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revista Fronteiras – estudos midiáticos

21(3):142-155 setembro/dezembro 2019


Unisinos – doi: 10.4013/fem.2019.213.12

A interseccionalidade e o
entrecruzamento de violências
epistêmicas no videoclipe ‘Mandume’
Intersectionality and the crossroads of
epistemic violence in musicvideo Mandume

Lucianna Furtado1
lucianna.furtado@gmail.com

RESUMO ABSTRACT
Este artigo discute o videoclipe Mandume (2016), dos rappers This paper discusses the music video Mandume (Emicida
Emicida, Drik Barbosa, Amiri, Rico Dalasam, Muzzike e Raphão feat. Drik Barbosa, Amiri, Rico Dalasam, Muzzike and
Alaafin, e direção de Gabi Jacob, de maneira fundamentada Raphão Alaafin, directed by Gabi Jacob, 2016), grounded by
pelo aporte teórico-metodológico da interseccionalidade. Essa the theoretical and methodological basis of intersectionality.
abordagem é evocada pelos próprios rappers em seus versos no This approach is evoked by the rappers themselves on
videoclipe, ao relatarem suas vivências dos entrecruzamentos de the music video, by narrating their experiences of the
identidades sociais como eixos de opressão, exclusão e violência crossroads of their social identities as axes of oppression,
epistêmica. Para isto, é apresentada uma breve investigação da exclusion and epistemic violence. For this, we present a brief
elaboração da interseccionalidade no contexto dos movimentos investigation on the elaboration of intersectionality in the
sociais e sua posterior incorporação pelo saber acadêmico, context of social movements and its later incorporation into
relacionando as contribuições de feministas negras estadunidenses academic knowledge, relating the American Black feminists’
às produções brasileiras sobre essa abordagem. A partir dessa contributions to the Brazilian production on this matter. On
fundamentação, são discutidos os relatos testemunhais dos that basis, we discuss the rappers’ witness accounts, allowing
rappers, permitindo que a interseccionalidade evidencie sua intersectionality to show its potentiality and the contradictions
potência e as contradições no conjunto do videoclipe. on the music video as a whole.

Palavras-chave: Interseccionalidade. Racismo. Feminismo Keywords: Intersectionality. Racism. Black feminism.


negro.

1
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Av. Pres. Antônio Carlos, 6627 – Pampulha, Belo Horizonte (MG).

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A interseccionalidade e o entrecruzamento de violências epistêmicas no videoclipe ‘Mandume’

Introdução ao longo da história por diversas mulheres negras engaja-


das na luta feminista, antirracista e contra a multiplicidade

O
de outras formas de subordinação. Pode-se considerar
objetivo deste artigo é promover uma discussão
como primeiro registro histórico dessa abordagem, pensa-
sobre o videoclipe Mandume (2016), dos rappers
da inicialmente a partir do entrecruzamento das opressões
Emicida, Drik Barbosa, Amiri, Rico Dalasam,
de raça e gênero, o famoso discurso de Sojourner Truth,
Muzzike e Raphão Alaafin, e direção de Gabi Jacob, à
“Ain’t I a woman?”, na Convenção de Mulheres de 1851,
luz do conceito de interseccionalidade, uma ferramenta
em Ohio, nos Estados Unidos. Ao interrogar aquele grupo
teórico-metodológica criada e aprimorada pelo pensamento
de mulheres sobre seu pertencimento à ideia de “mulher”,
feminista negro no contexto dos movimentos sociais e, pos-
Truth (2017 [1851]) construiu um questionamento crítico
teriormente, integrada pelo saber acadêmico. Essa escolha se
sobre a pretensa universalização da categoria feminina por
deve à forma de construção dos próprios relatos dos rappers
parte das mulheres brancas de classe média e evidenciou
nesta música, ao apresentar testemunhos de suas vivências
a insuficiência desse movimento para contemplar as de-
da opressão racista de maneira entrecruzada com discussões
mandas das mulheres negras por justiça social.
sobre o feminismo, regimes de visibilidade, movimentos
Assim como muitas feministas negras ainda
LGBTQ, classe e intolerância religiosa. fazem atualmente, Truth já reivindicava espaço nos
Combinada ao modelo praxiológico da Comunicação movimentos de mulheres brancas e nos de homens negros,
(FRANÇA, 2018), a interseccionalidade permite analisar o demonstrando a especificidade da exclusão composta
contexto das interações comunicativas entre os sujeitos e pela subalternidade dupla. Esse momento histórico marca
revelar os modos como os eixos estruturais de opressão, vio- a articulação entre opressões estruturais entrecruzadas
lência e subalternidade atravessam suas vidas sociais. Cen- e a potência do lugar social das mulheres negras para
trada na forma como estes eixos emergem na experiência, elaborar pontos de vista críticos a partir de suas próprias
tal combinação teórico-metodológica convida o olhar para a experiências, bem como a criação de perspectivas contra-
práxis, para a dimensão prática das interações comunicativas, -hegemônicas não dentro do ambiente acadêmico, mas
para pensar a comunicação como ação interseccional. Desse precisamente às margens das formas tradicionalmente
modo, este artigo propõe um processo de autorreferencia- legitimadas de intelectualidade.
lidade analítica, em respeito ao princípio de autodefinição O pensamento sobre as categorias de opressão
dos movimentos negros. A abordagem interseccional, ao como interseções, como vias que se entrecruzam e se
se apropriar da posicionalidade das identidades sociais e sobrepõem, foi desenvolvido e aprimorado pelas mulheres
epistemologias como forma de intervenção crítica, desafia negras em sua atuação nos movimentos sociais ao longo
os eixos estruturais de poder e subalternidade como sistemas das décadas seguintes. A feminista negra bell hooks2
interligados e interdependentes. Para isto, será investigada a (2015) cita como exemplo a convocação feita em 1892
trajetória da interseccionalidade junto às feministas negras pela ativista Anna Julia Cooper, para que as mulheres
estadunidenses e as contribuições brasileiras para pensar negras articulassem suas experiências de modo a cons-
esses entrecruzamentos em nosso contexto local, com o cientizar a sociedade sobre a forma como o racismo e o
objetivo de analisar os modos como o videoclipe opera a sexismo afetam, conjuntamente, seus lugares sociais. Na
interseccionalidade como prática comunicativa e epistêmica, visão de hooks, enquanto a luta feminista durante o século
evidenciando a potência e as contradições da articulação XIX se centralizava no sufrágio feminino – para mulheres
desse conceito na construção dos relatos em Mandume. brancas, diga-se de passagem –, ao longo do século XX,
as discussões passaram a tratar raça e gênero, cada vez
mais, como questões interligadas.
A historicidade do conceito Outro marco importante é o manifesto feminista
de interseccionalidade negro do Combahee River Collective (CIRCUITOUS,
2010 [1977]), que descreve a orientação de seu processo
A abordagem interseccional é uma ferramenta teó- coletivo de autodefinição política e de seu ativismo junto
rico-metodológica construída de forma gradual e coletiva a organizações e movimentos sociais, definida como um

2
A autora, chamada Gloria Watkins, adotou o nome da avó como pseudônimo e pede que sua grafia seja feita em letras minúsculas,
como forma de destacar não sua figura individual, mas o conteúdo de sua produção.

