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Combos TRANCHE SOMES: POLITICKS DE RESISTENCIRS CarituLo 3 3 INEROS: TRANSGENERIDADES, “ULIDADES HEGEMONICAS E O CONTROLE SOBRE OS CORPOS' Vicente Tchalian Os debates acerca das questées de género tém ganhado cada vez mais destaque, dentro e fora das universidades. Esse fendmeno apresenta-se mais perceptivel na contemporaneidade, devido as possibilidades de trocas de informagées e experiéncias quase em nivel mundial proporcionadas pelas tecnologias de comunicagao. Podemos pensar que esse momento de trocas produz um efeito de visibilizagao de histérias de vidas que, por vezes, escapam as normas sociais que conhecemos. Ao se tornarem mais visiveis, essas historias passam a ser uma das preocupacées das instituig6es de controle e vigilancia dos corpos. Tanto esse efeito de vigilancia quanto esses Corpos que o provocam representam o interesse deste texto. Considerando que nos constituimos enquanto pessoas que vivem em sociedade, por meio de vivéncias e experiéncias he- gemonicamente enrijecidas ao longo da histéria, somos, assim, compulsoriamente moldadas por meio de aparatos discursivos que se produzem e reproduzem cotidianamente através de instituigées como escolas, igrejas, familias, entre tantas outras. TO presente capitulo consiste em uma ampliaga0 do trabalho “Transmasculinidades: invisibi- lidade. escasse de informagdes e apagamento hist6rico”, apresentado no Seminario Fazendo Gener 10 ano de 2017. ul, 35 ORESSORES: POUTICAS. DE RESISTENCIAS Conpos TRANSORES' O corpo pode ser compreendido dentro desta erspectiva como uma plataforma na qual 0 is se ree dai q expressao embody utilizada por Butler ( 2 0.10) para d escrever esses processos, que em portugues $0 traduzidos come Corporificagdes, O corpo é um local onde o Estado exerce poder € controle sobre os seres e a sociedade passa a impulsionar a busca por Padroes ético-estéticos historicamente construidos. Podemos, por exemplo, compreender que nessa estrutura ser rotulada e lida enquanto corpo feminino Pressupde Ocupar uma posicao subalternizada em relacao aos sujeitos Masculinos, En- tretanto, os debates sobre masculinidade hegemOnica presentes na discussao (CONNELL, 1990; 2005) nos levam a compreender que mesmo entre sujeitos hegem6nicos, como € o caso dos homens cisgéneros, ha relacoes de subordinacdo. O mesmo é verdadeiro se considerarmos a existéncia de diferentes feminilidades que estabelecem entre si relagées de poder. Ao incluirmos os corpos trans no debate acerca das relagdes de poder e subordinacao dos corpos, vemos intensificadas essas disputas. Ha de se ter cuidado, entretanto, e destacar que ao mesmo tempo em que os processos aqui descritos constituem ferramentas de cristalizagdo e manu- tencao do sistema vigente, poténcias de resistencia mantém-se em disputa em um movimento de avanco e retrocesso. Por isso, vemos ao longo da histéria, momentos que parecem se repetir; esses momentos podem ser compreendidos como evidéncias noc naeovimento Essa concepcao pode ser observada tanto Connell 1990, Obs nas micro relacées, Por isso a proposicao de relacoes de doe sore das masculinidades hegeménicas e das Compreen Prazeres sexuai: Tavessados pel las estrutura +. 1s$0 7 is de poder; iss Tatos discursi Ps Vos descritos por Butler (2010) Convo rennin RES: POLITICAS DE RESISTENCIAS ef onnell (1990; 2005). Essa construgao pautada na divisdo binaria feminino/masculino interfere e coopta a manutengdo da agéncia do poder do estado? que incide sobre os corpos, principalmente corpos compreendidos dentro dessa légica como abjetos. Desta forma, podemos partir da nogdo de que o binarismo dos sexos e géncros esta imbricado ao processo de construgao das subjetividades. Guattari (2000) traz ao debate a questao da cons- trugao de uma subjetividade capitalistica, como forma de explicar as construg6es subjetivas contemporaneas e seu carater capitalista. A contribuigado que esse conceito