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Nutrição e Genética

ENTREVISTA / INTERVIEW

Nutrição e Genética

Nutrition and Genetics

Entrevistada: Flávia Fioruci Bezerra1

Interações entre Genes e Dieta: novos desafios para a


nutrição
1
Flávia Fioruci Bezerra é professora
adjunta no Departamento de Nutrição Básica
e Experimental, Instituto de Nutrição da Ceres - Como os conhecimentos de genética podem inte-
Universidade do Estado do Rio de Janeiro ragir com as pesquisas na área de Nutrição?
(INU-UERJ). Foi entrevistada em outubro
deste ano por Alda Regina Diniz Sampaio,
professora assistente do Departamento de
Flávia - Há muito que a Nutrição é reconhecida como
Nutrição Aplicada do INU-UERJ. um dos principais fatores ambientais envolvidos com o
E-mails: flavia.fioruci@gmail.com;
alda.sampaio@yahoo.com.br
surgimento e/ou desenvolvimento de uma série de doen-
ças crônicas. No entanto, é também conhecido que as
doenças crônicas têm etiologia bastante complexa, com
contribuição importante do componente genético. Os
últimos anos foram marcados pelo reconhecimento de
que o perfil genético faz com que os indivíduos respon-
dam de forma diferente aos alimentos ou a nutrientes
específicos e também pelo reconhecimento de que os
nutrientes possuem a habilidade de modular inúmeras
funções fisiológicas do organismo através de mecanismos
moleculares. Estamos, portanto, em meio a uma verda-
deira revolução, e também um desafio, para a pesquisa
em Nutrição. Como consequência imediata, há a neces-
sidade de familiarização com uma terminologia até en-
tão desconhecida ou pouco utilizada por nutricionistas.
Termos antigos estão sendo incorporados e outros novos
surgiram, tais como genômica nutricional, nutrigenômica,

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nutrigenética, e precisam ser compreendi- Flávia - Um exemplo clássico é o do


dos, já que certamente passarão a fazer par- polimorfismo 677CT no gene que co-
te do cotidiano de quem atua em pesquisa difica a 5,10 metilenotetrahidrofolato re-
na área de Nutrição. dutase (MTHFR), enzima responsável
pela conversão do 5,10-metileno THF
Ceres - Você poderia definir esses novos em 5-metil THF. A substituição de citosi-
termos? na por timina na posição 677 do gene re-
sulta numa variante termolábil da enzima
Flávia - O termo genômica nutricional refe-
MTHFR que tem sua atividade reduzida,
re-se a uma ramificação recente da genéti-
o que parece implicar maior requerimen-
ca que tem por objetivo melhorar a saúde
através da personalização da dieta e mani- to de ácido fólico nesses indivíduos. De
pulação das interações entre os genes e a fato, estudos demonstram menores con-
dieta. Nutrigenômica e nutrigenética são centrações plasmáticas e teciduais de fo-
considerados domínios científicos da genô- lato em indivíduos homozigotos com o
mica nutricional que utilizam abordagens genótipo 677TT.
distintas de estudo para elucidar a intera- Outro exemplo vem de um estudo em
ção entre genes e dieta. A nutrigenômica que avaliamos a influência da ingestão
estuda o efeito modulador dos compostos habitual de cálcio e de polimorfismos no
químicos presentes nos alimentos sobre a gene do receptor de vitamina D (VDR)
síntese e estabilidade do DNA e a expressão sobre a massa óssea de nutrizes adoles-
gênica. Por outro lado, a nutrigenética se centes. Quando consideramos todo o
dedica ao estudo da identificação, classifi- grupo de adolescentes estudadas, não ob-
cação e caracterização de variações genéti- servamos influência da ingestão de cál-
cas capazes de modificar o metabolismo e a cio sobre a massa óssea, que se encontra-
utilização de nutrientes pelo organismo. va reduzida como resposta fisiológica da
Esta última parte do princípio de que a lactação. No entanto, observamos que a
existência de diferenças individuais nas se- ingestão de cálcio apresentava associação
quências de genes, usualmente polimorfis- positiva com a massa óssea nas adoles-
mos de base única (SNPs, do inglês single centes que apresentavam polimorfismos
nucleotide polymorphisms), pode resultar em específicos (AA, para ApaI e BB, para
diferentes respostas do organismo frente a BsmI) no gene do VDR, sugerindo que
estímulos ambientais, tais como a dieta. apenas essas adolescentes se beneficia-
riam de uma maior ingestão de cálcio
durante a lactação.
Ceres - Que polimorfismos genéticos têm
sido demonstrados como capazes de afe- Um grande número de estudos tam-
tar a utilização de nutrientes pelo orga- bém tem-se dedicado ao estudo de como o
nismo humano? perfil genético interage com a ingestão de

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nutrientes – usualmente diferentes propor- síntese de S-adenosil metionina (SAM),


