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LU me CIO COSTA CONSIDERACOES ~ SOBRE ARTE s CONT! EMPORANEA SERVICO DE DOCUMENTAGAO MINISTERIO DA EDUCAGAO E SAODE LUCLOACOSTA CONSIDERAGOES SOBRE ARTE i : CONTEMPORANEA ; 4 | . ass oe f er Se MINISTERIO DA EDUCAGAO E SAUDE SERVICO DE DOCUMENTACAO i i ici ci i ze i ;
  • s4rio comecar-se por definir, com a desejavel objetivi dade, 0 que seja arquitetura. Arquitetura é, antes de mais nada, construcdo; mas, construcéo concebida com o propésito primordial de ordenar o espaco para determinada finalidade ¢ visando a determinada intencao. E nesse processe fundamental de ordenar e expressar-se ela se revela igualmente arte plastica, porquanto nos inumeraveis problemas com que se defronta o arquiteto desde a germinacio do projeto até a conclusao efetiva da obra, hA sempre, para cada caso especifico, certa margem final de opc&o entre os limites — maximo e minimo — determinados pelo cdlculo, preconizados pela téc- nica, condicionados pelo meio, reclamados pela funcao cu impostos pelo programa, — cabendo entao ao sen- timento individual do arquiteto (ao artista, portanto) escolher, na escala dos valores contidos entre tais limi tes extremos, a forma plastica apropriada a cada por menor em fungéo da unidade tltima da obra idealizada. A intengao plastica que semelhante. escolha sub- entende 6 precisamente o que distingue a arquitetura da simples construcio. Por outro lado, a arquitetura depende ainda, neces: sariamente, da época da sua ocorréncia, do mieio fisico e social a que pertence, da técnica decorrente dos ma- teriais empregados e, finalmente, dos objetivos visados e dos recursos financeiros disponiveis para a realizacao da obra, ou seja, do programa proposto. Pode-se entio definir a arquitetura como constru- cao. concebida com a intenc’o de ordenar plastica- mente 0 espace, em funcéo de uma determinada época, —5 aot he de um determinado meio, de uma determinada técnica e de um determinado programa. Estabelecidos, assim, os vinculos necessarios da intenc&o plastica com os demais fatéres fundamentais em causa, e constatada a simultaneidade e constancia dessa mitua presenca na propria origem e durante todo © transcurso da elaboracaéo arquiteténica, o que the justifica a classificacéo tradicional na categoria das belas-artes, pode-se ent&o abordar mais de perto a questao no propésito de elucidar, com o apdio do teste- munho historico e da experiéncia contemporanea, como Pprocede 0 arquiteto ao conceber e projetar. Constata-se desde logo a existéncia de dois con- ceitos distintos e de aparéncia contraditéria a orien- té&lo: 0 conceito organico-funcional, cujo ponto de partida é a satisfacao das determinacées de natureza funcional, desenvolvendo-se a obra como um organis mo vivo onde a expresso arquiteténica do todo de- pende de um rigoroso processo de selecéo plastica das partes que o constituem e do modo como sao entro- sadas e o conceito pldstico-ideal, cuja norma de proceder implica senéio o estabelecimento de formas plasticas a priori, as quais se viriam ajustar, de modo sébio ou engenhoso, as. necessidades funcionais (aca- demismo), em todo caso, a intengaio preconcebida de ordenar racionalmente as conveniéncias de nature- za funcional, visando a obtencdo de formas livres ou geométricas ideais, ou seja, plasticamente puras No primeiro caso a beleza desabrocha, camo numa flor, e o seu modélo histérico mais significativo é a arquitetura dita “gética”; ao passo que no segundo 6 ela se domina © contém, como num cristal, e a atqui- tetura chamada “classica” ainda 6, no caso, a manifes- tacio mais credenciada. As técnicas construtivas contemporaneas — carac- terizadas pela independéncia das ossaturas em relacao &s paredes e pelos pisos balanceados, resultando dai a autonomia interna das plantas, de carater “funcio- nal-fisinlégico”, e a autonomia relativa das fachadas, de natureza “plastico-funcional”, — tornaram possivel pela primeira vez na histéria da arquitetura, a perfei- ta fusio daqueles dois conceitos dantes justamente considerados irreconcilidveis, porque contraditérios: a obra, encarada desde 0 inicio como um organismo vivo, é, de fato, concebida no todo e realizada no pormenor de modo estritamente funcional, quer dizer, em obedi- éncia escrupulosa as exigéncias do calculo, da técnica, do meio e do programa, mas visando sempre igualmen- te alcancar a um apuro pléstico ideal, gragas & unida- de orginica que 2 autonomia estrutural facuica e & relativa liberdade no planejar e compor que ela enseja. # na fusio désses dois conceitos, quando o jégo dns formas livremente delineadas ou geométricamente definidas se’ processa espontaneo ou intencional ora derramadas, ora contidas —, que se escondem a sedu- co © as possibilidades virtuais ilimitadas da arquite- tura moderna. Esra dualidade de concepcaio sobre a qual assenta a nova técnica da composicao arquiteténica, prende-se, alias, do ponto. de vista restrito da expressdo plastica, —7 a uma dualidade formal mais profunda, que se mani- festa igualmente nos demais setores das belas-artes, independentemente de outras tantas particularidades por que também se possam conjuntamente caracterizar. Dualidade figurada, de um lado, pela concepeao estética da forma, na qual a energia plastica concen- trada no objeto considerado parece atraida por um su- posto niicleo vital, donde a predominancia dos volumes geométricos e da continuidade dos planos de contérno definido e a conseqiiente sensagao de densidade, de equilibrio, de contensio (arte mediterranea); 2, por outro lado, pela concepeio formal dindmica, onde a energia concentrada no objeto parece querer liberar-se e expandir, — seja no sentido unanime de uma resul- tante ascencional (arte gética), seja em diregdes con- traditérias simulténeas (arte barroca), seja revolyen- do-se e voltando sdbre si mesma (arte indu), seja rodopiando & procura de um veértice (arte Eslava), seja fragmentando-se