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ISBN-13:978-1506072302
ISBN-10:1506072305
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Este capítulo discute conceitos fundamentais para o desenvolvimento curricular de
escolas comunitárias e demais iniciativas1 que trabalham com línguas de herança. Primei-
ramente, delimita alguns conceitos como língua de herança (LH), aprendiz de LH e currícu-
lo e, em seguida, aborda princípios que podem fundamentar a discussão sobre um currículo
dedicado a esse contexto específico de ensino. Também propõe uma sequência de etapas a
serem discutidas pelos envolvidos nessas iniciativas para que elaborem um currículo pró-
prio.
1 Além das escolas comunitárias de LH, há outras iniciativas comunitárias (ver a introdução desta obra) que se
preocupam em ajudar famílias com a manutenção de LH organizando eventos esporádicos, por exemplo, para a leitura de
histórias.
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Escolas comunitárias de LH são iniciativas organizadas por familiares, professores
ou líderes comunitários que promovem, com alguma constância, aulas para a manutenção
e desenvolvimento da LH para filhos de imigrantes, de refugiados e de comunidades indí-
genas (Fishman, 2001). Essas escolas comunitárias geralmente oferecem aulas em horários
variados, depois do ensino regular ou aos fins de semana. Nos EUA, pesquisas sobre escolas
comunitárias de LH de chineses, coreanos e japoneses mostram que participar das ativida-
des dessas escolas é importante para a manutenção das habilidades linguísticas de crianças,
porque evita que elas iniciem um processo de perda linguística (Li, 2005; Liu, 2010; You &
Liu, 2011). Também observa-se que quando crianças frequentam essas iniciativas, elas têm
maior orgulho de falar uma LH (Wong & Lopez, 2000).
O Centro de Linguística Aplicada Americano mantinha em seu cadastro em 2013
mais de dez mil iniciativas que ensinavam duzentas línguas diferentes nos Estados Unidos
(McInerny, 2013). Apesar do grande número, pesquisadores concordam que há uma dis-
paridade muito grande em relação ao nível de discussão pedagógica e de desenvolvimento
curricular desses projetos.
Pensar o currículo é refletir sobre o que ensinar, que práticas educativas priorizar e
sobre como interpretar tudo isso (Oliva, 2009). Um currículo expressa o que os envolvidos
na escola acreditam ser professor, ser aluno, aprender, como se dá a relação entre esses ele-
mentos e a escolha do que se considera relevante no universo da língua-cultura.
Entendo currículo como um composto complexo de valores e de proposições, explíci-
tos ou não, que determina a interação entre professor e aluno mediada pela língua-cultura e
pelas representações que ela suscita. Dessa forma, um currículo norteia-se a partir de como
professor, escola e alunos entendem e dialogam com as dinâmicas sociais, políticas, cultu-
rais e pedagógicas a que estão sujeitos (Posner, 2004). Concretiza-se na aula a ser prepara-
da, nos textos a serem selecionados, no modo como estes são apresentados e discutidos, na
interação que os sujeitos constroem durante a aula, nos materiais que produzem e no modo
como tudo isso está aberto a dinâmicas e a adaptações.
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Princípios norteadores para a elaboração de um currículo em língua de
herança
Antes de iniciar ou dar continuidade ao desenvolvimento de uma estrutu-
ra curricular, convido professores e todas as pessoas envolvidas no projeto a discuti-
rem alguns princípios norteadores. A seguir, proponho que um currículo de LH vise a:
Cada um desses aspectos subjaz à elaboração do currículo de LH, razão pela qual
serão pormenorizados nas seções subsequentes.
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atividades devem caminhar por uma abordagem intercultural (Mendes, 2008), que busque
pontos de encontros e de diferenças para afirmar, valorizar e desenvolver a ideia de um
múltiplo pertencimento. Dessa forma, a elaboração de um discurso de pertencimento na LH
não exclui a participação e a construção de identidades em outras culturas e, para essa tare-
fa, é preciso preparar professores culturalmente sensíveis que compreendam e valorizem a
diversidade cultural de seus alunos.