oferece é mostrar que os discursos sobre os sexos e géneros sao uma das ferramentas utilizadas para a manutengao desse sistema de subjetivagao. Parte desses processos aideia de que sexualidade e género estejam diretamente ligados ao corpo por uma diferenciagao anat6mica e biologizante, pela qual a existéncia de determinado 6rgao implica ser de um género ou outro (mulher x homem) e ser heterossexual. Sobre essa “territorializagao” dos corpos e 6rgaos, Preciado (2011) propoe como possibilidade alternativa pensar na multiddo queer; 0 autor propde-se a pensar nas “vantagens politicas” decorrentes da nocao de “multidao” em contraposigao a “diferenga sexual”, pontuando ainda que ha dife- rengas entre os movimentos estadunidense e europeu; isso se da, pois, no segundo caso, a fundamentacao se pautou em bases anar- quistas e nas culturas transgéneras emergentes como forte ponto de enfrentamento ao “império sexual”. Caracteriza-se aqui uma “desontologizacao” das politicas identitarias, dado que nao é mais possivel estabelecer uma “base natural” calcada na oposigao bindria dos sexos e géneros. Para Preciado (2011), a “multidao queer” apresenta uma forma de desterritorializagao da heterossexualidade, Para além disso, representa possibilidades de ncia a (heteroynormatizagao dos corpos € sujeitos. oO autor 10 ao mesmo tempo pés-identitaria proposta de resisté caracteriza essa discussao com maidscula em “estado” é uma tentativa de .gdes permeadas por esta instituigd0, nos estas palavras, a fim de proble- las nesta pesquisa imeira letra do sistema de relat 2 Dise Torma a nfo utilizar a pri anifestar dentro deste epi 37 RESISTENCIAS CConpos TRANSGRESSORES: POLITICAS DE RESIS' a historia, como ele ¢ hiperidentitaria. Esse seria um contraponto define, “branca, colonial e straight”. na “multida Segundo o autor, esses corpos ee iopHactestics dsent® queer" representam também desvios e reap ses dbnisores tara 7 da medicina e da pornografia, aise e conte Senda a corpos hegeménicos quanto ordi uee®™ eafastado: eri a feccesclone: sem dogenero", dando-se na apropriacao de cibedpodeesepee os conceitos € discursos. A disbuta apresentada € a resisténcia ou fuga das subjetivagoes sexop: i Pensar que a experiéncia de “ser” de um género ou outro im. plica mais que “vestir” um corpo ou outro, i sya compreendida como um género ou outro, mas uma série de relagdes que Poderag ou nao ser estabelecidas com e dentro desse estado que Molda as regras, pode ser uma forma de compreender os termos em que se dao essas disputas descritas por Preciado. Isso nos leva a pensar que, na hierarquia das rela monia e como propoe Connell, os corpos trans poder © que Butler (2014) indica como poténcia dos Corpos subordinados, ou abjetos. Ao mesmo tempo em que se situam nas linhas de con- fronto e violéncia, apresentam a capacidade de abalar as estruturas do sistema capitalista. iGdes de hege- 'M representar BIOPOLITICA E O DIREITO SOBRE O CORPO: O PROCESSO DE REDESIGNAGAO SEXUAL? Uma das, de género~¢ menino ou menina? ultrassom, ou alte mesmo na hora do bindria pautad ‘em diferencas an; uase todos os seres humanos e, q Sendo a primeira, Classificagées da nossa vida é a — que Ocorre ou nos exames de Nascimento. Essa classificagao atOmicas € compartilhada pot Uando isso nao acontece, como 3 Por redesignact Me a conformer ‘al 0 Sistema Unico de S; ’ S01POS trans em femininos ou masculinos, hi crt 40 termo e ao. Processo em si, is q onioterapi aide compreende as cirurgias e hormé ° as atualmente qual? 38 CoRPOS TRANSGRESSORES: POLITICAS DE RESISrEN cus das essoas intersexuais, pessoa: ‘ oh classificacao do sexol clea eect sem a pos. fe motivos de preocupac¢ao do estado e da ciéncia. isto boss de set observado ainda hoje pela patologizacao desses cor a descritos NO CID-104 em escalas de hermafroditismo. nt ategorizagao dentro de um padrao binario vai configu- rando corpos € moldando formas de agir e se relacionar com ial corpos. Pensar