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90 minutos de silêncio

Miguel Enrique Stédile, doutorando em História pela UFRGS, pesquisador de futebol e ditadura
militar, co-editor da newsletter Ponto do Brasil de Fato.

No Estádio Nacional do Chile, em Santiago, uma parte das arquibancadas permanece


sempre vazia. Batizada como “tribuna viva”, homenageia os mortos, desaparecidos e torturados
naquele estádio durante a ditadura comandada por Augusto Pinochet. A arquibancada vazia está ali
para que os chilenos não se esqueçam e para que não se repita. Aqui, os jogos de futebol também
tem tido o testemunho de arquibancadas vazias mas, neste caso, para que esqueçamos os mais de
126 mil brasileiros e brasileiras mortos e para que esta tragédia se repita a a cada dia.
Neste final de semana, o Campeonato brasileiro completou sua oitava rodada. Antes dele, os
principais campeonatos estaduais do país concluíram suas disputas, interrompidas em março pela
emergência da pandemia. Apenas Roraima, Piauí, Tocantins, Mato grosso do Sul e Goiás ainda não
concluíram seus campeonatos. A Copa do Nordeste também foi retomada e concluída. Os times
brasileiros ainda devem retornar em breve para a disputa da Copa Libertadores da América nos
próximos dias.
Os resultados são óbvios. Após a retomada do campeonato alagoano, 18 atletas e um árbitro
da final testaram positivo. Na retomada das quatro séries do campeonato brasileiro, 116 atletas já
testaram positivo. A CBF tem testado os atletas a cada rodada, porém quanto menos lucrativa a
divisão, maiores os problemas. Somente na série D, são 68 times de todos os estados, do norte ao
sul do país, envolvidos em translados, hospedagem e partidas. Além disso, os protocolos e a
estrutura da CBF falharam imediatamente na primeira rodada, quando a partida entre São Paulo e
Goiás precisou ser cancelada quando nove atletas do time goiano testaram positivo. E como ficam
os demais trabalhadores que não são atletas ou da comissão técnica? Aqueles que trabalham na
limpeza, na estrutura, na comunicação, os gandulas, etc., em todo funcionamento do estádio mesmo
sem torcidas?
O calendário de futebol exerce uma perigosa função de desdobrar esta falsa normalidade
para todas as dimensões da vida. Afinal, se acabaram as reprises dos jogos antigos na tv, se os
cavalinhos do “Fantástico” voltaram a fazer piadas no fim da noite de domingo e os problemas dos
nossos técnicos e jogadores estão exatamente como deixamos há meses atrás, podemos voltar para
as segundas-feiras comuns. Neste caso, mais do que o calendário do futebol internacional,
impulsionado por uma Europa mais bem sucedida em executar o isolamento, ou pelo pagamento da
cota de televisão, o retorno do futebol foi pressionado justamente pela necessidade do governo
federal em derrubar isolamento social e forçar um retorno às atividades econômicas.
Neste caso, o Flamengo teve papel determinante. Maior torcida do país, atual campeão
brasileiro e da Libertadores, o Flamengo pressionou para o retorno do campeonato carioca em julho.
Na ocasião, Fluminense e Botafogo tentaram impedir o retorno e forma ameaçados pela própria
Federação carioca com um processo de R$ 100 mil de danos morais, indenização por danos
materiais em valores a serem levantados e exigindo retratação pública, passível de multa de R$ 1
milhão. Não a toa, o presidente do Flamengo Rodolfo Landim celebrou a volta do futebol como
“um exemplo para outras atividades”.
Curiosamente, dias antes do retorno do campeonato, o governo assinou a Medida Provisória
984, apelidada de “MP do Flamengo”, que altera a regra dos direitos de transmissão no futebol
brasileiro. A MP beneficia as negociações do Flamengo com operadoras de streaming para as
transmissões de suas partidas, atingindo principalmente a TV Globo, crítica de Bolsonaro. O
presidente flamenguista esteve com Bolsonaro no dia da assinatura da Medida e a equipe
presidencial cogitou a possibilidade de que Landim participasse das nefastas lives de quinta-feira do
ex-capitão.
Entretanto, a ganância dos dirigentes pode ter também prejuízos econômicos a curto prazo.
As cotas de televisão são parte essencial do caixa dos clubes, mas não são as únicas fontes de
receitas. Em especial, o desastre da inserção brasileira nos mega-eventos internacionais estabeleceu
a lógica da arenização dos estádios, impondo estruturas que necessitam de outras atividades para
viabilizar seu funcionamento. Sem torcedores não há movimentação comercial nas lojas que fazem
partes destes complexos, nem arrecadação que viabilize economicamente estas estruturas. O Allianz
Arena, por exemplo, preteriu uma partida do Palmeiras para realizar um evento no formato drive-in,
além de ter demitido inúmeros funcionários durante o período de isolamento.
Em todo o mundo, as relações entre o esporte e a políticas fazem parte do cotidiano desde
que as massas passaram a participar de ambos. No caso brasileiro, de Getúlio Vargas em diante, não
há presidente que não tenha interagido de alguma maneira com o futebol e procurado legitimar seu
governo através do esporte ou associá-lo às conquistas esportivas. O problema está em utilizar o
esporte, comumente associado a saúde e ao corpo, com um projeto de estímulo ao adoecimento e a
morte. Se municípios em Santa Catarina e em Minas Gerais, se sentem a vontade para liberar a
realização as partidas entre amigos, as “peladas”, é porque de fato o futebol se tornou exemplo para
as demais atividades. Porém, além das arquibancadas, milhares de famílias terão de conviver com
outros espaços vazios em suas vidas.

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