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NOV/DEZ 2019

© Peggy und Marco Lachmann-Anke | Pixabay

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PARCEIROS NA 21° ED:
Aquicultura, segurança
alimentar e qualidade do
pescado: esclarecendo mitos e
insinuações
José Eurico Possebon Cyrino1, Juliana Antunes Galvão2, Daniel Yokoyama Sonoda3
e Célia Maria Dória Frascá-Scorvo4*
¹ Departamento de Zootecnia 3
Instituto de Pesquisas e Educação Continuada em
Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz - Economia e Gestão de Empresas (PECEGE)
Universidade de São Paulo Piracicaba, SP

² Coordenadora do GETEP 4
APTA Regional, Polo Leste Paulista, SAA-SP
Departamento de Agroindústria, Alimentos e Nutrição Presidente da Sociedade Brasileira de Aquicultura e
Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz - Biologia Aquática
Universidade de São Paulo *celia.scorvo@sp.gov.br

A
través do “The State of World Fisheries and sumo humano, e já em 2013-2014 projetava-se que
Aquaculture” (Estado Mundial da Pesca e evoluiria para a contribuição de 65% de todo o de-
Aquicultura - SOFIA, 2020), a Organização sembarque deste pescado até o ano de 2030 (Fontes
das Nações Unidas para Alimen- et al., 2013; WBG, 2013). De
tação e Agricultura [FAO – Food fato, o desembarque de pescado
and Agriculture Organization] de- representa apenas 1~2% do to-
monstrava que em 2018 a pro- tal de alimentos produzido pela
dução da aquicultura ultrapassava humanidade, mas contribui com
a da pesca e já respondia pela 10~12% do total de proteína
metade do consumo mundial A aquicultura consumida pela raça humana,
de pescado. Segundo dados do sendo a proteína cárnea de mais
SOFIA (2020), o desembarque
mundial já representa alta digestibilidade (96%) ou va-
de pescado em 2018 alcançou 46% do desembarque lor biológico, comparativamente
179 milhões de toneladas, com às carnes brancas (90% de di-
um valor total estimado em US$ total de pescado gestibilidade) e vermelhas (87% NOV/DEZ 2019

