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O que matou Theodor W. Adorno?

O sociólogo, musicólogo e pensador Theodor W. Adorno sempre foi


um estrangeiro no seu próprio país e nos EUA para onde fugiu com a
ascensão do nazifascismo na Alemanha. Expoente máximo da
chamada Escola de Frankfurt, sua crítica da sociedade e da indústria
cultural inspirou estudantes que em 1969 se levantavam em
manifestações radicais de esquerda e que se inconformaram com a
recusa de Adorno em ser uma espécie de guru do movimento.
Quarenta e cinco anos depois, pesquisadores como Bill Niven da
Notthingan Forest University afirmam que os conflitos pessoais de
Adorno com líderes estudantis e a pecha em torno dele de
“apocalíptico e pessimista” podem tê-lo matado. Ao contrário desse
estereótipo, sua morte prematura interrompeu o seu projeto mais
otimista e libertário onde através de uma via “negativa” (e gnóstica)
tentava encontrar a “metafísica em queda” que o levaria a fazer uma
arqueologia das oportunidades perdidas: a busca das experiências
singulares impossíveis de serem dominadas pelos conceitos da
Filosofia, ideologias e poderes.

Em seis de agosto de 1969 o locutor da TV Suíça anunciou a


má notícia do falecimento do sociólogo, musicólogo e pensador
Theodor Adorno, vítima de um ataque do coração. No seu obituário,
referiu-se a Adorno como “um dos instigadores da rebelião estudantil
– ao lado de Herbert Marcuse e Juergen Habermas”. Até no momento
da sua morte, a ocasião veio confirmar os irônicos comentários do
próprio Adorno sobre o superficialismo da linguagem midiática em
sua ânsia em estereotipar pessoas para construir personagens. Pelo
contrário, Adorno vinha mantendo relações tempestuosas como o
movimento estudantil naquele ano.

Adorno, criador do conceito de Indústria Cultural e articulador


da Teoria Crítica (talvez o mais consistente esforço crítico contra a
ideologia do capitalismo tardio), estava sendo cobrado pelos seus
alunos da Universidade de Frankfurt por uma atitude mais positiva de
apoio aos movimentos estudantis de esquerda. O movimento
estudantil lançava um ultimato à Teoria Crítica no sentido dela ser
mais prática, intervindo o mais politicamente possível.

Ao contrário, Adorno resistia ao caráter propagandístico do


movimento, com suas palavras de ordem e músicas de protestos
(segundo ele, regidas pela mesma lógica publicitária da indústria
cultural). Adorno não concordava com uma coisa a qual sempre
resistiu à vida inteira: o entregar-se, a exigência de ir junto
acriticamente com uma onda ou movimento coletivo.
“Busenattentat”: trauma intra-psíquico?

Seu amigo mais velho e companheiro de pesquisas Max


Horkheimer já se entregara ao conservadorismo, mandando trancar
nos porões do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais de Frankfurt
todos os exemplares antigos da revista da instituição com textos
seminais da Teoria Crítica. Mas Theodor Adorno, aos 65 anos,
continuava seu trabalho de aprofundamento da crítica da sociedade.
Inspirados por ele, os estudantes não compreenderam o porquê da
sua resistência em ser um dos gurus dos movimentos de contestação.
Em muitos momentos Adorno se confrontou, cara a cara, com os
estudantes.

O auge teria sido o episódio denominado como


“Busenattentat”(literalmente, o assassinato do seio) quando, em uma
lotada sala onde Adorno ministrava uma conferência, algumas alunas
retiraram suas camisas e suéteres para deixar seus seios à mostra.
Constrangido, Adorno se retirou encobrindo o rosto com sua pasta:
“ser submetido ao ridículo de ser atiçado por três mocinhas
fantasiadas de hippie. Achei isso abominável”, disse Adorno em sua
última entrevista a Der Spiegel antes da morte – leia “Meu
pensamento sempre esteve numa relação muito indireta com a
prática”,  in: Der Spiegel, número 19, 1969).

Os ativistas estudantis mataram Adorno?

