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° UUnivensionne Esranuas ¢ Castine Retr Régine Robin A memoria saturada Traducio Cristiane Dias Greciely Costa Digitalizada com CamScanner ssmeorags26813907 EB As “ice, pblieat foonos como apoio le b, Digitalizada com CamScanner 1 As evasées da consciéncia factual © passado nio ¢ apenas uma meméria constituida oficialmente com a qual a classe dominante poderia jogar, a qual cla poderia usar ¢ da qual ela poderia abusar; ele nao é rambém unicamente constituido de fragmentos, de rexalhos mais ou menos deslocados, ccultos,esquccidos, que grupos ou individuos procuram fazer vic Arona, grupos de vitimas da hisedria que pedem oqueIhesédevido ‘sem ser escutados; nio é simplesmente, pelos depdsitos, arquivos ce documentos que dleixa, matéria para elaboragio cientifica para ‘oconhecimento ou para historias familiares que se transmirem de _geracio em geragio sofrendo deformagoes, transformagbes, rees- crevenddo-se ou reclaborando-se na oralidade; ele é ambém uma, forca que nos habiea ¢ nos estrutura involuntariamente, incons- cement, 0 tecido do qual somos feitos. Manipular 0 passado é uma fantasia onipotente que habica permanentemente os grandes deste mundo, bem como controlar grande narrativa que vai format as consciéncias de maneira direta ‘ou indireta, deixar monumentos, datas, festas, nomes. Mas os mortos se rebelam. Eles erram como espectros, como fantasmas, ras paisagens desertas do presente ¢ nao se deixam facilmente esquecer ou convencer, Quando falamos sem cesar em nome deles, em seu lugar, quando os fazemos falar desta ou daquela ‘manera cles tm sua prépria maneira, bem particular, de lembear a5 Digitalizada com CamScanner REGINE ROBIN dos cuidados dos vivos les habitam os vivos, deixam seu trago, Fa imPressio até no coragio da fortaleza da meméria que ¢ uma fancasmagérica miquina de esquecimento, Foi 10s preciso inven- juntamente com os ritmos da meméria, os modos de presenga do passado em nés, a maneira com a qual os passados habitam > Bresente, no mais simplesmente amaneira com aqual o presente faz uso dos passados. Dentre esses mortos que ndo chegaram ainda a se ibertar da instrumentalizagio da qual sio objeco,estio aqueles que modifica ‘am para sempre a conscigncia ocidental: os eis milhes de judeus assassinados pela Alemanha nazista na tiltima Guerra Mundial, ‘Nunca uma meméria foi mais celebrada do que adeles,guardada como #8 Sapte. eetve por um adlto,espcialistzem Holosausto, so Sidjealo. E problema delss, no meu", Ais, éexaraments 82 aque se lé em Fragments: 9.99 “Te Memory Thi The New Brean 2s aoe Eagan gu st dens es Pt Eons 18 pGurerch “The Memory Thief 32 26 [MEMORIA SATURADA secon abr devo oun} PP i ee a ann ea a evivi como UM COE niimero de criangas. Nossa morte aa ido a légica do planoe eno nossa sobrevivencia! Seu ceeava projetada e ndo nOS# opine amos estar morcos. Mas vivertor Kx edo programa. Eu niosou post sexacamente possivel seu programa de a0» ‘emdeusimento desal So pons tena esi ateves de palavras,o mai oe wii, Tao exaramente quanto MiP vr ainda conhccer a pesspectva nem @ PON? oque! rao © fim da histdra,seé que hi um. ¢ que Wilkomirski é um ser frag, muito depresivo, abandonado Por codos os que tinham conganizado seu imenso sucesso de vendas. Set ddaseditoras; hoje € quase imposs Khari, Seu bidgrafo moveu uma agdo para que OF bliquem novamente Fragrientscom uma advertén¢it Oquefoi Fae made enzo, encontraram tragos do verdadelro Pai de ‘Wilkomirskicveatesde DNA estabeleceram que, definicivamener