sexualidade e os adultos não faziam senão adotar o
modelo em que tinham sido educados os jovens do século XVIII. Sentimos algo de uma reação
contra a assim chamada "perda de rédeas"? Se supomos isso, então temos que dizer que o pessoal
se rebelava somente contra a perda de controle dos jovens. E onde está a influência cristã deste
modelo? Provavelmente ela aconteceu implicitamente. Mas essa moralização somente no século
XIX apareceu, em primeiro plano, envolta em um manto de cristianismo. No século XVIII falava-se
continuamente em virtudes burguesas. A moralização, aliás, era quase exclusivamente exercida
por leigos que culpavam a indiferença dos eclesiastas. Alguns desses leigos, como por exemplo
Rousseau, eram totalmente anti-religiosos.

5. APROXIMAÇÃO SEXUAL

A expressão direta e aberta dos sentimentos é, pouco a pouco, substituída por uma atitude
fechada e secreta. Era possível observar esse fenômeno em vários campos: na arte, nos usos e
costumes, nos textos de músicas, no desenvolvimento do vocabulário, nas determinações e ordens
de alçadas seculares e espirituais e outras. Quando são considerados comportamentos como a
violação, o rapto, a venda, o sorteio das mulheres, costuma-se pensar que o homem da Idade
Média era mais livre. No entanto, é mais exato falar de uma atitude mais direta que está vinculada
à posição de poder de cada um. Um cavaleiro da Idade Média seria ridicularizado se não tivesse
violado uma jovem que lhe agradasse, ao encontrá-la só, fosse onde fosse. Muito depois da Idade
Média, os senhores achavam normal exercer o direito de possuir as filhas dos camponeses. Isto,
porém, só era permitido às pessoas de classe social elevada. Também era limitada a liberdade do
cavaleiro que julgava poder fazer o que quisesse com uma jovem indefesa: um senhor mais
poderoso tinha o direito de impedi-lo ou "castigá-lo". A aquisição de qualquer coisa pela força lhe
era, igualmente, limitada. Logo, num certo sentido, tinha apenas a liberdade do guerreiro em ação
na guerra ou do caçador furtivo perante o guarda florestal: sua liberdade era limitada pelo
constrangimento.
Na Idade Média, o contato com os órgãos do outro sexo não era apenas visual, pois "em
parte" a aproximação sexual homem-mulher desenrolava-se publicamente. Podemos ver em
quadros dos séculos XV e XVI, por exemplo, um jovem tocar o seio e o sexo de uma moça, cena
que podia ser observada pelos músicos que se encontravam à sua volta ou pelas pessoas da
galeria. Estes pormenores não podem ser considerados, de um ponto de vista anacrônico, como
obscenos ou maliciosos. (No fim do século XIX, A. Schulz considerou "exageradas" certas cenas de
miniaturas e via nelas a expressão da predileção do homem frustrado da Idade Média pelas
"grosseiras brincadeiras de mãos".) O miniaturista representava a sexualidade como o fazia com
outras cenas normais ou notáveis (caça, torneio ou ceifa). Encontramos os mesmos pormenores
em quadros (também no século XVII) de festas populares, casamentos, cenas de rua, etc., e
verificamos sempre que as crianças assistem a estes acontecimentos. Os textos de velhas canções
populares que os jovens podiam ouvir e cantar também não escondiam quase nada acerca das
ligações entre homens e mulheres. Numerosos livros de canções populares dos séculos XVI e XVII
seriam hoje considerados pornográficos. Obras em que trabalhavam escritores conhecidos mal se
distinguem da chamada literatura popular. A mesma observação é válida para os espetáculos e as
trovas da Idade Média e do século XVI. Por toda a parte reinava a mesma franqueza e a mesma
espontaneidade.
Nos encontros, nas conversas ou na dança, as pessoas se entregavam a contatos íntimos.
Num texto de Guiler von Kaiserberg pode-se ler: "São numerosos os que julgam não poder falar
com uma mulher sem lhe tocar o seio: é muito inconveniente". Robert de Blois, jongleur trouvère
do século XIII, dá-nos pormenores sobre este assunto no seu livro moralizador O Castigo das
Damas. Adverte sua filha contra diferentes coisas: deixar-se beijar na boca, permitir que lhe
toquem os seios, despir-se diante dos homens, deixar-se levar "por orgulho" a descobrir um seio,
uma perna ou uma coxa. Um século mais tarde, o cavaleiro de La Tour escreve Le Livre du Chevalier
de Ia Tour Landry para as suas duas filhas, que atingem a idade da puberdade. Este livro educativo
foi lido durante séculos. Em 1493 foi traduzido para o alemão e reimpresso onze vezes ate 1682. O
autor pressupunha, evidentemente, que suas filhas estivessem perfeitamente informadas acerca
dos problemas sexuais. Numa das histórias instrutivas fala de um casal de adúlteros que, numa
igreja, não puderam separar-se depois do ato sexual (penis captivus), o que fez com que todos os
presentes percebessem sua relação. Numa outra passagem aconselha suas filhas a criarem com os
seus próprios filhos os filhos que o marido tivesse de uma outra mulher. Também as aconselha a
nunca ficarem a sós com um padre, salvo para se confessarem.
Esta franqueza era verdadeira e sincera. Os jovens não eram excluídos dela, pois ainda não
estavam separados do mundo dos adultos. Jacqueline Pascal tinha doze anos quando escreveu os
seus poemas sobre a gravidez da rainha. Em numerosos livros sobre o casamento, que, segundo o
autor, eram também destinados aos jovens, os textos e as ilustrações sofriam muito pouca
censura.
Carecemos dos estudos necessários para traçar um quadro das transformações ocorridas
depois do século XVI. Podemos apenas traçar suas linhas mais gerais. A nova decência era exigida
mais para a mulher que para o homem. A repressão quanto à terminologia, as regras da decência,
as sanções sociais e outras eram particularmente dirigidas contra os órgãos genitais e a relação
sexual. Mais tarde o tabu estendeu-se também às formas não coitais e não genitais, como a dança,
os beijos e o tocar o seio de uma mulher. Acabou finalmente por abranger partes do corpo cada
vez mais numerosas, como também qualquer tipo de contato entre os dois sexos. Este processo
era paralelo à evolução referente ao quarto de dormir, à cama, aos companheiros de cama, à
nudez e ao pudor. Nos meios de nivel mais elevado e na classe média, o recato foi primeiro
reservado aos jovens, Só sendo seguido pelos adultos posteriormente. Estes começavam por sentir
as barreiras do pudor frente a estranhos, depois frente a crianças e parentes, e, finalmente, entre
si e frente a si mesmos.

6. BASTIDORES DA LINGUAGEM SEXUAL

A sexualidade também se dissimula nos bastidores da linguagem. O tabu estendeu-se, a


princípio, à alusão direta: as cenas de coito ou a função dos genitais não deviam ser verbalizadas.
Depois, as partes sexuais deixam de ser explicitamente nomeadas. Muito mais tarde, outras partes
do corpo vieram a tornar-se tabu. Os escritores serviam-se do silêncio "por amor à decência", mas
a reserva prometida era às vezes tão insistente que parecia quase indiscreta. Este comportamento
recordava a incômoda folha de parreira dos artistas clássicos.
P. Bayle corrigiu algumas passagens do seu Dictionnaire Historique et Critique (1695-1697)
e empregou também (pela primeira vez na História?) reticências e pequenas cruzes. Durante o
século XVIII, os circunlóquios por vezes amaneirados passaram a ser cada vez mais comuns;
procurava-se, contudo, empregar uma terminologia mais exata nos textos com tendência
científica. Palavras como mois ordinaires, fleurs foram substituídas por règles menstrues e a
expressão camponesa mère passou a ser matrice. Também no século XIX continuaram-se a
empregar alusões indiretas e sugestivas para falar do sexo. G. R. Taylor fala da "enorme
sensibilidade verbal" da época vitoriana. Nem mesmo a expressão the naked eye era tolerada.
O desenvolvimento do vocabulário sexual segue uma linha clara. No século XVIII, a área
periférica à sexualidade foi cada vez mais sexualizada semanticamente através do uso simbólico ou
analógico de certas expressões. Por outro lado, surgiu um enorme vazio no centro devido à
expansão semântica gênito-fugal a partir do núcleo, o qual passou a ser objeto de uma gravitação
semântica por parte de palavras que escondiam a sexualidade. A sexualidade psiquico-primária
era, assim, coberta por palavras simbólicas e a periferia não sexual, sexualizada por palavras que
tinham perdido a sua primeira significação. Contudo, em fins do século XVIII ainda não se podia
falar do conceito de "sexualidade". Não aparece nem nos dicionários de Grimm ou de Littré, nem
em qualquer outra literatura da época. No século XX torna-se necessário ao homem culto aprender
uma nova linguagem para poder falar da sexualidade. Esta linguagem vinha de expressões médicas
latinas, recomendadas em 1800 por Heusinger, ou de conceitos americanos. A preponderância da
terminologia fisiobiológica e psicoindividual é notável. Já que a superação de tabus, inibições,
refreamentos ocorre mais facilmente numa linguagem diferente daquela na qual se deu o
condicionamento, é muito possível que a revificação hodierna do sexual se expanda no momento
em que se tem a coragem de empregar uma outra linguagem que não a nobre-burguesa. O amplo
uso dessa terminologia popular pode, em parte, esclarecer o sucesso e a utilidade de algumas
obras literárias.
Não surgiram expressões para substituir as primeiras que desapareceram durante o
processo de encobrimento. Também desaparecem a gradação terminológica para o adulto e a
criança; é se, portanto, obrigado a falar de masturbação nos bebês e de tentativa coital nas
crianças de baixa idade. Ao lado desta linguagem encontra-se um calão e diferentes linguagens
especializadas, próprias dos médicos, das prostitutas, etc. A semântica comparada e a
psicolingüística fornecem o material a partir do qual se pode obter a especificidade relativa ao sexo
numa dada cultura. Podemos verificar que a tribo americana dos Nahuas não possuía uma palavra
para o conceito "amor". Na linguagem dos antigos peruanos, o quíchua, havia seiscentas maneiras
de combinar o verbo munay, que significa "amar". No Ocidente atual emprega-se a palavra
"amor", cujo sentido não é claro. Na antiguidade grega havia dúzias de expressões para descrever
este conceito de forma diferenciada. Na China o sexo feminino é chamado "a porta da criação"; em
outro lugar a gravidez é denominada "o encher do ventre". A mulher é "aquela que tem seios".
Irmãos e irmãs são "pessoas de um mesmo ventre”. As línguas bare'e e marindi (entre outras)
possuem numerosas alternativas para descrever o seio, a forma do seio, a do mamilo, as funções
do seio e dos genitais. Só nos casos em que os elementos mágicos desempenham algum papel é
que são empregados eufemismos como "os membros íntimos".
As conseqüências desta lenta eufemização são importantes. Como a expressão coito foi
primeiro reprimida na linguagem pública, não sobrou nenhuma daquelas expressões antigas que
podiam ser usadas com decência.
Os educadores, os pedagogos exigiram uma censura. Remetiam os textos clássicos para as
escolas e escreviam histórias edulcoradas para os adolescentes. Rousseau achava que os textos
bíblicos não podiam ser corretamente traduzidos para a língua francesa, por ele considerada como
a mais obscena. Queria até proibir às crianças a edição expurgada da Bíblia, que, em conseqüência
do constante aumento do limiar do pudor, também se tornara inutilizável. Estes pedagogos
opunham-se ao emprego de expressões equívocas, levianas ou obscenas, utilizadas pelos pais e
pelos adultos na presença das crianças ou em discussões com os jovens. Assim os pedagogos
tornavam o problema da informação sexual mais agudo, porque a ignorância aumentava, ao passo
que as possibilidades de informar os jovens diminuíam. Em 1766, Rousseau mal encontrava
palavras para se exprimir; uma única palavra errada podia responder pela saúde física e moral de
toda uma vida. S. G. Vogel escrevia, em 1786, que "uma só palavra inconveniente excita muitas
vezes o sexo". Esse desenvolvimento alcança, momentaneamente, seu limite nos textos de Rehm,
de 1802, nos quais ele não falava do pênis, mas "da parte pela qual o corpo deixa sair uma certa
secreção". Para a jovem, o princípio da menstruação é "o momento em que a natureza do ser
humano se modifica". A expressão "dar à luz" não era jamais pronunciada, falando-se, em vez
disso, do "instante em que se é feito ser humano" ou da "entrada de um ser humano no mundo".
Num texto de 1790, também se falava de "certos membros do corpo masculino". Quando lemos a
literatura do século XVII, ficamos chocados com a tranqüila e jovial atmosfera que deles emana;
dão-se ali conselhos que se deve seguir da melhor maneira possível para viver de uma forma
sensata. A preocupação moral não existe. As plantas, os animais e os homens acasalam-se na
alegria e no prazer. A gravidez é dolorosa para as mulheres "mas a natureza fez bem as coisas,
porque o seu prazer é duplo". A relação dá "prazer". Fala-se de uma forma não genital sobre
"Vênus", "mouvements du coeur”, "prazer sexual", "voluptuosidade" e "les plaisirs de l'amour". À
masturbação dá-se o nome de "les plaisirs solitaires''. Deitar-se com uma prostituta é, em 1681,
"gozar alegremente com alguém". Um adultério é uma "amourette" e uma aventura extraconjugal
é uma "conjonction passagère". Os genitais da mulher, por volta de 1570, são seus "estímulos
amorosos" (mas também "les parties honteuses"). Uma jovenzinha é, em 1802, "uma virgem
florescente". Em 1787, Vogel ainda fala dos jogos do amor, do desgosto de amor e das "doces
alegrias" do casamento. No livro estranho de Venette lê-se, a propósito dos "divertimentos do
amor": "A garganta do ventre matriz (útero) suga tão docemente o sêmen, para dentro de si
durante o jogo do amor que este jorra do pênis do homem".
No século XX certos educadores falavam das plantas e dos animais, para não terem que
falar dos homens. De um ponto de vista histórico, a série planta-animal-homem é muito antiga.
Como a história da cegonha e da couve, de início não tem nada a ver com uma reação de fuga.
Restos de um animismo primitivo estão indubitavelmente contidos na analogia planta-animal-
homem. Seus vestígios ainda são encontrados nas crenças populares que datam de um passado
recente. Já falamos da concepção dos antigos em que a oposição entre o homem, a planta e o
animal não existia. Podemos imaginar que, à falta de conhecimentos biológicos suficientes, se
utilizassem de analogias. Assim, Aristóteles escreveu que o corpo, durante a puberdade, florescia
como uma planta. Confessa ter tirado esta comparação de Alcméon de Crotona. Poemas do século
XVII comparam o homem e a mulher a árvores machos e fêmeas que se desejam uma à outra. A
semente masculina penetra na árvore feminina. Se tal poesia tivesse sido escrita no século XIX, ter-
se-ia tomado este simbolismo por uma pudicícia vitoriana.
O sueco Karl von Linné (Lineu, 1707-1778) procedia ao contrário: não ia da planta ao
homem, mas do homem à planta. Não só criou uma nova linguagem científica, como também
sexualizou a reprodução das plantas. Esta nova hipótese pode ser explicada pela concepção acima
mencionada, mas talvez também pela expansão que a sexualidade teve no seu tempo. Este autor
foi acusado de indecência porque na sua terminologia muitos sistemas de estames "vivem em
concubinagem" com um só ovário comum. Tratava-se de uma injúria à flor e a Deus, que não pôde
evitar uma tal torpeza.
Não esqueçamos que nesta época certas descobertas científicas referentes à natureza
encontravam no homem um grande eco moral, pois a natureza era tida como modelo. Para o
homem do século XVIII continha ela dois elementos: o elemento educativo, instrutivo, exemplar,
que devia ser divulgado entre os homens, e o elemento não construtivo, que devia ficar
dissimulado. Dizia um botânico de São Petersburgo que não se deveria falar aos jovens do sistema
impuro de Lineu, não por uma questão de pudor, mas para protegê-los contra influências nefastas.
Num período de moral reprodutora, a associação planta-homem constituía uma boa
justificativa. Com isso, o sexual conservou um certo status. Em comparação com as descrições
conscientemente consideradas como repugnantes, o circunlóquio da poluição de Brehm se torna
ao leitor de hoje até poético: "nas suas partes sexuais a natureza separa, como do cálice das flores,
um líquido nobre do sangue, que é a semente de novas pessoas".
As consequências desta concepção são importantes para a informação:
a) a sexualidade não é situada no plano humano. Pode-se demonstrar estatisticamente
que, até aos anos de 1930, embora os escritos informativos da sexualidade genital tratem do
homem, falam vinte ou trinta vezes mais da do animal ou da planta; b) quando os jovens fazem
perguntas sobre a diferença dos sexos, sobre a origem das crianças, não querem ouvir falar de
estames e de pistilos nem de óvulos ou espermatozóides. Quando, à guisa de resposta, lhes são
dadas informações sobre plantas e aves, ou então esclarecimentos fisiológicos, isto é, aos quais
faltava clareza e visibilidade, suas perguntas ficam sem resposta. A sexualidade tem, sem dúvida,
um aspecto fisiológico e biológico, mas este aspecto não é o mais importante nem mesmo
tipicamente humano.
A EXPANSÃO DA CÉLULA FAMILIAR

1. EDUCAÇÃO E CÉLULA FAMILIAR

Numa sociedade aburguesada, a probabilidade de ascensão social estava ligada ao


recebimento de uma educação adequada; em outras palavras, era necessário aprender todos os
pormenores da nova maneira de comportar-se, que consistia em poder estabelecer com mais
facilidade contatos superficiais, habituar-se a ter um maior rendimento no trabalho e a conter seus
afetos. O conteúdo da educação se ampliava. A diferença existente entre um homem cultivado e
um ignorante tornava-se mais gritante; logo, a importância da educação fazia-se sentir de uma
forma cada vez mais nítida. Queimar etapas na sua formação era tido como um fator de admiração
e levava ao sucesso social. Isto implicava uma transformação na qualidade da educação: a célula
familiar desempenha um papel central na formação do "homem moderno" porque a construção da
célula familiar incentivava, então, as influências da psicologia profunda e a total reestruturação da
criança dirigida ao prazer, que era transformada em um ser que realiza.
No entanto, até o século XIX, era cada vez mais difícil para os pais garantir a formação do
novo homem, pois o novo modelo de comportamento lhes era estranho. Da mesma forma que os
adolescentes privilegiados do Terceiro Mundo tentam tornar-se homens ocidentais em
pensionatos ocidentais, nos séculos precedentes os pais mandavam os seus filhos para internatos.
Nestes internatos, já nos séculos XVII e XVIII, aplicavam-se preceitos como estes: não se sentar à
mesa com muita pressa, não demonstrar fome, não escolher o melhor pedaço, não limpar ou
cortar as unhas na frente de outras pessoas, não palitar os dentes com uma faca, não levar
qualquer coisa à boca e oferecê-la depois a outrem, não arrotar, não respirar com muita força, não
bocejar, espirrar, roncar, cuspir por cima da mesa ou apoiar-se só numa perna, não segurar a carne
com a mão inteira (é mais conveniente utilizar apenas três dedos) e não se despir quando não é
necessário. Há também uma longa série de regras relativas à intensidade e à duração do olhar, à
cadência, ao ritmo, à entoação e ao volume da voz, à maneira de rir, à cadência dos movimentos
do corpo, à posição dos lábios, dos braços, das mãos, das pernas, da cabeça e do tronco, à maneira
de se coçar, de limpar o nariz e os ouvidos, à maneira de falar do funcionamento do corpo e das
doenças, à expressão facial, à distância a observar perante os outros, à maneira de tocara outra
pessoa durante uma conversa, etc. O aspecto social é claro: quem não se conduzir com civilidade
não passa de um camponês. Segundo um texto de 1675, sentar-se na cama durante uma visita,
não abotoar bem a roupa, ser muito expansivo, balançar as pernas ou apoiar-se em alguém era
"d'une familiarité de gens de peu". Podemos reconhecer nestes preceitos as qualidades burguesas
características. Ser cultivado significa: dominar-se, ser paciente, não falar sem refletir, não se
mostrar tal como se é; é ter também deferência para com os outros. O que se chamava boas
maneiras era a arte de não incomodar os outros. Mostrar respeito, consideração, sensibilidade,
tato, pudor, guardar as distâncias, observando um comportamento um pouco solene, dirigir-se às
pessoas pelo seu título, evitando o tratamento na segunda pessoa do singular, obedecendo à
etiqueta. Como, em conseqüência da mobilidade cada vez maior, muitas pessoas já não tinham a
certeza do lugar que ocupavam na sociedade, era delicado não pôr em dúvida nem reivindicar o
lugar que um outro tomasse. O homem cultivado devia respeitar a sensibilidade dos outros,
distinguindo-se também por sua delicadeza perante reações físicas, reações que ferem o pudor, e
qualquer manifestação emocional violenta. Admitia-se uma certa agressividade, mas mais ainda a
arte de manifestá-la indiretamente. Os civilités, escritos que ensinavam o novo modo de se
comportar, inicialmente concediam pouco interesse à sexualidade, muito menos que a alguns
preceitos referentes ao ato de despir-se e ao sono. Três a quatro séculos mais tarde, a sexualidade
tornou-se o elemento principal, o único tema de inúmeros livros especializados. A princípio a
justificação das regras de conduta não era moralmente fundamentada. No entanto, pouco a
pouco, os conceitos "decente" e "indecente" tornaram-se categorias éticas e foram situados no
mesmo plano que os conceitos "bem" e "mal". Com isso, algumas normas para o relacionamento
social e para a maneira de viver higiênica foram totalmente colocadas no campo da ética.
O processo de expansão dos tabus na educação era irreversível. A educação é uma
necessidade funcional em todas as sociedades. Por esse motivo, a educação sexual publicamente
reconhecida, e a maneira de ver a sexualidade extraconjugal têm de fazer parte do campo dos
valores sociais. Poderíamos, com toda a naturalidade, chamar um outro posicionamento de não-
educativo, disfuncional e contrário ao ajustamento. Numa sociedade de valores sexuais negativos
não se pode encontrar senão atitudes negativas e repressivas (a respeito dos problemas sexuais
dos adolescentes). Todas as tentativas de educação sexual positiva se viam frente a um impasse,
existiam só no nome. Uma nova educação determinaria uma "emigração" para um mundo irreal;
quanto mais pró-sexual fosse, isto é, quanto menos tabus supérfluos impusesse, mais dificuldades
de adaptação apareceriam. Esta concepção permite explicar teoricamente o fato de, no século
XVIII, a educação sexual não poder ser senão anti-sexual. Aliás, não é a educação dirigida que mais
importa, mas sim a educação inconsciente, porque ela influi profunda e constantemente no
homem desde o seu nascimento, dando o exemplo de comportamentos vividos e possuidores de
uma base material e cultural. No que diz respeito à sexualidade, estas influências engendram a
acumulação de todos os elementos que cada homem — caso não os elimine da sua consciência —
considera, bem ou mal, como constituindo o problema da sexualidade. E não é apenas o conteúdo
da educação sexual que levanta problemas, o problema encontra-se igualmente no educador. Com
efeito, não é fácil educar crianças segundo princípios que não defendemos e nem podemos
defender. A educação acabou por complicar-se por ter de lutar contra necessidades vitais que não
se podiam negar. Só parcialmente era possível atingir o comportamento desejado, e só através de
um condicionamento constante. A partir do século XIX, em certos meios sociais, deixou de ser
considerado necessário tratar as primeiras fases da infância nos livros de educação (isto diz
respeito, por exemplo, à proibição de se despir, exceto em caso de absoluta necessidade). Estes
resultados eram atingidos através da educação inconsciente pré-verbal no seio da célula familiar.
O aumento da distância entre jovens e adultos tornava as tarefas educativas cada vez mais
pesadas e complexas. Não é necessário atribuir este maior distanciamento às novas ordens
*
religiosas, como o faz Ariès no seu estudo sobre a infância . Cada vez mais se recorria aos

*
N. do T.: O autor se refere ao livro L'Enfant et Ia Vie Familiale sous l'Ancien Régime, traduzido para o
português com o título História Social da Criança e da Família.
pedagogos, mas. estes, antes de mais nada, eram os executantes de uma tendência cultural
nascida do processo de modernização. Utilizavam, para este efeito, a corrente mais profunda,
fortifícavam-na e arrematavam-na. Esta corrente mostrou duas tendências: um maior domínio de
si nos adultos e uma infantilidade mais acentuada na criança. Enquanto bastasse uma
regulamentação moderada das emoções e não fosse obrigatoriamente necessário, para o adulto,
dominar-se como a boa educação o exigia (segundo o modelo ulterior), a distância entre a criança
e o adulto ficava reduzida. Os adultos da Idade Média conduziam-se mais como crianças (é ainda
este o caso em certas regiões com o seu processo de modernização em atraso); tinham o "sentido
da responsabilidade" reduzido; viviam o "dia-a-dia" sem se preocupar com a time-perspective; em
outras palavras, sua faculdade natural ou a imposição que deviam exercer sobre si próprios para
dominar seus instintos não era maior do que a existente na criança. Mas, quanto maior fosse, para
todos, a regulação dos instintos, mais se notava a diferença entre a criança, que ainda se
encontrava numa espécie de "estado de natureza", e o adulto, que está "acabado", quer dizer,
adaptado ao novo estado do domínio dos instintos. Esta distância acentuou-se continuamente
entre os séculos XVI e XVII. A sociedade carregava de angústia os componentes prazerosos de
certas funções corporais, reprimindo-os ou recalcando-os. Emoções de desagrado ou desprazer
eram as únicas socialmente admitidas. A criança devia sofrer um longo condicionamento, a fim de
entrar na posse do habitus psíquico próprio dos adultos. O aparecimento dos conceitos "criança",
"adolescente" e "adulto" e o aumento da distância entre estes grupos etários provinham do
processo de modernização. A institucionalização do instrumental pedagógico reforçou o que antes
existia, e só em parte determinou o conteúdo dos conceitos que citamos. As influências das novas
ordens religiosas provocaram a associação do conteúdo da infância a componentes sexuais. Pode-
se pensar que os pedagogos, ascéticos e muitas vezes celibatários, que tinham uma grande
iniciativa e um grande poder (por exemplo, a censura de livros), tomaram medidas para acelerar a
realização do puritanismo.
No processo de modernização, a célula familiar, a "casa", ocupava um lugar estratégico
importante na educação. Quanto mais a educação englobava questões amplas e difíceis, mais cedo
era preciso começar. Como na sociedade dos séculos XVI e XVII, a "casa", que se encarregava da
educação da criança, era o quadro em que esta aprendia a treinar-se na recusa dos instintos. De
um ponto de vista macro-histórico, a função educativa da célula familiar tornou-se ulteriormente
mais importante. A célula familiar moderna, além disso, era um prelúdio da industrialização. Na
antiga "grande família", a posição do indivíduo era estabelecida pelo seu nascimento. Como
conseqüência, a sociedade permanecia estática. Com o aparecimento do ofício, e depois da célula
familiar, cada qual podia, pelos estudos e trabalhando com afinco, construir sua posição numa
sociedade de mobilidade vertical. A isto sobreveio um dinamismo que ia ao encontro da avaliação
positiva do trabalho feita pela burguesia. Ainda hoje muitos pensam (como lhes foi transmitido
pela ideologia familiar) que uma pessoa sem família não tem muitos motivos para trabalhar com
afinco; quando não há descendentes, basta produzir o estritamente necessário, pois ninguém,
poderá se beneficiar da sua posição social nem do seu dinheiro. Da célula familiar provinham ainda
os futuros membros submetidos à sociedade. A obediência já não era um meio, mas uma
qualidade cujo valor era intrínseco. "A vontade pessoal da criança deve ser quebrada e o desejo
original de desenvolver livremente suas faculdades deve ser substituído pela obrigação de
preencher suas tarefas. A submissão ao imperativo categórico da tarefa foi desde sempre um
objetivo consciente da família burguesa" (Horkheimer). Como a família está reduzida à célula
familiar, submetida à autoridade do homem, foi possível lutar contra toda a sexualidade que não
servisse à reprodução, qualificando-a de não produtiva e anárquica.
Este tipo de família tornou-se um dos principais pilares da sociedade; passou a ser sagrado.
Esta ideologia teve sua origem em meios não-cristãos, da mesma forma que a informação sexual e
a luta contra a masturbação e as relações sexuais pré-conjugais tinham se originado fora da Igreja.
A forma que a célula familiar burguesa tomou a partir do século XVIII passou a ser o único tipo de
família cristã moralmente aceito. Outras sacralizações também podiam ser observadas: a de um
certo tipo de amor entre esposos, a do amor entre os pais e os filhos, a da grandeza da família, do
papel do pai e do marido, do papel da mulher, da mãe e do filho.

2. CARACTERÍSTICAS DA CÉLULA FAMILIAR

Ao longo dos últimos dois mil anos observa-se na família uma constante: a necessidade da
monogamia. Mas houve, de acordo com a época ou a situação social, opiniões diferentes no que
tange às relações entre marido e mulher, ao seu papel nas relações sexuais, à idade em que
deviam casar, ao número de filhos, à significação e à arte do amor, ao sentido da família, etc.
Apareceram diferenças entre as famílias do cavaleiro, do camponês, do criador de gado e do
artesão. O século XVIII trouxe consideráveis transformações.
Da comunidade que em geral se chamava a "casa", e que compreendia todas as pessoas
que viviam debaixo do mesmo teto, entre elas as que compunham a "família" e a "grande família",
destacou-se o "núcleo familiar", que compreendia os pais e os filhos e, às vezes, alguns outros
parentes. O significado desta célula familiar acentuou-se.
A sua ideologia é uma das maiores fontes de energia dos últimos séculos e passou a sê-lo
no momento em que a célula familiar se tornou, mais do que um grupo biológico e jurídico, um
valor em si. Costuma-se, às vezes, considerar que a célula familiar se desmanchou a partir do fim
do século XVIII, em conseqüência do crescimento do individualismo. Fala-se de um "declínio", mas,
na verdade, deu-se o oposto. Depois do século XVIII, a célula familiar conquistou um lugar cada vez
mais importante, passando a exercer, na sociedade, uma influência sem precedentes.
No seio da célula familiar distinguia-se uma outra relação: a união conjugal. Antes do
século XVIII não se podia falar, como hoje, de uma união no sentido de uma relação intensa, intima
e exclusiva. A partir do século XVIII a união aparece como uma entidade que precede a família: os
filhos, que transformarão esta união em família, representam teoricamente mais que o símbolo
exterior dos sentimentos experimentados entre o homem e a mulher. Em primeiro lugar, os
esposos são, um para o outro, marido e mulher. Tornam-se depois pai e mãe, sem por isso
perderem a sua relação marido-mulher. Em certos casos excepcionais, esta última relação situa-se
acima da relação pai-mãe. Da mesma evolução que fez da união uma instituição considerada,
nasceu também o amor livre (a união não-formal), que progrediu a partir do fim do século XVIII.
Reivindicou-se igualmente a possibilidade do divórcio, não apenas em caso de esterilidade (como
antes), mas também em caso de incompatibilidade entre os cônjuges: neste caso a célula familiar
foi considerada como menos importante do que as relações entre o homem e a mulher.
Foi na célula familiar que se manifestou o sentido da família, era esta a novidade. Os
membros da célula familiar deviam constituir um grupo íntimo e compacto, no seio do qual as
interações e comunicações eram mais numerosas e mais intensas. A partir do século XIX começou-
se também a adotar crianças. O amor entre o homem e a mulher passou a ser a base ideal do
casamento. Este elemento também era novo. Com isso mudou muito a escolha do parceiro e a
relação homem-mulher

3. O RECUO DA "CASA"

As origens e as conseqüências do recuo da "casa" ainda não foram estudadas a fundo,


embora, sem dúvida, tenham tido um grande alcance. Por exemplo, o processo de industrialização,
no século XVIII e princípios do século XIX, não teria progredido sem modificações no interior da
família. Com a queda da possibilidade, que sempre existia na grande família, do sustento de velhos
e sábios, apareceu um problema que necessitava solução. Além disso, podemos nos perguntar se
não haverá algum tipo de relação entre a democratização e o retrocesso da grande família de
estrutura patriarcal. Finalmente, a família burguesa, com uma forma mais reduzida, oferecia
maiores possibilidades de emancipação ao indivíduo. Só em meados do século XIX (1855) é que
Riehl observou o declínio da "casa", que já se tinha iniciado havia um século. A grande família
compreendia de três a quatro gerações; acrescentando-se-lhes o pessoal, obtinha-se a "casa". A
cabeça encontrava-se o "pai da casa", por oposição ao nosso atual "chefe de família". Nas orações
dizia: "eu e a minha casa". Na tradução grega da Bíblia, empregava-se a expressão oiko-despotes;
em latim vulgar pater familias; na tradução de Lutero, hausvater (textualmente: pai da casa). O pai
tinha a patria potestas, quer dizer, uma autoridade teórica quase absoluta sobre sua mulher, filhos
e pessoal. Era o representante de Deus ou do príncipe absoluto; era quem administrava e dirigia a
comunidade, velava pela prosperidade, sendo o princípio da unidade e da ordem. Era responsável
por tudo o que ocorria em sua casa, e até pela confissão e freqüência à Igreja de seus filhos e
servidores. A "casa" formava um microcosmo, uma unidade autárquica. Entendia-se então por
"economia" o complexo que reunia a ética, a administração dos bens, a pedagogia, a medicina, a
medicina veterinária, a técnica, etc. O comércio no exterior da casa só era válido na medida em
que reforçava a autarquia, não devendo ter um objetivo em si. A "casa" não participava da
economia da cidade com a sua indústria, o seu comércio e os seus haveres; antes de mais nada,
era uma comunidade de exploração e de produção. Quando apareceram as cidades, o comércio e a
indústria passaram a ter na "casa" o mesmo lugar ocupado pela agricultura e criação do gado, quer
dizer, não havia separação entre a administração da casa e a exploração. Tudo se passava nos
mesmos compartimentos; fazia-se indústria familiar; encomendavam-se alguns trabalhos a outras
famílias. O pai de família dirigia a exploração. A casa era também uma comunidade reunida em
torno de um fogão, em torno de uma administração de bens. No século XVIII os recenseamentos
oficiais ainda se faziam pelo fogo dos fogões. A "casa" era ainda uma comunidade de assistência
para os saudáveis, os doentes, os inválidos e os velhos. Enfim, uma unidade jurídica. Era-se tão
livre em casa quanto um duque no seu castelo fortificado.
A "paz na casa" dominava. A "casa" era um asilo. O dono da casa tinha direitos políticos.
Quem administrava os bens tinha o status de um homem cheio de valores, com força policial e
autoridade jurídica.
É preciso não generalizar a existência da "casa". Qualquer hipótese sobre a expansão deste
tipo familiar dever-se-ia assentar em dados estatísticos, mas estes não existem. Também é preciso
considerar que a "casa" é definida como ideal e ídolo, o que explica a sua larga expansão. Chegou-
se a pensar que a grande família se encontrava sobretudo no campo, mas esta hipótese deve ser
confirmada. Provavelmente, o número das grandes famílias, tanto nas cidades quanto no campo,
era bastante reduzido.
Da maior parte das células familiares pode-se dizer que não são formadas por razões
subjetivas, como os interesses e os desejos do próprio casal, mas com fins objetivos como a
reprodução, a assistência material aos membros da família e a educação dos filhos. Antes de mais
nada, a família era uma unidade de posse. O casamento era uma transação financeira. Montaigne
dizia que as pessoas não se casam para si próprias, mas para a sua descendência, para a sua
família. Considerava a mistura do amor apaixonado com os sentimentos familiares como uma
espécie de incesto. Um casamento de amor não era habitual em nenhuma classe, sendo
considerado perigoso.
No século XVIII, Samuel Johnson, um inglês típico, escreveu que o amor has no great
*
influence upon the sum of life . Em sua opinião, o Lorde Chancellor poderia muito bem encarregar-
se de organizar os casamentos, pois havia milhares de mulheres que poderiam convir tanto a um
homem como aquela que ele escolheu. A nobreza, sobretudo, recusava a existência do amor: é
impróprio amar a esposa, é um sinal de mau gosto, de vulgaridade burguesa. Quem tivesse
respeito por uma mulher não a desposaria, para não rebaixá-la. Além disso, o casamento mata o
amor. Ninon de Lenclos afirmava que o amor suportava bem a fome, mas perecia rapidamente de
indigestão.
A sexualidade extraconjugal não tocava no núcleo deste casamento.
Nas classes superiores, se uma mulher não tinha um amante era porque carecia de
atrativos ou estava socialmente comprometida. Um homem sem amante era impotente ou estava
financeiramente arruinado. As descricões de viagens mencionam as possibilidades que os bordéis
ofereciam em todas as grandes cidades. Nas classes inferiores observava-se uma certa mobilidade
no casal. Para este tipo de união, só em alguns casos o divórcio era necessário: quando se
considerava a mulher estéril ou incapaz de fazer o trabalho da casa quando não houvesse criados.
O período pré-conjugal servia para procurar oportunidades de casamento. O homem, de
quem não se exigia a continência, não precisava se ligar muito cedo, a não ser que os pais lhe
tivessem preparado um casamento. A moça, de quem se esperava que se conservasse virgem,
casava-se cedo.
Muitos homens não se casavam, fosse por não serem materialmente independentes e
viverem em "união selvagem", fosse porque preferiam o celibato. "Odeiam-se os doces laços do
casamento", escrevia Oest em 1787, época caracterizada pela "inclinação para uma vida sem
união". No grupo familiar dirigido pelas pessoas idosas, os celibatários ocupavam um lugar inferior.
No entanto, La Bruyère pregava "les délices du célibat". Leibniz pensava ser necessário uma vida
inteira de reflexão para se saber se uma pessoa devia casar ou não. Quase todos os filósofos eram

*
celibatários. Moheau, redator do mais antigo livro sobre demografia francesa, encarava o
casamento como uma "obrigação" à qual é preciso submeter-se, por dever patriótico. A maior
parte dos celibatários não se casava, não por convicção profunda, mas por pobreza, pois casar era
um luxo. A freqüência da nupcialidade seguia de perto melhoria das relações sócio-econômicas. No
século XIX tornou-se claro que, com a industrialização e o novo sistema dos salários, os pobres já
podiam se casar logo no início de sua vida profissional: a freqüência dos casamentos aumentou e a
idade média dos casados baixou.
A escolha do cônjuge teoricamente não era muito livre. Embora exceções sempre existam,
os anúncios de casamento e a instituição de intermediários mostram-nos o papel desempenhado
pelos bens e pela importância da diferença social entre as partes, no mercado do casamento. A
diferença de idade entre os cônjuges era por vezes muito grande; isto se explica pelo fato de uma
mulher jovem não significar para o homem um luxo, mas uma necessidade, para quem desejava
criar um certo número de filhos, porque a mortalidade das mulheres era considerável.
Não havia vida de família como hoje a entendemos. Nas choças de barro dos camponeses,
nas habitações da burguesia rica e nos castelos da nobreza, não se encontrava nenhuma lareira
"confortável" em volta da qual os membros da família pudessem passar uma parte do dia "em
intimidade". Mandrou atribuiu ao frio esta falta de intimidade tão corrente: era preciso andar de
um lado para outro e procurar calor. Mas é muito provável que esta falta de intimidade, que se
encontra por toda a parte e em todas as épocas, tosse mais devida a fatores sócio-psicológicos e
econômicos (economia de combustível e de luz).
Nas grandes casas vivia uma pequena comunidade completa. J. Carrière, num estudo sobre
a população de Aix-en-Provence, no fim do século XVII, referia que três pessoas, em média, viviam
nas pequenas casas; nas grandes podia atingir-se o número de vinte e cinco: o casal, seis filhos e
dezessete membros do pessoal. Mesmo ali, não se encontrava vida de família porque muitíssimas
vezes o homem, algumas vezes a mulher e, freqüentemente, os filhos estavam ausentes. Para os
nobres, se não houvesse guerra, havia ainda a caça e a presença na corte. Os mercadores faziam
viagens. As crianças eram confiadas a uma ama, iam à escola ou tornavam-se aprendizes. É certo
que se cultivava um espírito de clã, no século XVII, e sobretudo no século XVIII, o sentido de
solidariedade de todos os que habitavam debaixo do mesmo teto: o senhor e o seu criado, os
velhos e os jovens, o amigo e o hóspede; mas a família era uma vida de comunidade sem
interações emocionais intensas, sem grande intimidade nem interioridade. A fraca sociabilidade no
interior da família, opunha-se uma espessa trama de relações sociais fora da família. No trabalho,
no bairro onde se mora, na estalagem, em numerosas festas populares de que participavam todas
as classes da sociedade, no campo e na cidade, contatos vivos eram cultivados. A casa conservava
um caráter meio público, que mais tarde se transmitiu ao café, ao cercle privé e ao clube. Os
criados, os amigos, os parentes, os aprendizes e os visitantes eram ali albergados e alimentados. A
própria família perdia-se nesta sociedade.
Como a certos casos se atribuiu uma importância excessiva, formou-se uma Pléiade falsa
acerca da natalidade abundante. Na França fazia-se referência, quanto à nobreza, às famílias La
Rochefoucault, Croy e Grammont; no caso da burguesia, falava-se nas famílias Catinat, Carnot,
Arnauld e Coypel; no dos camponeses, nas famílias Coignet e Restif de La Bretonne. No entanto, as
estatísticas nos fornecem uma outra imagem. A taxa média de natalidade, entre 1690 e 1701, era
de 4,32 filhos por casal; de 1752 a 1763, 4,56 filhos (em 1889 quase 3, em 1950 ainda 2,5). Mas a
mortalidade infantil era muito grande. Durante os primeiros dois a três anos de vida chegava a
45%. Era difícil levar uma vida de família porque a distância entre os membros da célula familiar
era maior do que hoje. Nos primeiros anos do século XVIII o costume exigia que marido e mulher
se tratassem por "Madame" e "Monsieur", o que antes só era próprio da alta burguesia. O marido
não costumava se mostrar em público com sua mulher. Os filhos tratavam os pais por ''Monsieur”,
"Madame", "Sir", "Milady". (Os termos "Mamãe" e "Papai", segundo Nicolson, só apareceram na
Inglaterra a partir do século XIX.)

Era igualmente muito grande a distância entre os próprios filhos, que, nos meios ricos, não
se tratavam pelo nome próprio, mas diziam "meu irmão", "minha irmã". Contudo, não se pode
concluir pela inexistência de laços pessoais entre os filhos; eram outros, simplesmente, da mesma
forma que toda a família era outra: uma realidade social, e não uma unidade de sentimento, tal
como se poderia definir a célula familiar moderna.
O amor que os pais sentiam pelos filhos também era diferente. Não se manifestava
admiração pelo recém-nascido e não o achavam bonito. "Rien que d'informe, de rebutant et de
pénible", escrevia Burlamaqui em 1762. O infanticídio foi um flagelo social durante séculos e era
corrente o abandono dos filhos. Era possível canonizar mulheres que não se tinham preocupado
com os filhos durante a sua vida. Rousseau escrevia de uma forma tocante livros sobre a criança,
mas os seus cinco filhos foram entregues a um orfanato. Era ali que ulteriormente se recrutavam
os soldados e os criados, mas a taxa de mortalidade era de 80 a 90 %. Entre abandonar um filho e
matá-lo, a diferença não era grande. Na literatura, as personagens verdadeiramente "maternais"
eram raras. Nem todas as mães se pareciam com Andrômaca ou com a Jasabeth de Racine.
Também nas cartas encontramos mães indiferentes, frias ou mesmo sem coração. Quem tinha
meios para isso confiava os filhos, logo que nasciam, a uma ama, com quem eles ficavam até à
idade de dois ou três anos. Só durante períodos muito breves, no decurso dos quatro últimos
séculos, é que as mães ricas alimentaram os seus filhos, e isto não passava de uma simples moda.
Por seu turno, as amas que moravam muito perto da cidade confiavam seus próprios filhos a
outras amas que moravam mais longe, a fim de poderem ganhar algum dinheiro. As mulheres que
se ocupavam da educação de crianças de peito, crianças adotivas e crianças que custavam dinheiro
eram muitas vezes chamadas fazedoras de anjos.
O papel do pai também era diferente; pouco se preocupava com os filhos. Moralistas de
meados do século XVIII queixavam-se com veemência: "Tem-se vergonha dos filhos", "Tem-se
vergonha de dar a impressão de amar demasiadamente os filhos". Alguns homens escreviam livros
que tratavam da educação das crianças, mas os seus próprios filhos, logo depois de criados pela
ama, eram entregues aos empregados da casa: um preceptor, uma governanta francesa (chamada
às vezes "vice-mère"), um "maître de dance", uma "damme de maintien", etc. Dos sete aos nove
anos, os filhos das pessoas menos ricas eram colocados como ajudantes, aprendizes ou grumetes,
etc. As meninas de dez anos podiam, às vezes, ser consideradas como verdadeiras mulherezinhas:
vestiam-nas como mulheres, ocupavam-se habilmente da administração da casa, recebiam o
dinheiro do aluguel, trabalhavam nas lojas e ocupavam-se das crianças. Os filhos de pais ricos eram
pajens da nobreza; alguns ficavam numa família estranha até a idade de catorze ou dezoito anos.
Partiam então estrada afora (le grand tour). Outros, nesta mesma época, estudavam num
internato ou levavam uma vida de prazeres em universidades estrangeiras. As jovens eram
mandadas para o convento. Os adultos esforçavam-se — como é costume numa sociedade
patriarcal — por "quebrar" a vontade própria dos adolescentes. Por outro lado, há numerosos
documentos do século XVIII nos quais se protesta contra o excesso de afeição dedicada aos filhos
por seus pais. Os criados satisfaziam este "need of contacx" (Harlow), porque muitas vezes a
criança dormia com eles no mesmo quarto, e até na mesma cama. O comportamento dos pais face
aos filhos era influenciado pela considerável mortalidade infantil. Quando hoje uma criança nasce,
na sociedade industrial ocidental, suas probabilidades de sobrevivência são grandes. O amor pode,
assim, ser tranqüilamente investido, do mesmo modo que se podem fazer planos para o futuro da
criança e consagrar-lhes uma grande atenção (the child-centered family).
A família do século XVIII, pelo contrário, desde seu início, sofria uma contínua série de
nascimentos e de mortes de filhos e de mães. Em cem pessoas, sessenta não atingiam a idade
adulta. A grande maioria da população (80 a 90%) vivia até o limite mínimo vital. Umas poucas
colheitas más eram suficientes para determinara miséria. No primeiro quarto do século XVIII não
havia um só adulto que não se lembrasse de tempos de escassez crônica de alimentos. Quem
sobrevivia às misérias enfrentava a probabilidade de morrer por falta de higiene. O grau de
consciência, o clima emocional, os modos de comportamento, nesta economia de miséria, eram
diferentes dos encontrados numa situação econômica em pleno rendimento. Havia outras relações
com o futuro e com o passado, outras esperanças, outras relações com a existência e com o
mundo. O nascimento e a morte, a maternidade e a infância, o amor dedicado ao filho, a duração
da infância, os laços entre pais e filhos eram totalmente diferentes.
Reprovava-se a educação feita pelos pais. No dizer do filósofo inglês Robert Boyle, ao
confiar seu filho a uma ama do campo, o amor dos pais é "um sol demasiadamente quente, ou um
aguaceiro demasiadamente forte". De novo se encontra a expressão "amor cego". O severo
Fénelon tinha igualmente as suas dúvidas: "Atribuímo-nos o direito de confiar cegamente as
mocinhas a mães irrefletidas e ignorantes". Nos séculos XVII e XVIII discutia-se com firmeza a
educação dada pelos pais ou por estranhos. Na segunda metade do século XVIII, alguns
começaram a reclamar uma educação estatal. Mas este pedido foi recusado, porque a célula
familiar burguesa reivindicava para si a educação como uma prerrogativa.
Nos parágrafos precedentes não falamos da estrutura psicológica e da psicologia profunda
da célula familiar. Estas linhas estruturais ocupavam outro lugar e eram de intensidade e qualidade
diferentes. É impossível para o historiador contemporâneo conhecer o homem anterior ao século
XVIII, porque as relações na família pelas quais ele poderia se orientar se diferenciam
fundamentalmente das de hoje. Seria um anacronismo da nossa parte querer aplicar àquela época
nossa atual terminologia psicológica ou psicanalítica. Precisamos levar em conta a influência de
outros fatores: o fato de a criança viver durante anos com uma ama, que muitas vezes preferia à
própria mãe; a freqüente ausência do pai; os criados, com quem muitas vezes, durante a
juventude, se tinha mais contatos do que com os próprios pais; a saída de casa por volta dos dez
anos, para fazer a sua aprendizagem onde quer que fosse; a grande diferença de idade entre o pai
e a mãe; a forte mortalidade infantil; outras relações entre as crianças; o fato corrente de crescer
com um sogro ou uma sogra; o fato de habitar com parentes afastados não casados; a freqüência
de pessoas que pertenciam a outras categorias de idade.

