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DOI: 10.1590/1413-81232015212.

00982015 553

O humor e o riso na promoção de saúde: uma experiência

temas livres free themes


de inserção do palhaço na estratégia de saúde da família

Humor and laughter in health promotion: a clown insertion


experience in the family health strategy

Cristiane Miryam Drumond de Brito 1


Regiane da Silveira 2
Daniele Busatto Mendonça 3
Regina Helena Vitale Torkomian Joaquim 4

Abstract Working with different forms of artis- Resumo O trabalho com diferentes formas de
tic and cultural expressions has been considered expressão artístico-culturais tem sido considera-
a form of health intervention to enhance the un- do forma de intervenção na saúde que enriquece
derstanding and thinking about the needs in this as possibilidades de compreensão e reflexão sobre
field. A group of clown doctors conducted home necessidades dessa área. Um grupo de palhaços
visits for eight months to ten families located in caracterizados de médicos realizou visitas domi-
micro areas of two family health teams. The prac- ciliares por oito meses em dez famílias em micro
tice aimed at expanding the solvability of the care áreas de duas equipes de saúde da família. A prá-
given to people and to communities through the tica visou ampliar a resolubilidade do cuidado a
intense proximity established by the art of clown- pessoas e a coletividade com intensa proximidade
ery. The idea consisted of making interventions in estabelecida pela arte da palhaçaria. A ideia foi
the homes of socially vulnerable families indicat- fazer intervenções nos domicílios de famílias em
ed by the family health teams using joy, humor, situação de vulnerabilidade social indicadas pelas
and laughter to stimulate reflections on the daily equipes de saúde da família e utilizar a alegria, o
problems. The presence of “clown doctors” in the humor, o riso como formas de provocar reflexões
1
Departamento de houses built strong and free bonds with the fam- sobre problemas cotidianos. A presença dos “médi-
Terapia Ocupacional Belo ilies and enhanced the humanized and compre- cos-palhaços” nas casas foi capaz de construir vín-
Horizonte, Universidade
Federal de Minas Gerais. hensive care within the context of family health culos fortes e livres com as famílias e de potenciali-
Av. Pres. Antônio Carlos strategy. Clowns and families found a special way zar o cuidado humanizado e integral no contexto
6627, Pampulha. 31270- to find possible solutions to the difficulties faced on da estratégia de saúde da família. Juntos, palhaços
901 Belo Horizonte MG
Brasil. cdrumonddebrito@ a daily basis. Male and female clowns were able e famílias construíram, de modo singular, possí-
gmail.com to manage new subjective constructions for each veis soluções para dificuldades enfrentadas no dia
2
Centro de Referência family to deal with everyday situations. a dia. Os palhaços e palhaças foram capazes de
do Idoso de São José dos
Campos. São José dos Keywords Clown, Clown doctors, Family health agenciar novas construções subjetivas para cada
Campos SP Brasil. strategy, Bonding, Humanization, Completeness família lidar com situações cotidianas.
3
Faculdade de Medicina de Palavras-chave Palhaço, Médicos-palhaços, Es-
Ribeirão Preto, Universidade
de São Paulo. Ribeirão Preto tratégia saúde da família, Vínculo, Humanização,
SP Brasil. Integralidade
4
Departamento de Terapia
Ocupacional, Universidade
Federal de São Carlos. São
Carlos SP Brasil.
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Brito CMD et al.