401 bilhões, dos quais 82 mi-


lhões de toneladas, avaliadas em e 52% de todo pescado de digestibilidade). Em relação ao desembar-
US$ 250 bilhões, vieram da pro- destinado ao consumo que e consequente consumo
dução aquícola. Deste total, 156 de pescado, a balança comercial
milhões de toneladas foram des- humano. brasileira está, e sempre este-
tinados ao consumo humano, o ve, em incômodo desequilíbrio;
que equivale a um abastecimento em 2014 já acumulava déficit de
anual estimado de 20,5 kg per aproximadamente R$ 3,0 bi-
capita. Os 22 milhões de tonela- lhões (Barone et al., 2017). Por
das restantes foram destinados a outro lado, conforme levanta-
outros usos, principalmente para mentos da Associação Brasileira
a produção de farinha e óleo de peixe. A aquicultura de Piscicultura (Peixe BR, 2020) e da Seafood Brasil
mundial já representa 46% do desembarque total de (2019), a piscicultura brasileira cresceu 4,9 % em
pescado e 52% de todo pescado destinado ao con- 2019, terminando o ano com a produção de 799.560
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toneladas de peixes em confinamento, que representa
50,3 % do desembarque de pescado no país, 100 %
destinado ao consumo humano. Este crescimento supe-
ra o de qualquer outra indústria da proteína animal. De tempos em tempos
Apesar de todos estes fatos, de tempos em tempos
são veiculadas notícias especulativas, não embasadas,
são veiculadas notícias
distorcendo os fatos, que lamentavelmente tentam jogar especulativas, não
a opinião pública contra os avanços e a importância da
aquicultura para a segurança alimentar e dos alimentos embasadas, distorcendo os
consumidos mundialmente, em particular no país. fatos, que lamentavelmente
Um artigo/coluna em um respeitado diário paulistano
divulgou recentemente um pronunciamento de um tentam jogar a opinião
renomado profissional da área de saúde que, entre pública contra os
outras coisas, afirmava, ipisis literis, que “salmão do sushi
é tão tranqueira quanto salsicha e biscoito recheado”, avanços e a importância
que mesmo em cidades autossuficientes em pesca “...o da aquicultura para a
que você encontra nos restaurantes dessas cidades?
Salmão e tilápia de criação”, e que “... o salmão não segurança alimentar e
é capturado no mar. Ele é abundante porque vem de dos alimentos consumidos
fazendas marinhas gigantescas, a maioria delas localizadas
no Chile. ... Esse peixe não é saudável... o salmão de mundialmente, em
criação poderia ser catalogado como um alimento ultra particular no país.
processado – mesma categoria dos biscoitos recheados
e da salsicha”.
Preocupada com a repercussão negativa de tais tipos
de notícias, a Sociedade Brasileira de Aquicultura e
Biologia Aquática [AQUABIO], sociedade científica que
congrega profissionais de diferentes áreas do ensino nalística em tela, isso seria o mesmo que advogar que se
e da pesquisa na área de biologia e aquicultura, i.e., voltasse à pesca de baleias para usar o óleo na iluminação
produção de pescado em confinamento, especialmente das cidades com lampiões. Para “voltar” a depender ex-
neste momento de tanta insegurança provocada pela clusivamente da pesca para a alimentação humana, seria
pandemia do “Covid-19”, reuniu alguns especialistas para necessário eliminar da face do planeta, de imediato, 2,52
elaborar este texto com o objetivo de esclarecer a todos bilhões de pessoas, ou seja, “fazer” a atual população
os potenciais leitores sobre a importância da aquicultura humana de 7,79 bilhões “voltar” aos 5,27 bilhões de ha-
- produção de organismos aquáticos em condições bitantes registrados em 1990 quando foi constatada a es-
controladas - na produção de alimentos, contribuindo na tagnação do desembarque de pescado originado da pes-
geração de emprego e renda e na redução da pobreza ca extrativa pela FAO. O Brasil teria que fazer sua atual
e da fome em várias partes do mundo, desempenhando população de 200,9 milhões de habitantes voltar à marca
assim papel de extrema relevância para a segurança de 146,8 milhões de habitantes (para radicalizar poder-
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alimentar e dos alimentos consumidos pela população -se-ia voltar à marca de 1 (um) habitante km-2, ou seja, à
mundial e brasileira, por extensão. Então, vamos aos capacidade de sustentação estimada do território nacio-
fatos. nal de oito milhões de km2 pelos antropologistas quando
Cabral por aqui aportou em 22 de abril de 1500). Não,
Nota de esclarescimento não existe qualquer região ou cidade do país autossufi-
Aparentemente o que se defende nas afirmações con- ciente em pescado. Prova está no fato que mesmo nas
sideradas acima é que se deveria, enquanto população hu- cidades “tidas” com autossuficientes, notadamente aque-
mana, abandonar totalmente o consumo de qualquer las às margens dos piscosos rios da região norte, conso-
tipo de pescado produzido em aquicultura e voltar a me-se pescado produzido em piscicultura nos restauran-
consumir somente pescado (“seafood”) oriundo da pesca tes. Para que se pudesse voltar ao consumo do pescado
extrativa. Como bem posto pelo Prof. Dr. Bernardo Bal- originado estritamente da pesca extrativa haveria ne-
disserotto quando tomou conhecimento da matéria jor- cessidade de se “promover” uma hecatombe mundial!

