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Glossário

Esclarecimento de termos, categorias e conceitos


centrais na obra
Destacamos conceitos centrais que ocupam a fortuna crítica de
Harriet Ann Jacobs, desde o redescobrimento de sua narrativa
em meados de 1970. Todas citações em língua estrangeira foram
devidamente traduzidas e dispostas em notas de rodapé de forma
a facilitar a fluidez do texto; as referências bibliográficas comple-
tas se encontram ao final desta seção, da página 289 em diante.

Abolicionistas

I ncidentes na Vida... começa com a recomendação de uma


abolicionista branca, Lydia Maria Child, e termina com o
elogio de outra, Amy Post. O apadrinhamento de ex-escravos
dispostos a relatar suas experiências por líderes famosos do movi-
mento era comum na época, e supostamente visava aumentar
as vendas dos relatos, permitindo sua melhor divulgação. Esse
foi o caso, por exemplo, de Frederick Douglass e o William
Lloyd Garrison. Apesar de ter aceitado o apoio das duas mulhe-
res do Norte, Jacobs é vista por sua fortuna crítica como um
corpo estranho ao movimento, ou ao menos como alguém que
se expressou às margens do discurso abolicionista tradicional.1

O artigo de Nudelman, Harriet Jacobs and the Sentimental


Politics of Female Suffering, publicado em 1992, aborda detidamente
a relação entre a ex-escrava e os abolicionistas a partir de certos
dados biográficos. Inicialmente, assim que se instalou no estado
de Nova Iorque, Harriet e seu irmão foram membros ativos do
movimento. Sobretudo durante os dezoito meses em que passou
em Rochester/NY, a autora parece ter mantido contato com as
novidades em livros e panfletos antiescravidão, tendo em vista
1 Essa é a opinião de Jean Fagan Yellin, 1981 e Hazel V. Carby, 1987.

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Harriet Jacobs

“as referências a literatura e eventos contemporâneo presentes em


Incidentes na Vida...”.2 Mais tarde, envolveu-se em atividades de
grupos maiores, com sede na capital do estado, onde conheceu
Amy Post, em quem encontrou uma amiga para toda a vida.
Post foi uma das pessoas que a convenceram a publicar seu livro.

Em contrapartida, Jacobs nutriu certa animosidade em relação


a grandes nomes do abolicionismo, por diferenças de temperamen-
to ou por discordar de suas ideias. Há, por exemplo, diferenças
importantes entre a forma como Incidentes na Vida... articula a
crítica da escravatura e a forma utilizada por abolicionistas brancas
como Harriet Beecher Stowe, Angelina Grimké e a própria Lydia
Maria Child. “Harriet Jacobs pode ter procurado e recebido com
prazer a ajuda editorial de Lydia Maria Child, mas ela também
lutou para assegurar que contaria sua própria história”.3 Marcas
dessa luta são encontradas em diversos aspectos de sua obra. Para
citar um exemplo, a narrativa de Jacobs é única por não recair em
moralismo ou na afirmação de purismo sexual em que o discurso
das três abolicionistas em questão se pauta. Incidentes na Vida...
é categórico em sua afirmação de que o estupro, sob o regime de
escravidão, é uma prática institucionalizada e corriqueira, jamais
um acidente. Da mesma forma que um dono de escravos podia,
por força de lei, açoitar seus escravos quando achasse devido, podia
se servir sexualmente de suas servas, por mais jovens que fossem.

Jacobs é sutil ao tratar do assunto. Em duas ocasiões ela


descreve homens brancos “derramando palavras vis nos ouvidos
das meninas”, o que constitui um eufemismo bastante evidente.
Outras inferências são codificadas: quando discorre sobre escravas
vendidas por um bom preço ou “bem vendidas”, isso invariavel-
mente significa que estavam sendo comercializadas para fins de
concubinagem. A hipocrisia daquele mundo em que garotas a
partir de doze anos eram vendidas como escravas sexuais, ainda
2 Ver introdução de Yellin, 1987.
3 Zafar, 1996, p. 8.

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que negociadas por meio de um linguajar velado, é sintoma da


degradação social a qual Jacobs está interessada em expor. O
silêncio de abolicionistas perante questões sexuais, por extensão,
acaba sendo um sintoma da mesma hipocrisia, em prol de um
culto (bastante vitoriano) da domesticidade e virtude feminina.

Um segundo artigo, Earwitness de Deborah Garfield (1996),


é um documento importante para entendermos as provocações de
Harriet Jacobs a Lydia Maria Child. A prefaciadora de Incidentes
na Vida... age quase como uma “empresária envergonhada com a
performance textual de Jacobs, e por fim permanece em silêncio
ao invés de elaborar seu tema, mesmo em detalhes mais ínfimos”.4
De fato, as formulações de Child no prefácio criam um dualismo
entre o público de leitoras recatadas, cujos “ouvidos delicados”
estão despreparados para a vulgaridade das injustiças relatadas.
“Tenho plena consciência de que muitos me acusarão de falta de
decoro por expor ao público estas páginas, já que as experiências
dessa mulher inteligente e tão ofendida pertencem à classe dos
assuntos a que chamam de ‘delicados’, e outros ainda de ‘indeli-
cados’” (p. 5). A partir dessa insistência quanto a sensibilidade de
seu público, Garfield encontra o gérmen da discordância entre
autora e editora. O desejo declarado de lançar o livro com o
fim de remover o véu que acoberta as atrocidades da escravidão
“se converte em uma preocupação de não perturbar os ouvidos
delicados da panelinha de Child”.5 Seja por pudor excessivo ou
em função de sua orientação religiosa, Child concordava com
diversos abolicionistas ao criticar a imoralidade como um dos
piores males da escravidão, mas de forma a implicar juízos
negativos sobre a mulher negra: ela saía do processo histórico
como uma mulher impura, degradada, a ser reeducada pela aboli-
cionista branca benevolente e pela igreja. Mesmo seu linguajar
deveria ser domado, mas por força de urgência, Child deixou
aquelas baixarias passarem; havia um mal pior a ser combatido.
4 Op. cit., p. 108.
5 Garfield, 1996, p. 108.

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Harriet Jacobs

Assim, Jacobs se mostra consciente de que, no formato


tradicional de romances antiescravidão, havia certas limitações
que atrapalhavam a articulação da experiência própria de uma
mulher negra.6 Até então, textos na esteira de Uncle Tom’s Cabin
foram escritos por e para abolicionistas brancas; estruturalmente,
eles funcionavam como mediadores da experiência de cativas por
outra mulher, em situação de privilégio, munida de compaixão
suficiente para olhar para as degradadas e doar voz às suas quei-
xas. Jacobs, por sua vez, escreve para mães e filhas do Norte já
convencidas dos males da escravidão, à véspera da Guerra Civil,
sugerindo que existem implicações desse sistema ainda oclusas
para tal público esclarecido. Como mulher alforriada, ela entende
que a integração dos negros na sociedade e vida cultural deve ser
repensada. A posição de superioridade da qual as ex-cativas são
julgadas (como vemos no curioso paternalismo de Lydia Maria
Child) era problemática para Jacobs, uma mãe solteira vivendo do
próprio trabalho em plenos anos 1850, sobretudo por que dividia
a sororidade recém-formada entre irmãs do Norte e cativas do Sul.