Introdução mílias em situação de vulnerabilidade social. Tal


proposição fundamentou-se na possibilidade de
Uma grande diferença entre ser ator e ser palhaço estabelecer tecnologias sociais, a partir da reali-
é esta: um ator é capaz de interpretar de corpo dade dessas famílias, promovendo o encanto, o
e alma um personagem que não tem nada a ver encontro e a alegria8. Justificou-se inserir a arte
com ele (pode ser uma pessoa muito boa, por do palhaço nos domicílios como instrumento li-
exemplo, e fazer o papel do mais cruel dos tira- bertador, educador, criativo e cultural.
nos). O palhaço não interpreta um personagem, Considerou-se os “médicos-palhaços”5 como
ele usa seu corpo e a alma para dar vida àquele promotores de vida no encontro dialógico8 com
que já existe no seu interior1. as famílias. O diálogo com os palhaços é reali-
O palhaço vive sempre o presente conecta- zado na horizontalidade, é uma ação humana,
do a tudo que acontece a sua volta e em busca amorosa, corajosa, capaz de suscitar liberdade e
de soluções criativas para problemas cotidianos, confiança mútua. A construção do diálogo aber-
muitas vezes repetitivos, na vida humana. Ele não to favorece a mediação de saberes entre agentes8,
age simplesmente, ele saboreia cada movimento, como já referido na literatura. Portanto, a men-
cada gesto, tudo conectado com a autenticidade sagem que o palhaço levaria às pessoas não seria
conquistada pelo contato com sua essência. Por- recebida com passividade. As famílias visitadas
tanto, está sempre aberto às soluções inovadoras não seriam objeto e destinatário, mas autoras e
para problemas que lhe são apresentados. Essa criadoras do valor estético do encontro9.
sua atitude causa estranhamento, podendo gerar Desta maneira, as questões problemas foram:
humor, surpresa e assombro2. Por isso, é capaz de será que o palhaço, em contexto domiciliar, am-
abordar barreiras impostas pela doença, dor, alie- plia a percepção das famílias sobre seu cotidiano?
nação e angústia, com flexibilidade, em contínuo Será que renova e inova a compreensão das suas
humor adaptado às mudanças de condições e cir- próprias condições de vida, por meio da alegria,
cunstâncias. do humor e do riso, potencializando o enfrenta-
Adicionalmente, o palhaço traz a potência da mento dos problemas cotidianos?
liberdade, ele é um ser livre, encontra prazer em Assim, este artigo pretende relatar a experi-
tudo que faz, converte suas debilidades pessoais ência de um grupo de “médicos-palhaços”5 que
em força teatral, trabalha ao inverso da lógica, põe visitaram em domicílio famílias identificadas por
em desordem certa ordem e assim permite denun- equipes de saúde da família como em situação de
ciar a ordem vigente. O palhaço reside na liberdade vulnerabilidade social.
de se poder ser o que se é; ser a máxima liberdade,
a liberdade de arriscar-se3. Portanto, trabalhar com
essa arte tão próxima das pessoas é convidá-las a Método
correr algum risco juntas. Um palhaço, por defi-
nição, ameaça à ordem pública e, aparentemente, Trata-se de um relato de experiência sobre uma
não tem lugar no paradigma biomédico4. intervenção realizada com adultos em contexto
No contexto da saúde brasileira, o palhaço comunitário. Neste trabalho, um grupo de “mé-
é bastante reconhecido em âmbito hospitalar, dicos-palhaços”5 visitou em domicílio, durante
tendo como principal exemplo os Doutores da oito meses, famílias e pessoas índice identificadas
Alegria2 projeto criado em 1988, por Wellington por duas equipes de saúde da família como em
Nogueira, ator brasileiro. Os Doutores da Alegria situação de vulnerabilidade social. Este grupo era
iniciaram suas atividades no Hospital e Materni- composto por docentes universitários, profissio-
dade Nossa Senhora de Lourdes, em São Paulo, nais da saúde, residentes, estudantes de gradua-
com crianças hospitalizadas. Recentemente, no ção na área da saúde, música, outras artes e tera-
Brasil, é possível identificar transposições dessa pia ocupacional.
tecnologia para o território nacional5,6. A prática do palhaço na ESF foi estruturada
Visto que a Política de Atenção Básica prevê a partir de uma extensão universitária, associada
a construção de espaços de cidadania e ações de a atividades culturais e de pesquisa na atenção à
promoção de saúde7, a Universidade, por meio de saúde, financiada pela Pró-Reitoria de Extensão
projeto de extensão, propôs inserir o palhaço na da Universidade Federal de São Carlos, por esse
Estratégia de Saúde da Família (ESF). Uma vez motivo o projeto não foi previamente submetido
que o palhaço é capaz de ver todas as coisas em ao comitê de ética.
um novo ângulo, acreditou-se que ofereceria no- A atitude dialógica8 do palhaço inserido no
vos contornos na obviedade da vida diária de fa- contexto familiar baseou-se em alguns princípios
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como o da verdade, da dignidade, do respeito à O diálogo com as famílias permitiu estabelecer
vida humana, de estar sempre pronto aos pro- indicadores a serem verificados após oito meses
blemas que lhe eram apresentados, de dialogar de intervenção e foram todos anotados por um
através da sua essência, de buscar sempre novos “médico-palhaço”5.
desafios, dentre outros. Apresenta-se a seguir o Nesta primeira visita foi então estabelecido o
detalhamento da intervenção. contato e a autorização para a realização do estu-
a) O planejamento da intervenção e formação do. Por estar inserido num projeto com caráter
da equipe na arte da palhaçaria: o planejamen- de extensão, não foi solicitada anuência para ade-
to ocorreu seis meses antes do inicio das visitas são por meio do Termo de Consentimento Livre
domiciliares. Três mulheres que propuseram o e Esclarecido.
projeto (uma estudante de graduação em Terapia Todas as intervenções foram registradas em
Ocupacional, uma docente de Terapia Ocupacio- diário de campo por todos os “médicos-palha-
nal e uma fisioterapeuta residente do Programa ços”5 e algumas fotografadas. Esse material era