os hn e géneros € as relagées estabelecidas, problematizando a logica hegem6nica, possibilita compreender a necessidade desta divisdo para o funcionamento e manutencao do status quo. Em alguns casos, entretanto, a construc¢ao do préprio corpo seguir rotas diferentes das hegem6nicas. Se pensarmos | didrio de construcao dos corpos generificados, de uma fique a idealizacao pessoal, percebemos que esses processos S€ dao tanto na esfera social quanto subjetiva e individual; talvez mais importante que isso, percebemos também que todos os corpos sao construidos, nao apenas os Corpos abjetos, desviantes ou anormais. Corpos considerados hegem6nicos, ou “padroes”, também se constroem nas mesmas linhas que os corpos trans e outros corpos desviantes; entretanto, ao nao ultrapassarem abarreira do género binario, acabam por passar desapercebidos. ocessos ocorrem nos corpos cisgéneros, torna-se mais dificil perceber seu carater social; isso se da devido ao fato de que esses processos consistem em rituais cristalizados que cooperam para a manutengao do status quo. Quando, entretan- to, pensamos em pessoas trans como performances deslocadas, Percebemos 0 quanto esse processo de construgao é controlado ee estado. oO fato de colocar a mostra 0 carater sdcio- opnderd aries e géneros faz com que esses Corpos desafiem sso sejam situados em zonas marginais de risco € 60 caso sibilidad’ Essa ¢: pode no ritual imagem que corpor! Quando esses pr da Sata) (anual de Classficagdo Intemacional de Doengas da OMS (Organizagdo Mundial item, nafroditismo esta descrito sob a nomenclatura Q56 € derivagdes do mesmo 39 CCoRpOS 1RANSGRESSORES: POUITICAS DE RESISTENCIAS ORF vulnerabilidade. Ao repensarmos Os Conceitos de W4SCUlinidad : bemos que ha um processo de hierarquj, a hegemonia, pereebem ¢ travestis representam uma categoris poieteal cae menos visibilizada que mulheres brancas e regia cisgénero. : 7 : O caso dos corpos trans € Particularmente interessante coes e incidéncias diretas das agéncias de contro} 7 ee le se uma pessoa trans decide fazer cirur, eared tp de acordo com a imagem com his se identi necessario acompanhamento médico com Profissionais de crinologia e psiquiatria, bem como Segulr critérios di portaria 2803/13, que redefine e amplia ° Processo trans no SUS, disponivel no site oficial do Ministério da Satid, com o paragrafo Unico da portaria, compreendem com demanda para processo transexualizador “os transexuais e tra. vestis”. Nota-se na redacao do préprio texto a confusao em definir eutilizar os termos corretos, bem como 0 carater de Padronizacio de usudrias e processos, inclusive determinando faixa etaria para cada procedimento: a) acompanhamento da usudria no Processo transexualizador exclusivo nas etapas do pré e pds Operatério, 18a 75 anos; b) tratamento hormonal No processo transexualizador, 18 75 anos; c) redesignacao sexual no sexo masculino, 21 a75; d)ti- Teoplastia, 21 a 75 ano: ) tratamento hormonal Preparatorio para cirurgia de tedesignacao sexual no Processo transexualizador, 18a 75 anos; f) Mastectomia simples bilateral em usudria sob Processo transexualizador, 21 a 75 anos; g) histerectomia com anexectomia bilateral e colpectomia €M usuérias sob processo transexualizador, 21475; h) cirurgias complementares de redesignagao sexual, 214 75 ano; e varios outros, do er, Ns. fica, é €Ndo. SPOStos ng exualizadg)s le. De acordg “Se Como Usudrias dey ole do pog Blas para Cor Sobre 0 referido Processo, Berenice Bento (2014) desenvolve uM estudo no Projeto Transexualismo, do Hospital das Clinicas de nseXualizador 0 ¢: 5 Por processo tra & mao para ade: édicos lancades Stado compreende uma série de recursos médicos lan militantes tran se Gimentos 300 as normas binérias de género. Alguns movimentos 5 s alegam que o termo nao ¢ adequado, primeiramente por remeter sie em segundo lugar, por ‘Pressupor uma transformagao (CORPOS TRANSGRESSORES: POLITICAS DE RESISTENCIAS Goiania (HCG), onde