aprisionada dentro de limites convencionais (arte arabe), seja ainda, abrindo-se em elegantes ramificacdes (arte iraniana), ou, final mente, recurvando-se para cima num ritmo escalonado (arte sino-japonesa) —- donde a fragmentacéo dos planos 2%a predominancia das massas de aparéncia arbitraria e silhueta ponteaguda, irregular, torturada, retorcida, intricada, graciosa ou ondulada, conforme o caso, e como conseqiiéncia, inversamente, as sensacées de embalo, de encantamento, de prestidigitacao grafica, de vertigem, de angiistia, de impulso extravasado e de serenidade ou exaltacdo. ‘so A cada uma dessas concepgdes formais, tanto a estatica quanto as diferentes modalidades da dinamica, corresponde portanto, originariamente, um habitat na- tural, muito embora as trocas culturais e as vicissitu- des préprias do desenvolvimento histérico as hajam seguidamente confundido a ponto de se apagarem muitas vézes os tracos de ligacéo a ésses focos de origem. A delimitacao de tais focos e 0 restabelecimento esquematico das linhas gerais de penetracéo e de fluéncias reciprocas, torna-se indispensdvel & perfeita compreenséo da arte moderna em geral, porquanto a sua principal caracteristica 6, precisamente, a predis- posigéio a aceitar e assimilar a contradicao daqueles conceitos, paradoxalmente englobados no mesmo corpo de doutrina. Procure-se pois resumir a fim de reconstituir men- talmente, dentro dos limites objetivos do quadro geo- grdfico e da perspectiva histérica, os caminhos percor- ridos pelas correntes plasticas fundamentais. Considere-se, primeiro, a arte das diferentes civi- lizacdes que se sucederam ao longo da bacia do Me- diterraneo — egipcia, grega, etrusca, romana, bisantina —ea esta simples enumeracZo ldgo se adivinha ai o berco do conceito estético da forma, conceito euja pureza geométrica ainda se manifesta ao vivo na arquitetura popular mediterranea, tanto a do Sul da Europa, quanto a do norte da Africa, das cidades as Baleares, das costas da Siria as costas da Catalunha. Encare-se, em seguida, a arte norte-européia j4 liberta das peias romanicas e se ha logo de reconhecer, 10 — na espontaneidade e exuberancia da maravilhosa flc- taco gética, a presenca latente de uma concepgao plas- tica peculiar que nao é outra coisa sendo a revelacio do conceito formal nativo, dinamico, até entao contido pelos complexos culturais latinos mas, finalmente, emancipado. E se a meméria visual for levada agora a vagar na direcao do oriente, se hA de constatar igualmente, nas manifestagdes da arte indu, bidica e braménica, a mesma seiva teldrica profunda expressa segundo o conceito dinamico da forma, embora num sentido plas- tico diametralmente oposto ao da concepcao nérdica, ocidental. A arte khmer, da Indo-China, tao bem sin- tetizada nos recortes monumentais do Angkor-Vat, taru- bém participa das mesmas caracteristicas fundamentais. E ja que se chegou tao perto, assinale-se, para concluir a volta empreendida, a arte refinada do ex- tremo-oriente. Nao obstante a regularidade simétrica da planta dos templos e palacios chineses, e a massa imponente das muralhas que os enquadram, a sua plastica — onde predomina o gracioso capricho dos telhados escalonados dos pagodes — desenvolve-se igualmente, em elevacdo, segundo as normas da inten- c&o formal dinamica- O que também se aplica & arte, sob outros aspectos t&éo diferenciada, dos seus herdeiros culturais, os japoneses. Mas, para que o delineamento destas duas coorde- nadas gerais se possa precisar melhor, torna-se neves- saério voltar atras a fim de considerar ainda a arte das diferentes culturas milenares que se sucederam ao longo do Tigre e do Eufrates: de uma parte a —il | arte dos sumerianos, dos akades, dos caldeus, ou seja, a arte da Mesopotamia propriamente dita, que se pode considerar, com fundamento, uma das matrizes da concepeao estatica da forma; e de outra parte, a arte que resultou do desenvolvimento cultural das aguerricias Populacdes montanhesas descidas do norte — arte assiria —, a qual ja participa, por seus caracteres peculiares de expressfio, da concepedo plastica di- namica. Ter-se-&o désse modo estabelecido, finalmente, dois eixos culturais bem definidos quanto a concepcio plds- tica da forma: 0 eixo mesopotamo-mediterraneo, cor- respondente a concepgao estdtica, e 0 eixo nérdico- oriental, correspondente & concepcio dindmica. Contudo, para melhor se apreenderem os caracte- res diferenciadores désse dualismo formal basico, — ao qual se vieram apegar outros conceitos auténomes que em diferentes regides, culturas ou circunstAncias, puderam encontrar, nalguma das variadissimas expres- ses dessa dualidade, a forma plastica apropriada a Ihes traduzir 0 contetido racial, ideolégico ou cultural, — prossiga-se com a enumeracéio sucinta dos casos mais significativos de trocas e predominancias tempo- rarias das duas corfentes, constatando-se, de passagem, os estilos nacionais onde a presenca delas é simultanea ou o seu equilibrio manifesto. 1.° — A arte helenistica — reconhecida como o barroco da antiguidade — nAo é senao a conseqiiéncia logica do contagio do conceito formal estatico, ja entdo predisposto a ruptura da contensao plastica, com o BV EIXO MESOPOTAMO- MEDITERRANEO conceito que Ihe é oposto, isto é, 0 dinamico, dai a deflagracdo dramética que se seguiu. 2° — A pureza geométrica-da arte da antiga Bisancio, tao bem definida no sereno esplendor de Santa Sofia, resultou — quando do seu contato com as correntes profundas da concepeao plastica dinamica eslava, e apesar da intervencao de artistas italianos —, no bisantinismo espetacular da igreja do Bemaventu- rado Basilio, em Moscou. 3° — As peculiaridades da arte veneziana decor- rem da situacéo geografica especial da Republica, empério comercial para onde convergiam e se cruza- vam obrigatériamente as corrente nérdicas ¢ orientais da concepedo formal dinamica com a corrente nativa toscana, filiada a concepgdo estatica, mediterranea. 