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O PRINCÍPIO KOMPETENZ-KOMPETENZ E O CONTROLE

DE VALIDADE DO CONTRATO CONSIGO MESMO

O PRINCÍPIO KOMPETENZ-KOMPETENZ E O CONTROLE DE VALIDADE DO


CONTRATO CONSIGO MESMO
Soluções Práticas - Tepedino | vol. 3 | p. 525 - 544 | Nov / 2011
DTR\2012\475

Gustavo Tepedino
Doutor em Direito Civil pela Universidade de Camerino (Itália) e Livre-Docente pela
Faculdade de Direito da UERJ. Professor Titular de Direito Civil na Faculdade de Direito
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Área do Direito: Civil


Resumo: O contrato de mandato em causa própria traduz negócio indireto, mediante o
qual as partes perseguem finalidade econômica mais ampla do que a finalidade jurídica
predisposta pelo ordenamento para o tipo do contrato de mandato. Para que se
configure o contrato de mandato em causa própria, revela-se imprescindível que se
encontrem presentes todos os elementos essenciais ao contrato perseguido.

Palavras-chave: Contratos - Mandato - Mandato em causa própria.


Abstract: The contract of self-representation is an alleged transaction through which the
parties pursue a broader economic purpose other than the effect ascribed by the legal
system to this original type of contract. In order to the self representation contract to be
fully constituted there must be assembled all the essential elements of the pursued type
of contract.

Keywords: Contracts - Mandate - Selfrepresentation.


Sumário:

1.Introdução - 2.Elementos do mandato em causa própria e sua configuração no caso


concreto - 3.Validade e eficácia do contrato de mandato em causa própria. Ratificação do
negócio. Efeitos da cessão de dívida com exoneração de obrigação - 4.Interpretação do
objeto do contrato de Mandato em Causa Própria. Inexistência de excesso de poderes do
mandatário na aquisição das áreas adjacentes ao Parque Nacional ABC - 5.Conclusão

1. Introdução

Honra-nos X solicitando opinião doutrinária acerca do mandato em causa própria no


direito brasileiro.

Y celebrou com X (pessoa natural), por escritura pública, contrato de estipulação de


preço e mandato em causa própria, com delegação de atribuições e outorga de poderes,
por meio do qual Y autorizou X a alienar, para si ou terceiros, total ou parcialmente,
imóveis rurais descritos no instrumento.

Sublinhe-se que tais imóveis rurais, de propriedade de Y, se encontravam descritos no


contrato mediante indicação do nome da Fazenda, da localização e da área, todos
situados dentro dos limites do Parque Nacional ABC. Esses imóveis seriam
georreferenciados por empresa contratada por X, às suas expensas, a partir de
metodologia indicada no instrumento, em consonância com a legislação aplicável.

As partes estipularam, ainda, preço por hectare, sem que a Outorgante suportasse
qualquer despesa atinente aos serviços necessários ao desembaraço dos referidos
imóveis. Nesse particular, Y outorgou a X poderes especiais para alienar, hipotecar,
transigir, firmar compromissos, termos de ajustamento de conduta com o Ministério
Público, compensação ambiental e “tudo o que reputar necessário para desembaraçar os
imóveis rurais mencionados”, representando a Outorgante perante todos os órgãos da
Administração direta e indireta, autarquias, poderes públicos, terceiros, no Brasil ou no
exterior, especialmente os credores de qualquer natureza, com os quais poderia praticar
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todas as providências judiciais e extrajudiciais necessárias para desembaraçar os


imóveis rurais dos gravames sobre eles incidentes.

Na hipótese de o Outorgado transferir para si os imóveis rurais, deveria pagar à


Outorgante o valor avençado por hectare, assumindo as despesas com a liberação das
dívidas e litígios relacionados que onerassem tais imóveis, e liberando-a do pagamento
dos honorários pelos serviços prestados.

Por sua vez, Y transferiu a X a posse e os poderes de administração sobre todos os


imóveis rurais objeto do contrato. Além disso, autorizou X a negociar com os Autores e
Credores das ações movidas em face da Outorgante, podendo transigir, pagar, dar
quitação, confessar, desistir, promover ações, requerer a reintegração de posse,
promover ações dominiais, dentre outros atos, e, ainda, contratar terceiros, tais como
técnicos, peritos, advogados, agrimensores, contadores, auditores, tudo com vistas à
execução do contrato de mandato em causa própria.

