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Introdução
Capítulo I
POSIÇÃO DO PROBLEMA
O
I
A CRISE MODERNA
social e político que nos foi legado pelo passado, após esse longo período da
história a que se dá o nome de Idade Média, foi o absolutismo papal, sendo
o Papa o verdadeiro representante de Deus sobre a Terra, e devendo, por-
tanto, todos os governos temporais, no que tem relação com a direção, não
somente dos negócios que se referem a seus interesses particulares, como
igualmente dos que dizem respeito aos interesses gerais da civilização, ins-
pirar-se nas deliberações do Vaticano. Mas o absolutismo papal caiu com a
Reforma. A Igreja fracionou-se e, com o fracionamento da Igreja, sucedeu
ao absolutismo papal a monarquia absoluta. Já não havia nenhum inter-
mediário entre Deus e os reis, sendo que, negada a autoridade do Papa, os
reis mesmos é que são os representantes de Deus sobre a Terra. Mas veio o
livre pensamento e como repercussão do livre pensamento na História, a
revolução. Esta explodiu, primeiro na Holanda, depois na Inglaterra, por
último na França; e daí se transportou o movimento para todos os países
da Europa, caindo afinal definitivamente a monarquia absoluta; para dar
lugar à democracia moderna, tendo por lema fundamental a célebre fór-
mula revolucionária: – igualdade, liberdade, fraternidade.
Mas a democracia, por seu lado, fascinou por um momento os
espíritos entusiastas, mas isto somente para dar, logo em seguida, de si
mesma, a mais triste cópia. Em primeiro lugar o lema fundamental que
chegou a ser considerado como a mais gloriosa conquista da revolução, de
todo se desmoralizou, tornando-se patente que nunca a desigualdade de
condição entre os homens chegou a tomar tão vastas proporções como nas
democracias. Que os homens não são iguais, demonstra-o o complicado
sistema das hierarquias sociais. Que não são livres, demonstra-o a variada
combinação de laços e sujeições a que estão subordinados. Que não são
irmãos, demonstra-o o espetáculo cotidiano da exploração do homem pelo
homem. Depois, se a questão era fazer cessar em política toda e qualquer
espécie de absolutismo, acontece que nem isto chegou a conseguir a revo-
lução, porquanto, se a democracia foi o resultado legítimo da revolução, é
uma verdade que ao absolutismo do Papa e dos reis sucedeu nas democra-
cias o absolutismo dos capitalistas e banqueiros, mil vezes mais detestável.
Por isto não sem razão é que já por toda a parte se proclama a
bancarrota das democracias. Deste modo, nem teocracia, nem monarquia,
nem aristrocacia, nem democracia. Ora, isto é confusão e desordem, isto
é a mais desesperadora anarquia; e de fato anarquia é o que se vê por toda
Finalidade do Mundo 21
II
TENTATIVAS DE SOLUÇÃO
da sociedade sem Deus e sem rei. É, pois, certo que Augusto Comte reflete
fielmente o estado atual do espírito humano, isto é, de todo se deixou do-
minar pela impiedade moderna. Mas negar Deus é negar a ordem moral,
é suprimir a razão no mundo, já o tivemos de afirmar e ninguém o poderá
seriamente contestar. Nestas condições pretender organizar a sociedade de-
baixo deste ponto de vista é pretender reduzi-la exclusivamente à condição
de máquina: é estabelecer o domínio exclusivo da força. O domínio da
força, o mais cego e feroz absolutismo – tal é, pois, a consequência lógica,
inevitável das premissas fundamentais do positivismo?3
Partindo destas premissas que são a dedução geral a tirar da sis-
tematização geral das ciências, tal como foi realizada por Augusto Comte
no Cours de philosophie positive, é certo, entretanto, que ele na última fase
de seu pensamento chegou a um resultado completamente estranho ao
mecanismo primitivo do sistema, firmando conclusões de todo imprevis-
tas. No começo de sua carreira filosófica, sustentava que o homem deve ser
explicado pelo universo, e como uma entre as inúmeras cousas do univer-
so, no que Augusto Comte se punha em posição diametralmente oposta*
à metafísica e às religiões que explicam o universo pelo homem, sendo
que foi para o homem, como um fim, que o universo foi criado. Nisto
precisamente consistia o que ele mesmo chamava o método objetivo que
subordina ao objeto o sujeito do pensamento. Depois, já no fim de sua ati-
vidade mental, confessa que tudo está subordinado ao sujeito, que tudo se
explica pelo sujeito e tudo deve tender para o sujeito.4 Tal é o pensamento
fundamental da Síntese subjetiva em que, tratando-se das matemáticas, é
sustentado o princípio de que mesmo estas ciências, apesar de inteiramen-
te estranhas a toda e qualquer manifestação do sentimento, só têm valor
quando subordinadas aos fins morais e sociais da humanidade.