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comprometimento com a luta contra a opressão racista, outras, como eixos de poder, discriminação e opressão
sexista, heterossexista e de classe. Mais do que isto, as estruturais, atuando de forma sobreposta e interligada,
autoras do manifesto estabelecem como meta o desen- formulando uma complexa teia sobre a vida social.
volvimento integrado do pensamento e prática ativista Crenshaw (1989) evidencia como as concepções
baseadas na visão das principais categorias de opressão dominantes condicionam a compreensão e ação sobre as
como sistemas interligados, cuja síntese dá origem às categorias de subalternidade como eixos isolados, propon-
condições estruturais da vida social dos sujeitos. do centralizar a multidimensionalidade das experiências
Diversas outras intelectuais negras tematizaram das mulheres negras como forma de ampliar o quadro
a problemática da universalização das experiências e da analítico sobre as desigualdades. A partir da investiga-
abordagem dessas categorias de forma isolada, enfatizan- ção das inter-relações entre raça e gênero promovidas
do a importância de investigar as interações e articulações por diversas ativistas e intelectuais negras, Crenshaw
entre elas, como Frances Beal (Double Jeopardy: To Be sistematizou a abordagem sob o nome de intersecciona-
Black and Female, panfleto originalmente publicado em lidade, enfatizando a dimensão estrutural das identidades
1969); bell hooks (Ain’t I a Woman, publicado em 1981); na configuração das dinâmicas de poder e traçando re-
Angela Davis (Women, Race and Class, também publica- lações entre a identidade individual e coletiva. A autora
do em 1981); Hazel Carby (White Woman Listen! Black argumenta que análises ancoradas em eixos operacionais
Feminism and the Boundaries of Sisterhood, publicado únicos e isolados, ao focarem em grupos vitimados por
em 1982); Patricia Hill Collins (Black Feminist Thought: apenas uma forma de opressão – e, portanto, privilegiados
Knowledge, Consciousness and the Politics of Empow- pelas demais categorias de poder – ocasionam resultados
erment, publicado em 1990; Race, Class, and Gender: distorcidos e insuficientes para apreender a complexidade
An Anthology, em parceria com Margaret L. Andersen e da interação entre essas esferas.
publicado em 1992). Analisando processos judiciais por discriminação
Esse relato compreende apenas algumas das contra mulheres negras em práticas de seleção ocupa-
muitas mulheres negras que contribuíram para o desen- cional, Crenshaw (1989) demonstrou que, ao observar
volvimento dessa perspectiva, cujo pensamento antecede os eixos de forma isolada, as interpretações legais sobre
a elaboração do termo “interseccionalidade”, empre- discriminação de gênero e raça haviam sido definidas,
gado nos dias atuais. O cenário demonstra não apenas respectivamente, pelas experiências de mulheres brancas e
o protagonismo das mulheres negras no surgimento e homens negros. A autora afirma que, nessa configuração,
aprimoramento dessa abordagem, como evidencia esse as mulheres negras só são contempladas nas experiências
lugar social de subalternidade como uma potência criativa de opressão também vivenciadas por um destes grupos,
para a resistência crítica, por meio do longo percurso de sendo eclipsadas as demandas específicas ao entrecru-
desenvolvimento do pensamento interseccional desde os zamento dessas duas vias. Em sua visão, a análise de
primórdios do ativismo de mulheres negras até sua for- eixos isolados estabelece, como referência da experiência
malização acadêmica sob este nome com o artigo de Kim- normativa do grupo subalternizado, aqueles oprimidos
berlé Crenshaw em 1989. Esse breve e resumido histórico por um único eixo – perpetuando, dentro dos próprios
não assume a pretensão de ser exaustivo ou de mapear movimentos sociais e ações de promoção da igualdade,
todas as feministas negras que contribuíram para tal, mas a marginalização dos sujeitos vitimados por duas ou mais
busca demonstrar que a noção de interseccionalidade foi categorias. Crenshaw propõe inverter a abordagem sobre
concebida e aperfeiçoada de forma coletiva, no contexto as desigualdades, passando a pensá-las da base para o
da atuação das mulheres negras nos movimentos sociais, topo, o que permite desafiar as estruturas hierárquicas
a partir de suas experiências dos modos de opressão de como um todo.
forma simultânea, sobreposta e interligada. Como afirma Crenshaw (1989), raça e gênero
Desse modo, Kimberlé Crenshaw (1989, 1991, costumam ser vistos como significativos apenas quando
2002) toma o pensamento feminista negro como ponto explicitamente prejudicam os sujeitos, desconsiderando as
de partida para a ideia de interseccionalidade, como dimensões de privilégio da branquitude e masculinidade.
diagnóstico e solução da tendência à abordagem de raça A autora argumenta que, assim, quando a teoria feminista
e gênero como ordens isoladas, mutuamente excludentes, centraliza e universaliza o ponto de vista das mulheres
na análise das experiências de desigualdade. A autora vê brancas de classe média, elas negligenciam como seu
as categorias de raça, gênero, sexualidade, classe, dentre pertencimento ao grupo racial dominante mitiga alguns

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A interseccionalidade e o entrecruzamento de violências epistêmicas no videoclipe ‘Mandume’

aspectos do sexismo e as privilegia, inclusive contribuindo racista e sexista, orientadas por eixos isolados, continuam
para que dominem outras mulheres. a marginalizar mulheres negras (CRENSHAW, 1991, p.
Nesse sentido, as inter-relações entre identidade 1282-1283). Em sua visão, a análise interseccional deve
individual e a dimensão coletiva são fundamentais na reunir os aspectos dessa sensibilidade, então fragmentada
politização das experiências dos sujeitos, nas formas como em eixos isolados, para, assim, mediar as tensões criadas
a opressão estrutural incide sobre suas vidas e interações pela construção social das identidades como categorias
sociais. Segundo Crenshaw (1991), a manifestação e estruturais de poder, privilégio e subalternidade. Nesse
organização das mulheres foram operacionalizadas como sentido, Crenshaw problematiza não a mera existência
meios para fortalecer, coletivamente, seus protestos dessas categorias, mas os valores a elas associados e
sobre a dimensão estrutural de suas vivências pessoais. a forma como perpetuam desigualdades, hierarquias e
Este movimento demonstrou que a ação coletiva é mais relações de exclusão.
efetiva no combate ao sexismo, transpondo as formas de O quadro analítico da interseccionalidade re-
violência da esfera privada, como ocorrências isoladas presentacional oferece uma ferramenta potente para os
ou exceções, para a esfera pública, como parte de uma estudos comunicacionais, possibilitando interrogar cri-
estrutura de dominação social e sistêmica. A autora des- ticamente a construção das interações entre sujeitos nas
taca que o mesmo ocorreu entre os movimentos negros formas de representação, produção cultural e narrativas
e LGBTQ, dentre outros: “Para todos esses grupos, a midiáticas. Em um cenário de crescente visibilidade de
política baseada na identidade tem sido uma fonte de sujeitas(os) negras(os) e culturas negras, o olhar intersec-
força, laços comunitários e desenvolvimento intelectual” cional permite ir além da mera incorporação por parte dos
(CRENSHAW, 1991, p. 1242, tradução nossa). espaços midiáticos mainstream para avaliar as condições
A crítica realizada por Crenshaw (1991) à política de representação em termos de opressões entrecruzadas.
de identidades trata precisamente dos pontos cegos dos Como destaca hooks (2019), não apenas a televisão e o
movimentos, onde o foco em um eixo único negligencia cinema tendem a reproduzir e consolidar estereótipos
as diferenças intragrupo. Em sua concepção, isto contribui racistas e sexistas, como podem ainda tomar posse desses
para o surgimento de tensões entre os grupos, na medida outros em processos de apropriação cultural – perpetuan-
em que os eixos são tratados como sistemas isolados e do as hierarquias que determinam quem pode valorizar
mutuamente excludentes – relegando experiências de su- ou reprovar a cultura do outro e instrumentalizando essa
jeitos interseccionalmente vitimados ao silenciamento e à presença da alteridade como forma de reiterar a posição
marginalização não apenas nos espaços hegemônicos, mas dos homens e/ou brancos como sujeitos e dos outros
também nos movimentos sociais. Enfatizando se tratar como objetos.
não da soma de opressões, mas de um entrecruzamento, Ao identificar o processo de categorização de
a autora negrita que cada forma de subalternidade inte- identidades como um exercício de poder, Crenshaw
rage com as demais vertentes, criando outras dimensões (1991) afirma não se tratar de um processo unilateral,
de desempoderamento. Desse modo, Crenshaw destaca enfatizando, inclusive, a possibilidade de agência dos
o posicionamento das mulheres negras em, pelo menos, sujeitos subalternizados por meio da participação ativa,
dois grupos subalternizados: além de negligenciar suas subversão e ressignificação de suas identidades. A autora
experiências, em diversos momentos históricos, estes cita, como exemplos desses movimentos, a apropriação
grupos defendiam agendas políticas conflitantes entre si. e transformação dos termos “negro” e “queer” por suas
A partir da visão sobre gênero, raça e demais comunidades como forma de se afirmarem e tornarem
categorias de poder como sistemas que se reforçam visíveis suas reivindicações. Sem desconsiderar a existên-
mutuamente, Crenshaw (1991) defende que a reação po- cia de uma dinâmica de poder assimétrica no processo de
lítica contra uma seja também uma reação contra todas, nomeação de categorias, Crenshaw afirma que, em alguma
inclusive nas políticas de representação e construção de medida, os sujeitos subalternizados podem exercer certo
sentidos por meio de imagens, discursos midiáticos e grau de agência em sua apropriação dessas identidades,
produções culturais. Sua proposta analítica, a “intersec- desempenhando-as como lugares sociais de resistência.
cionalidade representacional”, se dedica tanto aos modos Para a autora, essa subversão acontece quando esses
como essas imagens são produzidas por meio da conflu- grupos tomam essas identidades impostas como base
ência de narrativas dominantes de raça e gênero, como para o desenvolvimento de sua própria subjetividade em
ao reconhecimento de como as críticas à representação processos de ressignificação junto a valores positivos e