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c. Trabalhar língua e cultura como conceitos indissociáveis
Muitas vezes a organização do currículo trabalha língua e cultura como aspectos dis-
sociados. Consequentemente, o ensino de línguas acaba restrito à exposição de estruturas
linguísticas desvinculadas da cultura (Dourado & Poshar, 2010). Essa prática está ligada ao
entendimento do termo ‘cultura’ em seu sentido mais comum, derivado de ideias do final
do século XVIII e início do século XIX, quando se entendia esse conceito como a soma dos
saberes acumulados e transmitidos pela humanidade. No entanto, no século XX esse termo
ganhou novos sentidos e passou a envolver, além da produção intelectual da humanidade,
os comportamentos, os valores, os aspectos simbólicos e intangíveis que grupos comparti-
lham (Banks & Banks, 2001).
Considerando que o termo ‘cultura’ atualmente está relacionado não só a saberes e
à produção material de um grupo, mas também a algo que os sujeitos adquirem por meio
do convívio social e da linguagem (seus comportamentos e práticas discursivas), podemos
afirmar que língua e cultura são indissociáveis (Sullivant, 1985). Não é possível comunicar
algo em uma língua sem que essa expressão esteja constituída e impregnada por um modo
de ser, dizer e agir na cultura.
É importante que na elaboração de um currículo de LH os envolvidos na iniciativa
não tratem a cultura de forma periférica, como uma curiosidade. No entanto, há de se en-
fatizar que as aulas têm o objetivo de desenvolver as capacidades comunicativas dos apren-
dizes. Nesta perspectiva, uma aula de língua deve ter como objetivo criar condições para
que os alunos se tornem sujeitos que produzam textos orais e escritos e que saibam ler e
compreender esses textos com vistas à comunicação efetiva. Na mesma direção, uma aula
de cultura deve tornar os alunos capazes de se apropriarem não só dos saberes acumulados,
mas também dos modos de ser, dizer e agir dessa cultura.
A partir da proposição desses princípios norteadores aqui discutidos para a elabora-
ção de um currículo em LH, parte-se para a discussão das etapas do desenvolvimento de um
currículo.
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Estrutura básica para o desenvolvimento curricular das escolas comunitárias
de LH
O currículo é um composto complexo de valores e de proposições, explícitos ou im-
plícitos, que determinam a interação entre professor, aluno e conhecimento. Interação esta
que é mediada não só pela língua-cultura, como também pelas representações culturais que
esses participantes trazem consigo e que estão em contato. Portanto, as mesmas modifi-
cam-se e reconstroem-se durante a aula quando professor e aluno leem e produzem textos
(Ruddel & Unrau, 1994).
Nesse sentido, a elaboração do currículo depende de discussões e de acordos que os
envolvidos na escola ou iniciativa (famílias, diretores, coordenadores, professores e alunos)
estabelecem entre si para que haja diretrizes gerais. Após a fase de estabelecimento dos
estágios propostos a seguir, os envolvidos devem planejar momentos de discussão para ava-
liar posteriormente o que precisa ser reformulado.
O desenvolvimento de um currículo é constituído de várias etapas. Proponho e dis-
cuto algumas etapas fundamentais para escolas comunitárias de LH e demais iniciativas:
a. Identificar as necessidades sociais e as expectativas gerais de aprendizagem que a
comunidade mantém para os aprendizes de LH;
b. Determinar os valores e as concepções que irão fundamentar as relações entre
professores e alunos;
c. Delimitar as expectativas de aprendizagem para cada grupo no projeto;
d. Selecionar os domínios de conhecimentos e os conteúdos a serem abordados;
e. Discutir as estratégias pedagógicas a serem utilizadas para a preparação das au-
las;
f. Elaborar aulas e materiais;
g. Avaliar os objetivos atingidos e reorganizar o currículo.