4° — A arte Arabe, situada, tal como a iraniana, na confluéncia dos dois cursos, sofreu-lhes a acdo re- ciproca, E assim que, por exemplo, da sua irrupcao vitoricsa na Siria, no norte da Africa e na peninsula Ibérica, decorreram expressées estilisticas de concepcaio estatica, onde a graca e a firmeza plastica se casam harmoniosamente, ao passo que da sua infiltracao no Ira e no Paquistéo resultou um estilo proprio cujo encanto e elegdncia, de inspiracio dinamica, sao hem a expresséo refinada de uma cultura de raizes embebi- das no lastro profundo das velhas civilizacdes orientais. 5° —- © “ultra-barroco” manoelino de Portugal — anterior portanto a Miguel Angelo e ao barroco histérico —, estilo tao bem simbolizado na bravura plastica da famosa janela capituiar do mosteiro de 14 — Tomar, néo é senéo a manifestacdo sensivel do con- ceito formal din&mico do oriente, revelado de chofre ao olhar deslumbrado dos portuguéses ainda mal saidos da concepcao estatica romanica da forma, j4 que a pene- tracao ogival ibérica sé adveio tardia. Assim, portanto, a constancia do ciclo “classico- barroco” ou “classico-romantico”, observada pela acui- dade intelectual do Sr. Eugénio D’Ors, teria outro fundamento, e significaco ainda mais profunda, por- quanto ja nao se trataria apenas, em esséncia, dos tempos sucessivos de um péndulo, mas, principalmen- te, da ocorréncia simultanea de duas: correntes bem definidas de conceitos plasticos antagénicos e dos seus contatos e trocas, sendo mesmo da sua eventual fusao. 6° — © Renascimento significa 0 restabeleci- mento da concepedo estatica da forma nos seus proprios dominios. £, portanto, a reacdo contra os extravasa- mentos da concepgao dindmica ogival além do leito natural do seu curso. © contra-golpe dessa reacio formal, manifestacdo objetiva de um novo contetido ideolégico — o hurne- nismo individualista — empolgou a sociedade culta, passando-ce entao a refugar por téda a parte, na Euro- pa, sob o patrocinio pedante dos cortesios, 0 conceito dinamico da forma, identificado, j4 entdo, como confuso e barbaro, indigno, pois, do ideal plastico reconquistado de ordenacao e clareza. Conquanto na Italia essa legitima recuperacao dos direitos de cidadania ocorresse com espontaneo desembaraco desde as primeiras revelacées, seguidas da plenitude do “quattrocento”, até a elogiiéncia da — 15 alta-renascenca, na Europa do norte a nova concepcao formal provocou, de inicio, perplexidades, adquirindo gradacgées bem definidas segundo o carater nacional dos diferentes povos afetados pela febre renovadora. Nos paises germanicos e eslavos, por exemplo, de- pois da primeira fase, quando a interpretacdo gética das formas novas conduziu a imprevistos achados estilisticos, ela se caracterizou pelo desmedido das proporcées e pelo exagéro das massas tecténicas, pre- nunciadoras da énfase e desenvoltura barrocas que dentro em pouco haveriam de prevalecer ali. Na Inglaterra, 0 novo conceito formal baniu, de vez, a feicio espontanea das nobres residéncias rurais com grandes halls envidracados e alas assimétricas agenciadas a topografia local e &s conveniéncias fun- cionais — partido ainda em voga durante a renascenca elisabetiana —, em favor dos blocos regulares de como- dulacéo uniforme e aparéncia monétona. Todavia, a instintiva reserva britanica, guiada pela erudicéo de §tr CHRISTOPHER WREN e pela feliz influéncia pala- diana, soube conferir a tais estruturas uma distinco natural inconfundivel que resultou, mais tarde, na apurada elegancia georgiana e na modinatura algo séca dos irmos Adam, repercutindo igualmente na agra- dével arquitetura das mansées coloniais da Virginia ou da Nova Inglaterra. : ‘Ao passo que em Franca, cadinho onde se fundi- ram e temperaram, através dos séculos, es duas cor- rentes de influéncias formais que a atravessam (a estatica, do eixo mesopotamo-mediterraneo, e a dina- mica do eixo nérdico-oriental), pode-se sempre obser- 16 — var — seja na primeira renascenca, quando os mestres — pedreiros arquitetos interpretavam a seu modo o novo yocabulario importado da Italia, seja quando o novo estilo jA se desenvolvia seguro de si, gracas ao amestra- mento do Primaticcio em Fontainebleau, e as judicio- sas licdes de PHILIBERT DE L'ORME —, a expressdo do equilibrio e maturidade intelectual geralmente reco- nhecidos como caracteristicas do senso de medida pe- culiar ao gésto francés e do qual se féz tao mau uso aa chamada “arte-decorativa” do primeiro apés-guerra. 7° —- A viruléncia do alastramento da reacao barroca na Alemanha, na Tchecoslovaquia, na Hun- _eria, etc., deveu-se circunstancia de haver sido a corrente formal dinamica, latente nesses paises, muito bruscamente abafada pelo formalismo estatico renas- centista. Por outro lado, a assiduidade do comércio com as Indias Orientais contribuiu sem duvida, para © florescimento da arte barroca na Flandres e na peninsula Ibérica Quanto @ arquitetura colonial da América esps- nhola e portuguésa, cabe reconhecer que participa da corrente formal estatica devido A tradicdo meditersa- nea de suas culturas de origem, mas depende funda- mentalmente da corrente formal dindmica j4 que o seu desenvolvimento principal se enquadra em cheio no ciclo barroco dos séculos XVII e XVIII. £ curioso, aliés, assinalar a respeito que, das culturas autéctones Azteca e Inca, uma, a mexicana, participa do conceito formal dinamico, enquanto que a do Peru se ajusta melhor ao conceito formal estatico, = AT. SS | eee eee » Serer circunstancia que nfo deixou de influir no ulterior desenvolvimento da arte colonial dos dois paises. Quanto @ arte dos Maias, da América Central, ela tanto sofreu a acéo de uma quanto de outra corrente. E ainda se podera acrescentar, a titulo de conclusio, outro exemplo significativo: 0 confronto da ceramica indigena de Marajé com a de Santarém, no norte do Brasil, uma fabricada segundo os principios da “forma fechada”, prépria da concepcao