sao utilizados relatos de usuarias do servi- co a fim de desconstruir 0 ideal de “transexual universal” ou de “transexual oficial” (BENTO, 2014, p. 31). Nos referidos ae evidenciadas situagoes de desconforto e violéncia institucional e estrutural, dado que a autora apresenta a populacao entrevistada como de baixa renda e com as dificuldades financeiras, ainda mais acentuadas mediante a participagao no Projeto. Por se tratar de uma populacao em constante vulnerabilidade social, majoritariamente fora das escolas € mercado de trabalho e excluida das familias ainda muito jovens, fazer parte de um programa como 0 referido nem sempre éuma possibilidade. Conhego alguns casos de pessoas que nao tinham dinheiro para passagem, comida e coisas basicas para o cotidiano do programa. Outro fator que dificulta ainda mais a adesao é que S40 poucas unidades que atendem nossas demandas; segundo a pesquisa de Isis de Melo Maciel, publicada em Salvador no ano de 2017, ha apenas 13 unidades dispostas em 9 estados, dos 26 estados brasileiros que oferecem © tratamento ambulatorial. Isso implica que as pessoas usudrias do servigo ou devem morar perto dessas unidades, ou contar com o TFD (Tratamento Fora de Domiciflio). O problema é que ha poucas vagas e muitas pessoas completamente desassistidas. O que particularmente interessa ao debate é a proposicao de Bento sobre o papel do hospital e dos discursos médicos e psi acerca das transgeneridades: de, nada é enuncia- a fabrica de corpos de reorganizar as No dispositivo da transexualida ¢ao. constatativa. Mais do que um dismérficos, no hospital trata-se subjetividades apropriadas para um/a ‘homenymu- Ther de verdade’. No hospital realiza-se um trabalho de ‘assepsia de género’, retirando tudo que sugira ambiguidades e possa por em xeque um dos pilares fundantes das normas de género: © dimorfismo na- tural dos géneros (BENTO, 2014, p. 79)- 4l CoRPOS TRANSGRESSORES: POLITICAS DE RESISTENCIAS, Conforme Bento, os hospitais e centros ambulatoriais de atendimento a populagao trans vem funcionando como uma form, de se fazer uma assepsia de género a fim de se retirarem quaisquer possibilidades de interpretagao ambigua que coloque em qestag a oposicao homem — mulher. O efeito da apropriagao do discurso médico sobre género e sexo € justamente a extingdo de corpos que desviam da norma, a fim de manter a existéncia da norma em si. Sendo assim, consti. tuimos historicamente um estado onde a heterossexualidade e a cisnormatividade constituem praticas politicas, respaldadas pelag ciéncias médicas, ferramentado pelo discurso juridico e mantidg cotidianamente por meio da reproducao desses discursos. Contudo, conforme nos aponta Preciado, © género nao € 0 efeito de um sistema fechado de po- der nem uma ideia que recai sobre a matéria passiva, mas o nome de um conjunto de dispositivos sexo- politicos (da medicina & representacao pornografica, passando pelas instituicdes familiares) que serao o objeto de uma reapropriacao pelas minorias sociais, (PRECIADO, 2011) Ao pontuar a possibilidade de reapropriagao por minorias sociais de dispositivos sexopoliticos, Preciado parece descrever 0 Processo pelo qual a populacao trans tem passado ao pegar para Si a classificagao género e realocd-la de acordo com suas proprias demandas. Os corpos trans transcendem as normas sociais de género a0 recusar a classificacao binaria e propor a dissolucao dessa constru- Sao social. Ha casos, entretanto, de corpos que aparentam romper com as normas de género, outros que Parecem realocar seus corpos dentro do territério sob regras Parecidas. Ha casos dos corpos cuja tendéncia de assimilacao a norma Produz atravessamentos que os impelem a uma adequacao 2 42 ConPOS TRANSGRESSORES! POLITICAS DE RESISTENCIAS pinarismo de géneros, tendendo as terapias de hormonizacao radical, cirurgias de modificagao corporal e reprodugao de estere- 6tipos sociais de géneros masculinos e femininos. Nesses casos, 