Nesse sentido, Jacobs reinventa a noção de heroísmo femi-


nino manipulando habilmente o sistema de signos presente no
discurso de Child: sugestivamente, o trecho de Isaías escolhido
para iniciar sua narrativa é “Ouvi a minha voz; e vós, filhas, tão
descuidadas! Inclinai os ouvidos às minhas palavras”. O aban-
dono do pudor puritano é crucial para que a instituição seja
revelada em toda a sua perversidade; não o fazer seria “descui-
do”. A continuação do trecho bíblico é: “Porque num ano e dias
vireis a ser turbadas, ó mulheres que estais tão seguras; porque
a vindima se acabará, e a colheita não virá” (Isaías 32:10). O
capítulo 32 de Isaías é uma exortação a mulheres livres para que
se mobilizem e não sejam, elas mesmas, privadas de sua condição
favorável. No mesmo ano do início da guerra civil que dividiu
o país, Jacobs está alertando para a iminência do colapso social.

6 Nudelman, 1992, p. 942.

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O tema do relatar/escutar segue como constante por toda a


narrativa. Nela nos deparamos com a imagem do dr. Flint; mani-
pulador e constrangedor metido a sedutor, que despeja palavras
“venenosas”, “imundas”, “que ferem ouvido e cérebro” da jovem
Linda Brent. Os adjetivos dos quais a autora se vale são reveladores.
Aqui, palavras ganham propriedades físicas, além de poderes que
não lhes pertencem — se inicialmente elas envenenam a alma,
sujam e penetram a carne, mais tarde, por meio de um duro
aprendizado, a protagonista aprenderá a lição: elas não passam
de palavras. Quando, anos depois, o mesmo despejo de termos
vulgares são investidos contra sua filha Ellen, esta supera a relutân-
cia de contar aquelas coisas proibidas para a mãe. Por fim, Ellen
toma coragem e se livra de se tornar objeto sexual do usurpador
mais velho devido a capacidade adquirida de denunciar, de tornar
pública a vergonha que devia ser do agressor, não da vítima.

O código de silêncio, em partes, impede a mobilização dos


cativos. Ele é uma arma poderosa à luz da situação descrita no
capítulo II, onde a narradora relata o caso de uma escrava casada
que carrega o filho de seu mestre. Uma vez que a criança mesti-
ça nasce, o marido da mulher, acometido por ciúmes, passa a
confrontá-la. As brigas do casal se tornam constantes, e o mestre
resolve vendê-los, livrando-se do inconveniente. E eis que a mulher
comete o ‘erro’ de falar, já na mão do mercador de escravos: “você
[o mestre, dr. Flint] prometeu que me trataria bem” (p. 16). A
resposta deste é sugestiva: “você abriu sua boca demais; maldita
seja!”, e a pune vendendo toda a família, inclusive o recém-nascido.
Mais tarde, a própria Linda sofre uma ameaça semelhante: “o
doutor Flint jurou que me mataria se eu não fosse quieta como
um túmulo” (capítulo v, p. 35). O comentário da narradora é
lacônico: “Ela havia esquecido que era crime para uma escrava
dizer quem era o pai de seu filho” (capítulo ii, p. 16). O romper
do silêncio é o pecado absoluto naquele contexto, uma vez que
ameaça a manutenção da hipocrisia que sustenta duas instituições
fundamentais da sociedade agrária do Sul: o casamento e a família.

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Harriet Jacobs

Curiosamente, a abolicionista do Norte, em seu interesse de


que Jacobs contenha sua língua, encontra no patriarcado silenciador
um alter ego sinistro.7 Nesse aspecto reside a crítica interna de
Jacobs ao movimento.

Ver também vocábulos Feminilidade, Culto da Domesticidade,


Maternidade, Família.

Cristianismo, igreja

“ A lembrança do passado, do início de minha vida, as cruéis injus-


tiças que um escravo tem de sofrer, serviram para me aproximar
mais daqueles ao meu redor; seja lá o que fiz ou possa fazer é uma
obrigação cristã que devo à minha raça”8, escreveu J. Sella Martin,
pastor de Boston e amigo pessoal de Harriet Jacobs. A ligação entre
o exemplo de Cristo na bíblia com a causa abolicionista foi, histo-
ricamente, responsável pelo crescimento substancial do movimento
no Norte dos Estados Unidos. Paradoxalmente, o mesmo livro,
considerado sagrado, consultado para argumentar a favor da igual-
dade entre todos, foi também utilizado a favor do sistema escravista.

Relatos do uso dúbio dos argumentos cristãos estão presentes


em toda a literatura do abolicionismo. O primeiro exemplo é
de Frederick Douglass: “Escravagistas religiosos são os piores”;9
o segundo, de Beecher Stowe: “[…] tanto o Norte quanto o
Sul são culpados perante Deus; e a igreja cristã tem uma boa
explicação para dar”.10 Por fim, já longe do cativeiro, Jacobs teve
chance de acompanhar o pastor John S. em suas viagens pelo
estado de Nova Iorque e se deparar tanto com recepção positiva
7 Parafraseando Garfield, 1996, p. 112.
8 Martin citado por Yellin, 2004, p. 167.
9 Douglass, 1845, p. 78 (capítulo 10).
10 Stowe, 1852, p. 322 (capítulo 45).

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do culto de negros em processo de reintegração na sociedade,


quanto com resistência violenta. Inclusive por parte das igrejas.11

Na primeira seção da narrativa, Jacobs cita diretamente da


bíblia mais de vinte vezes, além de fazer alusões menos diretas.
As referências se tornam mais escassas no decorrer do texto. Isso
parece indicar a insuficiência da caridade cristã para lidar com a
urgência da abolição; a religião como um todo se provou uma base
insuficiente (ainda que complementar) na luta contra o escravismo.

Até hoje, na fortuna crítica da autora não há nenhuma teoria


que defenda um encadeamento coerente de suas referências bíblicas.
Com exceção do versículo de Isaías 32 que inicia o livro (ver
vocábulo Abolicionistas), os demais parecem ter sido escolhidos
aleatoriamente, como marcadores de uma identidade religiosa da
narradora ou ainda como técnica retórica de captatio benevolentia
perante um público de leitoras majoritariamente protestante.

Desobediência civil

A resistência de Linda Brent contra os Flint pode ser inter-


pretada como um ato de desobediência civil. Como ocorre
com seu contemporâneo Henry David Thoreau, ela recorreu
ao encarceramento voluntário após concluir racionalmente
que persistir trabalhando sob o mando daquela família seria
moralmente condenável, uma vez que implicaria apoiar uma
instituição injusta. Os anos de 1840/1850, ademais, foram
um período de falência dos sistemas legais que levaram o país
a uma guerra civil devastadora, época propícia para resistência
contra o Estado por meio de desobediência civil. Para Linda,
portanto, fugir não era somente um ato de autopreservação, mas
uma forma de se assomar a uma massa de revoltados contra a
11 Yellin, 2004, p. 99-100.

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escravidão, orquestrada por outros fugitivos (como seu irmão


William), por insurretos (como Nat Turner) e pelos abolicionistas.

Thoreau, quem desenvolveu a noção de desobediência civil,


se encontrava no último grupo. Diferentemente de muitos dos
outros transcendentalistas de Concord/NH, ele apoiou a causa
antiescravidão ativamente, servindo por anos como condutor na
Underground Railroad e auxiliando fugidos a cruzar a fronteira para
o Canadá. Levou Frederick Douglass para ministrar palestras no
Concord Lyceum e foi responsável pela organização do encontro
anual da Concord Female Anti-Slavery Society durante sua estadia
em Walden. O contexto de seu famoso texto sobre a desobediência
civil, Resistance to Civil Government (escrito em 1849 a partir
de um discurso proferido um ano antes) está simultaneamente
ligado à questão da escravidão e do imperialismo estadunidense.