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a. Identificar as necessidades sociais e as expectativas gerais de
aprendizagem que a comunidade mantém para os aprendizes de LH
Nesse estágio é preciso identificar as expectativas de aprendizagem quanto às ha-
bilidades de fala, compreensão oral, leitura e escrita associadas a seus contextos de usos
sociais. Por exemplo, se a escola delineou que as aulas visem unicamente a manter e de-
senvolver habilidades linguísticas para que os aprendizes fortaleçam os laços familiares, as
atividades para o desenvolvimento da escrita podem ser direcionadas a contextos informais
como bilhetes, cartas e e-mails. Isto é, situações escritas que utilizem um registro mais pró-
ximo da oralidade. No entanto, se há o objetivo de preparar os aprendizes para tornarem-se
bilíngues balanceados, haverá a necessidade de explorar atividades em diferentes situações
sociais que exijam falar e escrever em registros linguísticos formais. Ao definir os contextos
sociais esperados para o desenvolvimento da língua, consegue-se estabelecer os objetivos
gerais desse currículo de acordo com as expectativas da comunidade escolar.
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• O trabalho com a família dedicado à discussão sobre as vantagens de uma educa-
ção bilíngue, resgatando ou aprofundando os laços de seu enraizamento cultural;
• O rompimento de estereótipos e a apresentação da língua-cultura em uma pers-
pectiva complexa;
• O respeito diante das colocações de outras pessoas, tanto no que se refere às ideias
quanto ao modo de falar;
• A apreciação das manifestações artísticas;
• O desenvolvimento do apreço pela leitura, pela criatividade e pelos talentos indi-
viduais.
Esses são apenas alguns exemplos de valores que, depois de discutidos e estabele-
cidos, deverão ser cultivados pelos envolvidos no projeto. A partir disso, é imprescindível
discutir as concepções filosóficas e pedagógicas que professores, coordenadores e diretores
irão cultivar em suas práticas de ensino. Como exemplo, professores, coordenadores e di-
retores devem se perguntar: o que se entende por aprender e ensinar? O que se entende
por língua e cultura? O que se entende por alfabetização e letramento? Essa discussão deve
tratar de conceitos ligados à educação e deve relacioná-los ao contexto do ensino de LH.
Nesse caminho, proponho que a discussão sobre o que é ensinar e aprender valori-
ze as concepções que colocam a criança como sujeito que produz e organiza seu conheci-
mento. O ensino de LH pode ser pensado como um momento que cria situações para dar
ao conhecimento e à apropriação objetos culturais a serem lidos, discutidos e construídos
pelos aprendizes. É por meio da manipulação de textos, orais e escritos, e do diálogo entre
professor e aluno que os aprendizes de PLH desenvolvem e sistematizam seu aprendizado,
que será compartilhado, discutido e organizado em um produto final. Nessa perspectiva, o
professor assume um papel de mediador e de sistematizador da construção de conhecimen-
tos dos aprendizes.
A importância de discutir esses princípios está em criar diretrizes para os professo-
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res prepararem as aulas, como também tomarem um posicionamento sobre como interagir
com o conhecimento e com os aprendizes, o que determinará a dinâmica das aulas e que
produtos esperar delas.
É comum que professores relacionem o conceito de língua ao ensino da gramáti-
ca normativa, por isso é preciso discutir e trabalhar com e entre os professores de PLH a
ampliação do entendimento desse conceito (Boruchowski, 2014). Proponho que a ideia de
língua parta da concepção de que uma língua é um sistema simbólico-cultural que tem cer-
tos padrões de expressão que possibilitam a seus falantes estabelecerem comunicação, de-
senvolverem relações e atuarem na sociedade (Hyland, 2002). No entanto, no contexto das
LH, esse conceito deve ser expandido, pois uma língua não só possibilita participar e atuar
na sociedade, como também construir relações de pertencimento cultural e social. Para os
aprendizes de herança, aprender essa língua pode ampliar a relação de pertencimento a
uma família e a uma cultura.