Note-se que as partes consignaram expressamente que o contrato de mandato era


celebrado em causa própria para todos os fins de direito e observadas as condições
descritas no instrumento, bem como que o contrato teria caráter irrevogável e
irretratável, obrigando as partes e seus sucessores a qualquer título.

Da leitura conjunta dessas cláusulas, vê-se que as partes ajustaram contrato de


mandato em causa própria, por meio do qual Y outorgou a X poderes especiais e
específicos para que esse alienasse para si os imóveis descritos no instrumento pelo
preço também ali indicado. Dito por outras palavras, Y, com o objetivo de transferir a
titularidade dos bens de sua propriedade, celebrou com X o contrato de mandato em
causa própria, conferindo-lhe poderes especiais e específicos para, atuando em nome de
Y, mas no seu próprio interesse, alienar para si os imóveis enumerados no contrato pelo
preço acordado.

Para responder às indagações do Consulente, dividiu-se a presente opinião doutrinária


em três eixos temáticos, a seguir desenvolvidos.
2. Elementos do mandato em causa própria e sua configuração no caso concreto

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O mandato em causa própria, disciplinado no art. 685 do CC/2002, consiste na outorga,
em caráter irrevogável, de poderes ilimitados ao mandatário para esse possa transferir
para si os bens objeto do mandato, independentemente de qualquer ato adicional por
parte do mandante. Daí afirmar-se que o mandatário age em nome do mandante, mas
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em seu próprio interesse.

Trata-se, a rigor, de negócio indireto, mediante o qual as partes perseguem finalidade


econômica mais ampla do que a finalidade jurídica predisposta pelo ordenamento para o
tipo do contrato de mandato. Dessa forma, embora as partes celebrem contrato típico de
mandato, cuja causa se mantém preservada, almejam a finalidade econômica de outro
3
negócio.

Por isso mesmo, para que se configure o contrato de mandato em causa própria,
revela-se imprescindível que se encontrem presentes todos os elementos essenciais ao
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contrato perseguido. O contrato de mandato em causa própria consubstancia-se, assim,
em título hábil a gerar para o mandante a obrigação de transferir o domínio dos bens ao
mandatário, tal como ocorre no contrato de compra e venda. Alcança-se, pois, o escopo
econômico da compra e venda mediante o tipo contratual do mandato.

O contrato de mandato em causa própria, justamente por se destinar à finalidade


econômica distinta daquela normalmente associada ao contrato de mandato, apresenta
características peculiares. Com efeito, o contrato de mandato em causa própria é
outorgado no interesse do mandatário, de tal sorte que esse, embora atue em nome do
mandante, exerce os poderes que lhe foram conferidos no seu próprio interesse. Tais
poderes afiguram-se ilimitados relativamente à execução do objeto do contrato, razão
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pela qual o mandatário está dispensado de prestar contas ao mandante.

Em decorrência disso, o contrato de mandato em causa própria mostra-se irrevogável


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pelo mandante, de modo que sua eventual revogação é ineficaz.

Na espécie, a associação outorgou a X poderes especiais e específicos à transferência


dos imóveis descritos no negócio para si ou para terceiros, mediante o pagamento de
preço preestabelecido, ao lado de irrestritos poderes à prática de atos reputados
necessários pelo mandatário para a execução do mandato, a exemplo dos poderes para
negociar com os credores da associação com vistas à extinção dos ônus e gravames que
recaíssem sobre os imóveis rurais objeto do contrato de mandato em causa própria.

Como se vê, as partes objetivaram com a celebração do contrato de mandato em causa


própria finalidade econômica mais ampla pertinente ao contrato de compra e venda,
sendo certo que se encontram presentes os elementos essenciais desse tipo contratual,
a saber, o preço, a coisa e a forma por escritura pública, por se objetivar a transferência
de imóveis de valor superior a trinta salários mínimos (art. 108 do CC/2002).

De fato, as partes individuaram os bens, cuja titularidade se pretendia transferir, por


meio da referência nominal e topográfica das fazendas, com indicação das respectivas
áreas, e estipularam preço por hectare, ao lado da assunção das dívidas de Y pelo
mandatário, sendo o negócio celebrado por instrumento público, de tal maneira que se
afiguram presentes os elementos essenciais da compra e venda, a prescindir da prática
de qualquer ato adicional pelo mandante.