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na construção de laços de solidariedade no combate às Já a subinclusão é ilustrada por Crenshaw (2002)


desigualdades. Em sua concepção, as práticas de ocupação como uma situação na qual um subconjunto de mulheres
dessas identidades e de defesa de uma política a partir enfrenta um problema interseccional que, por não afetar
desses lugares sociais têm sido usadas na contemporanei- diretamente as mulheres brancas de classe média, não é
dade para a composição de uma estratégia de resistência tomado como um problema de gênero; ou, por não afetar
crítica, mais efetiva do que a invisibilização, apagamento aos homens negros, não é percebido como uma questão
ou tentativa de destruição dessas categorias. racista. Nesse fenômeno, a dimensão racial do problema
Em resposta às críticas que interpretam a inter- o torna invisível como questão de gênero, e vice-versa,
seccionalidade como um risco de divisão interna nos embora as vivências específicas dos sujeitos vitimados
movimentos sociais, Crenshaw (1991) destaca que essas por apenas uma categoria e privilegiados pelas demais
diferenças intragrupo já existem, em função das próprias sejam consideradas problemas do grupo social como um
categorias dominantes de poder, e reconhecê-las por todo, mesmo quando não afetam diretamente às mulheres
meio dessa abordagem é uma forma de contemplar os negras. A autora cita como exemplo dessa modalidade
sujeitos em suas vivências interseccionais – integrando- a esterilização não consentida de mulheres racialmente
os a partir do entendimento dos sistemas de dominação marginalizadas em diversos países, em que a incidência
como interligados e construindo laços de solidariedade seletiva não tem sido tratada como uma forma de discrimi-
fundamentados nessa opressão compartilhada. A autora nação simultaneamente de raça e gênero. Em suas próprias
argumenta que a consciência da interseccionalidade palavras, “nas abordagens subinclusivas da discriminação,
torna possível reconhecer e fundamentar as diferenças a diferença torna invisível um conjunto de problemas;
entre os sujeitos, de modo a negociar novas formas de se enquanto que, em abordagens superinclusivas, a própria
construir politicamente como um corpo coletivo. Assim, diferença é invisível” (CRENSHAW, 2002, p. 176).
o que Crenshaw propõe em sua concepção de abordagem Esse processo de invisibilização das diferenças que
interseccional não é a divisão dos movimentos sociais, compõem a interseccionalidade é elucidado por Crenshaw
mas precisamente sua integração, para que as práticas (2002) como produto de um pano de fundo de forças
de resistência e as políticas de promoção da igualdade econômicas, culturais e sociais, que constituem outros
contemplem as sobreposições e entrecruzamentos dessas sistemas de subordinação silenciados nas análises sobre
categorias que já existem na vida social dos sujeitos – de a vulnerabilidade das mulheres. Tais sistemas, cultural-
modo a beneficiar ao grupo como um todo, e não apenas mente solidificados de modo a parecerem fatos naturais e
aqueles que se encontram vitimados por uma categoria imutáveis, tornam esse pano de fundo estrutural invisível,
única e privilegiados pelas demais. eclipsando as demais categorias que complexificam as
A partir do entendimento de que a interação de experiências da opressão. A autora salienta que a inter-
dois ou mais eixos de subalternização pode reconfigurar seccionalidade deve iluminar esses aspectos, trazendo das
as estruturas da violência, exclusão e discriminação, modi- margens para o centro os dinâmicos entrecruzamentos da
ficando, intensificando ou criando condições particulares interação de dois ou mais eixos de subalternidade.
e específicas, Crenshaw (2002) aponta duas falhas ocasio- A ativista e socióloga feminista negra Patricia
nadas pelas análises focadas em eixos únicos: a superin- Hill Collins (2017), em sua revisão do percurso de ela-
clusão e a subinclusão. A superinclusão é definida como boração da interseccionalidade – desde seu surgimento
a absorção dos problemas interseccionais pela estrutura nos movimentos negros nas décadas de 1960 e 1970 ao
de gênero, falhando em reconhecer o papel do racismo abordar raça, gênero e classe como sistemas de poder
ou outra forma de subalternidade na composição do fenô- entrecruzados até sua inserção acadêmica, onde foi
meno. Para Crenshaw, na medida em que partem de uma nomeado e legitimado por essa esfera do conhecimento
compreensão incompleta e insuficiente do problema, as – identifica que essa transposição como forma de inves-
intervenções para remediá-lo tendem a ser ineficazes. A tigação crítica reflete uma tradução imperfeita. Para a
autora exemplifica com o tráfico de mulheres, questão for- autora, é precisamente em sua criação na interseção de
temente impactada por fatores raciais e socioeconômicos, múltiplos movimentos sociais, externos às instituições
mas que tende a ser tratada como um problema apenas de de poder, onde reside a potência desse conceito, o que
gênero – negligenciando, assim, categorias fundamentais explica, inclusive, sua apropriação para transformar o
para compreender as dimensões de vulnerabilidade das pensamento dessas instituições. Segundo Hill Collins, a
vítimas e constituir políticas efetivas para protegê-las. interseccionalidade conecta estes dois polos de produção

