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A América e o Nascimento da Geografia Moderna*


Horacio Capel†

De certa maneira se pode afirmar que a Geografia Moderna nasceu na


América durante o século XVI, no esforço de conhecer, descrever, estudar e organizar
as novas terras descobertas. Humboldt escreveu num texto conhecido e significativo:
Em nenhuma outra época desde a fundação das sociedades o
círculo das idéias se ampliou de forma repentina e maravilhosa,
no que se refere ao mundo exterior e às relações de espaço.
Jamais se sentiu com tanta veemência a necessidade de
observar a Natureza em latitudes diferentes e em diversos graus
de altitude do nível do mar, nem de multiplicar os meios cuja
virtude pode obrigá-la a revelar seus segredos (Humboldt
Cosmos, ed. 1874, pg. 256).

O impacto da América sobre a ciência européia pode mostrar como a


geografia, assim como outros ramos científicos, se viu afetada pelo conhecimento do
Novo Mundo num processo de fluxo e refluxo no qual as idéias renascentistas, de raízes
clássicas e medievais, serviram como ponto de partida para a observação e interpretação
da realidade, mas resultaram profundamente transformadas pelo contato com a mesma.
Neste sentido, três linhas podem ser seguidas: 1) a transformação do gênero
historiográfico das crônicas medievais como resultado da utilização da obra de Plínio e
o impacto produzido pelo contato com a natureza e os povos americanos; 2) o
desenvolvimento da linha de reflexão científica que conduz a integrar e relacionar os
fatos físicos e humanos e, com eles, a gênese das histórias naturais e morais; 3) o
desenvolvimento de uma nova teoria ambientalista da obra do padre Las Casas.
Não cabe nenhuma dúvida sobre a profunda novidade que implicou o
esforço de integração de fenômenos diversos de caráter humano e natural nessas obras
que contribuíram decisivamente para sistematizar e difundir as notícias do Novo Mundo
e que, ao mesmo tempo, puderam converter-se também em modelos de uma nova forma
de descrever o mundo. Sem dúvida é surpreendente que esses autores puderam
converter um gênero historiográfico tão tipicamente medieval como as crônicas num
instrumento moderno de organização de conhecimentos e de reflexão científica do
mundo geográfico.
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O artigo original do qual este se baseia foi publicado sob o título Naturaleza y Cultura: América y el
Nacimiento de la Geografia Moderna,na coletânea História da Ciência: o mapa do conhecimento,
organizada por Ana Maria Alfonso-Goldfarb e Carlos A. Maia. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São
Paulo: EDUSP, 1995., páginas 247 – 306). Tradução e adaptação Márcia Siqueira de Carvalho.

Catedrático de Geografia Humana na Universidade de Barcelona, Espanha.
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Como em tantos outros aspectos do Descobrimento, é na tradição clássica


medieval donde se encontra as origens do gênero. Também nele, como em tantos outros
aspectos do Descobrimento, os fatos são mais bem entendidos se é considerada não
apenas como o início da Idade Moderna, mas também como a continuação e culminação
do desenvolvimento medieval.
Os historiadores antigos haviam incluído frequentemente as considerações
sobre o meio geográfico nas suas narrativas, e a História de Heródoto é um doa maiores
exemplos dessa tradição, encontrada em outros como Políbio ou Justino, autores mais
conhecidos na Idade Média. Mas a associação entre história e geografia podia chegar ao
ponto de dirigir a esta última ciência os especialistas da primeira, como parece ter sido o
caso de Estrabão, que redigiu sua obra Geografia depois de ter escrito Memórias
Históricas em 47 livros.1
Situadas nessa tradição, as crônicas, essas “histórias nas quais se observa a
ordem dos tempos” incluíam frequentemente na Idade Média preâmbulos geográficos e
podiam também se referir a aspectos tais como o caráter dos povos, os monumentos, as
letras ou os homens ilustres, a explicação do mundo natural através dos seis dias da
criação, a descrição de todo orbe terrestre ou de territórios particulares. A crônica trazia
uma tradição, cujas raízes eram antigas, e que conduzia facilmente à integração entre a
Geografia e a História. Não somente à História Geral, mas também os sucessos
particulares como as conquistas de territórios. Os cronistas de um rei ou reino, esses
historiadores tinham a obrigação de relatar os sucessos do reinado, a preocupação de
mostrar as origens desses fatos, o que os levava a compilar em materiais diversos, desde
anais históricos até poemas e lendas populares, passando por notícias de escritores
sagrados e clássicos. Desde a Idade Média existia tanto o cargo de cronista como a
capacidade deles para observar lucidamente os acontecimentos contemporâneos, e por
sua vez, sistematizá-los com maior ou menor crítica os materiais provenientes de
diferentes fontes.