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Produtos altamente processados são, praticamente Mas, dando alguma especificidade ao tratamento do
na sua totalidade, produtos embutidos, enlatados. Afir- assunto, considere-se de início o dito popular: uma coi-
mar que tilápia e, especialmente, o salmão consumido sa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Uma coi-
no país, são um produto altamente processado é incor- sa é: usa-se antibiótico em aquicultura como um todo,
rer em séria falha conceitual. Uma coisa é o processo piscicultura em particular? Sim, da mesma forma que
de gestão, e outra o processamento industrial. Tanto a se usa em bovinocultura de corte e leite, suinocultura,
criação de tilápia no Brasil, de salmão do Chile, quanto avicultura etc. Mas, qualquer que seja o caso e a área,
a produção de salsicha em qualquer parte do mundo, o uso de antibióticos, quimioterápicos e outros medica-
seguem os mesmos conceitos de gestão de processos mentos na produção animal é extremamente regulado
(Sistema Toyota-Lean, 6-Sigma, 5-S, Kamban etc), mas em nosso país, particularmente depois que o Colégio
são processos de produção (criação x industrialização Brasileiro de Nutrição Animal promoveu e patrocinou
– antes da porteira x pós porteira) completamente dis- em 1999 o Simpósio Sobre Aditivos Alternativos na
tintos. O processo de produção de salmões confinados Nutrição Animal, que colocou frente à frente, em de-
no Chile é muito semelhante àquele de “produção” do bate público, duas das maiores autoridades de então na
salmão selvagem: vivem na água salgada em cardumes, defesa e contestação do uso de antibióticos na nutrição
alimentam-se diariamente de dietas que contêm teores animal, respectivamente Dr. Gary M. Cromwell (Uni-
de nutrientes semelhantes ao que encontra na nature- versity of Kentucky, Lexington, KY, USA) e Dr. Arturo
za, inclusive os tão “famosos” ácidos graxos ômega-3 Anadón (Universidad Complutense de Madrid, España).
(n-3). Se assim não fosse, não sobreviveriam ao sistema As informações contidas nos anais daquele evento (Mi-
de confinamento. A exemplo da tilápia, largamente pro- yada et al., 1999) foram parte integrante do documento
duzida e consumida no país, o salmão importado pelo apresentado pela delegação brasileira no “World Trade
Brasil é produzido em sistema intensivo e comercializa- Organization Ministerial Conference” (Conferência Mi-
do a partir do processamento mínimo (vide Oetterer, nisterial da Organização Mundial do Comércio) realizada
2002; Oetterer et al. 2014). Na realidade, a partir de no mesmo ano em Seattle, WA, EUA, ocasião em que
uma exigência do mercado, o Chile exporta para o Brasil vários acordos referentes ao controle do uso de medica-
salmões com o corte desenvolvido exclusivamente para mentos na produção animal foram celebrados e fortale-
o mercado brasileiro, o corte Brasil H/ON (vide Barone ceram definitivamente a aceitação dos produtos cárneos
e Guilguer, 2016), ou seja, peixes sem qualquer pro- brasileiros no mercado internacional.
cessamento outro que a evisceração, algo nem remo- No que concerne a piscicultura, usa-se especial-
tamente comparado ao processo industrial de produção mente a enrofloxacina e o florfenicol no tratamento das
se uma salsicha, por exemplo. “Cientificamente falando”, bacterioses dos peixes confinados. Enfatize-se: no trata-
para que se possa fazer qualquer afirmação, para se ob- mento, nunca como agente profilático ou promotor de
ter resultados minimamente consistentes e confiáveis crescimento. Marques et al. (2018) demonstraram re-
sobre os quais se possa emitir juízos de valores, só se centemente que o florfenicol tem um período de deple-
pode (deve) fazer comparações entre produtos seme- ção (“withdrawal period”) de 129 graus dia (graus dia é o
lhantes, i.e., salmão “criado” x salmão selvagem; salsicha somatório da temperatura média de dias subsequentes,
x salmão embutido. Opiniões e afirmações emitidas fora e.g.: 129 graus dia é o somatório de uma temperatura
deste contexto carregam erros conceituais graves e são, média de 25,8 oC de um período de cinco dias). Sis-
consequentemente, especulativas ou não têm mesmo temas de salmonicultura operam em temperaturas va-
qualquer validade. riando de 14 a 17 oC, de formas que todo o florfenicol, NOV/DEZ 2019

É oportuno também discutir algo em relação à ad- administrado em qualquer forma a salmões em criação
ministração de remédios “aos baldes” e à alimentação estaria eliminado do corpo dos animais em aproxima-
(dietas) dos peixes confinados. Os medicamentos utiliza- damente nove dias. Essa regra do 120 - 140 graus dia
dos pela aquicultura, quando utilizados, devem ser regis- para a depleção dos antibióticos em peixes é bem geral,
trados e autorizados pela legislação vigente e prescritos ou seja, se um peixe de clima temperado ficar sem ser
e administrados por profissionais certificados e respon- alimentado com dietas contendo antibiótico ou sem ser
sáveis. Existem transgressões às normas, claro, o que é injetado por antibióticos por cerca de 10 ~14 dias, ou
antes a exceção que a regra. O assunto foi tratado com 4,3 dias para o caso de peixes tropicais, como a tilápia,
abrangência e muita competência em Baldisserotto et al. estará apto para consumo humano.
(2017), volume que deveria ser leitura compulsória para Outros trabalhos chegaram a conclusões semelhan-
todos que estão necessitando ampliar os horizontes e tes para antiparasitários como o levamisole e albenda-
aclarar as ideias a respeito. zole e outros quimioterápicos, como a oxitetracilina e