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de conhecimento, graças às mulheres negras engajadas acadêmicos, é preciso, portanto, reafirmar seus vínculos
em movimentos sociais que, ao ingressarem no ambiente com o comprometimento junto à justiça social.
acadêmico, trouxeram as sensibilidades de seu ativismo. Esse pensamento se encontra em consonância com
Uma crítica fundamental feita por Hill Collins a visão da ativista e teórica feminista negra bell hooks
(2017) é a tendência de que as narrativas sobre a formu- (1994), que afirma a necessidade de combinar teoria e
lação da interseccionalidade se limitem a demarcar sua prática, crítica e ação, epistemologias e ativismos, apon-
nomeação e integração à esfera acadêmica, negligencian- tando esse diálogo constante como caminho para a ruptura
do o histórico anterior de sua criação e aperfeiçoamento definitiva com o projeto colonial e suas reverberações
nos movimentos na década de 1980. A autora destaca que contemporâneas na continuidade de suas hierarquias
a própria Kimberlé Crenshaw (1989, 1991), ao cunhar o sociais e das categorias de poder e subalternidade. A
termo, identifica a prática da abordagem interseccional autora enfatiza a potência da abordagem interseccional
em outros projetos: – então nomeada como abordagem holística das formas
de dominação – manifestando sua oposição às lutas que
O artigo de Crenshaw oferece menos um ponto combatem apenas uma forma de opressão enquanto pra-
de origem da interseccionalidade, do que um ticam, perpetuam e ativamente se beneficiam de outras.
marcador que mostra como os limites estruturais Na concepção de hooks (1994), a revolução cul-
e simbólicos da interseccionalidade se deslocaram tural rumo à ressignificação das identidades e superação
ao longo dos anos de 1990, quando este projeto das assimetrias de poder só pode ser realizada por meio
de conhecimento foi afastado do movimento social da recusa a todas as esferas de dominação que constituem
e incorporado pela academia (HILL COLLINS, privilégios individuais e coletivos. Desse modo, a autora
2017, p. 10-11). enfatiza o caráter interligado e interdependente desses
sistemas, que, portanto, devem ser combatidos e transfor-
Um dos principais pontos fortes do trabalho de mados de forma conjunta. Para a autora, essa abordagem
Crenshaw (1989), segundo a leitura de Hill Collins (2017), holística fornece ferramentas para evitar “pontos cegos”,
que consistem na invisibilização das formas como outros
é o emprego dos princípios epistemológicos do ponto
eixos de subalternidade atuam sobre a vulnerabilidade dos
de vista (standpoint): a incorporação da forma como
sujeitos. Na perspectiva de hooks, sujeitos e instituições
as identidades configuram as experiências individuais,
que se comprometem com o combate a apenas uma das
relacionando-as com sua dimensão coletiva na criação
categorias de opressão não apenas permanecem ligados
de lugares sociais distintos a partir dos quais os sujeitos
à estrutura hegemônica, como se posicionam como cúm-
pensam, veem, interpretam e, principalmente, constroem
plices, alimentando esse sistema por outras vertentes.
saberes. Além do reconhecimento das mulheres negras
como produtoras de conhecimento, esse movimento tam-
bém enfatiza que todos os discursos partem de pontos de Conexões diaspóricas: a
vista particulares, ainda que estes sejam naturalizados e interseccionalidade no Brasil
revestidos sob a máscara da universalidade ou neutralida-
de atribuídas às categorias normativas de poder. No processo de reconhecimento das ativistas e
Outro aspecto fundamental salientado por Hill intelectuais negras que contribuíram para a formulação
Collins (2017) é que as contribuições de Crenshaw uniram da interseccionalidade, é fundamental considerar que essa
a sensibilidade dos movimentos pela igualdade social perspectiva não foi desenvolvida exclusivamente nos
a perspectivas teóricas sofisticadas, como as análises Estados Unidos – precisamente por ser concebida a partir
pós-modernas e pós-estruturalistas, atraindo a atenção das próprias experiências das mulheres negras em sua sub-
de acadêmicos-ativistas que compartilham do ethos da jetivação, que ocorre de forma interseccionalizada pelas
justiça social da interseccionalidade. Em sua visão, o diversas categorias estruturais que compõem suas iden-
trabalho de Crenshaw ofereceu ferramentas para desafiar tidades. Considerando que a busca pela descolonização
a pretensa objetividade científica – sem compromisso do saber por meio de epistemologias contra-hegemônicas,
com o ativismo progressista – que regia, e alguns casos criadas a partir de seus próprios lugares sociais, é um
ainda rege, as normas acadêmicas. Hill Collins (2017) fenômeno que perpassa toda a diáspora negra, é preciso
destaca que, para que a interseccionalidade não se enfatizar as contribuições das mulheres negras brasileiras
perca na tradução em sua incorporação pelos discursos na articulação dos diversos eixos de subalternidade como

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sistemas interligados. de mulher a partir do ponto de vista feminista – de modo


Esse aspecto foi discutido pela ativista e filósofa que uma mulher negra trabalhadora não é triplamente
negra Angela Davis, em sua palestra na Universidade oprimida ou mais oprimida do que uma mulher branca,
Federal da Bahia em 25 de julho de 2017, Dia da Mulher mas experimenta a subalternidade a partir de lugares e
Afro-Latina e Caribenha. Na ocasião, a autora apontou pontos de vista diferentes em relação ao que significa
uma tendência a centralizar a produção intelectual das ser mulher em uma sociedade tão marcada por essas
feministas negras estadunidenses, devido à sua maior desigualdades.
visibilidade e poder de circulação nas discussões inter- Em sua visão, os eixos de opressão estrutural se
nacionais quando comparadas às do Sul Global. Nesse reconfiguram mutuamente em um mosaico a ser compre-
sentido, Davis enfatiza a importância das mulheres negras endido necessariamente em sua multidimensionalidade:
na produção de epistemologias decoloniais e no ativismo “De acordo com o ponto de vista feminista, portanto, não
pela igualdade, homenageando Rosa Parks, Lilian Ngoyi, existe uma identidade única, pois a experiência de ser
Carolina Maria de Jesus e incluindo Lélia Gonzalez dentre mulher se dá de forma social e historicamente determina-
as pioneiras na articulação entre eixos de subordinação: das” (BAIRROS, 1995, p. 461). Essa perspectiva permite
contemplar a pluralidade dos movimentos e a atuação das
E muito tempo antes do conceito de interseccio- feministas negras no Brasil, evidenciando a impossibilida-
nalidade ter sido utilizado, Lélia Gonzalez não de de pensar nessas opressões separadamente, já que são
apenas insistia que deveríamos compreender que vivenciadas conjuntamente. A partir da teoria do ponto
a completa inter-relação de raça, classe e gêne- de vista (standpoint theory), Bairros (1995) destaca que o
ro; mas insistia também que deveríamos ter em pensamento feminista negro prescinde de uma identidade
mente as nossas conexões, os nossos elos com a comum para todas as mulheres. A autora retoma as con-
comunidade indígena; as conexões com os povos tribuições de bell hooks para argumentar que a dimensão
indígenas e os povos negros (2017, transcrição compartilhada não é a mesma opressão, mas a luta para
da palestra). acabar com o sexismo e com as relações de poder baseadas
em diferenças de gênero socialmente construídas – con-
No levantamento bibliográfico realizado pelo templando a multiplicidade de formas em que podem se
cientista político negro Cristiano Rodrigues (2013) sobre manifestar, complexificadas nos entrecruzamentos com
os estudos de gênero e raça nas décadas de 1980 e 1990 outras categorias de poder e subalternidade.
no Brasil, o autor aponta a recorrência dos nomes de Segundo a filósofa, educadora e ativista antir-
Luiza Bairros, Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Sueli racista Sueli Carneiro (2003), os movimentos sociais
Carneiro, Edna Roland, Jurema Werneck, Nilza Iraci e progressistas brasileiros apresentam uma forte tradição
Matilde Ribeiro. Segundo Rodrigues, a atuação dessas eurocêntrica, de modo que tendem a universalizar as ex-
mulheres negras foi fundamental na reconfiguração dos periências sem considerar, devidamente, fatores raciais.
movimentos negros e feministas, bem como na construção Esse modelo de feminismo não era capaz de reconhecer
de um campo teórico que articula esses e outros eixos as diferenças e desigualdades entre mulheres: “Dessa
como sistemas interligados, que devem ser abordados forma, as vozes silenciadas e os corpos estigmatizados
conjuntamente. de mulheres vítimas de outras formas de opressão além
O pensamento da ativista e socióloga feminista do sexismo, continuaram no silêncio e na invisibilidade”
negra Luiza Bairros (1995) enfatiza o papel das mulheres (CARNEIRO, 2003, p. 118). Assim, foi necessária a ree-
negras na produção de conhecimento contra-hegemônico, laboração do discurso e das práticas políticas feministas,
não apenas nas universidades, mas em suas práticas que a autora nomeia como “enegrecer o feminismo”, por
cotidianas. A autora parte dos modelos consolidados de meio da crítica à formulação clássica feminista branca e
definição do que constitui a mulher, baseados em uma ocidental e construindo alternativas à insuficiência prática
ideia de natureza feminina e na experiência da mater- e teórica dessa perspectiva para contemplar as mulheres
nidade e sexualidade, levando à afirmação “o pessoal é de sociedades multirraciais.
político” como forma de abordar a dimensão estrutural As contribuições da antropóloga e ativista femi-
das vivências de opressão sexista. Interrogando o que nista negra Lélia Gonzalez impactaram fortemente os
poderia existir de comum entre mulheres de grupos raciais movimentos feministas e negros, bem como as pesqui-
e classes sociais distintas, a autora complexifica a noção sas acadêmicas de raça e gênero no Brasil. A autora é