A narrativa inicia com uma cena corriqueira: o protagonista


vai à cidade a fim de ter seus sapatos consertados e é abordado
por um oficial da lei. O oficial lembra o cidadão de que este ainda
não pagou seus impostos, dando-lhe mais uma chance de acertar
as contas com o Estado. O cidadão, porém, afirma ter optado
por não pagar os impostos naquele ano, uma vez que não apoiava
o governo federal e suas medidas de entrar em guerra contra o
México (1846-1848). Apoiar o governo do então presidente Polk
com seu dinheiro seria cooperar com um massacre que, em sua
consciência, Thoreau considerava criminoso e de causa nada legí-
tima: Polk iniciou sua guerra de conquista com o fim de ampliar
o território escravocrata e, assim, regular a economia do país.

O homem então é posto na prisão, onde passa uma noite


fazendo reflexões a respeito de sua atitude. O conteúdo teórico do
texto é desenvolvido a partir daí. “Sob um governo que aprisiona
qualquer um injustamente, o verdadeiro lugar para um homem
justo é também uma prisão. [...] [é lá] onde o Estado aloca aqueles
que não estão com ele, mas contra ele – o único lugar em um Esta-

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do escravocrata que um homem livre pode habitar com honra.”12


Há aí uma inversão (só aparentemente incongruente) que encontra
um interessante paralelo com o confinamento de Linda Brent:
estar preso, apesar dos claros inconvenientes acarretados, doa a esse
novo tipo de agente político uma vantagem moral, permitindo-lhe,
por meio da escrita, evocar ação conjunta de uma comunidade de
desobedientes civis. Daí Thoreau se valer da noção de desobediência
civil: ela é civil tanto no sentido de se voltar contra o Estado,
quanto é civil por ser um ato de civilidade, executado de forma
ordeira, não-violenta. Foi esse o sentido retomado por Mahatma
Gandhi em 1907 e por toda a carreira de Martin Luther King Jr.13

Na leitura de Anita Goldman (1996), Incidentes na Vida... traz


uma versão algo diversa do conceito de desobediência civil. Ela o
associa a revoltas violentas, pontuando a rebelião de Nat Turner
(1831) como iniciadora de uma crise sobre o sentido de obediência
na mente de escravos norte-americanos.14 Essa revolta é retratada no
capítulo xii da obra de Jacobs; não obstante, muito antes a autora
insinua a existência de uma cultura, entre os próprios escravos,
resistente aos argumentos veiculados por políticos brancos para
justificar o status quo. Em duas ocasiões ela menciona satiricamente
a formulação “instituição peculiar” (p. 54 e 206), eufemismo utili-
zado por escravocratas para se referirem a seu sistema, cunhado em
1830 por John C. Calhoun. A formulação implica que os estados do
Sul, por sua posição geográfica, solo e clima, necessitavam de uma
economia agrária baseada em mão de obra escrava. Isso a tornava
peculiar e necessária; ao Norte haviam sido dadas, pela natureza
ou pelo bom Deus, outras fontes de riqueza a ser exploradas.

O cinismo por trás de tal argumento é repetidamente sati-


rizado por Linda e seus familiares; as condições adversas em que
12 Thoreau, 1849, p. 200.
13 King conta sua experiência com o texto de Thoreau em The Autobiography
of Martin Luther King, Jr., capítulo 2.
14 Goldman, 1996, p. 235.

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nasceram os dotaram de perspicácia superior para identificar a


infâmia do senso-comum. “Não foi para nada que vivi quatorze
anos na Escravidão. Eu havia sentido, visto e ouvido o bastante para
saber ler o caráter das pessoas ao meu redor, para questionar suas
razões. A guerra de minha vida havia começado, e embora fosse
uma das criaturas de Deus mais oprimidas, estava determinada
a nunca me deixar subjugar.” (capítulo iv, p. 22). Muito dessa
atitude é praticada por William, que, além de um importante
tutor para a irmã, executa sua fuga antes de todos e mostra ter
controle sobre dispositivos de resistência dos quais a própria Linda
se valerá mais tarde. William é “o escravo que ousou se sentir
como um homem”, alcunha que nomeia o capítulo iv. Nele lemos:

“Nós [...] crianças escravizadas, sem pai ou mãe, não deveríamos ter a esperança
de ser felizes. Devíamos ser bons; talvez isso nos trouxesse contentamento.”

“Sim”, ele [William] disse, “eu tento ser bom, mas para quê? A Toda hora estão
me perturbando” (p. 21)

No contexto, o escravo resiste a um jovem mestre abusivo que


o perturba para se divertir, além de forçá-lo a cometer pequenos
crimes (como falsificar moedas e dá-las em pagamento para um
mercador local, já idoso). Em plena infância, William entende
que se encontra no dilema de escolher entre dois crimes, e resolve
punir seu mestre. O empoderamento resultante da resistência
física é bastante similar a um episódio central da autobiografia de
Frederick Douglass. No momento em que seu protagonista ousa
revidar às pancadas do opressor, mr. Covey, aquele encontra um
novo caminho para a sua vida. A desobediência civil traz a reden-
ção. “Essa batalha [...] reacendeu umas tantas brasas extinguidas
da liberdade e revigoraram dentro de mim um senso de minha
própria masculinidade. Ela recuperou a autoconfiança que havia me
deixado e me inspirou mais uma vez com a resolução de ser livre”.15

15 Douglass, 1845, p. 72.

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Semelhante a Thoreau, Linda não recorre propriamente à


violência física, mas opta pelo confinamento numa prisão cons-
truída pelo próprio tio Phillip, no sótão da avó. A autora opta pelo
termo loophole para designar o buraco através do qual Linda tem
contato com o mundo exterior, termo inglês que designa tanto uma
abertura circular quanto uma lacuna legal, uma brecha que permite
o desvio da lei por meios não-criminosos. A opinião geral da fortu-
na crítica é a de que Jacobs tinha noção dessa dimensão jurídica do
termo e o utilizou deliberadamente a fim de marcar o isolamento da
protagonista como um ato de resistência contra as leis pró-escravi-
dão, sobretudo contra o Fugitive Slave Act de 1850.16 Por meio desse
poderoso símbolo, Jacobs compartilha com Thoreau a redefinição
de cidadania, a ser alcançada somente quando há ousadia para
desobedecer: cidadania é uma condição avessa à obediência cega
ao governo instituído, funcionando como um uso coletivo da razão
que doa a um grupo o poder de resistir contra ocasionais abusos de
autoridade. A fatura da narrativa em questão, portanto, não apenas
descreve a conquista da liberdade individual, mas a possibilidade
de superar a passividade política que assolava a jovem nação.

Ver também vocábulos Sótão/Mansarda, Buraco/Lacuna, Toca.

Escravagista (slaveholder)

O ptou-se por traduzir o termo slaveholder de três formas:


“escravagista”, “escravocrata” e “dono de escravos”. A tradu-
ção “senhor de engenho” foi descartada por se tratar de uma
especificidade dos contextos brasileiro, caribenho e sul-asiático.

Escravagismo não é apenas uma condição de lei naquela


sociedade, mas uma visão de mundo ligada ao Sul dos Estados
Unidos. Como o aristocrata no contexto feudal, o proprietário de
16 Ver, por exemplo, Goldman (1996, p. 238) e Gibson (1996, p. 170).

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escravos gozava de privilégios que o transformava em um opressor


e agente de uma força maior, do “Demônio da Escravidão” (termo
que a autora escreve, repetidamente, em letra maiúscula, como
se fosse uma entidade). As figuras de dois donos de escravos,
em especial, assombram a imaginação infantil de Linda Brent:
o sr. Litch e o dr. Flint. Mesmo figuras inicialmente benevo-
lentes como o sr. Sands, seu amor de juventude, terminam se
acomodando aos privilégios trazidos pela escravidão. Ele hesita
em alforriar os próprios filhos, fazendo-o só depois da insistência
de Linda, numa conversa noturna descrita no capítulo xxiv.

