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Gustavo Tepedino
Doutor em Direito Civil pela Universidade de Camerino (Itália) e Livre-Docente pela
Faculdade de Direito da UERJ. Professor Titular de Direito Civil na Faculdade de Direito
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
1. Introdução
As partes estipularam, ainda, preço por hectare, sem que a Outorgante suportasse
qualquer despesa atinente aos serviços necessários ao desembaraço dos referidos
imóveis. Nesse particular, Y outorgou a X poderes especiais para alienar, hipotecar,
transigir, firmar compromissos, termos de ajustamento de conduta com o Ministério
Público, compensação ambiental e “tudo o que reputar necessário para desembaraçar os
imóveis rurais mencionados”, representando a Outorgante perante todos os órgãos da
Administração direta e indireta, autarquias, poderes públicos, terceiros, no Brasil ou no
exterior, especialmente os credores de qualquer natureza, com os quais poderia praticar
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O PRINCÍPIO KOMPETENZ-KOMPETENZ E O CONTROLE
DE VALIDADE DO CONTRATO CONSIGO MESMO
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O mandato em causa própria, disciplinado no art. 685 do CC/2002, consiste na outorga,
em caráter irrevogável, de poderes ilimitados ao mandatário para esse possa transferir
para si os bens objeto do mandato, independentemente de qualquer ato adicional por
parte do mandante. Daí afirmar-se que o mandatário age em nome do mandante, mas
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em seu próprio interesse.
Por isso mesmo, para que se configure o contrato de mandato em causa própria,
revela-se imprescindível que se encontrem presentes todos os elementos essenciais ao
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contrato perseguido. O contrato de mandato em causa própria consubstancia-se, assim,
em título hábil a gerar para o mandante a obrigação de transferir o domínio dos bens ao
mandatário, tal como ocorre no contrato de compra e venda. Alcança-se, pois, o escopo
econômico da compra e venda mediante o tipo contratual do mandato.
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pela qual o mandatário está dispensado de prestar contas ao mandante.
Nessa direção, Y conferiu a X poderes ilimitados para que pudesse praticar todos os atos
que considerasse necessários à transferência da propriedade dos imóveis a si ou a
terceiros, de sorte que a atuação de X se operava em nome de Y, mas no seu próprio
interesse, estando, por isso mesmo, dispensado de prestar contas ao mandante. Em
consequência, o contrato em exame mostra-se irrevogável, como, de resto, determina
expressamente o instrumento.
Ainda que assim não se entendesse – o que se admite apenas a título de argumentação
-, os bens constantes do contrato seriam no mínimo determináveis, a depender do
georreferenciamento para que se tornassem determinados, o que, só por isso, se mostra
suficiente para a compra e venda. O contrato, por gerar apenas efeitos obrigacionais,
não exige que o bem seja determinado, bastando a sua determinabilidade.
Tais atos praticados pela associação e pelos seus órgãos demonstram, à evidência, a
ratificação do negócio levado a cabo por Z, a extirpar qualquer dúvida quanto à
representatividade de Y ou aos poderes outorgados a X.
Por força da ratificação, eventuais vícios atinentes aos poderes de Z para celebrar o
contrato ou, ainda, aos poderes especiais e específicos de X para alienar a si ou a
terceiros os bens imóveis rurais, restariam inequivocamente convalidados.
“Art. 662. Os atos praticados por quem não tenha mandato, ou o tenha sem poderes
suficientes, são ineficazes em relação àquele em cujo nome foram praticados, salvo se
este os ratificar.
Por outro lado, não se mostra possível, mesmo em tese, cogitar de violação ao art. 497,
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I, do CC/2002, sob o fundamento de que X exerceria a função de administrador de
alguns bens objeto do contrato de mandato em causa própria. Com efeito, a
administração dos bens decorreu precisamente da celebração do contrato, não sendo
prévia, portanto, a tal ajuste. Vale dizer, a administração dos bens só se iniciou em
razão do contrato e para seus exclusivos fins.