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A interseccionalidade e o entrecruzamento de violências epistêmicas no videoclipe ‘Mandume’

lembrada por intelectuais ativistas por seu pensamento negras escravizadas, Gonzalez (1984) destaca que o
sofisticado, inovador e bem fundamentado em um vasto autor pouco tem a dizer sobre essas mulheres e seus
repertório teórico que, combinado à escolha política por familiares, já que lhes nega a condição de humanidade.
uma linguagem popular e acessível, a posiciona entre Em sua visão, essa abordagem reificadora se estende à
as mais importantes intelectuais brasileiras. Seu famoso construção do conhecimento, que posiciona as pessoas
artigo “Racismo e sexismo na cultura brasileira” é um dos negras sempre como objeto – e não como produtores – do
principais marcos para se pensar na articulação entre raça saber: “É por aí que a gente compreende a resistência de
e gênero. Publicado apenas em 1984, o trabalho havia sido certas análises que, ao insistirem na prioridade da luta
apresentado em outubro de 1980 na Reunião do Grupo de classes, se negam a incorporar as categorias de raça e
de Trabalho “Temas e problemas da população negra no sexo. Ou seja, insistem em esquecê-las” (GONZALEZ,
Brasil” do IV Encontro Anual da Associação Brasileira de 1984, p. 232). Nesse ponto, a autora expõe uma discus-
Pós-Graduação e Pesquisa nas Ciências Sociais. são recorrente e que se perpetua até a atualidade entre
Gonzalez (1984) participou de uma série de sim- a esquerda brasileira e os movimentos negros, que não
pósios internacionais no final da década de 1970 que, se vêem devidamente contemplados na transposição do
embora centralizados nas questões apenas de gênero, marxismo ortodoxo para a realidade brasileira – na medida
abriam algum espaço para as discussões raciais, consi- em que esse pensamento, para além de seus méritos, não
derando essas experiências muito enriquecedoras para é suficiente para apreender a complexidade das relações
sua formação. A autora aponta a militância política no de seleção ocupacional e mobilidade social em socieda-
Movimento Negro Unificado (MNU) como fundamental des multirraciais (HASENBALG, 1982). A partir desse
para sua compreensão das relações raciais brasileiras, cenário, Gonzalez expõe precisamente a necessidade da
junto à participação no Grêmio recreativo de arte Negra abordagem interseccional para compreender e combater
e na Escola de Samba Quilombo. Diante das contradi- as desigualdades estruturais, propondo “articular divisão
ções dos modelos construídos pelas ciências sociais e racial e sexual de trabalho” (1984, p. 233) para explicar o
de sua insuficiência para dar conta da complexidade e efeito das práticas discriminatórias no confinamento das
multidimensionalidade da vivência social das mulheres mulheres negras em posições de subalternidade.
negras, a autora instrumentalizou as figuras da “mulata”, Partindo do racismo como sintoma da neurose cultu-
“doméstica” e “mãe preta” entranhadas no imaginário ral brasileira, Gonzalez (1984) considera que sua articulação
cultural brasileiro para elucidar questões mais profundas com o sexismo constitui formas de violência específicas e
desse lugar social. mais intensas sobre as mulheres negras. Para a autora, esse
Segundo Gonzalez, o mito da democracia racial posicionamento no entrecruzamento de, pelo menos, dois
oculta aspectos para além dos que mostra, enfatizando eixos de opressão afetam nossas visões de mundo e nossas
que essa violência simbólica atinge desproporcionalmente interpretações sobre as situações sociais de desigualdade,
às mulheres negras. A autora prossegue em um proces- na medida em que partimos de lugares sociais diferenciados
so de historicização da figura da mucama e seu lugar para construir nossas perspectivas. Gonzalez expõe as no-
social, demonstrando como as relações hierárquicas se ções de consciência, como o terreno do desconhecimento,
perpetuam no imaginário cultural de modo a destacar os encobrimento, alienação, saber e esquecimento por meio
efeitos da sobreposição das opressões de raça e gênero na dos quais o discurso ideológico hegemônico se materializa;
vivência das mulheres negras, em termos das formas de e memória, que a autora define como “o não-saber que
violência e dos significados normativos designados nas conhece, esse lugar de inscrições que restituem uma histó-
relações profissionais, familiares e afetivo-sexuais. Na ria que não foi escrita, o lugar da emergência da verdade”
visão de Gonzalez (1984), a negra anônima da periferia (1984, p. 226). A autora identifica entre esses elementos uma
é a principal vítima da culpabilidade branca – a partir da dinâmica na qual a consciência exclui aquilo que a memória
sobreposição com o recorte de classe, a autora demonstra volta a incluir, em uma relação marcada pela manifestação
a necessidade de uma análise entrecruzada para evidenciar da consciência como o discurso cultural dominante, que
a complexidade da vulnerabilidade social dos sujeitos de oculta e silencia a memória na imposição daquilo que afirma
uma maneira que a análise apenas de gênero (ou apenas como verdade. No entanto, Gonzalez destaca que a memória
de raça, ou apenas de classe) não é capaz de informar. desenvolve suas próprias astúcias e estratégias, em um jogo
Comentando a análise do sociólogo Caio Prado de cintura diante das adversidades do poder, que permite sua
Jr. sobre as relações sexuais entre senhores e mulheres sobrevivência em meio à hegemonia da consciência.