rence verdadero pai de Bruno Grosjean, que se tornou Dés- seller, lids Binjamin Wilkomirski, Wilkomirski eontinuou 2 Theat concra sua desgraga na certeza interior de que no foi compreendido! TAgors é preeso perguntar 0 que rornou Fragments possivel ‘Dosetsamigo Bernstein as associag6es de terapia coletiva, eudo foi Iigado paratransformar os pesadelosde Wilkomitski,suasleieuras suas visbes, suas criagBes, até mesmo seus fantasmas, em “verda- deitas lembrangas’ Ele responde a Philip Gourcviseh quando este the pergunta como ele resgarou esses vestigis de suas lembrangas: a livro foi retirado lar nas 6g. wim FPrapentonk 1 § Mehler Der al Vili, er die Md ine agp Zar Pe 2000, reanae 8 Recenemsns doisnooslios eri ve Digitalizada com CamScanner PEcINE Rosin : cae ‘uss lembrangas quer dizer reigatar suas api oct tinha perdido, No me io havi lembrangas que lembrangas graas ene 0 conttér bedi men Sriro, Ew nio havia me esquecido de nada quando escreri ‘espatado, Algumas das minhas lem. todos os dia, Quando eu erajovem, no inicio do ensino medi Passvahorasdo meu tempo lve mmeona da jardim, Eu repeta pata mi int mesmo tudo o que eu podia melembrar. Eu tina medodeexqueceeEucsavainfin Baoan fen cu vim, da Polonia, no pals dos vidoe tenteirejetaressaslembrancas que me vs Pesadelos. Eu queria levar uma vida feliz somo meus amigos. le 40 anos, apés uma grave doenga, que come: io stava realmente vivo, eu copiavaa vida vida . Eu nio vivia, eu fizia de conta que vivia. Entéo, «stava pronto para eserever ede, com mai dequeeun Wilkomirski encontra em Bernstein, em Lea Balint, em sva esposa e em todos os meios “psi” os quaisfrequenta, pessoas ds- Postasa dar formaa suas visbes, ada alas estaruto de lembranga, Além disso, ele cultiva uma verdadeira cultura da Shoah, lendo ‘tudo com muita rapidez, vendo todos os filmes, capaz de reconhe- cer lugares, barracées tanto em Maidanck quanto em Birkenau, A meméria de Wilkomitski é uma enorme meméria desu deslocada, uma meméria “em lugar e espago’ no lugar de outa ¢ em nome deoutra. Nioem nome dos mortos que Primo Levi nos Jembra que nio podemos testemunhar por eles quando nds mes- ‘mos somos “verdadeiros” sobreviventes. Nao, nio se erata disso, ‘mas de uma meméria inconscientemente simulada, pela identi- ficagio com a maior tragédia do século, sem diivida, devido & idude de conceber que ele tinha sido uma crianga aban- texto de Wilkomitski poderia ter sido uma fiegéo, um Jogo deaucoficgio, como olivro Oiseau bariole*, de Jerzy Kosinski, © RGowcich. The Metony The op 55 ‘mas nada comparado com o que produziu Wilkomirski, Ele nio ividas, nio tem nada de distorcido, romanceado; ele nio colocou na ficgio a verdade, ele nao deslocou nada em relagio 20 referent, €o referente que est faltando, nfo como Historia, mas como sua ria, Nao se crata de “mentir a verdade’, da fegSo romanesca, mas de ura “verdadeira mentira™ sobre si, sobre sua inscri¢ao na| A memoria de Wilkomirski nao ¢ em nada uma meméria “provavel” ou “potencial’, como a de Georges Perec. Em toda a sua obra, nio € 0 caso de uma identidade frigil que impée uma ‘experimental como sua escrta; ou, mais exatamente, que impée ee ‘como em Ellis Island. Por que seu pai e sua mie escolheram (se- paradamente) vir a Paris em ver de partic para a América como ‘muitos outros judeus? Ou come Léon, irmio de sie, para Israel? Em Ellis Island, Perec declara: de incerteza, do provivel, do potencial, uma meméria Eu poderia er nacido, como alguns pimos préximos ou longinques, ‘no pals dos meus ancestrais, em Lubartow ou em Vatsivia., Durante uma entrevista com Franck Venaille em feverciro de 1979, Georges Perec fala de uma mem (a de Ellis Island) que, sem sera sua lhe diz respeito como uma meinéria possivele provivel Reuven prchanale prerde ran Skim Pele Me ee Red Eli ad. Hotere deracet dep: aa dons da Sorbie. 