Pois 45 anos depois do seu falecimento, alguns pesquisadores


começam a considerar esses conflitos com o radicalismo estudantil
como a possível responsável pela sua morte prematura e em plena
produção intelectual (naquele momento escrevia o livro Teoria
Estética). O professor de História Contemporânea da Notthingan
Forest University, Bill Niven, acredita que esse incidente que o fez
suspender suas atividades no semestre, buscando refúgio naquele
verão na Suíça com sua esposa Gretel Adorno, poderia ter levado à
depressão e, mais tarde, o infarto, principalmente pela repercussão
na imprensa – leia “Who or What is to Blame for Adorno’s Death?”.
Conflitos entre Adorno e o movimento
estudantil

Após o incidente em Frankfurt, Adorno se queixava de “dores


oculares” persistentes e sinais de extrema depressão.

Para o historiador religioso Gershon Scholem, o trauma do


Busenattentat teria trazido uma “lesão intrapsíquica”, fator grave
para o desencadeamento de um infarto.

Segundo o livro Theodor W. Adorno zum Gedächnits do filósofo


alemão Hermann Schweppenhäuser (membro da segunda geração da
Escola de Frankfurt) , um depoimento de um médico teria sido
incisivo: “o ataque cardíaco não é um evento ex vacu. Ele é
preparado cuidadosamente e cataliza toda a frustração e exaustão
para, em seguida, atacar…”.

O próprio ex-ativista estudantil e cientista político que trabalha no


instituto de Pesquisa Social de Hamburgo, Wolfgang Kraushaar,
admite que “a causa lógica nunca será encontrada, mas as evidências
de uma suposta cumplicidade dos conflitos estudantis continuam
lancinantes e preocupantes o suficientes” – leia “Streit um
Busenattentat auf Theodor W. Adorno” In: Die Welt.

Após a morte de Theodor Adorno, atormentada por sentimentos de


culpa de supostamente não ter tratado da saúde de Adorno como
deveria, Gretel tentou suicídio com medicamentos após publicar as
obras póstumas Teoria Estética e Obras Completas. O suicídio falhou
e viveu mais 23 anos.

Os apertos de mão equivocados

Adorno não amava o simples. Isso foi simultaneamente sua


força e sua fraqueza. Adorno não acreditava na simplicidade das
soluções baseadas em opções polarizadas. Isso o imunizava das
agressões do Poder e das ideologias da propaganda, porém o deixava
desprotegido diante do imperceptível.
Por isso certamente por toda vida sua condição foi a de
estrangeiro, personagem gnóstico que se sente estranho dentro do
seu próprio país, na sua família ou mesmo com seus amigos.
Situação que concede uma posição privilegiada para compreender
todo mal e da dor enraizada nesse mundo, porém pagando um alto
preço por isso.

Adorno: “Todo riso está muito próximo

do horror o prepara”

Ele foi estrangeiro em vários mundos, sentindo-se


desentranhado das suas heranças humanistas de Goethe e Hegel: na
Alemanha nazifascista a dupla condição de risco em ser judeu e de
esquerda, nos Estados Unidos um estranho diante do pragmatismo e
do peacemeal engineeringe, na volta para a Alemanha no pós-guerra,
a dúvida da maturidade política daquele país até o fim da vida.

Dois episódios exemplificam essa condição estrangeira de


Adorno: os dois apertos de mão equivocados.

Durante a guerra, Adorno estava em Hollywood e acabou


sendo convidado a participar de uma festa de celebridades em honra
de um herói de guerra que havia perdido o braço direito em combate.
Adorno não havia sido informado desse “detalhe” sobre o
homenageado. Eles acabaram sendo devidamente apresentados.
Polidamente Adorno estendeu as mãos para cumprimentá-lo. Ao
perceber a gafe, Adorno, em um movimento desajeitado, fingiu que
ia, na verdade, colocar a mão em seu próprio bolso, diante do mal
estar de todos ao redor. Charlie Chaplin observou a tudo isso por trás
de Adorno. Como um raio, Chaplin pulou à frente e imitou de forma
brilhante e silenciosa a gafe do desconfortável Adorno, para uma
explosão de risos e diversão de todos.
Mais tarde, Adorno foi relembrar esse episódio para formular
um de seus aforismos: “todo riso está muito próximo do horror que o
prepara”. De um fato simples e singular, Adorno encontra todo o mal
estar humano ao aproximar o riso da dor – sobre essa frase de
Adorno clique aqui.