de Saúde da Família e Comunidade) fizeram discutido semanalmente pela equipe de palhaços.
imersão em um curso de palhaço da companhia As visitas eram realizadas uma vez por semana
de teatro ativo Solar da Mímica & Cia3. em cada família, totalizaram 32 visitas em cada
Após o curso, praticavam 2 horas semanais uma. O vínculo estabelecido com a equipe de
de exercícios corporais e improvisações cênicas “médicos-palhaços”5 foi imediato desde o pri-
na busca do palhaço interior de cada uma. As- meiro encontro. A cada encontro esse vinculo foi
sociado a esse trabalho, estabeleceram diálogos fortalecido e os “médico-palhaços”5 foram inclu-
com duas equipes de saúde da família em uma ídos como parte da rotina das pessoas visitadas,
Unidade de Saúde da Família (USF) localizada elas esperavam pelo encontro semanalmente.
na região periférica do interior de São Paulo. b) O procedimento das visitas com os médi-
As duas equipes de saúde da família eram com- cos-palhaços: as visitas eram realizadas semanal-
postas de médico, enfermeira, técnico de enfer- mente com duração de 15 minutos em cada casa,
magem, agentes comunitários e contavam com tempo marcado por um som de canto de galo no
a colaboração de uma equipe multidisciplinar celular de um dos “médicos-palhaços”5 e indicava
de residentes. Em reuniões junto com as duas o momento de finalização da intervenção. Esse
equipes definiram os critérios estabelecidos para tempo podia ser variável conforme a necessida-
excluir ou incluir determinadas famílias que vi- de real do encontro. Os palhaços batiam na por-
venciavam um ou mais dos seguintes problemas: ta das casas sem nenhum roteiro prévio. Batiam
situação de vulnerabilidade social, condições de abertos ao encontro com o outro. Em geral, ao
habitação precária, baixa renda, etilismo, drogas, serem recebidos pela família estabeleciam um
pessoas com deficiência, portadores de sofri- primeiro momento de acolhimento através de
mento psíquico, acamados e usuários que tives- abraços, beijos etc. No entanto, isso não era regra
sem dificuldades de vinculação e/ou adesão aos sempre e o que determinava a ação dos palha-
cuidados das equipes de saúde da família. Com ços era a improvisação no momento do encon-
base nestes critérios, as equipes solicitaram inter- tro, com o mote dado pela família e ou pessoa
venção do palhaço em dez famílias em situação índice de alguma forma. A postura dos palhaços
de vulnerabilidade social. Em todas as famílias era de presença intensa com a pessoa índice e/ou
apontaram uma pessoa índice para o palhaço vi- família. O grupo inicial dos “médicos-palhaços”5
sitar e dar atenção, mas buscando dar atenção e foi composto pelas três mulheres supracitadas e
incluir todos os familiares e pessoas presentes, no agentes comunitários.
momento da visita. c) Evolução da equipe ao longo do tempo de
Após a definição das famílias e pessoas índi- intervenção do projeto: a equipe de palhaços foi
ces que iriam receber os “médicos-palhaços”5 foi crescendo por se tornar conhecida, no âmbito da
realizada uma visita a cada uma destas últimas universidade e da cidade, com buscas espontâne-
com um agente comunitário e um dos três mem- as de outros palhaços que também estabeleceram
bros do grupo de palhaços, com a finalidade de a rotina semanal dos exercícios de improvisação,
fazer o convite para participar do projeto, além busca do palhaço de cada um e visita semanal
de investigar alguns indicadores qualitativos re- às famílias. A equipe então passou ser composta
lativos a: composição familiar e sua dinâmica; pela docente da UFSCar, a estudante de terapia
os prazeres/hobbies, sentimentos de cada pes- ocupacional, a residente de fisioterapia, agentes
soa índice; como eram estruturados o cotidia- comunitários, dentista esporadicamente e outros
no e o que conheciam dos “médicos-palhaços”5. estudantes: de música, de outras artes, da terapia
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ocupacional, da engenharia, das ciências biológi- Homem com sequelas de Acidente Vascular Ce-
cas, além de um funcionário da universidade. rebral, com dificuldades na fala e locomoção e
d) Os “médicos-palhaços”5 atuaram durante principal responsável na casa pela renda da fa-
oito meses nas visitas domiciliares, e após esse mília. A família temia a sua morte por essa re-
período se constituiu novamente um diálogo presentar o risco de finalização da renda familiar.
com as famílias para investigar se houve evolução Havia muitas moradias no terreno que se restrin-
dos indicadores qualitativos estabelecidos antes gia a um corredor com várias casas uma do lado
da inserção da arte da palhaçaria em visitas do- da outra e apesar de sua importância na renda
miciliares. familiar, ele habitava apenas um quarto ao fun-
do do terreno. Muitas crianças, jovens, homens
e mulheres desempregados, filhos, filhas, noras
Resultados e genros moravam no local. Uma de suas filhas
era a cuidadora. 6) Mulher depressiva, com algu-
Características das pessoas indicadas mas tentativas de suicídio. Sua renda era o prin-
para o estudo cipal sustento da família. Moravam junto com
ela filhos e netos ainda crianças. 7) Mulher idosa
Das dez pessoas índices escolhidas, visitadas suspeita de negligência familiar, com problemas
e indicadas para o estudo, 7 foram mulheres e 3 respiratórios graves. Essa senhora ficava em casa
homens com as seguintes características: 1) Ho- muito tempo sozinha e sem se alimentar. Às ve-
mem deficiente visual, viúvo, morava sozinho em zes, cozinhava para si mesma, momento em que
situação de vida precária. No terreno onde mo- haviam ocorrido alguns acidentes domésticos.
rava também havia a casa de um dos filhos. Esse Moravam na casa: filhos e netos em idade adul-
filho saia para trabalhar o dia todo e deixava seus ta, jovem e crianças, mas a maior parte do tem-
filhos (crianças entre 7 a 10 anos) para o avô cui- po ficava sozinha. 8) Homem, ex-caminhoneiro,
dar. As crianças saiam para rua e o avô não tinha que teve AVC e vivia sozinho com muitas dificul-