0 Digitalizada com CamScanner Y : stone none ‘Também nio se rata de autofiegio. Na quarta-capa de Fl, Serge Doubrovsky, 0 autor, esereve: “Aucobiografit” Ni. um privlégioeservadoasimportantes deste smundo, no enrardecer de suas vidas eem grande estilo, Fico dos acon- tecimentos dos fatosestitamene ras se quisermos, autoiegio, por ccrenereedo alingsags avennuradaventradalingy subedoria sem sntaue do romance, do radicional ou novo. Mais tarde, cle define 0 novo género que instituiu:“A autofic- so €a fiegdo que cu decidi enquanto escritor dara mim mesmo, incorporando-a, no sentido pleno do termo, & experiéncia da andlise,nio mais somente na temitiza, masa produgio do texto", A autofiegdo seria um tipo de autobiogafia deflagrada levando fem conta a contribuigio da psicanlis, da irsupgio do sujito, daescrita comoiindicio de ‘pe respeitando os dados do referente, Esse novo tipo de autobiografia, esa autoficgio seré gio. Tomada rs ¢ faz 0 jogo em todos os sentidas do termo, Alain Robbe-Grillee problematizavada seguinte forma: Podese nomear sso, como se fila de um Novo Romance, uma Nova Autobiografia, temo que i teve 0 seu prestigi? Ou ands, de maneira ‘ras precisa ~ segundo a proposa devidam estudante -, una “autobiogeaia consclnte’, ou ses, consciene dasa prépriaimpossibilidade constizciva, de fees que necesaismente & arravesam,de unas e patadoxos que a minam, de pastgens reflecvas quequebrame movimento anedéico Ae seu inconsciente®, ne Fandamentada de un: talver, uma palavraconsciente BFS Doabronky.“Aurbigraphi 980 Retora em dutbiaphios BA Rebbe Gale Le Deri ord Corn. lee Lp rt oh XX. 0.3, 230 |A MEMORIA SATURADA, Em todososseus romancese narrativas de Flsa Apress pasando por Un amour desoi Le Lor brie Serge Doubrovlly PReoloca em cena, trabalha na edificagio de sua propria estiuua Sida que 0 scindalo deva continuat, opera um trabalho de ga- rantia narcsista mesmo quando ele se apresenta como um canteiro de dissolugio do eu. No primeiro romance que coloca em cenaa Fils ele recorre aumaestranha montagem. O romance «em inglés eem itdlico, as propostas do analistadireramence reto- smadas pelo narrador ¢as costuras de imagens entre 0s sonhos ¢ 0 curso sabre Racine que ele tem que preparat. Esse dispositivo muito jentidade autor-narrador-personagem jogar com a coincidéncia, mas, ao mesmo tempo, com a conscién- cia dessa superposiga Dat o tema do entredois ¢ do desdobramento, da impossibilidade de encontrar seu lugar, seja na filiagio ou alhures, de encontrar um lugar: Mex agar nuncaZomeu. Exiso. LA onde eu niosou. LAondecusou. NAOEXISTO... Nio importa quese figs Sempre preciso LAMENTAR 00POSTO. Sesomos um, muslamo-nos, Semilkiples, dispersamo-nos. Seta preciso poder desear td. Ao mesmo tempo, juntos. Paras enti, ‘xis. Huma exiténca, TOTAL, Uma exsticia completa, Nio existe ‘© presente do fagmenciro, Os instante io sucesivos, Somos em par- «elas. ara sec INTEIRO.