estatica, e 2 outra baseada nos azares caprichosos da “forma aberta” que caracteriza a concepcao plastica dinamica, — indicio. portanto, de origens diversas e nao etapas distintas de evolugao. Rizconnzcroa a:constancia désso jogo de agééee reacdes, de contatos e trocas, de equilibrios e de pre- dominancias no passado, ha de ser facil perceber que a arte moderna tal como se define através da obra de Picasso, de BRrAQUuE, de LEGER, de CHAGALL, de Liecuitz, de LAURENS, etc., se abebera nessas duas fontes distintas de onde procede a criagio plastica criginal, e que, portanto, participa ao mesmo tompo dos conceitos formais estatico e dinamico, nas suas gamas variadissimas de expresséo. Repete-se assim o fenémeno anteriormente assinalado, a propésito da arquitetura moderna, quando se constatou igualmente a fusao de dois conceitos de aparéncia contraditéria: © conceito plastico-ideal e 0 conceito organico-fun- cional. Contudo, essa amplitude no conceber e intentar de que se beneficia a arte contemporanea nao resul- 18 — | | tou de uma atitude excepcionalmente receptiva e ge nerosa da parte dos artistas, mas tao sémente das faci- lidades e do tremendo alcance dos processos modernos de registro, transmisséo e divulgacao do conhecin:en- to: informac&ao no tempo, — as obras criadas na mais remota idade sfo-nos familiares nos seus minimos pormenores; informacio no espaco, — as realizacées de maior significagdo, elaboradas onde quer que seia, vém-nos a0 alcance quase instantaneamente através da publicacéo nos periédicos especializados, com abundancia de texto elucidativo e de reproducé fidelissimas, ou diretamente, por meio das expo- si¢des individuais ou coletivas, dos cursos de confe- réncias e da literatura especializada. Esse aciimulo de conhecimentos faz com que o artista moderno viva, a bem dizer, saturado de impres- sdes provenientes de procedéncias as mais imprevistas, © que o impede de conduzir o seu aprendizado e for- mac&o no sentide tnico e com a candura desprevenida dos antigos, pois queira-o, ou nao, éle se ha de revelar precocemente erudito. Nao obstante — e esta 6 a senha da arte moder- na —, 0 artista nfo se aproveitard désse aluvido de impressées que a um tempo o seduzem e desarvoram, como de um manancial eclético de maneirismos e de inspiracfo, mas o utilizaraé como matéria-prima de trabalho destinada a ser refundida com as sensacdes pessoais da propria experiéncia e recriada, — segundo novos processos e novas técnicas — ao calor de uma nova emogao. — 19 Dai a presenca na sua obra désse surpreendente amalgama de conceitos contraditérios, e a sua aparén- cia inusitada, sendo, para muitos, rebarbativa, tal, por exemplo, a tiltima-fase (escrito em 1946-7) dé Picasso, classificada como “monstruosa” segundo a interpreta- ¢40 de criticos eminentes que pretenderiam reconhecer nessa pretensa imonstruosidade, o reflexo das condicdes caéticas do mundo’ contemporaneo, como se semelhante “bill” de indenidede fésse capaz de eximir a arte mo- derna apanhada em flagrante delito contra a beleza. E por onde igualmente se conclui que a presumem doente, tai como j4 pretenderam doentia a exube- rancia plastica da arte barroca, medida pelos canones raquiticos do academismo. Ora, nao é, de modo algum, de monstros que se trata, e nada ha de caético nem de artisticamente “feio” ou “doentio” nessas criacdes picassianas concebidas e ordenadas segundo os imperativos de uma consciéncia plastica excepcionalmente sa e lucida, e das quais se desprende, gracas & pureza da cér e do desenho, uma euforia travéssa, ou se expande um otimismo herdico contagioso, quando n&o é 0 caso de se conterem, pelo contrario, no mais sereno equilibrié. Vale o exemple para mostrar o quanto ainda é viva certa incom- preenséo. Semelhante equivoco sobreveio também a. pro- pésito da pseudo querela entre partidérios da arte “figurativa” e da arte “nao-figurativa” distingao desti- tuida de sentido'do ponto de vista plastico, mas reto- mada por ocasifio da exposicio da obra significativa de Portinari, em Paris, e iltimamente avivada. 20 — Evidentemente a arte moderna, desprendida da contingéncia representativa, libertou-se, até certo pon- to, da imagindria, e tanto pode utilizar-se da figura como Ihe dar conformacao diferente ou mesmo dispen- sar-se dela, sem que tal atitude possa implicar jufzo de valor. Esta falta de coacio nao se refere apenas, alids, A figura, mas igualmente aos simbolos, porquan- to, em conseqiiéncia do alargamento do campo do co- mhecimento e da vulgarizacdo cientifica, os simbolos, tal como os mitos na antiguidade, j& perderam, em parte, a férca sugestiva e a sua condicio de estimula- dores das artes plasticas: o aviltamento contempor3- neo da arte religiosa — nao obstante o engenho das comoventes transposicdes de ROUAULT, e a honrosa con- tribuicaéo de PORTINARI no retabulo, na V1a-Sacra e nos AZULEJos da belissima capela da Pampulha, alids menosprezada pela Igreja —, é testemunho eloqiiente. (A coleténea de obras reunidas pelo dominicano CoururIER, na capela de Assy resultou inconclusa por falta de arquitetura que as integrasse orgdnicame;'te, ao passo que o carater excepcional do recente devaneio decorativo-religioso de Matisse apenas confirma a crise latente). : Por outro lado, o impasse onde desembocou o movimento muralista mexicano, j4 agora vazio de con- tetido revolucionario, evidencia 0 equivoco fundamen- tal da sua origem artificiosa — 0 muro, elemento supérflue da arquitetura contemporénea, quando no Renascimento a presenca estrutural das paredes impu- nha, por assim dizer, o afresco. — 21 Em conclusio, 0 artista moderno, no limiar dos tempos novos, decorrentes da revolucéo industrial e tecnolégica em curso, tem 0 campo livre diante de si €, nesse sentido, pode-se afirmar haver recuperado, apesar do péso da erudic&o adquirida, 0 estado de inocéncia diante da criac&o plastica que Ihe surge na sua mesma pureza original, desprendida de