Note-se que a norma contida no art. 497, I, do CC/2002 destina-se a evitar que o
cumprimento do dever do administrador de gerir interesses alheios e, especificamente
na hipótese da venda de bens, de obter o melhor preço, conflite com seu próprio
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interesse na aquisição do bem.
Sublinhe-se ao propósito que, mesmo sob a égide do diploma anterior, cujo inc. II do
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art. 1.133, suprimido pelo art. 497 do CC/2002, vedava a compra pelos mandatários,
em hasta pública, dos bens de cuja administração ou alienação estivessem
encarregados, Carvalho Santos asseverava que, na hipótese de mandato em causa
própria com cessão de direito creditório a título oneroso, restaria afastada a proibição
legal. Isso porque “o mandato aí constitui precisamente uma consequência do negócio,
por meio do qual perdeu o mandante, desde então, a propriedade da coisa, de forma
que, alienando-a depois o mandatário, em rigor não aliena uma coisa de propriedade do
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mandante, razão bastante para afastar a possibilidade da aplicação do texto supra”.
“Para haver a ratificação tácita é essencial: (a) a execução da obrigação; (b) ciência do
vício que inquinava a obrigação; (c) a intenção de reparar o vício. Quando a parte, pois,
embora conhecendo o vício da obrigação, a cumpre, pelo menos em parte,
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DE VALIDADE DO CONTRATO CONSIGO MESMO
Mais adiante, o contrato de mandato em causa própria descreve os imóveis rurais objeto
do negócio, os quais, na literalidade do preceito, se situariam “dentro dos limites do
Parque Nacional ABC, zona de amortecimento, corredor ecológico e área de entorno de
referido Parque”, de ora em diante denominados conjuntamente como PABC, a saber
(…)”.
Pela simples leitura dos dispositivos contratuais, depreende-se que os imóveis rurais que
poderiam ser adquiridos pelo mandatário em causa própria localizam-se, à evidência,
dentro e fora do Parque Nacional ABC, sendo a parte exterior ao Parque composta pela
zona de amortecimento, corredor ecológico e área de entorno. As áreas interna e
externa ao Parque, nas quais se situam todos os imóveis rurais, denominam-se, na
expressão empregada pelas partes, “conjuntamente PABC”, a denotar que os imóveis
rurais não se inserem exclusivamente dentro dos estritos limites do Parque.
Além disso, X obrigou-se a pagar preço por hectare e a assumir dívidas de Y tendo por
pressuposto a extensão dos imóveis rurais – nela incluídos o interior do Parque, a zona
de amortecimento, o corredor ecológico e a área de entorno -, aí residindo o sinalagma
da relação contratual. Por outras palavras, o mandatário assume obrigações de elevada
monta em contraprestação à entrega, por Y, de bens imóveis rurais situados dentro e
fora do perímetro do Parque Nacional ABC, de tal maneira que a diminuição da área dos
imóveis rurais adquiridos implicaria desequilíbrio da equação econômica do negócio, em
flagrante violação ao princípio do equilíbrio econômico dos contratos.
Dúvidas não há: o contrato de mandato em causa própria tem por objeto a outorga por
Y ao mandatário de poderes para alienar a si ou a terceiros os bens imóveis rurais
localizados dentro do Parque Nacional ABC, bem como na zona de amortecimento, no
corredor ecológico e na área de entorno.
8. No caso concreto, Y, representada por seu presidente por seu primeiro tesoureiro,
celebrou com X escritura pública de ratificação do ato jurídico, na mesma data da
assinatura do contrato de mandato em causa própria, com o escopo de ratificar todos os
termos, cláusulas e condições constantes deste último. Além disso, posteriormente, Y
realizou assembleia geral extraordinária, na qual o negócio foi expressamente ratificado
pelos seus associados. Tais atos praticados por Y e pelos seus órgãos demonstram a
ratificação do negócio levado a cabo por Z, a extirpar qualquer dúvida quanto à
representatividade de Y ou aos poderes outorgados a X. Desse modo, eventuais vícios
atinentes aos poderes de Z para celebrar o contrato de mandato em causa própria ou,
ainda, aos poderes especiais e específicos de X para alienar a si ou a terceiros os bens
imóveis rurais, restariam inequivocamente convalidados (art. 662 do CC/2002).