€ preciso querer ser. QUEFAZ FALTAPARA VOCE. Normal: ligico. AO MESMO TEMPO EM QUESOMOS. Vida real Meade da vida, Eu quero AQUTRAMETADE El é NOIMAGINA- RIO. Entio, canto enho um ugar rei. EUNAO EXISTO. COEXISTO. “Mes corpo esti na América. A‘ quc eu como, Ai esti minha comida, Meuslivrosestio em algum lugar da Frans kiquecusou. Também a0 ‘mesmo tempo. Naideia, Ni quando eu estou na Frang, Li, eu vou ver ‘Midnight Cowboy. Aosfanesss,eu flo da América, Em Pais cu evoco ‘Nova York Minka pitra a Fangs imagindia. Na realidad, por dl «eu nunca estou, EU NAO POSSO ESTAR ALI, Proibido. Aosjudeus «aoscachortos,Dutantea guerra. Antesda guetta rvada Arcade, 39. Ea a Digitalizada com CamScanner REGINE own, trata da relacio psicanalisien, fempo paciente ¢ seu préprio. sem pudor. .como mate Wenta pura. simplesmente wzftied afirma, por desgosto, crabanal, sem importincia, ea historia do Holocausto? ! Identificando-se comas vcimas, um heroismo ido a vida! Entretanco, como entendemos © alguém que tem grandes problemas de iden. segue separar o que ¢ teal do que €ilusério, 0 'odo que é imaginado, o verdadero passado do passado, -mbrangas de pesadelos, ele de um outro, por que trar @ listo de citculagio? Por que clasifici-lo na venda geal depos de to censurado? Pot que ele “mentia"? Ele nio queria mentie Nic foi uma estratégia de escrita nem de publicagio. Elenio sabia ‘musito bem quem ele era, nem onde estava. Por que ele havia re. 1 prémios consagrando su vstemunho como autobiografa? Sabemos muito bem que esse fendmeno no teria sido tio etrvel sem a pressio do negacionismo, dos que negam a existencia do Holocausto, das cimaras de gis. Esa pressio dos negacionisas fie parte do nosso tempo. E preciso sempre apresentat “provas” nesmo em pos de discursos que ndo sso da ordem da represen. favio de um referente,Colocamo-nos.no terreno dos negacionis. ‘ascrendo que estamos fazendo exatamente oconttirio. Acabamos Mas é sua prdpria vida que ele uti Wilkomirski esta al mds. lin sem divida, como Gan: Porque a vida em sua familia adotiva Mas por que criar pata si precisamen Poridenti inverso, dando sent «aso, tratando:se de tidade, que nao con: 2S Doubroky. Ps 97 pases ae A MEMORIA SATURADA, or nos tornar tio “positivistas” quanto cles, que nio passam de “pseudocientisas: Buscamos ser absolutamente claros, pedagégi 0s ¢ sem sombras. Corremoso risco de desenvolver uma meméria sem transmissio, uma pscudomeméria. Eé aia meu ver, que reside ‘uma das chaves do problema, ea0 mesmo temipo do sucesso con siderdvel de Fragments de sua cassificacio. Nesse ponto, Wilko- ‘mirski é uma verdadeira testernunha da loucura desta época; ele é mnha de um tratuma que penetrou o dliscuso social como simulacro memorial generalizado, como umacépia mas verdadeira Fagama seguinte experiénciaimaginiria: pegam aum software para fabricar-lhesa matcia de um texto sobre aexperiéncia da Shoah hoje, que pode torné-lolegivel. confidvel, paraalém da sacuragio do piblico. O programa vai propor algo muito préximo de Frag: ‘ments, Pimeicamente, héaafirmagio do testemunho, do"euestive que marea 0 pacto de verdade, Nio é evidente que um texto exibindo seu cariterficcionalintereste 0s leitores. Em seguida, afirmagio de que o narrador eo autor (a mesma pessoa aqui) no sio escritores profissionais. O autor se apresenta, pais, com toda athesitagio de sua escrita ea incerteza do sucesso de seu restemu- ntho. O texto, em seguida, assume seus buracos da meméria, seus referenciais imprecisos, seus condicionais. Como um menino pode se lembrar? Fragments simula essa impossibilidade garantida por sua “autenticidade”, Enfim, o sofitare lhe dita que é impossivel «screver um testemunho que seja uma verdadeira natrativa com inicio, meio e fim, porque o procedimento para isso deve ser Fragmencado, irregular, quebrado como um acontecimento cesu- ado 0 qual analisamos, ¢ porque a meméria daquele que fala e escreve com tantos anos de distincia falha. Un: texto modernist, fragmenado, em que a enunciagio se despedaga e a meméria ‘omna-se obscura, Nio & 0 Tas ren vu d Hirashima (Voce ni v nada em Hirashima), de Marguerite Duras ¢ Alain Resnais, & 0 + Jai tout vu maisjén suis traumatiée je peux a peine en parler Eu ui tudo, estou sraumatizado e mat poso falar). 