qualquer entrave, 0 que nfo o impedird, caso se ihe enseje, de recorrer* novamente as formas representativas, ou de erriquecer eventualmente a sua obra de novos simbolos ou dos simbolos misticos rejuvenescidos. Lisro: ptete; podese entdo abordareet aegtnia que: tao inicialmente enunciada: a da arte pela arte como fungao social, nova conceituagéo capaz de desfazer o pseudo-dilema que preocupa a tantos criticos ¢ artistas contemporaneos, ou seja, 0 da gratuidade ou militdncia da obra de arte. Importa no caso, antes de mais nada, a distincao entre esséncia e origem porque nesta discriminacdo preliminar reside a chave do problema proposto. Se é indubitavel que a origem da arte 6 interessada, pois a sua ocorréncia depende sempre de fatdres que Ihe sao alheios — o meio fisico e econémico-social, a época, a técnica utilizada, os recursos disponiveis e o programa escolhido ou impésto —, nao é menos verda- deiro que na sua esséncia, naquilo porque se distingue de tédas as demais atividades humanas, 6 manifesta- ¢&o isenta, porquanto nos sucessivos processos de esco- 22 — a. Tha ‘a que afinal se reduz a elaboracdo da obra, escolha indefinidamente renovada entre duas céres, duas tona- lidades, duas formas, dois partidos igualmente apropria- dos ao fim proposto, nessa escolha ultima, ela tio sé — arte pela arte — intervem e opta. Conquanto manifestacao natural de vida e, como tal, parte integrante e significativa da obra conjunta claborada pelo corpo social a que pertence, ésse carater sui-generis da criacao artistica dificulta a sua aborda- gem pelas sistematizacées filo-cientificas, e a torna, por vézes, refratéria aos enquadramentos filo-partidarios. que, enquanto a criacao cientifica é parcela revelada de uma totalidade sempre maior que se furta &s balises da delimitacAo inteligivel, nao passando por- tanto o cientista de uma espécie de intermediario cre- denciado do homem com os demais fenémenos naturais, donde o fundo de humildade, afetada ou verdadeira, peculiar a sua atitude, -— a criac&o artistica, ou me- lhor, o conjunto da obra criada por um determinado artista, constitui um todo auto-suficiente, e éle — o proprio artista — é legitimo criador désse mundo & parte e pessoal, pois ndo existia antes, e idéntico nao se refara jamais. Dai a vaidade inata, aparente ou velada, que constitui o fundo da personalidade de todo artista autenticamente criador. Nao cabe indagar, com intencées discriminatérias, “para quem o artista trabalha”. porque, a servico de uma causa ou de alguém, por ideal ou por interésse, éle trabalha sempre apenas, no fundo, — quando ver- dadeiramente artista — para si mesmo, pois se al menta da propria criacéo, muito embora anseie pelo — 23 estimulo da repercussio ¢ do aplauso, como pelo ar que respira. A presuncao de ser a arte pela arte antitese de arte social, é tao destituida de sentido como a anti- nomia arte figurativa — arte abstrata, néo passando, em verdade, de uma deformacdo teérica inexplicavelmente aceita pela critica de arte, a titulo de tabu, assim como se fésse, por exemplo, ato condendvel a pratica do bem s6 por bondade. Téda arte plastica verdedeira tera sempre de ser, antes de mais nada, arte pela arte, pois o que a have- ra de distinguir das outras manifestacoes culturais é © impulso desinteressado e invencivel no sentido de uma determinada forma plastica de expressao. Quando todos os demais fatéres direta ou indireta- mente necessérios A sua manifestacéo estejam presen- tes — inclusive o social — e ésse impulso desinteres- sado e inyencivel faltar, a obra podera ser documento do que se queira, mas nao tera maior significacdo como arte. éle, portanto, o residuo a que, em tltime andlise, a obra se reduz. Nao se trata de uma quinta esséncia, como tantos supéem, mas da prépria subs- tancia do fato artistico, ou seja, o seu germe vital. E o que garantiré — tal como foi dito anteriormente — a permanéncia da obra no tempo, quando aqueles demais fatéres que lhe condicionaram a ocorréncia j4 houverem deixado de atuar sébre ela, e isto nado apenas como testemunho de uma civilizacéo perecida, mas como manifestacio ainda viva e, para sempre, atual. © sentido social das obras de arte do passado nunea se manifestou como intervencéo deliberada de 24 — sentido artistico, sendo como decorréncia das deter- minagoes de um programa — religioso, civil ou militar — bem definido, entendendo-se por ai nao sémente a discriminacao pormenorizada dos requisitos, como a intenc&o que os preside e ordena, e das naturais limi- tacdes de tempo e lugar impostas pelo pr6prio carater restrito do meio fisico e social. Em conseqiiéncia, o amadurecimento das solucdes apropriadas para cada caso se processava por etapas, e a unanimidade e cons- tancia da aplicac&o artistica num sentido plastico de- terminado perdurava até quando se Ihe exaurissem as possibilidades expressivas, e adviesse a introducgdio de novos elementos formais susceptiveis de provocar a quebra daquela unanimidade consentida, servinde, ainda, de incentivo as faculdades criadoras no sentido estimulante da descoberta, tinico capaz de produzir novo surto generalizado de expansio Essa unanimidade comproveda até principios do século XIX, decorria do fato das manifestagées artis- ticas nfo se limitarem a obra dos mestres e seus disci- pulos, mas abrangerem também a totalidade dos oficios, isto @, 0 conjurito das atividades operarias manufe- tureiras. A perda désse sentido totalitaric que sempre pre- valeceu nas manifestac6es artisticas do passado — de- finindo o estilo de cada época —, nao se deveu nem a caprichos individualistas exacerbados, nem a ma- quinacées diversionistas das classes dirigentes ou a especulacao comercial, tal como se pretende agora, con- fundindo alguns dos seus efeitos mais evidentes com a verdadeira causa. Ela resultou da mesma fatalida- 3 — 25 de histéria inelutavel que deu origem A socializacdo contemporanea: a revoluc&o industrial do seas