4. A FAMÍLIA BURGUESA DO SÉCULO XVIII

No século XVIII havia diferentes tipos de família que conviviam lado a lado: a família
milenar do agricultor ou do criador de gado; a família da nobreza, que havia conservado as suas
antigas características; e a família da burguesia comerciante ou industrial. A delimitação social do
último tipo não é difícil. Constituiu-se na burguesia e, a partir do século XIX, alastrou-se também às
outras classes sociais, e até para fora da sociedade industrial ocidental. Era o tipo de família que
melhor convinha às exigências da corrente humanitária da época. É mais difícil delimitar o
conteúdo desse tipo porque devemos nos prender ao que era dado como típico pela burguesia.
Mas este é apenas um aspecto teórico.
A demarcação cronológica também é difícil. Quanto mais exatas são as datas, mais nos
inclinamos a duvidar delas. Características da família burguesa do século XVIII já são encontradas
no século XVII, e até no XVI.
No século XVIII, a célula familiar tinha maior importância para a burguesia do que para as
outras classes. A sua importância e o seu tipo dependem da diferenciação estrutural entre a
grande sociedade que englobava todas as classes e a pequena comunidade formada por uma
classe. A grande sociedade, e, mais ainda, o mundo da burguesia, distingue-se pelo fato de ali se
ter formado um grande número de sistemas sociais com funções especializadas. Esta situação
determinou uma diminuição dos contatos totais e um aumento das relações funcionais. As
fronteiras entre o grupo e a célula familiar, que até então eram imprecisas, tornaram-se mais
claras. O que havia antes era um poderoso espírito de clã, e, por conseqüência, uma célula familiar
menos importante. Com maiores possibilidades de sociabilidade, a célula familiar perdia cada vez
mais o seu caráter de ilha. Na burguesia, a célula familiar adquiria importância, porque esta classe
se isolava na sociedade.
Já citamos outras razões pelas quais a célula familiar teve tanta importância para a
sociedade aburguesada. Novas tarefas cabiam à célula familiar burguesa; podemos resumi-las
através dos conceitos de "ordem e estabilidade". No interior da casa, a burguesia reclamava ordem
e paz. Todos os elementos anárquicos eram afastados: nada de relações sexuais extraconjugais, só
o divórcio, se com isso torna-se possível eliminar a desordem; nada de celibato; nada de
sexualidade pré-conjugal; nada de educar as crianças fora da família (às vezes a mãe amamentava
o filho ou contratava uma ama a domicílio); papéis definidos para o comportamento sexual;
relações claras entre marido e mulher, entre os pais e os filhos; nada de negligência na educação,
ausências de casa pouco freqüentes (no século XIX os filhos que antes estudavam em internatos
freqüentavam cada vez mais os externatos). A sociedade polimorfa homogênea dos séculos XVI e
XVII, onde as diferenças de classe não desempenhavam um grande papel, desagregou-se,
formando muitos grupos: os grandes grupos das classes que se isolavam, e os pequenos grupos da
célula familiar burguesa. Às forças centrífugas que faziam desagregar a sociedade opunham-se
forças centrípetas que reforçavam a célula familiar burguesa, de modo que esta se destacou
progressivamente do clã e se concentrou no núcleo familiar. No interior deste produziam-se
também concentrações: entre o marido e a mulher, que se admitia sentirem um amor mútuo, e
entre os pais e os filhos, pois se concedia à criança uma atenção cada vez maior. Aliás, no século
XVIII a alta burguesia utilizava técnicas contraceptivas. Como Ariès sugere, isto pode ter sido tanto
a origem como a conseqüência do interesse crescente pela criança.
O alcance desta evolução é grande. Já vimos que a revolução industrial no continente
europeu não teria sido tão rápida se a célula familiar não fosse monógama e fundada no
casamento. O fato de se pertencer a um clã, a situação de um membro no interior de uma família
numerosa, o reconhecimento do seu estatuto, tudo isto entra em contradição com a exigência da
indústria; esta procura um operário capaz de fazer tudo, pronto a deslocar-se e especializado,
pessoalmente beneficiado pela sua profissão. Logo, o seu estatuto material entra em conflito com
o estatuto pessoal no interior da família.
Ao mesmo tempo que na burguesia apareceu a consciência de pertencer a uma classe,
apareceu o sentido da família. Depois de ter conquistado o seu lugar entre o baixo e o alto, a
burguesia considerou-se como a classe instituída por Deus e pela sociedade, a classe que alimenta
a sociedade. A construção de casas patrícias era o símbolo exterior desta consciência de classe e
do sentido de família. As casas distinguiam-se por uma grande especificidade na distribuição dos
compartimentos (escritório, salão, quarto de dormir, etc.). Havia um núcleo isolado, íntimo, no
qual os estranhos só dificilmente podiam penetrar. Os domínios privado e profissional estavam
separados. A burguesia reservava ao domínio privado tudo o que a nobreza devia mostrar
publicamente para elevar o seu estatuto social. A casa, a instalação, o amor, a conversa, o bom-
gosto na decoração do parque, o ritual das refeições, tudo isto foi transformado em prazeres
privados ou obrigações. É sobretudo notável no caso das visitas: era preciso anunciá-las
antecipadamente. Já não havia o risco de o visitante, como antes correntemente sucedia ou era
possível em outras classes, entrar num quarto de dormir ou conversar com alguém que estivesse
ocupado em funções "íntimas". As salas onde se recebia, o vestuário, os talheres, o ritual das
visitas eram outras tantas provas da impossibilidade de entrar no coração desta casa já fechada.
Era preciso que um colega de trabalho fosse muito bem considerado para que tivesse o direito de
penetrar até a sala de estar.
O sentido da vida de família, a consciência do "chez moi", "my home", esta mística caseira
de Pestalozzi, compunha-se de novos elementos. Neste isolamento vivenciava-se a "harmonia da
felicidade conjugal" como fonte única de felicidade durável, como se dizia. Em contrapartida às
relações funcionais, tentava-se criar uma esfera de inclinação onde desenvolver relações íntimas,
pessoais e comunitárias. Em vez da antiga solidaridade passiva entre os membros da família,
aparecia agora uma descentralização ativa voluntária, levando a um objetivo comum. Protegiam-se
contra a sociedade inimiga. A família fechada evoluía para uma base estável, donde se podia fazer
a adaptação da criança à sociedade, julgada instável. Numa sociedade em vias de desintegração, a
família tornou-se um oásis, onde as pessoas se aconchegavam à lareira, onde se podiam mostrar
mais ou menos abertamente no seu verdadeiro aspecto. As crianças deviam conservar-se
tranqüilas. "É necessário que se possa ver as crianças mas não ouvi-las.'' Também era preciso que
estivessem constantemente ocupadas, porque "a ociosidade é a mãe de todos os vícios".
Aparecem então os trabalhos manuais úteis: uma jovem que não tinha ocupação fazia um buraco
num pedaço de tecido para o remendar. Segundo Lordulot, era preciso brincar tranqüilamente e
tomar o jogo como se fosse um medicamento. A paixão do jogo era reprovada como qualquer
outra paixão ou a falta de domínio sobre si próprio. Era preciso deixar de jogar a dinheiro, coisa,
aliás, habitual. Tinha-se o direito de aproveitar "ajuizadamente" certos prazeres; assim, o passeio
era dos mais inocentes, dos mais agradáveis e mais úteis de todos os ócios. Podia-se saborear
tranqüilamente as alegrias ajustadas da vida privada no isolamento do campo. Até nos passeios a
célula familiar formava uma unidade fechada que se separava do meio à sua volta. La Salle não é o
único a condenar a dança. Lordulot descreveu a maneira como a burguesia guardava as suas
distâncias perante pessoas ditas finas e perante os inferiores. "As danças são perniciosas, mas os
bailes ainda são piores."
O comportamento prê-conjugal das jovens burguesas devia se conformar à boa educação.
A castidade é uma virtude que Benjamin Franklin, o típico burguês, submetia a um estudo
quotidiano, semanal e mensal. O que era preciso não era procurar o noivo, mas encontrá-lo, pois
para cada um há um cônjuge predestinado. Quando os dois se encontram devem ficar num estado
de pureza pré-conjugal. Fazem a partir de então um casamento de inclinação, em vez do antigo
casamento de situação (segundo a terminologia de Vierkandt), um casamento pessoal em vez de
um casamento voltado para os objetos. Nesta união, a atração mútua engendra uma interação que
deve provocar, primeiro, uma maior identificação, depois do que pode ter lugar, sem riscos, uma
rediferenciação. Em teoria, esta união já não era apresentada como uma instituição que servia
para transmitir ao filho o título, os bens e os encargos paternos. A liberdade de escolha do cônjuge
foi proclamada no verbete "Marriage" na Encyclopédie. Rousseau, Kant, Fichte, Hegel, A. Schlegel,
Schleiermacher, d'Holbach e outros defendiam o mesmo ponto de vista.
A união livre ou o amor livre resultava diretamente deste novo tipo de casamento. A
condescendência com relação aos celibatários, homens e mulheres, também existia antes do
século XVIII, mas era raramente defendida, teórica ou publicamente, como algo desejável. Por
volta de 1800, William Godwin (marido de Mary Wollstone Craft) desaprovava o casamento
convencional, que ele acusava de pesar sobre a liberdade do indivíduo e conceder direitos de
posse mútuos. A sua supressão, pensava ele, não teria más conseqüências. Godwin alugava alguns
quartos e "visitava" a sua família, que habitava a pouca distância de sua casa. Às vezes até se
correspondia com ela. Por sua influência, Shelley defendeu o casamento judicial. Em 1814 contraiu
uma união selvagem. Goethe viveu com Cristina Vulpius em união livre, que depois foi legalizada.
Na passagem do século o casamento foi de novo "posto em discussão" por diferentes escritores.
No fim do século XIX e no século XX o assunto foi retomado. Para alguns, o amor livre situava-se
acima do próprio amor, definido como divino, cósmico, superior: qualquer limite imposto ao amor
seria imoral e matá-lo-ia; a fidelidade estaria contida no amor, não no casamento. Mas, para o
burguês, só amor sentimental é que não era perigoso. Encontra-se o protótipo desta relação
amorosa entre cônjuges em Nouvelle Héloise, de Rousseau (a palavra "sentimental" foi empregada
pela primeira vez na Inglaterra em 1740). Este amor tornara-se moderno, tão novo que era preciso
aprender a senti-lo e a manifestá-lo. Em 1763 um escritor inglês fazia dizer a uma mulher idosa,
falando a uma jovem, que a nova maneira de amar era uma atitude romântica que ela havia
aprendido nos livros: "Noutros tempos as jovens tinham outras coisas a fazer". Segundo Boswell,
faziam-se os maiores esforços por sentir o que era preciso sentir; imitavam-se, com este fim,
protótipos de amorosos célebres. Não dizia La Rochefoulcauld que muitíssima gente nem chegaria
a conhecer o amor se não ouvisse falar dele? A representação ideal do amor tornou-se a base do
casamento burguês. A união de Émile e Sophie foi tomada como exemplo. O homem caracterizava-
se pela sua "doçura" e a mulher pela sua "humildade", como companheira fiel do marido e
educadora devotada dos seus filhos. Os filhos deviam obediência; dos criados esperava-se
lealdade. A sexualidade extraconjugal não era tolerável e comprometia a união. O interesse por
este problema aumentou. A nova ideologia familiar representava, para a situação da criança, uma
transformação radical. A burguesia foi a primeira classe a definir teoricamente, e a praticar, um
planejamento familiar, ainda que se opusesse ao estudo e à solução deste problema.
Era talvez a primeira vez, na história da família, que um determinado modelo se tornava
em modelo exclusivo. Esta doutrina, repleta de recordações de dias melhores, era colocada como
teoria da criação do casamento. Rousseau, Herder e Comte consideravam como primária a união
arcádica, monogâmica, baseada no casamento. Considerava-se a família como a instituição mais
fundamental, mais universal e mais insubstituível. Já não se rejeitava a possibilidade de contrair
um segundo casamento. Desde o século XIX que o celibatário tinha dificuldade em se fazer admitir
como adulto e não podia exercer todas as funções que este desempenhava. O casamento era o
meio de se realizar plenamente, de chegar à sabedoria e à insondável essência humana, coisas de
que o celibatário se via privado durante toda a sua vida, a menos que pertencesse ao clero.
Como muitas vezes se observa na expansão de novas ideologias, fugia-se conscientemente
daquilo a que chamavam a antiga situação imoral. "Para a nossa nação é necessário recomendar o
casamento, o bom casamento", dizia a economista Anne Robert Jacques Turgot; daí o seu
interesse pela célula familiar. Mas a importância do casamento também não escapou aos homens
políticos. A. Goudar recomendava uma melhor educação das crianças e reprovava o celibato. Os
enciclopedistas (como d'Holbach, Helvetius, Diderot) tomavam posição a favor da célula familiar.
No século XVIII, o fato de defender a ideologia familiar era sinal de progressismo, pois deste modo
se apoiavam os novos valores como o naturalismo, o racionalismo e o individualismo, contra os
antigos como a religião, a autoridade e o patriarcado. Em Nouvelle Héloise, Rousseau prega "a
pureza, a dignidade e a santidade do casamento". No Émile, o casamento é "a primeira e a mais
santa instituição da natureza", "o mais sagrado e o mais inviolável de todos os contratos". Já no
século precedente Fénelon insistia no fato de as mães deverem ter contatos maiores com os seus
maridos e os seus filhos, mas estas palavras vinham com setenta anos de antecipação. Pelo
contrário, o novo modelo tinha agora sucesso. Os pais deviam amar os filhos e seguiam-se
princípios modernos de educação. Também nas obras de Voltaire o amor dos pais desempenha um
certo papel, por exemplo em Zaire (1782), Ériphyle (1732), Sémiramis (1748) e particularmente em
Mérope (1743). O pai severo e trabalhador é uma "obra-prima da natureza".
Em meados do século XVIII a célula familiar sofreu uma transformação, uma das mais
importantes na história na vida comum da mulher e do homem. Diz-se muitas vezes que na célula
familiar moderna as tarefas educativas são mais abandonadas a instituições extrafamiliares, como
a escola ou o clero. Isto só em parte é verdade, pois, graças ao estabelecimento da célula familiar,
a influência pedagógica dos pais sobre os filhos é maior do que antes. Durante os anos mais
importantes, isto é, os três primeiros anos, a criança fica em casa. Relações com duas ou três
gerações pouco a pouco substituem relações com muitas gerações. A atenção concentra-se num
menor número de crianças. Um grupo mais homogêneo de crianças, menos espaçadas em idade,
menos numerosas e programadas de forma semelhante nas suas relações sociais, fica durante
mais tempo junto dos pais, que consideram como sua mais nobre tarefa consagrar-se à família.
Assim, nascem igualmente tensões entre os membros da família. É perfeitamente possível que esta
redução da família nos permita encontrar uma explicação para o fato de, no fim do século XIX, e
nos meios burgueses, Freud ter "descoberto" o complexo de Édipo.
O comportamento da família perante a coletividade também se modificou. Já não são
todos os elementos da vida que penetram diretamente na casa. A família é semelhante a uma
membrana que filtra as influências. Além disso, em conseqüência da prolongada permanência no
interior da família inicial e em virtude de uma influência intensiva, o processo psicológico de
descondicionamento é refreado e, por vezes, jamais terminado. Logo, a família que se funda ainda
contém numerosos vestígios da família inicial. Num mundo que desenvolve um grande dinamismo,
sobretudo nos séculos XIX e XX, isto pode determinar uma inadaptação.
A DIFERENCIAÇÃO DOS GRUPOS ETÁRIOS

Entre os séculos XVI e XVIII, a diferença entre os grupos etários aumentou. Antes, a
distância que separava os jovens dos adultos era pequena. Mas, com o desenvolvimento da
educação, vieram imiscuir-se dois grupos etários entre estas duas categorias. Primeiro, o grupo da
criança, depois o do adolescente, cada um com as suas características próprias. Pedagogos
progressistas como Rousseau (Émile, 1762) pensam que é preciso conservar na criança o seu
caráter infantil, em vez de permitir que ela tome parte, desde a infância, no mundo dos adultos.
Duas gerações mais tarde retomam-se estes mesmos pontos de vista para os adolescentes: "O
jovem deve continuara ser um rapaz" (Rehm, 1802). Esta evolução tinha conseqüências para a
sexualidade, porque os pedagogos tentavam, antes de mais nada, excluir os elementos sexuais da
vida da criança e do adolescente. A repressão sexual terminou no século XIX entre os adultos, após
a modelacão da criança e do jovem.
Antes do século XVII não havia, na coletividade, qualquer fronteira forma! entre os jovens e
os adultos, mesmo no que dizia respeito ao domínio dos afetos. Esta coletividade não conhecia os
atuais conflitos de gerações. O problema do respeito pelos velhos — pouco numerosos — não
existia, o adolescente ocupava progressivamente o seu lugar. Não se fazia Pléiade alguma das
crises pubertárias características dos séculos XIX e XX. Jovens e velhos usavam o mesmo tipo de
roupa, participavam dos mesmos jogos, cantavam as mesmas canções e exerciam as mesmas
funções. Os quadros do século XV representam crianças que eram adultos em miniatura: com. uma
fisionomia séria e até um pequeno seio. Na poesia não havia interesse pela criança, a menos que
fosse para relatar um acontecimento que também poderia perfeitamente suceder a um adulto. A
linguagem ainda não oferecia conceitos diferentes para os adultos e para as crianças. Logo que
uma menina entrasse na puberdade já podia casar. Nesta sociedade em que não se media
exatamente o tempo, como ainda hoje ocorre entre os camponeses, e em que não se conhecia a
idade exata das pessoas (só a partir dos séculos XVII e XVIII é que se encontram registros de
nascimentos dignos de confiança), a idade expressa em anos não tinha uma importância essencial.
Já antes dos dezesseis anos a criança participava das atividades dos adultos: ajudava no campo, na
loja ou na oficina. No século XVII ainda eram muito numerosas as crianças, mesmo da nobreza, que
não freqüentavam a escola: assim, Thomas More e Peter Paul Rubens tinham sido pajens em casa
de um nobre. Aos onze anos, Chevert servia no exército. Quando Turenne morreu no campo de
batalha, seu sobrinho, de catorze anos, combatia a seu lado. Só no século XVIII é que a idade dos
oficiais se elevou, porque passaram a ter que receber antecipadamente uma formação completa e
freqüentar uma escola militar; mas os soldados, que não precisavam de nenhuma formação
especial, eram muitas vezes adolescentes. Dava-se aos rapazinhos nobres uma amante, que os
iniciava no trato com as damas.
Ia-se à escola para aprender a ler, escrever e contar. Reuniam-se ali todas as categorias de
idades, como ulteriormente se reuniram nas aulas dominicais ou nos nossos atuais cursos
noturnos. No século XVI não havia quaisquer escolas especiais para adolescentes. A tarefa de
educadores dos pregadores da Idade Média e dos frades mendicantes ainda se dirigia à totalidade
da sociedade. Só nos séculos XVI e XVII é que apareceram ordens religiosas consagradas à
educacão dos adolescentes. Até o século XVII, e mesmo nas escolas "modernas" reservadas à elite
— filhos de burgueses ricos ou da pequena nobreza —, a distribuição dos alunos segundo as suas
idades era feita de modo muito sumário.

1. INFANTILIZAÇÃO DAS CRIANÇAS

Entre os séculos XVI e XVII, o adulto tornou-se "mais adulto" e o adolescente passou a ficar
mais tempo "jovem". Com isso surgiu um outro modelo do que será chamado ser adulto. As
categorias "criança" e "adolescente" eram esboçadas. Esta evolução manifestou-se primeiro e mais
claramente nos meios que se encontravam na vanguarda do processo de modernização. Existiam
diferenças de opinião sobre a evolução entre os sábios. Os historiadores acreditavam que até o
século XVI jovens e adultos viviam juntos sem separação. Alguns iam até mais longe; segundo
Ariès, antes do século XVI a criança não existia, nem como categoria de idade nem mesmo como
ser dotado de qualidades características psíquicas específicas. Existem fatos que nos levam a
acreditar nisso. Mas é evidente que no plano físico uma criança não pode comparar-se a um
adulto. Além disso, temos de admitir que numerosas crianças, até os seus dezesseis anos, diferem
igualmente dos adultos no plano psíquico. A ausência de uma categoria etária de estrutura
psíquica característica pode Ser explicada por uma argumentação a priorí, porque, antes de mais
nada, as qualidades psíquicas são determinadas pelo meio. Uma criança que vive no mundo dos
adultos encarrega-se de numerosas tarefas e adquire uma parte dos direitos desses adultos. Pouco
ou nada a distinguirá deles. Esta hipótese é tanto mais provável quanto é certo ter havido muito
pouca diferença entre a criança e o adulto e não existirem características psíquicas estabelecidas
para a idade adulta. Na história da psicologia, e em conseqüência de observações muito exatas,
admite-se que as características psíquicas específicas da criança foram "descobertas" nos séculos
XVII e XVIII. Mas não será mais exato supor que estas características foram primeiro despertadas, e
ulteriormente "descobertas" pelos psicólogos? A psicogênese de determinadas particularidades
seguiu-se à sociogênese da categoria etária da criança. As antigas leis e costumes permitem-nos
confirmar estas hipóteses. Segundo as Leges Barbarorum, nas quais se codificava o antigo direito
popular, concedia-se a maioridade aos onze anos entre os lombardos, e aos doze entre os anglo-
saxões, os francos sálios e os saxões. Podia-se ser condenado à reclusão criminal aos doze anos, às
vezes até aos dez ou sete anos. Aos sete ou oito anos a criança já devia ser capaz de ganhar a vida
sozinha. As ordenanças de Nuremberg (1478) já não autorizavam a mendicidade depois da idade
dos oito anos. Os órfãos criados pela Igreja deviam ser capazes de garantir sozinhos sua
subsistência a partir dos sete anos. No Schwabenspiegel (1287) pode-se ler que o "iungelinc" (o
jovem) de catorze anos e a "jungfrowe" (menina) podiam contrair casamento regular sem
autorização do pai.
A criança "moderna" não é senão um dos modelos possíveis de infância, sendo, além disso,
um modelo infantil. Os psicólogos estão de acordo quanto à afirmação de que certas circunstâncias
podem acelerar o processo de maturação, por exemplo, a guerra, a perda do pai ou da mãe, as
doenças ou o trabalho precoce, da mesma forma que a vida no meio dos adultos. O meio escolar,
encerrado sobre si próprio, refreia o desenvolvimento da criança, protege-a contra as influências
exteriores, dispensa-a de certas tarefas e concede-lhe muito poucos direitos. Retira-lhe toda a
espécie de responsabilidade, desconhece a sua individualidade e ensina-lhe disciplinas intelectuais
que muitas vezes estão longe da realidade. Tende a uma realização progressiva do tipo ideal da
crianças e do adolescente. Há um fato ainda mais importante: por intermédio do meio escolar, os
jovens atingem um estatuto que não tem valor algum na sociedade. Neste caso, portanto, são
igualmente fatores culturais que determinam as características infantis e outras da criança e do
adolescente. A escola não criou as categorias etárias "criança", "jovem", mas contribuiu para a sua
realização. Há, por consequencia, uma relação entre a freqüência da escola e a infantilização.
O fato de certas categorias de pessoas poderem permitir que os filhos freqüentem a escola
durante um tempo bastante longo é primariamente uma questão sócio-econômica. Até o fim do
século XIX, muita gente tinha de pôr seus filhos para trabalhar, porque os ganhos eram
insuficientes. Muitas vezes os patrões protestavam contra as medidas relativas ao prolongamento
da freqüência escolar obrigatória, porque viam ali uma ameaça para o mercado de trabalho.
Era freqüente a recusa de abrir escolas, a fim de que os jovens pobres ficassem ignorantes.
Esta opinião era defendida até mesmo por espíritos esclarecidos do século XVIII, como Voltaire.
Logo, não é exato acreditar que as escolas foram criadas especialmente para as categorias que se
encontravam em atraso no processo de modernização, como as mulheres, a nobreza ou as classes
socialmente desfavorecidas. Muitas vezes as crianças freqüentavam a escola durante um tempo
mais longo por razões de prestígio, ou então porque era um investimento de dinheiro rendoso.
A forma como se abusava das crianças no processo de trabalho mostra a que ponto o
"respeito concedido à criança" era também uma "prerrogativa" de classe. "Frederico, o Grande,
considerava o trabalho das crianças tão importante que durante a sua permanência em
Hirschberg, em 1766, propôs aos mercadores mandar-lhes mil crianças, com dez a doze anos, que
serviriam para as fábricas de fiação" (Kulisch, Allgem, Wirtschaftsgeschichte, II). "Deu alguns órfãos
a um empreiteiro que se queixava da qualidade dos operários vindos da Holanda ou da Dinamarca.
Em 1748 foram remetidas a um outro produtor crianças do orfanato de Potsdam. A França, a
Inglaterra e a Holanda consideraram, em geral, o trabalho das crianças a partir dos quatro anos
perfeitamente compatível com as tarefas da indústria familiar ou das manufaturas. O dia de
trabalho não durava menos de treze horas, mas muitíssimas vezes mais. Quando as crianças assim
oprimidas em diferentes oficinas, com ou sem o assentimento da família, se punham em fuga,
eramde novo encerradas com o auxílio das autoridades" (Horkheimer, Kritische Theorie, I).
Se a infantilização foi mais uma conseqüência do processo de modernização e menos uma
influência das escolas, a exata diferenciação entre um adulto e uma criança foi obra das escolas.
Assistiu-se, primeiro, ao aparecimento de uma diferenciação e de uma hierarquia da idade: quanto
mais jovem, menos emancipado se é; quanto mais idade se tem, mais se é valorizado. Em
conseqüência desta evolução nas escolas, observou-se, em setores sempre cada vez mais
numerosos da vida social, uma estruturação dos grupos etários, que veio substituir a confusão
antes existente. A princípio, este processo só foi visível nos meios em que as crianças
freqüentavam escolas progressistas. De um ponto de vista histórico, o aluno de uma escola
secundária foi a primeira criança "crescida" da história. A freqüência à escola, que até os séculos
XVIII e XIX era monopólio do sexo masculino, refreou o desenvolvimento psíquico do rapaz e do
menino, que ficavam crianças por muito mais tempo. Como a longa freqüência da escola era ao
mesmo tempo um monopólio de classe, havia uma diferença entre os estudantes, os jovens
operários, os grumetes e os aprendizes. O estudante tinha o privilégio de um comportamento
infantil, que se julgava insolente. O comportamento sexual do estudante e do aluno era
igualmente infantilizado. Aliás, as pessoas revoltavam-se contra tudo o que era permitido ao jovem
operário, isto é, o livre relacionamento com as moças. Um pequeno número de adolescentes,
distribuídos por algumas dúzias de escolas de elite, vivia segundo um certo modo de
comportamento moral, sinal de uma diferença social característica. Nas escolas tradicionais e nas
universidades seguia-se a nova tendência com um certo atraso. Da mesma forma que a pedagogia
sexual progressista atual ganha terreno, pois representa uma força atuante em condições de vida
transformada, a antiga pedagogia podia desenvolver-se, não porque fosse melhor, mas porque se
encontrava na linha do desenvolvimento. O ideal dos novos pedagogos moralistas era realizar, no
domínio da educação, o sistema de valores da classe predominante. A burguesia ocupava-se da
formação de futuros mercadores e proprietários de fábricas. Por sua vez, as Igrejas podiam realizar
um velho ideal, formulado por volta de 1400 por Jean de Gerson: "Deve-se ter pelas crianças o
maior respeito". Esta frase serviu de epígrafe, em 1787, ao livro do pedagogo alemão Villaume.
a) Influência das ordens monásticas
A transição do velho tipo escolar dirigido à instrução para uma instrução através da qual
toda a vida é ordenada significa um grande passo. Os novos educadores partiam do princípio de
que a melhor maneira de preparar os adolescentes para entrar no mundo era subtraí-los a ele;
isolavam-nos, portanto, num domínio que nada tinha a ver com o mundo. O meio escolar, fechado
sobre si próprio, era, de certo modo, a cópia do mundo cristão a que os. educadores eram
favoráveis. Este meio civitas terrena podia comparar-se a um convento.
M. A. von Winterfeld publicou em 1787 uma carta em que se mencionavam "instituições
semelhantes a claustros". O regulamento das escolas era uma cópia exata das regras das ordens
franciscanas e dominicanas do século XVIII. Estas ordens não viviam inteiramente "enclaustradas",
como outras ordens monásticas, mas pertenciam um pouco ao mundo secular; seu estatuto
situava-se entre o do monge e o do leigo. Como nos claustros, a vida dos pensionatos se submetia
à regra. Um certo número de decisões determina o que é, permitido ou o que não é, em primeiro
lugar no que tange à freqüência dos bordéis, à presença de mulheres e de jovens nos quartos, ao
vinho, à desvergonha, ao fato de jogar a dinheiro e ao porte de armas. Uma vez bem assimiladas
estas proibições, passava-se à marcha da escola e ao programa do dia.
Como os conventos, os pensionatos sofreram uma neutralização sexual. Desde logo, não
havia a menor chance para uma educação mista nesta sociedade burguesa em que tudo era feito
para o homem. A maior parte das vezes os professores eram celibatários; mas, até quando uma
escola era dirigida por uma pessoa casada, a educação continuava a ser anti ou assexual.
Nos internatos, todo mundo se declara favorável a esta nova concepção: a fase
preparatória da juventude deve ser ascética — a alimentação é frugal, a cama dura e o sono curto
— tanto no que diz respeito aos estudos quanto aos outros aspectos da vida. Os adolescentes
eram também submetidos a outras regras provenientes das ordens religiosas: a calma da noite, o
importante "silentium" dos claustros que visava a promoção da meditação e do exame de
consciência, e, por outro lado, facilitava a vigilância sobre os alunos nas salas de dormir; partes dos
regulamentos dos monges relativos a "les amitiées particulières" e coisas semelhantes; os
exercícios anuais; o "directeur de conscience". No século XIX foram introduzidas outras regras,
como as orações para certas ocasiões, as leituras espirituais (por exemplo, os Exercícios Espirituais
de Inácio de Loyola, livro escrito para os religiosos, mas revisto para os alunos), as meditações,
símbolos das ordens monásticas, a veneração dos santos destas ordens, etc. A assimilação podia ir
até ao ponto dos internatos desempenharem às vezes as funções de escolas preparatórias para os
conventos.
b) Inocência e fraqueza
Pela sua ingenuidade, a criança é boazinha, divertida, ingênua e tocante, mas antes de
tudo é inocente. Por "natureza" é desprovida de malícia, cândida e pura. Segundo Rousseau
(1762), o contato com o mundo dos adultos a estraga. No entanto, um século depois, Amiel
escrevia que a criança é, sem dúvida, inocente, mas nem por isso inclinada ao bem. E, cinqüenta
anos mais tarde, Freud falava da sua perversidade polimorfa. A inocência é extremamente
vulnerável, podendo ser destruída por uma única ação. Mesmo contra a vontade da criança, outros
podem destruir a sua inocência. Além disso, a inocência é irreparável. Nenhum rito mágico pode
restabelecer a desejada transformação. Para Tomás de Aquino, um rapaz ou uma moça que
tivessem tido contatos impuros antes da puberdade continuavam a conservar sua virgindade, o
que lhes permitia entrar na religião. Nos séculos XVII e XVIII, a inocência passou a ser comparável à
virgindade fisiológica, com uma vulnerabilidade igualmente acima da vontade da pessoa em causa,
e da mesma forma irreparável.
O conceito da inocência foi estendido à sexualidade. Sem dúvida nenhuma, a criança
deveria possuir numerosos conhecimentos, mas não deveria saber nada da sexualidade dos
adultos. Deveria gostar de tomar decisões, ser capaz de agir, de pensar e de julgar de uma forma
independente, salvo quando se tratava de sexualidade. Por um lado, era-lhe permitido ascender a
uma maior maturidade; por outro lado, era-lhe solicitado não saber, não agir, não desejar, nem
sentir. Assim se elaborou a imagem ideal da criança pura, que, segundo Rousseau, não devia sentir
que pertencia a um sexo: devia ser assexuada.
Os perigos que ameaçavam a inocência eram cada vez mais numerosos: não só os atos (os
contatos ou as carícias) podiam maculá-la, também as palavras, os pensamentos, os desejos e os
sonhos. Observava-se uma evolução do físico para o psíquico, do consciente para o inconsciente,
do exterior para o interior. Na segunda metade do século XVIII já não bastava que uma criança ou
um adolescente continuasse a ser puro nos seus atos: saber, por si só, já era um sinal de
contaminação. O conhecimento de fenômenos sexuais equivalia à perda da inocência e marcava o
início da imoralidade.
Na Idade Média penseva-se que não se podia falar de sexualidade ou de ações sexuais
antes da puberdade. Até o século XVIII era comum tratar as crianças até os sete anos como
brinquedos que se pode acariciar e mimar, que podem dar e sentir prazeres sensuais. No fim do
século XVIII a idade limite, a partir da qual a inocência deveria ser protegida, passou dos catorze
para os sete anos, até chegar ao berço: escolhia-se para a criança uma ama que não fosse
voluptuosa e que não deveria ter relações sexuais durante o período de amamentação da criança;
a criança era vestida com roupas adaptadas ao seu tamanho para que não houvesse maior
circulação do sangue, etc. Considerava-se a sexualidade como sendo exógena. O educador
acelerava ou freava à vontade o processo e podia, criando uma atmosfera destituída de toda a
sexualidade conseguir que um homem vivesse em abstinência até a idade de trinta anos ou mais.
"Vivendo num deserto, morrer-se-ia, sem jamais ter-se vivenciado a sexualidade" (Rousseau). Estas
concepções não deixavam de ter conseqüências importantes. Numa criança que atingia a
puberdade muito cedo, não se considerava a primeira polução como característica de um corpo
saudável, mas como um indício de imoralidade e um castigo pelo qual a criança era moralmente
responsável. A puberdade era um sofrimento, podia até ser um problema e levar ao suicídio; para
os adolescentes e os pais de classe média, a puberdade, até meados do século XX, foi um delicado
período da vida.
A razão deste interesse concedido à criança e da maior exatidão do conteúdo deste
conceito provinha, em parte, dos esforços pedagógicos morais dos grupos cristãos. A violência com
que se esforçaram por conservar a auréola infantil enche-nos hoje de espanto. Esta pedagogia se
caracterizava por uma atmosfera de pânico. Havia sempre uma criança a proteger ou a salvar. Esta
ideologia exprimia também a nostalgia do Paraíso perdido, de uma existência angélica (por ser
assexuada). Possivelmente, quanto mais aumentava o sentimento de culpa dos adultos, maior era
o número dos que lamentavam a perda da sua inocência. Foi talvez por esta razão que se elaborou
o conceito de ser criança, apoiado na suposição de possibilidades inexistentes.
Uma outra característica da criança era a sua fraqueza. Portanto, devia ser protegida.
Podia-se fortalecer o seu caráter, mas era difícil consegui-lo sem pôr a criança em contato com o
mal. A proteção exterior parecia ser mais eficaz. A criança era colocada sob uma longa tutela; os
adultos representavam-na aos olhos da sociedade. Repeliu-se a Pléiade de que os danos poderiam
tornar a criança mais esperta, porque tal Pléiade era perigosa. O adulto servia de intermediário
entre a criança e a perigosa sexualidade. Estabelecido o reconhecimento da sua autoridade, uma
tal pedagogia dava em troca um saber depurado e cautelosamente dosado.
c) O mundo artificial da criança
A educação fazia-se em escolas de elite, que tinham muito pouco contato com o mundo.
Em geral, localizavam-se no campo ou em parques rodeados de muros, na proximidade das
pequenas cidades. Por um processo de seleção, excluíam-se os alunos demasiadamente
contaminados pelo espírito mundano. Quem não pudesse adaptar-se era expulso da escola. Para
tal era suficiente que algum dos colegas soubesse que alguém tinha tido contato com o mundo dos
adultos. Para ser educador era preciso sentir a vocação: esta condição também era válida para os
encarregados da vigilância. O pessoal devia ser, na medida do possível, do mesmo sexo que os
alunos.
A separação do mundo exterior manifestava-se também na vigilância da correspondência,
das leituras e das visitas. No século XVI os estudantes ainda podiam receber moças e mulheres ou
ter contatos com as criadas ou as lavadeiras. Agora, se um aluno recebia a visita de uma mulher,
sua conversa devia ter lugar na capela. Mais tarde instituiu-se o parlatório; a linha de separação
entre o internato e o mundo exterior foi assim demarcada. A freqüência das estalagens e dos
bordéis, os passeios com garotas, já não eram nada possíveis e faziam parte das infrações graves. A
desconfiança em relação ao mundo exterior exprimia-se igualmente nas atitudes adotadas com
relação às férias. O aluno só raramente tinha o direito de voltar para casa; as férias eram curtas
por serem expressamente consideradas como perigosas.
No internato organizava-se uma vida totalmente nova. O programa diário excluía a priorí a
ociosidade. A obrigação de observar a regra era forte e constante, sendo um elemento novo na
história da escola. Os edifícios eram construídos de maneira que a vigilância pudesse ser garantida
com um mínimo de pessoal. As instalações sanitárias e os dormitórios eram particularmente
vigiados. Para aperfeiçoar o aparelho de vigilância instaurou-se um sistema de delação, justificado
pelos educadores em virtude dos objetivos elevados da escola. As barreiras do pudor e do tato não
lhes permitiam confessar abertamente o objetivo das suas vigilâncias, porque a inocência já teria
sido tocada por esta confissão. Jacqueline Pascal dizia, no regulamento de Port Royal, 1721, que
era preciso vigiar as camas, a pretexto de ver se os alunos tinham cobertores suficientes, mas, na
realidade, para se ter a certeza de que nada de imoral se passava.
Os educadores modernos do século XVIII reprovavam a educação familiar, que julgavam
insuficiente, sendo, portanto, preferível retirar a criança aos pais. Segundo Campe, as casas dos
ricos estavam cheias de livros e de imagens obscenas; havia objetos saídos diretamente do Inferno,
"monstros de perversão". Os pais não exerciam a menor vigilância sobre as relações dos rapazes e
das moças; além disso, ás crianças eram demasiadamente mimadas. Os adolescentes estavam
expostos à imoralidade dos criados, ouviam e cantavam canções obscenas e assistiam ao
acasalamento dos animais. Tinham brincadeiras sexuais, podiam ver qualquer pessoa nua e
mostrarem-se igualmente nus. Os pais utilizavam uma linguagem grosseira e falavam abertamente
das suas relações diante dos filhos. Estes dormiam a dois na mesma cama, às vezes rapaz e moça
juntos. A juventude nobre era libertina. O príncipe tolerava tudo isto, a maior parte dos
educadores e dos eclesiásticos era indiferente a tal situação. Foi preciso ensinar aos pais e aos
educadores do tipo antigo como exercer a vigilância. Em primeiro lugar, deviam aprender quais
eram os pontos perigosos (os contatos com os outros, a cama, a maneira de se vestir e de se
despir, a limpeza, etc.); além disso, era preciso exortar aquilo que, numa expressão moderna, se
chama "sentido de responsabilidade". O severo Rollin diz repetidamente que as famílias onde a
inocência da criança não é destruída são muito raras. Em 1790, Peschek afirmava que este
"amolecimento" continuaria enquanto o Estado deixasse a educação das crianças nas mãos dos
pais.
Da mesma forma que os adultos, os jovens deviam mostrar-se corporal e psiquicamente
reservados na frente dos outros e perante si próprios. Era preciso não tolerar brincadeiras nas
quais as crianças pudessem se tocar. As conversas entre um rapaz e uma moça só eram
autorizadas depois de severas medidas de precaução. As conversas entre jovens do mesmo sexo
eram regulamentadas: pequenas diferenças de idade e uma igual distribuição de afetividade entre
todos os jovens do mesmo grupo.
A criação de um quadro artificial implicava na censura dos livros postos nas mãos dos
adolescentes. Havia uma diferença entre o material didático das escolas onde se era partidário do
progresso e o das outras escolas. Em discussões sobre a censura, perguntava-se às vezes se os
escritores da antiguidade tinham valor. Salzmann censura os professores de universidade pelo seu
tom imoral, quer dizer, uma linguagem não depurada e pouco adaptada ao seu auditório.
Acrescentava que atraíam assim um maior número de estudantes. Num discurso pronunciado em
1797, Herder falava da "extensão da imoralidade, da grande impudência e da impertinência que
reinam agora em tão numerosos escritos, e que são próprios para seduzir os jovens".
Gerson exprimira a mesma opinião quatro séculos antes. O recuo das fronteiras do pudor
pode ser apreciado pelo gênero de livros, de expressões e de situações que já não são autorizados.
Em 1790, Peschek escrevia que o Antigo Testamento estava cheio de passagens obscenas. O
príncipe devia ordenar a depuração dos textos bíblicos. Mesmo a "Bíblia dos jovens", severamente
censurada, já não corresponde às novas Pléiades. As bibliotecas de empréstimo assemelham-se a
farmácias onde se encontram, lado a lado, os produtos fortificantes e os nocivos. As autoridades
tinham que velar por tudo. O próprio catecismo deveria ser censurado.
Estas exigências não eram ditadas por inimigos fanáticos da sexualidade. Campe, Salzmann,
Bauer eram favoráveis à informação sexual; a sua intenção era proteger a inocência da juventude.
Queriam que os escritores soubessem exatamente para que público escreviam; reclamavam
leituras especiais para os jovens. J. H. Campe fundou uma "Biblioteca para a Juventude" que reunia
trinta e nove livros. As leituras para os jovens não só não preenchiam mas até aprofundavam o
hiato que existia entre o adolescente e o adulto.
Logo que o novo sistema foi instituído, os educadores puderam proibir e castigar tudo o
que não conviesse à categoria etária. A evolução fez-se lentamente. No século XVII já não se falava
em termos positivos da sexualidade; não se evocavam senão os aspectos negativos, como o
"prazer lúbrico", o divórcio, a violência, os abusos vergonhosos, os hermafroditas e as "mulheres
de vida fácil". No século XVIII desapareceram pouco a pouco todas as reminiscências relativas à
sexualidade; no fim do século o processo estava quase acabado. A partir de então os livros para
adultos passaram a ser igualmente depurados.
d) Educação mista
Ainda não existe uma história do ensino misto que possamos utilizar. Podemos apenas
mencionar alguns pontos essenciais. As escolas que, a partir do século XVI, foram construídas
sobre o modelo dos conventos não conhecem o ensino misto. Até 1870 não existia uma única
escola mista entre as escolas novas e progressistas. Os institutos de Zinzendorf e de Pestalozzi
eram uma exceção. No entanto, nas cidades e nas vilas encontravam-se escolas do tipo antigo
onde, por causa do pequeno número de alunos, estudavam na mesma aula rapazes e moças. Logo
que as possibilidades materiais o permitiram, no fim do século XVIII, começou-se a separar
progressivamente os rapazes das moças. A princípio esta separação teve conseqüências
imprevistas. No Allgemeine Schulzeitung de 1838 (n.° 128) pode-se ler: "Na região de Weimar, na
Saxônia, muitas comunas pediram, há vários decênios, que se suspendesse a separação entre
rapazes e moças, porque, com a separação, a sensualidade é excitada ao mais alto grau”. Contudo,
nos séculos XIX e XX a resistência contra a educação mista aumentou, durando mais tempo nos
países católicos do que nos países protestantes. Eis alguns argumentos: "O outro sexo não deve ser
visto senão à meia luz" (1909). "A natureza dá ao homem a inteligência e o amor materno à
mulher; uma mulher que se consagra aos estudos é uma monstruosidade" (cerca de 1898). Na
assembléia católica de Krefeld (1898), decidiu-se "não descansar enquanto a separação dos sexos
não fosse instaurada em todas as escolas". Na carta pastoral dos bispos franceses (14 de setembro
de 1909), as escolas mistas foram decretadas "indignas de um país civilizado". O ensino misto é
"um produto de cultura artificial em estufa da pedagogia moderna" (Lexikon der Pädagogik, 1913),
"em completo desacordo com a ordem natural", "uma catástrofe para o casamento"
(Muckermann, 1925). Teria sido cientificamente provado que o ensino misto é impraticável e
contrário à natureza (H. Pestalozzi, 1925).
No entanto, no último quarto do século XIX esboça-se uma tendência favorável ao ensino
misto. Em 1876, Palmgren fundou em Estocolmo a primeira escola-modelo de ensino misto. Quase
todas as outras escolas-modelo passaram a ser mistas; da mesma forma que as escolas primarias
do tipo antigo, que ainda existiam por toda a parte.

2. INFANTILIZACÃO DO ADOLESCENTE

É chocante observar o pouco interesse dedicado à história do objeto da educação, isto é,


da criança e do adolescente, enquanto temos informações bastante completas sobre a história do
ensino, do sistema escolar, das concepções pedagógicas e do regulamento. Não é de admirar,
porque também sabemos muito mais coisas sobre as guerras, as leis e as instituições dos séculos
passados do que sobre os homens. Estas lacunas em parte se explicam pelo fato de muitos
historiadores terem antevisto a existência de um modelo de pessoa atemporal.
Não se pode negar que os fatores sócio-culturais determinam as características de ser
criança e de ser jovem, como também a separação entre um e outro; desempenham também um
papel decisivo no desenrolar da puberdade e da menstruação. Influenciam o potencial sexual do
homem e da mulher, o reconhecimento ou a negação de um maior potencial sexual nos jovens, o
papel "natural" do homem e da mulher.
A partir do século XV apareceram duas categorias de idade: primeiro, a criança (entre os
séculos XV e XVIII); depois, o adolescente (no século XVIII). Tratava-se de categorias de elite, muito
limitadas quanto ao número de seus componentes e à sua origem social. Os modernos estudos
sobre este assunto fornecem, às vezes, resultados contraditórios, porque os autores nem sempre
estabelecem a diferença necessária entre o objetivo teórico e a realidade, entre as ações
individuais e as ações situadas num contexto social mais amplo; muitas vezes, até, acontecimentos
próprios de uma época e de uma só classe social são, por extrapolação, atribuídos a outras épocas
e a outras categorias. Por isso, nas discussões, é sempre necessário definir claramente de que
categoria e de que época se fala: da criança ou do adolescente, de que idade e de que sexo. Não é
possível considerar as características das crianças e dos adolescentes de uma sociedade agrária,
pré-industúal ou industrial como pertencentes a uma só categoria uniforme. Se levarmos em conta
esta diferenciação, algumas dessas contradições poderão ser superadas, e os fatos mostrados
nesses estudos se tornarão mais úteis.
a) História
Em 1962, H. H. Muchow situou o aparecimento da categoria adolescente no grande
período que vai de 1770 a 1920-1950. Prestou mais atenção às ligeiras diferenças que existem
entre as gerações do que à importante passagem de uma sociedade sem categoria nitidamente
definida de adolescente a uma sociedade que se declara favorável à demarcação desta categoria
social. Segundo Muchow, o seu aparecimento se deve às conseqüências do lluminismo
(Aufklärung). De fato pode-se considerar um certo tipo de adolescente, em certas regiões da
Alemanha, como a conseqüência de correntes, locais do lluminismo. Mas o "adolescente" já existia
antes do lluminismo. Devemos procurar a origem deste tipo nas mesmas transformações que
levaram à sociogênese da criança. A criança e o adolescente surgiram nos mesmos grupos. Estas
duas categorias apresentam certas semelhanças que podem ser incluídas no conceito de
infantilização. Bem entendido, é preciso definir o infantilismo da criança na sociedade industrial
ocidental comparando-a apenas com tipos de crianças de outras sociedades. A infantilização do
adolescente é mais fácil de observar, pois subsistem na nossa sociedade atual categorias sociais
em que o infantilismo tem feito poucos progressos, por exemplo nas classes inferiores e, mais
particularmente, entre as moças. No adolescente, os fatos fisiológicos tornavam impossível
qualquer negação da sexualidade; pelo contrário, o comportamento dos adolescentes e dos seus
educadores traía características mais ativamente repressivas; aliás, assistiu-se ao desenhar de uma
tendência para a castidade.
Recordava-se continuamente aos adolescentes que eles se encontravam na fase
preparatória para a idade adulta, transição continuamente adiada por uma preparação pedagógica
cuja duração não fazia mais do que aumentar. Como resposta a isso, os jovens proclamavam o
"ficar jovem" a todo custo. A conseqüência foi a formação de grupos, que contribuiu
essencialmente para o nascimento de movimentos de jovens, e mais tarde da gang e do clube.
Desde a segunda metade do século XVIII as amizades e outras relações de tendência homossexual
passam a ser mais características dos grupos de adolescentes. Esta fase homossexual substituía,
em certo sentido, a fase heterossexual das sociedades que não conheciam o fenômeno da
"adolescência". Além disso, ao historiador parece que o adolescente dava a conhecer
publicamente aos mais velhos suas características etárias. Estes, portanto, descobriam a existência
dessas características específicas, depois do próprio adolescente tê-lo feito.
Paralelamente, podemos observar o nascimento progressivo de um conflito de gerações.
Este conflito reduz-se, em geral, a problemas de relações de autoridade. Uma vez excluídos do
mundo real dos adultos, os adolescentes cultivaram os ideais e os ídolos. Tinham as suas
esperanças, os seus objetivos, na maior parte das vezes sem qualquer relação com a realidade.
Crescia uma juventude que hipotecava um futuro ilusório que procurava viver por antecipação. Ser
jovem era emigrar para um outro mundo, para um mundo imaginário. Por falta de integração
social e de funções de responsabilidade, a juventude dependia unicamente de si própria. Em vez
de se identificar com os adultos, identificou-se com grupos da mesma idade, afastando-se menos
da infância, porque eramreduzidas as oportunidades de se tornar um verdadeiro adulto. Pouco a
pouco a juventude tornou-se uma subcultura desprovida de funções na sociedade. O fato de
conservá-la afastada da realidade teoricamente deveria permitir que se desenvolvesse um maior
dinamismo no momento da entrada tardia na sociedade, pelo menos na primeira fase da evolução,
quando juventude não é automaticamente sinônimo de imaturidade ou de ignorância. Isto
também levou a uma certa falta de objetivos porque, com base em uma representação espiritual
própria e na força de vontade, podia facilmente se desenvolver em qualquer direção; o idealismo
tornou-se por vezes cinismo, pois as pretensas Pléiades pueris não convinham ao mundo dos
adultos. As conseqüências foram a insegurança, o desespero, o negativismo, a ausência de
objetivos e a angústia perante a vida; estas atitudes desenvolveram-se a partir do século XVIII e
encontraram também a sua expressão na literatura; no fim do século XIX foram notadas e descritas
pelos psicólogos.
b) Aceleração
Em numerosas obras da segunda metade do século XVIII fala-se do aparecimento mais
precoce da puberdade. É possível que este fenômeno se tenha produzido, pelo menos nos grupos
em que as condições de vida tinham sofrido modificações (alimentação, habitação, vestuário
diferentes e outras influências psíquicas). Também é possível que o desejo de refrear o
desenvolvimento dos adolescentes tenha produzido essa impressão, porque o tom em que se fala
desta pretensa aceleração não é objetivamente determinado. Os escritores, perturbados,
protestavam contra o fato da juventude reclamar, numa idade muito precoce, o direito de tomar
parte nos prazeres (mesmo sexuais) dos adultos. Os documentos não dedicam muita atenção a
uma aceleração do desenvolvimento corporal, a uma capacidade intelectual precoce ou a um
impulso à independência. Quando Salzmann dizia que os rapazes aos dez anos eram adolescentes
e aos quinze eram homens, falava apenas do comportamento sexual.
Quando examinarmos o comportamento sexual, mostraremos que os adolescentes de
numerosas categorias sociais tinham muito cedo uma atividade sexual, não apenas no século XVIII,
mas também nos séculos anteriores. No entanto, não temos qualquer prova da precocidade sexual
dos jovens. É necessário que o historiador se pergunte se esta aceleração não pode ser explicada
pelo desejo que os pedagogos tinham de exercer uma ascendência moral. Rousseau descrevia a
sexualidade do púbere como "o fogo desta idade", "as paixões", "os tormentos dos desejos". Não
podia tolerar este processo natural. Se às vezes era possível atribuir a influências físicas a
precocidade ou o atraso da puberdade, não se podia fazer delas a única explicação de uma
puberdade precoce. "É um dos erros mais correntes da filosofia do nosso século!" Esquecemo-
"nos" de que as necessidades muito precoces são suscitadas pelo meio imoral em que o
adolescente é educado. Mostramos uma excessiva benevolência para com suas necessidades
físicas e espirituais. A "santa inocência" poderia ser conservada por mais tempo do que até agora
tem sido. Salzmann pensava, por seu lado, que o meio em que as crianças nasciam e cresciam não
era tão natural como nas cabanas de nossos antepassados. Corre-se demais com as crianças agora
para que elas se tornem adultas mais cedo. Assim se violenta a natureza. Nos dois casos, o
conceito de "natureza" é tomado como argumento.
Segundo a antiga concepção, é natural que um adolescente viva conforme a sua idade; por
outras palavras, suas necessidades sexuais eram reconhecidas. Segundo a nova concepção, é
natural que um adolescente fique menino por muito tempo, o que provoca um retardamento
consciente. "Possam estes homens de quinze anos não ser crianças aos trinta!", escrevia Rousseau
em 1758, o que equivale a uma interpretação psicológica das teorias fisiológicas de Galeno: antes,
permanecia-se durante anos uma criança saudável; agora, com a precocidade, a criança ficava
inacabada, da mesma forma que, segundo Galeno, as crianças educadas por pais muito jovens
ficam inacabadas. A realidade histórica mostra que Rousseau se enganou, porque as crianças antes
do século XVIII não ficavam durante muito tempo "crianças", pelo contrário. Rousseau, os
filantropos e outros pedagogos moralistas podiam muito bem ter tido uma impressão de
aceleração porque, efetivamente, o que eles desejavam era frear a evolução.
c) Norma de abstinência e pudor
Também é preciso notar que na luta contra a (pseudo) aceleração se utilizavam como
armas, no século XVIII, campanhas para propagar a abstinência pré-conjugal e reprimir a
masturbação. Tratava-se de ações que se desenvolviam paralelamente ao movimento de proteção
da inocência infantil. Eram, em parte, os mesmos grupos pedagógicos que influenciavam os
mesmos grupos de elite. A castidade até o casamento passou a ser um ideal da classe média.
Certos meios eram considerados como imorais. Por exemplo, os estudantes de algumas
universidades.
Nos séculos XIX e XX pode-se acompanhar melhor esta luta, porque ela tomou forma em
numerosas organizações, tais como as congregações para rapazes e moças, os St. Josephs-
*
Vereinem , e outras associações de tendências religiosas, ideológicas ou políticas que defendem o
mesmo ideal. Mas, já no século XVIII, certos grupos livres de adolescentes, como os Hainbündlern e
os Stürmer und Dränger (cerca de 1770-1790), defendiam o ideal da castidade.
É a época do jovem Goethe, do jovem Schiller (o adolescente assexuado schileriano é um
protótipo). Num certo sentido, os grupos de jovens eram uma reedição aburguesada das
associações de rapazes que havia nos campos. Distinguiam-se dos outros grupos similares pela
procura de um refinamento nos costumes, preferiam uma amizade um tanto colorida de
homossexualidade, colocavam Eros acima do sexo, exigiam o respeito pela mulher, respeito que
significava manter-se a uma certa distância em termos de contatos sexuais. No século XVIII os
estudantes que lutavam pela abstinência encontraram apoio entre alguns escritores e filósofos. As
razões que ofereciam para justificá-la tomaram aos poucos um cunho nacionalista. A luta pela
abstinência obteve, posteriormente, uma influência sobre os estatutos e atos das organizações
estudantis alemãs. Esta luta também era intensa em outros países, embora houvesse diferenças
com relação à Alemanha. Na França, não existiam tais organizações ou ações comuns.
A resistência contra o ideal de abstinência empregava os argumentos opostos. Alguns
julgavam que o amor bastava para justificar as relações sexuais, como no "amor livre". Outros
pensavam que era preferível não se casar ignorante ("não se deve comprar nada no escuro",
Pestalozzi, 1780), em vez de escolher "o manto imaculado da pureza" (1816), que em certas
regiões representava simbolicamente o casamento virgem. Alguns médicos mostravam os perigos
da abstinência. Shelley escrevia, nas suas notas sobre a Queen Mab, que o ideal hipócrita de
abstinência da sociedade da época era uma superstição religiosa, e até um inimigo do equilíbrio
natural, uma moralidade pela moralidade. Um século e meio depois, Sartre retomou este
pensamento: "La pureté c'est une idée de fakir et de moine"

*
N. do T.: Organizações São José
O COMPORTAMENTO SEXUAL DOS ADOLESCENTES NO
SÉCULO XVIII

É impossível fazer um estudo exato do comportamento sexual dos adolescentes no século


XVIII. Todo o investigador gostaria de trocar numerosas páginas descritivas por uma só página de
estatísticas. Mas isto não passa de um sonho. Só é possível formular algumas hipóteses: pode-se
supor que existe uma continuidade de comportamento através dos séculos e admitir que, nos
textos escritos, tenham sido mencionadas algumas transformações essenciais. Podemos também
tirar algumas deduções a partir das teorias de médicos e de especialistas da higiene. Finalmente,
na nossa opinião, o comportamento é em grande parte regido pelas relações sócio-econômicas.