Nessa direção, Y conferiu a X poderes ilimitados para que pudesse praticar todos os atos
que considerasse necessários à transferência da propriedade dos imóveis a si ou a
terceiros, de sorte que a atuação de X se operava em nome de Y, mas no seu próprio
interesse, estando, por isso mesmo, dispensado de prestar contas ao mandante. Em
consequência, o contrato em exame mostra-se irrevogável, como, de resto, determina
expressamente o instrumento.

Nem se alegue que a necessidade de georreferenciamento afastaria a identificação dos


bens imóveis objeto do contrato de mandato em causa própria, essencial à compra e
venda. Os bens imóveis rurais encontram-se precisamente determinados no contrato,
com a indicação do nome da Fazenda, da localização e da área, a permitir a perfeita
identificação dos bens.

Todo o sistema da compra e venda volta-se para garantir, em última análise, a


correspondência do objeto do negócio à vontade declarada pelos contratantes. Não é por
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acaso que o § 3.º do art. 500 do CC/2002, correspondente ao art. 1.136 do CC/1916,
seguindo vetusta tradição romanogermânica, admite a venda ad corpus em que, a
despeito da descrição equivocada das dimensões do bem alienado, prevalece a
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determinação da coisa, estabelecida por sua designação inequívoca.

Ainda que assim não se entendesse – o que se admite apenas a título de argumentação
-, os bens constantes do contrato seriam no mínimo determináveis, a depender do
georreferenciamento para que se tornassem determinados, o que, só por isso, se mostra
suficiente para a compra e venda. O contrato, por gerar apenas efeitos obrigacionais,
não exige que o bem seja determinado, bastando a sua determinabilidade.

O georreferenciamento consiste, a rigor, em exigência legislativa com vistas a descrever


o imóvel rural em seus limites, características e confrontações, por meio de memorial
descritivo firmado por profissional habilitado, “contendo as coordenadas dos vértices
definidores dos limites dos imóveis rurais, georreferenciadas ao Sistema Geodésico
Brasileiro e com precisão posicional a ser fixada pelo Incra” (art. 176, § 4.º, da Lei
6.015/1975, com redação dada pela Lei 10.267/2001). Objetiva-se, assim, fornecer às
autoridades públicas e aos cartórios de registro de imóveis arquivos digitais contendo os
dados sobre os bens, possibilitando a atualização da situação cartorial e cadastral da
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propriedade. Deste modo, a exigência de georreferenciamento não tem o condão de


descaracterizar a individuação do bem essencial à transferência da propriedade.

Por outro lado, as obrigações assumidas pelo mandatário relativas ao serviço de


assistência jurídica e à administração dos bens constituem obrigações acessórias do
contrato, isto é, efeitos secundários do negócio que, por isso mesmo, não alteram a
causa do contrato de mandato em causa própria. Tais obrigações servem de instrumento
à concretização da função do negócio, não sendo essenciais, entretanto, à qualificação
do contrato.

De outra parte, a assunção de dívidas pelo mandatário não configura obrigação no


interesse do mandante, capaz de desnaturar o contrato de mandato em causa própria,
mas integra a contraprestação do negócio, ou seja, o preço pela transferência da
titularidade dos bens imóveis.

Cuida-se, em definitivo, de contrato de mandato em causa própria, o qual, aliás, constou


de expressa determinação das partes, podendo o mandatário transferir para si os
imóveis rurais indicados nesse instrumento.
3. Validade e eficácia do contrato de mandato em causa própria. Ratificação do negócio.
Efeitos da cessão de dívida com exoneração de obrigação

O contrato de mandato em causa própria revela-se, ainda, plenamente válido e eficaz à


luz do ordenamento jurídico brasileiro, não padecendo de qualquer vício que pudesse
inquiná-lo de nulidade ou de ineficácia perante o mandante. Não há se falar, in casu, em
ausência de poderes do representante de Y para celebrar o contrato e, em consequência,
de falta de poderes do mandatário para alienar a si os imóveis em questão.

Ao propósito, o contrato dispôs que a Outorgante se obrigava a apresentar, no prazo de


cinco dias, documentos que comprovassem a autorização para a celebração do negócio,
inclusive de seus órgãos estatutários, tais como a ata de assembleia geral extraordinária
ou aprovação do conselho, ou a outorgar escritura de ratificação.

