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a ne i ee ote ik | UMA CAMARA EM BUSCA DA NACAO Uma fita, outra fita, mais outra... Ndo nos agrada a primeira? Passe~ mos a segunda. Nao nos serve a segunda? Para diante entdo! Hé fitas cémicas, hd fitas sérias, hé melancélicas, picarescas, fiinebres, ale- gres—algumas preparadas por atores notdveis para dar a reprodu- ¢ao idealisada (sic) de um fato, outras tomadas nervosamente pelo operador, a passagem do fato. (...) Com pouco tens aagregacao de varios fatos, a histéria do ano, a vida da cidade numa sessio de cinematégrafo, documento excelente com a excelente qualidade a mais de ndo obrigar apensar, sendo quando o cavalheiro teima mesmo em querer ter idéias, Dizem que a sua melhor qualidade essa é, Quem sabe? O pano, a sala escura, uma proje¢do, 0 operador tocando a manivela e af temos ruas, miserdveis, politicos, atrizes, loucuras, (...) triunfos, derrotas, um bando de gente, a cidade inteira, uma torrente humana — que apenas deixa indicados os gestos e passa leve sem deixar marca, passa sem se deixar penetrar... (...). A hist6ria fez-se, 0 fato subsiste, o opera- dor gosou (sic) em compé-lo e talvez outros tivessem reparado. (...) Alguns estetas de atrazada (sic) percepgdo desdenham do cinema- 16grafo. (...) Nenhum desses homens, graves cidaddos, compreende a superioridade do aliviante progresso d’arte. O cinemat6grafo é bem modernoe bem d’ agora. Essa é a sua primeira qualidade. (...) Ed’ outro dia, é extra-moderno, sendo como é resultado de uma resultante de um resultado cientifico moderno. Jodo do Rio, Cinematdgrafo. O cinema, arte do século XX por exceléncia, é a tinica que surgiu do avango de uma tecnologia - do registro da imagem por meio quimi- co até o aprendizado de como fazé-la se mexer — € como conseqiiéncia me A nagéo por um fio direta de investigagées cientfficas. Durante todo o século XIX, cientis- tas haviam perseguido a idéia de construir um aparelho capaz de fixar movimentos répidos, impossfveis de serem analisados a olho nu. Nas suas origens, o cinematégrafo era um aparelho cuja capacidade para reproduzir o movimento pensava-se ser aplicdvel apenas as pesquisas cientfficas. De artificio criado pela “era mecdnica”, que reside, na ver- dade, na projegao de fotos sucessivas em ritmo acelerado, criando a “jlusao” de movimento, seu desenvolvimento se daria pelas necessida- des do negécio do espetdculo, pela eficdcia em fazer de um artefato que brincava com luz e sombras um aparelho capaz de criar ilusdes nado muito distantes de um espetaculo de magica. Esse desenvolvimento do cinema aconteceu, portanto, contrarian- do as expectativas de seus inventores e acabou virando uma mdquina de contar histérias para grandes platéias. Uma maquina extremamente adequada, dadas a sua capacidade de gerar cépias e a possibilidade de um filme ser apresentado simultaneamente em intimeros lugares, para um ptblico ilimitado. Rapidamente, 0 cinematégrafo correu o mundo, conquistando e encantando os espectadores com a exibi¢do de “vistas” ou de pequenos filmes. A cémara multiplicava 0 poder de “conhecer”, abria 4 percepgdo do olhar humano possibilidades praticamente ilimi- tadas. Por meio do cinematégrafo, o sonho de conhecer o mundo ja po- dia ser satisfeito sem a necessidade de viajar. Agora, em vez de relatos de viagens, livros e jornais, bastava ir ao cinema para acompanhar os Ultimos acontecimentos ~ 0 cinematégrafo assumia a fungao de arrolador da vida atual, como a grande histéria visual do mundo. Um rolo de cem metros na caixa de um cinematografista vale cem mil vezes mais que um volume de histéria— mesmo porque nao tem comentarios filoséficos, (Barre- to, 1909, p. WITT) na definig&o de Joao do Rio. Por meio dos filmes de viagens e reportagens colhidos pelos “ca- gadores de imagens” — os cineastas-viajantes, recrutados desde 0 inicio do século XX pelos esttidios cinematograficos franceses ¢ americanos =, 0 cinema equiparava-se 4s exposig6es universais ou & impressao e divulgaciio de fotografias, atendendo a avidez e a curiosidade do publi- 0 sobre 0 estrangeiro, as culturas diferentes e exdticas. Uma cémara em busca da Nagao 245 Desde 1896, a imprensa carioca e a paulistana anunciavam com freqgiiéncia as exibigdes de “imagens animadas” por meio de modernos aparelhos com nomes esquisitos como Omniographo, Animatographo, Cineographo, Vidamotographo, Biographo, Vitascopio, Quinetoscépio (de Thomas Edison, 1891) ou mesmo Cinematographo. Fitas curtas e colegio de “vistas” as mais variadas comegaram a ser exibidas em ca- fés-concerto, teatros de variedades, circos e até mesmo ao ar livre, em Pragas € parques ptiblicos, nesses aparelhos manipulados por artistas ambulantes. A primeira sala fixa de exibigdo foi instalada no coragio do centro comercial, artistico e mundano do Rio de Janeiro, a Rua do Ouvidor, n° 14, em julho de 1897, e chamou-se Saldo de Novidades, logo alterado para Salao Paris no Rio, que oferecia grande variedade de divertimentos visuais e mecAnicos, entre os quais as “vistas anima- das” constitufam a principal atragéo. A dona desse empreendimento era a familia Segreto, e quem o controlaya era o irmao mais velho, Paschoal. Pelo menos até 1903, os irm&os Segreto foram os tinicos produtores dos escassos filmezinhos nacionais de atualidades (cf. Go- mes, 1980, pp. 39-49)". As dificuldades, os empecilhos e a demora no desenvolvimento do cinema no Pais sao atribufdos a insuficiéncia na produgio e distri- buigdo de energia elétrica em escala industrial. S6 a partir da regulari- zagao do fornecimento, em 1907, 0 comércio cinematografico floresceu, com a abertura, em poucos meses, de dezenas de salas de ci- nema,” sendo boa parte delas na recém-aberta Avenida Central, ani- 1 Salvo outra indicagao, toda a reconstitui¢do dos anos iniciais do cinema no Brasil ap6ia-se nessa obra. Afonso Segreto, em freqiientes viagens para aquisigio de novas vistas e aparelhos, considerado 0 tespons4vel pela primeira filmagem realizada no Brasil, em 1898, a bordo do paquete no qual retornava da Franca. J4 a exibigdo das primeiras vistas nacionais s6 foi realizada no ano seguinte, no saldo dos irmaos Segreto. Para os historiadores do cinema nacional, 0s anos que vio de 1896 a 1912 sao considerados “a época de ouro” desse cinema, caracterizado pelos documentérios ou do “natural”, como eram chamados entio, e pelos cinejornais, ambos fora da concorréncia com a produgo ‘estrangeira. Para maiores informagoes, ver, entre outros: Bernardet (1979a); Aratijo (1985); e Gonzaga (1996). 2 Somente de agosto a dezembro de 1907 Vicente de Paula Aratijo contabilizou a inauguracdo de 18 novas salas de exibigdo no Rio de Janeiro (cf. Aratjo, 1985, pp. 197-228). 26 A nagéo por um fio mando a importagao de filmes estrangeiros e estimulando a produgao cinematogréfica nacional. Nao foi, com certeza, por mera coincidéncia que nesse ano a Comissao Rondon deu inicio As suas experiéncias com o cinema no sertéio de Mato Grosso. Ou seja, no momento mesmo em que a entao Capital Federal era invadida pela “febre do cinematégra- fo”, a camara e os operadores cinematograficos j4 chegavam a selva, por intermédio de uma comiss4o militar construtora de linhas telegrafi- cas “estratégicas”, dispostos, também, a registrar nas peliculas virgens dos filmes a conquista e o devassamento de uma tegiao “desco- nhecida’”. A Comissio Rondon ensaiava os primeiros passos na trilha dos “cagadores de imagens” ¢ na produgio dos “films naturais” que causavam sensa¢ao nas duas maiores cidades brasileiras de entio, E essa “febre”, que assolava 0 Rio de Janeiro, contaminava cada vez mais gente disposta a tudo para assistir a uma atragdo oferecida em meio a shows de variedades, cafés-cantantes, como espetaculo gratuito em cabarés e bares, muitas vezes acompanhado por piano ou pequenas orquestras: Cinematégrafos... E 0 delfrio atual, Toda a cidade quer ver os cinematégrafos. O carioca bem o homem das manias, o bicho insacidvel e logo saciado das terras novas. Toma um prazer ou um divertimento, exagera-0, esgota-o, aborrece-o ¢ abandona-o. Um empresério habil que conhecesse as variagdes do piblico ganharia aqui em poucos anos uma fortuna de Creso. (...) Em todas as pragas hé cinemat6grafos-antincios, ajuntando milhares e milha- es de pessoas. Na Avenida Central, com entrada paga, hi dois, trés, ¢ a concorréncia ¢ tao grande que a policia dirige a entrada e fica a gente esperando um tempo infinito na calgada, Encontro em companhia do jovem secretario ministerial Oscar Lopes, o meu velho amigo bardo Belfort e logo este me diz: ~ Ha7 pecados mortais, 7 maravilhas do mundo, as 7 idades do homem, os 7 sdbios da Grécia, as 7 pragas do Egito... O Rio tem 7 prazeres: 0 bicho, 0 maxixe, 0 vissi d’arte, os meetings da oposicao, a policia, a propaganda A Europa curva-se ante o Brasil, ¢ 0s cinematégrafos. (Cr6nica de domingo de Jodo do Rio na Gazeta de Noticias, apud Araijo, 1985, pp. 205-206). Uma camara em busca da Nagao 247 O periodo entre 1908-1911 € apontado por varios estudiosos do cinema brasileiro como a sua “€poca de ouro”, tanto pela rapidez com que se abriam salas de exibigao quanto pelo grande ntimero de filmes produzidos. O cinema produzido no Brasil nas Primeiras décadas deste século era dominado por imigrantes, marcado pela marginalidade artis- tica, técnica e comercial. A maioria dos técnicos ¢ empresérios da 4rea do cinema, tanto em Sao Paulo quanto no Rio de Janeiro, era composta Por estrangeiros, aventureiros ligados ao comércio que nem sempre gozavam de boa fama no mundo dos negécios. Em Sao Paulo, desta- cou-se o espanhol Francisco Serrador, que, desde 1905, exibia filmes como ambulante e conseguiu montar a primeira sala fixa de exibigao de fitas na capital, batizada Eldorado. Tornou-se um grande empresa- tio do ramo, dono dos cinemas Eldorado, Bijou, Bijou Theatre, Allam- bra, Asturias e Odeon e dos teatros Radium e Iris, montando, a partir de 1909, a Companhia Serrador, iniciando a producao de filmes “can- tantes”, nos quais os cantores se postavam atrds da tela e “dublavam” as cenas (Galvao, 1975, pp. 18-54)*. Outro que fez carreira no cinema na capital paulista foi José Medina, descendente de espanhdis, fotégra- fo, artista de teatro amador e Proprietario de uma casa de pinturas. Em 1916, associou-se a Gilberto Rossi, italiano, conhecido diretor e pro- Prietario de escola de cinema, com quem formou a Rossi Film, produ- zindo filmes “posados”, naturais, de propaganda e jornais para divulgag&o das realizagdes do governo Washington Luis. Esse cinema, produzido em Sao Paulo, nasceu no Bras,e em suas imediagées, feito em boa parte por estrangeiros, artistas de teatro, mas também artesdos, barbeiros, torneiros e funciondrios ptiblicos, Realiza- do de maneira improvisada, em fundos de quintais e em poucas horas, era popular e “marginal por definigdo”. O nimero de salas de cinema na capital paulista aponta Para a rapidez com que esse novo hdbito se difundia e para sua presenga intensa no dia-a-dia da cidade: 3 _As sociedades teatrais mantidas pelas associagdes mutuais e culturais de imigrantes estao nas origens do cinema produzido na cidade de ‘Sao Paulo, desenvolvendo-se junto com ele ¢ formando artistas, diretores e cinegrafistas. As informagdes sobre o cinema ¢ © teatro em Sio Paulo referem-se todas a essa fonte. A nagéo por um fio ‘Silo Paulo atravessa uma epidemia cinematogrdfica. Nao hé rua, travessa on bultro que nio tenha o seu cinematographo (...). Fazem antincios espetaculo. 408, € A noite sacm bandas de miisica, acompanhadas por grande mimero de garotos em infernal algazarra. (Oesp, 1911, apud Galvao, 1975, p. 20), No Rio, 0 alemao Cristovao Guilherme Auler deixou de fabricar moveis na Rua do Ouvidor para dedicar-se ao negdcio de cinema; fun- dou, em sociedade com o fotdgrafo Julio Ferrez, o cinema Grande ci. nemat6grafo Rio Branco, iniciando, também, a produgio de filmes; outros jé eram ligados as “artes fotograficas”, como foi 0 caso dos franceses Marc Ferrez e filhos, que ampliaram seus negécios como proprietarios do Cinematégrago Pathé, ou do portugués Antonio Leal, fotégrafo de O Malho com atelier 4 Rua do Ouvidor, que comegou a filmar em 1905. Outros produtores de cinema foram 0s italianos José Labanca ¢ Jécomo Staffa, até entéo empresdrios do jogo do bicho e fundadores, junto com Antonio Leal, da Photo Cinematographia Brasi- leira. Eram proprietdrios, inicialmente, de uma “f4brica de vistas” — que depois passou a realizadora de filmes de enredo — e, também, de uma sala de exibigaéo, o Cinema Palace. Muitos desses homens de ci- nema combinavam suas atividades como produtores de fitas com a de importadores de filmes ¢ proprietarios de salas de cinema, numa com- binagao de esforgos que teria permitido o desenvolvimento do cinema brasileiro durante os primeiros anos. Mas nao se pode pensar que a aventura do cinema estava circuns- crita ao Rio e a Sao Paulo. Rapidamente, ele se espalhou por todo o Pais. Desde 1860, hd registros de exibigao de vistas trazidas da Europa Por meio de cosmoramas em Manaus; em 1897, noticia-se a chegada do pantoscépio “com proje¢ao de quadros de Paris”, em Sao Luis; os antincios para a primeira sesso de cinema em Aracaju datam de 1899; e, em Belém, desde 1909, o espanhol Ramén de Banos, pro- prietario da empresa cinematografica Paré-Films, produzia filmes docu- mentérios que exibia também em toda a regio (cf. Moura, in Ramos, 1990, pp. 25-26). 4 Para outras informagées sobre o cinema nas demais regides do pais, ver na mesma coletinea o artigo de Lobato (1990, pp. 63-95). Uma camara em busca da Nagao 249 Até 1907, todas as filmagens brasileiras limitavam-se a “vistas” ou “assuntos naturais”, ou seja, esses filmes nao tinham um enredo, nao contavam nenhuma estéria. Em pouco tempo, teve inicio a produ- go de “curtas-metragens de atualidades” que abriram caminho para os filmes de ficg4o cada vez mais longos. Mas o que marcou a produgao cinematogréfica brasileira nos seus primeiros anos foi o grande nime- to de filmes de “atualidades”, a chamada “cavacdo”, em que cinegra- fistas realizavam, sob encomenda, filmes sobre ceriménias politicas, exposi¢ées, inaugurages de fabricas, lojas, estradas de ferro, etc. Essa produgao estava atrelada a uma elite mundana, endinheirada, interessa- da em promover seu nome, produto, empreendimentos ou aconteci- mentos politicos, j4 que esses filmes eram feitos para agradar seus financiadores. Em resumo, “a camara do documentarista da época era a camara do poder” (Bernardet, 1979, Pp. 26-27), néo apenas porque filmava rituais e personagens ligados ao poder, mas pelo tipo de pro- dugo e enfoque pelo qual o assunto era abordado. Os filmes de atuali- dades foram os precursores das Teportagens cinematograficas e dos cine-jornais’, que apresentavam noticias, cobriam acontecimentos, re- gistravam nascimentos, enterros e outros eventos. Esses documentdrios sdo uma amostra da forga e da agilidade do cinema em abordar quase simultaneamente, como os jornais e revistas, os acontecimentos da vida cotidiana das cidades. Os filmes de enredo ou “posados”, como se chamavam entao, s6 surgiram apés 1908, quase sempre inspirados em temas policiais ou fa- tos dos noticiarios politicos, reconstituigao de crimes famosos e recen- tes que, explorados pela imprensa, impressionavam a imaginagdo Popular, constituindo uma verdadeira crénica criminal do seu tempo. Noticias fantdsticas que animavam a venda de jornais também eram 5 Acompanhando a moda dos filmes falados ou “cantantes”, esses jornais de atualida- des evolufram para filmes-revistas focalizando a atuacdo de alguns politicos e aconteci- mentos politico -sociais. Alguns obtiveram grande sucesso, chegando a ser exibidos mais de mil vezes, como Paze amor, produzido em Sio Paulo por Cristovao G. Aulere filmado pelo fotégrafo Alberto Botelho, da Gazeta de Noticias; nele fazia-se uma satira que nfo poupava ninguém: o presidente Nilo Pecanha, Rui Barbosa e Hermes da Fonseca disputando a principal figura feminina da fita, a “Presidéncia” (cf. Gomes, 1980, p. 47). 