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Lucianna Furtado

Nesse sentido, é possível interpretar o pensamento ca, Akotirene (2018) recorre a Exu, divindade africana
de Gonzalez (1984) como a formulação do lugar social das que rege a comunicação, destacando-o como senhor da
mulheres negras em uma perspectiva que, a partir de sua encruzilhada e, portanto, senhor da interseccionalidade.
vivência da dominação de gênero e raça, dentre outras, de Segundo Akotirene, a sabedoria de Exu demonstra como
forma simultânea, interligada, sobreposta, entrecruzada, os processos coloniais amordaçaram as pessoas negras
permite emergir formas de conhecimento, visões de mun- politicamente, impedindo-nos de beber da nossa própria
do e referências interpretativas dissidentes das tradições fonte epistêmica. A autora vê a interseccionalidade como
hegemônicas. Para a autora, apesar de historicamente “a autoridade intelectual de todas as mulheres que um dia
silenciadas por essas categorias de opressão, os olhares foram interrompidas. A interseccionalidade é sofisticada
e conhecimentos das mulheres negras encontram meios fonte de água, metodológica, proposta por uma intelectual
de sobrevivência e continuam a desafiar as estruturas de negra, por isto é tão difícil engolir os seus fluxos feitos
poder e subalternidade. mundo afora” (AKOTIRENE, 2018, p. 109). Sua pesquisa
Desse modo, a interseccionalidade é fruto da demonstra que o próprio conceito está em disputa, sendo
riqueza do pensamento das mulheres da diáspora negra, apropriado e desvinculado do território intelectual femi-
constituindo fonte potente de intelectualidade contra- nista negro, o que a autora nomeia como epistemicídio e
-hegemônica precisamente por seu desenvolvimento na racismo epistêmico. Para Akotirene, omitir o crédito do
militância política a partir de lugares sociais de subalter- feminismo negro e da diáspora sobre a interseccionalidade
nidade. Como ferramenta teórico-metodológica, é uma é equivalente a explorar a riqueza intelectual africana sob
forma de expor a complexidade das formas de opressão a máscara da modernidade.
simbólico-discursivas e estruturais que permeiam a vi-
vência dos sujeitos, a fim de compreender as condições Das margens para o
históricas de violências entremeadas à sua fala por meio
da materialidade de seus lugares sociais. Essa intersec- centro: desestabilizando
cionalidade representa, então, um movimento de ruptura o sujeito universal
com as práticas correntes de silenciamento – eviden-
ciando, na própria fala demarcada por essas identidades Nesta seção, será discutido o videoclipe Mandume
subalternizadas, modos de resistência e posicionamentos (2016), dos rappers Emicida, Drik Barbosa, Amiri, Rico
contra-hegemônicos ao reivindicar o direito de nomear, Dalasam, Muzzike e Raphão Alaafin, e direção de Gabi
narrar, definir, ou seja, a legitimidade da construção da Jacob. O título da música faz referência ao rei Mandume
realidade social a partir de suas próprias experiências às ya Ndemufayo, líder da resistência contra as missões
margens das estruturas de poder. evangelizadoras e as invasões coloniais portuguesas e ale-
Para a pesquisadora e ativista negra Carla Akotire- mãs em Angola, resgatando a memória cultural da matriz
ne (2018), mais do que a mera abordagem de identidades africana para construir, junto às pessoas negras, uma visão
múltiplas, a interseccionalidade pode ser operacionalizada heroica, de poder e resistência da própria ancestralidade
como uma lente analítica sobre a interação desses eixos e cultura. O videoclipe não aborda, diretamente, a histó-
estruturais, evidenciando seus efeitos políticos e legais. ria de Mandume em si, mas seu valor simbólico como
Enfatizando sua potência criativa, a autora afirma que a referência e inspiração, fazendo uso do seu apagamento
ausência dos letramentos interseccionais nos trabalhos de na historiografia tradicional como forma de articular as
ordem feminista e antirracista comprometem sua eficácia dimensões dessa violência epistêmica racista na vida
na garantia dos direitos humanos, na medida em que am- social das pessoas negras hoje – evidenciando, assim, o
bos estarão sujeitos a pontos cegos e reforçarão a opressão que há de Mandume em nós e o que deve haver da história
enfrentada pelo outro. Em sua visão, a interseccionalidade de Mandume em nossa própria história.
oferece instrumentalidade teórico-metodológica para lidar Segundo Vera França (2018), o modelo praxiológi-
com a complexidade da inseparabilidade estrutural do co da Comunicação, de base pragmatista, toma as práticas
racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado, referindo-se comunicacionais como constitutivas das relações sociais
às categorias de gênero, raça e classe como modernos e, portanto, ligadas às questões políticas macroestruturais
aparatos coloniais. da sociedade. Nesse âmbito, para a autora, deve-se buscar
Ao enfatizar a necessidade de descolonizar as iluminar as relações entre o caráter concreto e particular
perspectivas hegemônicas de base iluminista eurocêntri- das interações comunicativas e sua inscrição em dinâmi-

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A interseccionalidade e o entrecruzamento de violências epistêmicas no videoclipe ‘Mandume’

cas de poder mais amplas, observando os entrelugares Na visão de Angela Davis (2018), essas categorias
que conectam essas dimensões em processos de afetação supostamente universais apresentam atribuições clandesti-
e reconfiguração mútuas. Combinada ao aporte intersec- nas de gênero e raça, centralizadas nos polos privilegiados
cional, essa perspectiva orienta o foco para a experiência por esses eixos. Nas palavras da autora, “Ao longo de
dos sujeitos em suas interações sociais – evidenciando não grande parte da história, a própria categoria de ‘ser humano’
apenas os modos como as categorias de poder permeiam não abarcou as pessoas negras e de minorias étnicas. Seu
as relações sociais, mas permitindo também interrogar a caráter abstrato era formado pela cor branca e pelo gênero
construção da normatividade por meio da naturalização masculino” (2018, p. 85). Nesse sentido, Davis considera
e silenciamento dos polos de privilégio como pontos de que qualquer tentativa de ação crítica contra a estrutura
vista objetivos, neutros ou universais. racista exige a devida compreensão histórica da tirania
Retomando o discurso de Sojourner Truth (2017 entremeada a essa ideia de universal, empreendida por meio
[1851]), as pesquisadoras Avtar Brah e Ann Phoenix dos esforços de ressignificação dos movimentos sociais.
(2004) evidenciam sua potência para questionar o signi- Esse gesto de descentralização de categorias nor-
ficado de ser mulher em diferentes circunstâncias histó- mativas de poder é realizado em Mandume ao trazer as
ricas, bem como a definição da branquitude como sujeito pessoas negras das margens dos regimes de visibilidade
normativo do imaginário ocidental, interrogando o que para o centro da narrativa. Praticamente todos os sujeitos
acontece quando os sujeitos subalternos repudiam as práti- que compõem o videoclipe são negros, em contraponto
cas de silenciamento às quais são submetidos. Segundo as direto à imagem dominante da branquitude como centro
autoras, a identidade política na fala de Truth não é tomada de todas as narrativas – tanto nas representações tradicio-
como pressuposto, mas performada por meio da retórica nais de poder e da historiografia oficial como dentro dos
e da narração. Desse modo, Brah e Phoenix consideram próprios movimentos feministas, LGBTQ, trabalhistas,
que suas afirmações sobre a identidade são relacionais, partidos de esquerda, bem como na produção do conhe-
construídas em relação às mulheres brancas e a todos os cimento acadêmico, às vezes de forma crítica, sobre as
homens – evidenciando a emergência das identidades não mesmas estruturas de poder que por muito tempo garan-
como objetos, mas como processos constituídos por meio tiram sua exclusividade e protagonismo nesses espaços.
de relações de poder. Como visto anteriormente, a centralidade dos
Na perspectiva de Brah e Phoenix (2004), um discursos e ações dos movimentos sociais nos sujeitos
aspecto chave das contribuições feministas para a ideia que, dentre cada grupo subalternizado, são os mais
de interseccionalidade é seu foco na descentralização do privilegiados pelos outros eixos, reproduz práticas de
sujeito normativo do feminismo, em ações coletivas que silenciamento sobre as vivências e demandas dos grupos
se desenvolveram junto à ascensão das reivindicações interseccionalmente oprimidos. Desse modo, iluminar as
pelos direitos civis da população negra, dos movimentos vozes de sujeitos negros como centrais nas discussões so-
trabalhistas e LGBTQ. Desse modo, nas discussões de bre feminismo, regimes de visibilidade e epistemológicos,
enfrentamento a eixos hegemônicos de poder, constituiu- movimentos LGBTQ, classe e intolerância religiosa é um
-se uma tendência a interrogar a ideia moderna de um gesto contundente e transformador realizado na construção
sujeito único auto-referente, por meio das políticas de narrativa de Mandume, que contribui para desestabilizar
posicionalidade a partir de lugares sociais interseccionais: a hegemonia da branquitude como norma da produção de
“O conceito de ‘opressões simultaneamente interligadas’, conhecimento legitimada pela tradição ocidental.
que eram locais ao mesmo tempo em que eram globais, Por meio dos relatos testemunhais dos sujeitos
foi uma das primeiras e mais produtivas formulações da negros sobre suas próprias experiências de opressão,
subsequente teorização de um ‘sujeito descentralizado’” desigualdade e exclusão, Mandume abre brechas nas
(2004, p. 78, tradução nossa). Nesse sentido, é possível estruturas do saber e busca romper com as práticas de
afirmar que o protagonismo das experiências interseccio- silenciamento do projeto colonial. Essa ruptura é abordada
nais na subjetivação dos sujeitos a partir de seus lugares no refrão – “Eles querem que alguém / Que vem de onde
sociais de subalternidade é um movimento que oferece nóiz vem / Seja mais humilde, baixe a cabeça / Nunca
a potência de descentralizar a normatividade de sujeitos revide, finja que esqueceu a coisa toda / Eu quero é que
de grupos dominantes. eles se ----!”3 – por meio da referência à historicidade das