controle delas. Fazia todos os afazeres domésti- dades de locomoção e em realizar atividades de
cos, incluindo cozinhar para as crianças. Mas, vida diária que fazia sozinho. A casa necessitava
muitas vezes sua renda não era suficiente para de cuidados. 9) Mulher idosa com sequelas mo-
sua alimentação e a das crianças. 2) Mulher com toras de Acidente Vascular Cerebral, ficava por
dificuldade de locomoção por dores fortes na muito tempo acamada ou na cadeira de rodas.
perna, morava com o filho, mas este trabalhava Tinha uma cuidadora da comunidade e o mari-
o dia todo e ela ficava sozinha em casa, sem pos- do que ficava ausente o dia todo. 10) Mulher que
sibilidades de ter muito contato externo. Tinha sofre violência do marido, vive com os filhos e
diabetes, sua alimentação era a base de fritura e luta para que os mesmos se ocupem o dia todo
comida típica nordestina, e também dificuldade para não presenciarem as agressões a que estava
de adesão aos cuidados da equipe de saúde da submetida. O marido tem horário de trabalho
família. A namorada do filho, em alguns perío- variável, ficando algumas semanas diariamente
dos morava também na casa. 3) Mulher diabética em casa e em outros momentos vários dias via-
operada na região abdominal fazia alguns meses, jando. A equipe relatou sua dificuldade de adesão
o que a deixou acamada com processo de cica- às propostas da ESF.
trização comprometido. O marido era seu prin-
cipal cuidador com relato de estado depressivo, Caracterização das famílias visitadas
registrado pela equipe. Tinha filhos e netos que
em alguns momentos da vida voltavam para casa O número de moradores em alguns domi-
por separações conjugais. O número de pessoas cílios não era definido por escolhas próprias,
que habitam a casa era flutuante. 4) Mulher idosa mas composto por necessidade no processo de
com histórico de sofrer violência doméstica, pri- envelhecimento, problemas de saúde e ou mu-
meiro do marido já falecido e, no momento do danças econômicas da família, como separações
projeto, de um filho com diagnóstico de psicose, conjugais e o desemprego dos filhos, que devido
segundo seu relato. Morava em um terreno com a dificuldades financeiras retornavam para casa
várias casas que eram de seus filhos. O terreno dos pais com a família. Todas as famílias eram de
tinha três casas e moravam muitas pessoas no baixa renda.
local, de todas as idades, adultos, adolescentes e Nove das 10 pessoas índices não eram de ori-
crianças. Na casa dessa mulher morava um neto, gem da cidade em que o projeto ocorreu. Deslo-
o filho com o problema mental e uma filha. 5) caram-se do local de origem em busca de melho-
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res condições de vida. Este dado é coerente com as Relatos de situações exemplares
características da região escolhida para interven- das relações estabelecidas com a presença
ção, pois é um bairro isolado do centro do muni- dos palhaços e do seu potencial dialógico
cípio, e sua ocupação é caracterizada pela diversi- e de realização de transformações
dade de migrantes e trabalhadores rurais, vindos
do Paraná, Minas Gerais, estados do Nordeste e A ideia dos “médicos palhaços”5 realizarem
outras cidades do Estado de São Paulo. Esse pro- visitas domiciliares vinculadas a equipes de saú-
cesso de ocupação, por invasão e comercialização de da família gerou algumas transformações nas
de lotes a um preço mais baixo, resultou em um pessoas visitadas que serão relatadas brevemente.
crescimento acelerado e desordenado na região, Conforme as intervenções aconteciam, as
na apropriação de terrenos inadequados para uso pessoas que eram visitadas se aproximavam,
habitacional, na concentração de pessoas pobres vinculando-se aos palhaços. Todas as famílias
e na carência de equipamentos urbanos10. expressaram-se com liberdade para contar expe-
O cotidiano relatado pelas pessoas índices riências, dificuldades, alegrias, fazer planos e re-
circunscrevia-se em afazeres domésticos, como clamações. Estabeleceram um relacionamento de
cozinhar, lavar louça, arrumar a casa e cuidar dos acolhimento dos palhaços como alguém íntimo,
filhos. Havia ainda os que não realizavam essas ao qual demonstravam carinho e afeto, conforme
atividades por dificuldades de locomoção devido os relatos e as situações descritas.
a estarem acamados, com dores ou em cadeiras . A acolhida de boas vindas: num dos en-
de rodas. A rotina típica dessas pessoas era acor- contros ocorreu uma recepção gentil com chá de
dar, tomar café, almoçar, andar uma pouco no gergelim e biscoitos do Nordeste. O contexto da
quintal, esperar a vinda da enfermeira, compa- intervenção foi bem íntimo, como uma visita de
nheiro e/ou cuidador para fazer curativos e ad- bons amigos que sentavam à mesa para conver-
ministrar medicação. sar e rir juntos. Um dos palhaços solicitou água,
O lazer não fazia parte da vida das famílias e imediatamente foi dito: “Você é de casa, pegue
e, quando mencionavam essa prática era associa- na geladeira...”.
da a práticas religiosas e visitas a amigos. Houve . Brincadeiras para relaxamento e desinibi-
uma família que citou cozinhar comidas típicas ção: o palhaço, como ser livre, dava liberdade ao
da região de origem como um tipo de lazer, pois outro de brincar, de entrar em cena com ele e sen-
não se resumia ao ato de cozinhar, mas a ir com tir prazer e alegria. Em uma das visitas, os palha-
os vizinhos e amigos ao centro da cidade com- ços entraram na casa, viram uma cinta em cima
prar ingredientes em um estabelecimento típico da mesa, um deles perguntou para o que servia
do Norte, por exemplo. aquela cinta. A senhora respondeu que era para
Os prazeres e os hobbies descritos foram bem bater nos cachorros quando não obedeciam, e
diversos, como uma entrevistada que referiu gos- continuou a dizer com risos: “Serve também para
tar de andar na rodovia e ir ao cemitério; outros, bater em palhaços desobedientes”. Um palhaço
