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8 de setembro de
2020
O eticista bíblico Jacob Shatzer publicou em 2019 o livro Transhumanism and the
Image of God (IVP Academic) alertando que estamos sendo preparados para viver em
um mundo transumanista. É um ótimo livro (deveria ser traduzido) e que populariza no
meio cristão um debate já bastante em andamento lá fora.
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O transumanismo moderno foi fundamentado
teoricamente ainda na primeira metade do
século XX, através de textos escritos por
autores ingleses tais como J. B. S. Haldane,
John Desmond Bernal e Julian Huxley. O
transumanismo é um movimento otimista
com relação à ciência e à tecnologia, que
pressupõe contornar e até abolir as limitações
humanas, tais como orgânicas (suplementos,
substituição por órgãos biônicos), extensão de
vida (busca por imortalidade) e ampliação de
cognição (upload de mentes para
computadores, por exemplo). Os
transumanistas acreditam que podem dar
uma ajuda na evolução ao aplicar os
conhecimentos tecnocientíficos para se criar
seres aperfeiçoados. Parece conversa de ficção
científica, mas é algo que já está entra nós. Só
para citar um exemplo recente, algumas
semanas atrás foi apresentado o chip da
Neuralink, empresa de Elon Musk, que pretende conectar cérebros à computadores.
Mas a cosmovisão transumanista tem sido destilada há anos. Mas por que isso seria um
problema?
Este breve texto está divido em três partes: 1) posições em relação ao transumanismo;
2) cultura pop; 3) por que isso é um problema?
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possa reverter isso e nos tornar deuses. Limitações físicas, orgânicas, de extensão de
vida e de comunicação, tudo pode ser resolvido com tecnologia, uma vez que ela sempre
foi considerada extensão do homem (McLuhan).
Os bioconservadores, por seu lado, clamam por prudência, apontando que devem-se
tomar medidas cautelosas na utilização de efeitos de longo prazo na biotecnologia.
Encarar a vida como dádiva (Michael J. Sandel) e prezar por uma ética da
responsabilidade, que postule a prestação de contas de seus atos em relação aos seres
humanos (Hans Jonas e C. S. Lewis) é a ênfase nessa linha de pensamento.
O tratamento acadêmico por cristãos acerca do tema já existe há algum tempo. Temos
excelentes obras como o de Ronald Cole-Turner Transhumanism and transcendence:
Christian hope in an age of technological enhancement de 2011, e diversas obras por
Calvin Mercer. Mas esta obra de Jacob Shatzer é pertinente ao trazer um debate
qualificado para dentro da comunidade cristã. Shatzer alerta que nossas tecnologias não
são neutras; então não é simplesmente ao fazer bom uso de um artefato que eu estou
livre de suas consequências. Os cristãos precisam reforçar sua cosmovisão para
repensar o uso de suas tecnologias. E não é um anúncio ludita, de que devemos nos
refugiar numa cabana no meio do mato sem gadjets (até porque a própria cabana e os
artefatos que por ventura usássemos seriam tecnologia). Não é possível viver sem
tecnologia e nem Deus queria que vivêssemos sem ela; Ele nos deu um mandamento
cultural e possibilitou que ciência e tecnologia fossem desenvolvidas (veja mais sobre
isso aqui).
O cuidado que devemos tomar, como nos avisa Shatzer, é que as tecnologias moldam
quem somos. Tecnologias de informação modificam a maneira como nos comunicamos
uns com os outros; tecnologias de transporte, a maneira como compreendemos o
espaço; tecnologias simples, como o relógio, nos fazem ver o tempo de forma diferente.
A lista é longa e cabe ao cristão refletir sobre os impactos em sua vida.
2. Cultura pop
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Há anos temos sido preparados para um futuro transumanista. Vejam a cultura pop
com mangás, animês e filmes como “Ghost in the Shell” (que prega que nossa mente é
somente um fantasma numa casca), filmes como “Transcendência” (a maneira de evitar
a finitude, transcender, é baixar a mente para um computador), até em desenhos
infantis como o aparentemente inofensivo “Operação Big Hero”. Quero me focar um
pouco nesse último desenho. Deve ficar claro que não acho que ele seja “perigoso” e
impróprio, mas sim que ele destila uma certa mentalidade que devemos nos atentar.