233 Digitalizada com CamScanner paixonante, ieredativel Entico’ Fragmentado, sim slodo que nto se sabe maisdistinguiro verdadeira do flsova pia, do original, Nio se erata de win a mas € algo toealmente novo. Nio que seja novo fazer o falso, ow levanta falsos testemu> nkos, mas 0 texto de Wilkomisski €0 sintoma desse barulho das Feontciras que nosafetac especialmente nosimpaera. Esse impos torpoderta,apesar de tudo, cero estaruto de testemunha, mareado pela Shoab por delegagio, de alguma forma, d de vcima exemplar que ele no tem? Substicuica criangaabando: nada por sua mie, colocada num orfanato antes de ser adotada, pela crianga judia privada de tudo, tendo sobrevivido milagrosa. ‘mente, foi uma renarcizagio vital, 30 mesmo tempo, que a garan- tia de uma eseuzae um reconhec reapropriagio do romance familias. © que é insuportivel no seu caso? O texto? A falta de autenticidade do testem accitivel, quase' espantoso em Fragments lo, um texto de um pe- sto? A certezade que ele ria, posteriormente,inevitavelmentealimen- tar tortentes de diseursos negacionistas? A apropriagio da iden- tdade judaiea que Wilkomieski opera mais ou menos conto Sylvia Plath havia feito na sua poesia 20 fim dos anos 1950, sobretudo, no inicio dos anos 1960, quando 0 Holocausto comega tum “arquétipo” no pensamento ociden tend muon coos judeus?® O que 6 amide erdo? © ‘que se torna chocante, antitco? Durante os anos 1980, a sobrevivencia a subsistencia, se me- tamorfoseia, de tabu e vergonha, em algo “glorioso". A memaria do Holocausto, que tinha sido um fardo reservado aos judeus sobreviventes e suas familias, torna-se algo comum, disseminado «em todos os lugares no discurso social, torna-se ba land the Consequences of iterpretation. Booming ortiz. 234 [A MENGRIASATURADA da cultura ocidental, que até mesmo se mundialias®. Fai que se descobritia um ancestral judeu, Wilkomirski consegue articulye seus problemas pessoais como rumor universal, rumor do mando «que o meio psicanaliico que ele frequentava, em plena recompo- sn he"implan Ee secon ain, com verdadeiras que a propria verdade Esse “mas verdadeiro que a prépria verdade” se aplica 20 fe nomen do questionamento de Freud, especialmente, a respeito da nogio de fantasia. E em nome dessa ctitca (que questiona a fantasia) que um conjunto de psiquiatras,psicanalistase pesqui- saddores desenvolveu a Recovered Memory Therapy (RMT) para teataros diversossintomas que afetam alguns individwos que ttiam sido abusados sexualmente, no periodo da infincia, por pessoas pt6xlinas,sobretudo pai,ou por individuos pertencentesa scitas, satinicas, Os doentes em tratamento teriam se esquecido de tudo. Essas terapias se propdem a resgatar a lembranga desses abusos ¢ sugetem aos pacientes que processem os presumidos aucores des ses atos. Esse problema foi explosivo nos Estados Unidos e os adversriosda RMT parviam paraa gueteacontraa "False Memory Syndrome”. O que me interessa aqui é 0 ponto de partida: uin staque contra Freud, contra a teoria da fantasia. Quando Freud pereebe que a narrativa de seus pacientes é recorrente, mbbrangas mais que ela sempre inclu episodios que evocam 0 incesto, ele