3
Refrão da música Mandume. Fonte: Genius. Disponível em: http://bit.ly/2DZORf1. Acesso em: 27 nov. 2018.

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Lucianna Furtado

identidades na configuração da dominação, evidenciando como emerge nas experiências individuais e coletivas
as relações entre identidade individual e coletiva na sua das pessoas negras.
construção como categorias estruturais de poder e subal- O solo de Rico Dalasam, por sua vez, realiza essa
ternidade, privilégio e exclusão, declarando a resistência descentralização por meio do entrecruzamento do geno-
à imposição desse silenciamento. cídio negro com a violência contra pessoas LGBTQ. A
A entrada de Drik Barbosa como autora do pri- fala do rapper dialoga com formas de linguagem infor-
meiro solo da música diz da potência e importância da mais, como ditados populares e memes, para demonstrar
atuação das mulheres negras no enfrentamento a essas a assimetria entre manifestações de animosidade feitas
categorias de poder em suas práticas cotidianas, aprimo- pela branquitude contra pessoas negras e vice-versa:
rando os movimentos feministas e negros, dentre outros, enquanto a primeira é a expressão simbólica que fun-
e transformando os espaços que ocupam. Essa relação foi damenta e legitima violências concretas, estruturais; a
demonstrada na contextualização histórica do surgimento segunda é uma forma de resistência, que ainda assim,
da perspectiva interseccional e sua inserção no ambiente não é capaz de se equiparar e apagar a anterior, não traz
acadêmico como forma de instrumentalizar os lugares de volta as vítimas da violência racista. Após a pausa de
sociais de subalternidade para a construção de formas de suspense, Rico Dalasam canta: “Domado eu não vivo,
conhecimento revolucionárias, evidenciando como essa eu não quero ser o crivo / Ver minha mãe jogar rosas /
posicionalidade dos sujeitos, suas experiências e visões de Sou cravo vivido dentre os espinhos treinados / Com as
mundo atuam na elaboração política de suas epistemolo- pragas da horta”, enfatizando a formação coletiva de uma
gias. Com o olhar firme, uma expressão forte e confiante, cultura de força e resistência em meio à encruzilhada de
Drik Barbosa destaca: “Tanta ofensa, luta intensa nega a opressões sobrepostas e combinadas. A narrativa visual,
minha presença / Chega! Sou voz das nega que integra que mostra uma travesti negra enfrentando os conflitos
resistência (...) Feminismo das preta bate forte, mó treta / com sua imagem impostos pela norma cisheteropatriarcal
Tanto que hoje cês vão sair com medo de bu----!”. A figura enquanto se arruma e hesitando em descer para a festa, dá
da rapper dialoga com a narrativa visual, das lutadoras uma pista sobre a inclusão LGBTQ: o gesto de convite
de boxe reagindo ao assédio masculino, construindo uma para se juntar a todos e o sorriso de receptividade são
imagem de força e resistência das mulheres negras em sua realizados por uma mulher negra.
organização coletiva contra a violência racista e sexista Muzzike dedica seu solo ao entrecruzamento entre
de forma entrecruzada. raça e classe, destacando a perpetuação da escravização
Ao abordar as formas de representação em seu da população negra por meio do confinamento às clas-
solo, Amiri evidencia o apagamento dos heróis negros ses mais pobres da sociedade, às margens do acesso a
na construção da historiografia tradicional e os efeitos oportunidades de ascensão social, expostas ao abandono
dessa violência simbólica sobre as mentes das pessoas das políticas públicas, à violência policial sancionada
negras, enfatizando: “Mas, mano, sem identidade somos pelo Estado e ao encarceramento em massa. O rapper
objeto da história / Que endeusa ‘herói’ e forja, esconde os destaca a periferia como um lugar de contestação e
retos na história”. A narrativa visual que acompanha seu potência criativa, criticando abertamente a apropriação
solo mostra o protesto de um casal negro contra as capas dessa riqueza cultural por parte de quem não vivencia
de revistas que trazem exclusivamente pessoas brancas, suas adversidades, e provoca: “Tá pra nascer playboy pra
cobrindo-as com fotos de pessoas negras famosas por entender o que foi ter as corrente no pé”. A interação de
seu ativismo e atuação na arte, música e intelectualidade sua fala com a narrativa visual, que passa de imagens de
negras, posicionando-as como heróis negros contempo- violência policial nos rolezinhos em shoppings de classe
râneos. A interação entre essas imagens e a fala do rapper média à performance de dançarinos periféricos, enfatiza
enfatiza a estreita relação entre as perspectivas históricas a experiência da exclusão interseccional como um lugar
hegemônicas e o epistemicídio dos povos africanos no social de produção cultural, de consciência e resistência.
projeto colonial; entre os regimes de visibilidade e as tra- O solo de Raphão Alaafin, tematizando a violência
dições de conhecimento; entre os modos de representação contra as matrizes afrorreligiosas, destaca a atuação do
e a definição de quais sujeitos são dotados de humani- cristianismo para legitimar discursivamente a dominação
dade. Desse modo, é evidenciado o entrecruzamento do escravocrata e, assim, colonizar também as mentes e es-
racismo com a violência epistêmica, demonstrando como píritos dos povos africanos e americanos. Desse modo,
essa imposição colonial ainda reverbera na atualidade e a catequização não se limita à imposição das práticas

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A interseccionalidade e o entrecruzamento de violências epistêmicas no videoclipe ‘Mandume’

religiosas, mas se estende também às normas da vida modo, a narrativa delineada enfatiza os entrecruzamentos
social e à epistemologia eurocêntrica na formulação das dos outros eixos com a raça na composição do quadro
visões de mundo que regem os lugares sociais no projeto de referências que revestem de significado, naturalizam
colonial. O rapper evidencia, assim, que os ataques contra e legitimam o genocídio negro em curso na sociedade.
a umbanda e o candomblé não se configuram meramente A centralização de vozes negras como dotadas do
como intolerância religiosa, mas como racismo religioso, poder de nomear, definir e produzir conhecimento sobre
na medida em que a historicidade desse preconceito espe- as violências e opressões entrecruzadas que incidem sobre
cífico decorre das práticas racistas coloniais que hierarqui- elas é, por si só, um gesto de avanço nos movimentos
zam as culturas, ciências e religiões. Na fala de Alaafin, progressistas – no entanto, é inegável que a narrativa de
“Não temos papa, nem na língua ou em escrita sagrada”, Mandume traz resquícios de uma centralidade normativa
bem como na narrativa visual paralela, a umbanda e o masculina em sua composição. Embora as narrativas visu-
candomblé prevalecem como prática cultural de resistên- ais do videoclipe tragam mulheres negras em posições de
cia e fonte de conhecimento ancestral, sobrevivendo às igualdade e parceria com os homens negros, e as presenças
violências e perseguições da sociedade normativa cristã. de Drik Barbosa e Rico Dalasam constituam brechas de
No solo final, Emicida destaca os caminhos tri- resistência na configuração do cisheteropatriarcado, cinco
lhados por si mesmo e por outras figuras negras ao fazer dos seis rappers com o poder de verbalizar suas experiên-
uso do espaço midiático como celebridade para levantar cias são homens, deixando escapar que ainda persiste um
discussões sobre a exclusão racista, demonstrando como regime de centralidade masculina nos movimentos negros.
sua ascensão artística no rap proporciona uma platafor- Desse modo, a abordagem interseccional, que é
ma de grande alcance e visibilidade para seu ativismo uma das principais contribuições do pensamento femi-
antirracista. Mais do que um espaço de denúncia e pen- nista negro para o estudo das desigualdades sociais como
samento crítico, o rapper tem construído sua trajetória de opressões de natureza interligada, acaba sendo utilizada
modo a criar e fazer florescer referências positivas para no videoclipe de modo a priorizar as vozes de homens
as identidades negras – evidenciando a reconstrução e negros sobre suas vivências de violência epistêmica, dis-
ressignificação da negritude em relações de amor, orgu- criminação contra pessoas LGBTQ, classe e intolerância
lho e afeto como uma forma potente de resistência. Ao religiosa – trazendo uma mulher apenas no momento
falar das vitórias do gueto, Emicida canta: “Vitórias do de falar de sua experiência feminina. As perspectivas
gueto, luz pra quem serve / Na trama, conhece os louro das mulheres negras são dotadas de potencial contra-
da fama / Ok, agora olha os preto, chama!”. Seu verso -hegemônico não apenas para questões especificamente
final, de convocação aos seus pares negros, faz referên- feministas dentro dos movimentos negros (ou de questões
cia a princípios fundamentais dos movimentos negros: a negras dentro dos movimentos feministas), mas tratar
importância da dimensão coletiva, a consciência de que das questões negras (e feministas) de modo geral. As
a ascensão individual pregada pela lógica neoliberal não mulheres negras também são subalternizadas pelos outros
é suficiente para o combate ao racismo, a necessidade de eixos de opressão tematizados, inclusive representando
que as pessoas negras se comprometam com a inserção papel central na umbanda e candomblé, e seus pontos de
da coletividade negra nos espaços que ocupam. vista têm muito a enriquecer as narrativas sobre esses
Nesse sentido, a narrativa de Mandume apresenta entrecruzamentos.
sua potência em contestar a universalização das demais A articulação da interseccionalidade para construir
formas de opressão em experiências brancas, posicio- uma narrativa complexa do genocídio negro em Mandu-
nando os sujeitos negros como centrais para a apreensão me é sua grande potência e, ao mesmo tempo, expõe sua
da vulnerabilidade e violência como uma teia social fraqueza: a persistência do protagonismo das vozes mas-
multifacetada, passo necessário para propor novos pac- culinas como norma em diversos espaços dos movimentos
tos de sociedade. Ao contar não a história individual de negros. A historicidade da criação e desenvolvimento da
Mandume, mas a complexidade das experiências negras interseccionalidade por meio do trabalho das mulheres
interseccionadas e intensificadas por outras categorias de negras – precisamente a partir de seu silenciamento nos
poder e subalternidade, o videoclipe enfatiza a dimensão movimentos negros, feministas, trabalhistas e LGBTQ
da coletividade, partindo das vivências pessoais como dos quais participam – torna a ausência de mais mulheres
meio para analisar questões estruturais e sistêmicas, des- negras dotadas do poder de falar e nomear ainda mais
pertando o Mandume dentro de cada um de nós. Desse visível no videoclipe, por evidenciar que sua riqueza in-