Estrela do Norte (North star)

“S iga a estrela do Norte” era a direção dada a escravos


fugidos do Sul pela Underground Railroad. A estre-
la, também chamada Polaris, deu título ao famoso jornal
de Frederick Douglass, fundado em 3 de dezembro de 1847.

Feminilidade, culto da domesticidade, maternidade, família

O culto da domesticidade (cult of domesticity) e da feminili-


dade autêntica (cult of true womanhood) são designações da
historiografia para descrever duas facetas da ideologia familiar
dominante no mundo anglo-saxão do século xix. Muito dos valores
da época são defendidos por Jacobs; outros são postos em questão.

Contexto — A industrialização da Inglaterra e dos Estados


Unidos ocasionou uma realocação massiva de trabalhadores rurais
para novas funções administrativas ligadas ao setor fabril, ou ainda
para profissões liberais. A partir daí a estrutura das famílias locais
se alterou profundamente. Pela primeira vez, parte delas podia

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sobreviver com o soldo de um só membro ativo no mercado


de trabalho; o homem desbravava a esfera pública, o mundo
caótico e competitivo dos negócios, enquanto mulher e filhos
permaneciam no ambiente privado, doméstico, livres das más
influências do mundo exterior. Ao voltar para o lar após um
dia de trabalho, ele encontrava lá “um lugar especial, um refú-
gio do mundo onde [...] poderia escapar do universo altamente
competitivo, instável e imoral dos negócios e da indústria”.17

Todo um sistema de valores acompanhou a alteração


das tarefas masculinas e femininas; o ideal de família foi visto
como resultado do suporte mútuo e complementar. “O homem
detém o controle sobre a pessoa e a conduta da mulher. Esta
detém controle sobre as inclinações do homem: ele gover-
na pela lei, ela pela persuasão [...] O império das mulheres
é o império da suavidade; seus comandos são carícias; suas
ameaças são lágrimas”, lemos em um periódico da época.18

Religiosidade, pureza, domesticidade e submissão eram


as quatro virtudes cardinais reservadas à mulher.19 Apesar de
domesticidade e submissão serem valores autoexplicati-
vos, os outros dois princípios merecem maior elucidação.

A religiosidade protestante é, por excelência, uma disposição


paciente, contemplativa e pacificadora; o próprio contexto de isola-
mento no qual a mulher vitoriana era inserida a tornava propensa a
se ocupar da bíblia. Suas chances de atuar fora do ambiente familiar
estavam necessariamente ligadas às atividades da paróquia: havia
a opção de grupos de discussão sobre reformas sociais, atos de
caridade e defesa dos escravos — certamente causas progressistas,
mas submetidas ao controle institucional exercido pelo pastor
e à manutenção da imagem da própria comunidade religiosa.
17 Lavender, 1998, p. 4.
18 Citado por Lavender, 1998, p. 2.
19 Ver descrição extensa dos quatro princípios em Welter, 1966, p. 152 et seq.

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A pureza sexual era a condição sine qua non para o casa-


mento, esperada apenas da mulher. O homem, afinal, vivia no
mundo exterior hostil para garantir o sustento da família, estando
muito mais suscetível às tentações deste mundo. Uma mulher
promíscua, por outro lado, era uma aberração da natureza, uma
“mulher caída” (termo correlato à designação bíblica dos “anjos
caídos” que desafiam os planos divinos).20 A exigência da pureza
feminina é resultado de uma época que ligava a pulsão sexual
unicamente à puberdade masculina. Os prazeres da noite de
núpcias seria a grande recompensa para aquelas que se mantiveram
castas, evento divulgado em semanários para o público feminino
como o auge de sua vida, em que a recém-casada entregaria seu
maior tesouro, a virgindade, ao marido. A Inglaterra vitoriana e
os Estados Unidos oitocentistas são conhecidos pelos reflexos
extravagantes dessa obsessão com o recato: “Recomendava-se
a mulheres decentes que separassem autores e autoras em suas
estantes de livros, ao menos, é claro, que eles fossem casados”.21
Foi então que surgiram mitos utilizados até hoje para velar a
existência da sexualidade humana: a ideia de que bebês são
trazidos por uma cegonha ou brotam dentro de um repolho.

Ainda que a definição historiográfica do culto da domesti-


cidade descreva uma polarização comum a sociedades anteriores
(a ateniense do século iv AEC, por exemplo), o ideal vitoriano
de divisão de tarefas é singular por sua pretensão à universalida-
de. Houve uma extensa mobilização de periódicos, romances,
sermões religiosos e guias de conduta em prol da divulgação
de tais ideias.22 Mais curioso ainda, a medicina da época – além
de disciplinas reconhecidas hoje como pseudociências (como
a frenologia) – se esforçava para identificar diferenças funda-

20 Welter, 1966, p. 154.


21 Lavender, 1998, p. 2.
22 Um exemplo clássico dessa mídia é o Godey’s Lady’s Book, publicado entre
1830 e 1898, cuja coleção está disponível integralmente online <http://www.
accessible-archives.com/collections/godeys-ladys-book/>.

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Glossário

mentais entre a fisiologia dos homens e a das mulheres, a fim de


ratificar a tal divisão de tarefas como um dado natural sobre o
ser humano. “A evidência visual de que mulheres eram, em geral,
fisicamente menores que homens” implicava a necessidade de
que estes tomassem tarefas ligadas à agressividade e ao combate;
homens eram aqueles que agiam, os verdadeiros atores na vida da
família. “Mulheres, por outro lado, deveriam ser contempladoras
passivas, submetidas ao destino, ao dever, a Deus e aos homens”
presentes em sua vida — pai, irmãos, marido e filhos crescidos.23

O modelo de família de classe média (a tal família nuclear)


passou a ser visto como sustentáculo das sociedades inglesa e
norte-americana. Marcas desse modelo se mantiveram na cultura
e ciência dos séculos seguintes — a psicanálise é, a rigor, um
derivado da mesma bissecção da psique humana, reservando até
mesmo certos distúrbios extras como a histeria para o ‘sexo frágil’.
O espírito feminino passou a ser associado à infantilidade; o este-
reótipo era louvado e tomado mesmo por defensoras dos direitos
das mulheres como Sara Lippincott. Essa escritora de Nova Iorque,
conhecida pelo pseudônimo Grace Greenwood, é famosa por
sua formulação: “O verdadeiro gênio feminino é sempre tímido,
duvidoso e dependente a ponto de ser pegajoso; é uma perpétua
infância [...] Nunca se assexue em prol da grandeza. O culto de um
coração verdadeiro é superior à admiração do mundo”.24 “Nunca
se assexue” [never unsex yourself] é expressão elucidativa no contexto,
uma vez que reafirma o poder determinador da biologia como guia
das atitudes e estilos de vida. Não por acaso, a mulher que trabalha
e busca uma vida fora do lar invariavelmente termina arruinada,
de acordo com o imaginário literário convencional à época; ela
era unsexed e pagava por desafiar o poder absoluto da natureza.

23 Citado, respectivamente, a partir de Lavender, 1998, p. 4 e 3. Mesmo a


suposta pretensão feminina à religiosidade era justificada por médicos; ver
Welter (1966, p. 153, 159-160) para extensão documentação.
24 Greenwood, 1850, p. 311 (grifo da autora).

