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de Caso
volume 68, (nº 5), 1997 Endocardite trombótica não-bacteriana

Endocardite Trombótica Não-Bacteriana


Geraldo Amaral, Edson H. Santos Jr, Luciano C. Pontes de Azevedo,
Luciana A. Pontes de Azevedo, João Pimenta
São Paulo, SP

Paciente de 38 anos, internada por acidente vas- Nonbacterial Thrombotic Endocarditis


cular cerebral isquêmico, com ecodopplercardiograma
transesofágico revelando prolapso valvar mitral associa- A case of a 38 year-old female patient admitted to the
do a uma vegetação em sua cúspide anterior, configuran- hospital with stroke is reported. Transesophageal echo-
do-se como fonte emboligênica. A investigação clínica dopplercardiogram showed mitral valve prolapse asso-
não evidenciou qualquer processo infeccioso. Após trata- ciated with a vegetation on its anterior leaflet, and this
mento com ácido acetil-salicílico e ticlopidina observou- vegetation was a possible embolic source. The follow-up
se involução da vegetação valvar mitral, sugerindo-se without signs of infectious disease, the good clinical
tratar de endocardite trombótica não bacteriana. Pela li- outcome and the regression of the valvar vegetation
teratura médica disponível, trata-se do primeiro caso de without use of antibiotics consolidated the diagnosis of
endocardite trombótica não bacteriana diagnosticado em nonbacterial thrombotic endocarditis. As far as it is
vida pelo ecodoplercardiograma transesofágico em por- known, this is the first reported case with antemortem
tadora de prolapso valvar mitral com degeneração mixo- diagnosis and good outcome with treatment with aspirin
matosa e com boa evolução com tratamento com aspirina and ticlopidine.
e tioclopidina.

Arq Bras Cardiol, volume 68 (nº 5), 373-375, 1997

A endocardite trombótica não-bacteriana (ETNB), Relato do caso


também conhecida como endocardite abacteriana, míni-
ma, verrucosa, degenerativa, terminal ou marântica 1 é Paciente de 38 anos, branca, casada, professora, foi
considerada uma doença cujo diagnóstico antemortem é admitida por perda súbita de força em dimídio direito e
difícil 2. Como o aparecimento de um novo sopro cardíaco disartria, sem outros sintomas. Não havia história de hiper-
é um achado incomum, sua presença habitualmente não é tensão, diabetes mellitus, cardiopatia, febre reumática, do-
suspeitada até a ocorrência de um fenômeno embólico 3. ença de Chagas, tabagismo, etilismo, uso de drogas ou ou-
Contudo, com o recente surgimento do ecodopplercardio- tras doenças. Havia relato de uso de anticoncepcional oral
grama transesofágico(ETE) com melhor visibilização das nos últimos dois anos. Ao exame físico encontrava-se
câmaras e aparelhos valvares, o diagnóstico desta condi- afebril, afásica, com hemiplegia completa proporcionada e
ção pode ser feito mais precocemente. sinal de Babinski à direita. A pressão arterial e freqüência
No presente relato é apresentado o caso de uma pa- cardíaca eram normais bem como o exame cardiológico. Não
ciente com acidente vascular cerebral (AVC) isquêmico, havia outras anormalidades ao exame físico. A tomografia
cuja investigação com ETE resultou na descoberta de um computadorizada de crânio revelou área hipodensa
prolapso valvar mitral (PVM) com sinais sugestivos de capsular com extensão para superfície cortical parietal à es-
degeneração mixomatosa associado a uma vegetação, querda. A angiografia cerebral identificou oclusão do ramo
sem nenhum sinal clínico ou laboratorial de processo in- pré-central da artéria cerebral média com conseqüente
feccioso. isquemia temporal. A radiografia de tórax e os eletrocar-
diogramas de repouso foram normais, assim como uma
ultra-sonografia abdominal. O ETE realizado neste mesmo
período identificou PVM com degeneração mixomatosa e
Hospital do Servidor Público Estadual - São Paulo massa de cerca de 8 x 4mm aderida à face atrial do folheto
Correspondência: João Pimenta - Rua das Camélias, 357 - 04048-050 - São Paulo, anterior, de textura heterogênea (fig. 1-A), sem outras altera-
SP ções. As diversas hemoculturas colhidas foram negativas.
Recebido para publicação em 28/11/96
Aceito em 12/3/97 Os exames laboratoriais que incluíram hemograma, coagu-

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Endocardite trombótica não-bacteriana volume 68, (nº 5), 1997

lograma e dosagens bioquímicas usuais foram normais, as-


sim como a pesquisa de células para lúpus eritematoso, rea-
ções sorológicas para lues, fatores reumatóide e antinúcleo,
proteína C-reativa, dosagem de complemento, proteína-S,
dosagem de anticoagulante lúpico, anticorpos anti-fosfo-
lípides e anti-HIV. Foi medicada com ácido acetil-salicílico e
ticlopidina, visto a ausência de qualquer processo infeccio-
so. Repetido o ETE, 10 dias após, observou-se redução do
tamanho da massa para 1,7mm (fig. 1-B).
Recebeu alta em uso de ácido acetil-salicílico e ticlo-
pidina. Após nove meses, encontra-se assintomática, com
melhora da afasia e da hemiplegia e o ETE (após três meses)
mostrou ausência de qualquer vegetação no aparelho
valvar mitral (fig. 1-C).