O Modelo de Plínio, o Velho


Gonzalo Fernández de Oviedo, autor de História Geral e Natural das Índias,
tratou dos aspectos de modo simultâneo e com idêntica atenção, tendo dado um passo
decisivo para a integração dos fatos naturais e humanos. Não há dúvida de que foi
precisamente a América que lhe fez dar esse passo. Foi a surpresa diante das
características da natureza americana que o levou a prestar uma atenção decisiva ao
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meio natural e para ordenar esses dados usou como modelo (Quadro 1) a da obra
enciclopédica de Plínio2, e lançou mão de autores clássicos como Columela, Tofrasto,
Virgílio, Crescentino (ou Gabriel Alonso de Herrera). Mas a natureza das Índias era tão
afastada e diferente em relação ao mundo conhecido dos antigos que apesar de sua
predileção por Plínio foram feitas as primeiras reformulações explícitas da crítica e
superação do saber clássico. Reunindo o modelo de Plínio e o conhecimento direto das
terras americanas, podemos dizer que o historiador Fernández de Oviedo também se
converteu no geógrafo moderno.

Quadro 1: Modelo da Obra História Natural de Plínio, o Velho.


Livro Primeiro Cosmografia e Geografia
Livro Segundo Mundo, os elementos, as estrelas, o
Cosmos, disposição dos climas
astronômicos e das regiões e a influência
sobre os habitantes, meteoros e
terremotos.
Livros Terceiro ao Sexto Três partes do mundo (Europa, África e
Ásia), com destaque para a Europa:
orografia, as divisões administrativas, as
cidades, os povos que habitam as
diferentes regiões (latitude, longitude e
extensão), razões geográficas da grandeza
de uma nação.
Livro Sétimo Campo da Moral

A partir da tradição historiográfica medieval e renascentista, e com a ajuda


da enciclopédia de Plínio e de outras obras clássicas3, os cronistas das Índias se
converteram também em geógrafos modernos no contato com a natureza e os povos
americanos, diante da necessidade de transmitir aos leitores europeus a novidade do
mundo descoberto.
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Figura 1: A História Geral das Índias – Oviedo.


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As Crônicas das Índias diante da realidade do Novo Mundo