. 273
...
Harriet Jacobs

Isso nos liga aos debates sobre a escravidão e a Jacobs. Em


discursos antiabolicionistas, abundavam associações dos negros
cativos ao elemento feminimo/infantil elucidado acima. “Filóso-
fos pró-escravidão tendiam a defender uma instituição benigna
que encorajava, na relação entre mestres e escravos, qualidades
tão admiradas na família vitoriana: a obediência bem-disposta e
gratidão por parte das crianças (leia-se, os escravos), e a sabedoria
paternalista, proteção e disciplina por parte do pai (leia-se, o
mestre).”25 O princípio é o mesmo: uma vez que 25% das famílias
do Sul possuíam servos e escravos, subentendia-se que eles teriam
de se submeter às mesmas autoridades que o restante da família.
A inferência racista de que o africano era inferior na escala da
civilização se assomava ao modelo já pronto de família vitoriana.
“Um homem ama a seus filhos por que eles são fracos, indefesos e
dependentes. Ele ama sua esposa por motivos semelhantes… Ele
deixa de amar sua esposa quando ela se torna masculina ou rebelde;
mas escravos são sempre dependentes, nunca os rivais de seus
mestres [...] A natureza obriga o mestre e o escravo a serem amigos”
— a citação é do sociólogo e juiz de Virgínia, George Fitzhugh.26

Muito da cultura abolicionista com a qual Harriet e John


Jacobs se depararam ao fugir para o Norte era uma cultura de
mulheres de classe média, submissas e domesticadas; o aboli-
cionismo era uma atividade secundária de seu dia-a-dia. Lydia
Maria Child, prefaciadora do livro de Jacobs, foi uma das grandes
divulgadoras do culto da domesticidade em Boston. Em Mother’s
Book (um manual de conselhos práticos para mães), ela lamenta
a curiosidade de jovens garotas a respeito de certos temas proi-
bidos. Sua sugestão é que mães explicassem certos fatos da vida
assim que a criança atingisse doze anos de idade para “apaziguar
sua mente”. A partir daí a mãe deveria confiar que a “modés-
tia instintiva” da jovem mulher a prevenisse de “refletir sobre

25 Rose, 1982, p. 21.


26 Fitzhugh citado por Gibson, 1996, p. 163.

274 .
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Glossário

tais dados até que lhe fosse propício utilizá-los”.27 Na mente de


uma mulher, esses são “assuntos delicados”, diz Child, termo
que voltará a suscitar três décadas mais tarde ao introduzir as
experiências da Harriet Jacobs para o público-leitor de seu meio:
Tenho plena consciência de que muitos me acusarão de falta de deco-
ro por expor ao público estas páginas, já que as experiências dessa
mulher inteligente e tão ofendida pertencem à classe dos assuntos a
que chamam de ‘delicados’, e outros ainda de ‘indelicados’ (p. 15)

O pudor sobrepõe o interesse documental; recomenda-se a


Jacobs contar sua história desde que certas barreiras não sejam
ultrapassadas. Essa, contudo, é uma história verídica de perseguição
sexual a uma adolescente, perpetrada por um homem casado de meia
-idade. Antes de tudo, ela serve à defesa de certo ideal de domestici-
dade uma vez que, “como praticamente todas as outras narrativas de
escravos, comenta o efeito destrutivo da escravidão sobre famílias,
seja dos escravos ou de seus proprietários”.28 Jacobs apresenta uma
visão de feminilidade pouco ortodoxa, é certo, ao mesmo tempo
em que compartilha do código de pureza sexual como meio de se
comunicar com sua audiência até o momento decisivo da narrativa:

E agora, leitoras, chegamos a um período infeliz de minha vida,


do qual me esqueceria com todo o prazer se fosse possível. A
lembrança dele agora me enche de angústia e vergonha. Sofro
por ter que relatá-lo para vocês, mas prometi contar a verdade,
e fá-lo-ei com honestidade, custe o que custar. (capítulo x, p.66)

A sexualidade ‘ilícita’ da jovem Linda (que no momento


da narrativa em que engravida tem 14 ou 15 anos de idade) é
uma asserção de autonomia a partir de um dilema. No início
27 Child, 1831, p. 151-152.
28 Gibson, 1996, p. 172. É comum a textos do gênero começar com “Eu nasci
em…”, trecho seguido por especificações sobre a ignorância do(a) protagonista
sobre a identidade de seu pai. Essa é uma abertura bem-sucedida, de um ponto
de vista retórico, uma vez que aponta para uma descontinuidade cultural e
familiar ocasionada pelo tráfico negreiro.

. 275
...
Harriet Jacobs

de sua juventude, ela tem de escolher entre a concubinagem ou


a maternidade independente, já que uma criança do político
Sands com uma mulher cativa seria necessariamente considerada
ilegítima. Escrever Incidentes na Vida… é uma reafirmação dessa
autonomia; dedicar o livro às brancas do Norte como Lydia Maria
Child pode ser visto como um ato de provocação velada.29 E isso
por um motivo singelo: a mania da época por ideais domésticos
terminava por “segregar a mulher em termos tanto de raça quanto
de classe” — já que mulheres da classe trabalhadora ainda tinham
de viver de seu ofício — “complicando, assim, a organização de
comunidades femininas contra o problema do abuso sexual”.30
Jacobs conquista seu triunfo, ainda que automaticamente se exclua
da cultura doméstica; o final da narrativa beira a ironia quando diz:
Leitoras, minha história termina com liberdade; não do jeito usual, com
casamento. [...] O sonho de minha vida ainda não se realizou. Não estou
instalada com meus filhos em minha própria casa. (capítulo xvi, p. 240)

Em primeiro lugar, afirma: “o sonho de minha vida ainda


não se realizou”. Mas, contra as expectativas de suas leitoras
históricas, não se trata do sonho do casamento, e sim de dar
um lar adequado para os filhos. Jacobs permanece firme em sua
resolução de viver como mãe solteira; seu dilema real não é se se
sente rebaixada perante os imperativos do culto da domesticidade,
mas o de executar seus deveres de mãe. Aí reside o cerne de sua
libertação. “A conversão dessa narrativa em uma reunificação
triunfante da família significa vitória sobre a escravidão”31.

Marinheiros

A carreira em alto-mar foi uma das poucas opções viáveis e rentá-


veis para escravos homens, libertos ou fugidos. Na narrativa,
William se torna marinheiro após fugir de seu mestre em Rochester,
29 Nudelmann, 1992, p. 939.
30 Ibidem, p. 957. Ver também Carlacio, 2006, p. 320.
31 Lockard & Penglu, 2011, p. 7; ver também Goldman, 1996, p. 239.

276 .
...
Glossário

NY. O cosmopolitismo dos marinheiros, além disso, é contraposto


ao provincialismo do homem do Sul; em um episódio central, Linda
e Fanny contam com a ajuda de diversos marinheiros para escapar.

Narrativas de escravos (slave narratives)

N arrativas de escravos existem nos Estados Unidos desde


1703, embora parte substancial de seu cânone seja
produto do período que vai de 1831 ao final da Guerra Civil.
O gênero iniciou a prosa literária afro-americana, e contém
o gérmen de diversas convenções e temas cuja influência
sobre a cultura universal deixou há muito de ser subestimada.