250 A nagao por um fio objeto de filmagens, como o caso das irmas xip6fagas operadas, no Rio, em maio de 1907, com o testemunho de fotdgrafos e cinegrafistas. Paralelamente, os cinegrafistas pioneiros aventuravam-se ocasional- mente na produgao de filmes cémicos ou dramaticos, de adaptagées de revistas musicais famosas ou as “fitas cantantes”, de criticas Sociais e de costumes urbanos, que também atrafam o interesse do Ptiblico. O cinema nascia, portanto, sem a seriedade e a aura de veracidade atri- buidas a fotografia. Sua finalidade era divertir e entreter. Esses “filmes de enredo” n&o superavam a marca de seis ao ano e © seu tempo de projecao nfo era superior a uma hora. A linguagem desse embrionério cinema nacional Permaneceu “primitiva” até o inicio dos anos 20, mantendo-se dentro de uma estratura dramdtica rigidamente compar timentada na qual a definigdo dos caracteres ¢ situagdes, assim como 0 desenvolvimento do enredo, ficava na inteira dependéncia dos letreiros explicativos. (Gomes, 1980, p. 30) O filme era feito por cAmaras fixas que tegistravam as cenas numa su- cessdo de “quadros”, entrecortados por letreiros que apresentavam di4- logos (no caso dos filmes de ficg&o) ou ofereciam informagées e noticias que a linguagem cinematogrdfica, sozinha, nao conseguia fornecer. A linguagem desse cinema era ainda restrita 4 apresentagdo de cenas que se sucediam no tempo; s6 apés 1915, mais ou menos, o cinema serd capaz de dizer “enquanto” mostra cenas, Ppersonagens e cendrios alternados, criando uma estrutura narrativa que construisse 0 acontecimento num momento tnico (Bernardet, 1991, pp. 32-37). Aparentemente, a estrutura dos filmes nacionais ainda se basea- Va, até 0 infcio dos anos 20, numa “rigida compartimentagao em episé- dios, nfo se praticava e nem se experimentava desenvolver a continuidade narrativa”, O Pprimeiro a tentar isso, nos filmes de ficgdo, foi José Medina em Exemplo regenerador, “curta-metragem de cunho moralizante que se desenvolve com relativa fluidez” (Gomes, 1980, pp. 30-31 e SO). Foi somente a partir de meados da década de 20 que a média anual de Pprodugao de filmes dobrou, acompanhada de signifi- cativo progresso na qualidade técnica. Quando, enfim, o cinema mudo nacional alcangou o dominio da linguagem cinematografica e uma ex- | Uma cémara em busca da Nagao pressdo estilfstica com certa plenitude artistica, o filme falado jit fava em todas as partes. No inicio dos anos 10, como vimos, o cinema era uma re na vida de grande parte das cidades brasileiras e j4 influenciava o Portamento dos sujeitos contemporaneos a ele, suas experiéncias: modos de viver urbanos. Feito as pressas, encenado com atores a tes das intimeras companhias dramaticas das colénias de imig aproveitando cenérios, o cinema, nos seus primérdios, caracterizay; pela pobreza, pela improvisagao e pela falta de qualidade técnica, apesar disso, atrafa um ptiblico Avido de novidades. Essa preseng: tensa do cinema nas cidades, com todas as atividades que envol os “espetéculos” cinematogrdficos, foi paulatinamente redifinindo | bitos, estilos de vida e instituindo novas relagées sociais. E 0 que depreende das lembrangas de uma escandalizada “testemunha ocul; sobre essas mudangas de costumes: A esquina da Rua Sete de Setembro [no Rio de Janeiro] ficava o ci Odeon, onde, a noite, mogas estrangeiras vestidas de branco tocavam violit No Pavilhdo Internacional, de Paschoal Segreto, defronte da Galeria C1 “As sessOes de Animatégrafo, as primeiras horas da noite, sucediam as exil de filmes obscenos, iguais aos que se mostravam em certos bordéis” de de um realismo torpe. A sala enchia-se de deputados, senadores, comerel tes, dos homens mais sérios ¢ de mulheres da vida... (Amado, 1956, p, 2 As platéias do cinematégrafo eram também pouco exigentes, teressadas apenas na novidade das imagens animadas, sujeitando salas de exibigdo precdrias, improvisadas, sem condi¢ées de seg! ou higiene, que eram chamadas pela imprensa de verdadeiros “ vous do que hd de mais chic na nossa sociedade”. Além disso, os presdrios de cinema tinham de enfrentar, com freqiiéncia, prob! com a policia, que censurava a exibigéo de fitas alegando que atentavam contra a decéncia ou fechava salas de exibigado ao sab vontade das autoridades, ja que inexistiam regras fixas para a cel Diversao barata e muitas vezes “pemniciosa”, segundo alguns cron © cinema era ainda uma forma de lazer acessfvel ¢ circunscrita as ses populares urbanas e, por isso mesmo, considerada Pperigosa, p influenciava e “estimulava “os sentimentos menos delicados da 252 A nagéo por um fio através das projegdes de cenas de sexo, adultério, de bebedeira, assas- sinatos, jogos, etc.” (cf. Lourengo Filho, apud Teles, 1995, p. 26). A forga sugestiva das imagens, particularmente das “imagens animadas”, capazes de agir sobre os sentimentos, de sugestionar e im- pressionar o piiblico, j4 era percebida como um perigo e uma ameaga por médicos higienistas ¢ educadores. Ao mesmo tempo, 0 alcance so- cial do cinema, o seu potencial educativo no sentido de vulgarizador de conhecimentos e as suas miltiplas aplicagdes j4 comegavam a ser objeto de interesse por parte de instituigdes e profissionais que vislum- bravam nas telas a possibilidade de educar de maneira “discreta e agra- davel” um grande ntimero de pessoas. Uma das primeiras iniciativas na utilizago do cinema no ensino e na pesquisa cientffica é creditada ao Museu Nacional, no Rio de Janeiro, que inaugurou, em 1910, a sua filmoteca, enriquecida em 1912 com os primeiros filmes dos indios Nhambiquaras que Roquette [Pinto] trouxe de Rond6nia e as admirdveis peliculas com que a Comissao Rondon documentava as suas exploragées geogréficas, botdnicas, zoolégicas e etnogréficas. (cf. Azevedo, 1958, p. 209)" Esses filmes eram projetados em conferéncias ¢ cursos destina- dos aos alunos das escolas publicas secundarias do Rio e ao “grande piiblico”. O Museu ficava aberto trés dias na semana para receber as visitas organizadas pelas escolas ou individualmente. Tratava-se jé de um embrido de um “servigo educativo” em que os alunos, prova- yelmente, eram levados a conhecer as cole¢des do Museu e “assistiam 6 O trabalho dessa autora acompanha as tenses em torno do cinema e as propostas para sua moralizagdo via instituigao da censurae, particularmente, da produgao de filmes educativos, no contexto das experiéncias de renovacao educacional das décadas de 20 e 30. 7 As primeiras iniciativas pré-cinema educativo, no entanto, datam do final da década de 20, coma reforma do ensino no Distrito Federal (1928) e arealizagio da““1* Exposicao de Cinematografia Educativa”, organizada por Jonathas Serrano, professor de Histéria do Colégio Pedro II e docente da Escola Normal do Rio, um dos precursores desse movimento. Para uma visio dos educadores sobre as aplicagées do cinema a educago, ver: Serrano e Venancio Filho (s/d). Uma camara em busca da Nagéo 253 [a] demonstragées praticas” ilustradas por diapositivos e filmes (cf. Ri- bas, s/d, pp. 111-112)°. Acompanhando de perto esse movimento em torno do cinema, a Comissao Rondon buscaria incorporar o registro cinematogrdfico j4 no infcio da construgao da linha de Mato Grosso ao Amazonas, em 1907, quando “alguns operadores (...) pela primeira vez, empregaram a cine- matografia no sertao”. Embora esses trabalhos tivessem sido contrata- dos com pessoal civil competente, ligado a um importante e conhecido estidio fotografico carioca, a Casa Musso, as provas rea- lizadas nfo foram bem-sucedidas, fracassando, também, “outros profissionais civis (...) diante das asperezas da sala de visitas do ser- 1G” (cf. Relatério do tenente Reis, apud Magalhies, 1941, p. 313)’. Mesmo apés esse fracasso, Rondon continuou tentando obter “vistas cinematogrdficas” dos trabalhos na linha telegrafica, problema sé resolvido quando um oficial se ofereceu para adquirir o material ne- cessdrio a criagio de um servigo cinematografico. As tinicas referén- - cias A montagem desse servigo pela Comissao sao as desse oficial, o entao tenente Luiz Thomaz Reis: Um dia, me apresentei ao entio cel. Rondon e me propuz (sic) a adguirir o material necessdrio @ criagao do nosso servigo, que eu me comprometia a executar. Com dez contos de réis (fora o maximo que o Coronel Rondon pudera separar da verba: material”), embarquei para aEuropa, onde comprei, em Londres ¢ Paris, o material indispensdvel, naquele tempo o mais perfeito, 8 O.antor informa que desde 1893 0 Museu Nacional ja havia dado inicio & divulgagao de suas pesquisas antropol6gicas, abrindo suas portas ao piblico, Em meados da década de 20, quando assumin a direco do Museu, Roquette-Pinto ampliou as visitas para os cinco dias da semana e intensificou a realizagao de conferéncias e palestras, transfor- mando o Museu numa “casa de ensino”. Em 1929, o Museu jé atendia a cerca de 30 escolas com mais de 2 mil alunos, que assistiram a 100 filmes e mil diapositivos (Ribas, sid, pp. 111-112). 9 Todas as informagSes seguintes sobre as primeiras experiéncias da Comissao com 0 cinema que nfo estiverem referenciadas encontram-se nessa obra as pp. 373-391. Esse livro, cuja primeira edig&o € de 1928, dedica um capitulo aos relatos sobre a produgao de imagens pela Comisséo, intitulado “A photographia e a cinematographia no sertao— répidas notas sobre a expedig&io Ronuro-Curisevu”. 24 A nagéo por um fio © segui para o sertéo com sete mil metros de films da marca “Lumitre tropical”, material que nao existia no Rio. E provavel que durante sua estada em Paris, ele tenha aprendido “a trabalhar com camera de filmar nos Esttidios Pathé, de onde [trou- xe] equipamentos cinematogrficos” (Miranda, 1990, p. 275). Vale as- sinalar que a sua viagem & Europa, em 1912, para aquisigao de equipamentos e materiais para a montagem do servico cinematografico da Comissao, acontece num cendrio desanimador Para a produgio ci- nematografica nacional, quando se encerra um ciclo de extrema flores- céncia artistica ¢ comercial, cedendo cada vez mais espago aos filmes estrangeiros, que, além de mais modernos em termos técnicos e artisti- cos, chegavam aos exibidores Por um prego muito menor do que os fil- mes nacionais. Isto demonstra que, sob o aspecto da pentiria financeira, a trajet6ria do cinema na Comisso Rondon nao tem nenhuma aproxi- magao com o mercado cinematogrdfico e 0 marasmo que marcou a produgao nacional nas décadas seguintes, em escala mundial.” O cinema realizado pela Comissfo, ao contrério, niio sofreu os percalgos da produgao cinematografica nacional. Nascido sob a inspi- racdo de um organismo financiado pelos Ministérios da Guerra e da Indiistria, Viagao e Obras Publicas, apoiado por homens como Rondon © 0 chefe do Escritério Central, que creditavam & documentagao visual uma importancia fundamental na estrutura dos trabalhos que condu- ziam, o cinegrafista tinha todas as condigées necessérias para experi- mentar e realizar o seu trabalho. Filmando sem interrupgao, entre 1912-1940, esse profissional nao precisou curvar-se as exigéncias de patrocinadores e nem mesmo as pressées do mercado exibidor, a néo Ser para garantir o ptiblico para os seus filmes do natural, 10 Nesse momento, o cinema jé havia pasado, em escala mundial, por uma brutal iransformagao de uma producao artesanal para uma industria lucrativa e poderosa em alguns centros da Europa enos EVA, Comacrise na produgéo cinematogréfica brasileira, em 1912, argumentistas, roteiristas e diretores retornaram aos trabalhos antigos, quase Sempre no joralismo ¢ no teatro. Alguns poucos técnicos e cinegrafistas, entre eles Antonio Leal, os irmaos Paulino e Alberto Botelho, por exemaplo, persistiriam fazendo filmes nacionais, sobretudo documentérios e jornais cinematogréficos, entdo com uma Stescente dificuldade em exibi-los (cf. Gomes, 1980, p. 57). Uma cémara em busca da Nagao 255 Comparando as diferengas entre os Tegistros fotografico e cine. matografico, o chefe do Escritério Central mostra que a fotografia e o cinema ja tinham, no final dos anos 20, um passado e uma histéria na Comissao Rondon: Nao hd quem desconhega as vantagens da documentagdo fotogrdfica, prin- cipalmente quando se trata de aspectos e panoramas do sertao bruto, nem tio Pouco (sic) quem ndo se deleite com o folhear de vistas que reproducam ay belezas naturais, as cenas ¢ os cendrios de quaisquer exploragées. A cines matografia goza de maior prestigio ainda e, no caso particular das expedigoes da “Comissio Rondon’, sobe de importncia, pela fuculdade de documentap 08 costumes dos nossos aborigenes, as suas festas, as suas dangas, suas Ceriménias fiinebres, etc.