passado. Pois desde ento, e devido & producéo mecé- nica sempre mais apurada de artefatos, a arte nfo sé desgarrou das atividades industriais, dantes seu legi- timo dominio, como também, no que se refere & pintu- ra, perdeu a exclusividade como processo de historiar pela imagem ou de representar objetos, cenas ¢ pessoas, fungéio a que sempre estivera associada no agora igualmente absorvida pela 16 passado, mas nica mecanizada de alta precisio, que, por sua vez, deu origem a nova modalidade mais complexa de expressio plastica, — o cinema. Despojados do que sempre Ihes parecera inaliené- vel, insulados no seu desajuste cada vez maior com a sociedade, viram-se assim os artistas, desde meados do século KIX, na contingéncia de reconsiderar os problemas fundamentais da arte, partindo de novo, como os povos primitivos, da estaca zero. Nao foi pois o seu apregoado individualismo que provocou 0 desencontro com a opinido publica, mas a prépria crise do oficio e a consegiiente incompreensao e hostilidade do meio social — cujos preconceitos impediam de alcancar o sentido verdadeiro da revolucao plastica en: curso, tal como nao deixavam perceber o sentido pro- fundo da revolucdo social latente —, que os forcaram ao isolamento. A culpa nao cabe aos artistas, por- quanto, apesar de repudiados pela burguesia, souberam sempre afirmar, com acintoso desdém e insopitada pai- xdo, a legitimidade de sua arte renovada. Os conceitos modernos de arte — desde Courbet até Picasso — fo so, portanto, na sua esséncia, in- yencées arbitrarias do capricho individual ou manifes- tacbes de decadéncia da sociedade burguesa conserva- dora, mas sim, pelo contrario, irmos legitimos da re- novacao social contempordnea, pois que tiveram origem comum e, como tal, ainda haverao de encontrar-se. Precisamente ésse poder de invencdo desinteres- sada e de livre expanséo criadora, que tanto se Jhes recrimina, 6 que podera vir a desempenhar, dentro em breve, uma funcdo social de alcance decisive, pas- sando a constituir, de modo imprevisto, o fundamer.to mesmo de uma arte vigorosa e pura, de sentido oti- mista, digna portanto de um proletariado cada vez mais senhor do seu destino. Trata-se da utilizacéo dessa concepcio renovada das artes plasticas como derivativo providencial ou, melhor, como complemento I6gico, para compensar a monétona tensféo e a rudeza opressiva do trabalho quotidiano nas indistrias leves e pesadas, ou nas duras tarefas do desbravamento e da construcdo, pois que ela viria dar vasao aos naturais anseios de fantasia individual e livre escolha, reprimidos devido A regulari- dade dos gestos impostos pelo trabalho mecnico, quando, dantes, encontravam aplicacéo obrigatéria e escoadouro normal no préprio desempenho de cada oficio, gracas ao fundo de iniciativa e critério pessoal inerente as técnicas manuais do artesanato. A aplicacdo social désses novos conceitos de arte como forma ativa de evasio e reabilitacio psicolégica — 27 individual e coletiva, e visando, como o esporte, 0 recreio desinteressado da massa anénima do proleta- uas horas de lazer, proporcionaria entao, riado nas s & arte moderna, sempre pronta na sua permanente dis- ponibilidade & aceitacio de qualquer disciplina, preci- camente o que lhe falta, e que nao 6, tal como geral- mente se pretende, sentido popular, mas raiz popular, © que é muito diferente. E nao s6 raizes populares, mas participacéo do préprio proletariado no seu processo de evolucdo, o que Ihe viria conferir conteido humano mais rico e sentido plastico diferente, pois da mesma forma que a pratica dos esportes, visando, originariamente, apenas o bem estar individual, através do exercici= fisico (com repercusséio no comportamento moral do individuo pe- rante a sociedade), — criou, depois, gracas ao conhe- cimento generalizado das regras do jégo e ao natural desenvolvimento do espirito de competicao, a paixdo coletiva pelas demonstracées individuais ou associadas de excepcional pericia, — assim, também, a prética desinteressada das artes plasticas (nas suas varias modalidades ditas modernas, aparentemente mais aces- siveis por prescindirem do lento aprendizado académi- co e da sua rigida disciplina), visando apenas, inicial- mente, o bem estar psiquico de cada um, através do exercicio de suas faculdades criadoras, acabaria por es: tabelecer, pela convergéncia da curiosidade e 0 encan- tamento da descoberta dessa nova forma de linguagem ou seja, das regras do seu jégo — e pelo mesmo espitito tiatural de competi¢&o, o clima indispensdvel de corau- nhdo de interésses, bem como os conhecimentos técnicos 28. adequados ao surto eventual de uma arte verdadeira- mente popular. Mes como é preciso semear para colher, caberia mobilizar os velbos mestres, criadores geniais da arte do nosso tempo, a fim de que dedicassem o resto de suas vidas preciosas 4 tarefa benemérita de plantar no meio agreste dos centros industriais e agricolas as sementes de uma tal renovacao. Da massa indistinta de homens e mulheres absor- vidos nessa experiéncia generalizada haveriam de sur- gir, com o tempo, os mais dotados de intuicdo plastica, e déstes, progressivamente, os artistas possuidos de paixfo criadora e capazes nao sé de eletrizar as mul- tid6es como os campeées olimpicos e os acrobatas de circo, mas de comové-las com as suas obras, seja por sua feic&o monumental, seja pela intencio intima e pessoal limitadissima de sua concepcao, jA que & ésse, tantas vézes, o caminho mais curto para o cotacaéo das massas, predispostas sempre a captar o sentido secreto da confissao dos homens, pois ha algo de trans- missivel na experiéncia individual de cada um. © que ficou acima exposto podera constituir, entao, a sintese da seguinte antinomia calcada nos fatos da realidade contemporanea: tese, — a arte moderna é considerada por certa critica, de lastro con- servador, como arte revoluciondria, patrocinada pelo comunismo agnéstico no intuito de desmoralizar e so- lapar