9. A execução voluntária do negócio por Y por meio (a) da emissão de termo de cessão
de dívida com exoneração de obrigação, no qual cede e transfere a X dívidas atinentes a
determinadas notificações de lançamento, lavradas pela Receita Federal, e, em
contrapartida, exonera o mandatário de cumprir determinadas obrigações e de atuar em
processos indicados no mesmo instrumento, dando plena quitação; e (b) da destituição
de X do patrocínio de determinada ação judicial mencionada no mesmo instrumento
denota o expresso reconhecimento de Y relativo à plena validade e eficácia do contrato
de mandato em causa própria, a sanear os supostos vícios de anulabilidade, nos termos
do art. 175 do CC/2002. Extinguem-se, pois, todas eventuais pretensões, ações e
exceções de que dispusesse Y para atacar o negócio. Por outro lado, pretender agora
anular o ato representaria adotar comportamento manifestamente incompatível com sua
conduta anterior, em frontal violação ao princípio da boa-fé objetiva que deve nortear a
atuação dos contratantes.
1 “Art. 685. Conferido o mandato com a cláusula ‘em causa própria’, a sua revogação
não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes, ficando o
mandatário dispensado de prestar contas, e podendo transferir para si os bens móveis
ou imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais.”
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2 “Procuração em causa própria (in rem propriam, in rem suam) é aquela em que são
outorgados poderes ao procurador para administrar certo negócio, como coisa sua, no
seu próprio interesse, fazendo suas as vantagens do mesmo negócio” (Carvalho Santos,
J. M. de. Código Civil brasileiro interpretado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961. vol.
18, p. 317).
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7 Art. 500. Se, na venda de um imóvel, se estipular o preço por medida de extensão, ou
se determinar a respectiva área, e esta não corresponder, em qualquer dos casos, às
dimensões dadas, o comprador terá o direito de exigir o complemento da área, e, não
sendo isso possível, o de reclamar a resolução do contrato ou abatimento proporcional
ao preço. (…) § 3.º Não haverá complemento de área, nem devolução de excesso, se o
imóvel for vendido como coisa certa e discriminada, tendo sido apenas enunciativa a
referência às suas dimensões, ainda que não conste, de modo expresso, ter sido a venda
ad corpus.
10 “Art. 653. Opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em
seu nome, praticar atos ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do
mandato.”
12 “Art. 497. Sob pena de nulidade, não podem ser comprados, ainda que em hasta
pública: I – pelos tutores, curadores, testamenteiros e administradores, os bens
confiados à sua guarda ou administração.”
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14 “Art. 1.133. Não podem ser comprados, ainda em hasta pública: (…) II – pelos
mandatários, os bens, de cuja administração, ou alienação, estejam encarregados.”
16 Código Civil interpretado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963. vol. 3, p. 274-276.
Conforme se observou em outra sede: “O ato de confirmação de um negócio jurídico
anulável, para retirar dele a anomalia que o persegue desde o momento de seu
nascimento, pode ser expresso ou tácito. A confirmação expressa é a revelada por
documento escrito, que contenha a inequívoca intenção das partes de confirmar o ato
jurídico anulável, em toda a sua substância (art. 173). A tácita revela-se por meio de
comportamento do agente que, na qualidade de devedor da obrigação e ciente do vício
que macula o negócio jurídico, mesmo assim a cumpre. Inicia a execução da obrigação e
esse comportamento traduz, tacitamente, o propósito de lhe reconhecer validade e
eficácia, não obstante sua má-formação inicial. São exemplos de conduta incompatível
com o propósito de promover a anulação do negócio e, portanto, reveladores de
confirmação tácita, o pagamento parcial, a percepção de juros, as modificações do
contrato, entre outros. Nestas hipóteses, a confirmação expressa é dispensada, valendo
a prova da confirmação tácita para preservar-se a validade do ato jurídico” (Tepedino,
Gustavo et al. Código Civil interpretado. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. vol. 1, p.
325-326).
17 Cf. sobre o tema Tepedino, Gustavo, Das várias espécies de contrato… cit., p. 86 e
ss.
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