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a enrofloxacina (vide Busatto et al., 2018; Paschoal et corporal varia (equilibra-se) com a temperatura do meio;
al., 2013; Zanon et al., 2012; Paschoal et al., 2011). A (ii) o meio aquático é não somente termicamente mais
explicação para a universalidade deste fenômeno resi- estável que o meio terrestre, como também o padrão de
de no fato que peixes habitam um meio que favorece a definição e comparação dos limites de variação térmica
dispersão de moléculas circulantes no corpo por difusão (calor específico “padrão” = 1), i.e., sólido em tempera-
osmótica, particularmente via brânquias, de formas que turas inferiores a 0 oC, líquido em temperaturas entre 0 e
tudo que está em circulação no corpo destes animais, lo- 100 oC, e gasoso em temperaturas superiores a 100 oC;
gicamente em maior concentração que na água em que (iii) lipídios são “classificados” basicamente em satura-
vivem, tende a se difundir de modo passivo, “fácil”, para dos – gorduras e graxas, sólidos à temperatura ambiente
o meio. O advento das práticas de vacinação de peixes –, e insaturados – óleos em geral, líquidos à temperatura
produzidos em sistemas intensivos, salmonídeos e tilá- ambiente, subdivididos em duas classes: (a) monoinsa-
pias em particular, reduziram significativamente e devem turados, que apresentam apenas uma ligação dupla de
“zerar” o uso de antibióticos e quimioterápicos em pisci- carbono, e (b) poli-insaturados, que apresentam mais de
cultura (vide Mouriño et al., 2017; Delphino et al. 2019). uma ligação dupla de carbono.
Um argumento “definitivo”, mas de cunho absoluta- Como peixes não regulam a temperatura corporal,
mente pragmático e vivencial na discussão deste aspecto, para que mantenham a funcionalidade dos seus sistemas
é o que segue: é de domínio público e conhecimento ge- orgânicos, em que se inclui a capacidade de locomo-
ral que o controle que a “Food and Drug Administration ção, reprodução e funcionalidade do sistema imuno-
of the United States Department of Health and Human lógico, é mister que quando em confinamento, sejam
Services” (Administração de Drogas e Medicamentos do alimentados com rações formuladas para conter níveis
Departamento de Saúde e Serviços Humanos – FDA) do adequados de gorduras insaturadas, líquidas ou pelo me-
governo dos Estados Unidos da América exerce sobre a nos “maleáveis” em um meio de temperatura natural-
qualidade dos alimentos comercializados naquele país é mente mais amena que a do meio terrestre (afinal, em
um dos mais severos, senão o mais severo, do mundo. situações de desconforto térmico em épocas de calor
Se houvesse qualquer possibilidade de contaminação de intenso, tanto mamíferos quanto aves procuram a água
qualquer produto ou subproduto do pescado importado para arrefecer a temperatura corporal por imersão, por
pelos EUA, seguramente a importação do produto em banhos). Este entendimento está ao alcance de qual-
tela seria suspensa. Ora os EUA representam 27 % de quer ser humano com capacidade mínima de raciocí-
todo o mercado chileno de salmão, um volume de apro- nio lógico e, claro, não há como negar estas evidências.
ximadamente 171 mil toneladas. Se o salmão chileno De toda forma, mesmo que recebam quantidades às
fosse impróprio para consumo simplesmente não faria vezes desproporcionais de gorduras saturadas na dieta
parte do portfólio de produtos importados pelos EUA. através da ração, peixes têm capacidade, conquanto li-
Não faz sentido supor que o Chile produza, ou mesmo mitada, de “alongar” cadeias de ácidos graxos saturados
que consiga produzir, 171 mil toneladas de salmão para para produzir, depositar e utilizar ácidos graxos insatura-
exportação para um mercado extremamente exigente dos no corpo, como suficientemente provado e discu-
como o americano e outras 81 mil toneladas contamina- tido por Martino et al. (2002a, b) em relação a peixes
das, inadequados para consumo humano, somente para tropicais (bagres) e Turchini et al. (2011) e Kjær et al.
comercializar com e no Brasil. (2016) especificamente em relação aos salmonídeos. Na
Resta, então, refletir sobre o aspecto nutrição e qua- realidade, Turchini et al. (2011) demonstraram que sal-
lidade dos peixes produzidos em confinamento. Como mões são, na realidade, antes de consumidores, verda-
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afirmado, quando em confinamento salmões são ali- deiros produtores de ácidos graxos n-3 de cadeia longa,
mentados com rações que contêm teores de nutrientes i.e., insaturados.
semelhantes àqueles encontrados nas dietas que conso- O padrão-ouro mundial da nutrição de peixes e ca-
mem na natureza, inclusive os tão “famosos” ácidos gra- marões é a publicação NRC (2011). As exigências nutri-
xos da série n-3; se assim não fosse, não sobreviveriam cionais em ácidos graxos de tilápias e salmões estão re-
ao sistema de confinamento. sumidas na publicação em questão e recomendam que
Não, não há qualquer exagero nesta afirmação e dietas para salmões contenham 1% de 18:2n-6 (ácido
uma abordagem pragmática do assunto é oportuna: linoleico - LNA) mais 1% de 18:3n-3 (ácido linolênico –
(i) peixes são animais pecilotérmicos (ou ectotérmi- (A)LA), e assim são formuladas. A falta destes lipídios nas
cos, ou poiquilotérmicos, dependendo do viés linguís- dietas dos salmonídeos implica em sérias perdas econô-
tico-gramatical de cada um), ou seja, sua temperatura micas em função da redução do ritmo de crescimento