os fundamentos da sociedade burguesa; antitese, — a arte moderna é considerada por determinada cri- tica, de lastro popular, como arte reaciondria, patro- cinada pela plutocracia capitalista com propésitos di- ee versionistas a fim de afastar os intelectuais da causa do povo; sintese, — a arte moderna deve ser consi- derada como o complemento légico da industrializa- cdo contemporanea, pois resultou das mesmas causas, e tem por funcao, do ponto de vista restrito da apli- cacéo social, dar vasio natural aos anseios legitimos de livre escolha e fantasia individual ou coletiva da massa proletaria, oprimida pela rudeza e monotonia do trabalho mecanizado impésto pelas técnicas mo- dernas de producao. Conseqiientemente, no que respeita a atualidade politica, o estimulo as modernas concepcées de arte pode ser reputado diversionista ou construtivo confor- me a posicio do observador e 0 campo onde a experi- éneia seja preticada: sera diversionista, para determi- nado ponto de vista, quando aplicada no campo oposto, porquanto poderé concorrer para desviar a paixfo politica reivindicadora das massas, num ou noutro sentido; e construtiva quando posta em prdética no campo interessado, pois h4 de contribuir com a sua parcela para o equilibrio coletivo e o bem estar in- dividual. Constatado assim, de modo imprevisto, 0 verda- deiro sentido social da arte moderna, que, apesar dos seus antecedentes fundamentalmente desinteressados, passaria a atuar em térmos funcionais de estrita utili dade, e assentadas igualmente, désse modo, bases fecun- das para o seu ulterior desenvolvimento, — pois ja nao se trataria mais de atribuir a uma pseudo elite o papel intermedidrio de intérprete perante as massas, e sim de provocar a participacdo direta do prépsio povo 30°— aor no processo geral da formac&o de uma consciéncia ‘artistica contemporanea, capaz de produzir por si mesma portavézes mais credenciados —, ha que deixar 0s artistas seguirem cada qual o seu caminho, confiazido na genialidade dos eventuais precursores, no talento dos mestres e na acuidade compreensiva dos discipulos, porque, havendo tais qualidades, todos os rumos serio validos, tanto os que conduzem ao neo-ealisino, j4 agora enriquecido pelas aquisicdes definitivas da expe- riéncia moderna, como os que levam a pureza piéstica auto-suficiente do néo-formalismo; predomine a con- cepeaio lirica da forma ou o seu contetdo expressio- nista; trate-se da interpretacao renovada dos as consagrados ou da possivel glorificacéo épica dos fastos do porvir. & da multiplicidade de tais contribuicées, aparentemente contraditérias, que se haverao de cons- tituir do.modo mais natural, no momento oportuno, os varios estilos dignos de marcar, no tempo, as fases sucessivas do desenvolvimento cultural da era da industrializacio intensiva, naquilo que respeita aos meios plasticus de expresso. C omprovapa désse modo a utilidade social do moderno conceito de arte pela arte, retome-se agora fa questio formulada de inicio e j4 fundamentada em térmos precisos, ou seja, a do reconhecimento da legi- timidade da intencéo plastica no conceito funcional da arquitetura moderna, a fim de acentuar a necessi- dade da atuacdo simulténea dessa intengio com os de- : — 31 mais fatéres determinantes da elaboracéo arquiteté- nica, porquanto da perfeita e generalizada compreensao dessa premissa, bem como do alcance Social implicito naquela elaboracéo, dependera a feliz solugio do pro- blema da monumentalidade, impasse que se afigura critico a tantos espiritos esclarecidos, afligindo o arqui- teto contemporaneo, tantas vézes ainda mal ajustado culturalmente, devido aos vicios da formacao profissio- nal — “belas-artes-académica” ou “politécnico-funcio- nalista” —, ao espirito novo da Idade da Maquina, cujo segundo ciclo apenas comecou. Insista-se, portanto, pois é preciso nao confundir: se, por um lado, arquitetura nao é coisa suplementat que se use para “enriquecer” mais ou menos os edifi- cios, nio é tao pouco a simples satisfacio de imposi« ces de ordem técnica e funcional. Para que seja verdadeiramente arquifetura é preciso que, além de satisfazer rigorosamente — e sé assim — a tais impe- tativos, — uma intencfo de outra ordem e mais alta acompanhe pari-passu o trabalho de criagio em tédas fas suas fases. Nao se trata de sobrepor A precisdo de uma obra técnicamente perfeita a dose julgada conve- niente de “gésto artistico”, aquela intencao deve estar sempre presente desde 0 inicio, selecionando, nos me- nores detalhes, entre duas e trés solucdes possiveis e técnicamente exatas, aquela que nao desafine — antes, pelo contrario —- melhor contribua com a sua parcela minima para a intensidade expressiva da obra total. Enquanto satisfaz apenas as exigéncias técnicas e funcionais, — nao é ainda arquitetura; quando se per- 32 — de em intencdes meramente decorativas, — tudo nao passa de cenografia; mas quando — popular ou erudita — aquéle que a ideou, para e hesita ante a simples escolha de um espacamento de pilares, ou da relacdo entre a altura e largura de um vao, e se detem na pro- cura da justa medida entre “cheios” e “vazios”, na ae cao dos volumes e subordinacao déles a uma lei, e se demota atento ao jégo dos materiais e seu valor expres- sivo, — quando tudo’ isto se vai pouco a pouco soman- do, obedecendo aos mais severos preceitos técnicos € funcionais, mas, também, aquela intenc&o superior que seleciona, coordena e orientas em determinado sentido téda essa massa confusa e contraditéria de pormenores, transmitindo assim ao conjunto, ritmo, expressao, uni- dede e clareza — o que confere A obra o seu carAter de permanéncia : isto sim, é arquitefura. Uma vez que os arquitetos, a par do aprendizado técnico cada vez mais complexo e apurado, se dedi- quem igualmente ao estudo dos problemas da expres- sfo arquiteténica e participem dos debates artisticos contemporaneos, a fim de se capacitarem do funda- mento plastico comum a tédas