No caso concreto, Y firmou o contrato de mandato em causa própria representada por Z,


o qual, segundo argumenta no procedimento arbitral, não teria poderes para
representá-la neste ato. Todavia, na mesma data, Y, representada por seu presidente e
por seu primeiro tesoureiro, celebrou com X, por escritura pública, a ratificação do ato
jurídico, com o escopo de ratificar todos os termos, cláusulas e condições constantes do
contrato de mandato em causa própria, em consonância com a previsão contida no
mesmo.

Além disso, posteriormente, Y realizou assembleia geral extraordinária, na qual o


negócio foi expressamente ratificado pelos seus associados.

Tais atos praticados pela associação e pelos seus órgãos demonstram, à evidência, a
ratificação do negócio levado a cabo por Z, a extirpar qualquer dúvida quanto à
representatividade de Y ou aos poderes outorgados a X.

Por força da ratificação, eventuais vícios atinentes aos poderes de Z para celebrar o
contrato ou, ainda, aos poderes especiais e específicos de X para alienar a si ou a
terceiros os bens imóveis rurais, restariam inequivocamente convalidados.

Nessa esteira, o art. 662 do CC/2002 determina que:

“Art. 662. Os atos praticados por quem não tenha mandato, ou o tenha sem poderes
suficientes, são ineficazes em relação àquele em cujo nome foram praticados, salvo se
este os ratificar.

Parágrafo único. A ratificação há de ser expressa, ou resultar de ato inequívoco, e


retroagirá à data do ato”.
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Consoante o preceito legal, os atos praticados pelo mandatário vincularão o mandante


desde que praticados dentro dos estritos limites da outorga de poderes. Assim, o
negócio praticado pelo mandatário sem mandato ou sem poderes suficientes não tem o
condão de vincular o mandante, de sorte que o mandatário se obriga diretamente àquele
com quem contrata.

Conforme destaca o dispositivo, o representado poderá ratificar os atos praticados pelo


mandatário sem mandato ou em excesso de poderes, suprindo a ausência de outorga de
poderes, e vinculando-se diretamente ao terceiro. Nesta hipótese, o parágrafo único do
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art. 662 do CC/2002 preceitua que a ratificação retroagirá à data do ato.

Assim sendo, in casu, a suposta ausência de poderes de Z para celebrar o contrato de


mandato em causa própria e, em consequência, a falta de poderes de X para alienar a si
ou a terceiros os bens imóveis rurais restariam supridas pela ratificação operada
mediante escritura pública e pela deliberação da assembleia geral extraordinária, com
efeitos retroativos à data de assinatura do contrato, a afastar, desse modo, a alegação
de excesso de poderes.

De mais a mais, não subsiste o argumento segundo o qual a procuração em causa


própria outorgada meses depois teria substituído o contrato de mandato em causa
própria e, por não ter sido objeto de ratificação pela assembleia geral extraordinária,
todos os atos subsequentes restariam invalidados.

Ressalte-se que a procuração se afigura ato jurídico unilateral de outorga de poderes, na


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dicção do art. 653 do CC/2002. Já o mandato consiste em espécie contratual cuja
função técnico-jurídica se traduz na execução de atos pelo mandatário em nome do
mandante. Ou seja, a representação é essencial ao mandato, para o qual é
imprescindível, portanto, a contemplatio domini e a outorga de poderes. Esta pode se
dar no próprio corpo do contrato ou em documento avulso, isto é, na procuração, que
lhe serve de instrumento.

No caso em exame, a outorga de poderes ocorreu no próprio contrato de mandato em


causa própria, dispensando-se, conseguintemente, instrumento específico de
procuração. Todavia, o outorgante optou por conferir autonomia documental à outorga
de poderes, formalizando a procuração. A procuração outorgada teve por finalidade, na
espécie, permitir a exibição dos poderes do mandatário aos terceiros sem que a estes
fosse dado conhecer o conteúdo interno do mandato, de forma a manter íntegra a
confidencialidade do ajuste. Note-se, nessa direção, que o contrato de mandato em
causa própria estabelece a proibição de as partes divulgarem o seu conteúdo, a
corroborar a necessidade de procuração apartada que comprove aos terceiros os poderes
do mandatário, sem que se propague o teor do negócio.

Repita-se que, embora a procuração consista em ato unilateral de outorga de poderes,


pode se inserir, evidentemente, em acordo bilateral de vontades, isto é, no próprio
contrato de mandato, tal como ocorreu na espécie. Uma vez identificada a vontade
declarada do outorgante na atribuição de poderes de representação, pouco importa se
tal outorga se dá mediante instrumento avulso ou no contrato de mandato.