1. CONTATO ENTRE ADULTOS E CRIANÇAS

No princípio do século XV, Gerson falava repetidamente, nas suas prédicas, do "desgosto
da infância" e dos "contatos físicos das crianças". Queixava-se das pessoas imorais "que têm
prazer, pelas suas palavras e pelos seus atos, em levar crianças ao pecado, quando estas deveriam
ser puras como anjos". A esse respeito evocava, sobretudo, o hábito dos pais e dos criados de
palparem, acariciarem e excitarem o corpo ou o sexo da criança.
O estudo destes contatos é possível graças ao relatório que Heroard, médico da corte de
Luís XIII, escreveu dia a dia, e até hora a hora, nos primeiros anos do século XVII. Luís XIII ainda não
tinha um ano e já ria a bandeiras despregadas "quando se brinca com o seu pênis"... Ele chamava
um de seus pajens "com um 'ei! levanta seu vestidinho e mostra seu penis'. Todos brincavam com
seu pênis e o beijavam". Muitas vezes ia para a cama do rei e da rainha, onde todos ficavam nus.
Quando atingiu um ano e o fizeram noivo da infanta da Espanha, brincavam com ele, perguntando:
"Onde está o amorzinho da infanta?" E a criança punha a mão no pênis. "A marquesa de Verneuil
muitas vezes lhe metia a mãozinha no corpete; mete-se na cama da ama, que brinca com ele
metendo-lhe também a mão no corpete". No dia 12 de agosto de 1604 gritou: "Zejal, meu pênis
esta como uma ponte levadiça". Conhecia as posições de coito e falava delas com as suas
camareiras. Quando Mme. de Guise o levou à rainha, mostrou-lhe a cama: "Monsieur, aqui está
onde, foi feito". Respondeu: "Pela mamãe?" Tinha exatamente quatro anos. Entre os cinco e os
seis anos, fez com que a sua camareira, Mlle. Mercier, que dormia no seu quarto, ficasse em
posições tais que ele pudesse ver o seu sexo. Mais tarde tocou-a. Conhecia a existência da sua irmã
bastarda; o pai referia-se a ela abertamente e falava-lhe da sua amante. Banhava-se nu com o pai e
fazia observações sobre os órgãos genitais deste. Foi repreendido por ter mostrado o seu pênis a
uma menininha.
Podemos comparar a educação de Luís XIII com a de Gargântua. Rabelais falava das
"distractións" que as governantas ofereciam a Gargântua, dizendo que provinham de uma velha
tradição. "Existem pais que deixam seus filhos até os treze/catorze anos nos braços de suas amas
ou governantas, que geralmente os acariciam imoralmente."
O futuro cardeal de Bernis, nascido em 1715, advertia, por experiência própria, contra os
criados de quarto que ousam com a criança o que se teria vergonha de arriscar com um jovem. As
amas eram consideradas particularmente perniciosas; transmitiam à criança, com o leite, a sua
transbordante sensualidade e condenavam-se "excitando sexualmente as crianças e acariciando-
lhes o sexo". De acordo com o cardeal, faziam-no para que as crianças dormissem melhor e
tivessem um sentimento de bem-estar. Não se devia permitir que uma "criada de meninos" se
deitasse ao lado deles, porque os masturbava e se deixava acariciar. C. G. Salzmann diz que se
ensinava esta auto-satisfação às crianças por estupidez e por ignorância. B. C. Faus, em 1791,
declarava que numerosos pais ignoravam ser perigoso brincar com o sexo dos filhos; por isso é
que, duas vezes por ano, os pais deviam se reunir depois da missa, para que se falasse com eles e
para incitar os homens sensatos a escrever textos educativos; escrevia, aliás, a Pestalozzi, numa
nota de pé de página: ''Também o deverias fazer, nobre, grande e querido Pestalozzi!" (Dever-se-ia
esperar, na prática, que Pestalozzi, que dedicou tantas páginas à problemática sexual, tivesse
escrito sobre a masturbação.) E Faust continuava dizendo que vestiam-se as crianças, a partir dos
três anos, com um calção: "as crianças, os criados, as criadas ajudam-no a enfiar os calções e
puxam-lhes pelo sexo, brincando com ele". Bauer falava repetidamente dos criados: "É corrente
que estas criaturas dispam, olhem, toquem, palpem, excitem, por voluptuosidade, o sexo de
crianças muito novinhas e até de adolescentes, de tal modo que já não se presta ao fato a menor
atenção e mal se chega a proibi-lo; e por que haviam de fazê-lo? "Os pais sensuais também muitas
vezes o fazem". Evocava o caso de rapazes e mocinhas seduzidos por criados. Os criados que
queriam ganhar "as boas graças" do seu jovem patrão ensinavam-lhe como se masturbar. Assim,
segundo os autores do século XVIII, a criança tornava-se "um escravo da masturbação", sentindo
gosto pela voluptuosidade e procurando, além disso, continuamente, o contato de jovens de
ambos os sexos; além disso, a masturbação faz mal à saúde.
É preciso ter em conta a atitude pré-burguesa adotada para com á sexualidade para
compreender por que é que estes toques eram tolerados. O que nós hoje entendemos por
"sexualidade" não formava então um todo. Só se conhecia o comportamento sexual que servia
para a procriação. Dado o papel que os interesses econômicos e outros desempenhavam na
reprodução, tal tipo de comportamento sexual foi regulamentado. O que não tivesse qualquer
relação com a procriação, como a sexualidade pré-pubertária, era considerado como não sexual,
não lhe sendo dada qualquer importância. Não havia taboo on tenderness. Entre as crianças, os
órgãos genitais eram tratados como as outras partes do corpo: segundo Villaume, tinham todas "o
mesmo valor". "Até a puberdade, o homem é um ser incompleto", pois não pode procriar. Os
povos, cujas relações não estão impregnadas de sexualização e genitalização, não vêem qualquer
razão para privar a zona genital de contatos prazerosos. Ford, Beach, Edwards e Masters dão a este
respeito numerosos exemplos. Encontram-se estes comportamentos nos habitantes das ilhas
Samoa, de Trobriand, as Ra'ivavae e as Murias. Margaret Mead refere um exemplo semelhante em
Bali: "O pênis do menino é um objeto que a mãe, a jovem que vigia as crianças e toda a gente que
o rodeia tocam, puxam e excitam. Estas ligeiras carícias são acompanhadas das palavras 'bonito,
bonito, bonito', adjetivo só empregado para os homens. Davam-se ligeiros tapinhas na vagina da
menina repetindo o adjetivo feminino correspondente: 'gostoso, gostoso, gostoso'".
2. BRINCADEIRAS SEXUAIS

Como no caso das brincadeiras sexuais se observava a mesma atitude de segurança, os


pedagogos também deviam lutar contra o hábito que os pais têm de fazer graça a propósito de
coisas que são "pecados de luxúria". J. B. Basedow escrevia em 1770: "A brincadeira que consiste
em dar os nomes de noivo e noiva a crianças me é simplesmente intolerável. Mais ainda quando se
tem a esperança de que a criança logo terá um amante (feminino ou masculino), e isto como um
impulso à moralidade. É assim que rapazes e moças pensam e são reforçados nesse pensar, pela
brincadeira que governa o pecado da impureza nesta sociedade". P. Villaume era o único a referir-
se, no caso dessas brincadeiras, às disposições filogenéticas: os gatos, cães, touros e cavalos muito
novos fazem movimentos que ainda não são adequados, porque esses animais ainda não estão
bastante maduros para isso. Não se deve, portanto, admirar que tais tendências existam na
criança, tanto mais que a educação a isso a incita. S. G. Vogel falava de "lascívia entre os dois
sexos"; afirmava ter visto muitas vezes rapazes sentarem-se nos joelhos do irmão ou da irmã e
balançarem-se enquanto um acariciava o sexo do outro, de modo que este ria às gargalhadas. Os
adultos presentes pareciam, achar essa cena atraente. Em 1802, Rehm contava que, na sua
juventude, gracejava a propósito dos órgãos genitais com um grupo de jovens; ridicularizavam
também uma menina de seis anos porque ela ainda não tinha seios e aconselhavam-na a pôr duas
batatas debaixo do vestido. Os pais, que assistiam a esta cena, "riam" com a gracinha. Outros
textos realçam a atitude dos adultos: os professores, diretores de escola e pais riam destas "coisas
estúpidas", que os educadores progressistas queriam combater, e chamavam a este processo
"pedantismo". P. Villaume achava necessária a purificação de duas possibilidades de contato entre
os dois sexos: em primeiro lugar a "diversão" (dança, teatro, romances), que é sempre imoral; e,
além disso, deve-se ter cuidado com as relações nas quais se externa solidariedade ou compaixão,
até quando irmãos choram juntos ou abrem seu coração um para o outro, mesmo isso seria
perigoso, e tanto mais perigoso quanto menos o parecesse ser externamente.

3. RELAÇÕES SEXUAIS PRÉ-CONJUGAIS

a) Teorias de médicos e higienistas


De maneira geral, no século XVIII ainda se admitia a teoria de Galeno, de Hipócrates, de
Celso, sobre as substâncias líquidas contidas no corpo. Segundo eles, o corpo devia purificar-se
regularmente dos líquidos e vapores supérfluos, bem como de outros restos. Esta perspectiva
admitia a necessidade de expelir gases, cuspir, arrotar, etc. O processo de modernização havia
submetido algumas destas funções a regulamentos antibiológicos. A antiga concepção podia
justificar, até o século XVIII, a freqüência a bordéis e a masturbação terapêutica, o que era
sobretudo válido para as pessoas (por exemplo, as viúvas e os viúvos) que, após um período de
relações sexuais, as interrompiam. No século XVIII discutia-se a continência, mas sempre se
concluía que era nociva; provocava perturbações físicas, histeria nas mulheres e fraqueza nos
homens. Ainda estamos longe da teoria da sublimação freudiana. A opinião de Diderot, na
Encyclopédie, é categórica; "Todos os médicos concordam que os diferentes sintomas de afecções
histéricas que atacam as jovens ou as viúvas são uma conseqüência da privação do casamento... É
em vão que as banham, que as enchem de calmantes, pois o seu delírio some no momento em que
os licores excedentes podem se escoar". Em 1749, Buffon considerava nociva a superabundância
de liqueur de vie, quer dizer, de esperma. Este "licor" é destinado a passar de um corpo para o
outro. Em textos do século XVII pode-se ler, por exemplo, que "seres humanos fortes e sadios
podiam continuar castos e probos sem prejudicarem a sua saúde". Na primeira edição do seu livro
(1798), Malthus havia recomendado dois meios para resolver os problemas de população: a
pobreza e o "vício"; só em 1803 é que acrescentou um terceiro, o the moral restraint, O seu
tradutor, o Dr. Hegerisch, contesta este meio: "enquanto médico, impõe-se-me a triste certeza de
que a continência feminina é um ultraje à natureza, que muitas vezes se vinga por meio de grandes
males".
A teoria pela qual se reprovava a continência também serve para exortar à moderação. As
relações muito freqüentes são, de início, desaprovadas: a Venus nimia enfraquece o ser humano.
Uma segunda regra dizia: as pessoas idosas não devem retirar ao corpo, apesar "do desejo de
terem relações sexuais", nenhuma das forças necessárias á conservação da vida. "O que dá a vida
serve também para conservá-la", dizia Buffon. Finalmente, pessoas muito jovens poderiam, em
conseqüência de relações prematuras, retirar ao corpo elementos necessários à vida. Quem tivesse
relações prematuras emagrecia e até encolhia. O esperma de um homem que ainda não tivesse
chegado à maturidade só podia engendrar crianças fracas, isto é, meninas. Aristóteles já tinha dito
que o sêmen permanecia estéril até a idade de vinte e um anos e que as crianças procriadas pouco
tempo depois desta idade eram mais fracas, como também se podia observar na maior parte dos
animais da primeira barriga.
Além disso, quem tivesse relações prematuras morria também prematuramente.
Até o século XVIII sempre se ouviu dizer que uma atividade sexual prematura provoca a
degenerescência do esperma; quem se entregava a excessos na sua juventude tinha de postergar
por alguns anos a procriação de filhos.
Determinam as autoridades médicas a idade exata em que as relações sexuais já não são
nocivas? A maior parte delas refere-se às diferenças individuais e locais. Se faziam cálculos sobre a
idade do casamento, esta idade raramente era inferior aos vinte e cinco anos para os homens, e
aos dezoito para as moças. Estes números são muito idealizados. Havia muitíssima gente que se
casava muito mais cedo, em particular os príncipes. É preciso compreender que estes números
exprimiam o desejo que os médicos tinham de garantir uma boa margem de segurança para suas
afirmações, mas, ao lado disso, seu intento era também o de se expressar acerca da idade na qual
se pode ter maior garantia quanto ao sucesso da concepção de crianças saudáveis, e se possível do
sexo masculino. Esta atitude liga-se também estreitamente à ideia de que as qualidades morais e
físicas adquiridas pelos pais até o momento da fecundação eram transmitidas ao filho. Quanto
mais adultos fossem os pais, mais perfeitos seriam os filhos.
A partir da segunda metade do século XVIII, os escritores chamaram fortemente a atenção
para os danos físicos. É característico ver como os moralistas edificavam teorias que os médicos,
por sua vez, aceitavam para estabelecer o seu diagnóstico. Assim, quanto mais o comportamento
sexual se afastava da norma de moralidade, maiores eram as perturbações como se esta distância
estivesse na origem dessas perturbações. P. Villaume, a exemplo do Dr. J. Kämpf, chamava ao
esperma "as partes espirituais do sangue". O esperma era o bálsamo, as "energias" do sangue;
devia proteger o sangue da "corrupção". Quem ejacula com demasiada freqüência desperdiça seus
licores de vida; se continua assim, "emite um sêmen imperfeito e, por fim, deitará o seu sangue!
Verdadeiramente, é caso para a gente se assustar!".
Em numerosos escritos para os jovens, dentre os exemplos "verdadeiros" encontram-se
exemplos de doenças sensacionais, conseqüências de um único mau passo. O castigo segue
imediatamente o delito; aos que até então não haviam tido quaisquer incômodos profetiza-se uma
lenta doença. P. Villaume falava também de perturbações provocadas pela ejaculação prematura,
sem esperma, na mulher e na criança pré-pubere. Estabeleciam uma vaga diferença entre o
esperma e as diversas secreções; as mulheres a as crianças só produziam secreções, mas, na
realidade, o seu caso era ainda mais grave. "É preciso ver, também, que estas secreções não são
destinadas a ser emitidas ... devem ficar totalmente no interior do indivíduo." Tais afirmações são
notáveis, porque iam totalmente contra as hipóteses médicas. Os médicos admitiam a existência
de um sêmen feminino, mas não de uma ejaculação comparável à do homem. Não se falava de
ejaculação na mulher senão em obras éticas, moralizadoras ou pornográficas. As afirmações de P.
Villaume também não concordavam com as concepções dos teólogos moralistas romanos. Tinham
estes rejeitado a teoria epicurista, que admitia a existência de uma espécie de sêmen feminino, e,
por conseqüência, haviam declarado impossível que a mulher pudesse cometer o pecado da
masturbação, "pois não tem sêmen". Deste ponto de vista, o papel do esperma surgiu claramente
para a ética. Logicamente, transpuseram-se elementos do domínio físico, fácil de controlar, para
fenômenos psicológicos. Assim, K. G. Bauer não se contentava em mostrar que tornava-se
impossível atingir um desabrochar pleno — o caráter também sofria; por isso existem tantas
pessoas sem caráter, sem espírito claro e indignas de confiança: "O caráter total dos adolescentes
perde-se nas excitações e satisfações prematuras da voluptuosidade". A despreocupação, a alegria,
a inocência, a confiança em si e a resolução davam lugar à tristeza, à malevolência, à mesquinhez,
ao autodesprezo e ao medo.
b) Teorias de filósofos, éticos e pedagogos
Quando, por volta de 1780, alguns educadores de "adolescentes amadurecidos"
perguntaram a Kant se as relações sexuais pré-conjugais estavam autorizadas, este respondeu que
era necessário proibir, a todo o custo, a masturbação, porque é contra a natureza, e também o
coito, embora não o seja (foi a própria natureza que despertou a sexualidade), porque o
adolescente não tem a possibilidade de criar os seus filhos: "Comete assim uma falta contra a
ordem burguesa".
O pedagogo K. G. Bauer alegrava-se pelo fato de, graças à influência de Kant, Garve e
outros filósofos, a "moral ainda não estar morta". Para reforçar esta afirmação, citava no seu livro
exemplos de adolescentes e adultos que reprovavam o seu próprio comportamento; no entanto,
procurava exemplos de castidade pré-conjugal nos germanos como eram descritos por Tácito. A
seu ver, a única saída para esta situação insustentável era exigir ainda mais imperativamente a
aplicação das normas da nova moralidade.
No entanto, nem todos os representantes de uma nova moral sexual estavam igualmente
convencidos, em particular os que, em conseqüência da sua profissão, não pertenciam à burguesia.
Assim, Peschek condenava o celibato e declarava-se favorável à atividade sexual. Em sua opinião,
as autoridades não deveriam-obrigar ao celibato uma camada inteira da população, por exemplo
os soldados; não deveriam ir contra os direitos da natureza. Os laços do casamento deveriam ser
relaxados, e deveria ser concedido a cada um dos cônjuges o direito de se divorciar; seria a melhor
maneira de evitar a desordem da sexualidade extraconjugal, a conseqüência mais freqüente de um
casamento infeliz. Os bordéis eram maus em si, mas, mesmo assim, preenchiam uma função
benéfica contra as "loucuras onanistas". A burguesia já repetidamente havia sugerido a instituição
de um tribunal dos bons costumes, que deveria, por exemplo, julgar os casos de gravidez pré-
conjugal. Mas C. Beccaria (1738-1794) não recomendava o castigo a estes atentados aos costumes.
Era como se fosse um rio que não poderia ser contido por um dique; era preciso simplesmente
canalizá-lo. Era necessário agir nas origens, e não como os "pregadores de moral fora de moda". Os
pais não deveriam proibir que os filhos se casassem; era-preciso combater a pobreza e os
preconceitos.
Em 1780, Pestalozzi pediu que fosse feita, durante a celebração do casamento, uma
diferença nítida entre os jovens que deviam casar em conseqüência de uma gravidez e os que não
eram obrigados a isso. Defendia também a idéia de um tribunal dos bons costumes, mas com uma
forma humana. "Conselhos de consciência" deveriam formar um instituto nacional para ajudar a
"salvação das almas", que em cada aldeia, em cada cidade, teria um "tribunal dos bons costumes",
e tomaria sob a sua proteção a jovem grávida, para permitir que esta se casasse facilmente. No
entanto, o sedutor não deveria ser obrigado a casar. Isto representa, de fato, a institucionalização
do que existe, não formalmente, em numerosas coletividades fechadas: por exemplo, a
condenação dos que tiveram contatos sexuais pré-conjugais, com uma gravidez conseqüente,
condenação que só é retirada quando o adolescente casa com a jovem que engravidou.
Dez anos depois da publicação de Dei Delitte e Delle Pene (Beccaria, 1781), Peschek ainda
defendia o severo tribunal dos costumes. Achava que ele era necessário, sobretudo no campo,
onde deveria vigiar os divertimentos públicos e até proibir certas reuniões privadas. A descoberta
da masturbação deveria igualmente fazer parte das suas tarefas. O original Peschek propunha
também instituir uma espécie de casamento de experiência, "um plano médio entre o casamento e
o celibato". Que, a seu ver, não apresentaria problemas porque o casamento não é um
sacramento, mas um contrato civil. A vantagem desta instituição seria regulamentar tudo o que
até então ocorria desordenadamente. As jovens, "que são feitas de carne e de sangue e têm de
ficar solteiras durante muito tempo, lançam-se nos braços do primeiro que aparece". O casamento
de experiência restabeleceria a ordem: poderia ajudar os jovens que muitas vezes tinham poucas
oportunidades de casar, tornando-se assim mulherengos, e poderia, além disso, proteger as
mulheres jovens. Deste modo, o número de jovens abandonadas seria menor, os jovens "de bem"
poderiam conhecer moças de classe inferior e já não teriam necessidade de se entregar à
libertinagem. A sexualidade seria mantida no interior dos limites naturais da monogamia
provisória. Ele e ela não deveriam ter relações constantes. Cada qual conservaria o seu nome. As
autoridades e a Igreja garantiriam esta união. Seria um benefício para o incalculável número de
jovens ainda materialmente dependentes e que vivem os seus melhores anos, os anos "em que as
forças de procriação se desenvolvem mais harmoniosamente". Antes de mais nada, seria um
benefício para a ordem social, pois os jovens tentam conservar, contra as regras, o que lhes é
proibido por prescrição, fazendo, deste modo, com que surja a desordem.
Esta proposta, aparentemente revolucionária, não levantou tempestades de indignação no
século XVIII, como sucedeu um século e meio depois com a proposta do juiz Ben Lindsey de
instituir o casamento de camaradagem. Aliás, a idéia não era nova. O conde Maurício de Saxe
(1696-1750), filho natural do príncipe eleitor Augusto o Forte de Saxe e da condessa Maria Aurora
von Königsmarck, já num livro se tinha declarado a favor do casamento de experiência. No fim do
século XVIII e princípios do século XIX houve numerosas polêmicas em torno do amor livre e outros
planos de reforma do casamento foram imaginados.
c) A concepção das Igrejas
A concepção dá Igreja católica acerca das relações sexuais parece bem clara: é um pecado,
às vezes um pecado mortal, que pode ser severamente castigado. Mas, se lermos o verbete
"obscenidade" no Dictionaire de Théologie Catholique, veremos que algumas seitas cristãs não
condenam as relações amorosas livres e que as relações sexuais pré-conjugais representam,
quanto muito, em certas regiões e em certas épocas, um delito menor, que pode ser expiado por
uma ligeira penitência. Por vezes, sob a pressão de indivíduos isolados, as Igrejas tentaram
cristianizar estas situações. Mas, como tais tentativas surtiam pouco efeito, diferentes sistemas de
normas coexistiram durante séculos, e até os nossos dias.
É preciso não esquecer que até os séculos XVII e XVIII a passagem do celibato ao estado de
homem casado não era claramente delimitada. Existiam muitas formas de casamento, entre
outras, o casamento livre dos jovens, fundado apenas no consentimento mútuo, sem autorização
dos pais nem a bênção religiosa ou formalidades civis. Os limites eram, pois, limprecisos, e não se
pode falar claramente do conceito pré-conjugal. Encontramos alguns dados sobre a sexualidade
pré-conjugal em Tomás de Aquino. Segundo o direito canônico da Idade Média, os noivos que
tinham relações sexuais anunciavam publicamente a sua intenção de se casar. No século XVI as
Igrejas começaram a retomar oficialmente o combate contra as relações pré-conjugais. Os esforços
dos grupos religiosos tinham dois objetivos: desvalorizar os noivados e elevar o nível do
casamento. (A cerimônia do casamento ainda nos séculos XVII e XVIII era uma simples formalidade
e vinha depois dos esponsais, que tinham uma importância muito maior.) Isto significava, antes de
mais nada, que as Igrejas, que tomavam parte nos casamentos, mas não nos esponsais, desejavam
acentuar apenas a validade do casamento e, por outro lado, limitar a sexualidade ao casamento.
Já de início, não era possível à Igreja atingir seus objetivos de uma forma eficaz. Nos
primeiros séculos, fazia autoridade a frase de Tertuliano, segundo a qual a Igreja não proibia o
casamento sem bênção, mas reprovava-o. Só no século XII é que o casamento se tornou um
sacramento. Esta tomada de posição deveria, uma vez mais, ser expressamente estabelecida no
Concilio de Trento. Lutero defendeu primeiro a autoridade dos pais contra a Igreja: a vida comum
fazia dos noivos um "casal aos olhos de Deus". Reprovava os esponsais secretos, o que significava
que concedia valor ao caráter unitivo dos esponsais. Mas numerosas Igrejas protestantes emitiram
decretos para rebaixar a importância dos esponsais; regulamentou-se a sua duração e as
atividades sexuais durante este período. Muitas vezes se reclamou um casamento de experiência
de um ano, mas as Igrejas reduziam este período de tempo. Os casamentos contraídos sem
autorização dos pais eram reprovados. O Edito de Nantes já continha sanções contra Os
"casamentos secretos" entre adolescentes. De novo, foi preciso tomar outras medidas. E. Pasquier,
que defendia a autoridade do Pater Familias, opunha-se aos casamentos de crianças, que às vezes
eram legitimados pelo clero contra a vontade dos pais.
d) Atitudes perante a sexualidade
As concepções correntes eram menos influenciadas pela posição das Igrejas do que pela
atitude dos médicos, e, sobretudo, por motivos sócio-econômicos impositivos. Podemos ler em
Gerson (princípio do século XV) que algumas pessoas, que mantinham o desejo de seguir uma vida
religiosa, haviam confessado que "não tinham a possibilidade de viver castamente". Numa outra
passagem encontramos um ponto de vista corrente: "Era preciso que a juventude passasse. O
pecado que ali ocorre é o menor de todos". Estas frases ilustram a atitude que encontramos nos
séculos posteriores. Antes de mais nada, acentuava-se o fato de a continência pré-conjugal ser
impossível, A regra de vida de Erasmo era: "Si non caste, tamen caute" (se não casto, pelo menos
prudente). Ainda no fim do século XVIII, Peschek escrevia que todos consideravam a continência
nefasta. Esta opinião era igualmente defendida pelos médicos. Buffon afirmava que uma
continência excessiva provocava doenças, perturbações e desejos contra os quais a razão e a
religião nada podiam. Goethe, como numerosos adolescentes, tinha uma "amiga de cama"; sua
mãe sabia.
O outro argumento nascido no século XV era que "a juventude tinha que aprender por
experiência própria", pois, caso contrário, mais tarde, surgiriam dificuldades (esta opinião ainda
hoje é muito difundida). Também se pensava que os anos de juventude deviam ser anos de alegria.
Em 1711, o inglês Steel chamava os anos que precedem o casamento the best years of our life;
seria uma loucura não prolongar ao máximo este período. Na Alemanha dizia-se: Jung gefreit, nie
*
gereut . Como esse comportamento era, de modo geral, julgado? Recordamos Gerson: "O pecado
que ali ocorre é o menor de todos". As relações sexuais pré-conjugais eram menos severamente
julgadas que o celibato ou o casamento sem filhos. Um homem honrado, mesmo provido das
maiores qualidades, era tido como pouco potente e fracassado caso se notasse que evitava todas
as ocasiões de fugir à castidade e tentasse dominar os seus instintos.
No século XVII, Niccholes escrevia que, na opinião das "jovens evoluídas do nosso tempo",
era preciso esquecer rapidamente a virgindade, tanto quanto possível na idade de catorze anos,
ou, melhor ainda, na idade de treze anos. De acordo com Stubbes, apenas um terço das jovens
que, depois da festa da árvore de Maio, partiam para os bosques com os seus namorados voltavam
virgens.
Os renovadores da moral chegaram a uma concepção de homem que via a natureza como
mais que uma, totalidade, uma concepção que, entre outras coisas, entravou o progresso das
ciências que trabalhavam analiticamente. Devido à visão de mundo daquela época, havia uma
estreita relação entre o natural e o sobrenatural. O homem devia compreender os sinais
escondidos da natureza. Os próprios fenômenos naturais formavam uma cadeia: a mesma lei regia
o curso dos astros, o ritmo das estações, as fases da vida e as funções do corpo. Assim, a vida
deveria igualmente seguir o seu curso desde o nascimento até à morte. Viver era tomar parte
positiva num mundo organicamente coerente.
O corpo não é o oposto do espírito. As funções do corpo ainda não estão diluídas em

*
N. do T.: Em português: "Jovem liberto, nunca arrependido".
campos específicos; o instinto sexual é endógeno e é preciso não distinguir a necessidade sexual
das outras necessidades. A ejaculação, que se pensava também existir nas mulheres, é apenas uma
dentre as muitas secreções do corpo. Os genitais não são um órgão independente. A excitação
sexual é comparável a outros estados que assaltam o homem e pelos quais não é responsável; as
paixões não podem ser julgadas segundo um critério moral, porque são consequências da ação de
forças cegas e mecânicas, como a alimentação ou as estações do ano; o homem tem a
possibilidade de dominá-las em parte, de refreá-las por meio de uma grande força de vontade.
O instinto sexual não era considerado como uma necessidade autônoma e unicamente
centrada nos prazeres, mas como aquilo que impele o homem para a mulher, que serve à
procriação e enche a casa de descendentes. Não havia sexualidade por si só, da mesma forma que
não havia separação entre a lei natural e as dos costumes. Para o homem médio do século XVII, o
mundo era um conjunto fluido em que nada se deixava delimitar claramente, os sentidos ainda
percebiam impressões de conjunto: ouvir, cheirar, sentir, tocar e ver formavam um todo. O mundo
interior do homem tinha uma estrutura vaga, não se distinguindo claramente do ambiente à sua
volta. A separação entre o interior e o exterior, os pensamentos e as coisas, o consciente e o
inconsciente, era menos nítida. Como o movimento de individuação tinha progredido muito pouco,
era difícil fazer com que o homem compreendesse que os motivos das suas ações, e, por
conseqüência, a sua responsabilidade, se encontravam nele próprio. O seu comportamento era
regulado a partir do exterior. Não havia a impressão de que as decisões, os desejos e os esforços
nasciam dentro da própria pessoa. Era dotado de um sexo e ninguém podia escapar a este
fenômeno, a menos que não fosse "normal" ou tivesse recebido de Deus forças mágicas e
sagradas, a fim de viver em abstinência. Mas não se acreditava íanto no celibato; o sexo parecia
mais poderoso do que a graça. Os próprios santos deviam travar uma luta constante. Nesta época
de pré-individuação ou — para empregar uma expressão não-psicológica — individualismo, não
era grande a oposição entre indivíduo e sociedade. Não era o indivíduo que resolvia o seu
problema sexual, remetia-se às soluções propostas pela sociedade.
e) Tipos de união e relações pré-conjugais
Não se pode considerar o problema das relações pré-conjugais separado do tipo de união
existente. Assim, nos casamentos de crianças, que, antes do século XVIII, aconteciam com certa
frequência, os noivos raramente se viam antes do dia do casamento. Poder-se-ia, então, falar
somente de uma eventual relação com um outro parceiro. Este era designado pelos pais, sendo a
maior parte das vezes escolhido por razões econômicas. Os camponeses ricos uniam, através do
casamento, gado e terras; a mulher devia ser, antes de mais nada, uma camponesa; o amor devia
submeter-se a essas injunções. Os príncipes aumentavam desta forma as suas terras e as suas
províncias. A nobreza contraía, às vezes, casamentos de, dinheiro com a burguesia, e a burguesia
casamentos de títulos com a nobreza. A importância que se concedia à fecundidade influenciava
igualmente a fase pré-conjugal; até o fim do século XIX, um terço dos nascimentos, se não metade,
ocorria antes do casamento. Uma grande parte destas gestações era voluntariamente provocada.
Quanto mais conjugal se tornava a união, mais diminuía a influência dos pais, e mais se
modificava o caráter do período pré-conjugal. Os noivos podiam então evitar deliberadamente as
relações, e até recusá-las, enquanto não se realizasse a cerimônia do casamento. Devemos
igualmente prestar atenção à diferença de idade entre os cônjuges. Assim, quando uma jovem
casava aos catorze ou quinze anos e um homem aos trinta, o seu comportamento conjugal mútuo
era diferente.
Estamos particularmente bem informados sobre o comportamento pré-conjugal nas
regiões agrícolas, devido à sua estabilidade ao longo dos séculos. Como os agricultores
representavam, até o fim do século XVIII, 80% a 90% da população do continente, e numerosas
pequenas cidades ainda tinham um caráter agrícola, este comportamento era bastante difundido.
Podemos distinguir três fases: o período de procura, em que as pessoas procediam a um inquérito
no mercado do casamento; os noivados, com o companheiro que parecia convir; depois, a
cerimônia do casamento. Entre a primeira e a segunda fases, passava-se progressivamente, de
breves relações com numerosos companheiros (ou companheiras), a uma freqüência mais
exclusiva e mais durável. Na primeira fase, testava-se a sorte no mercado do casamento; antes de
mais nada, procurava-se saber, com certeza, "quem ia com quem". O controle tornou-se depois,
progressivamente, mais severo; eram muitas vezes duríssimas as sanções sociais contra os que se
uniam sem previamente procurar um companheiro, sem obedecer às regras ou sem se submeter à
vigilância do grupo dos adolescentes. O adolescente só poderia adquirir a sua liberdade
submetendo-se às regras. Estas regras destinavam-se a garantir às negociacões no mercado do
casamento um curso regular e mais ou menos público. Quando, após uma fase de inquérito e de
procura, as relações entre um jovem e uma jovem eram "certas", toda a aldeia o sabia, e os pais,
na maior parte das vezes, estavam de acordo. Havia então todas as probabilidades do casamento
se realizar, a não ser que a jovem fosse estéril. Quando se sabia que o casamento estava previsto,
ter relações pré-conjugais não significava abandonar prematuramente qualquer coisa de perdido
para sempre, mas afirmar o sucesso obtido durante a procura, a entrada na posse da conquista e a
certificação da fecundidade. A opinião pública, que concordava com as relações, as quais, por sua
vez, eram asseguradas pelos costumes, era uma arma que hoje só encontramos no casamento
formal. A conclusão da procura dava lugar a uma confirmação pública (sim — beber um gole,
aperto de mão). Os pais faziam assim saber que as negociações estavam terminadas e os acordos
concluídos. Nestas condições, uma cerimônia de casamento ou de noivado oficial tinha uma
importância apenas relativa. O essencial era a transação entre as duas famílias; era um negócio
que dizia respeito ao clã, mais do que à Igreja ou à sociedade. Qualquer cerimônia só vinha
confirmar a situação já estabelecida por uma garantia suplementar, garantia exigida pelas
autoridades (primeiro pelas Igrejas e depois pelo Estado), que desejavam ter mais influência sobre
o povo. Para este, o casamento era uma traditio puellae definitiva, a dádiva da mulher ao homem,
e, na maior parte das vezes, o princípio da coabitação (neolocal) enquanto casal. Algunsmeses mais
tarde já se podia falar da célula familiar. As relações sexuais pré-conjugais reforçavam, portanto, a
união prévia. Era a confirmação do consensus matrimonialis. A experiência não era o princípio de
uma relação, mas a conseqüência natural de outras regras. O acordo dos pais quanto à visita
noturna era, portanto, indispensável, não por razões sexuais, mas econômicas.
Durante séculos a Igreja celebrou a cerimônia do casamento como um contrato. Efetuava-
se na frente da porta da Igreja (ante portas ecclesiae). Para que o casamento adquirisse um caráter
sacramental, deveria realizar-se uma segunda vez no interior da Igreja. Não era o mais importante.
Era preciso desvalorizar os esponsais, a fim de que a bênção tivesse lugar antes da união carnal,
que era o momento real do "casamento consensual", e que lhe atribuía um valor ou um significado
jurídico. O ato sexual era a confirmação que concluía o pedido de casamento, cujo ponto alto era o
aperto de mão. O casamento equivalia à legitimação das conseqüências do ato sexual. Mas no
século XVIII esta evolução não chegou ao seu final previsto. Em certas regiões, na prática, as
pessoas permaneciam agarradas à ideia de que os esponsais eram o verdadeiro casamento; para
ser mais exato, pode-se dizer que, depois da cessação jurídica, o coito pré-conjugal era um coito
conjugal. No entanto, para a Igreja continuava sempre a ser pré-conjugal.
f) A nobreza
Não é necessário que nos alonguemos sobre este assunto. Na nobreza o processo de
modernização teve pouca influência sobre um modo de comportamento que se apresentava
constante há muitos séculos. O nobre jovem podia colecionar experiências pré-conjugais durante
anos. Às vezes, os pais ajudavam-no a escolher cortesãs ou viúvas da nobreza que o iniciavam nas
"maneiras nobres" de se relacionar com o outro sexo. Em seguida, podiam continuar suas
experiências com jovens de todas as condições, com exceção das nobres, que permaneciam bem
guardadas. Para os jovens ricos representantes da nobreza européia, os anos que precediam o
casamento eram anos de devassidão; na terminologia atual falar-se-ia de "dolce vita" ou de
comportamento de playboy. Depois desta "éducation sentimentale et morale", o jovem
consagrava-se ao casamento ou tornava-se um "devasso". Os sinais característicos do
comportamento da nobreza antes do casamento consistiam numa moral dupla (medidas
diferentes para a mulher e para o homem) e no fato de se evitar a ocorrência de relações com a
jovem que se queria desposar. Estas regras ainda hoje são conservadas nas classes ricas e médias
dos povos da bacia mediterrânea e da América Latina
g) Os soldados
Os soldados e os estudantes sempre tiveram privilégios sexuais particulares. Na Prússia, no
fim do século XVIII, centenas de milhares de jovens eram recrutados para o exército; habitavam
em quartéis superlotados, recebiam uma formação física excelente, mas uma péssima formação
moral, dispunham de uma grande quantidade de dinheiro e tinham uma "dieta desenfreada"; as
suas casernas encontravam-se nas maiores cidades, oferecendo bastantes ocasiões de liberdade.
"O espirito de corporação nos soldados considera a freqüência das prostitutas como qualquer
coisa tão normal, natural e útil quanto comer e beber. Orgulhavam-se de haver seduzido uma
virgem ou uma mulher casada. O domínio de si e a castidade são indícios de estupidez, de medo e
de impotência."
h) A população campesina
Da mesma forma que a vida quotidiana do homem que vivia no campo, isto é, do
camponês, do jornaleiro, do pequeno artesão e do pastor, ficara quase imutável durante séculos,
seu comportamento sexual pouco evoluiu. No final do século XVIII, a maior parte dos camponeses
ainda vivia em servidão, devia corveias, era pobre e atrasada. Os filhos eram mal alimentados, mal-
educados, não frequentavam a escola, porque tinham que pastorear ou ajudar no campo. A escola
fechava no verão ou servia de creche para os menores, que "não prestam para qualquer trabalho".
A maior parte das habitações era pequena e desprovida de higiene; homens e animais viviam
juntos. L. von Wiese fala de uma "sexualidade grosseira, ingênua, desprovida de amor e de prazer".
A vida sexual não podia ser fortemente erótica, porque o peso da existência era excessivo. L. H.
Meyer escrevia, em 1898, que os homens que habitavam entre a Frísia oriental e os Alpes não
conheciam a palavra "amar", e, em seu lugar, empregavam palavras referentes aos aspectos mais
grosseiros da sexualidade. No entanto, K. R. V. Wikman julgava tal depreciação excessiva: "Como
nas antigas fases da cultura, os impulsos sexuais são, neste caso, também de natureza mais maciça
e mais forte", não havendo grosseria ou falta de amor. Em sua opinião, havia, indubitavelmente,
menos romantismo e sensações fantasiosas; a duração do coito era por certo mais breve e o ato
tinha por objetivo não o prazer, mas a procriação; havia pouca fase preparatória do ato sexual, as
manifestações de ternura eram consideradas como uma falta de virilidade. Na Alemanha Oriental,
no século XIX, os cônjuges camponeses pouco se beijavam. Segundo K. R. V. Wikman, na Suécia
teria sido inconveniente falar em beijos; os beijos só seriam permitidos entre mãe e filho, como no
antigo Japão. Wikman explica este atraso pelo fato de o camponês ainda se encontrar numa fase
preliminar de desenvolvimento. Poder-se-ia responder a isto que não há uma enteléquia que
funcione automaticamente e leve a um relacionamento sexual refinado entre homem e mulher.
Não se atinge uma fase mais elevada pelo fato de toda a cultura ter progredido mais um passo na
sua evolução. Se o comportamento sexual das pessoas pertencentes às camadas mais baixas é, nas
suas demonstrações de ternura espontânea, uma prova de falta de jeito, isso se deve ao fato de
não terem conseguido se libertar da atitude anticorporal, antiprazerosa e anti-sexual da cultura
ocidental e não terem tido ocasião de aprender outro tipo de comportamento.
A juventude campesina e os filhos dos artesãos das pequenas cidades eram muito cedo
admitidos no mundo dos adultos; por isso é que pareciam "precoces" em relação aos jovens
*
citadinos. Era-se homem quando já se tinha feito a confirmação ou então quando se podiam
realizar as mesmas tarefas que um adulto, ou quando já se tinha usado armas, ou terminado a
aprendizagem. A partir deste momento os jovens já podiam procurar as moças. A fim de
economizar fogo e luz, reuniam-se regularmente nos quartos das fiandeiras. Às vezes, os pais, os
filhos, os criados e os vizinhos também lá estavam; outras vezes os jovens encontravam-se a sós.
Segundo os moralistas do século XVIII, podia-se então assistir — mesmo na presença dos adultos
— a numerosas inconveniências. Instalavam-se "quartos de divertimento" onde se dançava e
cantava, e depois todos dormiam juntos. O rapaz dormia com a jovem em cujo regaço havia
passado toda a noite. C. A. Peschek fala também de serões, nas vilas do final do século XVIII, nos
quais se dançava e bebia cerveja e que "acabavam sempre em orgia"; o rapaz levava sua garota
para casa e passava a noite com ela. Os pais orgulhavam-se do sucesso obtido pela filha;
afastavam-se, com benevolência, do caminho do casal, conta Peschek, para quem as autoridades
deveriam intervir, porque as relações refletiam uma excessiva promiscuidade; a monotonia da vida
era interrompida por numerosas festas, depois das quais todos se deitavam juntos; os casados
separavam-se dos celibatários; estas festas tinham lugar depois da feira, depois da missa nas
regiões onde não se ia à igreja por causa de excessiva distância, e também depois da festa da
Primavera e da colheita. Devido aos trabalhos da estação ocorriam muitas vezes casamentos de
estação. Também depois dos casamentos os jovens dormiam juntos, o que deu lugar ao provérbio
camponês: "O casamento chama o casamento".
i) A conquista noturna

*
N. do T.: Ritual protestante correspondente à Primeira Comunhão na Igreja católica.
*
Na prática da corte noturna encontramos um modelo de comportamento quase
institucionalizado e controlado entre os dois sexos. A visita do rapaz começava na janela da moça.
Em seguida podia penetrar no quarto, depois sentar-se na cama e por fim deitar nesta. Estes
hábitos diferiam conforme as condições e os costumes locais. A princípio, a visita era breve, mas
depois estendia-se a toda a noite. Os pretendentes aceitos pelos pais ficavam às vezes na herdade
todo o dia seguinte. Só se fazia a corte no sábado à noite, exceto no caso dos pares cuja relação já
era estável. Nas regiões que cultivavam os contatos coletivos, a aventura começava por uma visita
em grupo à casa das jovens. Cantava-se, dançava-se, brincava-se, divertia-se, comia-se e sondava-
se o terreno. Pouco a pouco alguns destacavam-se do grupo e ficavam com a moça que tinham
escolhido, ou iam procurar a sua felicidade em outro lugar. Para saber que companheiros a jovem
aceitava, recorria-se a um ritual; se, por exemplo, um rapaz sentava-se na cama de uma jovem e
esta voltava a cabeça para a parede, ele ficava sabendo que não era aceito. Como nas visitas
individuais, o jovem tinha às vezes de ficar horas sentado na frente da janela a dizer certas
fórmulas, antes que esta se abrisse; então, ou lhe era estendida uma mão "quente como um leito",
ou lhe era aberta totalmente a janela e continuava o passatempo, ou então lhe era dado o direito
de entrar no quarto. O fato de oferecer e aceitar certos presentes tinha um valor simbólico: a
juventude campesina exprimia-se menos por palavras do que por gestos e atos. As jovens
mostravam a todos os seus presentes e orgulhavam-se de receber muitos.
A permanência no quarto, sobre a cama e dentro dela, estaca submetida a regras estritas.
Os gestos que se podia fazer e as peças de roupa que se podia tirar eram exatamente prescritos. O
jovem deitava-se sobre ou dentro da cama e a cabeça da moça repousava no seu braço estendido.
Muitas vezes estavam tão fatigados que adormeciam imediatamente. Na cama, o rapaz não podia
tirar as calças; o vestuário da moça se assemelhava a um vestido de verão muito ligeiro.
Um ou dois anos depois da puberdade, o adolescente era admitido na categoria dos
celibatários e podia fazer o que quisesse. O consenso acerca da corte noturna era de que os jovens
deviam deitar-se juntos "com fidelidade e fé", "com honra e fidelidade". Num meio em que era
excluída a sexualidade que não tivesse por objetivo a procriação conjugal, o fato de dormirem
juntos já tinha o seu valor, mesmo que a princípio os jovens nada trocassem além de carícias. Os
adolescentes também sabiam que, se suas relações se tornassem mais estáveis, retirariam daí
maiores liberdades, chegando ao ato sexual pré-conjugal. Uma relação durava, pelo menos, dois
anos; considerava-se como normal um período de quatro ou cinco anos; um namoro de seis meses
era demasiadamente breve. Os pais exerciam uma certa vigilância, sobretudo quando o
adolescente tinha de visitar a noiva no domitório familiar comum. Se ia para o quarto da jovem, a
porta devia ter uma abertura ou então ficar entreaberta, para que os pais pudessem entrar e levar-
lhes de beber. As moças não gostavam de dormir na sala comum ou compartilhar o seu quarto
com outras jovens, pois isto podia assustar os pretendentes ou incomodá-los. As pastoras tinham a
satisfação de, na primavera, ir para as pastagens longínquas, e não era só para levarem os seus
rebanhos; a grama das montanhas era um lugar livre, no amplo sentido do termo.
O controle mais eficaz era exercido pelas organizações dos próprios adolescentes; estas

*
N. do T.: O autor enumera várias expressões que veiculam uma ideia semelhante e que podem ser traduzidas, em conjunto, por
"corte (ou conquista) noturna". São elas: Kiltgang, Gasselgang, Freigehen, Dorfen, Stubetgehen, rufen, klopfen, eischleichen, auf
die Karesgehen, Nachtlupen, Korteln.
*
"associações de rapazes" tinham uma função militar e policial, que se estendia igualmente ao
comportamento sexual. As vezes o grupo dos adolescentes entrava em conflito com adultos.
Compensava o despotismo de numerosos camponeses. Quando uma moça não tinha o direito de
ser cortejada por um rapaz e o grupo dos adolescentes achava que esta proibição era injustificada,
o pai podia se expor a toda a espécie de vexames e injúrias. O grupo era composto por homens
celibatários que não possuíam propriedade; formavam um bloco contra os casados.
Num certo sentido, tratava-se de uma oposição entre proprietários e não-proprietários. O
grupo tinha aspectos democráticos: o filho do camponês e o criado estavam teoricamente no
mesmo plano. O filho de um camponês rico tinha menos autoridade que um rapaz pobre, se este
fosse dotado de certas qualidades de caráter.
O grupo dos adolescentes era muitas vezes dividido num grupo de rapazes e num grupo de
moças, que também entravam em conflito, por exemplo, quando os jovens partiam à procura de
aventuras numa aldeia próxima. Os contatos com jovens estranhos à aldeia eram proibidos, a não
ser que estes jovens comprassem a autorização da sua, presença, por exemplo com bebidas.
Opunham-se igualmente à introdução de estranhos e de soldados no grupo. A corte tinha,
portanto, um caráter endógamo. Só em virtude desta autarquia sexual, da unidade da aldeia e da
vizinhança, bem como do reconhecimento das mesmas normas pelo grupo inteiro, se podia tolerar
uma maior liberdade. A função essencial da instituição era o controle das gestações. Mesmo
quando um rapaz e uma moça preferiam o segredo, a maior parte das vezes sabia-se quem tinha
andado com quem. O controle do grupo devia servir, antes de mais nada, para impedir que uma
jovem engravidasse de um rapaz que não quissesse como pai de seu filho, ou que não quissesse
assumir essa responsabilidade. Este sistema, concedia uma liberdade, por um lado, maior e, por
outro, menor do que a de numerosos adolescentes dos tempos de hoje. O "grupo dos rapazes"
("Knabenschaft") ocupava-se às vezes da distribuição dos rapazes e das moças. Os mais jovens
tinham que se contentar com moças menos bonitas. Um dos mais idosos tinha a função de
inspetor. Podia exigir que um dos galantes fornecesse sua identidade, controlar para que os jovens
não se despissem muito cedo, que não se encontrassem muitas, vezes, durante muito tempo ou
fora do tempo prescrito. Outros serviam de intermediários. Esta incursão na intimidade alheia era
considerada normal. A ligação pessoal, o amor entre os adolescentes eram menores e, como
conseqüência, era menor a necessidade de tornar privadas as suas relações.
Como a sexualidade dos camponeses tinha por objetivo, sobretudo, a procriação, não se
controlava o comportamento sexual, pré-conjugal, mas o decorrer das coisas na herdade. Se
alguém não respeitasse a regra, era castigado. O rapaz que fosse muito brutal ou a jovem que
fosse muito leviana eram boicotados. Uma jovem que se relacionasse com dois rapazes ao mesmo
tempo era rejeitada como prostituta. A classe de uma jovem elevava-se com o número e a
qualidade dos seus pretendentes. As oportunidades que surgiam nos primeiros namoros eram
determinantes para as seguintes. Os rapazes e as moças desvalorizavam-se quando aceitavam ou
procuravam um-companheiro inferior. As jovens eram muito solicitadas quando eram bem
nascidas, quando se comportavam corretamente, quando eram simpáticas e tinham outros
indícios de caráter e de valor.

* N. do T.: "Burschenverbändë", "Zeche".


Encontra-se este tipo de comportamento até o século XIX, e, mesmo, até o século XX. Era
determinado por condições sócio-econômicas (por-exemplo, casas pequenas, a falta de
combustível e de luz, os longos dias de trabalho, a importância concedida à fecundidade, etc.), da
mesma forma que por um certo tipo de casamento e de família. A maior parte das vezes tendia a
desaparecer quando as condições sócio-econômicas se modificavam.
A procura noturna dos companheiros não é um vestígio do que se chamava a
promiscuidade originária, mas antes um vestígio do amor livre, característico da juventude durante
muitos séculos. Este amor livre tinha regras estritas. Em certas regiões, considerava-se a guarda
dos cavalos, à noite, como a origem ou a possibilidade de uma aventura galante; cantavam e
dançavam em torno da fogueira e depois iam dormir juntos.
j) Noites e casamentos de ensaio
Não é possível diferenciá-los nitidamente do processo que acabamos de descrever. Não há
dúvida de que a corte noturna de companheiros levava às noites de ensaio, para as quais estavam
previstas outras regras; por exemplo, não se escolhia forçosamente o sábado e o domingo. Tinham
também um caráter individual. Também não se pode fazer uma distinção precisa entre as noites e
o casamento de ensaio, se não tomarmos como critério para o casamento de ensaio uma duração
de um ano ou de alguns anos.
As noites (a palavra nos soa hoje bastante direta) e os casamentos de ensaio serviam para
testar a fecundidade. Em Yorkshire, a fórmula habitual para celebrar esta união era: lf thee take, I
*
take thee ; casam-se quando a jovem está grávida. As autoridades religiosas protestavam às vezes
contra estes costumes. Chegavam até a ameaçar de excomunhão quem quer que abandonasse
uma jovem grávida. Os casamentos de Maio, os casamentos de S. Valentim, o casamento de um
ano da antiga Irlanda e o hand-fasting. escocês (for twelve months and a day) eram formas de
casamento de ensaio. Thomas Hardy, em The Well-Beloved, que se situa em Portland, por volta de
1850, mostra-nos que se extinguiu este uso, comum a todas as camadas de população da ilha, e
que tinha por objetivo produzir herdeiros para as propriedades. Desapareceu com a imigração dos
trabalhadores estrangeiros, que não obedeceram às regras. Nas regiões menos desenvolvidas,
sobreviveu à passagem da sociedade agrária para a sociedade industrial do século XIX. O costume
reapareceu com uma outra forma nas reivindicações de alguns reformadores da sexualidade:
reconhecimento oficial do casamento de camaradagem (Lindsey), do casamento provisório
(Charlotte Buchow-Homeyer, 1928) ou do casamento de ensaio (que, por instigação de
Urbantschitsch, se tornou um projeto de lei na Áustria); estas uniões provisórias não deviam servir
para testar a fecundidade, mas, pelo contrário, para provar o entendimento entre os
companheiros, que deviam evitar conceber um filho.
Embora metade dos casamentos tenham sido casamentos forçados e mais de metade dos
filhos tenham sido concebidos fora do casamento, discutia-se no século XIX a questão de saber em
que medida a corte noturna era sexual. Entre os que a praticavam este problema nunca apareceu,
pois, por experiência pessoal, sabiam que o elemento sexual desempenhava um papel menor.
Como os camponeses não escreviam livros, a questão era quase sempre levantada por pessoas que

*
N. do T.: "Se ficares grávida, fico contigo."
só conheciam esses costumes de longe, e os idealizavam ou julgavam do ponto de vista das
normas éticas e burguesas. K. G. Bauer dizia: "As grandes herdades precisam de uma grande
criadagem, e nós sabemos bem quão licenciosa, em parte, é a vida deles". W. E. Peuckert afirmava
que o fato de dormir nas granjas estava ligado a atividades sexuais. A. W. Hupel pensava, pelo
contrário, que a relação dos jovens antes do casamento correspondia a estritas regras religiosas e
que, "durante o período de procura e de noivado, os jovens podiam muitas vezes dormir juntos
com toda a inocência". Poderíamos continuar a enumerar os pontos de vista contraditórios. Na
realidade, procuravam-se explicações para um problema que não existia.
A sexualidade dos camponeses só em parte deveria ser caracterizada através da freqüência
do coito, das técnicas empregadas e de declarações exatas acerca do limite que teria sido
alcançado pelos adolescentes. Muito mais importante do que isto tudo era o fato de tais relações
serem conscientemente consideradas como pré-conjugais; tratava-se de ações sexuais das quais se
esperava um casamento. Também aquele que tinha poucas chances de se casar procurava se
comportar de forma a consegui-lo. Aqui deve ser colocada a importante diferença da preparação
assexual para o casamento na nova classe média: as atividades sexuais diminuíam as chances de
casamento. Na comunidade campesina, todo comportamento sexual era interpretado
exclusivamente em relação ao casamento. .
l) Os estudantes
O modo de vida dos jovens que freqüentavam as universidades praticamente não sofreu
modificações desde a Idade Média até o século XX. Devemos, no entanto, sublinhar uma
modificação importante: no fim do século XVIII, observa-se, em geral, a tendência para uma
moralidade maior e para um refinamento de comportamento, que até então era apanágio de
alguns indivíduos. Os estudantes dividiam-se em dois grupos: um declarava-se favorável à
libertinagem, o outro considerava-se como uma elite e queria viver segundo um ideal de
abstinência.
Os estudantes sempre se comportaram como um subgrupo, com as suas próprias normas.
Formavam uma espécie de Estado dentro do Estado, com a sua própria jurisdição acadêmica, e
também tratavam das questões sexuais, conservando restos das vestes, maneiras e incivilidades
(Grobianismus) da Idade Média. Pela civilização e pelo refinamento dos.costumes, só tinham
desprezo. Pertenciam aos raros grupos que haviam podido conservar os seus privilégios, depois da
queda do Ancien Régime. Joseph II aboliu a independência dos tribunais acadêmicos nas províncias
austríacas, mas na Alemanha, até 1879, as instâncias acadêmicas regulavam juridicamente, sem
intervenção externa, a vida dos estudantes;. Estes não sentiam tanto o peso da consciência da
responsabilidade e tiravam proveito da auréola que envolvia sua pessoa. Possuíam mais
conhecimentos do que o burguês médio, e eram pouco controlados nas suas ações como grupo
coeso; como dizia o professor Laukhard, o seu comportamento resumia-se a "um tecido de
puerilidades, de absurdos e de presunções".
Dada a longa duração dos seus estudos e de seu elevado nível social, seu comportamento
teve poucas relações com o casamento durante muito tempo. A entrada para a universidade
significava, para muitos deles, a passagem para uma nova categoria social, compreendendo outros
valores e outras normas. Os novos pedagogos-moralistas não tinham sucesso junto a eles, por um
lado, porque os contatos eram limitados, por outro, porque os professores e os estudantes
observavam uma atitude crítica a seu respeito.
Os estudantes vinham de escolas e colégios das pequenas cidades, principalmente
freqüentadas pelas crianças das classes médias. Nestas escolas não se concedia o menor valor à
educação geral. A liberdade era considerável e ninguém se preocupava com a imoralidade. Muitas
vezes os internatos ficavam fora da escola, constituindo uma espécie de pensão particular, pouco
vigiada, semelhante às nossas atuais repúblicas de estudantes. Não é de admirar ver Pestalozzi
considerar as escolas como o "primeiro germe do impudor e da imoralidade". Esta acusação já
havia sido feita muitos séculos antes. Na pequena cidade francesa de La Flèche, em 1625, as
autoridades publicaram ordenanças especiais para travar os excessos dos estudantes do colégio de
jesuítas. K. F. Bahrdt (1741-1792) descrevia a sua permanência em Schulpforta, uma das três
maiores escolas de Saxe, célebre pela seriedade dos estudos que ali se faziam e pelo rigor da
educação; reinava ali, dizia ele, uma imoralidade (masturbação, homossexualidade) a que ninguém
prestava atenção. Era ele o único que ainda conservava a sua inocência. J. G. Rist (nascido em
1775) frequentava a escola de Hamburgo e assombrava-se com o comportamento dos estudantes,
que organizavam "viagens de viatura" às aldeias dos arredores, onde se entregavam a bebedeiras,
frequentavam as prostitutas, o que Rist considerava um "modo de vida fácil".
Não há qualquer razão para acreditar que estes jovens, para quem a virtude da continência
"se tornara ridícula e denegrida, como um pedantismo fora de moda", e que tinham satisfeito "o
seu instinto sexual até o fastio", iriam depois seguir um outro modo de comportamento na
universidade. F. Schnabel conta, a propósito da sua vida de estudante em Leipzig (no fim do século
XVIII), que se era atraído "sensualmente, seduzido metodicamente e arrastado de tal forma — pelo
menos, muitíssimas vezes — que era preciso fazer uma cura metódica (contra a sífilis)". "Em
Leipzig a perversão, do ponto de vista das doenças venéreas, era verdadeiramente escandalosa."
K. von Raumer, que estudou em Göttingen de 1801 a 1803, escreve: "Na mesa de jogo aprendi a
conhecer a vida absolutamente escandalosa destes homens (dos estudantes), que na sua maior
parte eram sifilíticos". O professor Laukhard confessa que aos dezoito anos frequentava as
"ninfas", isto é, as prostitutas. Os seus camaradas faziam o mesmo. A maior parte das criadas de
pensões eram também "complacentes na cama". Tinham tantos companheiros de cama quantos
estudantes havia na casa. Também Bauer fala de como os estudantes violentavam, nas pensões, as
arrumadeiras, lavadeiras, empregadas e serventes.
Os estudantes se encontravam com "cortesãs secretas", em casas afastadas. Não há
"bordéis oficialmente reconhecidos em Halle, mas há antros nos quais, por um pouco de dinheiro,
pessoas do sexo feminino, com suas massas de carne quase podres, estão à disposição dos que
procuram prazeres animalescos". Uma das consequências destas relações promíscuas era a
propagação das doenças venéreas. Em Halle, em 1795, um terço dos estudantes estava
contaminado. Dez anos depois o professor Reil calculava esta proporção em um quarto. Estas
condições duraram até o século XX, se bem que a caça aos diplomas e a procura de carreiras tenha
provocado, nos nossos dias, uma clara modificação no comportamento sexual da maioria dos
estudantes (Guiese, Schmidt, 1968).
No século XVIII não faltavam planos para melhorar esta situação. J. J. Cella, em 1784,
perguntava se não seria preferível abrir bordéis no seio das universidades, pois durante o primeiro
semestre de estudos um terço dos estudantes tinha de ser tratado. A "irmã" do bordel era
preferível à prostituta das ruas, à pequena-burguesa sensata ou à mulher casada. Em 1792, uma
carta anônima dizia: "Quem sabe se não seria preferível criar bordéis nas academias providas de
meios necessários para vigiar a saúde e a limpeza?" C. A. Peschek admitia ser impossível de conter
a sexualidade dos estudantes; não se podia reprimir esta "exuberância devida". Por isso, era
necessário agir na "fonte do mal", isto é, na "acumulação de numerosos jovens sem mulheres num
dado local". Seria preciso demolir as universidades? Não, era preciso dispersá-las. Por que não se
permitia que os estudantes casassem? Considerava-se, aliás erroneamente, como ridículo ver
(1790) um homem razoável, com mulher e filho, freqüentar os cursos. A polêmica sobre
casamento de estudantes já tinha começado na segunda metade do século XVIII (até o século XVIII
os casamentos contraídos pelos estudantes por motivos de segurança sexual ou econômica eram
proibidos ou declarados nulos).
Uma terceira solução exprimia-se no valor que se concedia ao ideal de abstinência. No
século XVII, e, sobretudo, no século XVIII, os alunos dos internatos praticavam esta virtude, que na
segunda metade do século XVIII passou a se estender também aos estudantes. Em 1792, Henn
escrevia as suas Cartas íntimas a todos os jovens de espírito nobre que desejassem ir para a
universidade (Vertrauten Briefe an alle edelgesinnten Jünglinge, die auf Universitäte gehen wollen).
Recomendava que se comportassem decentemente com as pessoas do outro sexo, em outras
palavras, que observassem a abstinência.