ções de lipídios e ácidos graxos específi- agente primário de metilação de cente-
cos – para influenciar a patogênese da obe- nas de moléculas, incluindo DNA e his-
sidade e/ou diabetes melito. Neste contex- tonas. No entanto, a atuação do folato é
to, se destacam os genes do receptor ativa- dependente da disponibilidade de uma
do por proliferador de peroxissoma gama 2 série de outros nutrientes, incluindo as
(PPAR-gama 2), receptor -adrenérgico vitaminas B6 e B12 e o zinco. O fato é
(ADRB2), receptor da melanocortina-4 que problemas no metabolismo de uni-
(MCR4), receptor de leptina (LEPR), en- dades de carbono, e em particular da sín-
tre outros. tese do SAM, seja por deficiências nutri-
cionais e/ou por polimorfismos em ge-
nes que codificam as enzimas folato-de-
Ceres - Você poderia dar exemplos de como
pendentes – tais como a MTHFR ante-
os nutrientes podem afetar o DNA e/ou a
riormente citada – podem alterar os pa-
expressão gênica?
drões de metilação do genoma e a expres-
Flávia - Os nutrientes são capazes de são gênica.
afetar o genoma ou sua expressão através
da síntese de nucleotídeos, da prevenção
Ceres - As pesquisas nessa área podem tra-
e reparo de danos ao DNA, ou ainda atra-
zer algum impacto para a elaboração de
vés de mecanismos epigenéticos que in-
recomendações nutricionais?
cluem a metilação de histonas, proteínas
responsáveis pela estrutura da cromatina Flávia - A genômica nutricional pro-
que desempenham importante papel na mete revolucionar a forma como pensa-
regulação da expressão gênica. Por exem- mos e conduzimos a saúde humana nos
plo, tem sido sugerido que a deficiência próximos anos. Considerando que a res-
de zinco pode aumentar o risco de deter- posta a intervenções nutricionais é depen-
minadas doenças crônicas, incluindo cân- dente de variantes genéticas, podemos
cer. Isso pode, ao menos em parte, ser imaginar que práticas de intervenção e
atribuído ao papel do zinco sobre os me- educação nutricional podem ser mais bem
canismos de reparo de danos ao DNA, que adequadas para atender indivíduos e/ou
parece ser prejudicado até mesmo em si- populações específicas. Acredito, portan-
tuações de depleção marginal de zinco, e to, num impacto sobre as práticas de nu-
resulta em alterações na integridade do trição clínica e de saúde pública, seja atra-
DNA. Outro exemplo é o folato, que atua vés do estabelecimento de guias alimen-
na transferência de unidades de carbono, tares baseados no genoma, através tera-
sendo necessário tanto para a síntese de pia nutricional individualizada, ou atra-
nucleotídeos quanto para a conversão da vés da melhor definição de grupos-alvo a
homocisteína em metionina e posterior serem beneficiados por intervenções nu-

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tricionais, incluindo a fortificação ou su- Ceres - O Instituto de Nutrição da UERJ


plementação de micronutrientes. Mas ain- tem planos para investir no estudo da in-
da temos um longo caminho a percorrer. teração entre a genética e a Nutrição?
Aos poucos, e de formas distintas, as in-
Flávia - A recém-implantação do Progra-
formações estão sendo incorporadas nos
ma de Pós-graduação em Alimentação, Nu-
estudos que avaliam respostas a diferen-
trição e Saúde fez surgir uma série de dis-
tes níveis de ingestão de nutrientes. Por
cussões sobre os rumos dos investimentos
exemplo, alguns estudos que avaliam as
em infraestrutura de pesquisa no Instituto de
respostas à suplementação de nutrientes
Nutrição da UERJ. Ao final de 2008, achamos
têm buscado randomizar seus voluntários
que era chegado o momento de o INU/UERJ
nos diferentes grupos de intervenção so-
investir na criação de um laboratório que
mente após estratificar os indivíduos de
pudesse apoiar os professores que, através
acordo com seus genótipos.
da colaboração com laboratórios de outras
Unidades da UERJ e/ou com outras insti-
Ceres - Como está o cenário de pesquisas tuições, enveredaram para o estudo da asso-
nessa área no mundo? E no Brasil? ciação entre a genética e a nutrição. Elabo-
Flávia - O cenário é de crescimento. E ramos então uma proposta de criação do
rápido. Redes de pesquisadores e socieda- Laboratório para o Estudo da Interação en-
des nacionais e internacionais foram cria- tre Genética e Nutrição (LEING), em par-
das para estimular a discussão sobre o tema. ceria com o Instituto de Biologia Roberto
Congressos específicos têm sido regular- Alcântara Gomes e a Faculdade de Ciências
mente organizados, tanto em âmbito na- Médicas da UERJ. Nossa proposta teve mé-
cional, quanto internacional. Vários livros rito reconhecido e solicitação de financia-
já foram publicados e, nos últimos cinco mento aprovada integralmente através da
anos, surgiram ao menos três periódicos Chamada Pública MCT/ FINEP/ CT-INFRA
– Genes and Nutrition, Journal of Nutrigenetics – PROINFRA – 01/2008. Aguardamos an-
and Nutrigenomics e Molecular Nutrition and Food siosamente a liberação dos recursos para ini-
Research – dedicados à publicação de tra- ciar o processo de implantação do laborató-
balhos que abordam a relação entre gené- rio e contribuir para o crescimento dos gru-
tica e nutrição, todos indexados nas prin- pos envolvidos. Acreditamos que, dessa for-
cipais bases de dados internacionais. O ma, daremos aos nossos alunos de gradua-
cenário contribui para demonstrar que se ção e de pós-graduação a oportunidade de
trata indubitavelmente de um campo de aproximação com esse novo e promissor
estudo emergente. campo de estudo da Nutrição.

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Sugestões de leitura:

STOVER, P.J.; CAUDILL, M.A. Genetic and PANAGIOTOU, G.;NIELSEN, J. Nutritional


epigenetic contributions to human nutrition and systems biology: definitions and approaches.
health: managing genome-diet interactions. J Am Annu Rev Nutr, v. 29, p. 329-339, 2009.
Diet Assoc, v. 108, p. 1480-1487, 2008.
FENECH, M. Micronutrients and genomic
STEEMBURGO, T.; AZEVEDO, M.J.;
MARTINEZ, J.A. Interação entre gene e nutriente stability: a new paradigm for recommended
e sua associação à obesidade e ao diabetes melito. dietary allowances (RDAs). Food and Chemical
Arq Bras Endocrinol Metab, v. 53, n. 5, p. 497-508, 2009. Toxicology, v. 40, p. 1113–1117, 2002.

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