(...) As primeiras expedigées do General Rondon slo anteriores aos progressos atuais da cinematografia (...) mas foram sempre acompanhadas, quanto possivel, pelo (...) servigo fotogrifico. (Magalhites, 1941, p. 372; grifos meus) E oportuno destacar alguns aspectos, nessa fala, que podem elu cidar as razdes do investimento na produgao de imagens pela Comis- so, bem como a diferenciacao entre os dois tipos de registro adotadog, A primeira diz respeito a caracterizacao da fotografia como um “d mento” e a percepgfo das vantagens que ela oferecia, a sensagio de prazer na fruigao de imagens, particularmente daquelas que “falavam' do insélito, de aventuras nao vivenciadas, de riscos e perigos do bruto, distante e exético. A fotografia e, posteriormente, o cinema eram usados como “técnicas modernas” e “cientificas” de registro e ri produgo da realidade, captando informagées, documentando o ayanco do conhecimento cientifico sobre a Tegiao, e como instrumento p melhor conhecer/investigar, com a vantagem de as imagens pod. ser reproduzidas e exibidas tantas vezes quantas fossem necessari questao que ele coloca é a diferenciag&o entre os objetos/temas rem documentados pela fotografia/fotégrafo e pelo cinema/cinegré ta. Aos primeiros parecia estar reservado o papel de compor “albur vistas”, enquanto aos segundos competia documentar costumes miaticas, af incluindo os dos indigenas, que poderiam ser melhor ¢ dos e mostrados pelo cinema. A nagéo por um fio _ A divisiio tematica de tarefas entre a fotografia e o cinema talvez « © parte, ser creditada ao fato de as primeiras experiéncias *iicedidas da Comissao com o cinema datarem apenas da década Ir 11) ©, portanto, a fungao de registrar as etapas do trabalho e as “ce. _ fins @ eenarios” das expedigdes s6 pudesse contar, até entZo, com a fo- fgfafia, © que teria aos poucos consolidado essa pratica; ou, talvez, _ fi Tunglio da melhor adaptagao da técnica e dos equipamentos foto- graficos As marchas aceleradas ¢ a cobertura mais préxima da cena a fer documentada. Outro aspecto que se destaca nessa fala é que o cine- ma interessava 4 Comissio pela sua faculdade de documentar temas e eostumes indigenas, este sim o objetivo de seu investimento. Ou seja, 6 cinema no interessa por si mesmo, mas como um meio, uma lingua- fem pela qual pode-se produzir, representar e veicular aspectos da rea- lidade que a Comissao julgava importante captar. De qualquer modo, a convivéncia, até 0 encerramento dos traba- thos da Comissao, dos dois tipos de linguagens — a fotografia e o cine- ma ~ € um indicador da compreensiio das possibilidades ¢ limites de cada tipo de registro em fungio das sensagdes despertadas, do ntimero de pessoas atingidas e, principalmente, das alteragdes nos modos de percepgdo experimentados pelas populagdes dos grandes centros urba- nos, alvos do seu investimento imagético. Assim, o cinema nao substi- tuiu a fotografia nos registros do sertio, mas compartilhou com ela a responsabilidade da produgdo de documentos visuais, variando a lin- guagem em fungio do que deveria ser registrado. Perceber qual era 0 interesse da camara do cinegrafista e como ele operava seus recortes do sertio talvez nos diga mais sobre o uso do cinema pela Comissao Rondon. Comparando-se os temas fotografados com as “{magens anima- das” colhidas pelos cinegrafistas da Comissao, nota-se que estas lti- mas falam mais de aspectos curiosos das expedig6es, como 0s saltos e eachoeiras, serras e outros obstdculos a serem transpostos, das cagadas de onga e dos costumes indigenas e, muito raramente, do registro siste- matico do avango nos trabalhos de construgio da linha telegrafica, mesmo das Ultimas etapas, quando o cinema ja havia sido incorporado somo técnica de registro usual para a Comissio. Ainda que em alguns filmes seja evidente o interesse pelo documentério antropolégico das Uma camara em busca da Nagao 257 culturas indfgenas, a constatacaio dessa repeti¢ao temdatica voltada para a divulgacao de paisagens virgens e aspectos genuinamente nacionais indica 0 uso do cinema, pela Comissio, também com o desejo evidente de seduzir platéias, atendendo ao gosto do piblico sempre “Avido de sensagdes fortes”, acostumado As fitas naturais que mostravam perigos aventuras, 0 insdlito € 0 exdtico. Com equipamentos e materiais comprados na Europa, foi organi- zado, em 1912, o servigo de cinematografia da Comissiio Rondon, se- guindo o cinegrafista para o sertio, onde deu inicio as suas experiéncias de filmagem, das quais resultou, provavelmente, o pri- meiro documentério de longa-metragem brasileiro: Depois de seis meses de servico, sob minha observagio pessoal, pois que era @ primeira vez que fazia isso no sertéo, tendo por felicidade estudado a “emulsio” e 0 tempo de sua eficiéncia em zonas quentes ¢ hiimidas (sic), 0 que me levou a preparar aparelhos de madeira especiais para revelar os filmes no local, foi entéo obtido com vantagem o film conhecido por “Sertées de Matto-Grosso”. (Cf. Reis, apud Magalhiies, 1941, p. 315; grifos meus) Por seu depoimento, esse oficial j4 teria conhecimentos e expe- riéncias anteriores sobre cinema, além de sua formagao em desenho e reconhecida “habilidade artistica”. De qualquer modo, filmar no sertiio era um desafio novo para ele, exigindo estudos ¢ experiéncias com os materiais adquiridos e a confecgiio de equipamentos apropriados ao clima e aos trabalhos expedicionérios. Esse relato da a dimensao do in- vestimento financeiro e humano, por parte da Comisso, na produgio de registros cinematograficos, ao mesmo tempo em que aponta para a disposigao e a capacidade de seus oficiais em superar limites técnicos materiais, produzindo e/ou adaptando conhecimentos e equipamentos necessdrios a realizagAo dos trabalhos. Aos poucos, o tenente Reis tor- nou-se um “estudioso” das questées referentes & arte cinematografica, que se [comprazia] em resolver, com seu préprio esforgo, todos os complica- dos problemas técnicos dessa especialidade, onde tudo lhe € hoje familiar, desde a mecfnica e quimica dos films, até as mais infimas minudéncias dos trabalhos correlativos 258 A nagéo por um fio na opiniao do chefe do escritério central da Comissio, Amflcar Botelho de Magalhies. A captagdo de “imagens animadas” na Comissao Rondon esteye a cargo desse profissional'’, que se tornou também o chefe da Seciio de Fotografia e Cinematografia, parte integrante da estrutura burocratica do Escritério Central, com sede no Rio de Janeiro, que centralizava ainda a coleta e organizagiio dos trabalhos e pessoal envolvido, fazia a contabilidade e produzia os desenhos da Comissio Rondon. Aos pou- cos esse oficial conquistou o reconhecimento como o “cinegrafista de Rondon”, sendo responsdvel por toda a produgaio cinematografica da Comissao, além de acompanhar os trabalhos fotogréficos a cargo da secdo que comandava e, ainda, realizar outros filmes, por determina- go de seu superior, documentando visitas de inspegao As fronteiras ou a campanha contra os rebeldes de 24, comandada por Rondon. Alguns trechos de seus relatérios permitem inferir sobre 0 seu grau de liberdade durante as filmagens, bem como sobre os limites de sua atuagao. Reportando-se aos superiores sobre as ocorréncias havi- das durante as filmagens de Rituais e festas Bororos, 0 cinegrafista re- memora a decisiio de realizar esse filme quando o Capito Amflear Magalhies — um “oficial de modema cultura, amante dos processos de documentagao grafica e cinematogréfica” —, ao assumir a chefia do Es- critério Central em 1915, 11 Com experiéncia em desenho ¢ alguma “habilidade artistica’”, esse profissional aos poucos realizou seu aprendizado sobre fotografia e cinema, ao que tudo indica no interior da Comisséo Rondon, transformando-se num perito nessas duas modalidades de registro visual. Além disso, em fungao da exigéncia de “dedicagao integral” que Rondon impunha aos seus colaboradores, o engenheiro, desenhista, cinegrafista e fotdgrafo Reis desen- volveu trabalhos em quase todas as areas abrangidas pelos trabalhos da Comiss&o, como © registro antropoldgico e principios de antropometria. Sua atuacao sempre foi marcada, segundo Rondon, pelo senso de “disciplina, energia e dedicagdo como soldado e como um técnico que é capaz de servir, com vantagem no Estado Maior, na sua especialidade © no respectivo servigo”, como consta em sua Fé de Oficio, 12 E foi como “cinegrafista de Rondon” que os seus trabalhos chegaram até os nossos dias. Com esse titulo existem filmes documentirios, folhetos e textos dedicados a Tecuperar e situar a produgo cinematogrdfica desse militar, considerado por todos um Pioneiro do documentério nacional. Sobre a obra de Luiz Thomaz Reis, ver: Embrafilme, Major Luiz Thomaz Reis ~ 0 cinegrafisia de Rondon (1982); Noronha, Jurandyr Passos (diretor). O cinegrafista de Rondon, Realizagio Embrafilme, 1979. Uma camara em busca da Nagéo 259 organizou o estudo dos indios Bororos de Sto Lourengo, tribo que conserva Tituais de tradigdes dignas de registro. Foi entdo que tive a incumbéncia de tomar 0 filme (...) com os rituais Bororos, depois o Pantanal, com cagadas de ongas € os “Saltos Iguassii”. Subentende-se que ele recebeu ordens expressas do que docu- mentar, mas ndo um detalhamento em termos de roteiro que o orientas- se sobre 0 como filmar. Mais adiante, ele afirma que comegou o trabalho de filmagem “cujo programa eu previra”, 0 que indica a liberdade de ago que des- frutava na produgiio dos filmes, do como realizar seu trabalho; as esco- Ihas das cenas, o tratamento que daria a elas, as definigées de angulo e enquadramentos eram questées de sua competéncia exclusiva, ainda que a definig&o do que ¢ quando filmar estivesse centralizada nas maos do comandante da Comisso e de seu auxiliar mais préximo. Mesmo. porque ele viajava sozinho para desincumbir-se de suas missGes, nao havendo com quem compartilhar as opgGes feitas no momento da to- mada das imagens, além disso, as escolhas ¢ decisées exigiam um co- nhecimento técnico apurado, do qual ele era 0 unico depositério. O segundo filme da Comissao seria “colhido”, em 1913, durante a expedig4o Roosevelt-Rondon, quando o cinegrafista disse ter “rece- bido ordens de acompanhd-la para obter um film da viagem”. Por di- versas circunstancias, porém, entre as quais ele nfo aponta o seu pedido de “exoneragiio”"* dessa expedigio, o resultado dessas filma- 13 Esse episddio, em que o tenente Reis, 0 médico e 0 botinico dessa expedigao encaminharam um abaixo-assinado comunicando 0 abandono de seus trabalhos, em 1914, por discordarem da redugao de alimentos e equipamentos imposta ao pessoal da comissao brasileira em comparagao com aqueles destinados & comitiva americana, pode indicar a importncia que esse profissional havia adquirido, em apenas quatro anos de trabalhos, no interior da Comissio Rondon. Apesar de Rondon, em seu comunicado ao ministro do Exterior, ter caracterizado esse comportamento como “desleal ¢ antipatrié- ico”, aparentemente o tenente niio sofreu nenhuma puni¢&o, apesar da sua condicao de oficial permitir, inclusive, imputar-Ihe pena por desergdo (cf. Magalhies, Expedi¢ao cientifica Roosevelt-Rondon. Anexo n° 5. Relatbrio apresentado ao Sr. Cel. Candido M, da S. Rondon, chefe da Comissito Brasileira, pelo Cap. Am{icar Botelho de Magalhies, ajudante da expedic&o, 1916, p. 12), Do relatério do ajudante ao chefe da Comissio podem-se inferir as razées apresentadas pelo cinegrafista, j4 que ele afirma ter deixado 260 A nagito por um fio gens nfio o agradou mas 0 filme, embora “incompleto” e sem “a felici- dade do primeiro, devido 4 pressa da viagem”, “foi publicado com ° titulo: “Expedig&o Roosevelt” e exibido também em 1915, durante as conferéncias do Cel. Rondon, no Teatro Phenix”. De simples acompanhante/registro de viagens e expedicdes da Comissao, o cinema parece ter-se aventurado, algumas vezes, como uma atividade independente, quase auténoma, seguindo um Programa especifico, definido provavelmente por Rondon em conjunto com o chefe do Escritério Central, capitéo Amflcar Botelho de Magalhies, e o cinegrafista, tenente Luiz Thomaz Reis. Alguns filmes foram “roda- dos” apenas pelo cinegrafista, que viajava sozinho para desincumbir-se das tarefas de filmagem, o que dava a ele certa independéncia e liber- dade para definir o que e como registrar. A “tomada” do filme sobre os costumes dos indios bororos na colénia de Sao Lourengo, em Mato Grosso, a filmagem de cagadas de onga no Pantanal mato-grossense e 0 registro dos “Saltos Iguassi” sao alguns exemplos desse tipo de si- tuacdo, todos descritos pelo cinegrafista em seu relatério semestral ao chefe do Escritério Central. Todo esse longo “programa”, abordando trés temas diferentes, foi “colhido” em apenas cinco meses — entre outu- bro de 1916 e marco de 1917 — e montado para compor 0 terceiro e me- lhor filme da Comissao, de acordo com a imprensa da época, com o nome De Santa Cruz, do qual infelizmente nao sobrou sequer uma seqiiéncia. : Gragas ao habito militar do registro detalhado dos trabalhos reali- zados, podemos acompanhar as impresses do cinegrafista, seus im- passes na tomada de imagens, as poucas surpresas da viagem, sua emogdo ao avistar uma povoacao “absolutamente indigena, auténtica no exético de tudo que a caracteriza”, ou simplesmente a tomada de um simples movimento, tudo minuciosamente relatado aos superiores. A partir deles, procurei, sempre que possfvel, acompanhar e comparar o filme efetivamente montado, as opgées feitas, as énfases colocadas nos letreiros, etc. claro desde 0 inicio, “especialmente ao nosso companheiro Reis, que absolutamente ndo deveria pensar sequer em substituir films por conservas alimenticias e reveladores por doces e aveias, ¢ que os animais necessdrios ao servico de cada um eram sagrados” (idem; grifos mens). Uma camara em busca da Nagao 261 Vale destacar que nao foi possivel fazer isto integralmente para todos os filmes, pois s6 restaram alguns fragmentos de Os sertoes de Mato Grosso, © primeiro filme da Comissio (1912-1913); da ultima parte incluida em De Santa Cruz, 0 terceiro filme produzido em 1917, editado também como Rituais e festas Bororos (1917); e do filme co- lhido na exploragao do Rio Ronuro, editado em 1924 como Ronuro, selvas do Xingu. Além desses filmes produzidos pela Comisso Ron- don durante a realizagao dos trabalhos de construgio e exploragio, tra- balhei com a montagem feita provavelmente em 1931, intitulada Ao redor do Brasil, somando quase uma hora de projegdo de diversos tre- chos filmados entre 1924-1930, data do Ultimo filme da Comissio Rondon. Os outros filmes realizados pelo tenente Reis, dos quais so- breviveram cépias, como Operagées de guerra, também chamado Mato Grosso e Parand, de 1925, registrando a Tepressdo aos rebeldes de 24; Parima, fronteiras do Brasil (1927), Viagem ao Roraima (1927), os dois primeiros documentarios das viagens de Rondon como inspetor de fronteiras, sio documentos de outros servigos realizados por Rondon, mas j4 sem conexéo com a Comissao, nao constituindo o interesse central deste capftulo. Além dos limites impostos pelas lacu- nas nessa documentagao visual, é importante mencionar que nao traba- lhei com as imagens nas medidas, velocidade e outras opgoes feitas pelo cinegrafista, mas com cépias restauradas e telecinadas, copiadas em video. Além desses filmes, 0 “cinegrafista de Rondon” teve uma ex- periéncia como cinegrafista comercial que, ao que tudo indica, resu- miu-se a um tinico filme de propaganda, realizado sob encomenda da firma Asensi & Cia, proprietaria de grandes seringais nos Rios Ji-Para- nd, no limite entre Mato Grosso e Amazonas, realizado em 1917. Mes- mo se tratando de um filme publicitério, a incumbéncia para “tomar o filme da Indistria da borracha em Mato-Grosso e no Amazonas“ foi determinada por Rondon a esse profissional, que para isso percorreu a regiao de propriedade dos seringalistas filmando “2.000 metros” de programa. Dividido em cinco partes e classificado como um filme de nao-ficgdo, recebeu 0 titulo de Ouro branco ¢ foi exibido, com certeza, no Rio de Janeiro e em Manaus, mostrando “as belissimas paisagens do nosso interior, revelando a navegagao, os acidentes naturais, que a 262 A nagdo por um fio dificultam e, enfim, a vida do seringueiro”"’, Ainda que sua intenggo fosse mostrar o progresso da indtistria da borracha, registrou também cenas do processo de fabricagao do caucho, da colheita de castanha- do-para, de costumes dos trabalhadores, etc. Sua condig&o de militar e expediciondrio e a necessidade de avangar no ritmo determinado pelos outros trabalhos a serem realiza- dos pela Comissao atormentavam constantemente 0 cinegrafista: (...) 