4. A MASTURBAÇÃO

Quando falamos do comportamento sexual pré-conjugal, vimos que a burguesia procurava


uma nova ordem social. Toda a atividade sexual devia ficar reservada ao casamento monogâmico.
A corte noturna, as relações sexuais pré-conjugais, a freqüência aos bordéis e a sexualidade
extraconjugal, em suma, tudo que para a burguesia parecesse contrário à boa ordem era
energicamente combatido. A luta contra a auto-satisfação pode ser considerada como uma
tentativa de reestabelecer a ordem no indivíduo. Em parte alguma é tão clara a vontade da
burguesia de combater as experiências que levam ao prazer. Sem querer ser normativo, podemos
falar de um fenômeno patológico comparável ao delírio das bruxas, à patologia do demônio, à
ginofobia e à fobia de sífilis. Por outro lado, é espantoso ver como o combate à masturbação, cuja
influência durante mais de dois séculos foi muito grande, não tenha ocupado, até agora, um lugar
de importância no estudo das civilizações e dos costumes. No entanto, a sua história é
interessante, porque contradiz a hipótese de G. R. Taylor, da passagem de uma visão patriarcal a
uma visão matriarcal, como também demonstra como é contraditório situar a ordenação do tabu
sexual na época vitoriana (século XIX).
Para o período que vai da Idade Média até o século XVIII não possuímos dados
significativos a respeito da masturbação nos adolescentes. Deve-se concluir daí que o fenômeno
não era habitual? Uma tal opinião necessitaria apoiar-se em argumentos sérios, pois se pode
afirmar que os adolescentes de todas as sociedades se masturbam: a auto-satisfação é um
componente filogenético do homem. Pode ser refreada por medidas repressivas adaptadas, mas o
melhor meio é, sempre, oferecer outras possibilidades de atividade sexual. A maior parte dos
povos primitivos observa, com relação à masturbação, uma atitude ligeiramente reprovadora,
tolerante, benévola ou encorajadora. A atitude dos egípcios, romanos e gregos é não-repressiva. A
auto-satisfação ocupa, por vezes, um lugar na cosmogonia ou no ritual. Além disso, não se
encontra qualquer passagem no Novo e no Antigo Testamento que faça alusão à masturbação. No
Levitico XV, 16-17, fala-se do derrame de esperma fora da cópula, quer dizer, da polução, para a
qual se prevêem os mesmos ritos de purificação que para as outras excreções corporais. Tem-se a
impressão de que a masturbação não existe na sociedade antiga, o que, sem dúvida, se deve à
pouca consideração ou à moderada repressão de que era objeto.
a) Atitudes tolerantes: a época que precede o século XVIII
Se examinarmos a atitude cristã de um ponto de vista histórico, imediatamente aparecem
grandes dificuldades. Como a terminologia própria da masturbação data sobretudo do século XVIII,
é lícito perguntar se o fenômeno já era conhecido em épocas anteriores e se o lugar ocupado pela
masturbação no conjunto das atividades sexuais seria o mesmo. Que influência exerciam as
hipóteses biológicas desta época e a atitude androcêntrica dos teólogos da moral? Condenava-se
também a auto-satisfação na mulher? Fazia-se alguma diferença entre esta atividade antes e
depois da puberdade e entre as diversas técnicas empregadas? Era um pecado e, no caso
afirmativo, de que importância? Referindo-se ao ponto de vista cristão e moral, pode-se afirmar,
em primeiro lugar, que ainda não havia, até um período avançado do século XVII, qualquer
doutrina relativa à sexualidade. Não podemos aqui falar de uma lacuna. Só ao longo dos séculos
XVII e XVIII é que a sexualidade se tornou um todo "coerente" para a consciência. Não faria sentido
querer admitir, para as épocas precedentes, a existência de uma moral sexual especial. Por
exemplo, pode-se tentar erigir em sistema o conteúdo de antigos livros de confissão e de
penitência, ou encontrar as sentenças que serviam para condenar os crimes. Temos de reconhecer,
no entanto, que este processo não deu resultado. Deve-se agora concluir pela não-existência de
qualquer sistema, ou haveria outros fatores históricos, por certo ainda ignorados, mas com os
quais temos de contar? Só podemos avançar por este caminho. A sexualidade não podia ter o
mesmo significado para uma população essencialmente composta de agricultores e criadores de
gado, em que uma elite ficava solteira, como tem para nós. Além disso, é preciso levar em conta o
posicionamento ético androcêntrico.
Não sabemos lá muito bem se devemos concluir, de acordo com o sistema moral atual, que
a masturbação é um pecado apenas porque numerosos padres da Igreja comparam à prostitução o
ato sexual que não tivesse por objetivo a procriação, ou declararam que a contracepção tinha o
mesmo valor que um adultério ou um assassinato. Quem quiser defender esta hipótese deve
encontrar uma explicação para os seguintes fatos:
a) O conteúdo do conceito "auto-satisfação" é determinado pela história e pela cultura.
Houve um tempo em que não se prestava atenção à masturbação e às suas formas nas crianças,
nas jovens e nas mulheres, que por isso mesmo não sofriam qualquer tipo de julgamento.
Compreende-se facilmente, examinando a literatura dos séculos XVIII a XX sobre o combate à
masturbação, que era necessário aos autores explicar à população o que se entendia por auto-
satisfação.
b) Encontram-se longas listas de pecados nos livros de confissão e de penitência e nas
obras que tratam da teologia da moral. O repertório dos pecados sexuais é particularmente longo.
No entanto, a masturbação não é ali evocada ou o é muito pouco. Tomás de Aquino não diz uma
palavra sobre ela. Contudo, a seu ver, a ejaculação só deveria produzir-se "com o objetivo da
procriação, pois é para isso que o ato sexual serve". "Qualquer outra ejaculação voluntária é
proibida." Os exegetas de São Tomás de Aquino exortam-nos a ser muito prudentes na nossa
interpretação. Se São Tomás de Aquino fala de pecados "contra o próprio corpo", "corpus suum",
isto deve ser traduzido deforma androcêntrica, por "sua mulher". A proibição de "desperdiçar
inconsequentemente o sêmen" ainda não equivalia ao que mais tarde será descrito com o nome
de "onanismo conjugal". A hipótese segundo a qual, em épocas anteriores, a masturbação não era
de modo algum levada em consideração não é válida, pois alguns autores falam dela. Seja como
for, os argumentos e as afirmações de Jean de Gerson (1363-1429), que, no princípio do século XV,
consagrou-se à luta contra a masturbação, dão a impressão de tratar-se de alqo novo. Escreveu um
livro sobre o assunto, De Confessione Mollicei, e, nos seus sermões, várias vezes se declara hostil à
masturbação nos adolescentes. Foi um dos primeiros a aperceber-se da existência da sexualidade
nas crianças de dez a doze anos. As crianças, por si mesmas, não sabiam que pecavam; durante a
ereção friccionavam os genitais como teriam friccionado outros órgãos. Era uma consequência do
pecado original, ex corruptione naturae. Não se pode duvidar de que Gerson estivesse persuadido
da existência do pecado. No entanto, sua ação limita-se às pessoas que o rodeiam e à sua época.
Este pecado não é mencionado nos catecismos publicados depois do século XVI. O sexto
mandamento é considerado do ponto de vista do adultério. Inácio de Loyola, que não deixa passar
nenhuma ação repreensível, não fala da auto-satisfação. Também não encontramos referências
precisas nos textos dos grandes teólogos da moral, católicos e protestantes. Por isso, quando os
médicos, e não os teólogos, empreenderam uma campanha contra a masturbação, no século XVIII,
a população, jovens ou velhos, não sabia exatamente o que se devia entender por masturbação,
nem que ela era nociva e, além disso, ímpia. O clero estava dividido em dois grupos: um mantinha
uma atitude indiferente, enquanto o outro pensava ser preciso apoiar a ação dos médicos. Fazia-se
necessário extrapolar o sexto mandamento e fazer da masturbação um pecado. Alguns escritores
religiosos do século XVIII afirmaram que não encontravam na Bíblia qualquer texto referente a este
assunto; por outro lado, não existiam proibições religiosas que permitissem condenar a auto-
satisfação, embora tivessem muita vontade de fazê-lo. A palavra "onanismo" só era empregada
para indicar o coitus interruptus. No princípio do século XVIII, os médicos utilizaram pela primeira
vez esta palavra, tanto para o coitus interruptus como para a masturbação. C. G. Salzmann, que
(em 1785) queria fazer declarar a masturbação como pecado, não se ateve, porém, a Onan porque,
na região onde morava, essa palavra ainda se referia unicamente ao coitus interruptus.
c) Por outro lado, os meios não tocados pela infantilização da criança e do adolescente
estavam persuadidos de que antes da puberdade o adolescente não sentia excitações sexuais, e,
portanto, não podia cometer pecado. Nas obras de teologia da moral dão-se ordens de idade
muito afastadas para o início da confissão obrigatória. A confissão das crianças è de data muito
recente.
d) É certo que nos livros de confissão se encontram juízos referentes à homossexualidade
feminina, mas nunca se fala da masturbação nas mulheres. Mesmo nas obras de teologia da moral
relativamente novas, a masturbação da mulher era autorizada se, conduzindo ao orgasmo, se
produzia antes ou depois do ato sexual. É preciso procurar a explicação deste conceito no fato de
outrora se estar persuadido de que, durante o orgasmo, se produzia na mulher uma ejaculação
interna, favorável à fecundação. Mesmo os adversários da masturbação tinham as suas razões
quando decidiam não contrariar a auto-satisfação na mulher e, a fortiori, na mocinha. Com efeito,
se a mulher não tinha sêmen, se o seu útero apenas servia de terreno nutritivo ao processo de
maturação do esperma masculino, não podia por isso desperdiçar semen. Por outro lado, a partir
do século XVIII, a Igreja romana rejeitou a teoria epicuriana do sêmen feminino; por influência de
*
novas teorias do animalculismo (ovulismo) , o homem tornava-se assassino desde que praticasse o
coitus interruptus ou a auto-satisfação, enquanto, segundo os mesmos conceitos, a mulher não
podia cometer pecado, pois não possuía sêmen. Tolerou-se a auto-satisfação até o século XVIII.
Não elevemos interpretar esta atitude como um laisser aller, como o afirmam os adversários da
masturbação; tratava-se de uma coisa diferente. Oralmente e por escrito, os médicos declaravam-
se favoráveis a certas formas de auto-satisfação. O médico francês Arnaud de Villeneuve (cerca de
1235-1312) recomendava, partindo de um ponto de vista higiênico, fazer sair do corpo, pela
masturbação, o sêmen velho, que, após uma longa retenção, podia ser tóxico; era também o caso
de outros médicos, como, por exemplo, Johann von Wesel (século XV), Paul Zacchias (século XVII) e
C. H. Marc (1771-1841). O próprio Tissot, que encoraja a repressão da masturbação, falava em
1760 da masturbação terapêutica; duvidava de que a castidade total fosse benéfica e aderia à
opinião de Galeno, para quem, às vezes, a retenção de esperma provocava doenças.
Em 1748, Procope-Couteau protestou, num livro notável, L‘Art de Faire des Garçons, contra
o preconceito que consistia em "traiter en bagatelle les plaisirs solitaires". Esta opinão não se
fundamentava em considerações religiosas ou morais, mas sim demográficas. A sexualidade devia
servir para a sociedade. Por isso, o celibatário que tinha filhos era mais útil do que o homem
casado que praticava o coitus interruptus. G. J. Zimmermann e J. F. Oest escreviam que, sem
dúvida, se acreditava nas conseqüências nefastas da masturbação, mas não se lhes concedia
grande peso e atribuíam-nas a outras causas. Salzmann queria salvar a juventude, porque os
educadores não eram apenas ignorantes, mas também irresponsáveis, negligentes e descuidados.
Ameaçava denunciar as escolas "Impias" se não se considerasse este assunto mais a sério. Os
alunos de oito a vinte anos, e também os mais idosos, masturbavam-se a sós ou em grupo, debaixo
das suas longas capas, atrás do fogão da escola, debaixo da mesa, ''e nenhum destes seres
deploráveis considerava isso como algo que faz mal ... nem talvez como um vicio que devia ser
punido". N. A. von Winterfeld citava uma passagem do livro de Zimmermann, Aviso aos Pais e aos
Educadores (Warnung an Eltern und Erzieher), relatando o caso de uma professora, "uma velhota
honesta", cujos alunos se masturbavam muito. "Por ignorância, não castigava a polução habitual
na sua escola, porque considerava isto como totalmente inocente; julgava até que este sinal
provava que as crianças tinham vermes."
Já falamos da teoria dos licores de vida, que pretendia que certos licores, como o precioso
esperma, não deviam ser retirados do corpo, por serem necessários ao processo de crescimento.
Esta tese perdeu o seu valor, pois ainda no século XVIII se acreditava que os adolescentes tinham
uma potência sexual maior do que os adultos (o que mais tarde foi negado, e só "redescoberto"
por Kinsey) e tinham às vezes mais esperma do que o necessário para o crescimento harmonioso
do corpo. O fato de os adolescentes se auto-satisfazerem seria uma prova disto, porque não são

*
N. do T.: Estudo das pré-formações da geração seguinte nas fibras do sêmen e do óvulo.
eles que provocam a masturbação, mas sim a natureza, que neles atua (a origem endógena, que
foi negada no fim do século XIX e de novo afirmada no século XX). Em geral, pensava-se que o
corpo devia funcionar como havia sido criado e que a auto-satisfação seria uma manifestação
provisória e irregular, que ulteriormente tinha que ser substituída por um processo melhor. A
auto-satisfação nas pessoas que não tivessem sêmen, como as crianças e (segundo alguns autores)
as mulheres, não apresentava qualquer problema. Não se pode considerar a atitude perante a
auto-satisfação separadamente da atitude geral perante outras atividades. Os conceitos pré-
científicos sobre a natureza, a vida, o corpo e as suas funções deviam ser compreendidos sob este
ponto de vista. Existe, sem dúvida, um paralelo entre a luta contra a masturbação e as regras
repressivas, determinadas do exterior, relativas ao fato de escarrar, digerir, "peidar”, arrotar,
bocejar, assoar o nariz, roer as unhas e transpirar.
b) O combate à masturbação no século XVIII
Foi no princípio do século XVIII que se descobriu a masturbação (como se ela não tivesse
existido antes) e, também, que ela produzia danos graves. A campanha contra a masturbação
originou-se na Inglaterra e logo se estendeu ao continente. A primeira publicação data de 1710.
Era anônima, mas sem dúvida escrita pelo médico Bekker. O título do livro revelava o seu
programa: Onania, or rhe Heinous Sin of self PuIlution and All its Frightful Consequences in Both
*
Sexes, Considered with Spiritual and Physical Advice . Bekker relacionava a masturbação à história
de Onan (Gênese, 38, 9, 10), mas defendia a relação, que muitas vezes se presumia existir, entre a
denominação tirada do nome de Onan e o coitus interruptus, porque o subtítulo do seu livro é:
"Carta de uma senhora ao autor a propósito do bom e mau uso do leito conjugal". Embora, hoje
em dia, os teólogos da moral considerem muito pouco provável que a passagem da Bíblia
estabeleça uma relação entre a morte de Onan e o coitus interruptus, e os padres da Igreja (exceto
Santo Agostinho) não digam uma só palavra sobre a contracepção nos seus profundos estudos da
história de Onan, no século XVII estabelecia-se uma relação entre a sua morte e certas técnicas
sexuais, que resultavam na perda de esperma. Quando São Francisco de Sales falava de "legeste
d'Onan" (1680), referia-se, sem dúvida, à contracepção em geral e ao coitus interruptus em
particular. Villaume dizia, em 1787, que onanismo e masturbação eram termos estranhos e
misteriosos, que serviam somente para despertar a curiosidade e, por esta razão, não deviam ser
utilizados. A campanha suscitou, portanto, a introdução de denominações que não implicavam
claramente em desaprovação. Os nomes antes empregados eram mais positivos, por exemplo:
"irritations forcées" (Buffon, 1749), "les désordres du premier âge" (Rousseau, 1762), "cri de la
nature" (Venel, 1766). As novas expressões implicam um juízo médico ou moral, tais como "as
abominações bestiais" (Hermes, 1789), "o vício de impureza" (Basedow, 1770), a "deterioração dos
órgãos genitais" (Salzmann, 1785). A expressão masturbação, tirada da antiguidade, raramente era
empregada.
A difusão do livro de Bekker foi notavelmente rápida. Entre 1710 e 1737 foram feitas nada
menos que dezessete reimpressões. H. Ellis contou mais de oitenta edições. O livro foi traduzido
em muitas línguas. Em 1736 apareceu nas regiões protestantes da Alemanha. Bekker era
relativamente moderado nas suas opiniões, porque as consequências que atribuía à masturbação

*
N. do T.: Onania, ou o Tremendo Pecado da Autopolução e Todas as Suas Assustadoras Consequências em Ambos os Sexos,
Consideradas sob o Ángulo de Advertências Espirituais e Físicas.
eram limitadas: parada do crescimento, fimose, priapismo, síncopes, epilepsia, impotência,
histeria, deterioração da medula espinhal, etc. Recomenda freqüentes meditações, uma grande
prudência durante as mudanças de lua e uma dieta rigorosa. Não se deve tocar inutilmente os
genitais ou pensar neles. O casamento é a melhor garantia.
Outros livros sobre a masturbação também foram best-seliers. Tratar-se-ia de hábeis
charlatães que se aproveitavam do sentimento de culpa alheio para ganhar dinheiro? Por que os
autores faziam questão de afirmar que o livro não lhes interessava? Por que Tissot dizia distanciar-
se da obra de Bekker, afirmando não ser este digno de confiança? Não podemos responder a estas
perguntas; verificamos apenas que as acusações dirigidas às obras de Bekker e de Tissot,
apontando-as como pornográficas, pouco sérias e escritas visando o lucro, desapareceram a partir
do século XVIII.
Nos escritos pedagógicos do século XVII descobrem-se às vezes passagens de difícil
compreensão. Seria possível que ali se falasse de coisas que mais tarde foram chamadas
masturbação? No Education des Filles, de Fénelon (Paris, 1687), livro de tendência jansenista,
encontram-se passagens sobre "violentas excitações'' e ''prazeres mórbidos", perigosos para a
"inocência". A "procura de prazeres violentos" tem "conseqüências funestas", sobretudo na idade
"em que surgem as paixões". Isto deve ser compreendido à luz do ideal proposto por Fénelon: um
trabalho honesto, boas conversas, jogos úteis, música, hospitalidade e moralidade, a que se
opunham os bailes, as visitas muito freqüentes, a vaidade, os romances, a garridice e o tédio.
Observa-se aqui o fundo jansenista de Fénelon. Encontramos passagens semelhantes no médico
John Locke, mas também passagens que tratam do esclarecimento sexual, das relações sexuais
pré-conjugais e outras opiniões sobre a pedagogia antimasturbatória, sem qualquer referência
direta. Como devem ser compreendidas estas passagens? Lemos, com admiração, que em 1787,
um século depois da publicação da obra de Locke, certos textos, nos quais, hoje, não veríamos
qualquer vinculação com a masturbação, eram compreendidos neste sentido. M. A. von Winterfeld
escrevia: "Não há dúvida de que Locke fala destas coisas, mas formulando-as de uma forma geral,
sem evocar a polução".
As obras publicadas na Alemanha são anônimas ou escritas em latim; não se fala de
censura. J. H. Zedler, que escreveu em 1743 um artigo sobre a auto-satisfação no Dicionário de
Todas as Ciências e de Todas as Artes (Lexikon aller Wissenschaften und Künste), havia lido a
tradução alemã da obra de Bekker. Segundo Zedler, eram muitas as pessoas que se masturbavam,
persuadidas de que tal era permitido; de resto, não tinham a recear sanções nem conseqüências
funestas. O seu texto ficou praticamente desconhecido, ao contrário do livro do teólogo Sargenek,
Advertência contra Todos os Pecados de Impureza e de Secreto Impudor (1746) (Warnung vor allen
Sünden der Unreinigkeit und heimlicher Unzucht), que também falava da anatomia, de fisiologia, de
religião e de moral. Sargenek era colega do pedagogo Freyer no liceu pedagógico de Halle. O seu
livro compõe-se de extratos da edição de 1736 de Onania. Até cerca de 1770 não se publicou na
Alemanha qualquer livro tratando deste problema. Seguiu-se depois a publicação de uma série de
livros escritos por influência de Tissot e de Rousseau.
1760 é um ano importante na história do combate à masturbação. Foi neste ano que se
publicou De l'Onanisme, tradução francesa de um livro escrito em latim, feita por Tissot (1728-
1797), que obteve com essa tradução um renome internacional e uma grande clientela. A obra foi
traduzida em muitas línguas e Tissot foi considerado como um benfeitor da humanidade. Era uma
autoridade no domínio da masturbação, de tal modo que ninguém ousava duvidar das suas
afirmações. Enfim, o seu estudo se constituiu numa hábil propaganda para uma teoria incoerente
sobre as conseqüências nefastas da masturbação, não tendo enriquecido nem considerado sob um
ângulo diferente o tema que Bekker já havia desenvolvido em 1710. Tissot afirma querer lutar
contra a masturbação enquanto doença, e não enquanto desvio à norma moral. Censura em
Bekker "as chatices teológicas e moralistas". Mas ele próprio fala continuamente do "delito
abominável de Onan”, que "é castigado, mesmo quando a vítima se julga curada ou acredita não
ter a doença". Realmente, o estado geral do doente pode, às vezes, melhorar, mas nunca o estado
de seus genitais: "Pode-se predizer expressamente que a parte do corpo que pecou será aquela
que morrerá".
A história do combate à masturbação pode ser assim esquematizada: começou na
Inglaterra em 1710; vinte e cinco anos depois apareceram as primeiras publicações alemãs. Por
volta de 1760 a campanha teve início na língua francesa, passando depois para a Alemanha. No
século XIX, em contrapartida, a ação foi transferida da Alemanha para a França. Partiu dos meios
médicos; vieram depois os educadores e, finalmente, os teólogos da moral. Dos trinta e cinco
escritores do século XVIII sobre os quais temos informações, dezessete eram médicos, treze
pedagogos, quatro eclesiásticos, um oficial; no total, trinta e um leigos contra quatro eclesiásticos.
Só em 1784 é que apareceu uma obra católica na qual o autor mostrava interesse pela campanha
contra a masturbação. As primeiras obras, cujo método não permitia que se fizesse uma distinção
exata entre a masturbação e certas técnicas contraceptivas, nem sempre tratavam do caso dos
adolescentes. No entanto, pouco a pouco, a auto-satisfação destes passou a ser o tema exclusivo,
que, por sua vez, abrangia somente as ações não-coitais. A campanha, que a princípio era dirigida
contra o comportaménto dos homens, só mais tarde passou a considerar também as mulheres.
Depois de ter ficado claro o que se devia entender pelo termo auto-satisfação, o conteúdo
conceituai foi alargando-se pouco a pouco; Invocava-se, cada vez mais, razões moralistas, e o
posicionamento tomava um rumo cada vez mais sádico. Em 1769, Bórner ainda aconselhava meios
farmacêuticos, um regime alimentar ou a hidroterapia. Quanto a J. Stuve, recomendava a
educação corporal. Acentuou-se o aspecto autopunitivo da masturbação: os prejuízos eram muito
sérios e estendiam-se do corpo ao psiquismo; as probabilidades de cura eram reduzidas, a
terapêutica severa.Do fim do século XVIII ao princípio do século XX esta atitude não se modificou,
mas o combate, fundado agora em bases religiosas e no sentimento de culpa, tornou-se mais
intensivo, mais interiorizado. Em 1908 extratos do livro de Seehase sobre a informação sexual e a
masturbação puderam ser reimpressos num jornal feminino. A maneira como se encarava o
problema e o modo de proceder pouco se haviam modificado.
A primeira obra alemã depois da de Tissot foi anônima (1769). Em 1776 apareceu uma
nova edição corrigida que trazia o nome do autor: era o Dr. C. F. Börner, médico de Leipzig. O livro
não era pseudocientífico, como o de Tissot; era uma obra de vulgarização, que ensinava às pessoas
como descobrir as doenças e como tratar a si próprias. O seu tom, desprovido de polêmica —
continha poucas anedotas, nenhuma história horrível ou descrições luxuriosas —, distinguia-o de
todos os outros livros.
Börner considerava mais possibilidades de cura do que Tissot. A sua terapêutica não se
coloria de sadismo. Em primeiro lugar, o paciente devia adquirir forças, graças a um regime
alimentar que ajudava mais do que a moral ou a religião. Börner propunha um regime quotidiano,
do quinto ao décimo quarto ano; enumerava tantos pratos proibidos que se fica sem saber o que
era permitido. Recomendava banhos, elogiava os resultados benéficos dos banhos de Lauchstadt,
bem como a hidroterapia num bidê contendo água acrescida de produtos químicos. Uma vez assim
fortificado, pode-se passar à segunda fase, o ataque à doença: as roupas devem ser adaptadas
(explica que partes devem ser mais ou menos cobertas, dá indicações sobre a espessura do tecido,
a espécie do mesmo, quão largas ou apertadas podem ser as roupas, etc.). A doença deveria ser
também combatida por meios farmacêuticos, e dúzias de receitas são enumeradas (aliás, o livro
era dedicado a um farmacêutico).
Uma outra obra, a de P. Zimmermann, tinha uma nítida tendência pedagógica: as suas
Cartas aos Rapazes. De Uma Pequena Academia dos Bons Costumes (Briefen für Knaben. Von einer
Klemen Sittenakademie) (1772) eram diretamente dirigidas aos adolescentes. Zimmermann
apresentava o livro como uma correspondência sobre moral e literatura entre quatro adolescentes
suíços e cinco bávaros, na qual descreviam um sonho e davam numerosos conselhos. Em 1779,
Zimmermann escreveu um novo livro, desta vez destinado aos pais, no qual provava que também
se podia observar a auto-satisfação entre as meninas.
A religião também toma parte na luta: em 1784, setenta e quatro anos após a publicação
do primeiro livro sobre masturbação, Hufnagel publica uma obra, em que demonstra ser
necessário e possível falar da auto-satisfação durante a catequese. Considera isto como "um dos
pontos mais essenciais da educação", de grande importância para a saúde. Segundo ele, os
educadores e os alunos são ignorantes e esta situação é inelutável, porque nenhum dos dez
mandamentos contém qualquer proibição relativa à auto-satisfação. Ensinam-se às crianças
mandamentos inúteis ou incompreensíveis, como o sexto mandamento: "Não pecar contra a
castidade", queé um "disparate na boca de uma criança". Assim, continua Hufnagel, esta não é
prevenida contra um inimigo a que talvez sua ignorância já a tenha exposto.
Uma educação verdadeiramente moral presume a adaptação do catecismo à criança.
Existe a necessidade de uma "moral infantil" específica. Mas, antes de mais nada, se coloca o
problema do fundamento moral e religioso das novas normas. Hufnagel só vê uma solução:
diversificar e alargar o campo de aplicação do sexto mandamento. Mas uma modificação poderia
ferir de novo o sentimento de vergonha das crianças. Poder-se-iam, então, empregar truísmos, por
exemplo: "Não faças o mal porque é mau", ou vagas alusões, tais como todo o olhar ou
pensamento proibidos podem "ser objeto de castigos". Porém o aspecto sexual do mandamento,
"modera os teus desejos e reprime os teus maus pensamentos", só pode ser interpretado perante
rapazes e moças púberes, a fim de "moderar o instinto sexual" de acordo com a "obra da
natureza". "É difícil avaliar quanta experiência e inteligência seriam necessárias para compreender
tão-somente o conceito de inclinação, nem o quanto é preciso conhecer bem a linguagem, pois a
criança ainda não conhece os conceitos de paixão, inclinação, sentimento e desejo." Hufnagel vê a
criança como um "ser em si" e propõe um modelo, a ser seguido, que leva progressivamente à
sexualidade. Isso, porém, significa dar "a descrição de um assassino da inocência", sem ferir a
inocência da criança. É preciso combater a auto-satisfação, dando uma instrução sexual; as
adolescentes devem aprender para que servem os órgãos genitais.
Um colega de Hufnagel, Rahn, não aprova esta hipersensibilidade. "A masturbação é
suficientemente conhecida." Então por que não falar dela? Em sua opinião, a informação sexual é
particularmente delicada. Defrontamo-nos aqui com duas opiniões sobre o esclarecimento: num e
noutro caso, trata-se de saber se o esclarecimento é necessário e útil ao combate à masturbação.
Em 1783, Salzmann anunciava a sua intenção de escrever um livro sobre a auto-satisfação.
Dirigiu um apelo aos médicos, pedindo-lhes que escrevessem o que pensavam das suas origens,
consequências e do seu combate. Um dos médicos escreveu, em 1784, uma carta pedindo com
insistência que o livro anunciado não fosse publicado pois, em vez de servir à virtude, a pessoa que
o escreves se estaria incitando ao vício. Salzmann respondeu num folheto: É conveniente tratar
publicamente pecados secretos da juventude? (Ists recht über die heimlichen Sünden der Jüngend
öfendlich zu Schreiben?). Não conhecemos a intenção desta polêmica. Talvez servisse como
propaganda do livro anunciado. No entanto, e com razão, duvida-se da autenticidade do número
de cartas contidas no livro, que, publicado em 1785, deixa uma impressão de pompa. Salzmann
proclama de maneira patética: "Gostaria de ter sido exagerado, como dizem que fui. Mas, antes de
ser informado sobre a expansão (da masturbação), não sabia que estava tão difundida. A
Alemanha, e particularmente os seus educadores, deve sair do seu sono. Sou tão intransigente
como um médico seria. Não espero ser agradecido pelo meu trabalho, mas cumpro o meu dever.
Isto significa que me cabe denunciar". O livro, que trata das origens, conseqüências e repressão da
masturbação, é escrito no mesmo estilo exaltado.
c) Atividades patológicas
Não podemos deixar de pensar que a síndrome antimasturbatória é tão patológica quanto
o anti-semitismo. Geralmente escritos por médicos pouco conhecidos, os livros favoráveis à
repressão tratam de coisas inverossímeis e, ao mesmo tempo, entram em contradição com as
concepções correntes e as teorias admitidas nas universidades. No entanto, vendiam muito bem e
eram lidos, sem dúvida, com muita atenção, até talvez por aqueles que se masturbavam. Parecem
ter existido, entre o autor e o leitor, relações sado-masoquistas: um querendo castigar, o outro
querendo ser castigado.
Em geral, os autores não usavam um tom objetivo para discutir, o assunto; exprimiam-se
de preferência de uma forma emocional. Os livros descreviam a situação tão drasticamente quanto
possível. Era "muito mais grave do que se pensava". O número dos que se inclinavam à
masturbação era "inconcebivelmente elevado" e compreendia tanto adolescentes quanto pessoas
de uma certa idade. Em cada cem crianças, duas roubavam, mas noventa se masturbavam. Muitas
vezes uma escola inteira era contaminada, às vezes uma aldeia ou um grupo de adolescentes de
catorze a quinze anos. Masturbavam-se a sós, ou a dois, seminus numa cama; com freqüência, um
cão lambia-lhes os genitais. Acariciavam-se na Igreja, em casa, lendo a Bíblia ou livros franceses
doentios, mas também lendo Tissot. Masturbavam-se com a mão, com objetos ou até mesmo
durante uma cavalgada. Eram desencaminhados por um amigo, um irmão, uma irmã, o próprio pai,
um professor, às vezes até o responsável pelo curso de instrução religiosa.
É significativo o fato de se afirmar que a masturbação não deixava de se propagar: repetiu-
se isso durante dois séculos. Parece, portanto, tratar-se de uma repetição necessária. Dizia-se que
a auto-satisfação estava largamente difundida nas cidades, e sobretudo nas grandes cidades; o
vício desenvolvia-se melhor nas classes superiores do que nas classes inferiores, porque estas
últimas, trabalhando mais, conheciam menos o luxo e estavam menos expostas às influências
nefastas da nova arte, da literatura e da vida em sociedade. Salzmann dizia expressamente que
havia masturbação "por toda a parte onde houvesse cultura". Entre as crianças de pais ricos, raras
eram as que não se masturbavam entre os seis e os doze anos, isto é, justamente durante os anos
a que mais tarde se dará o nome de período de latência.
A enumeração das causas da masturbação oferecia ao autor uma boa ocasião para fazer
uma crítica pormenorizada na época, ou, então, para projetar suas idéias no futuro. Nas obras dos
filantropos atribuem-se as culpas à alimentação artificial, ao vestuário e às condições de habitação.
Nas obras escritas segundo a experiência dos filantropos incriminavam-se as novidades
pedagógicas do século XVIII. Segundo os protestantes, o celibato dos padres católicos fazia muito
mal. Os misóginos atacavam os artifícios sedutores da mulher.
Algumas passagens destes livros são documentos interessantes da época. Quase todos os
autores consideram o seu século (o XVIII) demasiadamente exaltado, excitante, sexual e imoral. Há
um excesso de luxo, os quartos são aquecidos, bebem-se bebidas quentes, come-se com
abundância e o vestuário é muito quente. Os adolescentes são apressados e risonhos, além de
irem para a escola muito cedo. Tudo isto lhes aquece o sangue e tudo o que aquece o sangue
acelera o processo de maturação. O seu cérebro é também aquecido por leituras e estudos
prematuros, muito longos. Isto provoca excitações (admitia-se naquela época que a medula
espinhal estabelecia um contato entre o cérebro e os órgãos genitais). As crianças amadurecem
muito cedo, apresentando problemas numa idade em que, antes, ainda se era ignorante. Há
também o "costume eminentemente nefasto" de obrigá-los a ler a Bíblia.
É por isso que "as nossas escolas e universidades se parecem mais com templos dedicados
a Citereia do que a Minerva". Os adolescentes também se masturbam quanto lêem descrições
fisiológicas ou contemplam desenhos. Tudo pode ser motivo para a auto-satisfação: pancadas com
uma vara, um ligeiro açoite nas nádegas, uma "carícia engraçada", conservar as mãos nos bolsos
das calças, ficar muito tempo sentado na aula ou durante uma pregação, dormir no quarto dos
pais, montar a cavalo. As mulheres deixam de ser férteis porque o clitóris é demasiadamente
excitado e passa a ser insensível. Trepar numa corda, saltar o cavalo-de-pau, saltar ou balançar,
trepar em árvores são igualmente atividades perigosas. Salzmann dizia, "com a maior insistência",
que os banheiros eram o "túmulo da inocência". Certas maneiras de se sentar são perigosas; ficar
sentado em frente ao fogo, com as pernas abertas, como era costume, leva à masturbação. Sentar-
se num canto da cadeira ou da mesa é uma perversão.
Encontra-se o mesmo desvio significativo na nosologia, no prognóstico ou no tratamento
da "doença" da masturbação. A imagem polimorfa da doença não é original; é uma imagem de
Venus nimia, tal como foi representada pelos médicos clássicos. Tudo adquire um colorido
exageradamente grotesco. "Não existe praticamente uma única doença que não possa vir da
imoralidade e da masturbação." Vogel, que faz esta declaração, enumera em muitas páginas, em
estilo telegráfico, todas as doenças possíveis; se lhe for dado crédito, as consequências estendem-
se a quase todas as doenças, que aparecem rapidamente, e são fatais. Quem se masturba uma
única vez pode morrer dentro de alguns dias. Quem espera sair ileso será atingido ainda mais
gravemente após anos de aparente saúde. É sobretudo no tratamento da masturbação que
verificamos a existência de componentes sádicos. Embora os médicos reivindiquem este domínio
como seu, e acusem os pedagogos de cometer erros na terapia e na etiologia, Tissot escreve
claramente que gostaria de se libertar deles para tratar as doenças honrosas.
Justificava-se tudo isso afirmando que a luta contra a masturbação, como mais tarde a luta
contra as doenças venéreas, deveria utilizar o processo do exagero para despertar um medo
salutar. Como contra-argumento, pode-se lembrar o fato de tanto o combate à masturbação
quanto a fobia à sífilis apresentarem aspectos patológicos. Por isso, podem-se levantar suspeitas
quanto ao exagero da cifra que se dizia representar o número de doentes venéreos no início do
século XX. O tratamento das doenças venéreas era quase sempre colorido de sadismo e continha
sempre a ideia de castigo. Os atingidos por elas tinham a sorte de viver em sociedades burguesas
que precisavam de soldados para suas guerras, recebendo, por isso, um tratamento médico fora
desse âmbito. Mas, antes de mais nada, havia o fato (feliz?) de tais doenças serem contagiosas, o
que obrigava aqueles para quem os libertinos deveriam ficar doentes, como castigo, a auxiliar na
cura dos mesmos.
A evolução do conteúdo do conceito de masturbação também é sintomática. A princípio só
se referia a algumas atividades no homem. Em seguida o conceito foi estendido à mulher e em
breve a outros grupos etários; as "crianças muito pequenas", até os próprios lactentes,
masturbavam-se. A diferença entre polução noturna e polução "diurna" (Wichmann, 1782), as
relações homossexuais e a masturbação ficou cada vez mais vaga. Foram introduzidos certos
métodos de excitação sexual, que antes não seriam qualificados de masturbatórios; não deviam
limitar-se obrigatoriamente à zona genital, nem mesmo era necessário servir-se das mãos, como
quando se apertava as coxas uma contra a outra; o orgasmo e a ejaculação podiam não se
produzir, ou até ser vivenciados apenas psiquicamente ("o que antes era lubricidade física, tornou-
se agora lubricidade espiritual"). Certas formas de relações sexuais foram postas no mesmo plano
que a masturbação; por exemplo, o coitus interruptus, a relação orogenital ou interfemoral,
opetting, etc.
d) Origem do combate
Não se pode explicar um fenômeno sociológico e patológico de longa duração, como o
combate à masturbação, enumerando simplesmente dados históricos. Somos levados a formular
hipóteses e testar sua validade para a explicação deste fenômeno.
Afirmou-se que o número de pessoas que se masturbavam aumentou no século XVIII; isto
está provado? A afirmação parece-nos inverossímil, pois, na primeira metade deste século, o
combate à masturbação ainda não se tinha estendido às escolas e aos pensionatos. Aliás, isto pode
causar-nos surpresa, pois é justamente nestas instituições que se poderia supor a existência de
uma grande prática da masturbação, em conseqüência da falta de contatos heterossexuais, da
solidão e, sobretudo, da grande afluência de sangue à zona abdominal, devido ás longas
permanências na posição sentada.
Uma hipótese também poderia ser que a forma da masturbação se modificou: a partir da
masturbação sentida como necessidade e da masturbação de tempos em tempos funcional, os
homens chegariam a uma espécie de auto-satisfação sentida conscientemente como sexual, e,
portanto, como pecaminosa. Mesmo atualmente, nos países ocidentais industrializados, é muito
freqüente que a masturbação seja "pré-consciente": as pessoas em questão só posteriormente
aprendem, pelos livros, o que fizeram. Uma parte do que se chama a masturbação é uma atividade
mal definida. No período pré-púbere não se distingue claramente das outras experiências de
prazer, por causa da ausência de ejaculação; depois da puberdade nem sempre se distingue da
polução; nas moças o fenômeno é mais "difuso" do que nos rapazes. Em virtude da expansão do
pudor, muitas coisas que anteriormente só mantinham uma relação muito indefinida com a
sexualidade são definidas como sexuais. Logo, a auto-satisfação apareceu indubitavelmente pior e
mais pecaminosa, mas, também, mais atraente; este sentimento foi reforçado a partir do século
XVI, pelo surgimento do tabu do toque. A partir dal desenvolveu-se a pedagogia hands-off. O tabu
é tanto mais forte quanto mais precoce é a idade em que se estabelece, como sucedeu no século
XVII. O estatuto da masturbação ter-se-ia então modificado: é menos release of tension ou um
prazer do que a transgressão de um tabu.
Devemos ainda recordar, neste contexto, a importância crescente da interiorização. O
prazer aumenta na medida em que a fantasia desempenha um papel mais importante. Mas, ao
mesmo tempo, aumentam os escrúpulos, já que a moral da vergonha evolui para a moral da culpa.
Isto influencia de novo a forma da auto-satisfação. É notável observar que no século XVIII muitas
vezes se afirma a satisfação sem sentimento de culpa, mas que, no entanto, não se ousa confessá-
lo aos outros. Logo, não se está livre de vergonha. Só se pode combater eficazmente a sexualidade
solitária quando a vergonha tornou-se culpa. Esse combate tinha muitas vezes como resultado um
aumento da freqüência da masturbação, porque os culpados são prisioneiros de um círculo vicioso.
Sucede o mesmo quando a maneira de se masturbar se modifica, o que deve ser, em grande parte,
imputado à campanha contra ela.
Ao lado da possível psicogênese do combate devemos também investigar a sua
sociogênese. Não é impossível que o processo de dessociabilização tenha levantado reações muito
vivas contra as atividades solipsistas, anárquicas e socialmente improdutivas. O social control de
um grupo exerce-se contra as correntes desintegradoras que ameaçam a homogeneidade. A
condenação não seria dirigida, neste caso, contra o componente sexual da masturbação, mas
contra a falta de sociabilidade. Por outro lado, é preciso admitir que a ação deve ser muito mais
forte, pois se este componente social é incontrolável, a resistência do grupo contra a relação mais
fácil de ser descoberta, com prostitutas, era basicamente diferente do combate à auto-satisfação.
Aqui se tratava de sanções muito mais ampliadas, profundas, com conseqüências independentes e
internas. Assim, facilmente apareceu um sobretabu, comparável àqueles tabus com os quais, ao
longo do processo de civilização ocidental, estava investida a faca. Nos dois casos não havia
relação racional entre os perigos reais e a qualidade e quantidade das proibições e das regras. A
proibição da auto-satisfação pôde provir de reações primárias emocionais (medo, culpa), de que a
sociedade se servia para se tranqüilizar. A justificativa racional era diferente da que proclamavam
os inimigos da auto-satisfação (higiene, etc.); representava, antes, o bem real ou desejado do
grupo.
Além disso, como se poderia tolerar, por pouco que fosse, a auto-satisfação, quando mal
se toleravam outras funções? O século XVIII — os historiadores concordam neste ponto — era um
século que não conhecia nada da limpeza; as pessoas não se lavavam muito, não porque se
tomasse o corpo, tal como era — erro semelhante ao que consiste em dizer "que só as pessoas
sujas é que se lavam" —, mas porque justamente este corpo parecia desagradar o homem. O
apreço pelo corpo diminuía exatamente na medida em que outras funções físicas eram
desvalorizadas.
Ao mesmo tempo em que aumentava a resistência perante as manifestações da vida e em
que se tornava suspeito o gosto por uma sensualidade visual, móvel, tátil e olfativa, a hostilidade
cada vez maior pelo prazer, ao que parece, acabou por ser investida na auto-satisfação, que se
julgou libidinosa. A auto-satisfação é um comportamento que necessita de pouca reserva: não há o
risco da gravidez, como no caso das relações pré-conjugais, não há sífilis, como no caso da
freqüência dos bordéis, e não é preciso esperar que o companheiro esteja disponível; a pessoa
subtrai-se a todas as leis e a todos os preceitos, da mesma forma que ao controle da sociedade e à
responsabilidade. Isto nos faz supor que não se combatia a masturbação tanto para acabar com
ela, como para castigá-la. Observava-se uma interação entre os elementos de castigo de caráter
sádico e a tendência, já mencionada, de autopunição. Muitos escritores exprimiram-no
abertamente: o pecado cometido era seguido de horríveis conseqüências e muitos dos que se
masturbavam castigavam a si próprios pelo suicídio.
Todos os autores que se pronunciaram a favor do combate à masturbação saíram da classe
média. S. Ranulf mostrou que a indignação moral observada desde os séculos XVI e XVII era
característica da classe média inferior. A tendência, aparentemente desinteressada, para punir é,
em parte, uma inveja social disfarçada. Devemos, no entanto, considerar igualmente certos
elementos da psicologia puritana, como a necessidade de dar preceitos e castigos. Durante meio
século, só médicos pouco conhecidos falaram da auto-satisfação. Podemos tentar elucidar estes
dados. O puritanismo que se encontra em fins do século XVII não era comparável em nada,
sobretudo na Inglaterra, ao antigo puritanismo, para o qual a auto-satisfação era um pecado, e
pecado era pecado. Os antigos puritanos não se preocupavam de modo algum com a saúde do
grupo; cada qual tinha mais o dever de velar pela sua própria salvação. Não pretendiam melhorar a
ordem estabelecida por Deus ou pela natureza. O puritanismo da época do Aufklärung acreditava
que a razão podia melhorar o homem e o mundo. Ousava-se julgar tudo, até Deus. Muitas vezes se
reprovava tal ou qual comportamento, porque representava um desperdício de energia e de
tempo. Trapp queixava-se, em 1780, do "tempo e força que os jovens perdem com o onanismo, a
libertinagem, o jogo, a embriaguez e a leitura de livros luxuriosos". O combate á masturbação
tinha igualmente um aspecto psicanalítico. R. A. Spitz via uma relação entre a expansão da
repressão sexual e as modificações no sistema governamental. Afirma que a repressão começa, do
ponto de vista cronológico, a meio caminho entre a Reforma e a Revolução Francesa. Nesta época
deu-se um deslocamento das relações de poder. Uma das conseqüências deste deslocamento teria
sido a intensificação dos sentimentos de culpa. Assim que a religião, a sociedade e a família
passaram a ter uma estrutura hierárquica e patriarcal, foi possível lançar a responsabilidade e o
exercício do poder sobre as pessoas altamente colocadas na hierarquia. Com o protestantismo, o
indivíduo tornara-se livre; portanto, responsável perante si próprio e perante Deus. A partir de
então, o pai de família devia definir o comportamento da sua família levando em conta apenas a
sua responsabilidade. As proibições passaram a incidir na sexualidade em geral, mas sobretudo nos
atos sexuais mais difíceis de controlar. O fato de tantas pessoas acreditarem em conseqüências tão
funestas de uma acão tão inofensiva como a auto-satisfação só é passível de ser explicado quando
partimos do ponto de vista de que existia uma relação sadomasoquista entre o combatedor e o
masturbador. A auto-satisfação não era combatida a fim de provocar seu desaparecimento, mas
para castigá-la. E o masturbador aceitava satisfeito esse castigo para o seu prazer proibido.
e) Racionalizações
Admitiu-se até o século XVIII a existência de contatos diretos entre os órgãos genitais e o
cérebro. Não se procurava demonstrá-lo, porque se estava persuadido a priorí deste fato. A teoria,
aliás, poderia explicar uma série de fenômenos: um colapso num dos dois pólos (órgãos genitais ou
cérebro) afetava o outro; assim, nos fracos de espírito (os idiotas) observava-se uma exacerbação
da sexualidade. Quem se esgotasse nas atividades sexuais enfraquecia o outro pólo, secava o
cérebro "a tal ponto que se podia ouvir chacoalhar contra as paredes o crânio". A ausência ou a
inibição das atividades sexuais num homem normal produzia tensões no outro pólo: esta pessoa
enlouquecia ou enfraquecia. O sistema sexual podia, portanto, engendrar doenças psíquicas
quando a atividade era exagerada ou bloqueada. Por outro lado, a atividade sexual era também
considerada como uma terapêutica dos desequilíbrios psíquicos. Na primeira metade do século XIX
pensava-se ainda que os doentes mentais podiam ser tratados pela atividade sexual, a auto-
satisfação ou a fecundação. Da mesma forma, podiam realizar-se proezas intelectuais quando se é
pouco ativo intelectualmente (a futura teoria da sublimação). Estas e outras concepções
dominaram até o começo do século XX.
Segundo esta teoria, a masturbação podia não ser nefasta desde que não fosse
exageradamente praticada. No entanto, estes conceitos foram ampliados no fim do século XVIII
pela afirmação de que não só o abuso, mas também a falta de naturalidade na maneira de se
satisfazer podiam provocar doenças mentais. Não vemos claramente em que medida estamos aqui
na presença de uma tendência geral para a reprovação da masturbação, ou, antes, de uma
influência exercida pelo combate à masturbação sobre as idéias médicas.
A teoria do abuso sexual já existia em Galeno e Hipócrates. Tissot resumia-a desde modo: o
abuso é a fonte mais geral de enfraquecimento. O corpo perde continuamente as suas forças, e
esta perda tem de ser compensada pela alimentação. No corpo, a alimentação está exposta a
diferentes processos de assimilação, chamados nutrição. Quando esta nutrição é perturbada por
uma doença, segue-se um enfraquecimento constante. De todas as causas que impedem a
nutrição, a mais corrente é o abuso sexual.
Para que a alimentação atinja o grau normal de assimilação, é preciso que no corpo se
encontre uma certa quantidade de licores. Quanto mais intensamente estes licores são assimilados
mais rapidamente e em melhores condições a nutrição se desenrola, quer dizer, mais saudável é o
homem, pois mais elementos nutritivos pode extrair dos seus alimentos. O leite de uma ama, por
exemplo, é pouco trabalhado; por este motivo, a ama pode dar todos os dias uma certa
quantidade de leite, sem ficar doente. No entanto, o esperma é muito mais denso, quer dizer, a
perda de uma onça de esperma enfraquece mais do que a perda de quarenta onças de sangue.
Tissot afastava-se, pois, de Galeno, quando afirmava: "O mal que atinge aqueles que se esgotam
em relações sexuais naturais é terrível; mas muito mais terrível é o que a masturbação determina".
Segundo Demócrito ou Haller, o coito normal é "uma espécie de epilepsia", uma "ação violenta
muito próxima da convulsão e que, por isso mesmo, enfraquece espantosamente e prejudica todo
o sistema nervoso". Ao enfraquecimento devido à ejaculação do esperma acrescentava-se ainda o
esgotamento consecutivo aos espasmos. É por isso que "numerosas pessoas" perdiam a vida
durante o coito. Depois de ter discutido a questão de saber o que era mais esgotante, se a
ejaculação ou os espasmos, Tissot chegava à conclusão de que o coito provocava na organização
interna do corpo uma desordem total, donde provinham quase todas as doenças. Para a mulher,
as conseqüências eram ainda mais desastrosas. Como o seu sistema nervoso era mais fraco, a
mulher tornava-se "mais quente" e acedia à "voluptuosidade" mais facilmente do que o homem,
de modo que ficava ainda mais exposta aos perigos de uma doença.
Para provar que a auto-satisfação era ainda mais nociva do que o coito não era preciso,
segundo Tissot, alegar uma intervenção especial da providência divina, modificando as leis
imutáveis da natureza. Tudo se explicava "com base nas leis naturais''. Segundo Sanctorius, um
coito sugerido não pela natureza mas pela fantasia é nefasto: enfraquece a alma e particularmente
a memória. Quando o coito ou a auto-satisfação não são suscitados por uma necessidade
fisiológica, comete-se uma ação inútil. A necessidade torna-se independente da massa de licores
que se deixa correr. "Assim chega-se a um caminho que leva ao abismo." Uma outra razão pela
qual a masturbação é nefasta consiste no fato da vítima viver "numa tensão moral contínua". A
frequência aumenta, porque as ocasiões de se masturbar são mais numerosas do que as de ter
relações sexuais. Da mesma forma, ereções demasiadamente frequentes provocam uma tensão
esgotante, que pode originar uma paralisia, síncopes ou a gonorréia. Fica-se igualmente mais
esgotado quando se perdem as forças por todos os lados; durante o coito, pelo menos, está-se em
parte protegido pelo corpo da companheira (ou do companheiro). Há muitas vezes a tendência a
masturbar-se de pé, o que provoca um suplemento de fadiga. Sanctorius já havia dito que o coito
em pé provocava perturbações ainda maiores, inclusive a perda considerável de suor, pois durante
o coito ou a masturbação suava-se mais que normalmente. No coito normal a perda é equilibrada
pelo fato da pessoa aspirar as substâncias que o parceiro (ou a parceira) transpira.
f) Meios de repressão
Antes de se poder combater a masturbação é preciso poder-se reconhecê-la. Um só olhar
sobre a atitude, a postura, a cor da pele, os olhos e a expressão facial dos adolescentes é quanto
basta. Os pedagogos esforçaram-se por encontrar métodos para levar os adolescentes a
confessarem espontaneamente. No prefácio à tradução holandesa do livro de Vogel, o autor
aconselhava o aluno dado ao "vício" a ter confiança no seu professor, a pedir explicações e a falar
com ele da má utilização do esperma. Neste momento dever-se-ia mudar bruscamente de tom,
pôr um espelho em frente da cara do adolescente e dizer-lhe "com uma voz séria e emocionante":
"E tu não deves atribuir estas conseqüências senão a ti próprio; tens aí a imagem da tua morte —
há quanto tempo te entregas a este vício?" Indubitavelmente, era de esperar uma confissão.
Também era preciso perguntar ao adolescente se não conhecia outros culpados. Podia-se também
fazê-lo ler uma história horrível, descrevendo o destino daquele que se masturba, e examinar
atentamente o rapaz durante a leitura. Necessário se tornava também vigiar as camas e a roupa de
baixo. Se nestas se descobriam manchas, ou na cama, era preciso procurar o médico da escola e
fazê-lo praticar uma infibulação. Quando esta mancha de sêmen resultava de poluções noturnas
involuntárias, tinha-se a prova de que o adolescente era um libertino. Finalmente, os que se
masturbavam atraiçoavam-se a si próprios, porque não podiam aprender a lutar e tinham muita
dificuldade em dançar e montar a cavalo.
Assim que houvesse a certeza, era preciso aplicar um tratamento. Consistia este em
obrigar a criança a libertar-se do seu hábito, restituir-lhe forças físicas e combater isoladamente os
sintomas da doença. Tinha de se atingir uma situação que impedisse toda a infecção pela
masturbação. Por outro lado, os adversários da masturbação ainda aperfeiçoaram regras
preventivas e profiláticas, como a informação sexual, a criação de vestuário especial, as
intervenções cirúrgicas e a hidroterapia. O número de regras aumentava continuamente e
exerciam, na esfera subliminar, um controle e ameaças constantes. Tudo isto pode ser definido
como uma pedagogia antimasturbatória.
RELIGIÃO. — Máximas e conselhos tais como "Um só olhar para o crucifixo ajuda mais que
todo Tissot" ou "Se for preciso, confia a criança à guarda da religião" eram tão raramente
enunciados como a recomendação de uma oração sincera ou de uma conversa com um sacerdote.
A maior parte dos escritores garantia poder evitar o auxilio da religião. Esta atitude inverteu-se
totalmente no século XIX, tornando a inverter-se por volta de 1930, quando se julgou que a
religião ficaria exposta ao perigo se a imiscuíssem no combate a favor da castidade. Porque, se a
castidade falhasse, a religião seria desprezada.
REGIME ALIMENTAR. — O papel atribuído à alimentação era enorme. Muitas vezes se lê
que o homem não pode dirigir o seu próprio comportamento, pois a alimentação, de uma forma
quase mecânica, é determinante. O homem condena-se mais pelos seus excessos alimentares do
que pelo seu comportamento imoral. Tratava-se, aqui, de um sintoma que apontava para a visão
do homem que já foi mencionada; ele seria uma parte de um todo maior ao qual deve sujeitar-se.
O regime alimentar tinha uma dupla função. As pessoas que se masturbavam deviam primeiro
seguir um regime fortificante. Era-lhes dado, por exemplo, quinquina para fortificar a musculatura;
e, às vezes, até uma ama. Podiam também sofrer uma cura através da sudação e, para tal, dormir
entre duas amas saudáveis; este processo tinha um inconveniente; logo que o doente melhorasse,
o desejo podia manifestar-se de novo. Por este motivo, Tissot declarava-se hostil a este método
terapêutico.
A função do regime alimentar era, sobretudo, de natureza preventiva. Num de seus
escritos sobre regime alimentar, Galeno afirmara que a alimentação tornava uns mais castos e
arrastava outros para o mau caminho do excesso. A experiência dos mosteiros, nesse sentido, era
secular e essa sabedoria tornou-se, em parte, um bem comum. Admitia-se que os intelectuais
deviam comer moderadamente, senão parcimoniosamente. A alimentação também tinha um valor
mágico-moral: saborear certos pratos dava início, automaticamente, a um pecado. Börner, que se
havia dedicado a um profundo estudo dos regimes alimentares, enumerava os seis pratos
afrodisíacos e, por conseqüência, perigosos. O peixe em salmoura acelerava o aparecimento da
puberdade e era particularmente perigoso na primavera. A abundância de carne e de álcool
causava perversão sexual (da mesma forma que ainda hoje se acredita que os afrodisíacos podem
impelir a certas formas do ato sexual). Pronunciavam-se igualmente contra a ingestão do leite com
nata, de ovos, arroz, especiarias, chocolate, ponche, café, chá, cerveja, açúcar, tomates e batatas.
A alimentação devia ser muito digerível, vegetal e sem muito molho, não muito quente nem muito
condimentada. Às vezes recomendavam-se antiafrodisíacos, como a cânfora. Também havia a
preocupação com o leite da mãe e das amas; não devia ser muito ácido, pois caso contrário os
órgãos genitais da criança ficariam irritados quando esta evacuasse. Também era preciso ser
prudente com os laxativos. Enfim, era preferível não comer à noite.
Vê-se bem, a partir de tais conselhos alimentares, a que público estes livros eram
destinados. O povo não tinha uma tal abundância de carne, a ponto de ser preciso pô-lo de
sobreaviso contra o abuso. Comia pão preto, legumes e bebia água; portanto, muito amido, poucas
proteínas e muitíssimo poucas vitaminas. Vivia em permanente estado de subnutrição.
CONDIÇÕES DE HABITAÇÃO. — No século XVIII eram muitas as pessoas para quem a frase
"A natureza do homem é boa, mas a civilização torna-a má" tinha um valor real. Assim, o fogão da
sala levaria os rapazes e as moças a se masturbar. Apesar destes "fatos", não se queria modificar a
educação. Tampouco se levavam em conta os filhos dos camponeses, que "andam fora de casa no
inverno, sem roupas especiais, e que, no entanto, são fortes e bem desenvolvidos". Locke já havia
dito que era preciso habituar muito cedo as crianças ao frio, e não ao calor. Apareceu uma espécie
de pedagogia do frio; procurava-se arrefecer o corpo. Na literatura do século XVIII fala-se muitas
vezes da temperatura: para a alimentação, a casa, o vestuário, os hábitos de sono, o banho e as
outras atividades, o calor ou o frio desempenhavam um papel quase mágico. Muitas pessoas
pareciam ter sempre calor; reagiam a tudo o que "excitava e aquecia o sangue". Punham-se essas
pessoas de sobreaviso contra a dança, "que aquece mais do que qualquer outra coisa, sobretudo
as mulheres, atua sobre os órgãos genitais e afeta as mais íntimas sensações". No que tange às
roupas, a conveniência não dependia apenas da forma como o corpo era coberto, mas também do
calor que a roupa lhe transmitia: "Verifiquei que as pessoas muito sensíveis se vestem quase
sempre com roupas quentes, e ao dormir se cobrem muito".
A CAMA — Zona perigosa por excelência, era objeto de numerosos preceitos; o colchão, os
cobertores, os lençóis, a permanência, o vestuário noturno e os companheiros de cama eram
continuamente objeto de discussões. As proibições eram justificadas através de teorias
pseudomédicas. Entre os quatro e os seis anos, as crianças tinham de perder o hábito de dormir na
cama, mesmo no inverno. Para proteger sua inocência era preciso que dormissem numa enxerga,
com um cobertor de algodão. Os colchões de penas eram tão perigosos quanto os sofás de molas
de aço, que já tinham sido, há muito, denunciados pelos médicos como possuidores de
"propriedades excitantes e aquecedoras". A castidade era melhor resguardada em colchões de
crina ou de palha, cobertos de couro. O médico Börner dizia: "Embaixo e entre os cobertores de
penas, as emanações reúnem-se e propagam-se em torno da periferia do corpo; o óleo contido nas
penas evapora-se por efeito do calor e o corpo fica todo amolecido". A criação de colchões de
castidade, de crina, foi um elemento essencial na pedagogia dos filantropos. Contemporâneos
zombavam do fato dos novos educadores terem escolhido colchões de crina com cobertas de
algodão por razões econômicas, ao que Salzmann respondeu, afirmando, que os novos colchões
eram mais caros. Peschek afirmava não haver a menor dúvida de que a cama mole e quente
representava o túmulo da inocência, mesmo para as jovens sensíveis. "Foi pelo costume de dormir
em colchões de penas que uma voluptuosidade ilimitada se espalhou em nossas sociedades." Era
preciso endurecer-se e até aprender, se fosse necessário, a dormir sem cobertor. Também não era
permitido dormir de costas; podia-se ajudar a criança a conformar-se a esta exigência atando-lhe
nas costas uma grande chave. As mãos deviam ficar por fora do cobertor. Para os adolescentes que
tinham tendência a masturbar-se, havia luvas munidas de pontas metálicas bem afiadas. Até
mesmo a duração ideal da permanência na cama chegou a ser definida: era preciso deitar-se
morto de fadiga e levantar-se antes de estar totalmente repousado. Não se devia falar com os
companheiros de cama ou de quarto, porque o sono é um assunto sério. Um sono muito longo
provoca doença e transforma o sangue em humor viscoso; amolece o corpo e "definha a força da
alma". Nos internatos deixava-se a luz acesa toda a noite, a pretexto de que esta medida era
necessária para o caso de as crianças terem necessidade de ir ao banheiro.
VESTUÁRIO. — Ao longo do século XVIII o vestuário dos adolescentes mudou muitas vezes
e ao mesmo tempo foi racionalizado, isto é, tornou-se mais simples e mais funcional; também se
levava em conta a temperatura do corpo. Por isso, Locke se declarava hostil aos bonés, ao calçado
e às roupas especiais para o inverno. Peschek afirmava, por sua vez, que era preciso deixar de
vestir casacos de peles nas crianças durante o inverno. Em vez de lã, era melhor usar algodão e
deixar a gola bem decotada e aberta. A camisa não devia ser muito comprida, para permitir uma
melhor ventilação.
Tudo o que oprimisse, impedisse um bom arejamento ou prejudicasse a circulação deveria
ser evitado. Os casacos compridos, dizia-se, são "pretextos para a luxúria".
O vestuário mais discutido eram as calças. Alguns recomendavam o uso de calças também
para as moças, a fim de que elas se tornassem "audaciosas, fortes e mais livres". A moda das
roupas de marinheiro para as crianças nasceu nesta época; este tipo de roupa comportava
elementos contra a masturbação. Para outros, dever-se-ia proibir o uso de calças para os rapazes.
Essas ações, porém, não tinham grande influência. O instigador do movimento ariticalças, o Dr. B.
C. Faust, um médico que durante muito tempo praticou entre os camponeses, era favorável a uma
melhor formação das parteiras e uma higiene e uma dietética mais rigorosas, à vacinação, a uma
construção racional das casas, à assistência aos soldados e à paz. Atribui-se-lhe a invenção do
berço, da cama especial para doentes e da cama de partos. Em 1791 publicou um livro no qual se
colocava a favor da abolição das calças até a puberdade. Ainda hoje, dizia ele, vive "um pequeno
povo sem calças, os escoceses". Estes homens, que só comiam pão de aveia e caça e cuja vida era
pobre e estéril, mostraram a sua resistência ao frio durante a Guerra dos Sete Anos, na Alemanha,
a na guerra da América do Norte; eram fortes; bravos, castos e alegres. Os seus "órgãos genitais...
tanto o membro viril como os testículos" eram excepcionalmente grandes e fortes. Não podem
comparar-se com os dos ingleses e dos alemães. Isto, porque não usavam calças. "Logo, se
suprimirmos o uso das calças nas crianças, os órgãos genitais masculinos dos europeus, que agora
são medíocres, comparados com os das mulheres, ganharão pelos menos um décimo a mais em
tamanho e força; isto significaria, com certeza, uma grande melhoria para a humanidade." Esta
diferença entre os órgãos genitais do homem e da mulher faz com que o prazer sentido na
procriação seja menor na Europa. As "prostitutas" preferem um escocês a dois ingleses ou dois
alemães. Por meio de um "cruel decreto parlamentar'' os ingleses quiseram dominar os "bravos" e
audaciosos escoceses e vestir-lhes calças; mas os escoceses, ainda mais espertos, "usavam as
calças na ponta de uma vara que traziam aos ombros". Só nos vales é que os homens usaram
calças e rapidamente se notou neles um enfraquecimento. Os "nobres habitantes das Highlands"
continuaram sem calças, e, por conseqüência, ousados. Para Faust, o uso de calças pelas mulheres
é um desastre. "Como ouvi dizer, numerosas mulheres de casta elevada e até mocinhas usam
calças; é uma invenção funesta que pode causar, a mulheres e jovens, quedas de útero,
corrimentos brancos e outras afecções femininas!" Mas o combate principal ainda viria a ser
travado contra o uso de calças nos rapazes pois, uma vez tendo sido regulamentado o vestuário
masculino, o feminino passaria a encontrar sua ordem; as calças provocam um calor tremendo, é
"uma perpétua estufa quente", "um banho de vapor quente, úmido e emoliente". Neste calor, os
testículos são "aquecidos, irritados, oprimidos"; durante oito ou dez anos, os testículos, ainda
inativos, mantêm-se neste calor, contrário à natureza, durante quinze horas por dia, quer dizer, de
43.000 a 54.700 horas. Os testículos foram colocados no exterior do corpo pela natureza e
permanecem sem pêlos até os dezesseis anos, para não terem de suportar um calor muito forte.
As calças também oprimem o corpo e prejudicam a livre circulação, e, como conseqüência, o
resfriamento do sangue e do ar. Logo, não é preciso ir muito longe para encontrar a causa da
masturbação. Mesmo as calças melhores e mais largas não podem impedi-la.
Na opinião dos cientistas, os rapazes cujos testículos não tinham descido para o escroto (e
que, portanto, continuavam quentes) eram muito "lascivos". Os jovens que, habitualmente, só por
volta dos dezesseis anos sentiam impulsos sexuais já ejaculavam aos onze anos. Em circunstâncias
normais, um jovem de dezesseis anos era fisicamente muito fraco para "possuir ou violar uma
jovem cheia de inocência e de pudor, protegida por um hímen" ... mas já não se podia dizer o
mesmo dos rapazes do "nosso século corrompido". "Pela secreção do esperma, a criança deixa de
ser uma criança." Se fosse possível retardar, por um a três anos, a primeira ejaculação, já se teria
dado um grande passo. Um outro, problema consiste no enfraquecimento do homem: "O esperma
é a molamestra essencial e autêntica do homem!" Uma perda de esperma provocada muito cedo
não produz efeito e enfraquece o homem. Logo, uma ejaculação prematura é sinal de fraqueza. Já
que os jovens agora amadurecem mais cedo, pode-se concluir que a raça humana na Europa passa
por um perigoso enfraquecimento.
Faust propunha que se proibisse o uso de calças dos dois aos catorze anos; entre os
protestantes esperava-se até a comunhão, quer dizer, muitas vezes até a idade de treze anos.
Durante este período, rapazes e moças usariam o mesmo vestuário: uma camisa de linho com o
colarinho aberto até a boca do estômago. No verão, usariam por cima uma blusa riscada de azul e
branco, com mangas curtas e que chegasse até os joelhos; no inverno, uma blusa de lã por baixo.
Vestir meninos e meninas com roupas diferentes é o princípio da estupidez e da miséria da
humanidade.
Para Faust, competia aos príncipes estabelecer o novo costume nas suas províncias.
Este plano deu origem a algumas discussões acadêmicas, mas o fato contra o qual Faust
lutava e a necessidade de fazer alguma coisa neste domínio não eram postos em dúvida. Algumas
pessoas, pensando que a reforma poderia não atingir o fim desejado, fizeram sérias objeções.
Faust havia escrito que os saudáveis e fortes escoceses das Highlands não faziam qualquer
ideia da "potência dos seus órgãos genitais"; sua grande castidade era digna de louvor. No
entanto, Bake afirmava que órgãos genitais nus poderiam ser feridos e, se não fossem cobertos,
incitariam os adolescentes a masturbar-se. Um ano depois da publicação do livro de Faust,
apareceu uma resposta do eclesiástico F. Rehm: Conselhos que ensinam como preservar as moças
e os rapazes da impureza prematura, mesmo conservando o uso, até agora corrente, das calças,
pela melhoria da sua educação física e moral (Vorschlägue, wie man auch mit Beibehaltung der
bisher üblichen Beinkleider, Mädchen und Knaben durch Verbesserung ihrer physischen und
moralischen Erziehung vor früher Unzucht bewahren Könne). A intenção estava claramente contida
no título. No entanto, não era necessário preocupar-se com o projeto de Faust, pois este não
obteve o menor sucesso. Dez anos depois (em 1802), Rehm escreveu que a sua resposta não era
de modo algum dirigida contra Faust, porque, quanto ao essencial, estavam exatamente de
acordo.
OCUPAÇÃO. — Um dos aspectos importantes da pedagogia antimasturbatória consistia em
manter os adolescentes continuamente ocupados. Durante as aulas era preciso obrigá-los a tomar
o maior número possível de notas, para que suas mãos estivessem sempre à vista. Sobretudo entre
os educadores progressistas, o trabalho manual e a ocupação desempenhavam, além do papel
pedagógico habitual, um papel antimasturbatório. Para Heusinaer, o trabalho manual era a base
do trabalho pedagógico. Tratou deste assunto no romance A Família Wertheim (Die familie
Wertheim) e num breve ensaio pedagógico, Da maneira de utilizar o impulso à ocupação, tão
presente na criança (Über die Benutzung des bei Kindern so tätigen Triebes). (Não se deve deixar
sozinhas pessoas às quais não se pode dar nenhuma ocupação, por exemplo, os doentes.) Outros
meios de lidar com a masturbação consistiam em mudar de quarto, procurar uma outra
companhia ou começar imediatamente a trabalhar com alguma coisa que exigisse toda a atenção.
VIGILANCIA. — Uma outra forma de abordar o problema da masturbação consistia em
vigiar constantemente os companheiros dos adolescentes e a honestidade do meio em que viviam.
Alguns escritores opunham-se a brincadeiras com animais, porque estes podiam induzir o
adolescente à tentação. Mas todos concordavam que nunca se deveria deixar uma criança sozinha.
Era preciso surpreendê-las regularmente, controlar o que faziam do seu tempo e observar as
pessoas que encontravam. As amizades eram sempre, cada vez mais, fontes de perigo. Passar uma
noite na casa de um amigo proporcionava riscos ainda maiores. A solução mais segura era colocar
um grupo de adolescentes da mesma idade e do mesmo sexo sob a vigilância de adultos
conscienciosos. A pureza do meio era igualmente importante. As pessoas eram advertidas contra
as representações de fantoches, equilibristas e prestidigitadores. Não se deveria permitir a
presença de crianças desacompanhadas em lugares onde eram mostrados animais exóticos,
particularmente os macacos, era necessário acompanhá-las e recomendar "que tivessem cuidado
para onde olhavam". A importância do perigo que se atribuía à natação se justificava pelo fato dos
banhos serem quentes e isolados, o que se acreditava excitar as crianças. Por isso, estes banhos só
eram bons para os alunos doentes dos pensionatos, que, aliás; nunca deveriam ficar a sós. 0 perigo
era menor quando havia vigilantes e a água era fria. "È preciso acrescentar que as crianças nunca
devem ficar nuas!" Depois de 1920, Stärcke ainda era obrigado a dizer aos pais, num texto sobre a
educação sexual dos jovens: "não se deve ensinar as meninas a tomar banho de camisa". As
meninas não tinham o direito de se sentar com as pernas cruzadas. Durante seus trabalhos de
costura tinham de utilizar um pequeno tamborete para colocar os joelhos numa posição elevada
para que não precisassem cruzar as pernas. Ao urinar era preciso não tocar no sexo.
REGRAS EM VIGOR NAS ESCOLAS. — O controle exercido no dormitório era muito
importante. Se não era possível dar uma chambrette a cada aluno, instalavam-se dormitórios, não
para cinqüenta ou cem alunos, mas apenas para vinte, com os quais o vigilante dormia. Os
quartinhos deviam estar abertos. As casas de banho tinham de ser instaladas de tal modo que
pudessem ser facilmente vigiadas. Cada banheiro devia ser cuidadosamente separado do seu
vizinho e munido de uma porta baixa. Basedow pensava que, tanto quanto possível a partir dos
dez anos, mas absolutamente dos catorze aos dezoito anos, era preciso que crianças ficassem sós
no banheiro. Quando se construía uma escola era necessário evitar os cantos sombrios ou
escondidos. Em 1873 concebeu-se o projeto de um banco de escola antimasturbatório. Os
seguintes comentários foram feitos num folheto: "Se os pés ficarem pousados numa barra
reservada para este uso, os alunos não poderão cruzar as pernas e comprimi-las uma contra a
outra. Impede-se assim a pressão ou o aquecimento das partes genitais e evita-se uma das causas
da masturbação; elimina-se da escola uma das doenças que ali causam as maiores desgraças". J.
Happel, diretor da Escola Normal de Antuérpia, que escreveu o folheto, concebeu também uma
espécie de cadeira na qual a criança era transportada sem apoiar os braços, eliminando-se deste
modo o contato habitual com os órgãos genitais. Construiu também carteiras que deviam impedir
os alunos de se tocar mutuamente.
ENDURECIMENTO. — Existia no século XVIII uma relação entre o combate à auto-satisfação
e a propaganda da educação corporal e do esporte. Os campeões desta tese sublinhavam a
influência benéfica da educação física na saúde. Uma educação corporal mais bem organizada foi
introduzida principalmente pelos pedagogos das escolas e, em especial, pelos filantropos. Stuve,
Salzmann e particularmente Guts Muths, o "pai da ginástica", constituíram-se em defensores da
educação física e combatiam a auto-satisfação com grande energia. Quanto a isso, a evolução
ocorrida no século XIX pode fornecer esclarecimentos acerca do objetivo a ser atingido. Na maior
parte das escolas onde era praticada a educação corporal, a ginástica era menosprezada tanto
pelos alunos quanto pelos professores. Eram exceções algumas escolas progressistas, onde se
praticava ginástica por razões militares. O tipo de exercícios físicos indicava que não se tratava de
fortificar o corpo, mas sim de fatigá-lo e distrair a atenção da sexualidade. O médico Börner
considerava a educação física como um meio eficaz de repressão. Era preciso obrigar as crianças a
fazerem os exercícios dos soldados com tempo mau, com diferentes armas.
O tema foi sempre retomado por Tissot, Peschek, von Winterfeld, Salzmann, Basedow,
Campe, Oest, Günther e outros. Tem-se a impressão de que estes exercícios físicos eram
considerados como penitências. Era preciso tolerar o frio, o cansaço e o calor. Campe pronunciava-
se a favor das longas caminhadas; outros, por um trabalho duro. Os adolescentes torturavam o
corpo comendo, lavando-se, ficando sentados ou deitados, dormindo no chão frio. Dominar-se
significava mortificar-se, e isto por medo ao prazer, mesmo antes de tê-lo saboreado.
MEIOS ARTIFICIAIS. — O programa compreendia inocentes bandagens, por vezes chamadas
"appareille de miséricorde", meios mecânicos e intervenções cirúrgicas. Em todos os livros que
tratam da masturbação se consagra uma dúzia de páginas à sua descrição.
Bandagens. — Ultzmann aconselhava ligar uma à outra as mãos da criança. Às vezes eram
fixadas na borda da cama ou a outras bandagens atadas em volta do corpo. Em 1786, Vogel
descreveu um sistema de bandagens passadas sobre os ombros e as costas, depois em torno dos
braços, onde eram atadas; os braços podiam mover-se livremente para cima, mas, para baixo, só
até o umbigo. O modelo foi depois melhorado: fabricaram-se vestuários especiais, com uma
cobertura nas costas ou com mangas cosidas uma à outra. Tissot falava de "jovens que se sentiam
bem atando o pênis à noite". Vogel aconselhava que as crianças ficassem na cama com um
barbante atado em torno do pênis, o que provocava dores no momento da ereção. Recomendava
também um processo que lhe fora ensinado por um amigo: cuecas completamente fechadas na
parte da frente e que subiam até á cintura, fechadas atrás por uma pequena fechadura; se a
criança queria ir ao banheiro tinha que pedir a chave aos pais.
Aparelhos. — Entre os meios mecânicos utilizados pela repressão da masturbação, havia
cordões munidos de guizos que se ligavam em torno dos braços e das pernas, ou gaiolas de malha
de ferro muito fina fixada em torno dos órgãos genitais. Mais complicado ainda era um aparelho
semelhante a uma funda herniária, descrito pelo autor anônimo de Um Método Fácil de Cura (Eine
leichte Heilmethode) (1787). Apertava-se a funda em volta do baixo-ventre e depois em torno do
pênis e dos testículos, enchia-se de chumbo, de couro e/ou de finas lamelas metálicas untadas
com uma pomada refrescante. Depois que a funda tivesse se adaptado à forma do corpo, a ereção
e a polução eram impedidas pelo frio do metal ou pelo couro. Este meio não era válido quando o
corpo já estava tão fraco que a ejaculação se produzia sem ereção. Salzmann publicou a carta de
um médico parisiense, A. Le Clerc, que dizia ocupar-se há muito tempo dos meios que ajudam no
combate à auto-satisfação. Falava de uma roupa especial, invisível por baixo do vestuário normal;
Le Clerc, segundo Salzmann, já teria salvo numerosas pessoas. Salzmann supunha que se tratava
de uma espécie de cinto de castidade chinês, que, quando se queria pecar, provocava dores. No
século XVIII ainda se construíram outros aparelhos, que no século XIX foram aperfeiçoados. Os
órgãos genitais eram ali encerrados como em pequenas gaiolas, munidas de pontas no seu interior,
de modo que qualquer ereção provocava uma sensação de dor; havia também gaiolas providas de
um dispositivo elétrico que a cada ereção acionava uma campainha no quarto dos pais, e
numerosas outras curiosidades.
Hidroterapia. — Nas observações de Campe sobre a obra de Oest, são mencionados dois
métodos de tratamento físico. Um consistia em abluções e lavagens com água acrescida de
produtos químicos; o outro era a infibulação. As abluções pareciam ser relativamente simples.
Depois de se levantar e antes de ir para a cama, o indivíduo tinha que lavar os órgãos genitais com
uma esponja e água fria, acrescida de uma solução de cânfora e de extrato de chumbo. Segundo
Vogel, "era preciso ter sempre junto de si um recipiente cheio de água gelada para extinguir o fogo
e a violência dos instintos". No momento da tentação recomendava-se beber um copo de água fria
misturada com vinagre, sumo de limão, salitre, açúcar, ácido sulfúrico e ácido cítrico. Nem sempre
se obtinha o resultado desejado: J. Kampf contava o caso de uma jovem bonita e inteligente que se
masturbava com um pênis artificial ("oferenda de Priapo"). "Todas as ameaças e promessas de
sanções, todos os castigos corporais mais bárbaros e todos os resfriamentos por meio de gelo e de
salitre, sem contar a flagelação constante, não bastaram para expulsar aquele sátiro. No meio das
torturas, a jovem gritava: 'Destruam-me como quiserem, não posso parar'. Abandonaram-na, pois,
à sua triste sorte, foi mãe aos dezesseis anos e partiu para a América."
Intervenções cirúrgicas. — Como dissemos, o segundo método de tratamento mencionado
por Campe é a infibulação: o prepúcio era puxado sobre a glande e furado em dois lugares, pelos
dois buracos assim obtidos era passado um anel. Isso tornava qualquer ereção muito dolorosa,
pois a extremidade do pênis tocava no anel. Börner foi, sem dúvida, o primeiro a mostrar a
influência desta operação na masturbação. "A infibulação não édolorosa nem perigosa, e é
igualmente muito útil para evitar a coabitação e o onanismo." Em 1787, Campe contava a seguinte
história, a propósito da "descoberta" da infibulação. Um rapaz de dez anos, que se masturbava
exageradamente, depois de ter lido Tissot, quis castrar-se, tomado de desespero. Espetou um
prego no prepúcio e depois desmaiou; conseguiu passar pelos buracos ainda sangrentos um fio de
ferro molhado em álcool canforado e fechou-lhe as pontas. Tratou depois das feridas, até curá-las.
Finalmente, substituiu o primeiro fio por um fio de latão, cujas extremidades foram recurvadas.
Campe enumerava as vantagens da infibulação: impossibilidade da masturbação, ereção dolorosa
e suspensão das poluções noturnas ("enfraquecimento involuntário"). O próprio "inventor" teria
usado o anel durante quinze anos. Segundo Campe, o inventor era um desconhecido, mas Vogel
afirmava tratar-se do próprio Campe.
Em 1827, o médico e conselheiro de Estado Weinhold enviou um memorial ao ministro
prussiano. Pretendia conseguir que todos os soldados e todos os homens com menos de trinta
anos, e cujos ganhos fossem inferiores a um certo mínimo, se submetessem à infibulação. "De vez
em quando, é preciso fazer uma inspeção geral."
Durante o século XIX também se tentou praticar uma espécie de infibulação nas meninas;
os grandes lábios eram furados, e também se passava um anel através dos buracos. No entanto
tratava-se de um método ineficaz para combater a masturbação, de modo que Broca introduziu
um aperfeiçoamento ("por sorte", dizia Garnier) que consistia em cobrir o clitóris com os grandes
lábios. No século XVIII falava-se da circuncisão como um meio de prevenir a masturbação, mas as
opiniões divergiam a este respeito. Ao ler as exposições de Garnier (1883) a;propósito das
intervenções cirúrgicas e outras nas jovens, encontraremos, nas entrelinhas, razões mais
profundas. 0 que já existia no século XVIII aparecia mais abertamente no século XIX: o castigo ou o
sadismo. Mas a camisa-de-força ou a circuncisão ainda não eram suficientes. Queimava-se a
glande com um ferro em brasa, com nitrato de prata ou por qualquer outro meio corrosivo,
untava-se com óleo de cróton e provocava-se a supuração. Também se queimava o clitóris e, por
vezes, certas partes dos grandes e dos pequenos lábios. Muitas vezes os médicos tinham que
intervir cirurgicamente nas mulheres "com ferro e fogo". "Para grandes males, grandes remédios."
Os escrúpulos que os médicos de outrora manifestavam com relação à clitoridectomia (que podia
aniquilar a sensibilidade da mulher) foram de novo abafados durante a segunda metade do século
XIX. Garnier protestava contra a "castração" da mulher pela ablação dos ovários, porque esta
operação não fazia sentido na luta contra a auto-satisfação. Vogel admirava os homens que,
através de um envenenamento consciente do corpo, atentavam contra a própria saúde e, por isso
mesmo, contra a necessidade sexual. "Duval, um dos espíritos mais originais, receava de tal modo
a violência dos seus instintos, que tentou refreá-los bebendo cicuta, com grande risco de morrer.
Poucas pessoas farão o que Duval fez." Os médicos ameaçavam com a castração. Muitas vezes, à
guisa de advertência, apenas se cortava um bocadinho do prepúcio ou dos grandes lábios. As mães
mandavam seus filhos para escolas de meninas, na esperança de que ali não aprendessem a se
masturbar. Pedia-se ao Governo "que exercesse a maior vigilância". A lei devia proibir e castigar a
masturbação, o que ainda ocorre em alguns estados dos Estados Unidos. Imaginou-se também que
se podia salvar um adolescente que se masturbava, casando-o ou confiando-o a uma prostituta.
Sabemos dos diferentes meios utilizados no século XVIII, e que, às vezes, provocavam
conseqüências mais graves do que o "mal" que se queria combater. O tratamento com água fria,
por exemplo, provocava uma congestão na zona abdominal. A infibulação impedia a higiene dos
órgãos genitais; a acumulação do esmegma podia ser uma causa de masturbação. Os numerosos
aparelhos que se ligavam ao corpo atraíam continuamente a atenção do adolescente para a auto-
satisfação. Pode-se dizer o mesmo dos numerosos conselhos, controles, alusões abertas ou
escondidas, relativas à posição na cama, ao sono, às refeições ou ao vestuário. Em suma, graças
aos pedagogos, a auto-satisfação era onipresente.
O ESCLARECIMENTO SEXUAL DO SÉCULO XVIII