entende que aquelas sio "verdades psiquicas’, sio representagbes, cenirios imaginivios fandamentais, fantasia. © que nio quer dizer que ‘io havia pacientes vendo sido realmente submetidos a atos in- ‘estuosos,mas Freud se dé conta de que esd diante deum problema ‘strutural, fantasioso,¢ nio do real pasado, salvo excegdes. O ataque contra Freud tendea climinara fantasia ea representacio, ppermitindo assim que se estabclega um conluio entre o sintormae 6 real tomato numa fascinagio no distanciada eno distancvel ‘Hani se trata mais do problema da “construgio em andlise” ede so ar: Der Hideo Fes Sasa 0, By Digitalizada com CamScanner zéciNE Rosy as incertezas, mas de um ee enterrado, em sua contingéncia, mesmo que poderemos fazer res tao adequadas, como Atena do c Wilkomirski é tescemuni apagamento da frontcira entre o real ¢ oi em que as testemunhas do Holocausto desa ha dessa época de desordem, de agindtio, uma época pareceram. Porque nio ¢ escrito nem como um texto ficticio, nem como uma autoficgio, porque nio dizaverdade de uma pessoa biogrifica, de um sr singular porque ‘no se apoia sobre nenhuma experiéncia vivida, porque néoé uma . wulagio, espécie de imagem de sintese,esté absolucamente conectado com 0 mundo atual. Nao haveria ele stiado essa espécie de espago transferencial no qual o novo tipo ‘de meméria se constewiria, uma pseudomeméria? Uma meméria- -prbtese? Embora esse texto tenha sido escrito por um “lou “psicético™ talvez O texto de Binj verdadeira testemunha, a metatestemunha modernos. Apés o desaparecimento das Wilkomirski nao faz 0 jogo de uma meméria desfetichizada, desent de uma mem6x uma meméria just e de um trabalho de Hi uma identificasio com as * por simulagio, por subsicuiio: do testemunho, pois Fragments é alos limite do excesso de narratividade, pois o texto enquanco tal nfo percebe o problema 236 ‘A MEMORIA SATURADA, gue ele evoca ou invoca, mas é também limite da néo tomada em consideragio do texto, pois Fragments é um texto poderoso. quase todo mundo caiu em seus sortilégio j0 do negacionismo que impede de problematizar a subs testemunho por delegagio, em segundo grau, eque obrigaa retor- A tessitura desordenada do texto histéricoe dafizgio, a0 testemu- nnho auténtico ¢ a0 testemunho fictico, a0 aleasério de uma me- :méria que nao consegue encontrar repouso em nada. Trangas desfei serem revisit ‘Walter Benjamin. Trangas do tempo & espera de O desaparecimento das testemunhas ‘Sabemos que as testemunhas da guerra, os sobreviventes dos campos de concentragio estio desaparecendo progressivamense ‘© a meméria abre espaco para a histéria, ou melhor, vivemos um novo tempo da memér Ime Kertész, quando da bro de 1998, na ser. Num artigo irdnico e deselegante, Imre Kertész se pergunt Ele fala da geraco dos sobrevi- smo que se desenvolveram 20 redor do Holocaust solve a meméria de Auschwitz. Ele Digitalizada com CamScanner vistas que Spiclberg ecolheue que, num primeiro tempo,estavam destinadasa ter o seu lugar nesse memorial. Para Kertész,ageragSo das testemunhas desaparece e com ela seu discurso prdprio, a singularidade intransmissivel de sua experiéneia. Suas memérias estio sendo desapropriadas. No lugar d ‘outras formas de representagio, ralvez ourtas de Kertése foi dedicado ao filme de apreciava. Ble constata que odiretor nasceu © filme vai atrair sobre ele uma av passagem do tempo necessita d instalagoes, em nacrativas fi outros discursos, ‘memérias.O artigo A vida ébela que cle 1952. Elesabeque riche de criticas. Porém, a novas expresses de arte, em