Incidentes na Vida... é habitualmente categorizado como


integrante de tal cânone. Apesar disso, parte dos problemas de
recepção do livro até 1973 derivam de sua aproximação às narra-
tivas de escravos tradicionais. “Narrativas de escravos homens
[a exemplo da de Frederick Douglass] geralmente seguem
um formato estritamente cronológico, focando-se na vida do
narrador conforme ele relata a história de sua jornada da escra-
vidão para a liberdade. Em contrapartida, a narrativa de Jacobs
se foca em ‘incidentes’ da vida. Em vez de seguir um padrão
estritamente cronológico, ela geralmente se interrompe para
abordar problemas sociais ou políticos como a atuação da igreja
na escravidão, ou o impacto da Lei do Escravo Fugido [...]”.32

Vista mais de perto, a obra de Jacobs se constitui como


um emaranhado de diversos registros. O historiador da literatura
abolicionista William L. Andrews descreve Incidentes na Vida...
como uma narrativa experimental, composta num momento
cultural em que narradores já livres da escravidão abordavam suas

32 Washington, 2000, p. 9.

. 277
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Harriet Jacobs

histórias de vida de um modo radicalmente diverso.33 No livro


encontramos elementos de autobiografia, romances de sedução
setecentistas e romances sentimentais, além de tragédias burguesas
que derivaram deste último gênero.34 Tomemos algumas de suas
referências: romances de sedução se constituíam como historietas
de fundo moralizante e cariz erótico em que jovens protagonistas
passavam por provação, sedução e entrega aos prazeres carnais.
Eles quase invariavelmente resultam na desgraça ou redenção,
de última hora, da mocinha, permitida por sua entrega volun-
tária a um casamento virtuoso ou à religiosidade. Exemplos de
romances de sedução da época são Charlotte Temple de Susanna
Rowson (1790) e The Coquette de Hannah Wester Foster (1797).

Os romances sentimentais de Samuel Richardson (como


Pamela, or Virtue Rewarded de 1740) ou as tragédias burguesas de
Gotthold Ephraim Lessing (Emilia Galotti, 1772) continham um
erotismo mais velado, focando-se mais na resistência e industriosi-
dade de heroínas burguesas contra a lascívia de nobres desocupados;
a dimensão de luta entre setores da sociedade, cada qual com
seus códigos de conduta e missão histórica, é explorada por seus
autores de forma bastante consciente. Essa é uma dimensão que
não passa despercebida em Incidentes na Vida...: a família dos
escravocratas sulistas é retratada de forma generalizada; trata-
se de uma instituição fadada à ruína, onde os homens, desde
cedo, se veem desimpedidos para explorar sua sexualidade com
jovens escravas, despertando o ciúmes, abandono e consequente
infelicidade em suas esposas. Jacobs não se mostra interessada
unicamente na dimensão religiosa dessa degradação, mas, como
autores de tragédias burguesas, em suas implicações sociais.

Para comparações entre o romance abolicionista ao estilo de Uncle


Tom’s Cabin e os Incidentes na Vida..., ver vocábulo Sentimentalismo.

33 Andrews, 1988, p. 169-179.


34 Lockard & Penglu, 2011, p. 10.

278 .
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Glossário

Norte e Sul

A escravidão sulista foi tão proeminente, além de divulgada por


seus ideólogos como ‘peculiar’ à região, que se perde de vista
a existência de escravos no Norte. O historiador Douglas Harper,
responsável pelo website slavenorth.com, comenta: “escravos eram
leiloados abertamente na Market House da Filadélfia; à sombra das
igrejas Congregacionais em Rhode Island; em tavernas e galpões de
Boston. Semanalmente, às vezes diariamente, no Merchant’s Coffee
House de Nova Iorque. Heróis do Norte na Revolução Americana
como John Hancock e Benjamin Franklin compraram, venderam e
possuíram negros. [...] A família do próprio Abraham Lincoln, quan-
do habitou a Pensilvânia em tempos coloniais, possuiu escravos”.

Na altura de 1800, porém, a abolição foi declarada em oito


estados do Norte dos Estados Unidos, a partir de então chamados
‘estados livres’. Vinte e um anos depois, quando Harriet Jacobs
contava oito anos de idade, o número subiu para doze. Há
diversas razões geográficas e históricas para tal: uma ex-colônia
independente como Vermont, só mais tarde unida ao território
dos Estados Unidos, deixara de aceitar a escravidão em casa desde
1777. O solo da Nova Inglaterra, como um todo, era inapto para
monoculturas como algodão e tabaco, o que tornava a mão de
obra escrava menos lucrativa. Mas foi a Guerra da Independência,
por fim, que se provou a grande libertadora: por onde marchava,
o exército britânico libertava os servos de seus inimigos, visando
desestabilizar a economia que sustentava a revolução. Conside-
rando que as incursões pelo Norte foram muito mais frequen-
tes do que pelo recém-desbravado Sul, a população escrava ali
diminuiu numa velocidade significativamente maior. No auge
da guerra, muitos governantes do Norte pagaram a proprietários
de escravos para que alforriassem seus servos com a condição
de que se alistassem ao exército revolucionário já enfraquecido.

. 279
...
Harriet Jacobs

As estatísticas sobre a escravidão em estados no Norte estão


sendo revistas há poucas décadas; o Historical Statistics of the United
States, publicado em Cambridge/MA (2004),35 traz pesquisas e
números inovadores que deverão alterar aquilo que se ensina em
escolas norte-americanas sobre o tema. “Em Connecticut dos
anos 50, onde cresci”, afirma a historiadora Joanne Pope Melsih,
“a única escravidão discutida em minha apostila de história era
a sulista. Habitantes da Nova Inglaterra haviam marchado para
o Sul para acabar com a escravidão. Foi em Rhode Island, onde
vivi depois de 1964, que me deparei pela primeira vez com uma
referência obscura à escravidão local, mas quase ninguém a quem
questionei sabia algo a respeito”.36 Novos dados mostram que o
estado de Nova Iorque, por exemplo, tinha 7,6% de sua população
escravizada em 1790. Nove anos depois, a abolição foi oficialmente
declarada, porém escravos continuaram a ser vendidos e muitas
pessoas subsistiram em regime de servidão não-remunerada até
1827. No ano em que a Guerra Civil foi declarada, 1860, 1,26%
da população nova-iorquina ainda vivia sob regime de escravidão.
O caso de Nova Jersey é o mais extremo: o estado, enquanto
mandava soldados para lutar contra os Confederados na Guerra
Civil, abrigava 3,76% de sua população sob regime de escravidão, o
que continuou pelos próximos cinco anos, até o término da guerra e
declaração oficial de abolição da escravatura em território nacional.

O fato de nortistas se gabarem de sua liberalidade foi


comentado por Harriet Jacobs e, sobretudo, por Harriet E. Wilson
(1825-1900), a primeira afrodescendente a publicar um roman-
ce em continente norte-americano (Our Nig, or Sketches from
the Life of a Free Black, 1859).37 Wilson nasceu livre; a morte
prematura da mãe a ligou a uma família de New Hampshire
que a manteve em regime de servidão até os 18 anos de idade.

35 Ver referências bibliográficas sob os nomes Engerman, Sutch & Wright, 2004.
36 Melish, 1998, p. xiii.
37 É uma coincidência interessante que o livro tenha saído no mesmo ano
que Úrsula, da maranhense Maria Firmina dos Reis.

280 .
...
Glossário

Já Jacobs comenta a difícil integração de negros fugidos e


livres no Norte em diversas passagens do texto. Principalmente
após a homologação do Fugitive Slave Act em 18 de setembro de
1850, essa integração se tornou mais complicada (ver comentários
a respeito nos capítulos viii e xv de Incidentes na Vida...). Há na
correspondência da autora uma crítica velada mesmo à atitude de
amigos dos escravos como a família Willis — na narrativa, eles
são o sr. e sra. Bruce. A situação de Jacobs junto a essa família
traz traços da vida na lavoura. Em uma carta a Amy Post, Jacobs
se declara “presa ao quarto do bebê [dos Willis] [...] para cuidar
tanto do bebê pequeno, quanto dos bebezões [i.e. os próprios
patrões]”, algo que lhe dá “pouco tempo para pensar ou escrever”.38
As demandas da senhora branca e seus filhos a impossibilita de
cuidar devidamente de seus próprios filhos, algo semelhante ao
retrato de tia Nancy no capítulo xxviii de Incidentes na Vida...: a
boa escrava sofre repetidos abortos e finalmente morre enferma por
ter canalizado todas as suas energias no cuidado da prole dos Flint.