De outra parte, a representação, essencial ao contrato de mandato, exige tão somente a


existência de poderes e a contemplatio domini, vale dizer, o atuar declaradamente em
nome de outrem, a prescindir da procuração – cuja natureza instrumental destina-se
exclusivamente a traduzir os poderes outorgados.

Vale dizer, para a caracterização da representação, como técnica de atuação em nome


de outrem, “são indispensáveis a existência de poderes que lastreiem a atuação do
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representante e que este aja declaradamente em nome de outra pessoa”.

De mais a mais, a procuração em causa própria ora em exame, refere-se expressamente


ao contrato de mandato em causa própria do qual decorre, ali se consignando que os
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poderes de X são outorgados “conforme escritura pública de ratificação de ato jurídico”.


Assim sendo, mesmo em tese, porque redigido consoante tal documento, não poderia
jamais revogar o contrato de mandato em causa própria.

De todo modo, a discussão quanto à ratificação da procuração perde relevância, na


espécie, diante da inexistência, segundo informa o Consulente, de venda para terceiros.
Se a representação, no direito brasileiro, é essencial ao mandato, mostra-se
incontroverso que, entre mandatário e mandante, há poder de representação,
independentemente de instrumento de procuração – o qual, repita-se ainda uma vez, só
teria serventia em face de terceiros, que desconhecessem a relação contratual entre
mandante e mandatário.

Por outro lado, não se mostra possível, mesmo em tese, cogitar de violação ao art. 497,
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I, do CC/2002, sob o fundamento de que X exerceria a função de administrador de
alguns bens objeto do contrato de mandato em causa própria. Com efeito, a
administração dos bens decorreu precisamente da celebração do contrato, não sendo
prévia, portanto, a tal ajuste. Vale dizer, a administração dos bens só se iniciou em
razão do contrato e para seus exclusivos fins.

Note-se que a norma contida no art. 497, I, do CC/2002 destina-se a evitar que o
cumprimento do dever do administrador de gerir interesses alheios e, especificamente
na hipótese da venda de bens, de obter o melhor preço, conflite com seu próprio
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interesse na aquisição do bem.

Sublinhe-se ao propósito que, mesmo sob a égide do diploma anterior, cujo inc. II do
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art. 1.133, suprimido pelo art. 497 do CC/2002, vedava a compra pelos mandatários,
em hasta pública, dos bens de cuja administração ou alienação estivessem
encarregados, Carvalho Santos asseverava que, na hipótese de mandato em causa
própria com cessão de direito creditório a título oneroso, restaria afastada a proibição
legal. Isso porque “o mandato aí constitui precisamente uma consequência do negócio,
por meio do qual perdeu o mandante, desde então, a propriedade da coisa, de forma
que, alienando-a depois o mandatário, em rigor não aliena uma coisa de propriedade do
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mandante, razão bastante para afastar a possibilidade da aplicação do texto supra”.

Em definitivo, no caso em exame, X assumiu a função de administrador de alguns


imóveis rurais em virtude do mandato e exclusivamente com o intuito de adquiri-los
futuramente ou de aliená-los a terceiros, não já de gerir os interesses de Y. Repita-se,
ainda uma vez, que no contrato de mandato em causa própria, os poderes outorgados
são exercidos no interesse do mandatário, aí incluídos os poderes de administração
sobre os bens, de modo a afastar tout court o conflito de interesses entre mandante e
mandatário. Por essas razões, não há se falar em incidência à espécie do art. 497, I, do
CC/2002, revelando-se plenamente válida e eficaz a aquisição, por X, dos imóveis rurais
indicados no contrato de mandato em causa própria, a fulminar a pretensão de Y de
nulidade da venda.

De outra parte, supostos vícios de consentimento que acarretariam a anulabilidade do


contrato de mandato em causa própria restariam convalidados mediante a prática por Y
de atos incompatíveis com a pretensão de promover a anulação do negócio, a teor do
que dispõe o art. 175 do CC/2002, in verbis:

“Art. 175. A confirmação expressa, ou a execução voluntária de negócio anulável, nos


termos dos arts. 172 a 174, importa a extinção de todas as ações, ou exceções, de que
contra ele dispusesse o devedor”.