assistir televisão, escutar música e ainda brincar logo disse que era o caso da doutora Lucrécia (pa-
com os netos. lhaça), e nesse momento a cena ocorreu natural-
Em relação às queixas do dia a dia da vida e mente com a senhora fingindo bater na doutora
do cotidiano, nos relatos surgiram as seguintes: Lucrécia. Todos os outros palhaços encorajaram
convívio com filhos e maridos etilistas; dificul- a senhora que tinha dificuldade de locomoção a
dades nas relações pessoais, como o convívio de continuar realizando a cena. Os palhaços falavam
sogras e noras; restrição ao leito; falta de sexo, com seriedade, e a senhora ria muito de tudo e
devido à recuperação cirúrgica; tosse crônica que demonstrava prazer no encontro.
gera dores físicas; dor nas pernas; desânimo para . Resgate de memórias afetivas: o palhaço é
fazer quaisquer coisas; sem perspectivas de trans- capaz de resgatar com fluidez histórias de vida
formar o cotidiano. e práticas culturais que a pessoa realizava como,
No contato inicial, afirmaram ser difícil qual- por exemplo, tocar um instrumento. Na casa
quer modificação em seu dia a dia. A solidão onde havia um deficiente visual, as intervenções
foi um sentimento relatado pelos participantes com sons de objetos eram sempre priorizadas.
mesmo os que moravam com várias pessoas na Um dia entrou-se na casa desse deficiente visual
mesma casa. Diziam não terem motivação para tocando violino e outros instrumentos. Essa ação
realizar atividades diferentes da rotina diária, por gerou uma empatia do senhor e lembranças do
não verem sentido e por falta de companhia. tempo em que tocava sanfona. Ele narrou par-
te de sua história antes de perder a visão e falou
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da morte da companheira. Os palhaços escutam disse que não havia ido ao cemitério, tinha se-
com atenção, não é momento de risos, mas de guido o conselho do palhaço e ficou mais calma,
acolher a história. Retomam a música na despe- até dormiu melhor. A força do palhaço está na
dida, incluindo o senhor como músico. Encora- verdade, na crença do palhaço de que é possível o
jaram-no a buscar a sanfona guardada, mesmo pai dela estar ali representado e, ao tocar o objeto,
velha e sem muitas condições de uso. O improvi- este lhe trazer conforto. Com essa ação do palha-
so ocorreu, e todos tocaram juntos. ço, a transformação da pessoa foi instantânea. A
. Leveza nas rotinas: mudança de rotina partir dessa vivência o cuidado com o outro ficou
com leveza e bom humor também foi estimu- ainda mais intenso, pois o grupo observou que
lada pelos palhaços. Um casal relatou que não algo muito importante ocorria nessa relação pa-
fazia sexo havia quase um ano, devido a uma ci- lhaço-pessoa. O vínculo estabelecido via a arte da
rurgia abdominal que a mulher havia realizado. palhaçaria era imediato.
Essa condição que estavam vivendo distanciava . Liberdade de linguagem: a linguagem do
o casal. Doutora Tatá (palhaça) disse que os pa- palhaço é móvel, adaptável às situações. Nas visi-
lhaços tinham um manual para resolver o assun- tas a um senhor deficiente visual, que não podia
to. Doutora Rosinha (palhaça) acrescentou que ver o nariz do palhaço com os olhos, o nariz se
o manual era prático, e a cada encontro haveria mostrou em outros objetos sonoros, textuais e
uma lição. A primeira foi cheirinho no cangote, a em formatos diversos. O nariz do palhaço é o seu
segunda um baile dançante com mãozinha boba, guia, é a máscara que revela a pessoa, o seu aves-
a terceira arrumação do ambiente com velas e so, traz à tona a profundidade ainda não acessa-
cheiros. Com humor, a cada encontro o casal es- da12. O nariz já confere ao palhaço a subversão
tava mais próximo, esperando as instruções do da ordem, mas para quem não o vê fisicamente,
manual. Relataram que o carinho, mesmo sem o como comunicar sua existência e a permissivida-
sexo, começou a fazer parte da rotina. de de ser e brincar que ele se apropria? O exercí-
. Amplitude temática: os temas que surgiam cio se deu com brincadeiras sonoras e táteis, as
durante as intervenções eram diversos. O palha- quais permitiram uma construção conjunta de
ço gerava intimidade, liberdade para que as pes- cenas vivas. A entonação de voz indicava o cami-
soas falassem e agissem de maneira espontânea nho possível a percorrer, toques no corpo e nos
e natural. O palhaço busca estabelecer diálogos objetos delimitavam e ampliavam a intervenção.
e ações com a cena presente, não julga, não re- Aos poucos a intimidade começou a fazer par-
crimina, simplesmente vive o momento intensa- te do vínculo, e a história de vida reconstruída e
mente e aproveita o que o outro traz. Sabe aceitar ressignificada a cada encontro. A pessoa visitada
a proposição do outro, joga e improvisa. Pode- compartilhou com o palhaço as suas alegrias e
mos associar isso às ideias da educação popular amarguras antes e depois de adquirir a deficiên-
que diz da prática do educador não ser ingênua, cia. O cuidado com os palhaços foi uma marca
não pretender ser o detentor do saber, deve se co- nesta relação, o senhor percebia se algum palhaço
locar em uma posição de quem não sabe tudo11. estivesse resfriado, se determinado palhaço falta-
Não cabe aqui entrar no mérito se o palhaço é va, quando isso ocorria, no próximo encontro ao
um educador, mas ele busca a essência humana, ouvir a voz do faltante, era expressa a saudade. A
busca sua própria essência para dialogar com a cumplicidade com os palhaços foi a tônica deste
do outro, por isso está aberto a tudo que aconte- encontro.
ce, diverte-se com tudo e respeita a todos. . Presença em ausências: outra ação comum
. Improviso e surpresa em situações inusita- dos palhaços em visitas domiciliares era quando
das: Também foram capazes de criar em situações não havia ninguém na residência. Os palhaços
de risco e ousar a proposição de novas soluções, sempre deixavam algum objeto no portão da
como, por exemplo: uma mulher narrou que sen- casa, como uma bexiga, uma flor, objetos de EVA