O conhecimento deve, pois, ser fundado objetivamente, mas só
serve como meio para satisfação das necessidades subjetivas do homem. Tudo
se deve explicar e fazer pela força; mas tudo deve servir para o sentimento. É a
3 Aqui vem a propósito observar que os fatos vêm em confirmação da teoria. Não é
outra cousa senão o mais feroz absolutismo, o que realizam os positivistas na prática,
pelo menos, em nosso país, onde o positivismo chegou a exercer real preponderân-
cia, influindo mesmo sobre o governo.
* No texto aposta.
4 Ravaisson – La philosophie en France au XIXe siècle.
Finalidade do Mundo 23
trário a anarquia seria cada vez mais profunda se a religião positivista fosse
de natureza a poder influir sobre os destinos da humanidade. A inanidade
desta chamada religião prova-se pelo isolamento a que ficou reduzida; e se
se quer, não obstante, uma prova material do absurdo que a caracteriza,
basta considerar a influência detestável que chegou a exercer o Positivismo
sobre o nosso país, após o estabelecimento da República.
8 Alfred Fouillée – Histoire naturelle des societés humaines ou animales, Revue des deux
mondes, 15 de julho de 1879.
26 Farias Brito
9 N. Karéiev, sociólogo russo, em uma obra recente (1897), publicada sob o título
de Introdução ao estudo da sociologia (Vvdenie v izoustschenié sociologuii), apresenta
uma lista bibliográfica de 880 trabalhos sobre sociologia, só em língua russa 260,
compreendendo livros, brochuras, artigos, etc. Não é pois pequena a contribuição
com que, de sua parte, tem concorrido a Rússia para o desenvolvimento espanto-
so por que tem ultimamente passado a literatura sociológica. “É certo”, diz Ossip
Lourié, analisando a obra de Karéiev, “que os verdadeiros sociólogos russos como
Hertzen, Bakunine, Kropotkine, Lavrov, Máximo Kovalevsky e todos os que em
matéria sociológica têm ideias largas e pessoais, são obrigados a expatriar-se.” É o
que resulta do excessivo rigor das leis russas, sendo que o governo, já experimen-
tado pelas contínuas ameaças do niilismo, muito se mostra preocupado com certa
tendência anarquista que se nota em alguns dos sociólogos russos. “Com exceção de
Tschuprov, Mirtov, Lilienfeld, Karéiev, Novikov, não há na Rússia sociólogos russos
propriamente ditos”, diz ainda Ossip Lourié (Revue philosophique, 1898, julho). Mas
daí não se segue que não haja sociologia na Rússia, sendo que não só os sociólogos,
como mesmo os romancistas, publicistas e críticos fazem ali, a todo o propósito,
sociologia, notando-se mesmo nos russos particular interesse por estes estudos.
Finalidade do Mundo 27
10 Eis aqui em que termos foi feito esse protesto por Spencer em carta que foi por
ela dirigida a M. Fiorentini, autor do livro Socialismo e anarquia: “Eu fiquei muito
irritado, e poderia mesmo dizer indignado, pela opinião que, ao que me dizeis, se
espalhou sobre minha conta, de que minhas ideias sejam favoráveis ao socialismo.
Seria impossível avançar um juízo mais contrário absolutamente à verdade. Eu que
em meu país e no estrangeiro sempre fui considerado como um porta-estandarte
do individualismo, não posso deixar de admirar-me da audácia de quem quer que
trate de se servir de meu nome para sustentar o socialismo: nem posso ficar menos
surpreendido pelo fato de se empregar para o mesmo fim o nome de Darwin. Desde
que comecei a escrever, nunca fiz nenhum mistério de minha hostilidade para com
o socialismo. A doutrina da seleção, tal como eu a expus para as aplicações sociais
em 1850 e em seguida em 1852, e tal como Darwin tão largamente a apresentou em
sua Origem das espécies, é diametralmente oposta à doutrina dos socialistas, e quem
quer que pretenda servir-se de minhas ideias em proveito do socialismo, ou ignora
completamente o que elas são, ou se delas tem conhecimento, é culpado da maior
das alterações. Eu muitas vezes declarei outrora minha persuasão de que a vitória do
socialismo seria o maior desastre que o mundo jamais experimentaria e que o seu fim
seria o despotismo militar.” (Garofalo, Superstição socialista, Ap. A, pág. 289.)