as ow outras. Discorter sobre a impossibilidade da reptesentagio nio serve para nada,.No futuro, continuat-se-d.a representar Auschwit em texto, em arte, em discutso,figurando o infigurivel, Disso resultario tanto o kitsch, o cinema tradicion inovadoras, Mas, com teza, sors outea coisa, ertése constata, «assim, a passagem da testemunha, em todos os sentidos do termo, ‘a passagem, o fim dos que testemunham, mas também o bastio ‘que passam os corredores de revezamento, Quem é testemunha? © que representar? E, antes de tudo, a quem dar a Quem sioas testemunhas? Aparentemente,a resposta éevidente: todos os que, tendo conhecido os campos da morte, tiveram a sorte de sobreviver ¢ retornaram a0 mundo dos vivos depois da guerra, E deles que Annette Wieviorka fala quando analisaa“era da testemunha, O surgimento das testemunhas foi imediato depois da guerra, mas o reconhecimento das testemunhas,alegi- timagio dos sobreviventes data somente desde o julgamento de Eichmann, como vimos anteriormente, no inicio dos anos 1960. Houve tambéin testemunhas que nao tiveram a chance de sobre- Bg Wien Beda vin. a on 18 238 viver, mas que deixaram documentos, jornais,crénicas enterrados ‘ou em garrafas jogadas 20 mar. Sabemos ds odisscia dos excritos da Hurbn, o termo iidiche para expressar a catistrofe que outtos chamam de “Holocausto’, sobretudo no mundo anglo-saxio, “genocidio dos judeus" ou “judeucidio’, ou ainda, desde o filme de Claude Lanzmann de 1985, "Shoah", que s “catistrofe” em hebraico. como Hurbn, Seosnazistas pretendiam fazer um “acontecimento sem teste ‘muunha’ com efeito, nos guetos, em todos os lugares onde isso seria possivel, mesmo em condigdes terriveis, mesmo entte os Sonderkommandas,em toda parte as pessoas comesaram a escreve 4 testemunhar, a falar, a deserever, em pleno exterminio didtio, Rachel Ertl no seu admirdvel Dans la langue de personne expressa peefeitamente essa febrlidade: Na maioria dos guctos em Vilna, Bialyscock ¢ Lod, «ondemos documentos existentes esoicitamos os estem hoveonfoeme «s protocolosclaborados da manera mais rigorosa. No Gueto de Vast, Emmanuel Ringelblam ctiou um grupo de trabalho clandestine, um ‘erdadeico centro de aquivos com 0 nome de “Oneg Shabbat” ("Noite do Shabbat”). Ele se cetea de pesquisalres,escrtores, profesore, ne Ponsivescomanitirose simples patculres. A misio dees era ecaher, ‘edaum nasua ira, guardar os documentos brea condigbesdevidy ede morte nos guetos nos campos", Eles sio todos motivados pela paixio do testemunho, obceca: dos pelo que devem deixar, sabendo que vio moter Elec oy ‘amuflar suas crbnicas em embalagens de lite entertadas ne solo do Gueto de Varsévia. Além dos historiadores, rialistas como Zalmen Gradowshi, Birkenau, morto durante uma te hi muicos memo- Sonderkommando em Auschwite entativa de revolta em outubro de 2 Reka Dandie depos Poids ddan i eS 239 Digitalizada com CamScanner icine gony 1944 e que deixou, -enterrada no solo de Bir ‘mitica e mordaz', Mode Bikenau, uma obra nig. fo, que minha vida condenada - Que meus difrios los, pouco a pouco, a Lapierre tinha publicado a fatrativa de Simba Guterman®, enconteada em 1978 por dois poloneses de Lodz que haviam f Varsévia uma garrafa recuperad: ‘rabalhando numa construgio. Na garrafa, longos pedasos de Papel numerados, escritos em iidiche, datados de janeiro ¢ maio de 1942, Sua narrativa vai além de um simples testemunho ou cxénica bruta: levado a0 Instituto Judaico de la em Radom, quando estavam Houve o desejo de fizer des eronica um verdadeiro texto