tia muita saudade do pai e como era angustiante com recado direcionado para a pessoa e/ou fa-
ele ter morrido. Na dificuldade de aceitar a perda, mília, assim, as pessoas sabiam que os palhaços
ela se colocava em risco: saía de madrugada rumo haviam passado por lá. Esse gesto de deixar algo
ao cemitério que ficava em uma rodovia movi- no portão das casas gerava significados para as
mentada e com pouca iluminação. Imediatamen- pessoas, que em outros encontros mencionavam
te um dos palhaços tirou do bolso um coração de o fato e até direcionavam o mote da intervenção
EVA e disse apontando para o coração de EVA: com brincadeiras a partir dos objetos deixados.
“Aqui está o seu pai, você pode ficar com ele toda Uma mulher, na segunda entrevista após oito
hora, todo dia, é só deixar no bolso e pegar quan- meses, relatou que os recados deixados lhes fo-
do precisar”. Na outra semana essa participante
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ram importantes, porque a fazia sentir que havia mada, não havia conseguido arrumar a cozinha
pessoas que se importavam com ela. Segundo ela, antes da nossa chegada, e isso parecia perturbá
os palhaços aceitavam o seu jeito de ser, mais re- -la. Um dos palhaços do grupo entrou na casa e
servado, e sentia-se acolhida pelos objetos deixa- foi direto arrumar a cozinha, os outros percebe-
dos, mesmo sem a presença física dos palhaços. ram a proposta, pegaram vassoura, foram varrer
Essa mulher efetivamente recebeu poucas visitas a cozinha, enxugar as panelas e louças, e fizerem
dos palhaços, pois nunca estava, e estas ocorre- até um cafezinho, tudo muito rápido e com bom
ram por meio desses gestos e do diálogo bem-hu- humor. A mulher sentou na cadeira e ficou rindo.
morado estabelecido por artefatos e bilhetes. Dizia que éramos mesmo malucos. Após todo o
. Cuidado e delicadeza com a dor humana: há movimento, sentamos para tomar café juntos e
delicadeza e humor para lidar com a dor do ou- foi dito: “Problema solucionado. Qual é o próxi-
tro. Quando os palhaços chegaram à casa de uma mo?” Claro que o estranhamento, o riso e alegria
mulher, esta narrou sua noite de delírios e aluci- foram a tônica do encontro, e a certeza de que
nações, após ter tomado dois dias anteriores 40 naqueles 15 minutos ela podia de fato contar
comprimidos para morrer. Relatou que dormiu com os “médicos-palhaços”5
até o momento da chegada dos palhaços. Diante . O palhaço, em sua liberdade, agiu com es-
de situação tão tensa e trágica, com delicadeza o pontaneidade, no improviso da própria vida co-
palhaço foi capaz de trazer o humor, convidando tidiana.
-a para dançar um “forrózinho” porque ela esta-
va, com certeza, mais relaxada após a ingestão dos Transformações cotidianas
40 comprimidos. A mulher, com risadas, aceitou
a proposta do palhaço. Nessa dança pôde abraçar As pessoas visitadas relataram, após oito me-
fortemente o palhaço e sentir aconchego em mo- ses de intervenção, melhora em diversos indi-
mento tão difícil. Essa forma de agir possibilitou cadores: d.1 Rotinas: na rotina houve aquisição
a continuidade de um diálogo corporal, afetivo e de maior capacidade de exercerem atividades
com relatos sobre o ocorrido. Não houve censura domésticas, mesmo com limitações físicas. d.2
nem qualquer tipo de sentimento de compaixão Solidão: a solidão relatada inicialmente foi trans-
e nenhuma orientação, apenas buscou-se o en- formada em alegria e confiança em si mesmos no
contro com o outro via a leveza. De forma sim- dia a dia. Houve mudança de sentimentos, não
ples, ela narrou parte de sua história de vida até sentiam solidão após as intervenções dos “mé-
chegar à tentativa de suicídio. Depois desse fato, dicos-palhaços”5. d.3 Lazer: houve ampliação do
que envolveu a situação extrema de tentativa de lazer para além da religião, já conseguiam passear
suicídio e o acolhimento dos palhaços, em outros em espaços públicos da cidade, como parques e
encontros a mulher apresentou novos desejos de praças, e constituir novas amizades nesses locais.
vida. Aflorou-se o desejo de mudar a forma de se Houve resgates de hobbies antigos e aquisição de
vestir, por exemplo, que expressasse suas formas novos como cuidar de plantas, tocar sanfona, ou-
femininas, que a libertassem de padrões religiosos vir música e o autocuidado, incluindo a busca de
no qual seu filho exigia como comportamento de sensualidade, de cuidado com o corpo, e custo-
mãe. Havia o anseio de ser mulher e não apenas mização de roupas. d.4 Dinâmica Familiar: a di-
mãe. Iniciou novas possibilidades de diálogo com nâmica familiar ganhou novos contornos, não se
os “médicos-palhaços”5 e compartilhou o desejo sentiam mais sozinhos porque conseguiam dia-
de sair da solidão e de ter um companheiro em logar melhor com os familiares, de forma mais
sua vida. O palhaço apropriou-se dessa ideia de clara e objetiva, falavam mais dos sentimentos e
ter um novo companheiro, com o desejo de mu- incômodos sem censura e com afeto. Disseram
dança na forma de se vestir, para explorar essa que aprenderam formas de se expressar com
nova imagem em gestação. Nos encontros todos maior espontaneidade, verdade e simplicidade.
se arrumaram com humor, riso e sensualidade. O d.5 Auto-Cuidado: os “médicos-palhaços”5 tam-
prazer de ser mulher foi retomado e, passados al- bém foram capazes de potencializar o autocui-
guns dias, ela iniciou um namoro com o vizinho. dado dos cuidadores e a busca do prazer pelos
. Abertura para todo tipo de problema dos mesmos.
mais simples aos mais complexos: o palhaço está A experiência da inserção do palhaço na ESF
aberto a qualquer problema, do mais simples ao possibilitou a restituição da pessoa de seu lugar
mais complexo, não existe hierarquia. Um dia, no mundo, a sua autonomia e autoestima, o re-
outra mulher veio atender aos “médicos-palha- conhecimento de sua própria essência, seu ser
ços”5 dizendo que sua casa estava muito desarru- social13. Os “médicos-palhaços”5 em visitas domi-
560
Brito CMD et al.