Já o retrato do Sul é bastante evidente desde o início da


narrativa: o sulista é um homem embrutecido e quase incompreen-
sível em seu linguajar canhestro, ao passo que a mulher sulista é
acomodada em sua cultura a ponto de não se importar com as even-
tuais relações extraconjugais de seu marido com escravas. Por força
do trauma, Linda Brent não parece ver qualquer salvação no Sul e
em sua cultura; ainda assim, Harriet Jacobs e a filha Louisa voltaram
a Edenton/SC durante a Guerra Civil para tratar de soldados feridos
da União. Ambas passaram boa parte de suas vidas adultas no Norte
do país, sobretudo em Massachusetts, Nova Iorque e Washington.

38 Jacobs citada em Sterling, 1984, p. 81 e 83, respectivamente.

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Harriet Jacobs

Sentimentalismo

S entimentalismo designa uma tendência cultural em voga na


Europa desde a era do Iluminismo, e cujas marcas se veem
na cultural popular até hoje. As ideias que o definem surgi-
ram no campo da especulação filosófica, em obras de autores
como Mendelssohn, Hutcheson e Shaftesbury, interessados
em defender uma teoria antropológica que devotasse atenção
adequada à dimensão passional dos seres humanos: antes de
um res cogitans, de alguém que pensa e se define em termos
racionais, o indivíduo é alguém que sente. Dessa forma, o Senti-
mentalismo na filosofia pode ser visto como um corretivo das
teorias racionalistas em voga na época, de Descartes a Wolff.

O conceito central das teorias do Sentimentalismo é moral


sense: de acordo com essa ideia, da mesma forma que nos guiamos
pelo mundo por intermédio de cinco sentidos, um sexto sentido,
moral, inerente a todos os animais racionais, guia suas relações
sociais. Apesar de ser apriorística, a faculdade moral precisa ser
aplicada e cultivada como qualquer outra; filósofos do Senti-
mentalismo não dissociavam a experiência de fortes emoções
do desenvolvimento social, amadurecimento e, por fim, do
próprio avanço da humanidade. Aqui reside o otimismo por trás
do movimento; ele imagina a humanidade como uma grande
família em gradual aperfeiçoamento, e o mal do mundo como um
acidente capaz de ser curado de forma fundamentalmente simples:
canalizando maus sentimentos e cultivando boas disposições.

Já na altura de 1740, o Sentimentalismo havia se tornado uma


moda comportamental e visão de mundo particular em centros
urbanos europeus. A literatura de Jean Jacques Rousseau, Samuel
Richardson e Gotthold Ephraim Lessing foi, por extensão, taxada
como sentimentalista, uma vez que trazia o mesmo interesse de
explorar aspectos passionais da experiência humana. Um texto
literário sentimental quase sempre trata da vida cotidiana; ele

282 .
...
Glossário

aborda temas como amor, amizade, conflitos intergeracionais e


desigualdade social num tom desmedidamente melodramático,
visando suscitar (e educar) as emoções de seus leitores e leitoras.

O contexto sentimental europeu é um pano de fundo impor-


tante para entendermos o movimento abolicionista norte-ameri-
cano; um romance antiescravidão como Uncle Tom’s Cabin (1853)
de Harriet Beecher Stowe é, a rigor, produto dessa tendência.
Ele também se configura como uma sequência de perspectivas
sobre a sentimentalidade da personagem, não meramente com a
montagem de um fio de ação que culmina em um clímax, como
ocorre em narrativas romanescas tradicionais. Aqui, a dinâmica
de leitura se altera; ao invés de fruírem o desenlace de eventos
de uma perspectiva distanciada, leitores e leitoras sentimentais
acompanham os dilemas das personagens com empatia, toman-
do consciência dos eventos que compõem o roteiro ao mesmo
tempo em que o contato com as afecções das personagens já foi
estabelecido; os fatos narrados são considerados sempre tendo
em vista seu impacto sobre a psique dos actantes na trama.
O romance de Stowe se vale de uma estratégia enunciativa
semelhante, ainda que aplicada a um tipo histórico específico, o
negro escravizado. Parte das críticas surgem daí: esse é o romance
que tipifica pessoas de carne e osso, retratando-as como tipos
retirados do universo melodramático que entretinha a imaginação
de iluministas europeus. A autora de Uncle Tom’s Cabin se apresenta
como tradutora imparcial da experiência de pessoas cativas que
conheceu durante a vida, junto às quais fez um trabalho prévio
como confidente humanitária. Na pressuposição de expressar
com transparência a experiência do Outro encontramos o cerne
de sua ilusão: “enquanto Stowe se apresenta como canalizadora
da experiência escrava, parece mais correto dizer que a figura do
escravo silenciado provê um meio influente, utilizado pela comuni-
dade abolicionista, para a construção do sofrimento do escravo.”39
39 Nudelman, 1992, p. 962.

. 283
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Harriet Jacobs

O protagonista do livro em questão, o uncle Tom (traduzido em


português como “tio Tom”, “pai Tomás”), é ele mesmo um sofredor
benevolente, uma espécie de cristo disposto a oferecer a outra face
para as injustiças dos escravocratas. Por fim, se Tom morre nas
mãos dos capatazes de Simon Legree, é para se elevar como símbolo
de martírio, permitindo a fuga dos seus entes queridos para uma
utopia de liberdade negra na Libéria. Durante o Movimento dos
Direitos Civis, já na década 1960, Malcolm X foi um dos grandes
críticos do retrato veladamente racista de Stowe: Uncle Tom é a
imagem do negro domesticado que a autora tentou impor aos
escravos prestes a ser libertos, um homem pacificado pelo discurso
da abolicionista que, ainda que de fato desejasse vê-lo fora da
situação de cativeiro, o fazia atestando sua superioridade benevo-
lente. Uncle Tom é um imitador infantil do branco e sua cultura.40
A atitude pessoal de Stowe em relação Harriet Jacobs espelha
a psicologia perversa descrita por Malcolm X: em 1852, enquanto
morava em Rochester, NY, Jacobs teve chance de se corresponder
com a famosa autora de Uncle Tom’s Cabin. Tendo em vista o
grande sucesso de seu livro, propôs uma parceria editorial: Stowe
se utilizaria de seu talento literário, Jacobs contaria a história de
seus incidentes. Inicialmente Stowe não acreditou nos eventos
que leu, enviando-os para a sra. Willis, então patroa da ex-escrava,
para verificação.41 Assim que recebeu a confirmação esperada,
Stowe propôs sintetizar os relatos da colega e incorporar o que
mais tarde foi publicado como Incidentes da Vida... num capí-
tulo de seu próximo livro, A Key to Uncle Tom’s Cabin (1853).
A manobra de se esconder no sótão da avó era curiosamente
similar àquela utilizada por Cassy, personagem ficcional de Uncle
Tom’s Cabin, para enganar Simon Legree. Stowe, assim, esperava
40 X, Malcolm. “The Race Problem.” Discurso proferido e 23 de janeiro de
1963 na African Students Association and NAACP Campus Chapter. Michigan
State University, East Lansing, Michigan. Disponível em: <http://ccnmtl.
columbia.edu/projects/mmt/mxp/speeches/mxa17.html>.
41 Manuel, 1998, p. 37-38. A correspondência trocada a respeito do caso é
citada e analisada extensivamente em Yellin, 2004, p. 119-123.