0 expediciondrio-artista faz duas expedig&es, enquanto o que apenas relata a viagem faz uma. Certas viagens a marchas forgadas, em que nfo se perde tempo, num toca-toca para a frente, siio um verdadeiro marttrio para o artista, que ndo tem oportunidade de repousar o sentimento, afim de poder coordenar melhor os elementos do seu trabalho. Nao sou amigo das viagens de urgéncia, quando ha um objetivo de arte a obter. (Grifos meus)’ Desse relato, apreende-se uma outra finalidade atribuida ao regis- tro cinematogrdfico — documentar as viagens e explorag6es ~ € os pro- blemas que isto acarretava para o cinegrafista, pois, mesmo nesses casos, ele considerava importante buscar o melhor Angulo, selecionar imagens bonitas ou de interesse para 0 publico, para que o resultado final de seu trabalho fosse também um produto artistico. Para esse ci- negrafista, 0 cinema era um instrumento de investigacdo e registro da realidade, embora fosse importante também a sua elaboragao artistica enquanto realizador do filme. Nao se tratava simplesmente de deixar a 14 Cf, publicidade anunciando o langamento desse filme em Manaus, no Teatro Poli- teama, publicada no Jornal do Comércio de 26/07/1919, p. 1 (apud Costa, 1987b). Cinemateca Brasileira. Nesse amtincio, 0 nome do cinegrafista vem acompanhado da informagdo de que ele pertencia 4 Comiss4o Rondon, bem como noticiava a exibigao do filme “com éxito” nos principais cinemas do Rio de Janeiro. Infelizmente, nao restaram cépias desse filme nem foi encontrada outra referéncia do cinegrafista a ele, que permitisse estabelecer algumas comparacdes ou aproximagdes com os seus filmes produzidos pela Comissao Rondon. 15 Ministério da Agricultura, CNPI, Expedicao ao Rio Ronuro, Relatério do capitéio Luiz Thomaz Reis sobre os servigos fologrdficos e cinematogréficos (1945, p. 111). Essa expedigao foi organizada em 1923 para exploragaio do Rio Ronuto, o principal afluente, até entio desconhecido, do Xingu, e durou sete meses, percorrendo cerca de 500 quilémetros. Uma camara em busca da Nagao 2a camara ir registrando cenas, “captando”, “colhendo” ou “obtendo” imagens que depois seriam editadas. A intervengiio e presenga do ope- rador é fundamental; cabe a ele “coordenar os elementos do seu traba- lho”; dai a necessidade de observagio acurada, de deixar “repousar os sentimentos”, sem pressa, para obter o melhor resultado. O martirio do cinegrafista crescia com a monotonia das paisa- gens, com a auséncia de aspectos interessantes a serem registrados, 0 que nos da uma pista tanto do roteiro que ele gostaria de cumprir quan- to do que o cinema deveria registrar: O meu fim era surpreender animais no seu natural modo de viver (...). Mas nem sempre se obtém o que se deseja; o meu tempo durante a viagem toda foi empregado nessa expectativa (sic). Nenhum animal consegui ver em condigdes de registrar-lhe aimagem no filme (...). Fui, pois, ludibriado quanto aos meus propésitos. Vendo que nao conseguiria resultado algum das minhas esperas na proa da canoa, limitei-me a tomar aspectos da viagem. Mas isto ndo poderia encher um programa, pois estes eram mais ou menos parecidos € a repetigdo indefinida produziria efeito enfadonho. Essas impress6es desanimadoras, anotadas nos primeiros dias da viagem pelo Ronuro, iniciada a 25 de julho, quando ele dizia nutrir ainda “grandes esperangas” em relagao ao desconhecido que os espera- va, acentuaram-se com o passar dos meses e, a 3 de setembro, a des- crenga € 0 cansago jd haviam tomado conta do expedicionario-artista: Nada que interessasse cinematografia, a nao serem aspectos do rio, sempre os mesmos. Uma calamidade! Nem um animal, nem um detalhe de certa importancia, movimentos d’dgua que pudessem atrair a aten¢Go; nada encon- tramos digno de ser filmado. Mesmo em viagens como essa, quando ele recebeu ordens ex- pressas de Rondon para acompanhar e documentar os trabalhos de ex- ploragdo desse rio, tudo parece indicar que a preocupagao maior do cinegrafista na Comissao Rondon era buscar imagens diferentes, uma sucesso de paisagens novas, registrar sensagdes, exibir a natureza agressiva, animais exéticos, imagens que impressionassem, e nao ser apenas © registro seco e enfadonho do real, dos trabalhos feitos, ete, Duas idéias sobressaem em suas rememorag6es sobre a “caca de ima- 4 A nagéo por um fio pene” # buen da diversidade/alteridade de paisagens e animais e a quesiao do ritmo, da agilidade, do movimento e aco. Nesse filme, 0 quarto produzido pela Comisséo Rondon, foram utilizados 2 mil me-. tro de pelicula que documentam “todo o trabalho de levantamentos e 08 extudos de exploragdo”, que demoraram sete meses; uma vez edita- do em 1924, com o titulo Ronuro, selvas do Xingu, o filme era “tipico © caraeteriza bem um servigo de exploragao ao estilo da Comissio” (ef, Resumo de Reis, apud Magalhaes, 1941, p. 375)"*. Em outra ocasiao, o tenente Reis comenta o quanto a idéia de realizar um filme de uma cagada de onga no Pantanal mato-grossen- se © seduzia, pois seria “um trabalho inédito no Brasil”,'’ detendo-o ‘apenas a dtivida se poderia fazer um “trabalho correto, conforme a opi- nido dos entendidos”. Aqui o surpreendemos numa rara men¢ao ao mercado cinematografico, aos criticos ¢ a possibilidade de 0 seu filme nado agradar. O seu interesse pelo tema foi expresso nestes termos: “a luta entre uma onga e um cagador a arma branca: era o ideal para o trabalho que eu desejava fizesse um bom complemento ao programa jd impresso de outros assuntos brasileiros”. Além de mostrar sua preocu- pag&o com o registro de imagens e assuntos emocionantes, com a bele- za e as cenas de efeito, o cinegrafista também aponta para o procedimento aparentemente ainda usual de ir colhendo imagens sem preocupagao com um roteiro fechado; ao que tudo indica, j4 que ele repete isso em outras passagens de seus relatérios, era no processo de edigao e montagem que o cinegrafista, ele préprio o montador, selecio- 16 A missdo do cinegrafista, além de realizar o “filme do Xingu”, era documentar os costumes dos fndios que habitavam aquelas regides, tomar dados antropométricos fotografé-los, trabalhos aos quais nao pode se dedicar mais porque contava com apenas uum ajudante para os servigos cinematogréficos. 17 Essa filmagem foi realizada na fazenda Campoleda, préxima a Corumbé, de propriedade do Senhor Leoncio Nery, seu antigo colega da Escola Militar, em janeiro ‘de 1917 (Cf. Relatério do 1° Tenente Luiz Thomaz Reis sobre os servigos de cinematografia e fotografia [realizados] de outubro de 1916 a margo de 1917, p. 10. Suplemento n° 7 [a0] Relatério dos trabathos executados durante o ano de 1916 pelo Escritério Central no Rio da CCLTE de Mato Grosso ao Amazonas, apresentado ao Cel. Candido M. da S, Rondon pelo Cap. Amflcar B. de Magalhies, apud Comisso de Linhas Telegraficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, microfilme 328, pp. 472-512). | | | Uma cémara em busca da Nagao 265 nava aquilo que lhe interessava aglutinar, compondo uma narrativa em que encadeava e combinava varios “programas” filmados em momen- tos e com intengGes distintas, que dispostos entre letreiros constitufam um filme. Essa liberdade de agrupar os planos, de fazer experiéncias na hora da montagem, a possibilidade de filmar metragens maiores do que © roteiro previsto e de poder “completar programas” ja iniciados, tanto com novos planos como reaproveitando trechos de outros filmes, so caracterfsticas do processo de produgio do filme mudo."* Essa é, alids, a expressao da propria natureza do filme mudo daquele perfodo, em que a narrativa — construfda pelas imagens com auxilio apenas de letreiros — nao era ordenada nem seqiiencial. Todo o peso desse cinema estd na valorizagdo e autonomia das imagens que estruturam o discurso © a comunicac4o, com o recurso de luzes, sombras, letreiros, cortes e montagens. Essa modalidade do discurso do filme mudo sugere também pis- tas sobre 0 tipo de registro/coleta de imagens feitas pelo cinegrafista, a flexibilidade dos roteiros, a possibilidade de ir completando os “pro- gramas” na medida em que os temas vdo sendo “‘colhidos”, 0 habito de misturar imagens de diferentes locais, expedigdes, os cortes e acrésci- mos realizados pelo montador (que era também o cinegrafista), ques- tOes que nos remetem para as origens da produgdo cinematogréfica. Naquele momento, o cinegrafista acumulava as fungdes/competéncias de roteirista, diretor, cinegrafista, laboratorista e montador, tarefas que nao estavam separadas umas das outras e foram, no caso da Comissio, realizadas pelo tenente Reis, com 0 auxflio de operadores de camera e auxiliares de laboratério, contratados como diaristas. Estamos abor- dando um momento em que a produgdo cinematogréfica era, ainda, re- sultado de um trabalho artesanal anterior a transformagao do cinema 18 No cinema mudo, as filmagens em metragens ¢ a liberdade de criago do diretor/ci- negrafista/montador (funedes geralmente exercidas pela mesma pessoa) permitiam, tanto em termos de criagdo quanto de custos econdmicos, “‘que até mesmo as linhas gerais da continuidade se definissem depois de terminada a filmagem. O veiculo cinematogréfico eraextremamente flexfvel, pois ndo havia motivo fisico algum que impedisse de se cortar de um assunto para qualquer outro” (cf. Reiz e Millar, apud Antonacci, 1991, p. 44). ii A nagéio por um fio em uma industria moderna que instituiu uma divisdo do trabalho com base em competéncias rigidamente definidas. As imagens filmadas dessa forma eram, depois, descartadas ou selecionadas e dispostas, em laboratério, umas apés as outras num pro- cesso de montagem, que se constitui entdio como uma “atividade de sintese”. E a combinagao desses elementos — Angulo, enquadramento e montagem — e de suas modificagdes ao longo do tempo que constitui os elementos lingiifsticos caracterfsticos do cinema e construiu uma “linguagem cinematogréfica” (cf. Bernardet, 1991, pp. 35-37). Todos esses procedimentos, mostra esse autor, deixam claro que “a lingua- gem cinematografica é uma sucessao de selegdes, de escolhas”, de ma- nipulagdes que valem tanto para o documentério quanto para o filme de ficedio, o que torna ingénua qualquer interpretagao do cinema como uma “reprodugao do real”. Um exemplo desse procedimento de montagem comum no cine- ma mudo € a reunido das imagens da cagada de onga, juntamente com a documentagiio das festas e rituais dos fndios bororos e vistas dos “Saltos Iguassti” compondo o terceiro filme da Comisséo, montado em 1917, dividido em cinco partes e exibido no Brasil, apenas em 1920, com o titulo De Santa Cruz. Seu programa original, no entanto, dividia-se em seis partes: “Rio de Janeiro e S40 Paulo”, “Expedigao Roosevelt”, “Jogo de bola dos indios parecis” e as outras trés cenas da vida e costumes dos indios bororos. Esse filme, o melhor de todos os realizados pela Comissao, “na opiniao da imprensa que se ocupa de films”, ficou muito conhecido & época, pois foi exibido no Carnegie Hall, durante as conferéncias de Roosevelt, em 1918, e nos cinemas de Nova York, subtitulado Wilderness. A versao exibida nos EUA, com a qual o tenente Reis tentou ne- gociar um contrato de distribuigdo com a Interocean Company, parece ter pretensdes mais cientificas e antropolégicas. Considerado pouco atraente para 0 mercado americano, o filme foi remontado em Nova York numa edigio mais compacta e com mais apelo comercial do que 0 original, incluindo-se as cenas da cagada de onga e as vistas do “Sal- to Iguassu”. Dele, infelizmente, sobreviveram apenas as trés tltimas partes, que foram montadas também, de forma independente, com o tf- tulo Rituais e festas Bororo em 1917, e algumas cenas do jogo de bola Se Uma camara em busca da Nagao 267 dos parecfs. As tinicas referéncias sobre ele constam no relatério da viagem do jé capitdo Reis aos Estados Unidos e nos comentarios elo- giosos do chefe do Escritério Central da Comissao: a g “De Santa Cruz” nao s6 constituiu 0 melhor film da Comissao, como, em absoluto, rivaliza com os melhores films tomados do natural, sem nenhum artificio. Possuo intimeras apreciagées, espontaneamente publicadas por profissionais da cinematografia, que 0 colocam entre os melhores films, quanto énitidez e quanto ao conjunto artistico, ai compreendidos os desenhos caracteristicos de arte moderna que emolduram os seus letreiros, escritos em bom portugués. Por toda a parte tem sido exibido com sucesso e com aplausos de assisténcias bastante notaveis. As partes referentes aos saltos Utiarity ¢ Bello, ¢ aos costumes dos indios Bororos de Mato Grosso, tm despertado admiragao, especialmente quanto a certas dangas indfgenas, até entio completamente ignoradas dos centros Civilizados e que revelam o vigor e a agilidade fora do comum, dessa notavel hagdo selvicola. (Magalhaes, 1941, pp. 390-391, nota 85; grifos meus)" O cinema a servigo da Comissiio nao criava “artificios” ou ilu- sdes, apenas registrava, com arte e nitidez, costumes indfgenas até entao ignorados nos “centros civilizados”; sua fungao talvez esti- vesse justamente af: revelar aos civilizados aspectos desconhecidos do interior do Pafs. Mostrar o Brasil ao Brasil. A publicidade de sua exibigio em S40 Paulo, nos cinemas Central e Royal, em agosto de 1920, destacava que ele era “uma concepgéo dramética do natural, [com] cenas revividas dos passados tempos de Anhangiiera e Ttapeti- ninga. Como viviam os {ndios e como festejavam as suas guerras e os seus ritos. Cagada de onga ao natural. O salto Iguassu”. Dividido em duas Partes, que correspondiam a cinco atos, ele reproduzia uma viagem pelo Mato Grosso, feita pela Comissio Rondon entre “tribos selvagens”. Sua 19 Esta pesquisa, no entanto, nao localizou nenhuma critica, nem comentario publicados Pela imprensa, sobre a exibicdo desse filme na década de 20, entre os recortes de jomais coletados e organizados ‘pelo Escritério Central da Comissao, a exemplo do farto material que documenta a apresentacdo do seu primeiro filme, Os sertdes de Mato Grosso, em circuito comercial em 1915. A nagao por um fio Mm Siio Paulo, Santos e