ciliares potencializaram a libertação dos papéis redes de apoio social7. A ideia não é investigar a
sociais e condições sociais historicamente cons- vida das pessoas em sua intimidade, mas dialogar
truídas via soluções criativas, nas quais o humor com as famílias para que essas sejam autoras de
e o riso estiveram presentes. Trouxeram a potên- sua própria história.
cia do trabalho vivo em ato14. A proposição do palhaço na ESF por meio de
visitas domiciliares foi intensa e os “médicos-pa-
lhaços”5 foram capazes de se abandonar permi-
Discussão tindo o encontro com o outro18.
O palhaço no domicílio fala de situações re-
A arte da palhaçaria foi um recurso capaz de le- ais que ocorrem com a pessoa, na família e na
var as pessoas a reflexões, a associações imagina- sociedade. Utiliza o recurso possível e real para
tivas e inteligentes sobre as suas próprias condi- falar do que ocorre a sua volta com liberdade. Por
ções de vida e, portanto, auxiliá-las para se tor- trás do nariz, existe um ser humano que está in-
narem mais resilientes do que vulneráveis, com serido na sociedade e percebe suas contradições,
a alegria, o humor e o riso como principais re- dificuldades e alegrias, age de forma espontânea
cursos. A ideia foi incorporar o palhaço e levá-lo e contestadora. Contesta a si mesmo, a coletivi-
aos domicílios para que, por meio da alegria e do dade, as situações de vida, age ao inverso do que
humor, fossem criados espaços em uma dimen- um ser humano corriqueiro poderia agir, é livre
são humana importante para o enfrentamento de para o encontro com o outro. O palhaço busca
problemas cotidianos, a dimensão imaginativa. desacomodar as coisas ao extremo, quebra re-
O imaginário é capaz de revelar segredos, rea- gras, incluindo as que ele mesmo constrói18. Não
brir desejos e clarear a própria realidade humana. funciona como modelo de padrões sociocultu-
Proporcionar o riso para as pessoas em situação rais, mas é capaz de agenciar novas construções
de risco, vulneráveis, com dificuldades, significa subjetivas12, quer dizer, fomentar naturalmente
levá-las a realizar associações imaginativas e in- novos modos de sentir, de pensar, de existir, de
teligentes. Como já discutido na literatura, para comunicar.
provocar o riso em situações de drama humano, As visitas do palhaço, neste estudo, se torna-
temos que nos distanciar dele e realizar associa- ram uma potente prática de cuidado por estabe-
ção de ideias. Portanto, exige uma anestesia mo- lecer vínculos fortes e livres com as famílias. Os
mentânea do coração, dirigir-se à inteligência15. vínculos foram construídos com a presença, de
Ser palhaço exige um esforço em direção fato, dos palhaços na casa, da sua capacidade de
ao autoconhecimento, à autoaceitação e à ex- se movimentar com respeito e espontaneamente
pressão corporal. Pretendeu-se voltar a arte do em qualquer situação. Todo o contexto foi utili-
palhaço para as famílias e as suas aspirações. Essa zado como mote para a intervenção. O vínculo
prática está em consonância com a ESF e amplia se constituiu como uma estratégia de cuidado e
a resolubilidade do cuidado a pessoas e a coletivi- possibilitou práticas de liberdade19.
dade, com proximidade. Os “médicos-palhaços”5 O palhaço foi capaz de polemizar e de en-
foram capazes de se inserir no modo de viver das trar em contato com o sério a partir do riso, da
pessoas em uma relação na qual a constituição do leveza, da presença intensa do encontro com o
vínculo foi fundamental para responder efetiva- outro. Dessa forma, questionou linguagens acei-
mente às complexas necessidades de saúde de in- tas, cotidianos desumanizados, automatizados
divíduos e populações. Essas recentes propostas pela injustiça social, violência e opressão. O riso
de humanização e integralidade no cuidado em desmascarou essa linguagem cotidiana, retirou
saúde têm se configurado em poderosas e difun- ideias cristalizadas8 e expôs de forma improvisa-
didas estratégias para enfrentar criativamente a da e criativa a potência do encontro humanizado
crise e construir alternativas para a organização como força capaz de transformar a vida.
das práticas de atenção à saúde no Brasil16. As A relação com o tempo foi compreendida
ações de promoção de saúde devem fazer parte pelos palhaços e usuários como uma ferramenta
da estratégia das equipes locais, e são necessárias que tinham para estar intensamente ligados de
análises da realidade social e de saúde, uma vez forma qualificada. O tempo de 15 minutos trou-
que delas se esperam atuação no território, enfo- xe resultados de cuidado e atenção ao encontro.
que familiar e comunitário, bem como aborda- A intensidade teve relação com a linguagem do
gem de problemas psicossociais17. O atendimen- palhaço e com o tempo da intervenção e, assim,
to domiciliar leva em conta a possibilidade de se podemos considerar uma tecnologia social do
detectar as necessidades de suporte e ampliar as cuidado estabelecida na prática.
561