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e redução da eficiência alimentar, quando não na perda alimento na água – grãos extrudados são formados por
total do estoque confinado resultante de anemia crônica, gelatinização do amido e matriciamento e, assim, se
degeneração do epitélio branquial, esteatose, hipertrofia mantêm estáveis por tempo suficientemente longo para
(hepatomegalia) e degeneração hepática e consequente que os peixes possam consumir todo o alimento admi-
falência completa do sistema imunológico. Desta forma, nistrado em uma refeição –, maior a produtividade e
se o salmão chega à mesa do consumidor é porque re- menor a carga poluente do sistema de produção. O uso
cebeu adequada nutrição lipídica (e também, claro, em de rações extrudadas reduz as perdas físicas do manejo
energia, aminoácidos, vitaminas e minerais) e tem, con- alimentar e a emissão de metabólitos (de nitrogênio e
sequentemente, composição corporal e qualidade pró- fósforo) e sólidos (fezes) pelos peixes em cerca de 90%
prias para consumo. O mesmo é verdade em relação (vide os trabalhos clássicos de Colt, 1991; Beveridge e
aos peixes tropicais, tilápias aí incluídas, como recente- Phillips, 1993).
mente relatado em trabalho que reuniu esforços dos A matéria a que se refere este artigo termina em um
grupos de pesquisa da Universidade Federal de Lavras, post script, onde se ressalta que o que foi afirmado em
do Centro de Aquicultura da UNESP e do Departamen- relação especificamente ao salmão é aplicável também
to de Biologia e do Centro de Investigação Marinha e para outros animais de criação, em particular o frango, e
Ambiental da Universidade do Porto, o qual demonstrou considera que como é inviável para a maioria da popula-
que a otimização da relação LNA:LA na dieta melhora o ção adquirir carnes produzidas em fazendas que adotam
perfil de ácidos graxos corporais em juvenis de tambaqui boas práticas, seria melhor continuar comendo “carne de
(Paulino et al., 2018), ou seja, a nutrição lipídica dos pei- baixa qualidade” que não comer qualquer proteína, mes-
xes confinados pode, na realidade, permitir “desenhar” a mo que o alimento consumido não seja bom. Tal afirma-
composição em lipídios da carne dos peixes, tornando- ção não somente desmerece todo e qualquer produtor
-a em verdadeiro alimento funcional. É impossível que rural brasileiro, da agropecuária ou da agricultura, bem
grupos de pesquisadores de tão reconhecida capacidade como a todo e qualquer engenheiro agrônomo, médico
possam estar todos equivocados ao mesmo tempo! veterinário, zootecnista ou técnico agropecuário em ati-
Parece oportuno também esclarecer a afirmação que vidade no país. A carne de aves, de suínos, de bovinos,
a ingestão de alimentos com alto grau de processamento de peixes ou qualquer outro produto cárneo consumi-
produz peixes “ultra processados”. Primeiramente, fica do pela população brasileira e mundial, não “brota” por
bastante difícil compreender como o alimento proces- geração espontânea nas gôndolas de supermercados ou
sado pode “passar” para o peixe o seu grau de proces- nas prateleiras de um refrigerador. O mesmo é verdade
samento. Seria o mesmo que afirmar que se um ser para qualquer produto agrícola, de uma uva a uma me-
vivente qualquer ingerisse uma quantidade inespecífica lancia. Ovos também não “brotam” nas caixas ou bande-
de batatas “chips”, iria acordar empacotado à vácuo em jas. Leite também não “mina”, não jorra das caixas longa
uma gôndola de supermercado. vida (“tetra pak”) ou embalagens plásticas. Todo alimento
Existe basicamente três níveis de processamento consumido pela raça humana, qualquer que seja o pro-
de rações para uso em aquicultura (ou qualquer outra cesso de produção, é resultado de trabalho árduo, du-
criação animal): (i) rações fareladas, que consistem na ríssimo, ininterrupto, dedicado, competente, resultado
simples mistura dos ingredientes (farelos) utilizados para de muito estudo e pesquisa e tecnologia. E de altíssima
formular a dieta; (ii) rações granuladas ou peletizadas, qualidade! Assim não fosse, nosso país não seria o maior
que consiste na compactação (prensagem) das rações produtor e exportador mundial de carne bovina, o se-
fareladas, geralmente em ambiente úmido, em grânu- gundo, e em horizonte muito curto, o maior produtor e NOV/DEZ 2019