Fernández Oviedo, o cronista das Índias, merece um mérito especial pela
atitude geográfica que se reflete em alguns traços que valem a pena destacar:
1) A organização geográfica de sua crônica sucessivamente
descrevendo a ilha de Espanhola de San Juan (ou Porto Rico),
de Cuba e de Terra Firme.
2) A cuidadosa atenção ao marco geográfico dos acontecimentos.
Sua história é sempre rigorosamente localizada com atenção
às circunstâncias topográficas, hidrográficas e climáticas que
servem para interpretar certos fenômenos. Em muitas ocasiões
intercala a narração histórica com a apresentação do território
e dos povos dele habitantes. Em outras, antes da história do
território fez uma exposição ampla e detalhada de sua
geografia e de notícias cosmográficas indispensáveis, mas
sempre atento ao teatro da crônica e suas conseqüências sobre
os acontecimentos.
3) A sua preocupação em fixar cuidadosamente a posição das
terras, especificando a latitude e distâncias usando o astrolábio
e corrigindo informações se necessário.
4) A sua capacidade para realizar uma geografia e uma história
natural comparadas tanto a partir da perspectiva de
semelhança com o mundo conhecido como a da diversidade.
Em outras palavras, tanto a partir da preocupação em
incorporar as novas terras ao próprio horizonte mental como a
que conduz ao reconhecimento do novo e de suas diferenças a
respeito do conhecido.
De fato e simplificando muito, depois de Fernández de Oviedo podemos
diferenciar claramente dois tipos de crônicas históricas, ambas derivadas da tradição
medieval. De um lado, os historiadores que elaboraram suas recopilações na Espanha,
recopilando e sistematizando de forma erudita materiais de segunda mão. Semelhante a
muitas crônicas medievais, há um preâmbulo geográfico que precede as narrações no
qual são apresentadas algumas noções cosmográficas gerais para situar o Novo Mundo
no conjunto da esfera terrestre, discutindo para confirmar ou rechaçar as idéias
procedentes da Antigüidade clássica ou medieval. Um exemplo é Hispania Victrix,
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História Geral das Índias (1552) de Francisco López de Gómara. No outro lado estão
os historiadores que tiveram um contato direto com a realidade americana. Entre eles o
essencial é a transmissão do que é diretamente percebido, a emoção que se nota no
descobrimento pessoal e nos esforços para comunicar ao leitor europeu uma imagem
viva e verdadeira da imponente natureza “indiana” e dos estranhos povos que nela
habitam. A descrição geográfica envolve agora toda a obra não apenas como
apresentação geral dos territórios, mas como permanece a vontade de mostrar o marco
dos fatos, o teatro da história. Ainda que em alguns, mais eruditos ou preparados, possa
vir acompanhado de debates sobre as idéias clássicas ou de notícias cosmográficas sobre
a latitude e a posição dos lugares descritos. Entre eles se inscreve Cieza de Leon, autor
da Cronica del Peru (1553), um verdadeiro tratado descritivo da geografia regional,
física e humana, de uma modernidade verdadeiramente assombrosa e de uma influência
– como a de Oviedo – deve se supor grande diante da sua ampla difusão européia. De
maneira semelhante e quase simultânea, embora de forma independente, o funcionário
da Fazenda Real Agustín de Zárate redigiu sua obra Historia del Descubrimiento y
Conquista de la Provincia del Perú (1555) iniciando a narração com o primeiro livro
dedicado em boa parte à apresentação do meio geográfico. Ou ainda, o padre Las Casas
ao combinar o conhecimento do meio americano com a teoria ambientalista que lhe
permitiu defender a nobreza e a dignidade dos indígenas na obra Apologética (Historia
Sumaria Cuanto a las Qualidades ...). O franciscano Frei Toribio de Benavente
Motolinia, autor de Historia de los índios de la Nueva España, apesar de seu objetivo
principal ser o trabalho missionário e o projeto evangelizador, também incorporou o
meio geográfico somado à transmissão de sua emoção ao leitor diante da visão direta da
natureza americana. Montes, rios gelados, florestas e descrições das comarcas se
sucedem, se repetem as exaltações da beleza e fertilidade do solo e não faltam as
comparações com a geografia européia.
O mesmo acontece na Crónica de la Nueva España do humanista catedrático
e posteriormente reitor da Universidade do México Francisco Cervantes de Salazar;
com a Historia de Chile (1575) do capitão Alonso de Góngora Marmolejo; com a
Crónica del reino de Chile de Pedro Mariño de Lobera, para citar algumas outras obras.
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A teoria ambientalista de Las Casas