284 .
...
Glossário

usar aquilo para corroborar sua própria ficção. Jacobs se negou


veemente a ver as experiências passadas ao lado da avó e dos
filhos apropriadas dessa forma por outra pessoa. Assim, deixou
de responder as cartas subsequentes de Stowe; era como se esta
“a tivesse traído como mulher, difamado como mãe e ameaçado
como escritora”.42 Durante os nove anos que seguiram, a ex-escrava
passou madrugadas em claro treinando sua escrita e desenvolvendo
versões de seu relato. Em 1861, mesmo ano da eclosão da Guerra
Civil, o livro foi publicado em Boston. Não há registros de que
Stowe tenha ajudado a promovê-lo de qualquer forma em nome
da causa que compartilhava com Jacobs; foi antes, a má atitude
de Stowe que impulsionou a gênese dos Incidentes na Vida...43

Há no livro marcas de protesto direto contra Stowe. No capí-


tulo xl, Linda Brent conta como a sra. Bruce opta por quebrar a
lei dos Estados Unidos para encaminhá-la à Nova Inglaterra, à casa
de um senador. “Este cavalheiro honroso não teria votado pela Lei
do Escravo Fugido, como fez o senador em Cabana do Tio Tomás;
pelo contrário, ele se opunha violentamente à lei, mas se encontrava
demais sob sua influência, temendo que eu ficasse em sua casa por
muitas horas. Assim, fui mandada para o interior [...]” (p. 231).
Como em relação a Stowe, a boa vontade do senador é insuficiente
para livrar a fugitiva dos perigos decorrentes de sua condição.

Mais importante, o resultado desse exercício de libertação auto-


ral se constitui não só como protesto contra a abolicionista, mas também
como reconhecimento da inadequação do discurso sentimental para
produzir o tipo de obra que sua autora tinha em vistas: “o interesse da
narrativa de Jacobs reside no fato de que ela tenta se tornar sujeito de um
discurso que tipicamente a toma (a mulher escrava abusada) como seu
objeto.44 O produto dessa inversão é uma literatura interessada
42 Yellin, 1987, p. xix. Registros dessa época se encontram na correspondência
de Jacobs de janeiro de 1853 a maio de 1858.
43 O caso está documentado em Yellin, 1981, p. 482.
44 Nudelman, 1992, p. 961.

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Harriet Jacobs

em enfatizar a relação entre experiência histórica e autobiografia.


Se inicialmente Jacobs emprega a mesma retórica do Sentimen-
talismo, é para abrir mão dela em trechos centrais de sua obra,
substituindo-a por ironia e aquilo que Nudelman chama de uma
retórica do contraste: uma “que busca reconhecer e mobilizar, em
vez de superar, as diferenças entre mulheres negras e brancas”.45

O rompimento definitivo com os pressupostos sentimenta-


listas ocorre no capítulo x, momento em que Linda assume ter
engravidado de mr. Sands para fugir da concubinagem. “Vocês
nunca souberam o que é ser uma escrava, estar inteiramente
desprotegida pela lei e pelos costumes, ser reduzida por lei à
condição de mercadoria [...] Nunca esgotaram sua ingenuidade
tentando evitar o desdém alheio ou escapar do poder de um tirano
odioso; nunca estremeceram ao ouvir o som de seus passos, ao
ouvir sua voz.” Há algo de intransferível na experiência histó-
rica de um grupo que não pode ser traduzido pelo discurso de
uma intermediária. Fazê-lo é, além de uma pretensão ofensiva
à sensibilidade da autora, um ato de falsificação. Vocês nunca
souberam é por excelência uma marca de inversão dos pressupos-
tos do sentimentalismo, pensado aqui tanto enquanto filosofia
que postula uma ligação espiritual entre todos os seres humanos,
quanto como tendência literária dominante no abolicionismo.

Sótão/Mansarda (garret), buraco/Lacuna (loophole) e toca (den)


Até os anos 1970, quando se contestava a veracidade
da narrativa, o local de esconderijo de Linda Brent, munido de
um buraco pelo qual era capaz de assistir ao mundo exterior,
foi interpretado como uma metáfora.46 Essa espécie de cativeiro
45 Nudelman, 1992, p. 957. Ver também Carlacio, 2006, p. 318-319.
46 O texto de Blassingame (1972, p. 373) é particularmente representativo do
ceticismo da época perante a narrativa de Jacobs; ver comentários a respeito
dos argumentos utilizados por críticos pré-1970 em Goldsby, 1996, p. 12-13.

286 .
...
Glossário

representa o isolamento do escravo, consciente do mundo, mas


privado de seu poder de agência. O fato de a veracidade da história
e daquele esconderijo ter sido confirmada com a pesquisa de Jean
Fagan Yellin não impede que se derivem significados simbólicos
do sótão; Jacobs é cuidadosa na exploração dos espaços de sua
narrativa. Katherine McKittrick (2006) interpreta o buraco como
a primeira grande conquista da cativa: Jacobs entra no sótão da
avó e lá se defronta com uma escuridão opressora. Uma vez que
consegue abrir um buraco no telhado, Linda cria para si uma
perspectiva oposta àquela que determinara sua vida até então.
Muito da dinâmica da sociedade sulista é explicado por meio de
relações de vigilância: o dr. Flint vigia Linda, a sra. Flint vigia
ambos, a família de Linda vigia o dr. Flint, e todos os negros torcem
para que os cães farejadores não sejam soltos de suas coleiras.
Uma vez oculta no sótão, Linda se torna “o olho desincorporado
do mestre, enxergando do além”.47 A inversão de situação, para-
doxalmente, permite-lhe repensar sua liberdade dentro de um
espaço de confinamento. Isso não a impede de descrever o cativeiro
como um lugar odioso; durante a narrativa, ele é chamado de cell,
small room, shallow bed, place of confinement, den, prison, dark
hole, dungeon, dismal hole, grave e nook, como se não houvesse
um termo exato que desse conta de qualificá-lo propriamente.48

Teóricos de literatura comparada, Lockard & Penglu (2011, p.


5), exploraram a proximidade do motivo do esconderijo em Jacobs
com o da célebre história de Anne Frank (Diário de Anne Frank,
1947), a jovem judia forçada a improvisar um esconderijo num
quarto oculto durante a ocupação nazista dos Países Baixos. Nos
dois textos, a experiência do confinamento é sentida e articulada em
termos de um asilo psicológico ao qual as protagonistas são forçadas
a recorrer na fuga de seus tiranos, de onde resulta um heroísmo
silencioso, inédito, no contexto de guerra (no caso de Frank) ou
escravidão (no caso de Jacobs). O trauma de Linda Brent, que se
47 Op. cit., p. 43.
48 Gibson, 1996, p. 170.

. 287
...
Harriet Jacobs

sente incomodada por ter que revisitar suas experiências de infância,


aponta para a dimensão diminuidora da vida no cativeiro: já como
mulher adulta, ela se sente trancafiada em seu trauma, tendo que
se esconder de tudo que remeta àqueles anos de sofrimento. Para
Lockard & Penglu, o ato de encarar, de registrar os incidentes e
enfrentar os próprios demônios atesta a compreensão de Jacobs da
“liberdade como um direito de viver e falar abertamente” em uma
sociedade em que, até hoje, “práticas de ocultamento — de opiniões,
associações ou sexualidades — moldam a vida diária” (2011, p. 5).

Algumas notas sobre a tradução dos termos: garret


foi traduzido alternadamente por sótão e mansarda. Linda repe-
tidamente se refere ao lugar como seu den, termo inglês que
pode ser traduzido por covil (de um animal ou monstro) ou
reduto de criminosos. Optou-se pelo termo “toca” em função
de sua proximidade semântica com o primeiro desses sentidos;
ele dá conta de ressaltar as condições subumanas vividas por
Linda Brent. Loophole em inglês, por sua vez, é uma palavra
rica em sentidos: ela significa tanto uma pequena abertura,
quanto um meio para escapar de uma regra, instituição ou lei.

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