Discussão

A ETNB é uma condição em que “vegetações“ friáveis


e fibrinosas de plaquetas e hemácias afetam as valvas cardí-
acas, especialmente a mitral e a aórtica, diferenciando-se das
outras formas de endocardite por ser não-infecciosa em sua
origem e demonstrar pouca organização celular sem sinais
de processo inflamatório4. Sua incidência, segundo os estu-
dos de autópsia, tem variado de 0,3% a 9,3% 5. Descrita ini-
cialmente há mais de um século por Ziegler como “trombo-
endocardite” 5, tem como doenças associadas, as neopla-
sias malignas, principalmente adenocarcinomas e linfomas
e as colagenoses 6. Mais recentemente, a síndrome da imu-
nodeficiência adquirida vem se destacando como situação
predisponente 4. Outras alterações freqüentemente associ-
adas são os estados hipercoaguláveis, ocorrendo em 10-
15% dos pacientes com coagulação intravascular dissemi-
nada3 . A embolização sistêmica ocorre em até 42% dos paci-
entes, sendo o cérebro, o principal destino, razão pela qual
freqüentemente as primeiras manifestações clínicas são
AVC ou encefalopatia 4.
O diagnóstico antemortem da ETNB é difícil, já que
grande parte dos casos apresentam trombos pequenos, não
ocasionando sintomas até a ocorrência de embolização 3, o
que valoriza sobremaneira a detecção precoce desta condi-
ção. Neste sentido, a sensibilidade do ecocardiograma
transtorácico convencional é <45% 5 e falhas podem ocor-
rer, especialmente quando as vegetações são <3mm. Já, o
ETE tem se mostrado como um ótimo método para identificar
fontes cardíacas de êmbolos periféricos ou vegetações
bacterianas. Que seja do nosso conhecimento, apenas um
caso de ETNB diagnosticado por ecocardiograma transe-
sofágico antes do óbito foi comprovado 3, embora outros
tenham sido sugeridos por ecocardiograma convencional 6.
No presente caso, apesar da não comprovação histopa-
tológica, a ausência de febre durante todo o tempo de inter-
Fig 1. Ecodopplercardiograma transesofágico de endocardite trombótica nação, a negatividade persistente das hemoculturas e a re-
não bacteriana em prolapso valvar mitral. A) ETE inicial, demonstrando
vegetação na face atrial do folheto anterior da valva mitral (setas); B) após
cuperação da paciente sem o uso de antibióticos sugerem
10 dias, identificando importante redução no volume do trombo na valva evidências fortes, se não irrefutáveis, de ETNB. Por outro
mitral; C) três meses após, ausência de vegetação, identificando total reso- lado, parece ser o único caso descrito que sobrevive após
lução do trombo com o tratamento. AD- átrio direito; AE- átrio esquerdo;
VD- ventrículo direito; VE- ventrículo esquerdo; VM- valva mitral.
tratamento.
As valvas cardíacas anormais, como o PVM, têm sido

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responsabilizadas como predisponentes à ETNB, pois, a de- evolução ecocardiográfica mostrou regressão do processo
generação e edema do colágeno podem servir como trombótico, parece ser esta uma proposta terapêutica con-
substrato propício para a formação de um trombo asséptico4. vincente.
Associando-se com alterações do sistema de coagulação Na literatura não têm sido encontrados casos como o
sangüínea, como mulheres em uso de anticoncepcionais apresentado, muito provavelmente por sua raridade. Contu-
orais, pode aumentar o risco de AVC em até 13,3 vezes maior do, com o uso mais freqüente do ETE em pacientes jovens
que o da população de controle 7. com AVC de etiologia não evidente, mais casos poderão ser
Como não há casos com sobrevida, não há referências diagnosticados. Assim, em indivíduos com PVM, parece
sobre o melhor esquema terapêutico. Devido as evidências prudente evitar o uso concomitante de quaisquer outros
de hipercoagulabilidade, o emprego de antiagregantes fatores conhecidos como propiciadores de fenômenos
plaquetários foi a terapêutica inicialmente usada. Como a embólicos, tais como os anticoncepcionais orais.

Referências

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3. Blanchard DG, Ross RS, Dittrich HC - Nonbacterial thrombotic endocarditis - presentation and echocardiographic features of surgically proven nonbacterial
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