Pode-se considerar esquematicamente o processo de expansão do puritanismo, no período


que vai do século XVI ao século XVIII, como a passagem do caráter público à dissimulação e à
clandestinidade do domínio privado. A evolução fez-se a partir do conhecimento inocente para
uma ignorância crescente, que acaba no sentimento de culpa. Uma simples curiosidade
abertamente manifestada já equivalia a um pecado. Se no século XVI os adultos e os jovens de
todas as classes ainda podiam falar livremente da sexualidade, já o mesmo não sucedia no século
XVIII, onde só eram admitidas duas fontes de informação: os criados e os companheiros da mesma
idade. Este modo de informação também foi condenado, o que nos mostra até que ponto a
sexualidade havia perdido o seu crédito. Só foi tolerada a situação em que os adolescentes atentos
ouvem o esclarecimento que lhes é dado por um adulto formado para este fim. Mas este
esclarecimento também foi muito criticado pois o ideal era a total ignorância. No século XVI, o
saber necessário era espontaneamente recebido — mais tarde, o esclarecimento foi
expressamente fornecido. Por fim, o esclarecimento já não se compunha senão de decretos
negativos, acerca dos quais só se podia falar em parte no seio da família, onde também acabou por
se tomar impossível, pelo recuo sempre cada vez maior das barreiras do pudor.
A expansão do puritanismo, a dissimulação da sexualidade, a crescente ignorância entre os
jovens, a maior sensibilidade e o aparecimento de categorias de idade diferenciadas que deviam
ser assexuais, tudo isto teve por efeito acentuar o caráter problemático das informações
referentes aos facts of life. Estavam preenchidas as condições necessárias para que surgisse um
esclarecimento como reação à passagem do domínio público ao domínio privado. No entanto,
devemos perguntar se o esclarecimento apareceu porque a ignorância já não era desejada, ou se
*
foi tolerada por outras razões. Pensava-se em esclarecimento como informação . O objetivo não
seria exatamente preservar os adolescentes do ''mal''? Qualquer ação pedagógica tem este
objetivo. Por "mal", os educadores progressistas do século XVIII entendiam: uma atitude positiva
perante o sexo, conhecimentos sexuais, a experiência física do prazer, em suma, todos os aspectos
da sexualidade, com exceção da função de reprodução no casamento.
Nosso objetivo é exatamente demonstrar que, nesse ponto, desde o século XVI ocorreu
uma mudança que levou ao aparecimento do "problema sexual". Pode-se considerar o
esclarecimento sexual como parte da grande corrente cultural que chamamos lluminismo
**
(Aufklärung). Na prática, freqüentemente usamos o termo “Aufklärung” , ao lado de muitos
outros como "instrução", "advertência", "educação" ou "curso sobre procriação do ser humano". O
esclarecimento não poderia ser considerado como uma resposta dos pedagogos aos textos

*
N. do T.: No original "Aufklärung" e "Information". Os dois sufixos grifados são isoladamente duas preposições, a saber:
movimento para fora (auf) e movimento para dentro (in). O restante das duas palavras também pode ser traduzido separadamente
como ''clarear'' (klärung) e "formação" (formation).
**
N. do T.: Este termo (Aufklärung) pode significar tanto "iluminismo" quanto "esclarecimento".
médicos, que não abordavam a questão? A advertência contra a auto-satisfação era o tema
principal. O esclarecimento servia simplesmente, escreve Villaume em 1787, para combater a
auto-satisfação. Salzmann considera a falta de esclarecimento como a causa principal da expansão
da auto-satisfação. Outros escritores começavam o seu livro com a fórmula clássica: era de má
vontade que escreviam esse livro. Não se tratava apenas de uma tomada de posição
estereotipada, mas também de uma atitude ambivalente; a ignorância é, sem dúvida, ideal, mas ao
mesmo tempo nociva.
Os adolescentes bem educados, saídos da burguesia, recebiam este esclarecimento;
tratava-se, portanto, de um pequeno número onde também era feita a campanha contra a
masturbação. P. Villaume escreve que o seu livro é destinado às "classes civilizadas, só para as
quais ainda se pode escrever", porque as outras não compravam ou não liam qualquer livro (na
Alemanha, 50% da população era analfabeta no fim do século XVIII). F. Rehm escrevia para as
crianças das "classes elevadas e médias", porque os pais podiam esclarecê-las e ocupavam-se da
educação dos filhos. O autor mostra assim que o esclarecimento está ligado à situação social.
Encontra-se também esta concepção numa outra obra, que foi publicada na mesma época, La
Philosophie dans le Boudoir (1795), do marquês de Sade: "Jovens que há muito foram manietadas
pelos laços absurdos e perigosos de uma virtude fantasista e de uma religião enfadonha imitem a
ardente Eugenia; destruam, pisem, com a mesma rapidez que ela, todos os princípios ridículos,
inculcados por pais imbecis". Ensinaram-nos a definir as obras do marquês de Sade como
pornográficas. Mas, para poder julgar histórica e objetivamente esta "filosofia", devemos
considerar a obra, não de um ponto de vista anacrônico, mas no quadro da sua época, quer dizer,
no fim do século XVIII. Devemos levar em conta que era então impossível prever quem venceria no
século XIX, se Rousseau ou o marquês de Sade. Se julgarmos que a obra do marquês de Sade
desperta a sensualidade e tem um caráter fíctício levando à adoção de comportamentos luxuriosos
ou imorais, o mesmo se pode dizer de Rousseau, Tissot, Salzmann e Campe. (Como não existe um
critério objetivo único que sirva para determinar o que é ou não pornográfico, seria melhor não
empregar este termo.) A nossa atitude atual é muito influenciada pelo fato de Rousseau e seus
discípulos terem vencido e de seu sistema ter sido valorizado pela sociedade. Não devemos
esquecer que tanto as concepções de Rousseau como as do marquês de Sade representam os
extremos do sistema moral da sua classe, quer dizer, da burguesia e da nobreza.
No conflito que opôs os pedagogos do antigo e do novo sistema, os primeiros acusavam os
últimos de serem hipersensíveis, de ensinarem muitas coisas sobre a sexualidade e propagarem
assim a auto-satisfação. Os novos pedagogos pensavam que os antigos eram indolentes e
irresponsáveis. Na polêmica ninguém utilizou o argumento: "Deixem a juventude em paz, porque
ela não sabe nada". Pelo contrário, todos os educadores partiam do princípio de que os
adolescentes sabiam perfeitamente do que é que eles falavam. Os educadores partidários do
esclarecimento se defendiam através de dois argumentos: pretendiam que era necessário falar de
sexualidade no quadro do combate à masturbação; pelo esclarecimento, os adolescentes
aprenderiam menos coisas, o que seria o melhor método para barrar o caminho aos
conhecimentos sexuais. Estes mesmos educadores demonstravam que os adolescentes não
sexualmente educados sabiam demasiado de sexualidade e tinham uma perspectiva positiva, quer
dizer, imoral. Não poderíamos dizer que estes educadores, comparados com os seus adversários,
eram extremistas que encorajavam ainda mais a tendência para a expansão do puritanismo? Se
estas suposições são exatas talvez possamos interpretar da mesma forma o movimento favorável à
educação sexual nos séculos XIX e XX, movimento sobre o qual se poderá perguntar se, afinal, era
pró-sexual. Este ponto de vista significa uma "revalorização" das concepções tradicionais. O que
pretendemos provar é que o esclarecimento sexual apareceu no século XVIII, não porque a
juventude fosse ignorante ou o seu saber fosse parcialmente inexato, ou atribuísse um valor
excessivamente negativo à sexualidade, mas apenas para melhor combater a auto-satisfação (e
nos séculos XIX e XX as doenças venéreas, os jogos sexuais, as relações pré-conjugais, etc.).
Devemos, pois, demonstrar que o esclarecimento era uma ação melhor adaptada à realização dos
valores oficiais, e não uma renovação dos próprios valores, O objetivo principal era circunscrever
toda a sexualidade no casamento e, dentro dele, na procriação. Os adolescentes assim educados
observavam uma atitude que correspondia, em seu grau mais elevado, às concepções de mundo
burguesas. Os que não eram informados não só sabiam mais sobre a sexualidade, como também
manifestavam a seu respeito um interesse muito maior e mais positivo. No primeiro grupo
apresentava-se a sexualidade como uma força misteriosa e perigosa que estaria a serviço da
reprodução dentro do quadro do casamento. O segundo grupo via antes na sexualidade os
componentes do prazer, o caráter lúdico e as necessidades biológicas.

1. ESCLARECIMENTO SEXUAL DOS ADOLESCENTES

Os adolescentes procuravam seu esclarecimento em livros pornográficos e "luxuriosos" —


que muitas vezes trocavam entre si por dinheiro mas também em obras de biologia, de medicina e
de anatomia. Recorria-se igualmente à Bíblia e aos autores clássicos. "Os livros imorais eram
cuidadosamente escondidos debaixo das capas; lidos nos banheiros ou em qualquer outro lugar
onde estivessem a sós." A fonte de informação que contesta violentamente os novos educadores
era a criadagem, a quem muitras vezes se abandonava esta educação, dado que entre eles o limite
de pudor era diferente e, portanto, podiam dar informações. Os amigos também se educavam
entre si. Os educadores não escreviam que era preciso instruir os adolescentes, mas que era
preciso censurar as fontes de esclarecimento. A principal diferença com relação ao século XVI está
exatamente neste posicionamento dos pedagogos.
E importante examinar, uma vez mais, o comportamento dos adultos. Em parte alguma se
lê que os pais tenham dado aos filhos os esclarecimentos necessários. Como reagiam quando um
adolescente resolvia as coisas por si só? Por Oest, sabe-se que a reação habitual das mulheres
burguesas (que liam livros) era encherem-se de cólera e baterem no filho. Seehase (1784) dizia:
"Antigamente as pessoas zangavam-se e resmungavam; agora os tempos são outros”.
Nos livros que tratam de pedagogia sexual criticam-se muitas vezes as atitudes (o que nos
dá a impressão de que elas eram correntes) que consistiam em rir, gracejar e ridicularizar. No seu
Theophron, Campe queixava-se da "incompreensível leviandade com que habitualmente as
pessoas caçoavam de atrocidades desta ordem, mesmo numa sociedade culta". Alguns decênios
depois, Rehm escrevia: "A educação, meus Deus!, é com excessiva freqüência objeto de zombarias
irresponsáveis, imorais e sujas, nas sociedades despreocupadas". Durante os cursos de anatomia
na faculdade e academias, os professores faziam dissertações obscenas. Em certas situações, como
a inesperada revelação duma parte do corpo, os adultos não reagiam com protestos, mas sim com
gargalhadas. A mesma atmosfera existia nos livros pornográficos; aparentemente existe um
paralelismo entre a assim chamada pornografia e o combate ao sexual.
Uma outra atitude consistia em recusar abertamente a informação pedida. Foi o caso de
Locke (1693) e de outros depois dele, a quem esse posicionamento de não dar a informação
parecia mais franco e mais responsável de um ponto de vista pedagógico do que os discursos ou o
risinho ambíguo — meio aborrecido, meio divertido e equivoco — ou a proibição. No Léviathan
(1651), Hobbes conta que se ensina às crianças que elas não foram trazidas ao mundo por uma
mulher, mas sim encontradas num jardim. Em 1784, Hufnagel refere que contaram a uma criança
"que o pai já fizera sair da fonte um novo irmãozinho".
O fato do esclarecimento se tornar progressivamente um problema para o adulto provinha
do contexto social; no indivíduo pode-se falar de uma psicogênese que é o resultado de uma
influência marcante que se inicia nos primeiros momentos da infância. Depois da fase infantil, os
adultos já não tinham uma ideia muito precisa das condições em que haviam crescido, Não viam
que as normas tinham uma origem histórica, que dependiam de certos fatores e não eram inatas.
Por isso lhes era difícil compreender o filho, um ser ainda não adaptado. Este reagia
"normalmente", quer dizer, de uma forma pré-cultural, não sentia a sexualidade como algo
perigoso, misterioso, mau ou vergonhoso. Os adultos admiravam-se da criança não ter reações de
medo, negação e fuga, reações que lhes eram naturais. Para os educadores, a fronteira do pudor
tornou-se qualquer coisa de evidente, bem como a ausência ou o domínio da curiosidade. Deste
modo é possível entender o uso de expressões como ''perverso'', ''contrário à natureza",
"contrário à saúde" para classificar o comportamento infantil. Quanto mais o puritanismo
aumentava, mais difícil era para os adultos exprimirem com palavras o modo de comportamento
anti-sexual. Durante a fase pré-verbal condicionava-se a criança, quer por meios de comunicação
não verbais, quer por um calão que não poderia ser posteriormente empregado para o
esclarecimento. Era preciso inventar uma nova terminologia, quer dizer, palavras estranhas que
não tivessem a menor relação com o condicionamento anterior, e transmiti-la à criança. Além
disso, no interior da família a impossibilidade de falar das proibições e do esclarecimento sexual
tornou-se maior, por causa das tensões resultantes do complexo de Édipo, isto particularmente
nas famílias que mais se aproximavam da célula familiar do tipo conjugal. O tabu do incesto é sem
dúvida uma das razões que obrigavam os pais a raramente se prestarem a desempenhar o seu
papel de educadores sexuais.

2. DEFENSORES E ADVERSÁRIOS DO ESCLARECIMENTO

Quem concedia um certo valor ao esclarecimento? Sobretudo os pedagogos alemães com


tendências filantrópicas, um pequeno número de eclesiásticos, e não os médicos (com exceção dos
que estavam influenciados pelos pedagogos). Adotou-se, devido à sua influência, uma atitude
pedagógica que retardou durante séculos a solução do problema. Eram certamente muito
numerosos os que compreendiam tratar-se de um problema importante; mas só um. pequeno
número de pedagogos pouco conhecidos procurava soluções que, aliás, eram ineficazes.
Por que se exigia o esclarecimento? Por quatro razões principais:
1. O esclarecimento é necessário para explicar aos adolescentes que a masturbação é
proibida e nefasta.
2. Além disso, é necessário para que os adolescentes conheçam o verdadeiro significado da
sexualidade e a utilização legítima dos órgãos genitais.
3. Um esclarecimento insuficiente é mais nefasto do que a informação. Os pedagogos
afirmaram repetidamente que, na ausência de fatos precisos, a fantasia podia sugerir uma imagem
absolutamente falsa da sexualidade. Por conseqüência, o esclarecimento tinha um objetivo
preventivo; devia desde o início refrear a curiosidade e oferecer a possibilidade de sancionar
qualquer investigação individual. Argumentava-se muitas vezes: "Calar-se não favorece nada".
4. Apenas isoladamente se encontra uma justificação mais positiva, por exemplo em
Salzmann. O esclarecimento é necessário para afastar a falsa vergonha que cerca os "nobres"
órgãos genitais, e que não é uma boa maneira de proteger a castidade. Os pais deviam igualmente
falar aos filhos acerca dos órgãos genitais e poder dizer-lhes que estes são frágeis, que é preciso
não tocá-los e que "com a puberdade se produzem modificações".
M. A. von Winterfeld pensava que os adolescentes a quem se havia recusado o
esclarecimento sexual perdiam toda a confiança nos seus educadores.
Em nenhuma destas obras médicas ou pedagógicas se encontra qualquer advertência
contra o perigo das doenças venéreas, que a partir dos fins do século XIX passa a ser o tema
principal dos livros do esclarecimento.
Se era reduzido o número dos partidários do esclarecimento, o dos adversários era ainda
mais, pelo menos o dos que rejeitavam todo e qualquer esclarecimento. Entre eles encontravam-
se alguns professores universitários, como Ernst Brandes, Julius Möser, A. L. von Schlözer, que
violentamente tomaram posição contra as "questões da procriação animal" e os "caprichos da
história natural". Por conseqüência, a sua resistência foi principalmente exercida contra o
movimento dos filantropos, e sobretudo contra qualquer forma do esclarecimento. E. Brandes
reagiu violentamente contra o combate à masturbação: a auto-satisfação sempre existiu; se
organizarmos uma campanha contra ela, participa-se na sua expansão. No final do século XVIII,
alguns eclesiásticos pronunciaram-se igualmente contra o esclarecimento, porque este engendra
mais mal do que bem, e um "santo silêncio" protege melhor a castidade. Falava-se sobretudo da
ausência de uma terminologia conveniente, quer dizer, velada; além disso, o esclarecimento
desperta na criança tendências ainda não expressas: "O que eu não conheço não me pode
aquecer". Se no século XVIII se descobria que uma jovem "Sabia", concluía-se que já havia tido
experiências sexuais: "saber" era posto ao mesmo nível de "fazer". A todos estes argumentos
respondiam os defensores que a ignorância era ainda mais nefasta e que convinha não cultivá-la.
Encontra-se ainda a atitude de recusa depois da Segunda Guerra Mundial no prefácio ao livro de
Schelsky Sociologia da Sexualidade (Soziologie der Sexualität) (1955), onde o autor escreve que a
ignorância (desta vez entre os adultos) é preferivel, "e, no entanto, considero este antigo ponto de
vista como o único exato". O que se parece muito com o que escrevia Müller (em Halle) em 1790,
desta vez a propósito dos jovens: "Os nossos antepassados tinham razão quando guardavam este
problema em segredo". Em 1784, Seehase escrevia: "Os jovens não precisam saber tudo". H.
Hunger, em 1960 — O Conhecimento Sexual nos Jovens (Das Sexualwissen der Jugend) —,
declarava: "Não é absolutamente desejável que os jovens saibam qualquer coisa a respeito da
sexualidade; é até inútil e perigoso. Quanto menos a juventude souber a este respeito... melhor,
para ela e para nós, educadores".

3. ANÁLISE DO CONTEÚDO DO ESCLARECIMENTO

Quase todos os educadores partidários do esclarecimento consideravam-no um mal


necessário. Sob as divergências de opinião, relativas, por exemplo, à terminologia ou à idade em
que a criança deve ser informada, escondia-se a questão de saber que tipo de esclarecimento
produziria menor mal e melhor resultado. Isto significava uma repressão máxima à custa de uma
informação mínima. Um deles entendia por esclarecimento uma linguagem precisa que não os
obrigaria a ir mais longe, que não ocuparia o espirito e sobretudo a fantasia por muito tempo; um
outro preferia uma linguagem vaga, cheia de eufemismos, para que a imaginação não se
inflamasse. Achava-se mais eficaz empregar expressões latinas sem explicá-las, porque não têm
conteúdo emocional. Um terceiro, pelo contrário, pensava que as expressões estrangeiras
despertavam demasiadamente a atenção. O educador deve ser um especialista, na posse da
experiência e conhecedor dos círcunlóquios descritivos, bem como das diferentes fases do
esclarecimento; deve poder criar a atmosfera desejada e adaptar os seus olhares e os seus gestos
aos momentos mais difíceis. Tem de saber quando deve pôr a mão no ombro do adolescente, pôr-
se a chorar na altura devida, e fazer também chorar a criança. Concedia-se uma grande
importância ao caráter solene. Alguns acreditavam até que deviam preparar os adolescentes por
meio de um regime alimentar apropriado, para evitar que de qualquer modo o desejo aparecesse.
Durante o próprio esclarecimento era preciso olhar atentamente o adolescente, para poder
intervir de imediato com palavras tranqüilizadoras no momento em que o rubor do desejo corasse
as suas faces. Dado o esclarecimento, proibia-se à criança continuar a ocupar-se de tais assuntos.
No século XX prescreviam-se exercícios. A sexualidade pertence sempre ao domínio do sério, da
tristeza, domínio de "melancolia o piedade". Alguns acreditavam ser necessário enfatizar o
mistério e a dignidade.
Em virtude da prudência com que se explicavam os menores fotos aos adolescentes, que
estavam quase todos em idade de se casar, concluímos que o conhecimento sexual era
considerado como extremamente perigoso e que se julgavam os jovens hiper-sensíveis. Tem-se a
impressão de se tratar de uma intervenção cirúrgica, que devia ser executada segundo as regras
mais estritas e durante a qual o menor erro podia ter conseqüências fatais. O principal problema
dos educadores partidários do esclarecimento, do século XIX, era conciliar a oposição entre o fato
de falar da sexualidade e o dever de continuar nas normas da decência; entre o fato de tolerar
uma breve incursão da sexualidade no meio pedagógico e o medo de que este meio pudesse ser
dominado por elementos sexuais. Queria-se, portanto, transmitir o saber de homens adultos, mas
deixar intacta a inocência da criança.
Durante quarenta anos se discutiu a maneira mais segura de esclarecer os adolescentes
sobre a diferença dos sexos. Enquanto nos séculos precedentes os jovens perceberam esta
diferença visualmente, quis-se agora mostrá-la em cadáveres ou em criancinhas. No fim deste
período, Rehm dava cursos de anatomia do ser humano utilizando um esqueleto de criança. Entre
os escritores, não há um só que mencione, por meio de bonecos de cera, de desenhos ou
descrições precisas, a existência de dois sexos, sobretudo na espécie humana. Os órgãos genitais
externos eram designados em termos muito gerais, mas ainda se discutia para saber se o nome de
"partes genitais" não era mais excitante do que, por exemplo, o de "partes vergonhosas".
Concedia-se uma grande importância às nuances entre instinto de procriação, instinto de
acasalamento, dever conjugal, prazer sexual, instinto de voluptuosidade. Falava-se do homem e da
mulher, não como seres biológicos, sexualmente diferenciados, mas segundo o papel que eles
adotavam depois do nascimento da criança, quer dizer, enquanto pai e mãe. Aceitava-se de mais
boa vontade a instrução unissexual do que a mista, e melhor a oral do que a escrita. Quanto mais
jovem era a criança, mais aumentava a resistência contra o esclarecimento.
Aprovava-se a informação que se limitava às plantas e aos animais. Dos homens apenas se
dizia que a mãe dá à luz, com grandes dores e perigo da sua vida, as crianças que cresceram no seu
corpo. A primeira pergunta, que dizia respeito à diferença dos sexos, segundo a maioria dos
educadores, não se podia responder.
Muitos evitavam igualmente a segunda pergunta, que era saber onde se desenvolvem as
crianças. Chega-se até às vezes a dar um esclarecimento anatomicamente falso, como o de que os
bebês crescem no coração da mãe. Nenhum educador partidário do esclarecimento descreve a
gravidez e o parto. A única coisa que se diz é que as crianças, ao fim de nove meses, são trazidas ao
mundo pela mãe e que o parto se realiza com grandes dores. Alguns falavam de uma abertura pela
qual as crianças saíam da mãe. A maneira como as crianças eram concebidas continuava
absolutamente obscura. Rousseau (1762) não falava nisso; Basedow (1770-1774), célebre pela sua
linguagem franca, não ousava dizer uma única palavra sobre a diferença dos sexos entre os seres
humanos e presumia que por meio da fecundação nas plantas se podia explicar o processo de
fecundação no homem. Em 1779 podia ler-se, num esclarecimento modelo, a resposta de uma
mãe a seu filho: "Meu filho, perguntas mais do que eu sei e mais do que poderás compreender".
Introduziu-se depois o tema das plantas: "Que o calor de um homem, quando ele o transmite com
este fim a uma mulher e a mulher o recebe, pode provocar o crescimento ou a germinação de uma
semente humana". No entanto, cinco anos depois, Seehase defendia o seguinte ponto de vista:
não se devia silenciar sobre o papel do homem; o ser masculino é o companheiro no acasalamento
provocado pelo instinto sexual. Falava-se de "acasalamento", de "coabitar", de "conhecer". Sobre
a procriação propriamente dita, contentavam-se em dizer que as crianças são "recebidas no corpo
da mãe", e mais tarde "trazidas ao mundo". Não se pode chamar a isto um esclarecimento.
Contudo, na época de Seehase, ainda nenhum educador havia ido tão longe. Hufnagel, em 1784,
dizia: "Assim, nada posso dizer da procriação propriamente dita". Salzmann, em 1785, terminava o
seu modelo de esclarecimento com a seguinte fórmula sobre a procriação: "De resto, a procriação
produz-se como nas flores, nas aves e nos mamíferos". Oest (1787) confiava aos adolescentes o
cuidado deles mesmos fazerem a comparação com os animais. Depois de ter dito que as crianças
cresciam no corpo da mãe, Winterfeld (1787) interrompia a conversa quando lhe perguntavam:
"De que sou eu devedor a meu pai?" Villaume (1787) remetia a questão para os animais: "O
acasalamento ou a fecundação produz-se exatamente como nos quadrúpedes". Campe, em 1787,
ia mais longe, ao dizer: "Durante o seu abraço íntimo e secreto, o delicado germe humano passa,
de uma forma eminentemente maravilhosa, do corpo do marido para o da esposa". Para Rehm,
em 1802, a alusão ao coito já é "muito mais delicada" e a descrição, "muito mais difícil". Quanto
mais o homem era definido como um ser dotado de um sexo, mais os órgãos genitais eram
descritos no seu funcionamento e mais crescia a resistência e a sensibilidade. Mas isto, sobretudo,
quando se associava a função dos órgãos genitais com sentimentos de prazer. Não se dizia uma
palavra sobre o prazer sentido durante o ato sexual. Basedow mencionava apenas o prazer e o
desejo nas flores. A procriação, neste tipo de esclarecimento, resumia-se à seguinte forma: os
seres humanos assexuais reproduzem-se duma forma partenogenética.