A argumentação ambientalista do dominicano Las Casas estava muito
influenciada pela concepção aristotélica transmitida e reelaborada por grandes figuras
de sua ordem, Alberto Magno e Tomás de Aquino: o influxo do céu e das estrelas sobre
os lugares, as propriedades particulares em relação com o círculo do horizonte e a
existência ou a proximidades de montanhas, mares ou outros acidentes geográficos. A
insistência na suavidade do tempo atmosférico dos lugares, sem turbulências ou calores
excessivos e a alusão à matéria seminal e a geração se relacionam, sem dúvida, com a
tese aristotélica de que os povos expostos às temperaturas extremas são bárbaros, e a
conexão entre os alimentos, os humores e as características intelectuais que tinham
igualmente uma larga tradição médica e filosófica.
O interessante é ver tudo isso aplicado à elaboração de um determinismo
geográfico que, por um lado, percebe sempre de maneira favorável o ambiente
americano e, por outro, trata de explicar com ele a racionalidade, nobreza e dignidade
dos povos indígenas. Tradicionalmente as teses ambientalistas tinham sido empregadas,
e seriam empregadas até o século XX, para justificar a superioridade dos povos situados
na zona temperada, isto é, a Europa. É o eurocentrismo que aparece nitidamente em
Bodin quando afirma que os povos da região central (das latitude médias entre 30○ e
60○) estão melhor preparados para governar as repúblicas por terem mais a prudência
natural. Frente a eles os indígenas americanos aos quais se refere Las Casas, os das
Antilhas e Terra Firme, todos localizados abaixo dos 30○ de latitude se apresentam com
notáveis virtudes intelectuais e morais: inteligentes, engenhosos, de vivo entendimento,
de coração esforçado, mansos, morigerados, modestos, sóbrios e de boa razão. Tudo
influenciada por uma geografia física americana descrita como submetida às influências
favoráveis do céu, temperada, sem turbulências nem frios ou calores excessivos e
produzindo alimentos sãos e de fácil digestão.
No que diz respeito à percepção favorável do meio natural, o Padre Las
Casas foi um continuador da visão otimista que foi transmitida pelos primeiros
descobridores, iniciada por Colombo que apresentou uma imagem paradisíaca das terras
por ele descobertas. Em Las Casas isso se converteu numa afirmação iluminada sobre os
efeitos favoráveis da natureza americana sobre os efeitos favoráveis da natureza
americana sobre os habitantes, apoiando a sua tese político-antropológica em defesa da
dignidade dos indígenas. Por seus objetivos e conclusões sua obra é verdadeiramente
excepcional.
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Referências
BENAVENTE (Motolinia), Fray Toribio de. Historia de los Índios de la Nueva España
(1541). Madrid: Alianza Editorial, 1988.
CAPEL, Horacio. Ambientalismo e Historia. El Padre Las Casas como Geógrafo,
Homenaje al Profesor Luis Miguel Albentosa, Universidad de Barcelona (en
publicación).
CERVANTES DE SALAZAR, Francisco. Crónica de la Nueva España, Biblioteca de
Autores Españoles, tomos CCXLIV e CCXLV. Madrid: Atlas, 1971. 2 vol.
FERNÁNDEZ DE OVIEDO, Gonzalo. De la Natural Historia de las Índias, Madrid :
Editorial Summa, 1942.
_______. Historia General y Natural de las Índias.Madrid: Stlas, 1959.
GÓNGORA, Marmolejo, Alonso de. Historia de Chile Desde su Descobrimiento Hasta
el Año de 1575. Madrid: Atlas, 1960.
LAS CASAS, Martolomé de, Historia de las Índias. Mexico. Fondo de Cultura
Económica, 1951.
_______. Apologética Historia Sumaria Cuanto a las Cualidades, Disposición,
Discripción, Cielo y Suelo de Estas Tierras, y Condiciones Naturales, Policias,
Repúblicas,Maneras de Vivir e Costumbres de las Gentes de Estas Índias Occidentales
y Meridionales, Cuyo Imperio Soberano Pertence a los Reyes de Castilla, en Obras
Escogidas de Fray Bartolomé de las Casas III (Biblioteca de Autores Españoles, Tomo
CV, Estudio Crítico e edición por J. Pérez de Tudela, Madrid: Atlas, 1958.
LÓPEZ DE GÓMARA, Francisco. Hispania Victrix. Primera e Segunda parte de la
Historia General de las Índias, Historiadores Primitivos de ÍndiasI, 1, Biblioteca de
Autores Españoles, Tomo XII. Madrid: Atlas, 1946.
MARIÑO DE LOBERA, Pedro. Cronica delReino de Chile, escrita por el Capitan
dirigida al Excelentisimo Sr. D. García Hurtado de Mendoza, marqués de Cañete ... .
Biblioteca de Autores Españoles, Tomo CXXXI, Madrid: Atlas, 1960.
PLINIO, Historia Natural de Cayo Plinio Segundo. Traducida por el Licenciado
Gerónimo de Herta Medico y familiar del Santo Oficio de la Inquisición y ampliada por
el mismo con Escolios e Anotaciones. Impressor del rey N. S. Año 1624. 2 Vols.
ZARATE, Agustín de, Historia del Descubrimiento y Conquista de la Provincia del
Perú y de las Guerras y Cosas en ella Acaecidas Hasta el Vencimiento de Gonzalo
Pizarro y de sus Secuaces, que en Ella se rebelaron Contra su Majestad, Por... Contador
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de Mercedes de la Majestad Cesárea (Amberes, 1555), en Historiadores Primitivos de


Índias, II, (Biblioteca de Autores Españoles, tomo XXVI), Madrid: Atlas, 1947.

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Outros exemplos podem ser citados como São Isidoro (Isidoro de Sevilha) que escreveu De Natura
Rerum que podia ser lida como uma introdução às suas duas grandes obras históricas – Chronicon e
Historia Regibus Gothorum, Wandalorum et Suevorm
2
Trata-se de Plínio o Velho (23-79 d.C.), e a obra em questão é História Natural.
3
Ver também Solino Polyhistor – Collectanea Rerum Mirabilium, muito usada na época medieval e e
repetidamente impressa a partir de 1493, e Etimologias de Isidoro de Sevilha; por exemplo.

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