0s corpos trans passam, em sua maioria, desapercebidos aos olhos da sociedade, principalmente aqueles que atendem aos critérios anatomicos e performaticos de um ou outro sexo e género bindrio. Um risco dessa assimilagao é a invisibilizagao desses corpos, pro- cesso que, historicamente, produz um efeito de epistemicidio®. Tal efeito tende a dar impressao de que esses corpos nao habitaram outros periodos histéricos e/ou que consistem em um “evento contemporaneo”. Assim como a populacao negra, percebemos esse movimento quando fazemos pesquisas documentais a procura de indicios de populacées trans ao longo da historia. Por outro lado, ha corpos trans que, de alguma forma, nao se encaixam no status quo do género bindrio, como € 0 caso de mulheres trans ou travestis cuja constituigao anatémica, mesmo mediante as terapias hormonais e/ou cirurgias, nao remetem aos corpos anatomicamente lidos como femininos, ou os homens trans de baixa estatura, ou ainda as pessoas trans e/ ou travestis que nao aderem as terapias hormonais e/ou cirurgias. O que vemos nesses corpos é uma impossibilidade de interpretagao, uma falha no pro- cesso comunicacional em que uma das primeiras marcas a serem compreendidas, 0 género, nao é passivel de leitura. Em ambos os casos, de qualquer forma, vemos reacGes e consequéncias sociais distintas. Ao focar especificamente os homens trans e pessoas trans- masculinas, percebemos alguns fatos interessantes. 1) Corpos de homens trans geralmente passam mais desapercebidos pelos estratos sociais; 2) a violéncia contra esses corpos nao atinge Os mesmos ntimeros em assassinatos quanto de mulheres trans; entretanto, quando ocorrem, possuem a mesma intensidade e ctueldade; 3) hé uma grande falha nos dados encontrados acerca 6 —Termo utilizado por Boaventura Souza Santos, presente principalmente no debate acerca das ‘egritudes, racismo e eurocentrismo, remete ao apagamento historico de produgdes materiais Subjetivas de populagdes nao assimiladas pela cultura branca ocidental 43 a de pessoas transmasculinas e homens trans, provavelmente Pely fato de em sua maioria serem lidos e interpretados socialmeny, como mulheres masculinas. CorPos TRANSGRESSORES: POLITICAS DE RESISTENCIAS Por essas observac¢oes, € possivel identificar um ponto de convergéncia da violéncia no Brasil: corpos que performamatiza (BUTLER, 2010) feminilidades sofrem grande violéncia & Tisco de morte. Tal conclusdo nos encaminha a discussao acerca da Le 13.104/2015, conhecida como a lei contra o feminicidio, e sua aceitagio ou nao das mulheres trans. Os mesmos dados fazem questionar que os corpos lidos socialmente como femininos, no caso de alguns homens trans nao identificados como tais, que sao vitimas de assassinatos e sao enquadrados como mulheres fazem crescer as estatisticas de feminicidio. Se, por um lado, ao menos esses corpos conseguem algum respaldo legislativo, por outro, o fato de nao serem registrados de acordo com sua identidade de género torna muito mais dificil o trabalho de identificar os casos de violéncias contra pessoas transmasculinas, a fim de pensar for- mas de combate nao sé 4 violéncia e assassinatos, mas também 3 marginalizacao social, ao apagamento hist6rico e epistemicidio, Possivelmente questionamo-nos por vezes como ocorrem tais violéncias e violagdes. Nao apenas pela falta de informacao coerente sobre 0 assunto, mas principalmente pelas manobras e distorc6es midiaticas que colocam essas violéncias em um status de atos justificaveis; sendo assim, nao sé deixam de provocar descon- forto em grande parte da populacao em geral, como passam a ser ovacionadas por mentes mais suscetiveis a apoiar atos violentos. Por isso, vemos, como no caso de Dandara, os assassinos filmarem © crime sem o menor esboco de vergonha, sendo 0 contrario, or gulho do ato cometido. Para além das violéncias que extrapolam com maior intensida- de anormalidade aparente do cotidiano, justamente as de menor Tepercussao