4. FRANÇA

No quarto livro do Émile (1762), de Rousseau, o esclarecimento é o problema central. O


autor distingue três fases:
1. A infância, a "santa inocência", na qual a inocência provém da ignorância.
2. A puberdade, que começa por volta dos catorze anos, durante a qual não se deveria
informar a criança, mas antes retardar o momento do esclarecimento.
3. A época que se segue ao vigésimo ano, na qual se pode falar livremente.
O princípio da terceira fase opõe-se ao da primeira e significa que, através de uma
informação adaptada, deve-se tentar regressar à inocência.
Durante a primeira fase é preciso "deixar amadurecer a infância nas crianças". A "natureza"
mostra que esta infância é caracterizada, entre outras coisas, por uma apatia ou anestesia.
Durante a puberdade o esclarecimento é perigoso. Logo, é preciso retardá-lo. Uma só
palavra pode decidir da sanidade física e moral de toda uma vida. A civilização fez aparecer um
problema sexual artificial, que antes não existia, e que só se encontra nos povos primitivos. É
preciso não despertar prematuramente a curiosidade e as sensações, pois, caso contrário, o
indivíduo e, finalmente, a humanidade seriam aniquilados. O contato com um saber proibido
conduz aos atos. É por isso que o citadino já está degenerado. Os povos não civilizados conservam
durante muito tempo sua inocência, e uma feliz ignorância. Casam-se virgens e têm numerosos
filhos saudáveis. E o que se deve fazer se, durante a puberdade, a criança faz perguntas relativas à
sexualidade? Deve-se esclarecê-la ou sair da dificuldade por meio de "erros modestos"? Segundo
Rousseau, as duas atitudes são falsas. O melhor a fazer é chamar as coisas pelo seu próprio nome e
despertar o desgosto por elas. É preciso não responder a uma pergunta exata com uma mentira.
Pode-se simplesmente impor o silêncio à criança por meio de frases como estas: "Este é um
segredo dos casados"; ou, então: "Os rapazinhos não podem ser tão curiosos". Se um tal processo
não tem resultado, deve-se então informar à criança. Rousseau não precisa quem deve encarregar-
se desta tarefa; pode ser um professor, mas cita, no caso, o relato de uma mãe que se impõe a
tarefa de esclarecer o filho. A resposta deve "ser dada com a maior simplicidade, sem mistério,
sem embaraço, sem sorrir". A verdade é sempre a melhor resposta. Rousseau achava preferível
informar a criança muito cedo a informá-la demasiadamente tarde, porque a informação serve
para conservar a virtude no homem. Esta deve ser simples e tão fiel à verdade quanto possível,
excluindo qualquer noção de mistério. Contudo, o modelo que ele próprio elabora não nos parece
tão "simples". "Chega, enfim, o verdadeiro momento da natureza." O educador deve escolher um
momento propício e um local que produza impressão. É preciso não utilizar máximas frias; mas
manifestações sentimentais "transbordantes". O olhar deve irradiar a bondade do educador: "Fala-
se muito melhor ao coração pelos olhos do que pelos ouvidos". Em seguida tomam-se por
testemunhas da veracidade do que neste momento se enuncia Deus e a natureza. É preciso que o
próprio Indivíduo esteja compenetrado da santidade da sua tarefa. Mostra-se ao jovem o
maravilhoso lugar em que se encontra, as florestas, os rochedos, as montanhas. E, no apogeu
deste instante, cheio de ardor, "eu apertá-lo-ia contra o peito, deixando correr sobre ele as minhas
lágrimas de ternura; e dir-lhe-ia: tu és o meu bem, o meu filho, a minha obra; é da tua felicidade
que espero a minha: se atraiçoas as minhas esperanças, roubarás vinte anos à minha vida e farás a
desgraça de meus últimos dias". Segue depois um resumo do programa de informação, que
Rousseau não ousa desenvolver, porque a língua francesa não dispõe de palavras suficientemente
castas. (Apesar desta língua ser, hoje, aquela através da qual é possível expressar mais sutilmente
o amor.) Neste resumo encontramos essencialmente passagens negativas e angustiantes, tais
como: "as leis da natureza são severas"; "a natureza castiga o desregramento"; "o inconcebível
mistério da geração". Ninguém tem o direito de esquecer que a natureza autoriza uma única união
("o homem", diz ele, "é destinado pela natureza a contentar-se com uma só mulher"); o educador
pinta depois "um quadro impressionante e verdadeiro dos horrores da libertinagem, do seu
estúpido embrutecimerito".
Rousseau é um adversário do esclarecimento (salvo numa idade já avançada) e da
educação mista (com exceção do contato que prepara o casamento com a Sophie predestinada e
amada); reprova as sensações e as atividades sexuais (salvo no casamento). Para ele, o ideal seria
educar uma criança, um jovem, um homem, que não suspeitasse da existência da sexualidade, cuja
puberdade fosse retardada e que se mantivesse afastado da sexualidade pelo desgosto e pela
aversão. Se compararmos esta atitude com a de Erasmo (da qual se separa por duzentos e
quarenta anos), a diferença é considerável. É preciso acrescentar que o livro de Erasmo andava nas
mãos dos próprios adolescentes; não é uma pintura utópica como o Émile de Rousseau, livro que
nem sequer era destinado aos pais, mas sim a especialistas. O fato de Rousseau não precisar levar
em conta a realidade concreta possibilitou seu posicionamento irreal. A nosso ver, o
esclarecimento tende a produzir um posicionamento positivo frente ao sexual, daí ser preciso
considerar a influência de Rousseau como nefasta. Seu modelo de esclarecimento, que leva em
conta apenas parcialmente elementos individuais, representava mais um quadro das modificações
sociais da sua época e foi o modelo que a educação da juventude européia seguiu até o século XX.
Sua influência sobre Kant, Schiller, Herker, Pestalozzi, Herbat, Mme. de Staël, Condorcet e outros
foi considerável. Concebeu-se o adolescentes schilleriano segundo o modelo do Émile assexual.
Rousseau é também um precursor dos filantropos que, desde 1770 até o fim do século XVIII,
institucionalizaram o esclarecimento sexual. Após o malogro desta tentativa, adotou-se na
Alemanha o mesmo ponto de vista adotado na França: calar-se, remeter para mais tarde, tanto
quanto possível fornecer uma informação solene, de preferência através de um estranho.
Rousseau obteve um grande sucesso, mas sua influência foi sobretudo póstuma.
Pouco depois da publicação de Émile, Rousseau foi atacado (como Erasmo) pelas instâncias
religiosas. O livro foi posto no Index, como "monstro de incredulidade", e proibido, tanto pelas
autoridades católicas como pelas protestantes. O Parlamento de Paris o acusa de cético e
intolerante, denunciando sua "moral libertina", suas "descrições licenciosas, suas expressões
amorais" ou então "pormenores, explicações que ferem a decência e o pudor".
As instâncias oficiais, que também tinham condenado Erasmo (não por razões de ordem
sexual), utilizaram o argumento da pretensa imoralidade do conteúdo sexual para fazer de
Rousseau um autor maldito. Exatamente como no caso de Erasmo passou-se a escrever
"Antiémiles", novos Émiles, Émiles cristãos, Émiles depurados, o que demonstrava a importância da
influência do Émile original, e como era possível ganhar uma boa soma de dinheiro combatendo-o
do ponto de vista moral e religioso.
Rousseau representava para a França, ao mesmo tempo, o princípio e, para quase um
século e meio, o fim do esclarecimento sexual. No fim do século XVIII, exige-se do novo regime
francês iniciativas nacionais. Pode-se supor que os filantropos tiveram nesta ocasião alguma
influência, pois alguns deles mantinham relações intensas com os revolucionários franceses.
Baraillon reclamava (na sua crítica ao projeto de Lakanal, referente às Écoles Primaires, de 26 de
junho de 1793) "cursos sobre as disposições higiênicas e profiláticas" e, especialmente para o sexo
feminino, "lições médicas sobre a menstruação, a gravidez, o parto, o puerpério e a
amamentação". Os esforços anteriores dos pedagogos, bem como os dos filantropos, eram
destinados a uma elite. Os adolescentes do povo não eram informados; nem sequer avisados
acerca do pretenso perigo da auto-satisfação. Só alguns poucos autores propunham fornecer às
classes inferiores um esclarecimento sexual. Com a Revolução Francesa, tentou-se aplicar no plano
social os resultados positivos da pedagogia nascida na Alemanha sob a influência francesa.

5. ALEMANHA

O movimento favorável à informação sexual nasceu na Alemanha por volta de 1770. Em


1769 publicou-se o livro de Börner sobre a auto-satisfação; no ano seguinte, O Livro dos Métodos
(Das Methodenbuch), de Basedow, no qual se encontra pela primeira vez um esquema elaborado
de esclarecimento. Alguns anos mais tarde, em 1772, apareceram as Cartas para Rapazes (Briefe
für Knaben), de Zimmermann, nas quais o autor fornece, sobretudo, instruções para o combate à
masturbação. Pode-se pensar que Rousseau e Basedow concebiam o esclarecimento como um
meio de lutar contra a masturbação nos dois países. Mas o problema é mais complicado. Na
Alemanha já havia livros sobre a masturbação, principalmente em 1736, 1743 e 1746. No entanto,
estas publicações não foram seguidas de qualquer movimento a favor do esclarecimento. Por
outro lado, prestava-se uma grande atenção à sexualidade e à educação sexual nas comunidades
pietistas separatistas de Nicolaus von Zinzendorf (1700-1760). Sabemos que a Guarda dos Homens
e o movimento filantropo tinham contatos em Dessau e em Schnepfenthal. A influência de
Rousseau e a de von Zinzendorf sobre os filantropos e a campanha, a ela relacionada, levada a
efeito contra a masturbação, deram, sem dúvida, o impulso necessário ao movimento alemão
favorável ao esclarecimento, movimento que durou trinta anos, aparecendo e difundindo-se no
círculo dos filantropos e extinguindo-se com eles.
Devemos, finalmente, considerar este movimento como algo separado das tentativas
sérias feitas para suscitar uma melhor educação e uma maior moralidade. No prefácio à terceira
edição do livro de Börner sobre a masturbação (1780) podemos ler: "É a esperança certa de ser
útil". Este movimento havia renascido antes que o período do Sturm und Drang, o filantropismo e
o neo-humanismo tomassem forma, enquanto movimentos auxiliares. Este renascimento tinha
uma sólida base pedagógica; é por isso que se fala sempre de "fermentação pedagógica".
Representava as transformações sócio-econômicas que se realizariam na primeira metade do
século XVIII e que contribuíram para a melhoria das perspectivas de promoção de uma nova classe
de "burgueses" (pastores, professores, advogados, médicos, oficiais, funcionários e diretores de
fábricas).
a) O filantropismo
É costume considerar os filantropos como um grupo de pedagogos entusiastas e
competentes que, como o seu nome indica, são amigos dos homens, ou, dito de outra forma,
humanistas. Na sua época, quer dizer, aproximadamente entre 1770 e 1800, a pedagogia já não se
adaptava às circunstâncias do momento. Tornaram-se, pois, necessárias as Écoles Nouvelles dos
neo-humanistas e dos filantropos. Esta interpretação é incompleta. Na maior parte das vezes, para
introduzir inovações, não basta que as condições pedagógicas’sejam ruins e existam homens
entusiastas ou um exemplo teórico estimulante (o Émile, de Rousseau). Não há dúvida de que o
desejo e a vontade de renovar são importantes, mas também é preciso dispor dos meios
necessários e, por estranho que pareça, de adolescentes suscetíveis de serem educados segundo
os novos princípios, isto é, adolescentes cujos pais prefiram um certo tipo de educação. E isto
depende das perspectivas de futuro que esta escola oferece.
É verdade que Rousseau e os filantropos afirmavam estar criando o homem novo, isto é,
alguém que disporia de tudo que o torna distinto, enquanto ser humano, dos outros homens. Mas
esta concepção também era muito idealista. Partia da ideia de que em algum lugar, sob uma forma
camuflada, existia o modelo do homem perfeito. A ciência moderna, porém, afirma que existem
numerosos tipos humanos, não se podendo dizer qual é o mais humano e por quê. Além disso, é
preciso levar em conta um outro elemento essencial: cada um destes tipos humanos é, em grande
medida, a superestrutura de uma infra-estrutura concreta e real. Isto significa que é preciso
compreender a pedagogia dos filantropos a partir da sua função social. A função desta pedagogia
era a promoção social dos adolescentes da burguesia ascendente. A crítica do pequeno grupo de
pedagogos alemães, que encheu de anotações a tradução do Émile de Rousseau, mostrava uma
tendência a introduzir este livro em círculos mais amplos da burguesia. Todas as decisões, a favor
ou contra, eram consideradas de um ponto de vista utilitário, a partir da perspectiva burguesa de
uma melhor integração no grupo e de melhores oportunidades de promoção na escala social. O
filantropo E. Trapp justificava racionalmente sua resistência à educação dos camponeses com o
seguinte argumento: "Daí só resultaria um nefasto refinamento dos costumes para o povo
camponês". Outros pensadores se exprimiam mais diretamente: se deixarmos o povo comum
estudar, dentro de pouco tempo não teremos lacaios nem criadas para as necessidades do dia-a-
dia. Logo, estudar era sinônimo de elevação das "oportunidades de promoção". A criança natural
de Rousseau, que só amadurece tardiamente e se recusa a possuir um excesso de saber escolar,
não teve sucesso junto aos educadores burgueses. Os filantropos faziam da criança de Rousseau
um menino-prodígio, que, na adolescência, já sabe muitas coisas e pode igualmente repetir muitas
outras; em outras palavras, uma criança superdesenvolvida do ponto de vista intelectual, que, no
entanto, devia conservar-se tão infantil quanto possível.
b) J. B. Basedow (1724-1790)
Depois de ter fracasado no ensino da teologia, Basedow voltou-se para a pedagogia geral,
publicou muitos livros e, sob a influência de Rousseau, concebeu, em 1768, um projeto de reforma
total do ensino. Hábil organizador, conseguiu reunir fundos para a primeira e mais importante
parte desta reforma, a saber, a publicação dos novos livros escolares da sua autoria, entre outros:
O Livro dos Métodos (Das Methodenbuch) (1770) e A Obra Elementar (Elementarwerk) (1774). A
partir de 1774 passou a dirigir a escola-modelo de Dessau (Dessauer Philanthropinum), onde podia
aplicar efetivamente as suas idéias. Qual era o objetivo da informação? Num pequeno texto do ano
de 1769, respondia: "Não se pode, sem primeiro definir estes conceitos, distribuir cem outros
conceitos morais à juventude". Como deve ser feito o esclarecimento? Os pais e os outros
educadores eram aconselhados a se encarregar dessa tarefa, e a idade ideal, pelo menos entre os
meninos, ficava entre os dez e os doze anos. Nas suas obras de vulgarização consagrava sempre
um parágrafo ao problema do esclarecimento. Foi também o primeiro a escrever um livro de
esclarecimento destinado às crianças — Pequeno Livro para as Crianças de Todas as Classes
(Kleines Buch für Kinder aller Stände) (1771). No mesmo ano condenava, no Pequeno Livro para os
Pais e Educadores de Todas as Classes (Kleinen Buch für Eltern und Lehrer aller Stände), o combate
exagerado à auto-satisfação que acabava por tornar-se um meio de suscitar tal hábito. Os
adolescentes dos dois sexos deveriam ler relatos sobre seduções, infanticídios e outros temas. Aos
quinze anos, o jovem deveria ser levado a um hospital, para que lhe fossem mostradas as horríveis
e vergonhosas doenças que afetam as prostitutas e os homens ou as mulheres adúlteras, como
castigo por sua leviandade.
Estas idéias não deixavam de ter sua repercussão. Reagia-se a elas de uma forma positiva
ou negativa, sendo publicado um grande número de folhetos, livros e artigos de jornais. De von
Schlözer, professor em Gottingen, partiu um ataque frontal que desaprovava o esclarecimento
acerca das "questões de procriação" e das relações de reprodução entre os animais, com as quais
Basedow, no seu Manual Elementar, queria preencher o vazio deixado pela omissão da religião, da
história, das matemáticas e da literatura. No mesmo ano apareceu a resposta de Basedow, que
dizia ter ficado muito longe da realidade, pois nem mesmo havia tratado da diferença dos sexos e
do papel do pai.
Em 1771, o príncipe Leopold Franz Friedrich von Anhalt encarregou Basedow de criar uma
escola em Dessau, capital do seu principado, que foi aberta três anos depois e recebeu o nome de
Philanthropinum. Imitava a "casa", com relações pais-filhos entre os professores e os alunos, um
pessoal de serviço e também uma só menina, Emilie, a filha de Basedow, assim chamada por causa
do livro tão admirado de Rousseau (era uma menina-prodígio, que já aprendia o latim e o
dinamarquês com idade de quatro anos e meio). Em 1776 realizou-se um exame, que ficou célebre
e devia decidir se os métodos seriam reconhecidos e se a escola continuaria a funcionar.
Numerosos convites foram enviados, entre outros a Goethe, Wieland e Lavater. Da Alemanha e da
Suíça vieram cerca de cem escritores, eclesiásticos e pedagogos. Dever-se-ia interrogar treze
alunos durante três dias. Diz-se que Wolke, colaborador de Basedow, numa das aulas-modelo,
mostrou uma imagem que as crianças nunca tinham visto. "Isto diz respeito à coisa mais séria do
mundo, portanto, mantenham a seriedade." Mostrou então aos alunos uma gravura na qual se
podia ver, numa poltrona, uma mulher grávida, a quem o mando segurava a mão. Sobre a mesa
havia uma boina de menina e uma de menino; embaixo uma bacia cheia de água e uma esponja.
Wolke perguntou então o que estava acontecendo com a mulher, por que parecia perturbada, por
que se agarrava ao marido, etc. Os alunos podiam responder a tudo o que dizia respeito à
concepção dos filhos e ao nascimento.
Este exame foi um sucesso para Basedow. Mas o seu caráter difícil causou-lhe
aborrecimento. Kant havia expresso no Königsberger Zeitung* (em 1787) as suas impressões
favoráveis ao Philanthropinum de Dessau: "Não é uma lenta reforma, mas uma rápida revolução
que pode produzir os seus resultados!''. Mais tarde contradisse esses argumentos. Quanto à
opinião de Herder, ficou célebre: "Não confiaria bezerros a esse homem, quanto mais crianças".
Também Goethe afastou-se um pouco depois de se ter entusiasmado fortemente. Os educadores
tradicionais criticavam o experimento, que era, cada vez mais, seguido pelos educadores
progressistas. Wolke, colaborador de Basedow, no mesmo ano em que foi implicado num processo
junto com Basedow publicou um artigo, no qual, segundo as palavras de Raumer, as afirmações
"brutais" de Basedow eram "defendidas com muita suavidade". Assim, Wolke perpetuava o
movimento. Isto significava que a primeira tentativa de esclarecimento sexual não havia falhado.
Viu-se que era possível dizer a tal respeito muito mais do que antes se admitia.
c) Curso de religião e informação
A geração seguinte só se exprimiu a partir de 1785. Entretanto, o movimento para a
informação estendia-se dos médicos e dos pedagogos a um terceiro círculo, o dos teólogos da
moral. G. J. Zollikofer pregava em Leipzig, perante jovens acadêmicos, e recebia agradecimentos de
toda a parte; em 1783 publicou o seu Tratado da Educação Moral (Abhandlung über die moralische
Erziehung). A sua atitude é evasiva: não se tem o direito de falar abertamente da masturbação e
do esclarecimento e as perguntas que as crianças fazem devem ser repelidas.
Em 1784 apareceram dois textos escritos por eclesiásticos: um beneditino e um
protestante. O beneditino, A. Lais, reprovava o esclarecimento: "Tenho medo, muito medo, de que
quanto mais se der a conhecer por este meio, mais freqüentes se tornem nos jovens
* N. do T.: Jornal de Konigsberg, antigo porto da Prússia Oriental, atualmente parte da União Soviética.

os desregramentos contrários à natureza!". O ponto de vista do protestante Hufnagel entra


em total contradição com esta opinião. O sexto mandamento, "não pecar contra a castidade",
deveria ser comentado por um médico e por um teólogo da moral. A criança deveria aprender a
conhecer as "condições sexuais" no homem e no animal. Os educadores comportavam-se com
uma angústia e um constrangimento excessivos. Hufnagel não se irrita contra os perigosos
atrativos da sociedade, contra a corrupção para onde a criança é arrastada; pensa que a
curiosidade e a masturbação infantil são endógenas. O corpo exerce as suas funções; suas
necessidades não podem ser reprimidas. Uma formação precoce não era uma oportunidade para o
pecado; pelo contrário, oferecia a oportunidade de se falar livremente. Mas pode-se falar com
franqueza quando o próprio educador não é sincero? A curiosidade da criança também seria
endógena, e o ocultamento só serviria para excitá-la. Hufnagel dava notáveis indicações sobre o
esclarecimento. A criança deve conhecer a função dos órgãos genitais. A princípio podemos dizer-
lhes que a via que serve para a evacuação das matérias líquidas tem igualmente um outro fim. Diz-
se então de maneira objetiva que as "partes interiores são reservatórios da semente humana".
Não se deveria falar de anatomia. É preciso não falar da "semente humana ao microscópico, mas
do esperma no seu reservatório natural". Também é contra a linguagem de sistema. Não se
deveria empregar a terminologia dos anatomistas (pênis, glande, vagina, útero) , mas apenas a
expressão de "órgão da procriação", para os rapazes e as moças.
O livro de Hufnagel também foi criticado. De acordo com Rehm, "hoje em dia, dificilmente
se põe algo a perder quando se fala em polução, pois esta, infelizmente, é tão conhecida quanto
possível". A polêmica ainda durou alguns anos. A discussão acabou com a sentença de Rehm (em
1792), segundo a qual era preciso não falar do sexto mandamento nos cursos de religião, pois seria
tratar os adolescentes como se eles já estivessem casados. É preciso dar uma outra interpretação a
esse mandamento. "Não pecar contra a castidade" significa: não meter as mãos nos bolsos das
calças e não mexer inultilmente no pênis.
d) C. G. Salzmann (1744-1811)
Como Basedow, Salzmann passou da teologia à pedagogia. Durante algum tempo foi
pastor na região de Erfurt; conheceu de perto a miséria do povo, entrando em conflito com os seus
colegas e as autoridades, que o achavam demasiadamente crítico e favorável ao esclarecimento.
Ocupou o lugar de liturgista no Philanthropinum de Dessau, e iria até substituir Basedow. Três
anos depois, porém, abandonou Dessau; foi-lhe confiada a direção de um outro Philanthropinum,
em Schnepfenthal (perto de Reinhardsbrunn, na floresta da Turfngia).
Pôde ali realizar os seus sonhos: uma escola para adolescentes onde não reinasse um clima
de estufa, como em Dessau, onde pudesse tentar a educação mista, que julgava mais moral, e
onde pudesse prevenir a auto-satisfação. Salzmann declarava publicamente que, na sua escola, a
masturbaçâo já não existia. Levava muito a sério o problema sexual na sua totalidade; para ele, a
informação conjugal era necessária e era necessário encontrar uma solução para todos os que não
podiam casar e a possibilidade do divórcio para as pessoas mal casadas. Assim, protestou contra as
comissões de castidade, propôs um prêmio para o melhor livro que tratasse da sexualidade na
mulher e recomendou uma certa forma de concubinato de duração limitada (o futuro casamento
de ensaio?). Em comum com seu genro, o poeta Jakob Lenz, propôs também um prêmio para o
melhor tratado que oferecesse uma solução ao problema sexual. Submetia, assim, o problema à
discussão, mas defendia, ao mesmo tempo, a opinião tipicamente burguesa que consistia em dizer
que a sexualidade deveria ser arrumada no quadro das leis. Foi também conhecido como escritor.
No seu Livrinho do Caranguejo (Krebsbuchlein) (1780), na sua obra sobre a repressão da
masturbação (1785), no volume de poemas para rapazes e moças (1787), nos livros para crianças e
jovens (1778-1788) e no Konrad Kiefer (1794-1796) dá esclarecimentos, conselhos e máximas
relativos à masturbaçâo. No seu romance em seis volumes Carl von Carlsberg (1785-1788)
encontram-se igualmente passagens relativas a esse problema. A escola de Salzmann foi a única a
funcionar durante muito tempo. As suas obras literárias foram muitas vezes reeditadas, e ainda no
século XX se imprimia o seu Livrinho das Formigas (Ameisenbüchlein), considerado "leitura boa e
barata".
No seu livro sobre a masturbação, Salzmann fala detalhadamente acerca do ensino "do que
se refere à procriação". Neste livro, ou correspondentes ou o autor dizem, pelo menos catorze
vezes: a informação me teria protegido ou salvo. Este autor ainda continua a ser importante na
medida em que concebeu o modelo planta-animal-homem, modelo que conservou o seu valor até
meados do século XX; tratava-se de um esclarecimento tipicamente escolar, inutilizável pelos pais.
As crianças crescem no ventre da mãe, como nos animais; o parto é doloroso e talvez
perigoso para a sua vida. "De resto, a procriação desenrola-se da mesma forma que nos animais,
nas árvores, nas flores, nas aves e nos mamíferos." É com esta frase que termina o esclarecimento;
não se diz uma palavra sobre o "ato da procriação".
Segundo Salzmann, esse tipo de informação ofereceria três vantagens:
1. Chegar-se-ia a uma maior intimidade com a criança.
2. Seria positivo valorizar o fato da procriação não ser explicada em relação com a
voluptuosidade, mas com a "melancolia e a piedade"; deste modo, o instinto perde em
intensidade.
3. Uma vez franqueado o muro inútil do pudor, poder-se-ia falar do perigo das relações
com o outro sexo, bem como da deterioração dos órgãos genitais pela auto-satisfação.
e) O círculo de J. H. Campe
O ano de 1787 assinala o apogeu da história do esclarecimento sexual alemão. O problema,
que até então só era objeto de algumas páginas num livro, passou a tornar-se o tema principal de
numerosas obras. Os educadores mais competentes, médicos e moralistas, tinham compreendido
que um certo número de problemas, tais como o condicionamento do pudor, os filhos naturais, o
infanticídio, a auto-satisfação, o retardamento, não eram senão partes de um todo. Alguns, entre
os quais se distinguia Pestalozzi, tomaram consciência de que estes problemas não poderiam ser
resolvidos por um regime alimentar melhor, outro tipo de vestuário, uma informação exata, um
casamento precoce, um casamento de ensaio ou o combate à masturbação. Acabou-se por
reconhecer que as ações individuais, recomendadas por Rousseau, Basedow ou Salzmann, não
bastavam, pois o problema era estruturalmente determinado. Voltaram-se, pois, para o príncipe,
pedindo uma melhor distribuição das riquezas e o fim da exploração das crianças pelos pais.
Campe (1746-1818) entrou em contato com Salzmann, Basedow e outros pedagogos, em
Dessau, onde, por momentos, tomou parte ativa na direção. Não escreveu qualquer livro referente
aos problemas sexuais, mas suas opiniões eram conhecidas através de algumas obras para a
juventude e numerosas observações que fez no Manual de Revisão (Revisionswerk). Esta
publicação em dezesseis volumes, que se chamou a "enciclopédia pedagógica do século XVIII", tem
um grande valor para a pedagogia sexual, em particular os volumes I (1785), VI (1787) e VII (1787).
No primeiro volume propunha um prêmio ao melhor livro que indicasse a maneira de proteger e,
se necessário, tratar os adolescentes e as crianças do "vício devastador da imoralidade" e, em
particular, da masturbação. A resposta devia compor-se de duas partes. A primeira, concebida para
os pais e os educadores, deveria tratar das origens, conseqüências e terapêutica da auto-
satisfação, e ao mesmo tempo dos métodos e necessidade dó esclarecimento; na segunda
deveriam ser elaboradas experiências que pudessem ser lidas em voz alta ou, eventualmente,
postas nas mãos de adolescentes com mais de doze anos. Em 1787 apareceram no Manual de
Revisão (volumes VI e VII) as respostas premiadas:
1. J. F. Oest (prêmio de 50 ducados).
2. P. Villaume (30 ducados).
3. Günther (25 ducados).
4. M. A. von Winterfeld (accessit).
Oest, o vencedor, ultrapassava de longe Campe, a personalidade central, mas não a mais
importante, entre os filantropos. Se compararmos o Theophron de Campe com textos de Oest,
rapidamente se vê o quanto Campe é pequeno-burguês e pouco realista. O trabalho de Oest
existe-na sua forma mais completa, pois tanto o seu manual para os educadores como os seus
livros de esclarecimento para adolescentes foram publicados. Oest dava particular ênfase às
maravilhas da natureza, à bondade e à sabedoria de Deus. Recomendava fazer visitas a hospitais,
concepção que Campe aprovava numa nota de pé de página. Visitou o Hospital da Charité, em
Berlim, com alunos e mostrou-se satisfeito com o "desgosto" e o "terror" sentidos pelos
adolescentes. Nos seus livros para adolescentes trata francamente o problema do esclarecimento
e o da auto-satisfação. Depois de um prólogo, "Aos meus jovens leitores" (no fundo, Oest era um
adversário da informação escrita), dá o tom do livro com "a verdadeira história de um infeliz que
se autodestruiu" — um jovem de quinze anos que morreu, apesar de receber os melhores
cuidados. Segue-se um capítulo sobre o esclarecimento e depois o autor fala das "horríveis
conseqüências da impureza em geral" e do "vício da autodestruição em particular", do "apoio
compadecedor" e do "conselho paterno". Conclui com um longo poema, cheio de exortações,
ameaças, conjurações e profecias.
No capítulo que trata do esclarecimento, diz "que uma certa reunião dos órgãos genitais é
possível; chama-se a isso procriação ou coabitação conjugal". Fala em seguida, de forma bastante
detalhada, das plantas e da sua fecundação; seguem-se depois algumas indicações sobre o
esperma, "licor muito refinado e nobre que representa, para a procriação do homem, a substância
ligeiramente úmida contida nas anteras das flores, e, portanto, o meio pelo qual é animado o
germe contido no corpo da mulher". Do coito, só diz o que já antes mencionamos. O livro de
informação para meninas foi escrito por uma pretensa "amiga experimentada da juventude", que
partia do princípio de que as jovens mal deviam saber da existência dos órgãos genitais. Às jovens
não se explica a "sexualidade" nas plantas ou nos animais. As expressões utilizadas, sem explicação
mais precisa, são "órgãos genitais" (diz-se que são diferentes no homem e na mulher, mas não que
se juntam), "ação de procriar", "reunião dos sexos", "instinto de procriação", "gravidez”,
"nascimento", "parto". As expressões não empregadas são, por exemplo, "procriação", "coabitação
conjugal", "esperma", "licores". Sem que, fosse explicada a diferença entre os sexos, e após
algumas vagas alusões ao coito, segue-se uma passagem sobre a gravidez. A consequência da
"reunião dos sexos”, que só pode realizar-se entre adultos, é que, "de uma maneira maravilhosa e
para nós quase incompreensível, produz-se no corpo da mulher a primeira aparição de um ser
humano; o germe desenvolve-se todos os dias um pouco mais, e do sangue da mãe que o traz
debaixo do coração recebe o primeiro alimento e a sua primeira formação". Segundo esta
"descrição" da fecundação e da gravidez, também se diz que a criança é posteriormente dada à luz.
Nenhuma análise das causas, nenhuma descrição da evolução, nem uma só palavra sobre a
menstruação. Pelo contrário, há muitas passagens sobre a luxúria e a masturbação, bem como
exortações a não se ler nenhum livro.
A obra de Villaume (1746-1825) é uma compilação de outros livros. P. Villaume prefere a
ignorância. No entanto, se quisermos esclarecer as crianças, não devemos começar pelas plantas. É
preciso intercalar alguns dias de repouso entre as diferentes etapas. O acasalamento dos animais é
explicado da seguinte maneira: "O macho fecunda e engravida a fêmea". Fala também da
"purificação" (da menstruação), o que já é extraordinário para o século XVIII. A vagina é "o
caminho que conduz ao útero, pelo qual a fêmea é fecundada". O coito é mencionado
indiretamente pelo circunlóquio "fecundar ou lançar a semente na parte correspondente". Se a
"coabitação normal" já se "rodeia de numerosos perigos", para os adolescentes ela é
"extremamente corruptora... mortal". Aos jovens que querem precipitar-se na libertinagem, diz:
"Lê o que segue tu que és cego, e assusta-te". P. Villaume enuncia ainda uma máxima referente ao
coito: "Deus fez a procriação atraente", fez dela um "prazer animal passageiro", que, "por certo
nada tem em comum com a satisfação do amor". Deve-se esclarecer as jovens? Não lhes deve ser
explicado o que são a "sedução" e a "falta"? Sim, mas isto fará com que muitas jovens deixem de
ter medo, e se tornem facilmente confiantes, por já estarem avisadas. É por isso que a informação
deve ser tal que a jovem considere suspeita a familiaridade com qualquer homem.
De Günther só foram publicadas algumas raras passagens, em notas ou apêndices de
outros volumes, de modo que não temos uma visão de conjunto do seu sistema.
Von Winterfeld, vencedor do quarto prêmio, começa por confessar que o fato de escrever
um livro sobre a sexualidade é contrário às suas convicções. Em sua opinião, o melhor seria viver
no campo, onde a educação oferece menores dificuldades. As crianças deveriam casar-se assim
que chegassem à puberdade. "É fácil dizer, mas, muitas vezes, difícil realizar." Para responder à
questão da propriedade ou não de esclarecer as crianças, dever-se-ia, em primeiro lugar,
perguntar o que representa maior perigo, se a ignorância ou o "ensino". Neste momento a
resposta não é difícil: é impossível conservar as crianças na ignorância, a menos que vivam num
deserto ou numa gaiola. Logo, deve-se esclarecer as crianças, assim que elas possam
compreender. No entanto, não se pode fixar uma data precisa: não se deve organizar sessões nem
parecer afetado. Então como se deve proceder? "No melhor dos casos, na natureza ou pela
observação. É preciso permitir que as crianças dos dois sexos se vejam nuas." (Numa nota, Campe
protesta: "É preferível explicar a diferença dos sexos em cadáveres!".)
f) C. A. Peschek e K. G. Bauer
No texto escrito para os concursos, Salzmann e Lenz (1789) escreveram que o instinto
sexual da juventude surgia mais cedo do que antigamente, e estava aumentando de intensidade.
Pedia-se que fossem estudadas as causas deste fenômeno, e também os meios úteis para uma
intervenção. Nos livros que Peschek (1790) e Bauer (1791) escreveram em resposta, ambos
verificam a existência de tal problema.
No seu livro, Peschek deplora uma vez mais a decadência dos costumes: os antepassados
alemães teriam sido mais vigorosos (porque menos sexuais), pois quanto mais importância um
povo dá à sexualidade, mais se enfraquece. Poder-se-ia atribuir a origem desta hipersexualização
ao celibato dos padres da Igreja romana, dos militares, etc.
O livro premiado de Bauer, padre originário de Frohburg (na Saxônia), é melhor. O autor
mostra que a atividade sexual aumenta efetivamente durante a juventude. A própria natureza é
bastante sensata: os animais não se acasalam antes de terem atingido a sua plena maturidade
(afirmação colocada em dúvida por Salzmann numa nota de pé de página). Com efeito, antes da
puberdade os sexos não seriam atraídos um para o outro, existindo antes uma repulsão; segue-se
então um período de timidez que preserva os adolescentes de um contato muito prematuro. A
solução por ele proposta é o retardamento. Declara-se também a favor de outras reformas, tais
como a redução do período que separa a maturidade biológica e a época do casamento e a
ampliação das oportunidades de casamento (para Bauer, são problemas sócio-econômicos). Seria
sempre mais difícil ''conservar" a sexualidade "nos limites da ordem". É igualmente favorável à
censura e ao combate à prostituição e à concubinagem, que ''já se tornou habitual em todas as
classes e que em certos casos até deveria ser legalmente autorizada".
g) F. Rehm
Quando Rehm retomou o tema da informação no seu livro publicado em 1802 — a sua
primeira publicação relativa a este assunto datava de 1792 —, observava que, desde então,
algumas coisas haviam acontecido. Pede ao leitor que interprete as suas afirmações anteriores "à
luz que lhes convém". Já não quer escrever sobre a luta contra a masturbação, porque "os tempos
mudaram". Essa "moda" passou. Mostrou-se um grande interesse por estes assuntos, mas hoje já
se é "mais prudente". Rehm admite que também ele foi demasiadamente longe e quer agora
observar uma maior prudência. Aqueles que, anteriormente, tinham buscado prestar
esclarecimentos, empreenderam a tarefa de dar informações tão boas e eficazes quanto possível
sobre a "procriação" e sobre os órgãos genitais. No entanto, em vez de protegerem as crianças,
puseram-nas em presença do pecado através de "lições muito mal conduzidas e pouco prudentes".
No entanto, poder-se-ia evitar as falhas anteriores limitando a um mínimo os conhecimentos
perigosos e rodeando este mínimo de muitas medidas de precaução. Na obra de Rehm há
paradoxos característicos do século XIX. O corpo é um "templo do espírito de Deus" e, ao mesmo
tempo, um inimigo; o pênis é "particularmente sagrado e nobre", mas também sujo. Não se
deveriam criar mistérios, mas a obra de Rehm está cheia deles ("referências a Deus", "educação
venerável", "santidade da natureza"). Não se tem o direito de mentir, mas tem-se o direito de fugir
habilmente às dificuldades. Não é bom observar um silêncio misterioso, mas às vezes é preciso
calar-se ou "não ser muito explícito". Se nos encontramos perante uma estátua ou um quadro em
que os órgãos genitais são visíveis, é preciso desviar rapidamente a atenção da criança para uma
outra parte do corpo. Rehm reprova qualquer lição sobre a diferença dos sexos, da mesma forma
que a evocação do coito, porque é contrária aos bons costumes. "Mesmo na explicação da
procriação e da reprodução, não se deveria ser muito explícito. Não faria qualquer descrição
anatômica dos órgãos genitais, e menos ainda da procriação, da reprodução e da coabitação; por
enquanto deixaria esta última de lado, porque seria excessivamente delicado e também muito
incômodo. Diria muito pouco, tanto à moça quanto ao rapaz, sobre a foi ma como os dois sexos se
diferenciam e também sobre a maneira como a sabedoria de Deus se manifesta neste fato... A
natureza educá-los-á (meus filhos) e tornará compreensível tudo o que não lhes posso
expressamente explicar." Eis o ponto de vista, em 1802, de um homem que escreveu muitas obras
sobre o esclarecimento. Até cerca de 1880, o tom continua a ser o mesmo.
No ano de 1800, outro conhecido pedagogo, J. H. G. Heusienger, afirmou que o
esclarecimento não passava de uma tentativa boba de realizar o impossível. "Não importa o que se
diga, o paladium da pureza é a inocência, e, com o despertar do instinto sexual, tem início uma
série de fatos incômodos e críticos... que as partes sexuais sejam chamadas, não por nomes
alemães, mas por nomes latinos ou gregos, cujo significado não seja fornecido." Em seguida falava
em genitálias, pênis, vulva; em suma, na terminologia que originalmente havia sido considerada de
uma forma negativa e que, até no século XX, continou a fazer parte do vocabulário sexual.
h) J. H. Pestalozzi
Como numerosos pedagogos de língua alemã escreveram livros sobre o esclarecimento na
segunda metade do século XVIII, pareceria lógico que Pestaíozzi também participasse neste
movimento, publicando um livro. No entanto, isto não ocorreu. Entretanto, na sua obra Sobre a
Legislação do Infanticidio (Über Gesetzgebung und Kindermord) (1783), foram emitidas idéias
interessantes sobre o problema sexual. Parecem-nos "modernas", provavelmente por ter sido
adotado um ponto de vista pré-burguês. Desejava, sem dúvida, uma "instrução" e um
ensinamento sexual. Porém, torna-se necessário, agora, fornecer descrições verbais de coisas que
antes teriam sido aprendidas de uma forma natural. Houve um tempo em que as pessoas se
banhavam nuas no mar, em que o menino via a mãe amamentar o bebê e em que as meninas
assistiam aos partos. Os rapazes e as moças mantinham relações amistosas, sob a vigilância dos
próprios adolescentes. Seria bom substituir agora tudo isto por meios artificiais, como o
esclarecimento e a co-educação. No entanto é necessário se perguntar se este meio leva ao
objetivo visado. A educação sexual não teria qualquer chance caso não se apoiasse na educação
total do homem. O ensinamento por si só era ineficaz, mesmo quando ultrapassava as normas
morais e legais. Não se podia obrigar o homem a viver moralmente. Mesmo quando,
naturalmente, estivesse disposto a isso, era preciso levar em consideração a sua situação sócio-
econômica. A educação e a moral não podiam múito contra esta infra-estrutura. Logo, cabia ao
Estado compreender positivamente sua tarefa. "Quero dizer que o Estado deve certamente
favorecer e proteger a pureza dós costumes, mas sem impedir a coabitação... No período da
maturidade, as pessoas precisam desta coabitação e é preciso ser bastante nobre para, na falta das
condições materiais que tornem possível o casamento, permanecer puro." Enquanto não se puder
contrair mais facilmente um casamento "é impossível preservar as pessoas de uma coabitação
extraconjugal múltipla'

2. O FIM DO ESCLARECIMENTO

No fim do século XVIII, com a expansão do puritanismo e a intensificação do combate à


masturbação, o esclarecimento se retraiu inteiramente. Nos séculos XIX e XX admitiu-se que o
movimento dissolvera-se por si mesmo, após "mal sucedidas tentativas de solução". F. Schwartz,
pedagogo influente, achava em 1825 que a moda do esclarecimento já havia passado, porque as
gerações que haviam seguido os filantropos exaltados tinham-se dado conta da "falsidade do
processo". "O homem não deve revelar o que a natureza oculta."
Outros pedagogos, como Miethammer e von Kaumer, afirmavam coisas semelhantes.
Alguns historiadores viam na retração do esclarecimento a conseqüência da rivalidade
existente entre os diferentes sistemas pedagógicos. A informação era o cavalo-de-batalha do
filantropismo. Quando este deixou de existir, a informação também desapareceu. Esquece-se de
que a informação não foi exclusivamente praticada pelos filantropos nem exclusivamente na
Alemanha.
Em 1793 o filantropismo desapareceu. E. Trapp, o primeiro filantropo que devia elaborar
uma pedagogia teórica e sistematizada, quando era então professor em Halle, retirou se, porque
não estava à altura da sua tarefa. Seu sucessor foi F. A. Wolff, que enchia os seus cursos com
assuntos filológicos, para evitar excessos na pedagogia. Kant exerceu uma influência menos direta,
mas muito mais profunda, solapando o fundamento filosófico do filantropismo; Herbart, o
verdadeiro criador de uma pedagogia mais cientifica, fez o mesmo. A sua Pedagogia Geral
(Allgemeine Pädagogik) foi publicada na Alemanha em 1806. Para Herbart, o filantropismo era um
"apanhado de receitas"; ironicamente, chama-lhe "filantropismo". Pouco a pouco, o entusiasmo
pedagógico deu lugar ao entusiasmo científico, o filantropismo foi afastado pelo neo-humanismo
(W. von Humboldt). Esta nova corrente conquistou a escola, para fazer dela o seu domínio, o seu
terreno específico.
As duas tentativas, já mencionadas, de explicar o total desaparecimento do
esclarecimento, principalmente a involução do movimento e a rivalidade entre os sistemas
pedagógicos, são inexatas. Os objetivos dos defensores e dos adversários do esclarecimento no
século XVIII eram aproximadamente idênticos, a diferença consistia apenas nos meios utilizados.
Em determinadas épocas, a informação era útil aos objetivos fixados por certos meios, enquanto
em outras circunstâncias a ausência de informação era mais, proveitosa. Desde meados do século
XVIII, o fim da informação já se anunciava através da diminuição quantitativa e da modificação
qualitativa do ensino sexual. No fim do século XVIII não era preciso dizer o "essencial'' sobre a
função dos órgãos genitais, quando se atacava a masturbação. Vagas alusões eram suficientes para
explicar a alguém o que se pretendia evitar-lhe. O esclarecimento já não era necessário. A isto
acrescentava-se ainda a expansão do puritanismo. Quanto mais a sexualidade se dissimulava, mais
o esclarecimento se tornava impossível, mesmo quando teria sido mais útil. Teria sido necessário
ultrapassar as fronteiras do pudor e, além disso, o esclarecimento equivaleria a uma elevação do
estatuto da sexualidade, coisa que já não podia ser tolerada no século XIX, sobretudo depois da
burguesia ter saído vitoriosa da Revolução Francesa.
O ABURGUESAMENTO DO OCIDENTE