los (péletes); e (iii) rações extrudadas, que consiste na exportador de carne de frango, e o quarto maior expor-
granulação das dietas na forma farelada sob cozimento, tador de carne suína. O mesmo vale para soja e milho.
o mais alto grau de processamento que se aplica a uma Segundo o dito popular, se conselhos fossem bons
dieta formulada para organismos aquáticos (Moscicki, pessoas não os davam, mas sim vendiam. É impossível
2011). Somente o uso de dietas (rações) completas e cercear o direito de se ter e publicar qualquer ideia, mas
altamente processadas, i.e., cozidas, pode garantir alta é sensato e honesto acatar o aforismo do filósofo Voltaire
eficiência alimentar (otimização do índice de conversão (1694 – 1778), segundo algumas fontes, ou de sua bió-
alimentar) e, com isso, segurança econômica, sanitária e grafa Evelyn Hall, segundo outras, “Posso não concordar
ambiental no sistema de produção. com uma única palavra do que dizes, mas defenderei
Quanto melhores a qualidade nutricional – formula- até a morte o teu direito de dizê-la”. Assim sendo, o
ção precisa e alta digestibilidade – e a estabilidade do que segue, então, não é um conselho, mas sim um aler-

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ta. As informações oferecidas no parágrafo anterior são Kjær, M.A.; B. Ruyter, G.M. Berge, Y. Sun, and T.-K.K. Østbye. 2016.
frutos da leitura do excelente volume organizado pelo Regulation of the omega-3 fatty acid biosynthetic pathway in
Atlantic salmon hepatocytes. PLOS One 11(12): e0168230.
Dr. Roberto Rodrigues, eminente ex-Ministro de Estado Marques, T.V.; J.A.R. Paschoal, R.S.C. Barone. J.E.P. Cyrino, and S.
dos Negócios da Agricultura do Brasil, enquanto ocu- Rath. 2018. Depletion study and estimation of withdrawal
pante da Cátedra Luiz de Queiroz da Escola Superior de periods for florfenicol and florfenicol amine in pacu (Piarac-
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Análises e propostas para o Brasil alimentar o mundo”. Martino, R.C.; J.E.P. Cyrino, L. Portz, and L.C. Trugo. 2002a. Effect
of dietary lipid level on nutritional performance of the suru-
Quem sabe seja interessante antes de se propalar falsas bim, Pseudoplatystoma coruscans. Aquaculture 209: 209-219.
informações ou expor ideias não balizadas ao escrutínio Martino, R.C.; J.E.P. Cyrino, L. Portz, and L.C. Trugo. 2002b.
público em nome sabe-se lá de qual grupo de interesse Performance and fatty acid composition of suru-
ou ideologia, que os perpetradores de tais leviandades bim, Pseudoplatystoma coruscans fed diets with ani-
mal and plant lipids. Aquaculture 209: 233-246.
não somente lessem o livro em tela como estudassem o
Miyada, V.S., J.E. Bútolo, J.E.P. Cyrino, e E.A.F. Bútolo. 1999.
assunto sobre o qual irão discorrer, começando, no caso Anais do Simpósio Sobre as Implicações Sócio-Econô-
particular da aquicultura, pela lista de referências biblio- micas do Uso de Aditivos na Produção Animal. Colé-
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