De volta para a Alemanha e em pleno momento de desgaste


com o radicalismo político de esquerda, o segundo aperto de mão
equivocado: Adorno inadvertidamente cumprimenta um policial que
adentrava nas dependências da Universidade de Frankfurt em mais
uma operação de repressão às manifestações. Para os estudantes,
tudo levava a crer que fora Adorno o responsável pela permissão da
repressão policial entrar no ambiente acadêmico, ampliando ainda
mais as animosidades. Começaram acusá-lo de “nazista”,
aumentando a tensão a cada sala de aula em que Adorno entrava até
chegar ao ápice do “Busenattentat” – como o desgostoso Adorno
declarou a Der Spiegel, “justo comigo, que sempre me voltei a toda
sorte de repressão política, erótica e contra tabus sexuais!”

Próximo da morte, o impulso gnóstico

Antes do livro Dialética Negativa de 1966, Theodor Adorno já


havia acertado as contas com Hegel ao afirmar que “o Todo é o não
verdadeiro”. O pensador passava a abandonar o que podemos
chamar de “primeira Metafísica” na Filosofia (a busca platônica por
essências distantes desse mundo que se desdobrariam na História até
se realizarem no Todo ou na Eternidade), para passar a ingressar na
segunda Metafísica da fenomenologia de Bergson e Merleau Ponty:
encontrar na própria experiência ou percepção uma dimensão pré-
cognitiva e extralinguística, uma dimensão metafísica
paradoxalmente presente na própria experiência sensível.

Na Dialética Negativa, Adorno se confrontará com todas as


aporias do idealismo de Kant e produzirá aquilo que ele chamou de
“metafísica em queda”: por uma via “negativa” buscar a “imediatez
subjetiva intacta” ou “subjetivismo do ato puro”, experiência que nos
daria o “interior dos objetos”, a redenção do materialismo por meio
da metafísica que, finalmente, revelaria a verdade do mundo. É uma
espécie de resgate do Absoluto no interior dos objetos do mundo.

Adorno exemplifica esse momento sagrado com a


reconstituição proustiana da experiência. O que Proust descobre na
sua obra “Busca do Tempo Perdido” são experiências singulares
extraídas de pequenos lugares e prosaicos acontecimentos, mas que
almejam espontaneamente a universalidade, não pela violência de
conceitos que abstraem a concreção dos fatos, mas da força do
individual, do irreprodutível. “Uma hora não é só uma hora: é
também perfumes, sons, projetos, climas” (PROUST, M., À la
recherche du temps perdu. Paris, Gallimard, 1999, p. 167). Marcel
Proust fala da sensação que encontra ao tropeçar nas irregularidades
do piso do casarão dos Guermantes, do barulho dos talheres e do
martelo, do sabor da madeleine. Esses momentos, dizia ele,
permitem respirar ares de outros tempos, ou “o tempo em estado
puro”. Nesses expedientes, diz ele, seria possível obter, isolar,
imobilizar a duração de um brilho (PROUST, M., pp. 2266-67).

Ao contrário do livro Dialética do Esclarecimento (que lhe


valeu a pecha de “apocalíptico e pessimista” ao criar o universo
fechado e sem saída na Indústria Cultural), na Dialética Negativa, e
no livro póstumo Teoria Estética, temos um Adorno otimista onde
pretendia fazer uma verdadeira arqueologia das oportunidades
perdidas, da busca das experiências singulares não sistematizáveis
pelos conceitos da Filosofia, ideologias e poderes. Tudo que ainda
resistira intacto à integração criada pela indústria cultural.
Um claro impulso gnóstico de encontrar o brilho e a luz na
própria totalidade que a aprisiona e, ao mesmo tempo, se alimenta
dela na indústria Cultural. Esse era o projeto final de Theodor Adorno,
encerrado prematuramente e desconhecido para todos os leitores que
possuem a visão estereotipada do “filósofo apocalíptico” que a própria
indústria cultural que tanto criticava criou para ele. E isso talvez o
tenha matado.

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