Campinas rendeu 10:042$025, equi- lentes a um ptiblico de mais de 20 mil espectadores (cf. Bernardet, 1979), Siio interessantes suas observagées/inquietagdes durante a “cap- fagio” dos filmes, como sua impaciéncia com os contratempos ou re- servis Com que outros expediciondrios recebiam seu trabalho, que acabavam por interferir e alterar seus planos de filmagem. Isto ocorreu com 0 programa do filme sobre os bororos, editado posteriormente com 0 nome de Rituais e festas Bororo em 1917, que deveria conter assuntos mostrando 0 “cardter de tradic&o da raca, nos seus trajes pri- mitivos (...) nos quadros de dangas e cenas ao ar livre”. Em face das objegdes do encarregado do posto do SPI, responsavel por esses indios j4 aldeados, e contrério as filmagens com as fndias nuas, alegando ser isto uma “imoralidade”, o cinegrafista depara com impedimentos que nada significavam “do ponto de vista cientifico ou artistico”, vendo-se na situagao ridfcula de quem tinha se abalado do Rio de Janeiro “para tomar um filme indigena, onde os filhos da selva aparecessem vestidos com as roupas compradas no Parc Royal: uma boa comédia”. Apés esperar dias seguidos para “obter o filme correto”, ele aca- bou por tomar o “filme que me foi facultado imprimir”, mas, o que ele julgava fundamental — as ceriménias funerdrias reservadas que ocor- riam no interior do Bahyto — nao foi possfvel filmar, pela “absoluta in- diferenga deste [encarregado] em relacao a fitas”. Lastimava, acima de tudo, perder as cenas do interior do Bahyto, que teriam provocado “o espanto, o horror, a comogdo e as lagrimas” dos expectadores e dariam ao seu filme “um cardter de obra-prima até hoje nao conhecido em filmes do natural” — tal a capacidade dos fndios bororos de exprimir nos rostos e gestos suas emogdes e paixdes duran- te as ceriménias fiinebres. Afinal, diz ele, © indio bororo, em todo o seu ritual, € um sentimentalista apaixonado, fervoroso; 0 seu rosto tem um estupendo jogo de musculatura: nenhuma academia de arte possue (sic) esbogos de semelhantes expressdes, nem gestos que se Ihe assemelhem, tal a fora das linhas que lhes imprimem nas suas fisionomias sob 0 dominio das paixdes. A dor, o desepero, a alegria, 0 Tiso, Uma cémara em busca da Nagao 269 a gula, ddio, amor, citime, enfim tudo quanto a face humana exprime no tefiigio da intimidade os bororos reproduzem nos seus tituais 2° Cabe ressaltar a aguda percepeiio do cinegrafista para a riqueza de emogées e paixdes expressas nessas cenas que registravam a cultura indigena e para a perfeita adequaciio delas ao cinema mudo, no qual a forga das imagens sustentava a narrativa sem a interfer€ncia de pala- vras ou sons. O cinema era, portanto, um meio, uma linguagem capaz de registrar as expressdes, os sentimentos e os gestos desses rituais in- digenas e torné-los compreenstfveis para platéias “civilizadas” e sepa- radas, geograficamente, por milhares de quilémetros, e culturalmente, Por crengas, praticas e valores diametralmente opostos. Um pouco mais adiante, nesse mesmo telatorio, ele deixa ainda mais clara sua compreensao sobre a arte cinematogréfica: Ha entre eles [os bororos] praticas inocentes e outras verdadeiramente horri- veis; ora, em cinematografia, uma arte que como todas as outras, passa por tantas modalidades quanto mais de perto tem de acompanhar as inclinagées € gosto do piiblico, o que é horrivel é que agrada; tanto mais barbara é.a cena, tanto melhor para tonificar os nervos gastos das nossas platéias, vidas do sensacional (...).”! Ainda que ironizando a avidez do publico brasileiro pela barba- tie, ele acena com a possibilidade de que suas escolhas, pelo menos em parte, levavam em consideragio 0 gosto e as preferéncias quanto as te- miticas e as emoges que essas platéias buscavam ver exibidas nas te- las. O “cinegrafista de Rondon”, porém, parecia querer encontrar um meio-termo entre 0 “seco” registro “cientifico” da tegido e dos costu- mes indfgenas as fitas fantasiosas que empolgavam e atrafam as pla- téias para os cinemas nas grandes cidades e, também, nas pequenas vilas do interior do Pais. Mesmo que algumas filmagens tenham sido 20 Comissio de Linhas Telegraficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, Rela- t6rio 1916, Microfilme 328, p. 476, 21 As descrigdes do cinegrafista encontram-se em seu relatorio (apud Comisséo de Linhas Telegréficas de Mato Grosso a0 Amazonas, microfilme 328, p. 10). 7 A nagdo por um fio feitas como um instrumento de investigagao cientffica, um meio para desvendar e registrar a realidade e, portanto, a “verdade” do interior desconhecido, nada impedia que as imagens colhidas fossem depois edi- tadas e montadas com outras cenas “mais empolgantes”, para atender &s expectativas do grande publico com vistas 4 sua exibi¢do comercial, Os relatos deixados pelo cinegrafista permitem explorar outra or- dem de questées, como os aspectos técnicos durante as gtavacées, en- volvendo desde a duragéio dos planos, o ritmo das filmagens, a Posigao da camara (€ os problemas técnicos de enquadramento ou agilidade dos equipamentos) e a metragem de filmes usualmente utilizados por assuntos, até os equipamentos utilizados, o processo de revelacao das “peliculas” e de montagem, af incluindo os cortes, 0 agrupamento dos planos, a fluéncia na narrativa, etc. Tomemos alguns exemplos: nas fil- magens sobre os bororos, ele afirma que so péde obter um programa de “1.200 metros de pelculas”” e de acordo com a discriminagao dos assuntos filmados, que ele enumera, podemos avaliar qual o interesse temético do cinema da Comisso Rondon. Em primeiro Ingar, vém as dangas indigenas, com 580 metros, seguidas de cenas da “industria” na aldeia, com 200 metros; logo a seguir, as cenas de Pescarias, com 180 metros, e empatadas, com 120 metros cada, as cenas dedicadas aos tra- balhos indfgenas na colénia/posto do SPT ¢ a série de “retratos” com closes dos rostos dos indios. Em alguns filmes como esse, nos quais a tematica indigena pre- valece, pode-se observar o interesse do cinegrafista em filmar de per- to, aproximando sua cAmara dos rostos dos indios, o que indica a inteng&o de uma documentagdo de cardter etnografico e o registro de aspectos fisico/raciais e adornos corporais. Atentar para essas escolhas de Angulo e enquadramentos definidas pelo cinegrafista é importante como forma de pensar o tratamento dispensado as culturas dos grupos indfgenas num contexto de homogeneizagao e nacionalizagio de uma 22 Em 1909, alguns filmes ja eram feitos com mais ou menos 800 metros e mais de 20 quadros narrativos; os filmes considerados de média metragem tinham cerca de 3 partes © duracio de aproximadamente 40 minutos. Esse dado permite avaliar a dimensio em Metros ¢ 0 tempo médio de durago dos filmes da Comissio, j4 que eles eram divididos em 5 partes, chegando, enti, perto de 1 hora de projegdo (cf. Gomes, 1980, pp. 46-50). Uma camara em busca da Nagao an cultura dominante, levada a termo pela Comisséo Rondon. O modo como ele capta imagens dos indios por meio de uma série de planos aproximados, unidos por fusdes e escurecimentos, criou muitas vezes momentos de grande efeito dramatico, principalmente quando essa se- qiiéncia nao é um prolongamento de um fluxo narrativo nem guarda tela¢do com a imagem anterior. Esse é 0 caso das poucas cenas que restaram de Os sertées de Mato Grosso ou nos “retratos” tirados dos bororos em Rituais e festas Bororos; este tiltimo apresenta imagens ex- tremamente interessantes, porque mostram o interesse dos bororos pela camara cinematogréfica; em muitas cenas, eles se aproximam e olham curiosos “para dentro” do olho da camara, sorriem e fazem “pose” para o cinegrafista, completamente a vontade com 0 equipamento, Cinegrafista Luis Thomaz Reis entre os {ndios do Curivesu durante as filmagens de Ao redor do Brasil. Reproduzida do livro Indios do Brasil (Rondon, 1946). Os recursos de close-ups e a busca de detalhes evidenciam ainda um “senso de angulagdo” por parte do tenente Reis, que o diferencia de muitos documentaristas de sua época e até dos cineastas de filmes de ficgao, j4 que esses recursos narrativos nao eram usados com fre- qiiéncia, nem mesmo nos filmes de ficgao, apontando para 0 extremo a” A naga por um fio euidado com a claboragao e montagem de suas narrativas. As imagens eram tomadas por camaras fixas, deslocando-se apenas por meio de canoas em movimento, como na expedigao ao Rio Ronuro, ela conti- nuava fixa em relagao ao lugar em que estava pousada. Ainda que a cfmara nao se deslocasse pelo espaco, ela j4 permitia recortéd-lo, fil- mava pedagos de espago que podiam ser grandes ou pequenos em fun- ¢4o da posigéo da camara em relagdo ao objeto — na horizontal, de baixo para cima ou o contrario -, ou seja, em relagdo ao Angulo no qual o cinegrafista escolhia filmar. Apoiada em tripé, a camara que, inicialmente, apenas tinha o recurso dos planos fixos, nas filmagens do tenente Reis j4 podia fazer movimentos para os lados, em leves pano- ramicas e planos médios, mostrando o deslocamento de pessoas ou as vistas de aldeias, por exemplo. E preciso considerar que 0 equipamento fotografico e o cinema- tografico eram ainda muito grandes e pesados, tolhendo a mobilidade e a liberdade do fotégrafo/cinegrafista, o que de certa maneira j4 impu- nha limites, recortes e definia angulos, aparecendo como mais um ele- mento na conformacéo das imagens produzidas. Em termos de procedimentos e recursos visuais disponfveis, porém, o cinegrafista j4 dispunha da possibilidade de definir o tamanho do espago a ser enqua- drado e recortado, a posigado, ou angulo, em que a camara filmaria — alta, baixa ou na horizontal. Assim, filmar j4 podia ser definido como 0 “ato de recortar 0 espago, de determinado Angulo, em imagens, com uma finalidade expressiva”, ato que pode ser entendido entéo como “uma atividade de andlise” (Bernardet, 1991, p. 36). Outro procedimento narrativo caracteristico na abordagem dos indios é a inserg&o de uma seqiiéncia de primeiros planos com detalhes de rostos ou corpos dos fndios apds planos gerais, seja da expedi¢do descansando, como em Viagem ao Roraimd ou, em Ao redor do Brasil, no qual, apds o plano geral da aldeia, entra a imagem de um indio com um botoque enfiado no nariz ou de um outro, mostrado inicialmente de costas para a camara e que, apds alguns segundos, volta-se lentamente para ela, torcendo o tdrax nesse movimento. B evidente a intengao do cinegrafista em registrar a conformac&o do térax, do cranio, dos olhos, das posturas e dos aderecos das pessoas em frente 4 sua cimara, como se ele tomasse medidas antropométricas com a objetiva. Mas a inser- ensue eames eensesnil Uma cémara em busca da Nagao 273 ¢ao das imagens, o tempo em que elas permanecem na tela, o seu en- cadeamento e sua recorréncia so elementos que permitem perceber, além da evidente objetividade cientifica do cinegrafista, 0 seu olhar e o seu sentimento sobre os indios. A vivacidade, a espontaneidade e a desenvoltura das imagens so- bre os indios — nas quais eles aparecem em banhos de rio, remando, enfeitando-se ou dangando — apontam para a forma como o cinegrafis- ta enxergava os “nossos irmaos das selvas”, em sua vida bem humana, “como parte da grande humanidade, embora ignorando a civilizagao ocidental”,” mas que, em breve, pelo trabalho do SPI, terfamos “esses trabalhadores no convivio de nossa sociedade”, como diz o letreiro que fecha a primeira parte de Ao redor do Brasil. De outras vezes, a cama- ra descreve minuciosamente as pescarias, a elaboragao de aderegos, as pinturas corporais, os diferentes momentos e estilos das dangas, a ma- nufatura de cintos e cestos de palha em Rituais e festas Bororo ou a preparagao da mandioca para fazer o beiju, incluindo uma demonstra- gao da pericia e arte de uma india, apreciada por Rondon, que ao assar a massa nela elabora delicados desenhos de sua tribo, mostrada em Pa- rima, fronteiras do Brasil. Esse modo de registrar a cultura indigena, que poderia ser classificado como uma visao antropoldgica, se asseme- Iha as imagens dos filmes feitos por Lévi-Strauss, na década seguinte (cf. Souza, 1981, p. 9).* 23 Durante essa expediedo, a chegada a um povoado dos indios auéti provocou longas reflexées sobre a cultura indigena, ¢ o militar cedeu a vez ao cinegrafista ao falar dos jogos de luz e cores nesse “cendrio de primitivos hdbitos”: “As casas af estdo dispostas em circulo, a palha que as cobre, jf escura pelo tempo ou suja de fumaga, mostra a intervalos alguns retoques mais claros, onde a luz do sol produz reflexos cor de cobre”. E ele prossegue, poético, descrevendo a vida cotidiana na aldeia: “Nas tardes mornas, temperadas pela brisa perfumada de esséncias silvestres, essa gente se senta no dtrio comum e ali d4 largas expansdes ao sentimento, contando hist6rias, cantarolando ou bebendo caldo de mandioca” (Ministério da Agriculura, CNPI, Expedi¢do ao rio Ronuro, Relatbrio do capitdo Luiz Thomaz Reis sobre os servigos fotogréficos cinefotogréficos, 1947, p. 107, anexo). 24 Algumas das questdes sobre a andlise dos filmes desenvolvidas nesse trecho foram sugeridas pela leitura desse trabalho, ainda que eu discorde quanto a sua interpretagiio de que o cinemarealizado pela Comissio fosse somente um “instrumento de investigagao cientifica” que desprezava o apelo do exético comum ao cinema comercial de ento ou, 274 A nagao por um fio Para estudiosos do cinema preocupados apenas com a questdo dos “estilos” ou da técnica utilizada pelos cinegrafistas pioneiros, al- guns dos aspectos caracteristicos dos documentrios produzidos pela Comissaio Rondon, como o “baixo-contraste, a caréncia de iluminagao, o movimento acelerado, os cortes bruscos, como que respondem, em termos de cinema, ao equipamento ristico e precdrio dessas primeiras expedigdes” (cf. Souza, 1980, p. 80).”* Argumentagées que explicam as formas assumidas pelo discurso/linguagem a partir da idéia de “li- mitag6es técnicas” so andlises a posteriori, que partem de compara- g6es com o presente e acabam por desconsiderar que os recursos, estilos ¢ linguagens visuais sio expressGes dos suportes materiais em- pregados e traduzem as op¢ées conceituais, estéticas e cientificas fei- tas pelo profissional que os manuseia, num momento determinado. Vale considerar as reflexdes de Bernardet em torno da apropriagiio do cinema, no momento do seu nascimento, pela burguesia triunfante, como parte de sua estratégia de domfnio sobre grande parcela do mun- do ocidental. No bojo de outras maquinas e técnicas ~ que facilitaram o pro- cesso de dominag&o e a acumulagio do capital =, 0 cinema, uma arte criada pela burguesia, permitiu elaborar e difundir um universo cultu- ral, estético e ideolégico, a sua imagem. Nesse sentido, nao da para su- por que a “maquina e todo o processo de realizagio do cinema [tenham] caracterfsticas e significagGes independentes de quem os usa”. Ao contrario, diz esse autor, uma maquina no tem “uma signifi- cago em si, ela sempre significa o que a fazem significar”. Se acredi- tamos, entao, que uma técnica nao se imp6e em si e por si, mas que é a apropriagao que dela faz um segmento da sociedade que lhe da signifi- ainda, no que se refere & sua compreensio quanto aos significados do “projeto civiliza- tério” desenvolvido pela Comissio Rondon e SPI junto as populagées indigenas. 