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Já na posição divergente face à tecnologia dos dois irmãos podemos perceber o algo
comum no nosso mundo: Hero é inconsequente e não pensa nas implicações éticas; por
outro lado, seu irmão Tadashi pensa em criar tecnologia para ajudar os outros. Tadashi
cria Baymax, um robô de cuidados de saúde. Hero, após uma visita ao laboratório do
Instituto de Tecnologia da cidade, onde seu irmão trabalhava, decide seguir a carreira
tecnológica na universidade. Mas para entrar ele precisa surpreender os juízes numa
feira de ciência e tecnologia. Lá, ele apresenta seus “microbots”, que são milhares de
pequenos robôs que podem se conectar em qualquer arranjo imaginável usando um
transmissor neural. Elon Musk e o brasileiro Miguel Nicolelis ficariam orgulhosos. Sem
estragar muito da história, algo sai errado e seu invento cai nas mãos erradas. Hero não
pensou como sua tecnologia poderia ser usada de maneira negativa.
Assim, tem início uma busca para neutralizar o vilão através da formação de um time de
seis nerds de laboratório e suas tecnologias aperfeiçoadas. É uma história empolgante
para meninos que estão crescendo nesse nosso mundo tecnológico e a Disney parece ter
se saído bem em alcançar um novo público. O filme em si não possui uma mensagem
descaradamente ruim. Até aconselho se assistir em família, pois o filme proporciona
muitas conversas e diálogo entre pais e filhos. Aqui em casa, logo após assistir e mesmo
dias depois, voltávamos para comentar algo que nos impressionou ou nos incomodou.
Essa é uma ótima atitude de pais cristãos. Mas vamos aos pontos questionáveis.
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Adriano Borges
O próprio filme nos dá pistas sobre o que os idealizadores pensam do assunto. Em uma
cena de passagem, a mãe dos meninos está assistindo ao antigo filme Frankenstein, e
ouvimos a famosa frase “It’s alive”.
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Cena de “Operação Big Hero”, Disney 2014.
Frankenstein é uma história publicada por Mary Shelley em 1818 e que serviu para
criticar os usos e abusos da biologia. Na história, um cientista procurar criar um novo
ser a partir de pedaços de corpos mortos. Logo que consegue trazer seu ser à vida, o
doutor percebe que sua criatura tem poder e vontade próprios e se questiona sobre seu
feito. É uma história que tem muitas implicações para o debate ético em filosofia da
ciência e da tecnologia e é sintomático que ele apareça no desenho, mesmo que
brevemente. Ele aponta para os perigos de se criar tecnologia à parte de valores éticos e
virtuosos.
O roubo da tecnologia dos “microbots” e utilização pelo vilão como arma aponta o
“paradigma Frankenstein”, quando as tecnologias são criadas com uma intenção, mas
acabam sendo usadas para outras finalidades. Os microbots serviriam para uma série
de objetivos bons, mas Hero não pensou nas consequências dessa ferramenta nas mãos
de pessoas mal-intencionadas. Uma das mensagens do filme é que tecnocratas
inescrupulosos podem se utilizar dos inventos de inocentes desenvolvedores para fins
de poder e controle. Entretanto, a solução heroica é desenvolver mais tecnologia para
vencer o vilão. Isso é tecnicismo, pois não se pensa na implicação de tecnologias antes
de produzi-las.
Em mais uma pista que estava na nossa cara o tempo todo, temos a música tema do
desenho que se chama “Immortals”. A busca por imortalidade é o sonho transumanista.
E com um robô de cuidados de saúde o primeiro passo está dado!
Na verdade, antes mesmo desse desenho da Disney, outro falava até mais claramente
sobre transumanismo: Max Steel – bastante conhecido pelas crianças. Esse desenho de
2013, baseado em brinquedos, traz o vilão como um líder de uma empresa
transumanista.
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Cena de “Max Steel”.
Mas o velho temor de robôs se levantando contra nós deve ser deixado de lado, ao
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menos por enquanto, porque o transumanismo está entre nós e é mais discreto. Quando
não conseguimos passar uma hora sem pegar o celular, quando nossos relógios
inteligentes estão gravando dados sobre nossa saúde, quando as redes sociais
acumulam informação sobre nossa vida cotidiana, quando ansiamos por um ambiente
tecnologicamente conectado, já estamos nos tornando transumanos.
Não imagino que tenha sido intencional, mas Callahan é também o sobrenome de um
estudioso da temática de cuidados da saúde. Daniel Callahan escreveu o livro “What
kind of life?” em que discute os objetivos e limites da medicina e quais seriam as
políticas públicas para o futuro. O que entendemos por progresso, saúde e natureza
humana é fundamental para definir que futuro queremos. Se não pensarmos sobre isso,
estamos fadados a receber o que tecnocratas têm a nos oferecer.
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