escrito, construido, dividido em capitulos, artculado a redor de cenas pe ‘nagens-chave. Um ivr para iver! Utena resiténca contra oesquecimento ‘amore: ele sobreviveu para que um dia, tlves, num mundo onde no «sivesse mas, letores pudessem saber do sofrimento que autor co seus ‘inham vivido' AMFMERIA SATURADA ‘Testemunhos excepcionais de desconhecidos, obras de poetas, «ténicas, muita coisa nos foi deixada. Da mesma forma textos curtos esrites em iidiche eem polonés, logo depois da guerra,em 1945-1946 Mas, ventes “estorvam’, rem ser notados. Eles SInaudel "iacredi imo Levi testemunha 0 que os j0 quiseram saber. Ele conta sobre seu amigo Alber {que ele ni havi mas que faiaassim g ceagora euia the daro prazer de oportunidade de racereadiso; de assuntoe lhe or ‘Um ano mais tarde, ew pasva por 2cas0 Sinica soviteas ‘mudado ligeiramente: Alberto se enconteava em ta clinic cle estava bem, mas havia perdido a meméria, nio se lembrando nem mesmo do proprio nome; cl esava,entretnto, melhorando e voearia a Digitalizada com CamScanner logo para eas —a ‘ouvido iso de uma fonte segura Alberto remaiscoragem demeespor ede o 1 dolorosa verdade "verdade”consoladora {que, matuamente, os parenes de Alber avis orjado™, ‘Chega enfim o tempo da emergéncia da testemunha, de sua legivimagio, de sua vi julgamento de Eichmann em 1961 omaram a frente do paleo. grande sun homme”, que havia obtido pouco sucesso er ‘em 1947, s¢ torna um bestseller e Elie Wiesel, uma espécie de porta-vor universal da comunidade judaica, uma auroridade in contestivel,¢laureado por sue mas também de tester nosorgulhar dos sobrevi ana esfera piblica com 0 arti da, as eestemunhas ro nao somente de esritor, ha. Ble, que tanto quis que pudéssemos antes edesse capitulo da histériajudaica, ‘venfim chegar o momento em que isso se torna realidade, Depois, a0 fim dos anos 1970 e nos anos 1980. 0 tempo da «oletasistemitica dos testemunhos, como veremos,edastestemn thas colocadas em primeiro plano no processo, dos tos pedagé gicos 20 redor da Shoab, nas obras de criagio como Shoa de Claude Lanzmann, feito unicamente com ba sn testemunhos. Ble € também inceiramente construido contra todo arquivo. diz Claude Lanzmann, Porque nio hi arquivo, e 0 mesmo tempo porque eu no procure fazer uma montagem com os mesmos arquivos que se veem em toda a parce, quenio sioos dos campos dest ‘quando os Aliados liber representando paca a ma a [A MEDIGRIASATURADA hseoriadores.acomegar pelos lugnes reais de hoe.os roston cos corpon ven das tstemanhas Sem comentrios,Semvozem off areabiiagso do tetemunho.(.] Bu fz wm filme ap dr do nada, a parte de una eemanéncia dos lugares 20 mesmo desiguragio dos lugares ¢ de uma pe tempo [e) A Shoah desacraliaeevta toda atiude pico, Quando slg se derama em grim gras em pare acon e do denvelarenco da verdad, filme di vor a pewoas que nio podiam fiat, Foi um trabalho mui idficl de fraternidade ede amor. Mas foi, a0 mesmo tempo. perigosos filma os nazistassescondidas fi ressacaliza, € de outta forma, num nivel mult o longo € ceabalho co aiscado Sea Shoah do. Um thos ends do me para nim fo essureigh dos mort, Mas nio seni crit do terme, Eu os rsuciei no para fazé-los reve, ns para matislos pela segunda vex, par qe les no mores sino, uraquenés mortsemoscom cle Este osentdo das viagens ma Shoah, ‘Nes aemos es viagem com es. Nio um filme sabreasobrevivenia, mas sobre a mort. sobrearadialidade da mars «os protagonstas do fle so os portvoxes dos moro. Eesmanca diem eles sempre

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