25 A reflexio produzida por Antonacci, 20 contrério, ainda que referida aos filmes mudos do expressionismo alemao, permitiu ampliar as possibilidades de leitura desses filmes da Comissfio, como a duragio dos planos, o ritmo, os cortes, a fluénoia dada & narrativa, contando apenas com imagens ¢ letreiros, etc., além de alertar para o risco de reduzir as explicagdes sobre 0 modo de realizar os filmes e para o contetido dessa linguagem cinematogréfica considerando apenas os “limites técnicos” (cf. Antonacci, 1991, pp. 41-70). Uma camara em busca da Nagao 275 cagéio, o que est4 em questo é como — a partir dos recursos técnicos socialmente disponiveis e das caracteristicas inerentes ao discurso fflmico sob a vigéncia do cinema mudo — o cinegrafista da Comissio Rondon construiu um estilo, uma narrativa e fez suas opgées técnicas e estéticas, que o distinguem de seus contemporaneos. Para isso, nada melhor do que acompanhé-lo, a partir de seus re- latos, em suas viagens e experiéncias com o cinema, percebendo como o “expedicionério-artista” superava os desafios e as surpresas inerentes ao seu officio. Em diversas ocasides, ele informa sobre suas dificulda- des nas filmagens, em fungio do ritmo imposto aos trabalhos na Co- miss&o, da adversidade dos locais percorridos — rios acidentados, serras, selvas, travessia de cachoeiras — e das inadequagées do equipa- mento cinematogréfico, mesmo tratando-se dos mais modernos exis- tentes no mercado, & natureza do trabalho expediciondrio. Por meio de seu relatério sobre o filme Rituais e festas Bororo, sabemos que alguns negativos, “devido & hora adiantada do dia, nio puderam ser tomados com a andadura normal, devendo em projegiio ser diminufda a veloci- dade do motor”, ou que ele nao péde gravar dentro das choupanas dos bororos devido 4 falta de claridade. Seu relatério sobre a expedicao ao Ronuro exemplifica o que sige nificava o trabalho do cinegrafista em campo, carregando, ora meio de campos cobertos de capim-flecha, ora atravessando corredei ras que a todo momento ameagavam virar as canoas, 0 seu “mal operatério”, que se compunha de um aparelho Williamson de 30 1 tros e “de um Debrie Studio de 120 metros, que ia reservando para ¢ estudos mais importantes”. Enquanto navegavam, sua canoa seg} frente com o “aparelho sempre apontado para qualquer tomada rf Mas (...) aS ramagens ¢€ os paus, que se repetiam pelas margens di eram uma ameaga para a camara”. Nas caminhadas, esse equipa era um problema; afinal, “lidar com um aparelho de peso de 20 tomar posig&o e cuidar dos muitos dispositivos técnicos para obt filme em condig6es, néo é pouco para 0 expedicionario”. Durante as cagadas de onga no pantanal, cle descreve se dos com a localizacao e as manobras com o equipamento cinen fico, evidentemente em fungaio da necessidade de desloc damente: 6 A nagéo por um fio Fstacionei 0 aparelho a uma distancia de oito metros apontando-o para o alto [da frvore onde a onga havia subido].(...) Comecei a trabalhar fazendo girar a manivela do aparelho onde o filme principiou a se deslocar com o instantdneo de 1/250 de segundo; o atirador estava com a arma em ponto esperando sé a voz de fogo para dispard-la, Era eu que devia dar essa voz no momento por mim julgado oportuno, Em frente ainda restavam alguns arbustos (...) mascarando 0 provavel teatro da luta (...) mandei pois rogar ainda esse trecho, obtendo com isso um pouco mais de luz, preciosa naquele momento. Dei a voz de fogo para apenas ferir mal a fera, na esperanga de que esta saltasse sobre os zagaieiros, 0 que seria uma luta sensacional que me proporcionaria um grande filme importante.”® A partir de seu relato, podemos ter uma idéia do processo de tra- balho durante as filmagens e das fun¢des acumuladas pelo cinegrafis- ta: operador do equipamento preocupado com todos os detalhes técnicos, como a distancia e a velocidade do filme; diretor da cena que coordenava 0 trabalho dos cagadores e do pessoal que fazia a limpeza do terreno/cenério, definia 0 inicio da agao e conduzia o seu desenro- lar; e até como cendgrafo preocupado com as ramagens que impediam a entrada da luz e tornavam indistinta a “personagem” principal contra o fundo do cenario. Apesar de toda a diregao da cena pelo cinegrafista/diretor/produ- tor, a “atriz” principal néo correspondeu ao script. Ao invés de saltar sobre os cagadores, que a esperavam “de ferro em riste” apontando para o “tigre furioso, cujo rugido rouco fora o prentincio do ataque”, a decepgiio foi enorme, porque “a onga foi-se deixando escorregar lenta- mente, como a cair desanimada”. Tantos esforgos, tantos riscos para apenas colher “um resto de assunto, com a onga jd morta”. Cavalgando no retorno dessa primeira cacada, o cinegrafista ia meditando sobre a quase impossibilidade de atingir os resultados que pensara poder obter tomando um filme desta natureza: a oportunidade tinha sido a melhor, bons ces, bons zagaieiros, cendrios um tanto escuros mas de possivel impressio fotogréfica; a onga ali estava, mas 26 Comissao de Linhas Telegraficas Estratégicas de Mato Grosso a0 Amazonas, Rela- t6rio do 1° Tenente Luiz Thomaz Reis, microfilme 328, pp. 27-28. | Uma cémara em busca da Nagao 277 Jémorta, sem os “efeitos de animagio que é a vida do filme”. (...). E foi assim que eu perdi a ocasiao de me sobressair no desejado trabalho; todos tinham ido bem, eu nao. O cinegrafista, porém, nao desanimou e tentou novamente de- monstrar o seu talento e obter o filme desejado; para isso, outra cagada foi organizada, repetindo-se a situagdo anterior, Vendo frustradas suas expectativas de realizar uma fita magnffica, o tenente faz, na verdade, um inyentario das dificuldades de tomar um filme dessa natureza e Os problemas técnicos enfrentados: Concluindo direi que um filme do natural nestas condigdes é impossivel por muitasraz6es: a onga acua sempre no cerrado onde se mistura com as diversas massas de vegetagdo; a luz nesses locais é insuficiente para a velocidade normal ou média da pelicula; a onga nfo ataca o cagador, a0 contritio, foge sempre para colhé-lo de surpresa; ela muda constantemente de posigao (...) © que dificulta as operagdes de pose; por tiltimo a sua cor, de um ligeizo marrom (...) n@o é bastante actinica para a fotografia, niio sc a podendo distinguir bem nos seus movimentos. Os problemas, como vimos, eram varios, desde os “cendrios um tanto escuros”, o tipo de equipamento, “estacionado” a uma distancia segura, diga-se de passagem, que nao permitia répidos deslocamentos em cena, a falta de contraste entre as cores da onga e da vegetacio, além de uma “atriz” as vezes irrequieta — dificil de ser dirigida e acom- panhada pelo cinegrafista - e outras, tranqiiila demais, quando “apenas olhava admirada para nds e, muito principalmente, para os reflexos da lente do aparelho cinematogrdfico — provavelmente uma novidade para ela”. Era um habito do cinegrafista revelar og negativos durante as ex- pedigGes, em “laboratérios” portateis montados nos acampamentos, aparentemente uma medida de seguranga e precaucio para avaliar a qualidade dos filmes e, caso necessério, refazer as filmagens. Deixava para fazer no laboratério no Rio de Janeiro os letreiros e intertitulos, as c6pias em positivo, a edigiio e a montagem dos filmes. ww A nagao por um fio Construgdo de rancho para preparo de filmes e proceso de revelagio, com mate- riais desmontéveis, no acampamento “Pé de Anta”, durante expedigio ao Ronuro, em 1924, Reproduzida do livro Indios do Brasil (Rondon, 1946). Uma cémara em busca da Nagao 279 Em seus relatérios, encontramos muitas referéncias aos procedi- ‘mentos de revelagio e aos muitos inconvenientes e contratempos de- correntes da realizacgéo de um trabalho dessa natureza em lugares tao adversos: Enquanto famos obtendo as peliculas [sobre os bororos] famos também revelando-as 4 noite, de modo a ter o servigo garantido, estando todos os negativos ja desenvolvidos; (...) Assim, durante esses trés dias de alto [na expedigao do Rio Ronuro], cu montei o meu material cinematografico, para revelar as peliculas j4 impres- sionadas. A noite, iniciei este servigo, com grande desapontamento, porque as temperaturas, abaixo de 10 graus, nao permitiram trabalhar os banhos em boas condigées, Depois de tentativas seguidas, onde apenas apurei 120 metros, resolvi sus- pender o servigo de revelar filmes em noites tio frias. Esperava calmamente amelhor oportunidade. Outro inconveniente, que j4 notara no nosso primeiro acampamento, (...) era a quantidade de insetos de pequeno talhe, como mosquitos, que atacavam a pelicula ¢ se grudavam a gelatina, inutilizando o trabalho. (...) Nunca me sucedera isso antes, talvez porque sempre operei em locais descobertos ¢ arejados. Mas o Ronuro ¢ seu ambiente eram virgens: a natureza fértil triunfava, por toda a parte, num ritmo de liberdade ¢ movimento... Preparei um rancho e comecei também o trabalho de revelagio dos filmes tomados em viagem [no Rio Curisevu]. Também nio fui feliz nisto, porque as noites eram sempre perturbadas pelas trovoadas, com relémpagos, que me velavam as peliculas. (...) Suspendi este servigo e fui tratar de doentes, que as febres palustres jé tinham atacado, em ntimero de oito... Em algumas ocasides, a revelacdo ficava comprometida pelas: baixas temperaturas que “nao permitiram trabalhar os banhos em boas condigées”, pelos insetos que “atacavam a pelicula e se grudavam a gelatina”, ou ainda, “porque as noites eram sempre perturbadas pelas trovoadas, com relampagos, que [me] velavam as peliculas”. Transformadas em filmes documentérios pioneiros, as imagens produzidas pela Comisséo Rondon foram exibidas sistematicamente por todo o Pafs, em circuito comercial, e durante as conferéncias @ pa= lestras proferidas por Rondon. Em 1914-1915, animados com 0 suces= so e a renda arrecadada com a exibic&o, em circuito comercial, do set A nagao por um fio primeiro filme, Os sertes de Mato Grosso, e com sua repercussao jun- fo ao piblico e A imprensa, foi montado o laboratério da Comissio, contando com todos os equipamentos mais modernos necessérios 4 produgiio completa de filmes, desde a revelagao dos negativos, a seca- gem artificial, as maquinas para impressio dos positivos e dos letrei- fos, © cnrolamento mec&nico das bobinas, “tudo movido a cletricidade” (cf. Magalhaes, 1941, p. 390, nota 84). A aquisicio e ins- talagllo dessas maquinas foram dirigidas pelo tenente Reis, chefe da Segio de Photographia e Cinematographia, criada em 1912 no escrité- rio central da Comissdo no Rio de Janeiro. Instalado na Rua Sao Pe- dro, n° 278, esse laboratério era, na verdade, um estudio fotogréfico e cinematogrdfico (idem, ibidem),”’ para o qual foram contratados labo- ratoristas e auxiliares diaristas, que trabalhavam sob a diregao do te- nente Reis na revelacao dos filmes negativos trazidos do sertdo, nas ampliagGes e cépias utilizadas para distribuigao & imprensa e em ou- tros trabalhos afetos a secao. O afluxo de piiblico aos cinemas, durante a exibig&o dos filmes da Comisséio, animou o seu chefe a autorizar a viagem de seu cinegra- fista aos EUA para tentar negociar os direitos de exibi¢ao do primeiro filme da Comissio, propondo uma sociedade com alguma companhia distribuidora americana para colocagdo de Os sertées de Mato Grosso no mercado americano e europeu. Durante os seis meses de 1918 em que permaneceu nos EUA, 0 tenente Reis realizou minuciosas pesqui- sas sobre o mercado cinematogrdfico americano, remontou o filme para adapta-lo ao gosto dos exibidores, resolveu problemas com a cen- 27 O Boletim n° 22, de 12 de julho de 1917, do escritério central da Comissio, informa que “por conveniéncia de servigo e a fim de preparar os filmes negativos ultimamente tomados no sertio”, o escritério havia suspenso o contrato que tinha com o Senhor Ciprien Segur “para utilizago e conservagao” desse gabinete. No Boletim seguinte, de 20 de julho, o escrit6rio anuncia a reabertura, desde 0 dia 10 do més corrente, dessa sua “dependéncia” e comunica também que foi registrada a falta de materiais existentes no laboratério sob a responsabilidade daquele contratante. Pode-se inferir que era uma praxe do escritério arrendar e/ou alugar temporariamente esse estudio, enquando duravam as expedigdes do cinegrafista pelo sertiio, por exemplo, provavelmente para fotégrafos € montadores de filmes, como forma de arrecadar verba para os seus servicos. Museu do {ndio/Funai, Sedoc, microfilme 326, fotogramas 280 e 281 Uma camara em busca da Nagao 281 sura, conseguindo ao final realizar a exibig&o, no Carnegie Hall, em Nova York, durante as conferéncias de Roosevelt, sob o patrocinio da National Geographic Society, e também na Broadway, ficando em car- taz durante oito dias, além de conseguir a assinatura de contratos com a Interocean, agente da Goldwin, Metro e World, rescindidos em 1920. A partir dessas observagées, ele revelaria sua opiniao, também nada lisonjeira, sobre o gosto do ptiblico americano, que, ao que ele informa, nao diferia muito dos espectadores brasileiros. O mercado americano, além da sua “quase preveng4o” contra os filmes estrangei- ros, ndo estava muito interessado em filmes apenas “educativos”, mui- to menos os de longa metragem; além disso, a presenca de indios nus, estando alguns muito préximos da camara, criou problemas com o de- partamento de censura ¢ com os exibidores, que faziam exigéncias de “absoluta moralidade quer como conceito ou como vista”.” Além dis- so, o filme da Comissao nao tinha apelo suficiente para empolgar os americanos, os seus letreiros foram considerados “inadequados” para - aquele género de assunto e a redacdo também nfo era “ao gosto” dos americanos. O segundo objetivo de sua viagem era conseguir a edi¢io, em inglés, das conferéncias proferidas por Rondon, no Teatro “Phenix” do Rio de Janeiro, em 1915, e publicadas no Brasil no ano seguinte, cuja versao americana teria o titulo Lectures, na esteira do sucesso alcanga- 28 Comissio de Linhas Telegréficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas. Rela- t6rio apresentado pelo 1° Tenente Luiz Thomaz Reis da sua excursio aos Estados Unidos da América do Norte em 1918, encaminhado ao Capito Amtlcar Botelho de Magathdes, chefe do Escritério Central da[ | (1918, pp. 5-15). No proceso de negociagao para exibir o filme nos BUA, foi necessario providenciar o registro do direito de propriedade da Comissio sobre 0 mesmo ¢ 0 certificado de copyright foi expedido considerando-o “vistas cinematogriificas nao teatrais e nao produzidas em c6pias para negécio”. Quando se tratava de cépias para comercializacio, o direito de protegio s6 era fornecido se imediatamente ap6s a impressiio do filme fossem depositadas duas cOpias completas do seu programa no departamento de censura americano. Esse procedimento foi considerado “yicioso” pelo cinegrafista, visto que abria brechas para que qualquer falsdrio fizesse uma duplicata do filme, depositasse as cépias e safsse negociando sua exibigdo, ao contrério da situagdo legal no Brasil, em que todos os direitos estariam reservados “por se tratar de uma propriedade do servico ptiblico federal”, estando, portanto, “a coberto de todas as garantias” (idem, p. 6). 