Na França, ao longo do século XIX, os valores da burguesia impuseram-se às outras classes


e foram retomados pelo Estado e pela Igreja. A própria gênese da expansão do sistema de valores
burgueses já tinha começado nos séculos precedentes. Depois de 1880 já se pode observar —
primeiro no indivíduo, depois em grupos e organismos maiores — uma tendência para a
emancipação sexual (ver próximo capítulo). Mas o período de aburguesamento e de expansão do
puritanismo continou até à Segunda Guerra Mundial; e, mesmo depois, as sociadades industriais
ocidentais continuaram a reconhecer a prioridade do sistema burguês. No caso da França, é
necessário distinguir o período revolucionário do que imediatamente lhe sucedeu. Os
revolucionários queriam instaurar um novo sistema de educação. Foram buscar no filantropismo
burguês alemão elementos de informação sexual e elaboraram diferentes programas. Condorcet
estava adiantado quase setenta e cinco anos com relação a toda a Europa, pois reclamava um
ensino misto, exercido por professores dos dois sexos, que teria tido por fim atingir uma maior
moralidade. Contudo, nesta época, tais inovações e ainda outras não obtiveram sucesso. (Por volta
de 1870 foram novamente introduzidas com êxito em alguns países europeus, pelo menos num
círculo limitado.) É espantoso ver que se reconhecia, como Pestalozzi, só ser possível fazer triunfar
uma reforma sexual no quadro de uma reestruturação total da sociedade.
C. Fourier deciara-se favorável a uma educação mista bem organizada, mas ia ainda mais
longe. No seu Traité de l'Unité Universelle (1841, V, 220), diz que os rapazes e as moças com mais
de dezesseis anos podem ter relações sexuais. O casamento devia ser contraído bem mais tarde,
"dans l'âge du calme des passions,”. Concebia também uma espécie de educação coletiva,
semelhante à dos kibbutzim atuais. Fourier foi acusado pelos burgueses de imoralidade.
Foi sobretudo nos Estados Unidos que Fourier teve sucesso. Entre 1820 e 1830, Robert
Dale Owen declarava-se abertamente a favor da sexualidade e contra o sacramento do casamento.
Entre outras coisas, defendia a educação sexual segundo o modelo plantas-animais-homens.
Contudo, o "saber", por si só, não bastava. Devia-se reconhecer as necessidades sexuais, porque
elas, da mesma forma que a sede e a fome, não estão submetidas à nossa vontade; deveriam,
portanto, ser dirigidas, e não reprimidas. Dever-se-ia retirar às crianças os seus complexos de culpa
e dar-lhes uma verdadeira educação sexual. Na sua Moral Physiology (1831), encontram-se
algumas idéias notáveis para a época: "A repressão do instinto de procriação torna o homem
angustiado, deprimido, e até doente: muitas vezes engendra hábitos contrários à natureza e
provoca quase sempre uma espécie de frieza e de reserva no caráter, pois deixa de haver nele a
harmonia dos sentimentos; e, habitualmente, o caráter fica marcado pela solidão, a
associabilidade e o egoísmo".
Durante os séculos XIX e XX novos planos foram seguidamente publicados e
experimentados. Um estudo sistemático dessas tentativas (por exemplo, o anarquismo) seria
valioso, pois tais "experiments in living" forneceriam indicações úteis. Nunca, porém,, tiveram
sucesso no quadro da sociedade burguesa. O desenvolvimento do desaburguesamento, na
segunda metade do século XX, representa a abertura de um espaço para novos experimentos. Até
1880, quase todo ano era publicado um livro sobre a sexualidade. A origem disso está no fato da
sexualidade ter passado a constituir um domínio em si. Podemos dividir a literatura referente à
sexualidade em três grupos: os livros sobre o combate à auto-satisfação, sobre a preparação para
o casamento e sobre as pessoas casadas, mas da mesma forma que no século XVIII, não havia
nenhuma publicação sobre o esclarecimento sexual e a educação dos adolescentes. Só os livros
contra a masturbação eram, em parte, destinados aos adolescentes. Seu conteúdo é quase igual ao
do século XVIII, a diferença está na divulgação. A partir de 1820 foram regularmente publicadas
obras que ou davam uma visão de conjunto ou esclareciam um aspecto particular, como a
masturbação nas mulheres ou nos prisioneiros. A princípio, os seus autores foram médicos, depois
pedagogos e por fim eclesiásticos. Ao lê-los, tinha-se a impressão de que numerosos médicos
faziam publicidade da sua própria prática, dos medicamentos ou dos tratamentos que eles
mesmos haviam elaborado. As cartas pretensamente autênticas que publicavam nos seus livros
eram na realidade falsificadas.
O editor Roret foi particularmente célebre em Paris. Começou por difundir obras de
vulgarização, publicadas em grandes tiragens. Publicou também o best-seller Le Tissot du Sexe
(para a mulher). O seu autor era o Dr. J. J. Doussin-Dubreil (1828). Além disso, foram publicadas
dezenas de reedições, reimpressões, complementos e imitações de Tissot; livros destinados a
auxiliar jovens detidos a curar-se da masturbação; resumos para pais de família, manuais de
higiene para os educadores, etc. E mais: toda uma indústria fabricava bandagens, caleçons,
appareils de miséricorde, ceintures e outros. Pode-se encontrar na Bibliothèque Nationale de Paris
um arquivo de prospectos de aparelhos que serviam para o combate à masturbação. Continuava a
seguir-se o caminho do século XVIII. Os manuais para as pessoas casadas não eram muito
diferentes dos do século anterior. Reimprimiam-se livros dos séculos XVII e XVIII, como o célebre
livro de Venette. A maioria dos livros se dirigia às mulheres ou a moças e mostravam poucas
características daquilo que poder-se-ia chamar de tabu vitoriano.
Em 1798 reimprimiam-se a célebre L'Art de Jouir e L'Homme-Plante, de J. Offroy dela
Mettrie, nos quais se encontram juízos pró-sexuais como: os esposos procuram o jogo do amor; o
esposo nu espera impaciente o combate amoroso, "o mais doce de todos os combates"; a mulher
é "a mais bela planta da nossa espécie". Em 1806, J. B. de Senancour recomendava a todas as
pessoas que desejassem evitar as conseqüências do adultério que utilizassem métodos,
anticoncepcionais. É difícil chamar a esse ponto de vista de vitoriano. Em outras obras do século
XIX encontram-se os mesmos elementos pró-sexuais, como, por exemplo, na Physiologie du
Marriage, de Balzac (1826). Um livro de Morel de Rubempré (Les Secrets de Ia Génération, 1829)
obteve também um grande sucesso, porque o autor indicava, entre outras coisas, as posições de
coito favoráveis à procriação de meninas ou de meninos: o ovário esquerdo servia para fazer
meninas, e a mulher deve deitar-se, depois do ato sexual, sobre o lado esquerdo; o ovário direito é
reservado aos meninos.
Pode-se verificar que os livros publicados até cerca de 1850 continham muito mais dados
fisiológicos do que a maior parte dos manuais para casados que apareceram entre 1880 e 1950, e
sobretudo eram mais pró-sexuais. Os autores insistiam no prazer que o ato sexual proporcionava
e, na descrição dos órgãos genitais, insistiam na maneira como se podia acentuar o prazer. Falava-
se francamente das posições coitais em relação com o prazer que com elas se podia atingir. A.
Debay, cuja obra Hygiène du Marriage (1848) suplantava a obra de Morel, dizia, por exemplo,
falando da posição ventre-costas, em que o homem penetra a mulher de pé, por trás: "A posição
que se chama ritu pecorum é, em dois casos, não só autorizada, mas até recomendada,
particularmente em caso de gravidez ou de grande corpulência da mulher, ou quando o membro
viril não tem um comprimento suficiente". Freqüentemente são feitas críticas morais a algum
comportamento, mas isto não influencia a atmosfera sexual básica. Praticamente, em parte
alguma se encontram, argumentos religiosos. Os autores não davam apenas conselhos profiláticos
sobre a regulação dos nascimentos, mas até forneciam indicações completas e ilustrações sobre os
pessários, os preservativos, as lavagens internas, os dias férteis e estéreis, as posições que
aumentavam ou reduziam as oportunidades de fecundação. No entanto, nada ali se encontra de
fidedigno, porque o processo da fecundação só foi elucidado por volta de 1860. Assim, o Dr. A.
Mayer (Des Rapports Conjugaux, 1856) apoiava-se numa teoria do professor Fouchet, que foi
premiada em 1845 pela Academie des Sciences. Segundo ele, a fecundação seria impossível do
décimo segundo dia após o fim da menstruação até alguns dias após o fim da menstruação
seguinte. Ora, segundo os conhecimentos atuais, este período pretensamente estéril corresponde
precisamente aos dias em que a mulher é fértil.
O interesse pela contracepção aumentou depois da entrada em vigor do Code Napolêon.
As novas leis reforçavam uma evolução latente: a herança não deve caber exclusivamente ao filho
mais velho, mas ser dividida. Resultou disto uma queda no índice da natalidade, porque não se
podia evitar a divisão das terras, economicamente desvantajosa, senão limitando o número dos
filhos, e em 1850 os camponeses ainda representavam 70% da população. (Entre os camponeses
franceses emigrados para o Canadá, onde o sistema napoleônico não fora introduzido, observa-se
um índice de natalidade constante.) Na França, a taxa de natalidade passou de 38,6% ou em 1771,
para 32 em 1800, o que representa uma diminuição de 17%, a mais radical, segundo Sauvy, de
toda a história francesa. Esta observação mostra até que ponto o comportamento é, em geral,
determinado por motivos econômicos. A diminuição do número dos nascimentos continuou
durante todo século XIX; disto resultou que, com a forte mortalidade infantil (mais de metade das
crianças de Paris morriam antes de completarem cinco anos) e com as conseqüências das
epidemias, a posteridade do povo francês já não estava garantida. A Igreja católica estava
informada do emprego, muito difundido na França, do preservativo (depois de 1843 a vulcanização
da borracha permitia fabricá-los mais baratos) e sobretudo do método do coitus interruptus, que
ainda hoje é o mais empregado para a regulação dos nascimentos entre as pessoas pobres e as
não-informadas. Mas, enquanto o Estado burguês não reagiu para elevar a taxa da natalidade, a
fim de fornecer às colônias maior número de operários, de soldados e de funcionários, a Igreja não
se manifestou ativamente. Em 1842, o bispo J. B. Bouvier, de Mans, dirigiu algumas perguntas à
Penitenciária de Roma sobre o caráter pecaminoso de certos métodos contraceptivos; fê-lo,
sobretudo, para garantir a sua própria atitude tolerante. Estava persuadido de que numerosos fiéis
praticavam a regulação dos nascimentos porque desejavam dar aos seus filhos uma educação
conveniente ou poupar a saúde da mãe. Os fiéis não podiam compreender que tinham de optar
entre o risco de terem muitos filhos ou a continência. A relação sexual não era uma manifestação
do amor mútuo? Roma reagiu de uma forma evasiva: o homem que pratica a relação sexual de tal
modo que conscientemente evite a fecundação peca; a mulher não comete nenhum pecado com o
seu consentimento. O princípio era salvaguardado com esta resposta. No entanto, era mais
importante verificar o seguinte: Roma admitia que os fiéis praticavam a contracepção com toda a
inocência e que não era útil falar destas coisas aos ignorantes durante a confissão. A maior parte
dos católicos, portanto, transgredia a norma; Roma o sabia e não intervinha (observa-se ainda esta
situação nos países tradicionalmente católicos, como a Irlanda, Flandres, Espanha, Portugal, Itália).
Num livro destinado aos sacerdotes, Bouvier escrevia que "a maior parte" das pessoas casadas que
praticava o coitus interruptus eram bons cristãos. Ordenavam aos confessores, particularmente
aos jovens, "que não destruíssem uma boa fé sem qualquer resultado benéfico para a alma”. Por
outras palavras, não deviam despertar o sentimento de culpa e de pecado com estas questões. Era
preferível o silêncio.
O bispo de Reims, T. Gousset, também recomendava aos padres que seguissem esta linha
de conduta. Até o fim do pontificado de Pio IX, a Igreja deixou às autoridades religiosas locais toda
a decisão relativa à regulação dos nascimentos. Mas no período que vai de 1870 a 1914 diversos
Estados, por razões nacionalistas, passaram a exercer uma política demográfica. Foi por isso que os
médicos puseram em evidência o caráter nefasto do coitus interruptus e as Igrejas demonstraram
que o ato sexual sem procriação era incompleto e a contracepção, imoral. Napoleão III estabeleceu
regras a esse respeito. Nas suas explicações, as hierarquias católicas alemã (1913) e francesa
(1914) insistiram na obrigação moral de dar filhos ao Estado.
Por fim, Roma seguiu também os leigos e as autoridades religiosas locais. Embora depois
do fim do século XIX a hierarquia nacional tenha exercido pressão, foi preciso esperar por 1930
para que Roma definisse o ponto de vista da Igreja total: na encíclica Casti connubii só era
autorizada a continência periódica, e apenas dentro de certos limites. Esta nova atitude fora
proposta no interesse das nações. O atraso da Igreja católica tornou-se evidente, pois, a partir de
1920, a atitude até então austera de algumas Igrejas protestantes em países industrialmente mais
desenvolvidos que os católicos era mais tolerante. Enquanto os protestantes começavam a
mostrar-se mais liberais, Roma ainda afirmava, na encíclica Humanae vitae (1968), os pontos de
vista de 1930.
Levamos em conta a atitude das Igrejas perante a contracepção, porque esta evolução
confirma as nossas observações: os valores cristãos relativos à sexualidade adaptaram-se aos
valores burgueses consolidados. Nas cartas pastorais, nos manuais para casados, nas obras de
teologia moral, nos artigos de revista e nos sermões, estes pontos de vista ainda eram elaborados,
sancionados esacralizados. Numa carta pastoral que data de 1908, e que foi igualmente difundida
na Holanda, o cardeal belga Mercier colocava a questão: "Há no mundo alguma coisa de mais belo,
de mais encorajante, de mais respeitável, que uma família, tal como ela ainda felizmente se
encontra no seio da nossa valorosa população, principalmente na classe operária, onde crescem
seis, oito, dez filhos, ou ainda mais, na escola do trabalho e na escola ainda mais poderosa da
renúncia e do sacrifício?" Talvez sem o saber, o cardeal servia aqui os interesses dos que precisam
de uma reserva de mão-de-obra barata, habituada às privações. Numa outra passagem desta carta
pastoral, escrevia: "O tamanho da vossa família obrigará certamente alguns dos seus filhos a
juntar-se às enormes massas de população nos países onde fumegam numerosas chaminés da
indústria". O princípio liberal da livre concorrência foi assim defendido. Ser pobre tem também as
suas vantagens: "Quando olho as pessoas que sobem e descem na escala social, vejo que os que
sobem levam tamancos e os que descem, sapatos de verniz".
A estrutura do poder no interior da família deveria ser autoritária: o homem reina sobre a
mulher e sobre os filhos. A educação deveria ser rude. Os filhos devem sentir "o aguilhão da
pobreza". A regulação dos nascimentos é por várias vezes rejeitada como "violação da lei da
natureza, que traz em si o castigo"; como um "meio assassino de destruir a inclinação corrompida
do egoismo". O cardeal Mercier pedia ao Estado (da mesma forma que Paulo VI em Humanae
vitae) que acabasse com esta "nefasta propaganda", aos fiéis que atacassem os médicos que
divulgam tais meios e os juizes que são demasiadamente benévolos. "Pouco a pouco, as práticas
mais criminosas perdem o seu caráter abjeto e parecem menos delituosas, e, se vós, pais cristãos,
não vos resguardardes eficazmente, o crime acabará por penetrar tranquilamente a santidade do
vosso lar." Conseqüentemente, a regulação dos nascimentos deveria ser proibida também aos
não-cristãos, para os cristãos poderem sentir-se em segurança.
Não foram apenas as concepções burguesas referentes à expansão demográfica e ao
publicamente desprezado (mas mesmo assim praticado) family planning que, ao longo do século
XIX, foram retomadas pelo Estado e pela Igreja; estas duas autoridades também reconheceram a
família como base, núcleo e célula primitiva da sociedade. A Igreja católica desvalorizava cada vez
mais o celibato em relação ao casamento. O Estado e a Igreja desencadearam uma campanha
contra as relações sexuais extra ou pré-conjugais, a prostituição, a masturbação, a
homossexualidade, as pretensas perversões, a pretensa pornografia, a pretensa imoralidade, a
mãe solteira e os filhos naturais. Servia de modelo o tipo de união e de família burgueses.
Aceitava-se um único tipo de estrutura familiar, de relações entre o homem e a mulher, entre os
pais e os filhos, e uma única concepção sexual do papel que o homem e a mulher deveriam
desempenhar. Os modelos que foram descritos nos romances por Rousseau e outros autores do
século XVIII passaram a ser considerados como exemplos. No século XVIII, Vênus, "l'amour", o
amor ainda formavam um todo; este todo decompunha-se agora em partes que pareciam se opor
uma à outra: procriação, prazer sexual, erotismo e sensualidade. O amor tornou-se mais platônico,
o prazer desapareceu, a sensualidade e o erotismo eram vividos fora do casamento. No século XIX
e no começo do século XX, as relações extraconjugais não eram menos numerosas que hoje em
dia, mas o status desse tipo de sexualidade e da prostituição nunca foi tão baixo. Teoricamente, a
sexualidade devia continuar aprisionada no quadro do casamento. Mas é indubitável que em
nenhuma outra época a sexualidade foi tão geralmente valorizada, no consciente e no
inconsciente. Enquanto nos séculos anteriores se reconhecia à mulher uma maior aptidão sexual, o
orgasmo da mulher passou a ser negado ou considerado como perverso. Daí resultou o fato de
muitas mulheres se julgarem, ou efetivamente, se tornarem frígidas, o que provocava novas
complicações. Os jovens eram educados num clima assexual, mas basta ler O Mundo de Ontem
(Die Welt von Gestern), de Stefan Zweig, para sabermos o que era a realidade.
A concepção, hoje geralmente reconhecida, segundo a qual o sistema repressivo da
sexualidade, em virtude de seu caráter utópico e estranho à vida, estaria fadado ao fracasso, não
corresponde à realidade. Trata-se de uma concepção utilizada para racionalizar a admissão de
novas normas. Pode-se considerar, sob um outro ângulo, que os resultados não eram vistos como
fracasso, e que não se abriu mão do antigo sistema porque era insatisfatório, mas sim porque as
mudanças nas relações sócio-econômicas tornaram necessário um novo sistema. Finalmente,
pode-se pensar que o antigo sistema fracassou por não ter sido aplicado de uma forma
conseqüente.
Fechava-se um olho e tolerava-se a disparidade entre o comportamento visível e o
comportamento escondido; reprimia-se a sexualidade, mas permitia-se a exploração comercial da
necessidade sexual; a burguesia, que dava o tom, não se conduzia segundo as normas que havia
fixado para os outros; impôs-se à mulher, coercitivamente, por motivos econômicos, um papel
diferente do seu papel tradicional (por exemplo, o de mão-de-obra mais barata nas fábricas,
operária durante a guerra ou empregada de escritório mal paga).
O exemplo da emancipação da mulher pode ilustrar essa linha de pensamento. Quando se
fala na repressão sexual vitoriana, fala-se, ao mesmo tempo, na postura frente à regulação dos
nascimentos (que, como vimos, foi vista de uma maneira negativa na primeira metade do século
XX, por razões nacionalista-burguesas) e na repressão da mulher, sendo, explícita ou
implicitamente, colocado o fato de que a mulher protestou contra a sua subjugação. A história da
emancipação feminina, porém, nos mostra que os homens muito a ajudaram. Ainda hoje vemos,
nos livros de Simone de Beauvoir, Betty Friedan e outras, que as mulheres têm antes que aprender
que devem se sentir infelizes, para então senti-lo. Sem a influência desta literatura, uma parte das
mulheres continuaria a se sentir feliz ou pelo menos não mais infeliz do que uma parte dos
homens. Esse pensamento se apóia na concepção de que a emancipação do homem e da mulher
deve visar a realização plena das relações humanas e que estas emancipações pressupõem uma
nova estruturação da sociedade. A partir disso tudo podemos concluir que um certo número de
pessoas, por diferentes razões, são objetivamente infelizes, mas que, ao lado delas, alguns grupos
passam a se sentir infelizes somente quando isso lhes é sugerido, ou quando se lhes abrem os
olhos. O protesto das mulheres, portanto, não foi, de início, tão vital e nem partiu das próprias
reprimidas, pois, se assim o fosse, também o homem não-emancipado deveria ter tornado público
um protesto vital.
Não estamos, com isso, defendendo um emprego mais eficaz do antigo sistema. Queremos
apenas demonstrar que tanto o seu emprego inconseqüente quanto os motivos econômicos e
políticos prejudicam o desenvolvimento e o êxito deste sistema. O fenômeno do protesto vital, a
aspiração a uma maior igualdade, a valorização da sexualidade são antes fatores secundários que
resultam sobretudo de transformações sócio-econômicas.
Nesse capítulo comentamos apenas algumas linhas principais, pois consideramos que o
posicionamento favorável aos tabus, que caracterizou o século XIX, é bastante discutido em outras
publicações. Além disso, é necessário uma urgente e profunda pesquisa dessa época, caso
contrário, as relações nela existentes acabarão por tornar-se, para nós, incompreensíveis.
A EMANCIPAÇÃO SEXUAL

Pode-se afirmar com segurança que a emancipação sexual é um dos mais notáveis
renascimentos da nossa história. É possível distinguir três etapas, a primeira de 1870 até a Primeira
Guerra Mundial, a segunda entre as duas guerras e a terceira da Segunda Guerra Mundial até os
nossos dias. O ritmo da evolução cresce e a difusão das novas idéias e dos novos modos de
comportamento aumenta proporcionalmente. Em certa medida, esta evolução é um retorno à
época anterior ao século XVIII, embora nos possamos deixar enganar pelas semelhanças
superficiais existentes entre os séculos XVI e XX. A sexualidade do camponês não é igual à do
burguês ou à daquele que vive na época industrial ou pós-industrial.
A evolução ocorrida no século XIX realizou-se no sentido de um retrocesso crescente do
aburguesamento da sociedade; trata-se de uma evolução que vai do anti-sexual ao pró-sexual, de
uma liberdade limitada a uma maior liberdade, da moral da culpa à moral da vergonha, da
dissimulação à revelação, da sexualidade limitada aos órgãos genitais a uma sexualidade total, da
obsessão à integração e à dessexualização do sexual, da antítese à cooperação entre os sexos, da
desintegração à síntese do amor e da sensualidade.

1. ATÉ A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL

Até a Primeira Guerra Mundial a emancipação sexual foi principalmente obra de artistas e
de intelectuais; os políticos e os pedagogos progressistas só aparecem em segundo plano. Foram
os artistas os primeiros a exercer a sua influência. O grande público acompanhava à distância ou
então mostrava-se indignado — o que pode ser considerado como uma reação útil — quando os
escritores protestavam contra a hipocrisia, a injustiça e a imoralidade. Strindberg, Ibsen, Tolstoi,
Thomas Hardy, Frenssen, Wedekind e outros autores abordaram temas como a posição da mulher,
a dupla moral, dificuldades conjugais, a questão da continência e da ignorância sexual. Por terem,
muitas vezes, falhado quanto à própria vida sexual, os artistas lidaram efetivamente com tais
problemas, antes destes receberem qualquer formulação teórica.
Ao lado destes, um segundo grupo, formado, entre outros, por D. H. Lawrence, T. Huxley,
Spencer, Burton, que traduziu As Mil e Uma Noites, Wilde e Gide, apresentava a sexualidade, a
mulher e o amor, o erotismo e a sensualidade de uma forma positiva e atraente; além disso, pode-
se também incluir aí a introdução do movimento na pintura e da ação na escultura. A influência
destas formas de arte foi muito grande, bem como a da arte do cabaré, onde se valorizava a beleza
física e se ridicularizavam as normas limitadas da burguesia. O alto prestígio da arte garantia a
aceitação da beleza física e do prazer. O artista exercia uma ação terapêutica, catártica, e suas
descrições eram uma antecipação promissora.
Foram publicadas imponentes obras de sexologia, em muitos volumes. Também neste
domínio os países protestantes mostraram-se adiantados com relação aos outros. A sexologia
apareceu na Europa Central, mas florescia também nos países anglo-saxões. Muitas vezes estas
obras tomavam a forma de grandes sínteses, que mais tarde foram abandonadas, sendo quase
sempre escrita por diletantes que consagravam toda sua vida a tal tarefa, que, embora somente
para alguns implicasse no risco de ser preso ou sofrer outras sanções, significava para toda a perda
de prestígio e isolamento social.
A princípio, o ponto de vista era exclusivamente sexual, sobretudo fisiológico e biológico,
porque o problema era essencialmente abordado por médicos. Além disso, a influência de
antropólogos e etnólogos foi considerável, e os dados recolhidos por eles foram utilizados nas
discussões. Assim, Westermarck, Ploss, Malinowski e outros trouxeram à tona numerosos fatos
que, embora parcialmente conhecidos desde o século XVII, nunca tinham sido revelados; por
exemplo, o fato do pudor advir da dissimulação do corpo sob os vestuários, e não o inverso, de
todos os povos primitivos não recearem ser vistos em atividade sexual, de viverem numa
promiscuidade íntima, de já terem sido encontrados casos de poligamia na história antiga do
Ocidente e também no Antigo Testamento, o que invalidava a hipótese de se tratar de um
fenômeno de degenerescência. Surgiram leituras criticas do Novo Testamento. Descobriu-se que o
casamento não foi considerado como um sacramento durante mais de mil anos.
O interesse incidiu sobre todo os aspectos, mesmo os pretensamente anormais e
patológicos da sexualidade. Às vezes exagerou-se o sexualismo: tomou-se o canto das aves por
uma manifestação sexual, gêneses de religiões foram concebidas como Sendo fundadas no
erotismo. Depois de ter sido silenciado ou negado pela maior parte dos médicos, o orgasmo
feminino, após 1870, tornou-se objeto de observações objetivas, a que se dedicaram, entre outros,
o fisiologista Magende e os ginecologistas Busch, Theopold (1873) e Otto Adler. Com a sua
Psychopathia Sexualis (1882), obra em que demonstrava que as teorias da degenerescência eram
contrárias à ciência, R. von Krafft-Ebing deu um grande passo à frente, embora se tratasse ainda de
um discípulo da dupla moral, que se preocupava em enumerar uma longa série de perversões que
considerava serem mais "más" do que "patológicas". Devido às dificuldades impostas pelas
autoridades, algumas passagens de sua obra foram publicadas em latim. Quase todos os antigos
éticos, que gozavam de grande prestígio, eram conservadores. O fato de se provar a inutilidade, e
até a nocividade, das regras e normas antigas, não os impedia de reforçá-las ainda mais.
Obstinavam-se na crença de normas eternas e objetivas. Só se opunham à dupla moral com o
objetivo de submeter igualmente o homem às estritas normas aplicadas à mulher. O amor livre e a
sexualidade extraconjugal representavam um "subjetivismo sem limites" (Rein). A nova moral era
contrária à decência, favorecia a degeneração da sociedade, o. abandono dos bons costumes, o
retorno a uma civilização primitiva (Wundt). O objetivo da sexualidade era a procriação; nisto
consistia a "alta" moral. O casamento, como Goethe já havia afirmado, era "a base e o vértice de
toda a civilização" (Natorp).
Em 1907, Kisch, num livro sobre a sexualidade feminina, dizia que a mulher não devia
procurar qualquer relação sexual, abstendo-se dela por meio de exercícios de vontade, um regime
alimentar severo, um colchão duro e banhos frios. (Um ano antes, no entanto, lemos em Hirth que
o homem devia aprender a se controlar até que a mulher também atingisse o orgasmo.) Em 1908,
Vacher de Lapouge escrevia que a sexualidade sem procriação era uma perversão que se
encontrava no limite entre sadismo e sodomia.
No filósofo-pedagogo Friedrich Paulsen encontramos um bom exemplo de severa
moralidade: "Parece que todos os demônios foram soltos ao mesmo tempo para devastarem o
fundamento da vida do povo alemão". A educação, diz ele, perdeu o antigo vigor, os pais já não se
atrevem a bater, os filhos tornaram-se ingratos, a autoridade não é mais reconhecida e reina um
clima anticristão organizado. A autoridade moral morreu sob a influência da retórica antimoral de
Nietzsche e dos incríveis disparates dos escritores que arrastam os jovens para a corrupção, pelo
fato de apresentarem o mal como um exemplo a ser seguido e não como um deslize a ser
perdoado. Pratica-se o esclarecimento sexual com fanatismo: "Só falta haver um curso de
sexualidade prática". Mulheres histéricas e loucas falam do direito da mulher à maternidade.
Como culpados disso tudo, Paulsen aponta "a indústria da luxúria, a literatura da
perversão, as artes de sedução". Que fazer para combatê-los? Em primeiro lugar, era necessário
que todos se purificassem e purificassem os que estavam à sua volta, por exemplo, através de
cartas de protesto aos jornais. À sociedade também cabia proteger o indivíduo; daí a utilidade dos
processos, como o que foi intentado contra Wilde. Era preciso fundar associações para a proteção
dos bons costumes. O círculo de Goethe, que há muito tempo conseguira uma enorme fama em
*
conjunto com a Lex Heinze , deveria receber em seu seio a associação popular fundada por
Leixner. Os juristas, e sobretudo os juizes, deixam-se orientar muito pouco pela sua consciência. Os
parágrafos 175 (sobre a homossexualidade) e 184 (sobre a pornografia) da legislação penal
deveriam ser observados. Vê-se, portanto, claramente, a maneira como a intolerância da
burguesia se expressa: trata-se de um novo elemento na história. Vemos também a maneira pela
qual os adultos e toda a sociedade se transformaram depois que os adolescentes da burguesia
foram submetidos ao novo modelo de moralidade.
A diferença entre as formas sexuais e as que se pretendiam como tal não era muito clara.
Alguns pedagogos e moralistas afirmavam com tal insistência serem os únicos a oferecer a
verdadeira solução moral e responsável que acabavam por sofrer a oposição dos grupos que,
embora aceitassem a ideia de que alguma coisa deveria acontecer, eram contrários a qualquer
reforma que pudesse provocar uma mudança radical no sistema. Foerster era um de seus
componentes. Sua influência, tanto sobre os católicos quanto sobre os protestantes, durou meio
século: em 1907 fez malograr, em Mannheim, o congresso sobre pedagogia sexual, no qual se
tinha posto tantas experanças. Em 1953 suas obras ainda eram reimpressas e atingiam uma
tiragem espantosa. Seu estilo, no entanto, era o do pedagogo que levanta problemas, em vez de
resolvê-los, o do fraseólogo que injuria seus adversários, em vez de discutir com eles, que se erige
em defensor da mais alta moral e carrega, em conseqüência disso (sem mesmo sabê-lo), a
responsabilidade do posterior agravamento da situação. A leitura das suas máximas, caso essas
fossem levadas a sério, causaria mais danos do que a pornografia, porque a pretensa pornografia
nunca foi apresentada ou justificada como o melhor comportamento em termos de verdade; não
pretendia obrigar ninguém a fazer o que descrevia. Foerster nem sequer tinha a honestidade de
reproduzir com exatidão as concepções dos seus adversários, que, para ele, não passavam de um

* N. do T.: Uma modificação da lei alemã de 25 de junho de 1900, que propunha sanções mais severas ao alcoolismo e à
prostituição. Em seu projeto eram previstos parágrafos que incidiriam sobre as artes e o teatro, mas que foram deixados de lado
quando da sua implementação.
grupo de revoltados, por vezes libertinos. Por outro lado, segundo a sua opinião, a reforma sexual
moderna estava sob a influência de "mulheres escritoras", como Ellen Key, Elizabeth Gnauck-
Kühne e outras, autoras de uma literatura "sentimental para as jovenzinhas"; "estas mulheres
parecem ter perdido completamente a cabeça, com as suas divagações eróticas ou a sua míope
solidariedade", e acrescentava: "Pai, perdoai-lhesl" Para ele, o fato de se pretender uma reforma
sexual era "um sinal de perturbações neurastênicas, de falta de maturidade, uma vergonha".
"Através dos modernos as pessoas amadurecem para os sanatórios." A psicanálise era "uma
ciência saída do caminho normal, uma hipocondria acadêmica, uma degenerescência nervosa";
"em todos os lugares onde se demoliu uma igreja, é preciso construir um asilo de loucos onde a
fancaria da psicanálise tem início". Indignava-se com os livros, com a seminudez na arte: "Nunca a
grande arte imortalizou tanto os homens nus". "A ética moderna é um hino às funções da
procriação, um culto a Astarte e a Priapo: Deus já não se encontra na alma, mas nos órgãos
genitais." Em todo "este mundo de traição, de pérfida franqueza e de sede egoísta de prazeres", há
lugar "para todas as corrupções"; libertam-se aí os "demônios desencadeados dos instintos
vagabundos" sobre "a populaça amorosa de todas as classes".
É preciso não conceder a Foerster mais importância do que ele merece. O que escreveu era
reacionário, contraditório, ilógico, em suma, estúpido. No entanto, tinha sucesso por ser o porta-
voz da burguesia conservadora. O que já observamos nos séculos precedentes também é válido
neste caso; não são os melhores que exercem influência em sua época; e os que se apresentam
como defensores e salvadores da mais alta moralidade produzem e perpetuam, por vezes,
situações imorais, mesmo que não o façam voluntariamente.
Os "reformadores da sexualidade" utilizavam praticamente os mesmos argumentos que os
seus adversários, chegando, porém, a resultados diversos. Reprovavam do mesmo modo a
imoralidade que reinava, queriam igualmente despertar um maior sentimento de
responsabilidade, pretendiam proteger e educar o homem, a mulher e a criança. Para eles, no
entanto, a imoralidade podia ser encontrada em certas situações, principalmente na prostituição,
nos casamentos forçados, sem amor, nas dificultades para o divórcio, na difamação social da
mulher, do filho natural, da mãe solteira. Queriam pôr fim ao nascimento de filhos não desejados.
Reclamavam uma valorização do casamento, a possibilidade de relações sexuais extraconjugais,
em suma, uma série de modificações radicais cuja análise pormenorizada foge aos nossos
propósitos. Queremos simplesmente mostrar que existe uma diferença entre a reforma sexual
defendida por uma elite intelectual e a defendida pelos reformadores sociais. Para os primeiros,
tratava-se quase sempre de uma reforma exclusivamente sexual; para os outros, a emancipação
sexual não era mais do que uma parte do seu programa. Em 1906, Karl Vanselow fundou em
Berlim uma "associação para a reforma sexual".' Na mesma época, liam-se autores como Esther
Harding, M. Marcuse, Hirschfeld, Rohleder, Krauss, Moll, Bloch, Carpenter, Buchow-Homeyer,
Brandes e outros. O evangelho da renovação sexual foi escrito em 1900 por Ellen Key, com o título:
O Século da Criança (Das Jahrhundert des Kindes).
Um terceiro grupo, menor, consagrava-se principalmente à educação sexual dos jovens.
Estes grupos de "reformadores" não tinham objetivos homogêneos nem meios de ação
comuns. Agia-se, geralmente, a partir de uma problemática própria.
O casamento era o problema central. Todos estavam cansados do casamento. Até Foerster
confessava "que a união monogâmica representa, para a maior parte dos homens, uma exigência
quase sobre-humana!" No entanto, nesta mesma época as cincunstâncias melhoraram e, graças à
industrialização, um maior número de pessoas, homens em particular, teve a possibilidade
material de contrair um casamento. A escolha do cônjuge passou, teoricamente, a ser mais livre e
as possibilidades de divórcio um pouco maiores. No entanto, um grande número de mulheres
ficavam solteiras, "injustiça nacional quase tão grave como a prostituição". E. Carpenter se referia
às mulheres que viviam com diferentes homens sem serem casadas, que habitavam com a família
ou trabalhavam. Como, para a mulher, o casamento era o único meio de atingir, pelo menos numa
certa medida, o status de adulto e igualmente o reconhecimento social, as mulheres não casadas
continuavam condenadas a levar uma vida inferior. Segundo o recenseamento de 1900, na
Alemanha, 44% das mulheres entre os dezoito e quarenta anos ainda estavam solteiras; 20% delas
continuariam solteiras, o que significa mais de dois milhões, e isto numa sociedade em que se fazia
do casamento um dever moral. Tentou-se remediar esta situação tornando as relações amorosas
mais livres e reconhecendo-se o direito à atividade sexual, que passou a ser, cada vez mais,
considerada pôr médicos, neurologistas e psiquiatras como uma necessidade vital. Em 1903, o
neurologista Wilhelm Erb mostrava as nefastas conseqüências da continência sexual permanente
para o homem e a mulher. Mulheres como Ellen Key e Elisabeth Busse-Wilson reclamavam a
mesma liberdade sexual para homens e mulheres. Tomavam-se abertamente posições contrárias
ao que anteriormente se entendia por sexualidade. E. Carpenter, que escreveu passagens bastante
modernas sobre o amor, enquanto uma vivência a dois, via a sexualidade como estando a serviço
deste amor. Em 1881 fundou-se, na Holanda, a sociedade dos Novos Malthusianos, cujo principal
objetivo era encontrar "um meio eficaz de lutar contra a pobreza e a taxa muito baixa dos salários"
mas visava igualmente a diferenciação entre atividade sexual e procriação. A emancipação da
mulher ocorria paralelamente a esta evolução. Criou-se uma nova "imagem" da mulher, ao mesmo
tempo mãe, mulher, amante, e talvez, também um pouco, a prostituta do seu marido. Esta
imagem alastrou-se primeiro nos meios não-cristãos e, depois, alguns decênios mais tarde, nos
meios cristãos. Por volta de 1900, Shaw propôs suprimir o casamento enquanto instituição que
servia para a procriação; dar à luz crianças saudáveis nada tinha a ver com o romantismo, com o
amor e outros sentimentos misteriosos; pelo contrário, devia mesmo receá-los. O moralista não
conservador Von Ehrenfels concebeu em 1908 o plano de um "lar", espécie de comunidade de
mulheres que deveriam deixar-se encerrar, a serviço da gênese das raças, numa imensa casa de
passe, para trazerem ao muado filhos mais bem selecionados; este plano pode comparar-se à
associação para a reprodução de homens de raça na Hidalla, de Wedekind-Hetmann. Além das
suas intenções eugenistas (tais instituições também serviriam para proteger-nos do perigo
amarelo), Von Ehrenfels também procurava um meio de melhorar a situação sexual: todo o adulto
deveria poder exercer uma atividade sexual e a poligamia deveria ser oficialmente reconhecida.
Todos estavam de acordo quanto à necessidade de lutar contra a prostituição, mas não
quanto aos métodos. Em meados do século XIX tal problema foi abordado de maneira pouco
vitoriana, tendo-se apontado como sua única solução a prática do amor livre. Já abertamente
defendido no fim do século XVIII (por, entre outros, A. J. Gron-Hoffinger, 1848), era igualmente
encontrado no século XIX nos meios artísticos e estudantis, onde era provavelmente considerado
como um protesto contra o casamento burguês conformista e como uma profissão de fé pública
numa forma melhor de viver o amor. Ellert Key havia censurado "O amor enquanto um fim em si
mesmo", o monismo erótico, porque o amor deveria dizer respeito à personalidade total, tanto
física quanto moral; era, portanto, necessário emancipar tanto a sexualidade quanto o amor. I.
Bloch referia-se ao amor livre como a mais apaixonante questão da época. Até o fim da Segunda
Guerra Mundial só a sexualidade havia sido liberada; a emancipação do amor mal começara.
Entre os pedagogos e os políticos também havia duas tendências. Alguns pedagogos, já em
1880, introduziam a educação mista, e por vezes até preconizavam, por motivos pedagógicos, um
nudismo fundamentado. Fazendo isto, opunham-se ao grande número dos que, a partir de 1890,
propunham melhoras, restringindo-se, porém, a detalhes como a prudente difusão da informação
e as palestras ocasionais, em suma, um método que ficava dentro dos limites da pedagogia e da
moral.
Até a Primeira Guerra Mundial, todos os políticos concordavam quanto à necessidade de se
fazer qualquer coisa contra as doenças venéreas, a prostituição, o nascimento de filhos naturais e
o aborto. Os progressistas queriam resolver definitivamente estes problemas por meio de uma
intervenção rápida e violenta. Seu programa continha, além do estabelecimento da igualdade do
homem e da mulher, a reforma do casamento, as leis sobre o divórcio, da mesma forma que
medidas sérias contra a exploração da mulher e da criança pelo trabalho. Para a grande maioria
dos progressistas, a supressão da proibição sexual era só uma parte da emancipação total. Se fosse
sanada a questão do emprego e dos salários, a operária já não teria necessidade de se prostituir
para comer e se vestir. Se fossem construídas habitações dignas deste nome, as crianças deixariam
de viver num meio imoral. Era preciso que os pobres aprendessem o que os ricos já sabiam: a
regulação dos nascimentos. Os conservadores, por sua vez, reclamavam um aumento na censura,
um reforço das medidas que visassem proteger a moralidade pública (o que significava combater a
contracepção); desejavam um maior número de leis que autorizassem o Estado a impor à força ao
indivíduo um modo de vida burguês.
Apesar das diferenças de pontos de vista, a política praticada em todos os países era
conservadora e liberal, e ainda o é, com exceção dos países escandinavos. O estado contentava-se
em proteger os direitos e os interesses do indivíduo e consentia, pelo menos, em criar um quadro
jurídico no interior do qual havia a possibilidade teórica de um pluralismo de ação. Numa
sociedade em que as relações concorrenciais predominavam, isto equivalia, a maior parte das
vezes, a proteger o economicamente mais favorecido, enquanto o mais fraco só era livre e igual
em teoria. Somente alguns casos particularmente monstruosos de exploração da mulher e do
adolescente foram suprimidos. O Estado só raramente agia de uma forma positiva. Sabia que
quem mais necessitava de contraceptivos eram aqueles que tinham mais dificuldade em obtê-los;
também sabia que a dificuldade de controlar os nascimentos ocasionava um aumento dos abortos,
e, no entanto, nada fez para pôr fim a esta situação. Os adolescentes estavam expostos a
numerosas tentações, sem as possibilidades de satisfação sexual habitualmente admitidas. Os
problemas sexuais, como a homossexualidade, o esclarecimento sexual, a contracepção, o aborto,
o saneamento higiênico psicossexual, psicossocial, não eram considerados nem tratados como
problemas sociais, mas individuais. Não se reconhecia o fato da própria sociedade ocidental ser
patogênica e, além disso, dificultar a cura dos seus chamados doentes sexuais. As nações
industriais tomavam, no que tange à sexualidade, as mesmas medidas paliativas das quais se
serviam para lidar com problemas sócio-econômicos, cujo objetivo era assegurar o interesse de
"cada um".

2. ENTRE AS DUAS GUERRAS MUNDIAIS

O conteúdo do problema sexual (como era chamado) modificou-se um pouco. A análise de


Reich trazia à baila mecanismos de psicologia profunda: mostrava o recalcamento dos instintos
vitais na criança, a morte da sexualidade nos adolescentes, a exploração comercial da sexualidade
e do amor, a pornografia, e falava dos milhares de pessoas psíquica e fisicamente doentes em
virtude dos tabus sexuais. Outros insistiam nas condições imorais da habitação: não fazia qualquer
sentido dar às crianças uma educação sexual se elas dormissem quatro a quatro, na mesma cama e
com toda a família, habitando o mesmo quarto (em 1920, por exemplo, 150.000 famílias viviam,
em Berlim, num só compartimento). Era igualmente desejável que o Estado suprimisse a proibição
do casamento em certas categorias sociais, como os militares, os corpos docentes (o que já havia
sido pedido no século XVIII), e alargasse as possibilidades de se contrair matrimônio. Em 1925, em
12,6 milhões de mulheres alemãs entre vinte e quarenta e cinco anos, 5,3 milhões não eram
casadas (42%).
O casamento continuava a ser fortemente criticado: "Tudo prova que a instituição do
casamento está se desmoronando. As pessoas estão consideravelmente cansadas do casamento,
porque a sua forma e o seu conteúdo já não correspondem ao indivíduo moderno" (Buchow-
Homeyer, 1928).
A atitude dos adolescentes modificou-se. Reagiram de forma negativa ao amor romântico e
passaram a se comportar mais naturalmente: já não faziam solenes declarações de amor, já não
pediam oficialmente a mão da bem-amada, já não esperavam com inquietação o seu
consentimento. Durante um certo período, a mulher passou a ser mais masculina: saia curta,
cabelo curto, quadris estreitos (uma menor ênfase na mulher como mãe) e seios achatados. O
cinema, por sua vez, exercia uma grande influência. Não só os adolescentes tinham a possibilidade
de estabelecer contatos na sala de espetáculo, mas também o grande público aprendia a conhecer
numerosos tipos de mulheres exóticas e de homens sedutores. O cinema mostrava também as
relações possíveis entre os dois sexos; ensinava a maneira de reconhecer os sintomas do beijo
fatal, de poder suscitá-lo ou recusá-lo; descobria a eloqüência dos olhos femininos, a forma de
reter, repelir ou encorajar um homem com o olhar. Logo, o cinema, combatido pelos moralistas
fanáticos, fazia desaparecer o comportamento campesino em proveito do comportamento urbano,
embora também levasse à supersimplificação e ao infantilismo. A literatura utilizada para fins de
esclarecimento sexual, porém, era muito mais infantil, romântica e desencaminhadora.
Em 1925, e ainda mais tarde, o livro de Lindsey e Evans sobre o casamento de
camaradagem havia suscitado reações. B. Lindsey, célebre juiz americano e cristão, denunciou a
maneira como os educadores e os éticos desprezavam a sua tarefa e como a juventude encontrou
por si só a solução para os seus problemas. Lindsey tinha uma total confiança na juventude, que
considerava como a mais moral e a mais responsável de todos os tempos. Uma juventude que não
transformava a liberdade concedida em libertinagem, sobretudo se a relação íntima pré-conjugal
pudesse se transformar em uma espécie de casamento de ensaio. Enquanto não houvesse filhos,
esta união podia ser dissolvida sem qualquer outra obrigação. Já se fizera um projeto semelhante
no século XVIII, que também havia malogrado.
Nos anos seguintes, a emancipação continuou a progredir. Em 1928, Forel, Ellis e Hirschfeld
fundaram a associação mundial para a reforma sexual. No mesmo ano foi publicado O Casamento
Perfeito (Die vollkommene Ehe), de Van de Velde. A obra, na qual o autor descrevia uma maior
variabilidade no relacionamento sexual entre homem e mulher, teve uma grande difusão e tentou-
se proibi-la. Por volta de 1927, Hodann reclamava a liberdade sexual total, o amor livre, o direito
ao aborto, a igüaldade dos direitos das mães solteiras. Qualquer contrato de casamento seria
supérfluo. Düring, o pedagogo especialista em sexualidade, considerava estas exigências
extremamente irreais, embora fossem realizadas em alguns países. No mesmo ano, Dora Russel
defendia "the right to be happy", isto é, uma relação sexual efêmera, sem procriação. No entanto,
quem quiser ter filhos deve continuar sexualmente fiel ao seu companheiro durante alguns anos.
Em 1929 foram publicadas três obras muito importantes: Marriage and Morais, de B. Russell, na
qual o autor, entre outras coisas, recomendava reformas fundamentais no casamento e defendia
uma revalorização do amor livre; Do What you WilI, bem corno o ensaio Fashions of love, de A.
Huxley. Enfim, D. Malmowski publicou um estudo sobre os Trobriandeses, que, ainda hoje, exerce
uma grande influência.
Depois de 1930 foi possível observar as reações às loucuras dos gay twenties. Houve um
distanciamento do pretenso biologismo, da importância unilateralmente concedida ao aspecto
fisiológico, deslocando-se a ênfase para o aspecto psicológico, como na obra de O. Schwarz,
Psicologia da Sexualidade (Psychologie der Sexualitat). Em 1930, o papa Pio XI publicou duas
encíclicas, uma sobre o casamento e a contracepção, a outra sobre a educação. Em 1925, o Dr. R.
Lierz escreveu, para os católicos, que a relação sexual no quadro do casamento não servia apenas
para a procriação, mas que era também "uma expressão de ternura". Esta ideia fora externada
demasiadamente cedo. Os católicos atacaram de novo as organizações que se ocupavam da
contracepção.
O nacional-socialismo e o fascismo representaram, para a sexualidade, um retorno ao
século XIX: nada de igualdade entre o homem e a mulher, a importância da mulher está em ser
mãe e dona de casa, nada de casamento por amor, mas em amor, deve-se ter grande número de
filhos para o Estado. Hodann foi acusado de pervertido sexual judeu. Em 1933 fechou-se o instituto
de sexologia de
Hirschfeld, em Berlim; os arquivos, únicos no mundo, foram queimados e os seus membros
aprisionados ou expulsos da Alemanha. Em 1934, Unwin publicava Sex and Culture, livro que
obteve um grande sucesso, porque o autor "provava" que uma forte repressão da sexualidade era
condição necessária para se atingir um elevado nível de civilização. Em 1939, Frank Buchmann
fundou nos Estados Unidos o "Rearmamento Moral".
Também durante este período, só alguns grupos de elite, num pequeno número de países,
puderam tirar proveito da emancipação sexual. Havia pouca preocupação com as classes
inferiores. Nos países latinos a evolução estava dezenas de anos atrasada, isto sendo justificado
com a afirmação de que tais países precisavam de uma legislação severa pois o clima quente
aumentaria a intensidade das necessidades sexuais, aliando-se a isto a natureza impulsiva das
pessoas que ali viviam. Mas, mesmo em países menos quentes, a mesma inclinação ao mal deveria
justificar a continuação de outros preceitos.

3. A "REVOLUÇÃO” SEXUAL DEPOIS DA SEGUNDA GUERRA


MUNDIAL

A terceira fase de emancipação começou depois da Segunda Guerra Mundial. Evoluiu mais
rapidamente do que as duas precedentes e, graças aos vários meios de informação, apresentou
uma difusão social muito mais ampla. Numerosas Igrejas modificaram a sua atitude e declaravam-
se favoráveis a uma prática sexual mais saudável. É aí que se pode ver a diferença entre os
protestantes progressistas e os católicos conservadores. Já durante a conferência protestante de
Lambeth em 1920 foram dados os primeiros passos para a aceitação de uma regulação racional
dos nascimentos; para a maior parte das Igrejas protestantes, esta é até recomendada, é uma
tarefa moral, o que ainda não se verifica na encíclica católica Humanae vitae, de 1968.
Em alguns países, como a Holanda, onde as condições sócioeconômicas e a concorrência
com outros grupos cristãos obrigaram os católicos a uma maior adaptação, estes aceitam um
ponto de vista progressista, às vezes ultrapassando outras seitas, que se conservam agarradas a
posições outrora conquistadas.
No entanto, nos países de tradição católica, como a Irlanda, a Espanha, Portugal, a Itália, a
Áustria e outros, s,ó alguns pequenos grupos de elite se opõem a Roma e a maioria dos fiéis ainda
obedece às diretivas do Vaticano. Estas regras não convêm às exigências de sociedades altamente
industrializadas. Como a maior parte dos países ligados à tradição católica são economicamente
menos desenvolvidos, não podem ser "modernos" ou "progressistas". Não pensamos estar
enganados ao afirmar que Paulo VI teria, sem dúvida, adotado um outro ponto de vista se o
Vaticano e o centro de gravidade da Igreja estivessem situados uma dúzia de graus para noroeste.
A situação sócio-econômica determina, em grande parte, as condições de vida, as relações sociais,
o tipo de homem, o comportamento psíquico, a concepção de vida, dos valores éticos e do
aparelho administrativo. Uma das conseqüências da evolução sócio-econômica foi o fato das
Igrejas terem pouco a pouco perdido o seu monopólio moral, mesmo nos meios não-cristãos. Mas
ainda podem desempenhar um importante papel na emancipação sexual, porque possuem o
carisma necessário para libertar aqueles que têm sentimentos de culpa e de medo do prazer. As
Igrejas, que no século passado se apresentaram como defensoras da moral sexual burguesa, estão,
por causa disso, bem situadas para favorecer uma revalorização da sexualidade.
Mas a importância das Igrejas, enquanto autoridade moral em relação aos problemas da
sexualidade, diminui. Hoje em dia informações muito mais importantes são fornecidas por saberes
específicos especializados, a partir de pontos de vista racionais e, ao mesmo tempo, se tem acesso
a indicações específicas de psiquiatras, psicólogos, biólogos, sociólogos, em suma, de cientistas,
independentes da Igreja. É preciso notar que, quando Roma ainda não havia adotado uma posição
firme quanto à contracepção, como fez na Humanae vitae, médicos, sociólogos e outros
especialistas enviaram a Roma numerosas declarações comuns, na esperança de que estas seriam
objetivamente levadas em consideração. Esta esperança parecia lógica a homens provenientes de
países muito industrializados. Mas, mesmo que tivesse sido possível à Igreja romana levá-las em
consideração (e, na situação atual, a imposição de um ponto de vista progressivo a países menos
desenvolvidos, pelos países fortemente industrializados, representaria, não só um engano, mas
também um ato de irresponsabilidade moral), não seria possível convencer os detentores do poder
em seu interior da força imperativa destas indicações. Era "lógico" que os sábios que se dirigiam ao
Vaticano sofressem uma profunda decepção, como também era "lógico" que a Igreja repelisse
estas proposições.
No entanto, a situação é dinâmica e. o sexual se encontra cada vez mais fora da esfera
ética. A época da literatura especializada em "moral sexual" terminará em breve. Somos tentados
a crer que quando, ao observar o comportamento de duas pessoas, se concede uma atenção
demasiadamente exclusiva aos aspectos puramente sexuais, adota-se um ponto de vista
hipersexual. (Que se passa exatamente? Até onde se vai? Trata-se de necking, de petting ou de
coito? O que acontece com o esperma: para onde vai?) É mais humano considerar, na sua
totalidade, a pessoa que participa das atividades. (Quem faz alguma coisa, com que intenção, quais
são as consequências, que tipo de relação mantém com o companheiro?) Embora muito
lentamente e de forma gradual, a responsabilidade com relação à criança que pode ser gerada
numa relação sexual começa a ser levada em conta: em vez da preocupação, quase exclusiva com
o esperma, do qual é preciso não desperdiçar uma única célula (quinhentos milhões em cada
ejaculação), presta-se mais atenção ao bem-estar da futura criança e da futura mãe, isto é, do ser
humano, o que significa uma humanização da moral do esperma, e, ao mesmo tempo, a
consciência de que o aspecto inter-humano do relacionamento é mais importante.
Uma outra característica desta evolução é o fato da sexualidade penetrar cada vez mais no
domínio público. Fala-se dela com menos embaraço e sua importância é, pelo menos, verbalmente
reconhecida. Às vezes até surgem queixas contra uma nova forma de tirania: quem não é um
entusiasta da sexualidade não é reconhecido como um ser completo. Existe também uma espécie
de sexualidade substituta, que consiste em, por exemplo, ler e falar sobre a sexualidade, a nudez, o
erotismo. Ao lado disso, porém, cresce o interesse pela prática.
Em certos meios católicos, alguns padres declaram abertamente que o divórcio é um dever
moral quando um casal é desunido. A legislação modifiqa-se progressivamente. A sensualidade é
mais fortemente acentuada.
Filósofos, psicossomáticos, médicos, biólogos, psicólogos, antropólogos abandonaram o
dualismo alma-corpo. A emancipação do olfato, a supressão dos tabus do tato, a aceitação do
prazer, da sensibilidade tátil, tudo isso é indício de uma nova atitude. Em pouco tempo muito se
modificou: observa-se, entre as duas últimas gerações, diferenças na maneira de sentar, deitar,
caminhar, dançar; no que diz respeito ao gosto musical, aos trajes de banho, aos esportes, aos
banhos de sol; na maneira como as pessoas se despem nas praias e como se vivência a nudez.
Existe uma nova terapia de grupo, que se baseia em contatos sensoriais entre os membros do
grupo, que se encontram nus. Nesta situação, as máscaras sociais caem, e as pessas deixam de
"representar qualquer papel”, resultando daí uma comunicação mais aberta e autêntica e uma
interação que não é tão sexual como os de fora acreditam (Psychology Today, 6, 1969).
A evolução do nu é notável. É provável que, nos próximos anos, as mulheres andem com o
peito nu. Outras partes do corpo são erotizadas, como as costas, o ventre e os ombros. O cinema
mostra progressivamente cada vez mais nu, fenômeno que tem um efeito terapêutico e
pedagógico positivo e, além disso, prova que o nu não é tão sexual como se pretendia. É sobretudo
muito importante notar que o espectador, atrás da nudez e das características sexuais primárias e
secundárias, aprende a descobrir a personalidade humana. Descobre-se igualmente que há
numerosas variações de beleza que ainda não conhecemos. Em alguns jornais observa-se uma
ampla difusão do nu, e, em 1967, apareceu até o primeiro jovem nu na publicidade. Há países nos
quais não há necessidade de dissimular os pêlos pubianos em quadros, ou de fazer com que os
modelos fotográficos dissimulem com a mão, ou com algum objeto, a zona genital. Esta evolução
faz-se, em parte, no sentido de um retorno à situação do século XVI. A cama já não é um símbolo
de perigo, encontrando-se por vezes na sala de estar. Em 1969, em Amsterdã um conhecido casal
concedeu, na cama, uma entrevista coletiva à imprensa, podendo-se ver aí também um retorno a
condições anteriores.
Observa-se também uma transformação no esclarecimento sexual. No século XVIII, quando
apoiava o sistema, era anti-sexual, conservador e repressivo. Por volta de 1890 voltou-se à tarefa
de esclarecer as crianças nos Estados Unidos; alguns anos depois, foi a vez da Europa. Este
esclarecimento tinha por objetivo lutar contra as doenças venéreas, a masturbação e a sexualidade
pré-conjugal. Apareceu depois, em 1905, um novo tipo de esclarecimento, com o médico finlandês
Max Oker-Blom, que publicou vários textos e promoveu a introdução da higiene e da pedagogia
sexual na Finlândia. O seu método parecia-se muito com o de Helena Stöckers e de Mana
Lischenewska-Spandau, que preconizavam uma educação informativa e positiva. Certas
autoridades, como Freud e Krauss, já haviam, há muito tempo, mostrado que o efeito desse tipo
de informação no comportamento não era muito grande. (No entanto, isto não impede que,
sessenta anos depois, ainda se espere muito dele, enquanto seus adversários receiam o pior.)
Depois da Primeira Guerra Mundial, alguns espíritos esclarecidos compreenderam que, para
transformar o esclarecimento em educação sexual, seria necessário inseri-la na educação mista.
Isto tendo falhado, pensou-se que a educação sexual não tinha probabilidade de sucesso, a não ser
que fosse integrada na educação do homem total. A sexualidade não é um aspecto separado da
personalidade.
Na quarta fase, redescobriu-se que numerosíssimas pessoas, com boa cultura geral, se
defrontavam com dificuldades especificamente sexuais. Aperfeiçoaram-se terapias individuais ou
grupais, as quais mostraram que, para muitos, as dificuldades tinham a sua origem na sociedade.
Por conseqüência, impunham-se transformações sociais.
No entanto, e porque tais assuntos nunca eram tratados dentro da família, o
esclarecimento foi relegado a segundo plano na escola. Fundaram-se associações e desenvolveu-se
toda uma indústria esclarecedora, compreendendo livros, slides, manequins de gesso, filmes,
discos, emissões radiofônicas e televisadas, conferências e congressos. Grande parte da
sensibilidade sexual desapareceu durante o século XX. Como não se ousava mostrar mais, a
importância do esclarecimento verbal e individual diminuiu; começou-se a distribuir a informação
em grupo, e até em grupos mistos, falando-se menos dos animais e das plantas e mais dos
homens. Em textos recentemente publicados, até o modelo da sexualidade pro-criadora foi
substituído por um modelo em que a sexualidade é considerada como uma função prazerosa.
Antes, a informação era dada por um médico, pelo diretor de uma escola ou por outra autoridade
estranha que comunicava às crianças algumas prescrições mais necessárias durante uma ou duas
entrevistas; reconheceu-se hoje a necessidade de fazer com que o sexual faça parte do diálogo de
uma forma despercebida, mas não de maneira autoritária (em que uma única pessoa dá as
informações). Tal situação seria alcançada numa conversa em grupo onde os problemas atuais dos
adolescentes também sejam tratados. O fato de ser permitido falar da sexualidade marca a
admissão desta na esfera do consciente e significa também uma elevação do seu status. É
necessário dar o esclarecimento para que nos libertemos dele; se pudermos educar de outro modo
uma só geração, numerosos problemas encontrarão sua solução.
No entanto, pensam muitos que tais iniciativas são insuficientes e que jamais se
conseguirão resolver os verdadeiros problemas unicamente através de conversas francas. As
relações culturais deveriam ser modificadas a fim de tornar desnecessária a maior parte da ajuda
artificial. Em vez de contemplar desenhos, as crianças e os adolescentes deveriam ter a
possibilidade não apenas de ver o nu, mas também tocá-lo. É importante que se livrem do
sentimento de culpa com relação à sexualidade; deveriam aprender a satisfazer-se, livres de toda
culpa. Deveriam ter a possibilidade de serem sexuais, em vez de ouvirem continuamente como
aquilo há de ser belo, "mais tarde". Este fato não reduziria a importância de uma discussão mais
sistemática na escola, pois esta também trabalha fatos dessemelhantes e disjuntos, como o tempo
e o clima, num todo lógico. Consequentemente, a educação sexual, no lugar de uma significação
repressiva, teria uma significação real e atual, não só no que diz respeito à descrição verbal, como
também no comportamento real; esta forma de educação seria também a melhor preparação para
o casamento e para qualquer outra forma de vida em comum. A nova tendência exprime-se
através das obras de esclarecimento dinamarquesas ou suecas, que não evitam qualquer
problema. Ensinam aos jovens as melhores técnicas para se masturbarem, explicam o papel sexual
do clitóris, dão todas as informações possíveis sobre a contracepção, em suma, ajudam o
adolescente a fazer uma vida sexual satisfatória, não "mais tarde", mas "agora".
Conceder ao adolescente o direito à sexualidade implica a existência de uma infra-
estrutura favorável à sexualidade e ao amor. Observa-se uma evolução quando se passa da
pedagogia às transformações de estrutura. A mesma evolução é visível quando são abordados
problemas como a prostitução, a homossexualidade, a contracepção, o aborto e a emancipação da
mulher. Antigamente as pessoas se preocupavam em melhorar simples detalhes; hoje aspira-se a
transformações que excluam estes problemas ou os resolvam totalmente. Para isso impõem-se
transformações de estrutura fundamentais, associadas a ações sociais e políticas.