2 Por exemplo, para um grupo de quatro a cinco anos, o trabalho pode visar ao desenvolvimento de habilidades
linguísticas orais em situação informal de comunicação, buscando a expansão do vocabulário por meio da construção de
narrativas.
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d. Selecionar os domínios de conhecimentos e os conteúdos a serem
abordados
Depois de discutir sobre as expectativas de aprendizagem que a iniciativa mantém
para cada um de seus grupos de alunos, os envolvidos determinarão os conhecimentos e
seus conteúdos a serem privilegiados pelos professores na preparação das aulas. É preciso
atentar para os conteúdos linguísticos e culturais que a iniciativa deseja privilegiar e quais
serão abordados de forma mais profunda e quando.
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quisa e adaptação do modelo Understanding by Design (O entendimento pelo projeto, tra-
dução minha), criado por Grant Wiggins e Jay McTighe (2005) para a organização das au-
las. O modelo tem uma abordagem complexa sobre a preparação das aulas baseada em duas
ideias centrais: primeiramente, o ensino e a avaliação focam prioritariamente no entendi-
mento e no aprendizado; em segundo, a estruturação do currículo se dá de forma invertida,
porque baseada nas expectativas de aprendizagem. Resumidamente, antes de prepararem
suas atividades, os professores devem perguntar a si mesmos três séries de questões:
• O que os aprendizes deveriam saber, compreender e serem capazes de fazer após
as aulas? Quais as questões essenciais que farão os alunos explorarem de forma
profunda o que estão aprendendo?
• Como saber se os alunos atingiram os conhecimentos e desenvolveram as habi-
lidades desejadas? O que será aceito como prova disso? O que será aceito como
evidência de que essas habilidades e conhecimentos serão utilizados em situações
reais?
• Como auxiliar o aluno para que ele alcance um real entendimento do que foi es-
tabelecido e tenha conhecimento sobre o processo para atingi-lo? Como fazer que
os aprendizes se tornem autônomos para transferirem o que aprenderam para
situações reais? Que atividades, projetos, sequência de exercícios e recursos são
necessários para que os alunos tenham o desenvolvimento desejado do conheci-
mento e das habilidades selecionadas?
Segundo o modelo, o professor planejará as experiências de aprendizagem a que os
alunos serão submetidos respondendo a essa série de questões. Lembremos que é preciso
que os professores encontrem um equilíbrio para que a aula desenvolva simultaneamente
a língua-cultura e não isole um aspecto do outro. As aulas de LH têm o objetivo de desen-
volver as capacidades comunicativas dos aprendizes, consequentemente, uma aula de apre-
sentação de temas e dados da cultura que não enfoque o desenvolvimento de habilidades
linguísticas não parece ser coerente com as expectativas de manutenção e de desenvolvi-
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mento da LH.
Considerações finais
A construção de um currículo que contemple as especificidades do aprendiz de LH
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compõe-se a partir de como escolas comunitárias, responsáveis, professores e aprendizes
entendem o que é língua, cultura e educação. Na primeira parte deste capítulo, algumas
noções e diretrizes foram propostas para dar início a essa discussão, na segunda parte, foi
apresentada uma estrutura curricular dividida em etapas que podem ser utilizadas para
desenvolver um currículo.
Desenvolver um projeto curricular é organizar o caminho para que as concepções fi-
losóficas e as expectativas de aprendizagem que os envolvidos no projeto sustentam concre-
tizem-se na seleção de conteúdos, materiais e atividades planejadas. Um currículo orienta
como o conhecimento, a cultura e a língua serão trabalhados na interação entre professor e
aluno, que produtos esperar dessa interação e se esses produtos estarão abertos a dinâmi-
cas e a adaptações por meio do compartilhamento de ideias. Nesse contexto, este capítulo
introduziu diretrizes e reflexões que buscam dialogar com outras experiências para que o
campo da educação em línguas de herança torne-se mais eficiente e significativo para seus
aprendizes.
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