282 A nagito por um fio do pelo langamento do livro do ex-presidente Roosevelt sobre sua ex- pedig&o ao interior do Brasil, na companhia de Rondon.” Apesar de todos os seus esforgos para providenciar o langamento das conferén- cias no mercado americano, essa miss4o malogrou, pois 0 texto foi re- cusado por diversos livreiros pelo fato de estar escrito em um estilo pouco ou ndo americano; 0 estilo que eles me explicaram ser americano consistia em dar um cunho de aventuras a uma obra assim inspirada nas florestas. Deveria ter um certo mimero de fotografias nitidas, sobre animais ferozes, indios, etc., e que quanto possfvel alguma coisa sensacional, por exemplo, 0 Coronel Rondon lutando com um tigre ou um (sic) colossal sucuri, dominando um chefe coroado em presenca da tribo espavorida atirando-Ihe flexas (sic), depois tudo isto arrastado pelo Salto Belo © precipitado na queda onde deveria aparecer algum americano forte como Jorge Walsh e salvar tudo, exclamando: “liberty”, foi o que eu imaginei pudesse ser o estilo mais apreciado ali, (Comissao de Linhas Telegréficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, 1918, p. 7) A publicidade da exibigao dos filmes da Comissio Rondon, por outro lado, em nada diferia do apelo sensacionalista dos documentérios contemporaneos aos seus e dos antincios veiculados em revistas e jor- nais pelas empresas exibidoras localizadas no Rio de Janeiro e em Sao Paulo. Uma caracterfstica desses primeiros filmes naturais era apresen- tar ao piiblico imagens que fossem genuinamente brasileiras e, no tem- po do cinema mudo, essa idéia assumia a forma de paisagens e de costumes representativos do Brasil. Essa atitute, que no geral se pren- dia ao nacionalismo dos produtores em oposi¢ao aos filmes estrangei- ros, fazia também eco no nacionalismo do piiblico. E a publicidade dos filmes apelava para que as platéias fossem ao cinema assistir as coisas do Brasil: sert6es, indios, saltos e cachociras, jacarés, sucuris. O Pais precisava olhar-se, conhecer-se, e parecia que nesse momento somente 29 O livro de Theodore Roosevelt foi publicado em 1914 com o titulo Through the Brazilian Wilderness com uma pagina de dedicatéria a Rondon, classificado por ele como um “brilhante oficial, ilustre cidadao e explorador intrépido”. Traduzido no Brasil apenas Nos anos 30, recebeu o titula de Nas selvas do Brasil (Edusp/Itatiaia, 1976). | | Uma camara em busca da Nagao o cinema poderia apresentar sua dimenso continental e sua diversida de cultural. Como apontou Bernardet: A industrializagio opde-se a grandiosidade, a suntuosidade da natu brasileira, intocada pela industrializagao. As vezes, a natureza grandiona e intocada parece funcionar de modo amb{guo, sendo simultaneamente resposta 2 industrializagao e também potencialidade de industrializag) Pais selvagem, virgem, grandioso, e pats do futuro. Por isso me parece tamanha importancia no cinema mudo, particularmente no documentiiie € no cine-jornal (sic), as tao filmadas cachoeiras, pois sio ao me! tempo o espetdculo esplendoroso da natureza intocada e prome: energia. (Bernardet, 1979, p. 72) Pais do futuro, uma terra de promessas ainda nado realizadas, tas virgens e plenas de potencialidades, sio algumas das imagens nistas de entéo que encontravam grande ressonancia nas produzidas e exibidas pela Comissio Rondon. Comprometidos com nhecidas, amansando indios e populagSes brancas dispersas pelos pacos que palmilhavam, esses engenheiros militares apresentavam ie como bandeirantes modernos, munidos de camaras fotograficas e gens do interior do Brasil. Mais do que expectativa com sucessos | pliblico e arrecadagao das bilheterias, interessava A Comissao Rond divulgar o Pafs e suas potencialidades. Os sertées de Mato Grossi primeiro filme da Comissdo de 1912, nao fica nada a dever a o documentarios seus contemporaneos, como Viagem ao Brasil, pitoresco, Brasil desconhecido, Brasil maravilhoso, Brasil gral Apoiados nas belezas e riquezas naturais do Pais, na existéncia de indios “selvagens” e hostis, nas cagadas de animais perigosos, filmes “do natural” procuravam reforcar a visio do Brasil como um va eldorado a ser descoberto e explorado. Essa mesma estratégia s zada na divulgacao dos filmes da Comissao. 284 A nag@o por um fio Tie Win ee lene Hee ns de es pais Geneon ole Mal Wear ‘tn oe a ne ee Publicidade da exibigio de Os sertées de Mato Grosso no Teatro Polytheama em Sdo Paulo, em novembro de 1915. Uma cémara em busca da Nagao 285 O programa de exibigio desse filme, tragado pessoalmente por Rondon, foi dividido em trés etapas: infcio por Sao Paulo, Rio, os esta- dos de Minas Gerais e os estados do Nordeste, em 1915. No segundo semestre de 1916, a exibigao foi retomada pelos “estados do Norte”, af incluindo 0 Maranhio, e, como terceira e ultima parte desse programa, a Comissio realizou a distribuicdio desse filme pelos estados do Sul do Pais. A participagao da Comissao na renda das bilheterias variava en- tre 40 ¢ 60% do total arrecadado.” Contando com 0 apoio logfstico do seu Escritério Central, da Segao de Fotografia e Cinematografia e com © acompanhamento do cinegrafista, esse programa de exibigao inclufa a distribuigado de pequenas “resenhas” com descrigées dos quadros dos filmes, visitas as redagGes dos jornais locais, com entrevistas ilustradas em cada cidade do roteiro, realizagfo de sessdes especiais para jorna- listas, criticos e autoridades, além da publicagao de propagandas ilus- tradas nos principais jornais das cidades onde os filmes eram exibidos. A imprensa cuidava de realgar o cardter de filme genuinamente brasileiro, nacional, conclamando 0 ptiblico a conhecer o Brasil por meio das telas dos cinemas, além de apelar para os sentimentos civicos e humanitérios da populagio, ao divulgar que a inteng&o da Comissao com essas exibigées pelo Brasil afora era angariar recursos para a con- tinuidade dos trabalhos do SPI, como também doar o restante aos “fla- gelados” da seca no Nordeste. Foi montado todo um esquema de publicidade que criava, com dias de antecedéncia, o clima propicio 4 chegada do representante da Comissio e do seu “sensacional” filme & cidade, alimentado durante os dias das exibig6es pela publicacgfio de notas, comentarios e aprecia- ges, sempre elogiosos, 4s maravilhas vistas na tela. Como resultado dessas estratégias, em todas as cidades onde foi exibido, o filme arras- tou um grande piiblico, arrecadando, apenas na primeira seqiiéncia de sua exibi¢do, uma renda de 24:164$900, quantia suficiente para ser di- vidida em auxiflios aos “flagelados da seca no Nordeste” e aos “irmaos 30 A exemplo do que ocorreu em Cruzeiro do Sul, no interior paulista, pode-se supor que 0 prego dos ingressos fosse majorado em todos os cinemas nos dias de exibigdo do filme Os sertées, “dado 0 nobre fim a que se destina 0 produto do espetéculo”, j4 que fazia parte das pecas publicitérias da Comissdo a informago sobre quais seriam os beneficiados pela renda da exibicao. 286 A nagdo por um fio das selvas” por meio das Inspetorias do SPI nos estados de Sao Paulo, Amazonas, Pard e Maranho, além de reforgar os préprios cofres.” Na trilha dessas fitas ufanistas, muito freqiientes & época, a pro- paganda do jornal O Estado de S. Paulo, edigao de 11/11/1915, anun- ciando a exibigado de Os sertées de Mato Grosso, na capital paulista, apregoava a existéncia de “empolgantes quedas d’4gua, campos que se perdem no horizonte e imensas e desconhecidas selvas rasgadas pela linha telegrafica”. Exibido nos cinemas Iris Theatro e Pathé Palacio, ambos na Praga Joao Mendes, e High-Life e Guarany, no Largo do Arouche, o filme foi um sucesso de puiblico, a julgar pelas noticias dos jornais, durante os dez dias em que foi exibido em novembro de 1915, ficando “mais de 2 mil pessoas” sem conseguir assistir-Ihe, 0 que mo- tivou sua reapresentacdo em fevereiro do ano seguinte. Chegou a ser criado um clima de “competi¢ao” entre as cidades do interior paulista para saber qual delas ofereceria maior renda liqiii- da Comissio. A 13 de janeiro de 1916, a Gazeta de Piracicaba ape- lava para que ninguém faltasse as duas apresentag6es didrias do filme para que a cidade pudesse conquistar uma boa classificagio “no qua- dro que em tempo 0 Estado publicard, dos resultados obtidos”, Até aquela data, as localidades que estavam em primeiro plano eram: “Campinas com 1:200$000, Ribeiro Preto com 711$000, Sao Carlos com 513$000 e Uberaba com 420$000". Em Curitiba, durante a sessiio especial organizada para a univer- sidade, a escola normal ¢ todas as escolas piblicas da cidade, 0 esque- ma de publicidade da Comisso incluiu a distribuigao de um folheto contendo um cliché [do] coronel Rondon ¢ um resumo dos trabalhos da comissio, desde 1907; os folhetos distribufdos foram em ntimero de mil, mas no deram nem para a metade, tendo sido [a] freqiiéncia superior a duas mil e trezentas pessoas.” 31 Segundo informagées do tenente Reis, a montagem do laboratério da Comissao, em 1915, também foi realizada “com os recursos provindos da exibigdo dos films anterior- mente organizados” (apud Magalhiies, 1941, p, 374). As informacses sobte o programa de exibicdo de Os sertées © a discriminagio dos valores distribufdos encontra-se no Relatério do 1° Tenente Luiz Thomaz Reis (apud Comissio de Linhas Telegraficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, microfilme 328, p. 64). 32 Comissdo de Linhas Telegraficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, Rela- i6rio do 1° Tenente Luiz Thomaz Reis, microfilme 328, p. 64. Uma cémara em busca da Nagao Antincio da exibigao de Os sertdes de Mato Grosso em O Estado de SP 11/11/1915, conforme nota aos jornais cariocas distribuida pelo chefe do eset! central em abril de 1917. A mesma empolgagio teria ocorrido durante a exibigdo no Rio d Janeiro, primeira cidade no circuito comercial, de Os sertées de Grosso, em que em apenas cinco dias mais de 20 mil pessoas sty 2a A nagéo por um fio faii-Ihe. Exibido durante dez dias no més de novembro de 1915, em ito cinemas da Capital Federal, ainda assim os jornais informavam que “mais de 2 mil pessoas nado puderam assistir ao filme nas quatro sesses” do dia 8 de novembro, razao pela qual ele foi reprisado em fevereiro do ano seguinte, incluindo uma sessio especial oferecida ao presidente da Replica no Palacio do Catete, Em Campinas, as propa- gandas chamavam a atengdo para a possibilidade de assistir aos “11 rios descobertos, pacificagio dos Nhambiquaras e as grandes quedas dos rios desconhecidos”, argumentos enumerados pelos jornais para atrair o puiblico aos trés cinemas onde 0 filme foi exibido em dezembro de 1915. Mas o Correio de Campinas, de 1°/12/1915, preferiu destacar raz6es civicas para assistir-lhe: (...) Raras vezes tem o piblico frequentador dos cinemas ocasiao de ver cenas tdo reais, tdo dramédticas e que falem 4 alma nacional como estas que terminam com um belo ato simbélico ~ 0 hasteamento de uma bandeira, stmbolo de soberania nacional no extremo de nossas fronteiras. (Grifos meus) A estréia de Os Sertées, em Belo Horizonte, do “afamado e espe- rado filme natural”, nos cinemas Comércio, Odeon e Cassino Mineiro, foi anunciada, pelo jornal A Tarde de 12/4/1916, como um “instrutivo trabalho cinematogrdéfico”, mostrando “na projeco animada, cenas, paisagens, regides que a maior parte de nossa populagdo nunca terd oportunidade de ver na realidade”. Em Maceié, onde foi exibido em outubro de 1916, o jornal Didrio do Povo abriu a matéria no dia 19 desse més com letras garrafais: O BRASIL CIVILIZA-SE. Ao lado da foto de uma fndia parecis em frente a uma estagiio telegrdfica no ser- tao, a propaganda afirmava ser esse filme “o mais preclaro documento dos esforgos insanos, do patriotismo ingente e abnegado da Comissiio Rondon, de quem a Patria fica devedora (...) perante o juizo fatal da Histéria’””. Um “monumental filme nacional” e uma “sensacional reve- lag&o e esforgo da nossa raga”, assim anunciava o Jornal do Comércio de Manaus, em sua edig&o de 18/8/1916, esse belo filme obtido gragas aos trabalhos do “esforgado sertanista Cel. Rondon”. O Didrio da Tarde do Rio Grande do Sul, em 27/5/1917, teceu tasgados elogios aos esforgos de Rondon para projetar nas telas “‘a pro- Uma cémara em busca da Nagao 289 paganda eficiente das maravilhas e da cultura brasileira”. Para os que nao viajavam e nao liam, o Brasil se resumia a “um territério drido onde vive um povo sem governo” ou “tribos selvagens sem 0 mais ru- dimentar principio de civilizagao”. Essa “ignorancia natural” estava sendo negada porque (..) aos que leem (sic) [Rondon atirou] a “Missio Rondon” ¢ aos que enxergam, 08 “Sertdes de Mato Grosso”; um agradando ao espfrito pela leitura descritiva, facil e concisa mostrando-nos paisagens ¢ costumes, outro agra- dando aos olhos com o colorido natural e auténtico de toda essa regido (...). Monumental, empolgante, sensacional e afamado sao alguns dos superlativos com os quais esse filme foi descrito pela imprensa da épo- ca, num momento em que o mercado exibidor jd se fechava para os fil- mes nacionais, com raras excegdes para os documentérios ou naturais, géneros em que a producto da Comissio se inclufa (cf. Gomes, 1980, pp. 49 e 57).” O fato de a Comissao ter conseguido arrecadar cerca de 10 mil délares* com a exibigéo desses dois primeiros filmes durante apenas alguns meses é também um indicador da significativa afluéncia de ptiblico e, talvez, da boa aceitag4o desse género de filme ou das pe- tipécias desses expediciondrios. O grande mérito da Comissao Rondon, “cinematografando os usos, Os costumes, os habitos, as dansas (sic), a vida de intimeras tribos que vagueiam por aquelas inéspitas regides”, foi, porém, permitir que 33 Segundo esse autor, entre 1912-1922, 0 comércio cinematografico se desenvolveu consideravelmente, totalizando aproximadamente 60 filmes ~ ainda que dentre eles muitos fossem de publicidade -, desde as propagandas de loterias até remédios contra a sifilis, chamando a atengio omimero de filmes inspirados em obras de literatura. As salas haviam se fechado para as fitas nacionais que somente eram exibidas gragas 4 benevo- Iéncia de um ou outro proprietério de cinema.. 