representam riscos que saem da esfera individual. a medida que, mesmo se tratando de centenas de vidas pelos crimes: CCORPOS TRANSGRESSORES: POLIICAS DE RésistENciag goes inteiras foram extirpadas dos re: i constarem nos documentos eleitos ¢ vo silenciamento cotidiano, no aoa corpos aos sistemas normativos reside a e epistemicidio e apagamento histérico de varias Seracdes passadas de pessoas trans. Dai 0 motivo de pensar sobre a assimilacao dos corpos as normas de género binarias e como esse discurso Produ- zido afeta geracdes ao longo da historia. ‘Bistros histéricos Por ‘OMo fontes Confiaveis nto, na assimilacao dos Stratégia que culminano Voltemos a questao dos corpos trans que nao se enquadram nos padrdes e marcas hegemGnicas de masculino e feminino.O que acontece quando essas marcas sao indecifraveis? 0 que acontece quando o discurso nao da conta da hermenéutica dos corpos? O que acontece quando todo 0 aparato de criacao, controle e re- pressao dos corpos se depara com a materializacao da sua propria incapacidade? Serao esses corpos, abjetos, uma falha maquinica do sistema, ou pega especifica que executa funcao especifica para sua manutencao? Ha corpos que transitam entre rotas, criam atalhos eforjam outras possibilidades existenciais. O que acontece com o sistema quando um corpo se torna desviante e cria rotas possiveis €acessiveis? De fato, existem corpos que desviam ou seriam esses, também, parte de um cdlculo da propria maquina? Os corpos trans que extrapolam os limites discursivos do sexo € género, corpos que nao se conformam dentro da estrutura nor- mativa que se manifesta através do binarismo ines cn Corpos que materializam a impossibilidade hermenéutica, art do, assim, Producao de uma subversao do processo compartilha 7 desubjetivagdes projetadas, arquitetadas para fluir de acordo bes © sistema vigente, sero ainda assim corpos que ocupam ae (eterminadas. Mudam-se os corpos, 0s espacos, mas as funs Setiam as mesmas? tot inter pesas fi Essa necessidade estrutural da maquina de dvs eae vecionando nas devidas especificidades parece el de garantit "Mento compulsorio de organizacao dos corpos 2" 45 Corpos TRANSGRESSORES: POLITICAS DE RESISTENCIAS faz parte dos calculos do Poder as de controle, repressao ¢ na cada qual com sua fungag 5 + Os a continuidade do processo que centralizado. Dai as proprias a i ca s chamadas “massas + fee eee enrijecem 0 fluir dos corpos: Seria essa forga de automanutengao tao potente que mesm, corpos que transcendem cotidianamente propria organizacs, sejam continuamente impulsionados a ela? Se assim for, Poderig ser constatada a tendéncia a organiza¢ao produtora de devires en. rijecidos, uma variavel constante da vivéncia humana €M Si? Ainda que ambas as respostas sejam positivas, par que, entéo, a existéncig de corpos que insistem em forjar caminhos alternativos, que se desterritorializam de seus devires e transitam de forma desorga. nizada por entre e para além dos estratos? Realmente escapamos do corpo organizado ou fazemos, também, parte de um plano perversamente engendrado que nos coopta para a Manutencig da maquina-Estado? Seremos corpos ocupando espacos-posicdes predeterminados, presos em um sistema circular, permanente e continuo? Amedida que a mera existéncia de Corpos transgéneros passa aser alvo de preocupacio prioritaria dentro da agenda parlamentar nacional, principalmente no que tange as Bancadas Evangélica e em Defesa da Familia, crescem em ntimero e forca as reacdes de reade- quacao ou exterminio dos corpos desviantes. E assustadoramente alarmante a reacao que nossos corpos trans provocam em pessoas cuja exposicao a violéncia sistémica contra corpos abjetos as com duz aos mais barbaros enfrentamentos, tais como agressao fisica¢ assassinato. Os afetamentos em questao se dao de forma visceral Possivelmente pelo fato de que, ao verem um corpo trans emst# frente, veem afetada sua compreensdao de mundo, suas estruturas mais