revista Fronteiras - estudos midiáticos Vol. 21 Nº 3 - setembro/dezembro 2019 153


Lucianna Furtado

telectual foi acolhida nos movimentos negros, mas ainda estar surtindo efeito: o Lab Fantasma, propriedade do
há resquícios da normatividade patriarcal que motivou a músico, tem trabalhado em parceria com as artistas Drik
elaboração dessa perspectiva. Ao analisar o videoclipe Barbosa, Juçara Marçal, Akua Naru e o grupo Slam das
Mandume sob a luz da interseccionalidade que a própria Minas, coletivo feminista que promove batalhas de poesia.
narrativa evoca, essa chave conceitual representou, si- A lente analítica da interseccionalidade demons-
multaneamente, sua fecundidade intelectual e seu deslize, tra, assim, que mesmo os sujeitos subalternizados por
expondo contradições internas que ainda persistem em um eixo de opressão e comprometidos com movimentos
diversos espaços de militância política. sociais podem incorrer na reprodução de outras opres-
O foco orientado para as práticas comunicativas sões, conforme a articulação com outras categorias que
como ação e como relação nos permite identificar, as- os situam em posição de vantagem sobre outros sujeitos.
sim, duas dimensões dos relatos do videoclipe a partir Mais do que isso, a abordagem interseccional evidencia
das experiências desses sujeitos interseccionalmente seu potencial como caminho de resistência crítica, tanto
subalternizados: a primeira, na qual a perspectiva negra nos diálogos dentro dos próprios movimentos sociais e
de cada um dos rappers é centralizada como denominador espaços culturais de grupos subalternizados como frente
comum entre os entrecruzamentos com os demais eixos aos grupos dominantes e às instituições de poder.
de suas experiências; e outra, ligada ao conjunto formado
por esses rappers em relação um ao outro, que evidencia a Considerações finais
normatividade masculina de sua composição. Fica eviden-
te, assim, a potência da interseccionalidade para iluminar Esse artigo analisou o videoclipe Mandume
o pano de fundo da normatividade do poder, construído (2016), dos rappers Emicida, Drik Barbosa, Amiri, Rico
pelas dinâmicas econômicas, culturais e sociais, conforme Dalasam, Muzzike e Raphão Alaafin, e direção de Gabi
descrito por Crenshaw (2002). Jacob, investigando o que os relatos de suas vivências
Para além da compatibilidade que os relatos de interseccionais da opressão revelam sobre as relações
cada rapper, isoladamente, apresentam com a aborda- raciais. O trabalho evidenciou o caráter estrutural do
gem interseccional dos movimentos sociais, essa análise racismo, impactando os sujeitos negros em múltiplas
auto-referencial permitiu interrogar os modos como o esferas de sociabilidade e interagindo com outros eixos
videoclipe contesta a normatividade branca ao mesmo de dominação de modo a produzir formas de exclusão,
tempo em que perpetua a normatividade masculina. opressão e violência complexificadas e específicas a cada
Nessa emergência ambivalente e paradoxal da intersec- entrecruzamento. Nesse sentido, a interseccionalidade
cionalidade, o videoclipe reitera a importância do olhar tem se mostrado como um conjunto de lentes analíticas
interseccional por meio dessas duas vias: demonstrando fundamental para desconstruir a noção de sujeitos e
os benefícios dessa abordagem na construção de conhe- epistemologias pretensamente universais, evidenciando
cimento e de manifestações políticas, e ao mesmo tempo, as identidades como categorias estruturais de poder e
reiterando a necessidade de atenção a esses pontos cegos, subalternidade e, assim, instrumentalizando a posicionali-
por meio da própria contradição em reforçar a normati- dade de nossos lugares sociais como sujeitos e dos lugares
vidade masculina. de fala de nossas epistemologias de modo a tensionar as
Longe de afirmar que a sombra dessa normativi- hierarquias dos saberes, do fazer político e dos modos
dade anula as contribuições da narrativa construída pelo de comunicar.
videoclipe, a proposta é apenas demonstrar que algumas No videoclipe, a abordagem interseccional evi-
das contradições que tornaram necessária a criação e denciou sua própria potência como ferramenta de trans-
desenvolvimento da abordagem interseccional ainda es- formação social, mas também demonstrou que mesmo os
tão em prática na atualidade, o que atualiza e reitera sua movimentos negros ainda não se veem totalmente livres
importância como forma de aprimorar os movimentos de suas próprias contradições internas – embora considero
sociais. Emicida, à frente da composição e produção do que estes se encontram, em geral, mais avançados nesse
videoclipe, tem um histórico de manifestações machistas esforço decolonial do que os demais movimentos sociais,
que receberam diversas críticas de grupos feministas, que que, em sua imensa maioria, desconhecem, ainda não
passam da música “Trepadeira” ao uso de ofensas sexistas compreenderam a importância ou mesmo abertamente
no duelo de MC’s contra Negra Rê (RIBEIRO, 2015). Al- rejeitam a interseccionalidade como estratégia para
guns anos depois, os debates e diálogos críticos parecem evitar a reprodução de outras hierarquias e categorias

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A interseccionalidade e o entrecruzamento de violências epistêmicas no videoclipe ‘Mandume’

de opressão. Paralelamente, o videoclipe traz também Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 223-244.
a potência da cabeça erguida e dos olhares de orgulho, HASENBALG, C. 1982. Raça, classe e mobilidade. In: GON-
no que diz respeito à subjetivação individual e coletiva, ZALEZ, L.; HASENBALG, C. (ed.), Lugar de Negro.
bem como da valorização e legitimidade de nossa riqueza Rio de Janeiro, Marco Zero, p. 67-102.
epistemológica negra, nossos modos de articular pensa- HILL COLLINS, P. 2017. Se perdeu na tradução? Feminismo
mentos decoloniais e confrontar a hegemonia discursiva negro, interseccionalidade e política emancipatória.
da branquitude. Parágrafo, 5(1): 6-17.
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