34 Relatério apresentado pelo 1° Tenente Luiz Thomaz Reis da sua excursdo aos Estados Unidos da América do Norte em 1918, encaminhado ao Capitdo Almicar Botelho de Magathaes, chefe do Escritério Central da [...] (Comissio de Linhas Estratégicas de Mato Grosso a0 Amazonas, p. 20). Com a exibigao desses filmes nos BUA, que contava com a ajuda de Roosevelt, a Comissao esperava arrecadar pelo menos 50 mil délares, que iriam servir “muitissimo para o beneficio daqueles infelizes que vivem fora da comunhio social sem consciéncia disto”. Idem, ibidem. 200 A nagao por um fio “pudéssemos conhecer um Brasil completamente inédita: o pleno ser- tao do noroeste”. Com esse filme ¢ sua exibigdo por todo o Pais, a Co- missdo encarava de frente um. dos “males do nosso pafs [que] é estar ainda muito mal conhecido de nés préprios que o habitamos, que nele nascemos ¢ por isso tinhamos o dever de estudd-lo a fundo debaixo de todos os seus aspects”. Esse cardter “educativo” do cinema da Co- missao Rondon é um argumento recorrente nos artigos, anunciando ou comentando a sua exibigao em todo o Pais. Educando pelos olhos, ins- truindo e deleitando ao mesmo tempo, o cinema subvertia distancias e fronteiras, descortinando “lindas e cerradas matas virgens”, permitindo “ver uma c6pia natural dos nossos aborigenes (sic) e apreciar qual o modo por que vivem”, facultando ao ptiblico “comodamente penetrar nos recénditos e desconhecidos sertées””*. A fotografia e o cinema foram utilizados pela Comissio Rondon como um documento comprobatério da civilizagao ¢ do progresso da- quela regiao. Ao poder da fotografia ou, melhor ainda, da “imagem- movimento” que o cinema reproduz, nenhum critico ou cético poderiam se opor. A partir desses registros podemos acompanhar como a fotografia ¢ o cinema foram transformados em “documentos oficiais”, a par de outros usos e fungdes. Ou melhor dizendo, como o registro fotografico e cinematogrdfico é uma expresso da preocupagao, por parte da Comissio, de preservar uma determinada interpretagio, ou verso, do acontecido, consolidando praticas e garantindo os espacos conquistados. “Uma cimara em busca da Nagao” aponta na perspectiva de apreender o papel reservado ao cinema no interior de um projeto mais amplo desenvolvido pela Comisséo Rondon no sentido de registrar, classificar, catalogar e decompor as partes constituintes da Nagao como forma de conhecé-la, tornd-la palpavel e reconhecivel para todos os brasileiros. Nesse sentido, a farta divulgagéo desses instantAneos 35 _O coronel Rondon — Os Sertdes de Mato Grosso. Folha do Coméreio, Campos, 11/03/1916 (cf. coletinea de recortes de jornais cariocas, 1910-30). 36 Tragos. O Norte, Taubaté, 23/2/1916 (cf. coletinea de recortes de jornais cariocas, 1910-30). Uma cémara em busca da Nagéo 291 colhidos no sertao brasileiro, contempordnea a sua produgao, tinha por inten¢do transforma-los em uma imagem “oficial” do Pais e antecipou, por parte da Comissao Rondon, a idéia de um “cinema educativo”, de- senvolvido, principalmente, na diregao de uma educagio civica com 0 propésito de salvar a Reptiblica que ameagava naufragar. Podemos pensar que, por meio desses instrumentos de propaganda, a fotografia eo cinema, procurava-se despertar o entusiasmo civico pela Republica numa tarefa de solidificar um regime politico que ele, Rondon, havia ajudado a instaurar. Ou, ainda, como um esforgo ou busca de uma identidade coletiva para o Pafs, formando uma “consciéncia da nacio- nalidade” como uma base para a construgo da Nag&o brasileira. CONSIDERACOES FINAIS Ao longo deste livro foram problematizados alguns aspectos da atuagdo de um grupo de engenheiros militares, republicanos e positi- vistas, que, sob 0 comando de Rondon, pretenderam integrar os “espa- gos vazios” do Pais, por meio da construgaio de linhas telegrdficas, nos primeiros anos deste século. As falas desses sujeitos sobre a regio que Percorreram permitem rastrear representacdes desse espaco interior do Pais — o serto, distante, vazio, atrasado e improdutivo, bem como da regiao fronteiriga — como algo fora da Nagio, espago a ser “civilizado” e integrado, via expansio de uma cultura técnica sobre a natureza. Pode-se, a partir de sua atuacdo, inferir também sobre como a Reptibli- ca nascente pensou e elaborou um conhecimento sobre o territério, @ posse € a conquista do espaco geografico da Nagao, sobre as po- pulagGes indigenas e os projetos para sua “incorporag4o” & socieda- de nacional, entre outras questées. Assim como outros grandes projetos nacionais e internacionais para aquela regiao, o telégrafo integrava também a “misao civilizaté- ria” creditada as grandes obras piiblicas de engenharia. Nem sempre, porém, a execugao desses projetos teve determinantes racionais ou mo- tivagées de ordem econémica. Assim como a Madeira-Mamoré, con- cluida apés 0 boom da borracha, terminaria por ligar “nada a lugar nenhum’”, a linha telegrdfica de Mato Grosso ao Amazonas tornou-se, com os avangos da radiotelegrafia, obsoleta e inutil antes mesmo de sua conclusao, um “simples vestigio arqueolégico de uma idade cienti- 24 A nagéo por am fio fica ultapassada”, como registrou o autor de Tristes trépicos (Lévi- Straus, 1957). ~ Ao contrério da Madeira-Mamoré, porém, uma “série prolongada de malogros dos mais pertinazes esforgos”, nas palavras de Euclides da Cunha, a atuagio da Comissao Rondon alcangaria reconhecimento, nacional ¢ internacional, como um projeto integral de civilizag&o ex- tremamente bem-sucedido. Nao significa dizer que criticas e discor- dancias quanto a sua viabilidade e necessidade nao tenham existido ou que ela tenha obtido unanimidade junto 4 opinido publica, mas que, gragas ao respcito granjeado por Rondon, 0 apoio de presidentes ¢ mi- nistros e, sem dtivida nenhuma, a uma grande estratégia de divulgacdo © propaganda dos seus trabalhos por meio, inclusive, da fotografia e do cinema, a Comissio Rondon conseguiu a projecdo, o reconhecimento ¢ a longevidade que outras iniciativas nao lograram alcangar. A atuagao da Comissio Rondon expressou e traduziu uma politi- ca para a ocupacgao/colonizagao do: agos ditos vazios da Amaz6nia, sob a orientagao do Ministério da Guerra, ¢ buscou concretizar a pre- senga e a acdo do Estado republicano, procurando também encenar a propria NacZo. Esse projeto de expansdo do telégrafo e da Nagio “rumo ao Oeste”, além do evidente carater estratégico e defensivo, 36 pode ser compreendido se recuperarmos outras pretensdes da Comis- sao que sinalizam para o desejo de uma “exploragio ordenada”, na qual se conjugavam os fins a serem atingidos com os meios utilizados, Superpondo projetos, atribuicdes, competéncias, como um projeto inte- gral de defesa da unidade republicana. “Desbravando” e “amansando” 0s sert6es e suas populacées, “plantando” nele o fio e os condutores da “ci- vilizagao” para torné-los produtivos, ordenando a ocupac&o da regido, a Comissao pretendia levar a presen¢a do poder e tornar palpdvel a idéia de Nagao e de Republica até os confins do territério “nacional”, Ea propria imagem da Nagao em marcha, em busca de si mesma, chegando ao interior e até os limites das fronteiras num processo contf- nuo de diluigao das diferengas culturais desses povos “amansados”, produzindo uma populac&o homogénea, capaz de se reconhecer como uma unidade e parte de uma “comunidade nacional”. A partir de sua atuagao conjugada posteriormente com o trabalho do SPI, a Reptiblica brasileira j4 delineava as linhas gerais de uma idéia, recuperada déca- Consideragées finais aus das depois por Gettilio e 0 Estado Novo, de formagio de um “traba lhador nacional”, De outro lado, inyestindo no reconhecimento geogri fico e na representagio cartografica do “territério”, definindo ¢ assinalando seus limites, 2 Comissao reunia o outro elemento necessi ._ tio & construgdio da imagem da Nagao. Anos mais tarde, quando em dezembro de 1937 Vargas procla mou iniciada a “Marcha para Oeste”, conclamando os brasilciros a ocupar o Noroeste brasileiro, retomavam-se, sob nova roupagem, idéias, concepgées, Projetos e praticas cujo delincamento pode ser bus- cado ja na formagio e atuagao da Comissao Rondon. Incorporada ao programa do Estado Novo, o manifesto da marcha sintetizava as dire trizes da politica de colonizagéo do “governo revoluciondrio”, em que © povoamento e a dilatagao do territério condicionavam-se a formagio do “espirito de brasilidade”.’ Retomando ideais de nacionalidade, do espirito épico dos antigos bandeirantes e dos sertanistas modernos como Rondon, os “néveis desbravadores do presente” seguiriam como pioneiros a marchar para o Oeste, concretizando a politica de ocupagio dos “vazios” demogrdficos do Brasil central via instalacéo de grandes col6nias agricolas e dos transportes terrestres, fluviais e aéreos, Tepe- tindo uma formula tentada pela Comissio Rondon, SPI ¢ Inspegao de Fronteiras. Um dos desdobramentos esperados era a retomada da ma nutengao € aparelhamento da rede e estagGes telegrdficas construidas por Rondon. Palmilhando essas regides, estudando seus recursos hidrograficos © geoldgicos, inventariando e documentando a diversidade de linguas e culturas, estudando a flora e a fauna, o clima e a salubridade da regido, a Comissiio reunia o conhecimento sobre 0 espaco © suas populagées, catalogava, classificava e decompunha as varias partes constituintes da Nagiio como uma forma de conhecé-la, tornd-la palpavel e reconhecf- vel para todos os brasileiros. Ao mesmo tempo, ela canalizava para a 1 _A propria idéia do Pais em “marcha” foi trabalhada por Lenharo (1984, pp. 7-16, ¢ 1989) no sentido de uma caminhada feita com ritmo, orientagdo e disciplina; mai quo uma figura de ret6rica, ela € um projeto no qual a colonizagao 6 pensada como um Processo de conquista do serio, de forma ordenada e pacifica (cf. Lenharo, 1984, pp. 7-16, e 1989). 206 A nagéo por um fio esfera do Estado saberes que cumpririam a funcio de construir a legiti- midade que ainda faltava & Reptiblica e, também, serviriam de base para a definigao de estratégias e politicas para a administracao do terri- torio e a gestao de populagées até entio desconhecidas. Ainda que muitos dos propésitos e das disposigdes da Comissao Rondon tenham permanecido apenas como intengées, cles permitem apreender a disposigao para agir, as nogGes que orientavam seus proje- tos, apontando para o fato de que a expansdo das fronteiras brasileiras nio foi espontanea, mas, ao contrario, resultou de um Projeto de repu- blicanizag4o com base no Pensamento positivista, na ciéncia e na or- dem. Importa destacar a capacidade desenvolvida pela Comissao Rondon de construir uma versio apoiada no volume de suas realiza- gOes, na complexidade de suas tarefas e na imensidao do espago per- corrido. Assim, tomando por base seus relatos em 70 meses — de outubro de 1900 a agosto de 1906 -, teriam sido construidos, no sul do estado de Mato Grosso, 1.667 km de linha, com a inauguragao de 16 estagdes telegrdficas. A fronteira com o Paraguai ficou, entio, ligada Por dois pontos mais importantes — Porto Murtinho e Bela Vista—e a fronteira com a Bolivia, por outros dois — Corumbé e Coimbra. A titulo de trabalhos preparatérios e exploratérios realizaram, ainda, 4.100 km de reconhecimentos, cerca de 600 km de exploragdes parciais e aproximadamente 1.600 km de locagiio. Ao mesmo tempo, desenvolveram-se reconhecimentos geograficos, com a determinagao de coordenadas de Pontos para base de futuras operag6es geodésicas, além de classificagdes da flora e da fauna mato-grossenses e levanta- nentos das riquezas naturais, da capacidade de produgao, dos recursos e das vias de comunicacao. Durante a segunda linha construfda pela Comiss&o, de 1907 a 1915, sob a chefia imediata de Rondon, realizaram a construgéo de 4.500 km de linhas e 55 estagdes telegraficas e o reconhecimento geo- Brafico de cerca de 600 km lineares realizado em trés grandes etapas: de Cuiaba ao Rio Juruena, num total de 1.781 km, percorridos durante @ expedicao de 1907; do Juruena a Serra do Norte, com 1.635 km de reconhecimentos; e da Serra do Norte a Porto Velho, & margem direita do Rio Madeira, no estado do Amazonas, num total de 2.232 km per- corridos. Considerando todos os trabalhos realizados pela Comissao, Consideragées finais 297 inclusive o levantamento e a medigao de cursos de Agua, a area Ppercor- tida por ela somaria cerca de 50 mil km de extensao (cf. Magalhies, 1942, pp. 366-372), durante o qual se descobriram 12 novos rios, corri- giram-se enganos sobre 0 curso de outros, bem como de serras e maci- gos, definindo-se suas medidas e precisando-se sua localizagao. + - . . \ A intensa produgdo de documentos visuais ~ fotografias e filmes mudos ~, somada a um volume de publicagées e conferéncias, atuou no sentido de construir uma auto-representacio da Comissio Rondon, marcada por imagens de herofsmo, desinteresse e Patriotismo. Suas imagens mostram a luta “tit@nica” daqueles homens contra a natureza bravia e indomavel, com a travessia de saltos e corredeiras, a grandeza da floresta como um cenério monumental e impenetravel, diversas ce- nas de trabalho e trabalhadores, as estagdes telegraficas construfdas, a mata “rasgada” por picadas e estradas e as intimeras cerim6nias civi- cas para marcar a tomada de posse de uma regidio ja marcada pelos si- nais visfveis desse “progresso técnico” em expansdo, Por meio da divulgagao de imagens e relatos sobre os seus traba\, lhos, esse grupo ia criando uma opiniao publica favordvel aos servigos | que realizava. A fotografia e o cinema, ao mesmo tempo em que com- \ punham uma crénica visual dos trabalhos realizados e do avango da “civilizagao” sobre a natureza e as PopulagGes que encontravam, eram, / também, elementos poderosos na construgao de uma identidade coleti-/ va para o Pais, formando uma “consciéncia da nacionalidade” como) uma base para a construgao da Nagao brasileira. Os registros visuais compostos pela Comissao, com a presenga constante da bandeira nacional, das cerim6nias civicas, da instalagao de marcos e monumentos auto-celebrativos, dos atos para renomear es- Pagos, ao mesmo tempo em que serviam A construgao de uma meméria sobre si prépria, construfam imagens do nacional, criavam simbolos visuais da nacionalidade. As fotografias apontam sobretudo para a in- tencionalidade da produgdo de registros e documentos, evidenciam a vontade da Comissio de perpetuar 0 acontecido, fixar sua passagem fugaz, transitdria, inscrevendo sua atuagao no tempo. A duraco inde- terminada da fotografia e seu poder de evocar ¢ incitar a interpretago mostram ainda hoje os seus efeitos como “artificios” Para construgao da meméria de si mesmo, realgados pela “fidelidade” das imagens,

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