28 Farias Brito
que se passa a indagar das condições em que deverá ser feita esta sonhada
reorganização das sociedades futuras, dividindo-se então o socialismo em
numerosíssimas seitas, cada qual menos incerta de seu destino, cada qual
mais revolucionária em seus processos.13
Os dous extremos opostos são representados, de um lado, por
Marx; de outro lado, por Bakunine: o primeiro, dando a maior ampli-
tude possível ao Estado, que deverá concentrar em si todas as forças da
sociedade, realizando-se o acordo das vontades na comunhão social, por
imposição da autoridade, e fundando-se a igualdade política sobre a igual-
dade econômica, o que só poderá tornar-se uma realidade pela socialização
do capital e todos os instrumentos do trabalho (coletivismo); o segundo,
exigindo a eliminação do Estado, como de toda a autoridade, devendo re-
alizar-se o acordo das vontades na comunhão social, por livre assentimento
das consciências (anarquia).
A anarquia, porém, tem dous sentidos, um sentido comum,
usual, e um sentido técnico. No sentido usual, a anarquia é o estado so-
cial no qual foi completamente nulificado o princípio da autoridade: é a
confusão e a desordem, a barbaria e o crime; é, numa palavra, a ausência
ou eliminação absoluta do governo. Esta ausência de governo pode ser
considerada não só na sociedade, como mesmo no indivíduo. Ora, a au-
sência de governo no indivíduo é a loucura; na sociedade, é a guerra civil, a
revolução. Tais são, pois, precisamente as duas formas individual e coletiva
da anarquia: a loucura e a revolução. Isto, porém, no sentido usual.
Diversa é a significação da palavra anarquia no sentido técni-
co. Neste sentido a anarquia é também a eliminação do governo, isto é,
da autoridade; mas isto sem confusão, nem desordem; sem barbaria, nem
crime, sendo tudo regulado por livre acordo das vontades. A anarquia é
Enrico Ferri procura justificar, por este lado, a causa dos socia-
listas nestes termos:
“Em matéria de construções sociais artificiais, os socialistas po-
deriam dizer aos individualistas: que aquele que nunca pecou atire a pri-
meira pedra.”
“A verdadeira resposta é outra. O socialismo científico represen-
ta uma fase muito mais adiantada das ideias socialistas; ele está de com-
pleto acordo com a ciência positiva moderna e de todo abandonou a ideia
fantástica de profetizar desde já o que será a sociedade humana na nova
organização coletivista.”
“O que o socialismo científico pode afirmar, e o que afirma,
com segurança matemática, é que a corrente, a trajetória da evolução hu-
mana está, no sentido geral, indicada e prevista pelo socialismo, isto é, no
sentido de uma preponderância contínua, progressiva, dos interesses e da
utilidade da espécie sobre os interesses e a utilidade do indivíduo – e por
conseguinte no sentido de uma socialização da vida econômica e, por ele,
da vida jurídica, moral e política.”
“Quanto aos detalhes do novo edifício social não podemos pre-
vê-los, precisamente porque o novo edifício social será, e é, um produto
natural e espontâneo da evolução humana, que está já em via de formação,
cujas linhas gerais se desenham, já, e não por uma construção artificial
imaginada por um utopista ou um metafísico.”
Como se vê, o ilustre escritor confunde utopista com metafísico,
o que só por si é bastante para mostrar quanto se deixou absorver pelo pre-
conceito da época, isto é, pelo prejuízo anti-religioso ou materialista. Que
estranha aberração, que extraordinária influência chegou o materialismo a
exercer sabre o espírito moderno? Tudo o que não é material, tudo o que
tende à concepção de um ideal superior, é falso. Não é já isto uma demons-
tração por absurdo da improcedência radical do materialismo? Mas o que
importa considerar é que Ferri francamente confessa não lhe ser possível
prever quais as bases da futura reorganização das sociedades. Assim todos
os partidários do chamado socialismo científico. Mas isto não importa. A
organização atual não presta; e é o que basta para que deva ser destruída.
Destruamo-la, pois, dizem eles. O mais virá depois e por evolução neces-
sária e inevitável. Os revolucionários de 89 em França previram a conven-
36 Farias Brito
III
INEFICÁCIA DESTAS TRÊS PRINCIPAIS TENTATIVAS DE SOLUÇÃO
* Incluímos a vírgula.
Finalidade do Mundo 37
IV
MEU PONTO DE VISTA