Ciência & Saúde Coletiva, 21(2):553-562, 2016


Esse trabalho do palhaço em visitas domicilia- lhaço pode ser uma estratégia construída em dia-
res assumiu uma dimensão localizada no mundo logo com a equipe e potencializar fluxos relacio-
da vida, nas complexidades dos laços familiares, nais de trabalhadores-palhaços com pessoas da
tendo como atores pessoas da família, amigos, vi- família e as inumeráveis possibilidades, inclusive
zinhos20 e até animais. A simplicidade do palhaço no plano simbólico, um amplo espaço de realiza-
para ver a vida foi capaz de encontrar novas lógi- ção do seu alto grau de liberdade. Essa inovadora
cas de cuidado nas complexas relações cotidianas. forma de operação do trabalho da equipe em do-
Essas novas lógicas de cuidado carregam con- micílio vai possibilitando aos profissionais o uso
sigo saberes que transformam a arte do palhaço de tecnologias leves e a conexão com a capacida-
em um trabalho vivo em ato14 e produz saúde. No de inventiva para resolver problemas e inclusive
espaço domiciliar, o trabalho vivo em ato do pa- interagir melhor com o saber-cuidar da família14.

Colaboradores

CMD Brito, R Silveira, DB Mendonça e RHVT


Joaquim participaram igualmente no planeja-
mento e execução do artigo.
562
Brito CMD et al.

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