as artes e de se dei- xarem possuir, tal como os pintores e escultores nos seus respectivos dominios, pela paixio de conceber, projetar e construir, entao, em virtude da intencdo su- perior que os anima e da consciéncia técnica adquiri- da, as suas obras, cem por cento funcionais, se expres: sario em térmos plésticos apropriados, adquirindo assim, sem esférco, gracas a propria comedulacko e modinatura, certa feicio nobre e digna, capaz de con- duzir ao desejavel sentido monumental. — 33 SP : z Monumentalidade que nao exclui a graca, e da qual participaréo as drvores, os arbustos e o préprio descampado como complementos naturais, porquanto © que caracteriza o conceito moderno do urbanismo, que se estende da cidade aos arredores e a propria zona rural, é, precisamente, a aboligao do “pitoresco”, gracas & incorporacdo efetiva do bucélico ao monumen- tal. Monumentalidade cuja presenca nao se limitard, portanto, Aqueles locais onde j se convencionou dever- se encontré-las, tais, por exemplo, os centros civicos e de administracao governamental, mas se estendera igual- mente aquelas estruturas onde a sua manifestagao de- corre do préprio tamanho e volume das massas cons- truidas e do sentido plastico peculiar as formas fun- cionais utilizadas: barragens, usinas, estabelecimentos industriais, estacdes, pontes, auto-estradas, etc; e, ainda, ali até onde no seria de the prever a ocorréncia: nos silos, galpdes e edificios de administracéo das fazendas industrializadas, conjuntos ésses acrescidos das edifi- cacdes dos centros sociais de recreio e cultura com que jA se visa dar combate ao éxodo das populacées rurais. Eis por que a tarefa urgente que se impde aos arquitetos nao se pode limitar aos apelos A autoridade no sentido de melhor adaptar o status social e os regula- mentos edilitarios vigentes As possibilidades atuais da tecnologia, a fim de tornar desde logo possivel dar solucio efetiva aos problemas sociais mais prementes; ela implica também o apélo as autoridades profissionais responsaveis — tanto nos setores da administragao como nos do ensino universitario — porquanto, chega- do o momento, o poder piblico, seja qual fér a sua iS +’ Pile yn ¥ my natureza politica, ha de thes recorrer ao parecer e de agir em conseqiiéncia; d’onde se conclui que se as refe- ridas autoridades ainda nao se acharem ent&o imbuidas da espontaneidade inventiva do espirito moderno, nem conscientes das possibilidades arquiteténicas postas ao seu dispor gracas aos recursos sempre renovados das técnicas contemporaneas, — correrao o risco de malba- tatar os planos estabelecidos por iniciativa do legisla- dor ou da administragao e de fazer assim fracassar ou, pelo menos, retardar lamentavelmente a livre expan- séo da arquitetura moderna, E para levar a bom térmo essa tarefa urgente, dever-se-A eleger — sem desmerecimento para a con- tribuigéo de cada um dos mestres aos quais se deve decisivamente (da pureza do Bauhaus e da elegincia de Tugendhat, aos caprichos de Taliesin) a conquiste do estilo da nossa época —, a obra genial de Le Cor- busier como o fundamento doutrinério definitivo para a formacao profissional do arquiteto contemporaneo, porquanto abarca, no seu conjunto, integrando-os indis- solivelmente, os trés problemas distintos que a inte- ressam e constituem, na verdade, um problema Unico: © problema técnico da construcao funcional e do seu equipamento; o problema socia! da organizacao urbana e rural na sua complexidade utilitaria e lirica; 0 pro- blema pléstico da expresséio arquiteténica na sua acep- cao mais ampla e nas suas relacdes com a pintura e a escultura. Integracéo doutrindria imbuida do novo espirito e vasada, de extremo a extremo, de um sdpro poderoso de paixdo e de fé nas virtudes libertadoras da producdo em massa — ésse dom magico atribuido — 35 pela méquina 20 homem — porquanto implica, come contra-partida, a distribuigao em massa, distribuicaéo em massa de equipamentos e utilidades, quer dizer, a pos- sibilidade material de curar, instruir e educar era massa, — 0 que significa a recuperagéo do corpo e do espirito das populacdes desprovidas e o estabelecimen- to, finalmente, para as massas de normas de vida indi- vidual dignas da condicao humana. © alcance do problema ultrapassa, portanto, o Ambito estritamente profissional, pois que sio os pré- prios gestos quotidianos e o bem-estar fisico e moral de populacées imensas — constituidas, no se esaueca, de “multiddes de individuos” — que esto na depen- déncia da sua solucdo. Cabe, por conseguinte, informé-las para que cada um saiba, no seu estrito interésse pessoal, que, do ponto de vista do desenvolvimento tecnologico-contempora- neo, é perfeitamente possivel Ihes dar a todos condi- cdes de habitacdo, de transporte, de trabalho e de lazer verdadeiramente ideais, — apenas, a complexidade dos direitos “adquiridos” e dos interésses em jégo, e a obstinaco implacavel da sua reacdo, apoiada nos dogmas sacrossantos de um status social obsoleto —- obsoleto porque baseado ainda no primitivo arcabouco social decorrente das possibilidades limitadas da produ- co artesanal, e nfo nos amplos quadros da produgao e distribuicéic em massa, — o impedem. Alias essa espécie de adverténcia nao se deveria dirigir apenas aos mais velhos, tantas vézes amorte- cidos de vontade pelas vicissitudes do dia a dia, e 36 — desencantados de esperanca, mas igualmente a mo- cidade e a propria infancia a fim de thes despertar a consciéncia obliterada e de lhes restituir a confianca e © otimismo capazes de predispor as tarefas, certamen- te penosas, que se antepdem no caminho da superacéo das contradigdes atuais e de uma ordenada, integral e generalizada industrializacao. Industrializagéo capaz de transferir o imemoria! anseio de justica social do plano utépico para o plano das realidades inelutaveis. Departamento de Imprensa Nacional Rio de vaneiro - Erasil = 1952
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