4. TIPOLOGIA DAS "REVOLUÇÕES" SEXUAIS

Segundo o uso corrente, pode-se realmente chamar alguns fenômenos de revolucionários:


as minissaias, os homens e as mulheres nus na tela, que o são em relação à época em que se
cobria tudo o mais possível. É uma verdadeira revolução ou apenas uma emancipação da
sexualidade? Os otimistas que acham magnífico tudo o que hoje se conseguiu responderão
afirmativamente; outros reagirão com ceticismo e falarão de uma emancipação aparente. O
julgamento sobre a revolução de hoje, porém, não pode depender do posicionamento psíquico
individual, devendo apoiar-se numa análise exata e numa interpretação consciente dos fatos.
Qualquer juízo depende das diferentes atitudes antropológicas e filosóficas e das concepções que
se tem da sexualidade e da sociedade e que vão diferir de grupo para grupo e de indivíduo para
indivíduo. Logo, ê inevitável que, em conseqüência de premissas diversas, apareçam juízos
diferentes e às vezes contraditórios. Assim, alguns consideram necessário ampliar a emancipação
sexual a todas as camadas da sociedade; outros acham melhor o aumento da qualidade e da
variedade das práticas sexuais da elite. A esta oposição qualidade-quantidade acrescenta-se a
oposição entre os pontos de vista exclusivamente-sexual e igualmente-sexual. Os representantes
da primeira tendência julgarão importante a emancipação do nu, a democratização da pornografia
e o emprego freqüente de palavras grosseiras: quanto mais tabus são vencidos mais a "revolução"
lhes parecerá radical. A outra tendência é tentada a responder que não se pode falar de uma
revolução, nem mesmo de uma emancipação, enquanto as trasformações forem apenas
superficiais. Segundo eles, uma verdadeira revolução não pode ser igualada a uma extensão de
pele nua, mostrada abertamente. De que valem os happenings, frente a fenômenos sócio-
psiquiátricos como as perturbações tão freqüentes da potência e do orgasmo?
Serão o parto doloroso, a menstruação dolorosa outras tantas provas de rejeição da
sexualidade na sociedade ocidental? Seria lícito falar de emancipação sexual enquanto não se
reconhecer o que já se conhecia antes do século XVIII, isto é, que os adolescentes e as mulheres
têm uma maior capacidade sexual ou maiores necessidades sexuais?
Estes exemplos mostram que seria possível empreender uma classificação tipológica do
que os indivíduos e os grupos entendem por "emancipação da sexualidade". Uma tal tipologia
poderia igualmente aplicar-se a outros setores, como pedagogia. Poderia dal resultar uma
coerência entre a imagem do homem e a da sociedade (por exemplo, o reconhecimento de que o
homem vive para gozar) e a visão da sexualidade (por exemplo, o fato de se conceber que todos
podem sentir, sem limites, o prazer sexual). As normas éticas seguem logicamente estas premissas
(por exemplo, o que dá prazer é bom). A concepção de tudo aquilo que gostaríamos de chamar
situação-problema (por exemplo, existe um excesso de angústia com relação ao prazer) é
determinada a partir do que já foi visto. Portanto, ações deveriam ser empreendidas (por exemplo,
visando o incremento do prazer) a fim de combater as situações problemáticas. Se partirmos de
uma outra imagem do homem, representado, por exemplo, como um ser fraco, inclinado ao mal,
facilmente vítima dos seus vícios e da libertinagem, chegaremos provavelmente a outras
conclusões e a outras pretensões. A sexualidade será considerada como um prazer extremamente
perigoso e ser-se-á torçado a adotar normas restritivas e a observar uma vigilância muito estrita
sobre a pureza moral do indivíduo e da coletividade.
Não é fácil responder à pergunta de ser ou não possível falar de uma revolução. É
necessário distinguir diversos níveis:
a) o nível dos valores teóricos que a sociedade ocidental professa abertamente, que são
objeto de consenso geral e sobre os quais se chama expressamente a atenção nas publicações ou
nos juízos oficiais ou oficiosos;
b) os níveis dos valores reais e concretos, implícitos nas ações políticas, jurídicas, culturais,
pedagógicas e outras;
c)o nível do comportamento real interior e exterior.
Só uma análise destes três níveis poderia fornecer uma imagem exata. Ela, porém, não
pode ser feita, porque não dispomos senão de dados insuficientes (estatísticos, etc.) e, enfim,
porque nas sociedades industriais ocidentais nos defrontamos, teoricamente, com um pluralismo
de ações e valores que tornam impossível a determinação exata do que lhes é característico. As
nossas declarações ficarão vagas, gerais, intuitivas e discutíveis. No entanto, para que certos
pontos da situação atual sejam melhor compreendidos, partiremos de três correntes, para as quais
convergem numerosos fatos ligados à emancipação da sexualidade, do casamento e da família.
Conservaremos esta divisão, embora nem todos os elementos entrem precisamente numa das três
correntes.

5. REFORMISMO SEXUAL

Foi ainda a moral sexual burguesa que deu o tom depois da Segunda Guerra Mundial.
Reconhecemo-la na moral corrente, na Constituição da maior parte das nações ocidentais, bem
como nos juízos de autoridades morais, religiosas, políticas e outras. O sistema de valores burguês
também está contido nas infra-estruturas atuais que permitem a adoção de qualquer tipo de
comportamento. Defrontamo-nos, por um lado, com um reconhecimento teórico da liberdade
individual e, por outro lado, com um dirigismo moral. O Estado comporta-se, em todas as suas
instituições, como um censor encarregado de controlar a moralidade de todos. Tantas pessoas se
preocupam com a decência "moral'' (isto é, a estrita obediência às regrasiburguesas) que isto
parece quase patológico. É como se a comunidade estivesse alerta para que ninguém saia do bom
caminho, como se ela não pudesse suportar que cada um procure sua felicidade da maneira que
bem lhe convier. A sociedade esquadrinha as bibliotecas, mede o comprimento das saias, dá sua
opinião sobre o penteado, critica o corte dos vestidos e determina o que pode encantar o burguês,
vigia todas as relações entre as pessoas. Ataca as pessoas, difamando-as, arrasta-as perante a
justiça, distribui castigos e penas de prisão, oprime, conduz as pessoas ao desespero ou ao suicídio,
e tudo isto a pretexto de proteger a moralidade. O Estado justifica quase sempre esta intolerância
com argumentos morais. Não se vê que estes processos são contrários ao dogma cristão, que são
tirânicos, imorais e sobretudo supérfluos.
O sistema de valores que se defende é o conjunto burguês tradicional formado pelo sexo, o
amor, a procriação e o casamento. A partir destes quatro elementos podem-se fazer combinações.
No entanto, verificar-se-á que nenhuma combinação será socialmente aceita desde que falte um
dos elementos. Condena-se a sexualidade enquanto prazer sui generis: é necessário escondê-la
atrás de alguma outra coisa. Mas, fora dos filmes e dos romances, também se aceita mal a
sexualidade associada ao amor, não apenas nas relações homossexuais, como também nas
relações heterossexuais. A sexualidade ligada à procriação engendra o filho natural e a mãe
solteira, ambos discriminados. O casamento em que o amor e a sexualidade coexistem sem
procriação é igualmente reprovado: ter filhos faz parte do casamento. Quem não tem filhos é
suspeito de esterilidade e quem declaradamente não quer ter filhos é considerado como associai e
egoísta, alguém que se utiliza da sociedade e nada faz pelo seu desenvolvimento. O número de
casamentos cresce constantemente. Sobre os que não se casam paira logo a suspeita de uma
doença incurável, um secreto desgosto de amor ou de homossexualidade. Quem confessa
francamente preferir não se casar é tido por associai. A imposição social e infra-estrutural do
casamento é tão forte que, na maior parte dos países ocidentais, milhares de homossexuais
acabam por se casar, o que torna o homem, a mulher, e às vezes tambéln os filhos, bastante
infelizes. O amor, como afirmam Giese e Schmidt em seu livro Sexualidade dos Estudantes
(Studenten-Sexualität), passou a ser um novo meio de repressão. Também as pesquisas de Hertoft
na Dinamarca e Zetterberg na Suécia, assim como Sex in Holland mostram claramente que a
maiora da população agarra-se a um ideal romântico e irreal do amor, sugerido pela imprensa e
pelo cinema. A crescente aprovação verbal da sexualidade perde grande parte de sua força quando
se constata a restrição da sexualidade ao âmbito do casamento monogâmico. Apesar de tudo o
que se escreve sobre a pretensa revolução sexual, a maioria da população sexualmente madura
continua à margem de uma vida sexual aprovada pela sociedade: as pessoas idosas, os solteiros, os
divorciados, os viúvos, os homossexuais, os prisioneiros, os marinheiros e os portadores de defeito
físico. Além disso, existe um certo número de indivíduos que não encontram no casamento
qualquer possibilidade de atividade sexual ou apenas possibilidades pouco satisfatórias.
Nos países em que a evolução é um pouco mais rápida, este sistema moral sofreu uma
adaptação que conserva intacto o conjunto dos quatro elementos: algumas exigências tornam-se
menos estritas, passa-se a tolerar os casos de exceção e os limites do que é permitido são
ampliados. Tolera-se às vezes que dois jovens tenham relações sexuais pré-conjugais desde que
estejam noivos. Em certos casos particulares o divórcio é tolerado, não tanto porque pode ser
benéfico aos cônjuges, mas por ser um meio através do qual é possível retornar ao caminho
correto, isto é, conhecer um casamento feliz. Um divórcio, portanto, reflete uma grande
valorização do casamento, e não, como seria de se supor, o contrário. O emprego de métodos
anticoncepcionais, antes inteiramente interditado, é mais amplamente tolerado entre pessoas
casadas porque permite uma atividade sexual mais satisfatória, que, por sua vez, é considerada
como um fator que contribui para o sucesso do casamento e torna as relações extraconjugais
menos numerosas. Pela mesma razão, permite-se a difusão de informações referentes à grande
variedade das técnicas do coito, como é o caso do importante (e puritano) livro dinamarquês
Stillinger I, de Mogens Toft (com gravuras de John Fowlie). A sexualidade extraconjugal não
significa forçosamente o fim de um casamento, pelo menos quando tudo não passa de uma
aventura. Quanto mais a sério se leva uma relação extraconjugal, maior se torna a reprovação
moral, o que é compreensível, porque a união, neste caso, é mais comprometedora. A
masturbação nos jovens é um pouco mais tolerada do que antes, porque passou-se a dar um valor
maior às reivindicações de higiene física e psíquica. O período que precede o casamento continua a
ser uma fase de espera e de preparação de domínio de si e de respeito pelo outro, que deveria
manifestar-se por uma renúncia a qualquer contato "íntimo''. A estrutura do casamento e da
sociedade continua a ser autoritária e patriarcal, mesmo quando o homem afirma a igualdade
entre os sexos. O papel natural da mulher, mesmo quando lhe é permitido se sentir psiquicamente
emancipada, continua sendo o de mãe e dona-de-casa.
A sociedade continua a ser uma sociedade de homens. Os homens promulgam leis em
domínios que dizem também respeito às mulheres, e às vezes só a elas, tais como o aborto, o
casamento, o divórcio, os filhos naturais, etc. Muitas vezes os homens justificam sua atitude
pretendendo que, de um modo geral, a "verdadeira" mulher não deseja qualquer emancipação;
uma mulher que quer se emancipar já tem acesso, só por este fato, a toda espécie de
possibilidades. Esquecem que tanto a infra-estrutura quanto a supra-estrutura obrigam a mulher a
casar e ter filhos ou a ocupar postos social, econômica, política e culturalmente inferiores. Já não
se ousa manifestar a mesma severidade de antes para com a homossexualidade. Palavras tais
como pecado, perversão, doença, comportamento contra a natureza parecem ter dado lugar a
expressões "neutras", tais como desvio. De fato, a maior parte das pessoas é incomodada pela
existência da homossexualidade; tolera-se o homossexual, mas não a homossexualidade. No
fundo, continua-se a reprovar este tipo de fenômeno a partir da moral do esperma e da
procriação.
O casamento e a família são a base, os pilares, o núcleo desta sociedade. Podemos lê-lo em
todas as Constituições, tanto nas dos países do Ocidente como nas dos países do Leste, e também
na Declaração dos Direitos do Homem. Quase todas as nações fazem uma política familiar. Quem
não se casa não pode ocupar certos postos, paga impostos fiscais mais pesados e não tem acesso
às misteriosas qualidades que tornam uma pessoa casada mais completa, mais adulta e mais
consciente das suas responsabilidades. Mas, se estes celibatários pertencem ao clero, adquirem
um status especial, superior ao das pessoas casadas. A família torna as pessoas menos egoístas.
Sem família, todos satisfariam desenfreadamente os seus instintos e cairiam na preguiça, porque já
não lhes seria necessário trabalhar para a descendência.
Chamamos a esta tendência reformismo sexual ou revisionismo. Não é um juízo ético, mas
antes uma classificação. É importante ver claramente que o modelo burguês existe sempre, com
pequenas variantes. Na verdade, tem-se a impressão de que ocorreram transformações essenciais.
Alguns países industriais do Ocidente tornaram-se verdadeiros simpósios que tratam do aborto, da
homossexualidade, do esclarecimento sexual, das relações sexuais pré-conjugais, do divórcio, do
casamento e da família, da pornografia, do sexo grupal, etc. Mas, ainda que estas polêmicas
determinem algumas modificações nas atitudes e nas leis, o modo de comportamento continua
quase imutável: de estudos recentes se pode concluir que ainda existe uma grande distância entre
o progressismo verbal e o comportamento real. É dada pouca atenção, porem, à realização das
mudanças infra-estruturais necessárias a uma nova vivência da sexualidade e do amor, e o Estado
burguês não contribuirá para isso.
Por outras razões, ficamos igualmente com a impressão de termos entrado numa nova era.
É muito grande a curiosidade por novas formas de coabitação, e a imprensa concede a este
problema uma grande atenção. Assim, nasce uma vez mais a ilusão de se tornarem possíveis
muitas coisas, se não todas. Devemos acrescentar que nunca se utilizou tanto o nu na publicidade.
Isto suscita uma sexualidade aparente e superficial, considerada por muitos como a tão esperada
emancipação da sexualidade. A sexualidade torna-se um artigo de consumo barato, agradável e
útil. Não seria falso falar aqui de uma tolerância repressiva. Porque a ilusão de liberdade sexual
não concorda com a infra-estrutura em que a moral burguesa está baseada. As características da
sexualidade assemelham-se às da sociedade. É por isso que se tolera a exploração comercial da
necessidade sexual, enquanto se priva a maioria da população, capaz de ter uma atividade sexual,
das reais possibilidades de exercer as suas capacidades. A sociedade ainda explora os homens;
continua a ser uma sociedade de competição, androcêntrica, prostituída e patogênica. O psiquiatra
inglês R. D. Laing afirma: "Os homens não são o que estão destinados a sê-lo por natureza, mas o
que a sociedade faz deles; os sentimentos nobres são igualmente atacados, amputados,
deformados, unicamente com o objetivo de tornar os homens aptos para o comércio com o
mundo, da mesma forma que os mendigos fazem dos seus filhos enfermos e os deformam para
torná-los aptos à sua situação futura".
Os pais criam, desde a fase pre-verbal, as condições da transformação do corpo, que, de
órgão de prazer, se torna instrumento de trabalho. Por amor aos filhos, não resta aos pais senão
prepará-los para a moral de concorrência e de capacidade burguesa. Produzir, ter rendimento,
fazer carreira, chegar, eis os reais valores que a sociedade nos impõe. O resto é metamoral. Disso
resulta que muitas pessoas já não têm a possibilidade, nem mesmo a ideia, do ser feliz, do bem
estar psíquico, físico e social. As condições de uma aceitação da sexualidade não existem: o
reconhecimento da sua própria sexualidade, o prazer, o investimento de tempo e de energia e a
possibilidade de alimentar relações afetivas com outras pessoas.
É necessário ir ainda mais longe. Seja qual for o sistema de valores, vemos que o sistema
aplicado na prática é completamente diferente. O moralista que objetivamente pensa não poder
impedir-se de julgar a moral tradicional leviana, imoral, desumana e contrária ao dogma cristão.
Os países do Ocidente pretendem ter um grande respeito pela vida, mas toleram que os pais se
comportem de uma forma cruel com a vida dos seus filhos, trazendo ao mundo um grande número
de crianças não desejadas. Concebendo os filhos não desejados, cometem-se no leito conjugal
mais assassinatos do que na guerra. Com fundamento num cálculo mínimo, pode-se considerar
como certo que na Inglaterra, em um ano, nasceram 150.000 crianças que não eram
absolutamente desejadas e que, desde o seu nascimento, foram moral e fisicamente desprezadas
pelos pais. Nos Países Baixos 120 crianças são mortas anualmente por seus pais. No mesmo espaço
de tempo 12.000 crianças são levadas a tratamento médico porque foram maltratadas pelos pais;
uma grande parte dessas crianças carrega o prejuízo pelo resto da vida. As estatísticas sobre o
aborto mostram também com que leviandade se dá a vida a seres humanos. No entanto, lê-se que
em geral adotou-se a contracepção. As estatísticas demonstram que apenas um quinto da
população utiliza métodos anticoncepcionais de confiança e que não provocam perturbações.
Nas sociedades industriais do Ocidente fala-se muito em liberdade do indivíduo, mas, em
nome desta pretensa liberdade, tolera-se que os pais tratem os filhos de uma forma irresponsável,
como se a sociedade não tivesse o dever de proteger os direitos destes seres fracos; como se não
tivesse a obrigação de impedir o nascimento de crianças que, com certeza, estão destinadas a uma
existência infeliz. A criança tem direito a ter pais e um meio feliz. Isto significa uma difusão tão
larga quanto possível da contracepção, da informação sobre estes meios e a autorização de
abortar por respeito à criança, a realização de uma mudança de posicionamento, a fim de que a
compulsão de colocar crianças no mundo se torne menor. As mulheres deveriam ter a
possibilidade de se afirmarem de outro modo que não somente através de parir e educar crianças.
Também nesse caso é estranho que se reconheça teoricamente a sua liberdade individual e se dê
pouca atenção às mudanças na infra-estrutura necessária para tornar a emancipação uma
possibilidade real. Existem numerosas organizações para a proteção dos animais e das plantas e
para a difusão da cultura, mas ninguém se preocupa muito com problemas vitais. Procede-se como
se a raça humana estivesse a ponto de se extinguir, como se fosse preciso procriar a pleno
rendimento, sem consideração pela quantidade nem pela qualidade. Quem dá filhos ao mundo
recebe um prêmio. Quem impede o nascimento de uma criança não desejada é metido na prisão.
Metade da população, quer dizer, as mulheres, é mantida numa situação de inferioridade.
A juventude também é prisioneira das condições que o poder lhe impõe. Mas os moralistas e o
Estado preocupam-se, como juizes da moral, com possíveis implicações éticas de pequenas partes
de pele nua, com a periculosidade moral de alguns quadrinhos excitantes e também com o
relacionamento sexual inofensivo. A acuidade da visão ética parece estar altamente
comprometida. Observamos um emprego pervertido dos conceitos de moralidade e de boa
educação, uma interpretação desumana do respeito pela vida e uma utilização escabrosa do
conceito de "liberdade para o indivíduo". Poder-se-ia continuar ainda por muito tempo a análise da
utilização dos conceitos morais, dos quais as sociedades industriais se mostram tão orgulhosas.
Continuamente se tem a impressão de que o reconhecimento destes altos valores preenche uma
função tranqüilizante, de que os valores morais teóricos atuam como narcóticos, enquanto os
valores reais são determinados por necessidades econômicas, como o aumento da produção, o
ganho de dinheiro e a concorrência, quer dizer, por valores desumanos ou anti-humanos.

6. A REVOLUÇÃO EXCLUSIVAMENTE SEXUAL

Pode-se falar de uma verdadeira revolução sexual? O esclarecimento sexual progride


continuamente, o ensino misto foi ou está instaurado, os pais castigam menos os filhos quando, os
surpreendem em brincadeiras sexuais, fala-se com maior franqueza na imprensa e cada qual
discute mais livremente a sexualidade. Também se diz que as relações sexuais pré-conjugais
seriam mais freqüentes e todos falam da pílula sem o menor acanhamento. Até a atitude para com
os homossexuais teria se tornado mais tolerante. Antes da Segunda Guerra Mundial ainda se
vendiam aparelhos para reprimir a masturbação; hoje encontram-se à venda aparelhos elétricos
com os quais o indivíduo pode satisfazer-se confortavelmente. Também se considera como
revolucionário que os rapazes andem com os cabelos tão compridos como os das moças e que
estas usem calças como os rapazes.
Em 1969 realizou-se em Copenhague a primeira feira do erotismo. O erotismo vende mais
que o queijo suíço. São colocadas em circulação dúzias de livros sobre as técnicas coitais e outras
formas de contatos sexuais. Em certos países encontram-se revistas destinadas aos que procuram
formas especiais de contato sexual. As mulheres usam mais a roupa íntima sexy, vestidos mais
ousados. Do maiô inteiro passou-se ao maiô muito decotado, ao biquíni, ao monoquíni, e em breve
se passará ao noquíni. Consideram-se como resultado da revolução os sex-shows, o sexo em grupo,
a troca de companheiros, a prática das idéias de Lars Ullerstam sobre as chamadas perversões, a
democratização do erotismo, a criação de clubes para pkiyboys, etc. Coabita-se sem casamento,
contraem-se casamentos de grupo. Devemos casar-nos atualmente? No caso afirmativo, é
preferível que seja o mais tarde possível. Primeiro, trata-se de aproveitar a vida. O casamento e a
família já não despertam tanta inveja: as pessoas casadas não ficam muitas vezes decepcionadas e
sem vontade de viver? Não é verdade que muitas mulheres são amargas, portanto, más mães e
amantes frígidas? E que dizer de todos os que enganam a mulher, mas continuam casados por uma
questão de conveniência?
No grupo de adeptos da revolução exclusivamente sexual abandona se a moral tradicional.
Esta revolução resulta da seguinte observação: o sexo e a procriação não têm praticamente nada
em comum. Kinsey já havia observado que em cada 1.000 coitos apenas um leva à fecundação e,
segundo Zetterberg, na Suécia, um em cada 1.100. Há muito tempo os homens se comportam
realmente como se o sexo e a procriação não tivessem grande coisa em comum, mas não
suspeitam da importância da modificação que isto significa na concepção da sexualidade. Se
abandonamos o modelo vitoriano, precisaremos reconhecer a sexualidade da criança e da mulher
após a menopausa e renunciar também ao primado dos órgãos genitais, do coito e do orgasmo.
Concede-se à totalidade do corpo um caráter sexual erótico: logo, a sexualidade é menos genital,
menos exclusivamente coital. Pelo menos, não unicamente o tipo de relação na qual a mulher fica
embaixo e o homem em cima. O prelúdio e o jogo posterior têm uma grande importância. A
extrema polarização entre os dois sexos, a antítese entre relações hetero e homossexuais, ambas
perdem a antiga força. É verdade que se pertence genitalmente a um sexo; mas esta diferenciação
dos sexos já não pode obrigar a que nos limitemos a um só papel. A disposição bissexual do
homem, o gosto pelos contatos eróticos e sexuais não são exclusivamente determinados pelo
primado genital. Um ser humano exclusivamente heterossexual é tão complexado, frustrado,
limitado, como uma pessoa exclusivamente homossexual. Só é contrário à natureza o que não se
pode fazer tecnicamente. A perversidade não está nos atos, mas no cérebro. Por que havemos de
esperar pelo casamento para ter uma atividade sexual, quando a vida é tão curta? Por que
primeiro o amor e depois o sexo? Não seria preferível, para o amor, inverter a ordem? A castidade
é considerada como uma atitude estranha, uma lacuna, semelhante à desnutrição. Seria
necessário criar para todas as pessoas um bem-estar em que cada qual pudesse exprimir as suas
necessidades particulares, que os outros, segundo a moral do Sermão da Montanha, poderiam
aprovar ou não.
Qual é a importância do grupo dos partidários da revolução exclusivamente sexual? Se
considerarmos a atenção que lhes é concedida, parece muito grande. São numerosas as pessoas
que acreditam ser a Suécia um país em que se vive o dia-a-dia sexualmente livre (o estudo de
Zetterberg prova o contrário). Isto só é verdade para alguns milhares de homens em todo o mundo
ocidental; recrutam-se principalmente entre os intelectuais. Graças a uma posição independente, e
à racionalidade, podem viver corno bem entendem. A expansão do setor terciário, que implica um
número cada vez maior de profissões independentes, o grau crescente de urbanização, o aumento
do tempo dedicado ao lazer e a expansão de um saber objetivo vão ativar a difusão deste novo
modo de comportamento.
Como é que este subgrupo julga a si mesmo? Consideía-se como um núcleo de precursores
de um modo de vida que, dentro de dez ou vinte anos, será seguido pelos outros. Para alguns
deles, esta revolução exclusivamente sexual é um fim em si; querem realizar completamente a sua
liberdade individual. Para outros, a revolução sexual é um meio de concretizar a revolução social.
Graças à emancipação sexual, todo o indivíduo seria progressivamente libertado. Aquele que
ignora a autoridade da moral sexual, que tem a coragem de pensar e viver de uma forma crítica e
independente, ajudará este movimento de emancipação a atingir esferas cada vez mais vastas, até
ao domínio social e político. A sexualidade é um trampolim para a luta política. É preciso
acrescentar que o homem sexualmente livre está menos submetido. Encontram-se estas
concepções nos grupos de esquerda, que se referem às teorias de W. Reich, de R. Reiche e ainda
outros.
Contra o grupo dos adeptos da revolução exclusivamente sexual pode-se dizer, antes de
mais nada, que o seu comportamento difere pouco do comportamento dos liberais do século XIX;
exceto pelo fato de criarem, mais conscientemente, mais francamente e por grupos mais vastos,
uma nova forma, desta vez gratuita, de bordéis do tipo burguês. Em segundo lugar, também se
pode criticar a atitude aristocrática de numerosos membros deste grupo, que reclamam mais
liberdade para si, mas raramente se preocupam com o bem-estar da "massa". Neste sentido, pode-
se qualificar o seu comportamento de individualista, porque o estado de prosperidade de que
falam não seria mais do que a realização do velho princípio liberal da free enterprise, do laissez-
faire, do laissez-passer, no plano sexual: a atividade sexual não deve ser atingida por nenhuma lei e
cada qual deve poder realizar-se. No entanto, isto significa apenas a exploração do mais fraco. Em
terceiro lugar, pode-se notar que uma maior liberdade sexual não determina forçosamente uma
transformação estrutural da sociedade: regimes políticos autoritários deram por vezes ao povo
toda a liberdade no domínio sexual, para desviar a sua atenção e a sua energia de problemas mais
importantes. Desde que se abandone o clube "livre" dos playboys, ou dos homossexuais,
encontramo-nos de novo na sociedade não-livre. É, portanto, perfeitamente possível formar
pequenas ilhotas de liberdade que tornam mais suportável a ausência de liberdade no exterior
dessas ilhotas.
Verifica-se a mesma coisa quando homens progressistas vivem, durante os fins-de-semana
ou as férias, segundo uma moral diferente da de todos os dias: ainda aqui a "liberdade por algum
tempo" faz durar a alienação. (Mas se pode colocar a pergunta se o alargamento do estado de
exceção não minaria todo o sistema.) Em quarto lugar, pode-se dizer que a maior parte dos
pretensos progressistas são-no por certo nos seus discursos, mas o seu comportamento deixa
transparecer muito pouco das transformações fundamentais. Ou então reconhecem para si
liberdades que não concedem a seu cônjuge. Afirma-se que as moças que vivem na promiscuidade
procuram, na realidade e à sua maneira, um marido. Também se diz que os libertinos anárquicos
"voltam a cair", mais cedo ou mais tarde, no casamento, que a sua atitude antiburguesa é uma
nova forma de burguesia, que existe nos seus sex-groups uma nova forma de tirania, por exemplo,
no domínio que exercem os que se declaram mais potentes e os que têm a coragem de fumar
substâncias mais perigosas. Afirmam alguns psiquiatras que muitas pessoas "livres" têm
inquietações a propósito da sua potência e do orgasmo e não são tão livres quanto dizem. Faremos
uma quinta observação crítica: do mesmo modo que os homens do século XIX, este grupo sofre de
obsessão sexual, obsessão positiva, mas igualmente fanática e limitada. A diferença entre
numerosos escritos ditos pornográficos e obras conservadoras, morais e teológicas ou
pedagógicas, não é muito grande: são hipersexuais, irreais e excêntricos. O humor que nos permite
conservar as nossas distâncias em relação ao objeto é coisa que não existe. Em ambos se encontra
um caráter sagrado, místico, e um espírito missionário.O que nos fica desta crítica? Nos grupos que
mencionamos há sempre, além dos que seguem o movimento, pioneiros que suscitam saudáveis
inovações e que mostram tudo o que já é possível no período que precede as inovações. Não
podemos censurar-lhes esta sexualização superficial, pois se pergunta: porque não se teria direito
a todas as satisfações, em todos os planos, tanto superficiais como profundos? O sexo de consumo
é assim tão desconcertante? Não pode o homem considerar também a mulher como um objeto de
prazer e inversamente? Se alguém condena o interesse concedido a um só objeto (neste caso à
sexualidade), não será então preciso, segundo a mesma norma, condenar qualquer outro
exclusivo, tanto o do homem de ciência como o do filatelista? Não destruíram estes progressistas o
rígido papel do homem e da mulher (a mulher pode igualmente tomar iniciativas)? Não erotizaram
o corpo inteiro? Não arrancaram à sexualidade a aula do pecado, da culpa e da vergonha, dando
uma importância essencial aos aspectos atraentes e lúdicos e acentuando o aspecto prazer?
Graças a eles, a juventude compreendeu que a sexualidade não deve ser forçosamente um
problema, que é menos misteriosa e menos importante do que o pretendem os manuais sobre o
casamento. Não foram também estes grupos que voltaram a dar um lugar de honra ao orgasmo
clitoriano na mulher, o que contribuiu para a felicidade de muitas delas? Não mostraram a maior
capacidade sexual dos jovens e da mulher? Por fim, segundo parece, fazem tábula rasa da moral da
procriação e da moral androcêntrica.

7. A EMANCIPAÇÃO DO HOMEM E DA SOCIEDADE

Uma terceira corrente considera que é preciso pensar a sexualidade em relação com o
homem total e com a sociedade. Aceita se finalmente a sexualidade como se aceitam outras
manifestações da existência. A concepção da sexualidade está intimamente ligada ao tipo de
sociedade. Logo, não faz muito sentido agir apenas no domínio sexual e não considerar os homens
em sua totalidade. Da mesma forma, é errado ater se a influências individuais e deixar de lado as
influências sociais. Problemas como o aborto, a homossexualidade, a emancipação da mulher, o
emprego de métodos anticoncepcionais mais seguros são, antes de mais nada, problemas sociais,
isto é, políticos. É falso acreditar que se poderia produzir grandes transformações atuando apenas
nos planos da pedagogia e da moral, a realidade nos ensina coisas melhores. Se é exato que a
síndrome anti-sexual deve ser tida como conseqüência de uma transformação nas condições
sociais e econômicas, como mostramos nesse livro, deveria daí concluir-se que uma nova forma de
experiência sexual só se pode realizar graças a transformações igualmente profundas. Em parte, o
processo já começou. Passamos da era pré-industrial à era industrial e temos à vista a era pós-
industrial. É, no entanto, improvável que as transformações fundamentais necessárias à solução
dos problemas importantes ocorram automaticamente. Mostramos por várias vezes que o
homem, para quem o trabalho hoje já não é uma necessidade absoluta, poderia começar a
satisfazer outras necessidades. Mas certas forças visam despertar necessidades superficiais, que
correm o risco de perpetuar o estado de alienação. A diferença entre a Suécia e a Alemanha
parece grande mas não é essencial.
Os adeptos da revolução exclusivamente sexual fazem tudo para destruir, um após outro,
todos os tabus sexuais. Mas esquecem que não existem apenas tabus sexuais: os tabus do
dinheiro, do poder, da morte são atualmente maiores que o tabu sexual. O burguês joga às
escondidas, não apenas no domínio da sexualidade, mas também em outros setores da existência.
Praticamente nunca se mostra tal como é. Sem dúvida, para o burguês é menos penoso mostrar-se
nu do que não poder dominar os seus sentimentos e as suas intenções mais íntimas. Com a
emancipação da sexualidade, muitas pessoas pensaram que os problemas sexuais são apenas uma
máscara através da qual se escondem problemas mais graves, como a solidão, a dificuldade em
estabelecer contatos, da mesma forma que as relações de poder e violência, que nos ensinaram a
considerar como sexuais, através de lunetas coloridas de sexualidade. O que um homem ganha em
ter na cama uma mulher que certamente conhece algumas posições de coito e é uma amante
capaz, mas, no entanto, continua a ser um ente inferiorizado? Possui ele mais do que uma vagina e
dois seios emancipados? Que sentido faz um playboy sentir-se sexualmente livre se, ao mesmo
tempo, a playboy philosophy lhe ensina que esta maneira de viver serve para que o homem
funcione melhor nesta sociedade? Que sentido faz conceder à juventude liberdade sexual se, para
o resto, ela não adquire a sua independência? É útil ensinar como funcionam os órgãos genitais,
como se provoca mais facilmente o orgasmo, quais as técnicas de coito preferíveis; mas também é
útil formar o homem no sentido de ter a coragem de exteriorizar francamente os seus
sentimentos, destruir os tabus do tato, romper com o seu isolamento social e ousar ter contatos
autênticos com outros homens. Quem gostar do divertimento, do prazer, da sensualidade, dos
atos afetuosos, não terá também uma atitude sexual mais descontraída?
Acentuar exclusivamente certos problemas pretensamente sexuais não será uma forma de
criá-los artificalmente? Não será tempo de desmistificar a sexualidade, tanto nos seus mistérios
quanto na licenciosidade sexual? Não será útil mostrar aos homens que a sexualidade não põe em
perigo o indivíduo nem a sociedade (crença, indivíduo e nação estariam condenados a perecer por
causa do sexual) e, além disso, que o repressor não é tão poderoso e importante (em vez de se
responder com zombarias aos julgamentos e à polícia, reage-se quase sempre com beligerância, o
que è uma prova da importância excessiva concedida ao repressor)? Não será preciso destruir o
mito da criança sexualmente inocente? E o da mãe sempre pronta a sacrificar-se, que pensa
unicamente no bem do filho? Não será preciso desmistificar as censuras à licenciosidade dos
jovens e dar toda a importância à educação sexual? Não será preciso desmistificar a enorme
sensibilidade da juventude (pretensamente frágil numa sociedade que a obriga a toda a espécie de
excitações brutais)? É preciso igualmente desmistificar o amor romântico e o cônjuge ideal, as
alegrias do adultério e da sexualidade em grupo, a tão apreciada felicidade do casamento e da
família, a dita excitação provocada pelo erotismo, que, na realidade, é muitas vezes antierótico
(segundo pesquisas recentes, tanto pode ser sentido como algo sedutor quanto como algo que
repele; as autoridades, porém, ainda acreditam que o erotismo pode tornar as pessoas infelizes).
Não seria mais saudável pôr fim à tirania da capacidade sexual, que obriga as pessoas a provar
através de ações sua "verdadeira" virilidade ou feminilidade? Quem for honesto confessará ter
momentos ou períodos de inapetência e impotência sexual. Não deverão ser revalorizados o corpo
do homem e da mulher envelhecidos? Em suma, servir-se-á melhor o sexo dessacralizando-o. No
fundo, deveríamos rir dele tranqüilamente, abandonar a nossa comédia e chegar à conclusão de
que existe muita coisa que não é absolutamente necessária, compreendendo, por fim, que há
muitas maneiras de ser feliz sem ser tão sexual como o sugere a propaganda do sexo.
Uma outra característica diferencial consiste na atenção que se concede aos problemas
sexuais sociais. Não se pode negar a existência dos problemas individuais. Mas os adeptos da
revolução exclusivamente sexual dão provas de egoísmo quando reclamam que as leis sejam
modificadas para lhes garantir uma maior liberdade, enquanto a "massa" não participa do
progresso. É uma opinião narcísica pensar que o conforto do próprio grupo contribui para o bem
da sociedade. No campo sócio-econômico, as consequências excessivamente injustas do
liberalismo comerciai foram combatidas por meio da previdência social. Da mesma forma,
somente um grupo socialmente privilegiado (os "bem de vida" e os acadêmicos) aproveitaria a
maior liberdade individual, que, para a massa, continuaria a ser teórica. Só se poderia falar de uma
atitude progressista por parte do Estado se este desse a todos e a cada um a oportunidade real de
aproveitar as possibilidades de viver uma existência mais humana. Isso significa que cabe ao
Estado fornecer a cada um a chance real de poder desfrutar do bem-estar sexual, ou também
financiar experiências comuns. Não devemos esquecer, porém, que uma maior liberdade
individual não solucionará os problemas sociais.
O número de problemas sócio-sexuais é grande.
1. A difusão máxima dos métodos anticoncepcionais: se é verdadeiro o nosso respeito pela
vida da criança, pelos direitos do indivíduo, é preciso, inicialmente, regular quantitativamente os
nascimentos (o que ainda não é feito, como o provam os numerosos casos de aborto e de
casamentos forçados), e depois passar a regulá-los qualitativamente, isto é, reconhecer o direito
da criança a uma família, uma creche, uma comunidade. Além disso, detectar as situações em que
existam melhores chances da criança ser feliz (a regulação qualitativa de nascimentos a que nos
referimos nada tem a ver com eugenia humana).
2. A instauração da educação sexual em todas as escolas, com ênfase principal na
responsabilidade perante a criança, o que significa dar toda a atenção possível à contracepção.
3. A abolição das situações de poder e de obrigatoriedade ligadas à sexualidade, ao amor,
ao casamento e à família. Isto significa dar fim à dupla moral que favorece o homem e ao domínio
da mulher pelo homem no casamento e dos filhos pelos pais na família. As mesmas relações de
poder se manifestam na intolerância perante grupos minoritários, como os homossexuais.
4. As perturbações da função sexual e do orgasmo. São muito numerosas as mulheres que
precisam de dez anos de casamento para conhecer uma experiência sexual descontraída. A
dispareunia está na ordem do dia. As mulheres se deixam usar sem terem, elas próprias, prazer. Os
homens não encontram a satisfação que desejam. A esse problema se juntam o da menstruação e
o do parto doloroso. Todos esses problemas apontam para a mesma causa fundamental, ou seja,
as conseqüências de um posicionamento errado frente à sexualidade durante a infância.
5. A higiene psicológica. Nas atuais circunstâncias, é necessário defender a abolição da
censura. Dever-se-ia poder aboli-la, segundo um plano racional, num breve espaço de tempo; só
assim se chegaria a um saneamento ético, que, em certos países escandinavos, já começa a se
esboçar.
Existem outros problemas sociais além do aborto e da emancipação da mulher, como a
prostituição, a possibilidade de atividade sexual dos prisioneiros, dos celibatários e dos deficientes
físicos, o divórcio. Para este último, o problema não reside em divórcios pedidos com leviandade,
mas no fato de que atualmente o número de pessoas divorciadas deveria ser maior do que
realmente é. As leis se veias do divórcio são imorais e pervertidas; justamente por respeito ao
casamento e aos filhos é que seria necessário favorecer uma mudança de atitude, para que os
casais desunidos possam se separar.
Quando se fala de sexualidade ou se escreve sobre este terna, pensa-se quase
exclusivamente nos adultos, e não nas crianças, é muito grande o interesse que se observa pelas
comunidades, e principalmente pelo comportamento sexual. Se as comunidades devem ser
consideradas importantes, que o sejam, pelo menos enquanto meio educativo favorável às
crianças. Quando se tala de creches, novamente se pensa nas mães, que agora já podem ir
trabalhar, lazer compras ou visitas mais facilmente. Das crianças quase não se fala. Enquanto os
adultos pensarem, em primeiro lugar, exclusivamente no seu próprio conforto e desprezarem o
interesse da criança, os progressos sexuais mais avançados devem ser considerados como
relativamente pouco importantes.
Dever-se ia procurar reconhecer e alimentar alternativas para o casamento e para a
família. — Seria falso acreditar que instituições criadas há apenas alguns séculos sejam tão
perfeitas que a humanidade não seja capaz de introduzir nelas quaisquer melhorias ou substitui-las
por outias formas de vida em comum. Embora se tenha consciência de que a família e o casamento
dão a muitas pessoas a maior satisfaço possível, é possível reconhecer que nem todos são capazes
de se sentir à vontade nestas instituições. Logo, por respeito ao casamento, dever-se ia impedir
que estas pessoas fossem obrigadas a casar. A crítica atual do casamento e da família não significa,
absolutamente, o fim destas instituições, pois esta crítica, foi um lado, já vem sendo feita há
muitos séculos e, por outro lado, no fim do século passado, era mais violenta e mais radical do que
hoje. Além disso, o próprio fato de ser criticado prova que ainda se leva a sério o fenômeno
criticado. Nunca antes o casamento e a família foram vividos tão intensamente, nunca antes houve
famílias tão estritamente ligadas como na nossa época (pode-se dizer a mesma coisa da crítica à
religião e à Igreja: a religiosidade nunca foi tão fervorosa e tão sincera como atualmente).
Adota-se a mesma atitude para com o desejo de ter filhos. Seria necessário impedir que
um casal desejasse ter filhos por razões neuróticas, para resolver, por exemplo, dificuldades
conjugais graças ao filho, e, por conseqüência, às suas custas. Também seria necessário proceder
de modo que os que sentem um medo neurótico de ter um filho, mas que seriam educadores
capazes, sejam libertados da sua angústia. Finalmente, os pais que, como se pode provar, são bons
educadores deveriam receber da sociedade um auxílio muito maior. Repetimos ao longo desse
livro que a intolerância moral é característica da burguesia. Chega a hora em que nos devemos dar
conta de que nossos assuntos privados, nossa cama e nossa leitura não dizem respeito a nenhuma
outra pessoa. Não podemos mais tolerar que a comunidade trate seus membros como se fossem
incapazes de escolher eles próprios como devem proteger seus filhos de possíveis perigos.
Concluindo, pode-se dizer que cada uma destas três tendências contém elementos
positivos. É preciso que haja uma maior preocupação com o casamento e com a família, o que só
pode ocorrer se houver uma preparação conscienciosa para o casamento. É provável que, para
numerosas pessoas, seja necessário um período de sexualização intensiva, a fim de que, baseando-
se em suas próprias vivências, possam tomar consciência do lugar que os verdadeiros problemas
ocupam. A revolução sexual acaba de começar; pressupõe transformações sociais e econômicas
profundas, e, por consequência, também ações políticas que têm por objetivo emancipar o
homem, passando por uma transformação da sociedade.
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FONTES A LUTA CONTRA A MASTURBAÇÃO
NO SÉCULO XVIII

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1724 Philo Castitatis: A supplement to the Onania. Londres. Erononia or the misusing of
the marriage bed. Londres.
1726 Onanism display'd. Londres.
1727 Robinson, D.: A new method of treating consumptions. Londres.
1736 (Bekker): Onania, oder der erschröckliche Sünde der Selbstbefleckung. Leipzig.
1746 Sargenek: Warnung vor allen Sünden der Unreinigkeit und heimticher Unzucht.
Züllichau.
1748 Lewis: A practical essay upon the tabes dorsalis. Londres.
1758 Tissot: De morbis ex manustuprazione ortis. Lausanne.
1760 (Du Toit Mambrini, Ph.): De l'onanisme. Lausanne. Tissot: L'onanisrne. Lausanne.
1762 Rousseau, J. J.: Émile ou de l'èducation (Paris, 1951).
1766 Venel, M.: Essai sur Ia santé et l'éducation médicale des filles. Paris.
1769 (Börner, C . ) : Der ratende Arzt.
1770 Basedow, J. B.: Methodenbuch. Altona-Brema.
1772 Zimmermann, G.: Briefe für Knaben. Solothurn.
1774 Basedow: Elementarwerk (Leipzig, 1909).
1776 (Anônimo): Onanie und Nymphomanie. Lausanne. Borner: Werk von der Onanie.
Leipzig.
1779 Zimmermann: Warnung an Eltern, Erzieher und Kinderfreunde wegen der
Selbstbefleckung. Leipzig.
1780 Pestalozzi, J. H.: Uber Gestzgebung und Kindermord. Frankfurt. Fischer, F.: Uber
die Probenächte der teutschen Bauermädchen. Berlim.
1781 Stuve, J.: Uber die Körperliche Erziehung. Züllichau.
1782 (Anônimo): Uber die Liebe gegen das andere Geschlecht. Ein Lesebuch für
Mädchen und Jünglinge. Winterthur. Wichman: De pollutione diurna: Göttingen.
1783 Campe, J. H.: Theophron. Zollikofer, G.: Abhandlung über die moralische
Erziehung. Leipzig.
1784 Hufnagel, W.: Uber den ersten Religionsunterricht nach denzehn Gebothen.
Erlangen. Jais, A.: Das Wichtigste für Eltern, Schullehrer und Aufseher der Jugend.
Munique. Seehase: Soll man junge Leute über die eigentliche Art der Erzeugung
des Menschen belehren? Stendal.
1785 Salzmann: Ists recht, über die heimichen Sünden der Jugend öffentlich zu
schreiben? Schnepfenthal. Salzmann: Carl von Carlsberg. Frankfurt. Salzmann:
Uber die heimlichen Sünden der Jugend. Schnepfenthal. (Anônimo): Geht das
sechste Gebot noch die liebe Christenheit an? Hof.
1786 Kämpf, J.: Abhandlung von einer neuen Methode. Leipzig. Vogel, S. G.: Unterricht
für Eltern... Frankfurt.
1787 Rötger, G. S.: Uber Kinderunzucht und Selbstbefleckung. Züllichau. Campe:
Allgemeine Revision. Hamburgo. Oest, J. F.: Versuch einer Beantwortung der
pädagogischen Frage: wie man Kinder und junge Leute vor dem Leib und Seele
verwüstenden Laster der Unzucht... verwahren... könne. Hamburgo. Winterfeld,
M. A. von: Uber die heimlichen Sünden der Jugend. Hamburgo. Villaume, P.: Uber
die Unzuchtssünden in der Jugend. Hamburgo. Hermes, J. T.: Für Töchter edler
Herkunft. Leipzig. Engelhard-Gatterer, P.: Neujahrsgeschenk für liebe Kinder.
Göttingen.
1788 Campe: Väterlicher Rat für meine Tochter. Frankfurt.
1789 Peschek, C. A.: Versuch über die Ausartung des Begattungstriebes unterden
Menschen. Breslau.
1790 Hermes: Für Jünglinge jedes Standes. Traunge Wahrheiten in Romangewande.
Altemburgo.
1791 Bauer, K. G.: Uber die Mittel dem Geschlechtstriebe eine unschädliche Richtung
zu geben. Leipzig. Faust, B. C.: Wie der Geschlechtstrieb der Menschen in
Ordnung zu bringen. Brunswick. Rehm, F.: Vaterlehren und Vorsichtslehren über
Keuschheit. Erfurt.
1792 Rehm, F.: Vorschläge wie man auch mit Beibehaltung der bisher üblichen
Beinkleider, Mädchen und Knaben... von früher Unzucht bewahren konne.
Marburg. (Anônimo): Die Geschichte eines Selbsttäuscher, gestorben in Wien den
letztennovember 1791, von ihm selbst geshrieben. Viena.
1793 Snell, M.: Erklärung des göttlichen Gebots der Keuschheit.
1795 Rehm: Brüderliche Belehrung zur Vermeidung früher Wollustsünden. Leipzig.
1797 Jais: Lesebuch. Salzburgo.
1798 Heusinger, J.: Die Familie Wertheim. Gotha.
1802 Rehm: Reqeln der Vorsicht zur Belehrung der Kinder über Erzeugung und
Warnung vor Sünden der Wollust. Fürth.
GLOSSÁRIO

Anovulatório: pílula anticoncepcional. Medicamentos (de base hormonal) que impedem a


maturação do óvulo na mulher, e que, atualmente, são os anticoncepcionais mais seguros.
Clitoridectomia: ablação cirúrgica do clitóris.
Coito: ato sexual.
Coitus interruptus: método anticoncepcional. Pouco antes da ejaculação o homem retira o
pênis da vagina da mulher para que a ejaculação ocorra no seu exterior.
Complexo de Édipo: estágio (postulado pela psicanálise) das relações pais-filhos (entre o
terceiro e o quinto ano de idade). A criança experimenta um sentimento amoroso pelo progenitor
do sexo oposto ao seu; o progenitor do mesmo sexo é sentido como "rival" e passa a inspirar
sentimentos de ciúme, ódio e medo (da retaliação). Este medo e, ao mesmo tempo, a recusa do
progenitor do sexo oposto em satisfazer as aspirações "incestuosas" dão à criança a oportunidade
de reprimir seus desejos edipianos. Ao mesmo tempo, identifica-se com o progenitor do mesmo
sexo que ela, imita o seu comportamento e adota os seus valores e os seus ideais (deveres e
proibições). O complexo de Edipo chama-se muitas vezes nas meninas complexo de Eletra.
Condicionamento: processo de aprendizagem. Distinguem-se duas formas fundamentais: 1)
o condicionamento clássico ou reflexo condicionado; 2) o condicionamento instrumental ou
operante.
Fase de latência: segundo a teoria psicanalítica, período da evolução psicossexual situado
entre o sexto e o décimo ano, durante o qual o interesse sexual da criança é menor.
Família patriarcal: forma da família nas sociedades patriarcais, em que o pai ocupa um
lugar predominante em relação à mulher e aos filhos.
Fimose: aperto do anel do prepúcio. O prepúcio não descobre a glande.
Frigidez: perturbação sexual da mulher, que se traduz por uma falta de desejo e de
excitabilidade sexuais. A frigidez acompanha a anorgasmia (impossibilidade, incapacidade de
atingir o orgasmo) e está ligada à incapacidade de ser sexualmente satisfeita.
Gonorréia: doença venérea provocada pelo gonococo; atinge as mucosas da uretra, da
vagina, das trompas, do reto e das pálpebras. A partir das mucosas, os micróbios também podem
propagar-se por via sangüínea e ocasionar complicações em outros órgãos. Entre os adultos, o
contágio produz-se sobretudo nas relações sexuais. É por isso que as vias yrinárias e as genitais são
particularmente atingidas. As crianças e os lactentes podem ser vítimas de contágios não-genitais:
por exemplo, ao nascer, os olhos podem ser infectados, e, mais tarde, pela utilização de roupas
infectadas. A gonorréia pode ser reconhecida pela presença de gonococos. Trata-se principalmente
através da penicilina.
Hedonismo: (aqui) importância dada à felicidade a à alegria como componentes
importantes da vida.
Hermafroditismo: hibridismo. Hermafroditismo verdadeiro: presença de glândulas genitais
masculinas e femininas num indivíduo, muito raro. Pseudo-hermafroditismo: hibridez aparente; só
as glândulas genitais masculinas ou femininas estão presentes, mas os órgãos genitais externos
correspondem aos do outro sexo. É mais freqüente que o verdadeiro hermafroditismo.
Impotência: perturbação sexual do homem. Baixa ou perda da capacidade de ereção. Os
homens impotentes não podem, ou só podem parcialmente, realizar o ato sexual.
Internalização: identificação com as normas, os valores e os ideais da sociedade ou de sua
própria categoria social.
Libido: instinto, desejo sexual.
Menarca: aparecimento da primeira menstruação.
Monogamia: casamento com uma só pessoa.
Onanismo: masturbaçâo.
Paralisia progressiva: forma de sífilis cerebral, acompanhada de perturbações físicas e
psíquicas progressivas; principia por volta dos dez ou quinze anos, ou até mais tarde, depois da
infecção sifilítica. Se não for tratada, pode conduzir à perda das capacidades intelectuais e motoras
e a uma morte prematura.
Perverso polimorfo: a psicanálise qualifica a sexualidade ainda pouco desenvolvida da
criança como sexualidade perversa polimorfa, porque é ao mesmo tempo não genital, homo e
heterossexual.
Petíing: contatos sexuais com uma pessoa do outro sexo, que não conduzem ao ato sexual.
As práticas mais importantes do petíing são: os beijos, os abraços, a carícia dos seios, a excitação
dos órgãos genitais com a mão ou com a boca, os toques gemtais (atrito dos órgãos gemtais sem
penetração). Se estas práticas levam ao ato sexual, já não têm o nome depetting, mas de prólogo
do ato sexual.
Poligamia: casamento com várias pessoas.
Polucão: ejaculação involuntária noturna.
Priapismo: eieção constante e dolorosa do pênis, em conseqüência de difeientes
perturbações somáticas.
Psicogênese: apaiecimento de perturbações e doenças, psíquicas e corporais, devido a
fatores psíquicos.
Reflexo condicionado: forma fundamental da aprendizagem. Um leflexo (por exemplo,
pestanejar) pode ser produzido por um estímulo neutro (por exemplo, o toque de uma
campainha); para isso, é necessário que este estímulo neutro seja várias vezes associado ao
estímulo que normalmente provoca este reflexo (a excitação das pálpebias, por exemplo).
Numerosas reações, sobretudo emocionais, são adquiridas por reflexo condicionacio.
Recalque: repressão de um desejo ou de uma emoção não aceitos. Os instintos (Trieb)
recalcados tornam-se inconscientes, mas de modo algum inativos. Segundo a teoria psicanalítica,
sua importância para a formação das neuroses é decisiva.
Socialização: (aqui) processo de aprendizagem que começa na pnmeira infância, pelo qual
o homem adota as normas, valores e ideais de sua sociedade ou de sua categoria social.
Sociedades patriarcais: sociedades ou culturas nas quais os homens ocupam um lugar
predominante (perante as mulheres, os adolescentes e as crianças).
Sociogênese: aparecimento de perturbações psíquicas ou corpoiais por razões sociais.
Sablimação: as necessidades não aceitas são desviadas para objetivos socialmente muito
valorizados (por exemplo, impulsos sexuais podem ser sublimados, tornando-se histórias de amor,
impulsos agressivos podem ser desviados para exercícios esportivos, como a luta ou o boxe).
Sifilis: doença infecciosa crônica, a mais perigosa das doenças venéreas. O micróbio é o
treponema pálido (Spirochaeta pallida). A transmissão ocorre durante o ato sexual, através de
feridas da mucosa. A doença apresenta três fases:
Período primário: aparecimento, após duas a quatro semanas, de um cancro duro no local
da infecção, com um inchaço indolor dos gânglios Imfáticos.
Período secundário: após cerca de oito semanas, erupção cutânea característica,
acompanhada de dores de cabeça, dores articulares e uma ligeira febre.
Período terciário: manifestação orgânica que pode aparecer de cinco a vinte anos depois
de terem cessado os sintomas acima descritos. Este período é assinalado pela tabes dorsalis e pela
paralisia progressiva.
Tabes dorsalis: forma tardia da sífilis, é uma afecção muito freqüente da medula espinhal,
que em geral começa cinco a quinze anos depois da infecção sifilítica e atinge cerca de 2 a 5% de
todos os sifilíticos.Impressão e Acabamento
Círculo do Livro S.A.
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Caixa Postal 7413
Fones: 62-4034- 62-1181
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Filmes fornecidos pelo editor

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