basicas, seus prazeres e se do conta de que todo 0 apara discursivo no qual construfram suas crengas nao € suficient pat abranger todas as Possibilidades existenciais. CoRmOS TRANSGR RES! POLITICAS OF ae ctse O corpo passa a representar uma via de ma tempo em que serve como Ponto de interesse i dupla. Ao mesmo atim de que haja por meio da Marginaliza ; Co poder do estado, marca que estabeleca os limites de ee eel doeanit uma forma de selecionar espacos, pode ene patie como territorio de fuga; ao ressignificar 0 pr Optio corpo aes oe do que nunca foi nosso, mas deveria ser, abrimos ossibilidadle pa novas formas de ocupar espagos, de utilizar 0 corpo, polemic consequentemente, alte: rar a forma como nos relacionamos e com: preendemos enquanto sociedade, Provavelmente, desta poténcia de transformagao venha o maior medo da sociedade capitalista- patriarcal-racista-machista-LGBTf6bica, o medo de ver seu projeto entrando em colapso. No ano de 2017, assistimos ao horror de casos emblematicos de assassinatos de pessoas trans, como o caso de Dandara dos Santos, que teve 0 video de seu assassinato compartilhado e vira- lizado nas redes sociais, e de Téu Nascimento, homem trans de 24 anos assassinado em Salvador. Esses casos foram marcados com violencia extrema e grande repercussdo. Os resultados do Trans Murder Monitoring (TMM 2015), pesquisa que abrange os anos de 2008 a 2014 apontam que dos 1.731 assassinatos registrados ocorreridos no planeta, 689 ocorreram no Brasil. Segundo o grupo Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (RedeTrans’), criado no ano de 2009 na cidade do Rio de Janeiro, no perfodo de janeiro ajunho de 2017, ocorreram 84 casos de homicidio contra pessoas trans no Brasil, 36 casos de tentativa de homicidio e 1 caso registrado de suicidio. Segundo o monitoramento da organizagao RedeTrans, das as 84 mortes de pessoas trans entre janeiro a junho de 2017, #penas uma das vitimas era homem. cua e ainda mais, dada avioléncia contra aa esa necessdrio, a medida que os corpos ees a Welinhas dey nos discursos que tém sido consti io he la subversao de género e como eles atravessam nossa Dados te Hades do site: htp://redetransbrasil org/index. hum 47 SISTENCIAS, Conros TRANSERESSORES: POLITICAS DE RESISTEN' existéncias. Cada vez mais corpos trans vem sendo Ca Porados a heteronorma, ao binarismo dos sexos e e aihenies ae. O ter. mo “passabilidade” para designar 0 quao Sa oactioen “Orbos nao-trans (cisgéneros) esses corpos trans S| canéo de itil ser, Vemos que ha violéncia em ambos 0s casos, scar quose S Cuja semelhanga aos corpos cisgéneros as fazem nm oe lesaper. cebias, quanto contra os corpos menos invisiveis. “ a de uma critica “anti-passabilidade trans mas uma Possi bili ade de didlogo com 0 intuito de aproximar os corpos, nao em aparéncig ou performance, mas em contato fisico, em corpos pul antes em unissono rumo ao que Preciado descreve como multidéo queer, remetendo menos as assimilagOes e mais aos possiveis pontos de congruéncia. REFERENCIAS BENTO, Berenice. A reinven¢do do corpo: sexualidade e género na experiéncia transexual. Natal: EDUFRN, 2014 BUTLER, Judith. Problemas de géneros: feminismo e subversao da identidade. Trad. Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilizacao Brasileira, 2010, - Relatar a Si Mesmo. Auténtica: Belo Horizonte, 2015. CONNELL, R. W. An iron man: The body and some contradictions of hegemonic masculinity. Sociological perspectives in sport: The games outside the games, p. 141-149, 1990. «i: CONNELL, Raewyn. Masculinities. Berkeley: Univ of California Press, 2005, GUATTARI, Félix. Las tres ecologias. Pre-textos: Valencia, 2000. PRECIADO, Beatriz, Multitudes queer: Notes for a politics of “abnormality”. Rev. Estud. Fem., Florian6polis, vol. 19, n. 1, jan./abr. 2011. Disponivel em: http:/dx.doi -0rg/10.1590/S0104-26X201 1000100002. Acesso em: 8 jul. 2013, as 16:11. 48

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