Na lição de Carvalho Santos:

“Para haver a ratificação tácita é essencial: (a) a execução da obrigação; (b) ciência do
vício que inquinava a obrigação; (c) a intenção de reparar o vício. Quando a parte, pois,
embora conhecendo o vício da obrigação, a cumpre, pelo menos em parte,
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necessariamente quer manifestar a intenção de confirmá-la. Podendo-se assim afirmar


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que o último requisito é presumido toda vez que ocorrerem os dois outros”.

De fato, no ano seguinte, Y emitiu termo de cessão de dívida com exoneração de


obrigação, por meio do qual cedeu e transferiu a X dívidas atinentes a determinadas
notificações de lançamento, lavradas pela Receita Federal, e, em contrapartida,
exonerou o mandatário de cumprir determinadas obrigações e de atuar em
determinados processos, dando plena quitação.

Em seguida, Y destituiu X do patrocínio de outra ação de cobrança, proibindo-o de


celebrar qualquer entendimento ou transação com o credor, exonerando-o das
respectivas obrigações porventura existentes em face da escritura pública de estipulação
de preço e mandato em causa própria.

Tais condutas de Y denotam, à evidência, seu expresso reconhecimento relativo à plena


validade e eficácia do contrato de mandato em causa própria, a sanear os supostos
vícios de anulabilidade, nos termos do art. 175 do CC/2002 e, em consequência,
extinguindo eventuais pretensões, ações ou exceções de que dispusesse Y para atacar o
negócio. Dessa sorte, pretender agora anular o ato representaria adotar comportamento
manifestamente incompatível com sua conduta anterior, em frontal violação ao princípio
da boa-fé objetiva que deve nortear a atuação dos contratantes.

Não há se cogitar, aqui, de ineficácia do referido termo de cessão de dívida com


exoneração de obrigação em face de Y, ao argumento de que foram emitidos por Z, o
qual não teria poderes para representar Y nesses atos. A circunstância de Y ter ratificado
o contrato de mandato em causa própria, assinado por Z, por meio de escritura pública
de ratificação e da deliberação em assembleia geral extraordinária, e, ainda, ter
permanecido silente diante da prática de diversos atos por Z em nome de Y,
contribuíram, decisivamente, para despertar em X a legítima aparência de
representação, de modo a vinculá-la aos atos por ele praticados mesmo se constatado
que Z não tinha poderes para a prática desses atos. Cuida-se da denominada teoria da
aparência, largamente admitida pelo direito brasileiro, a qual, em preservação ao
princípio da boa-fé objetiva, tutela os atos praticados por quem não tenha mandato ou
aja em excesso de poderes na hipótese de o suposto mandante ter concorrido, por ação
ou omissão, para despertar a confiança nos terceiros de que o falso representante tinha
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poderes para praticar o ato em seu nome.
4. Interpretação do objeto do contrato de Mandato em Causa Própria. Inexistência de
excesso de poderes do mandatário na aquisição das áreas adjacentes ao Parque Nacional
ABC

Ainda no que tange à extensão dos poderes do mandatário, controverte-se, no


procedimento arbitral, acerca da possibilidade de o mandatário adquirir as áreas
adjacentes ao Parque Nacional ABC.

Com o intuito de determinar o objeto do contrato de mandato em causa própria, o


intérprete deverá perquirir a intenção comum dos contratantes consubstanciada na
vontade declarada pelas partes no ajuste em consonância com a denominada teoria da
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confiança, consagrada no art. 112 do CC/2002.

A teoria da confiança privilegia, na interpretação do negócio jurídico, a manifestação


externa e objetiva da vontade, em detrimento da intenção subjetiva do agente.
Mostra-se imperioso, assim, identificar a vontade consubstanciada nas declarações, de
tal modo que, na interpretação das diversas cláusulas de um contrato, considerem-se
vinculantes os deveres que, manifestados pelas partes, suscitam em ambas
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compreensão comum quanto ao conteúdo da declaração.

O sentido do texto, portanto, há de ser extraído, de modo objetivo, da manifestação


exteriorizada, sendo irrelevante a percepção subjetiva de cada contratante, ainda que
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fundada em construções plausíveis, decorrentes, por vezes, do uso contratual, e que


prevaleceriam na ausência da manifestação em contrário.

No caso concreto, as partes manifestaram nos preceitos contratuais sua vontade de


transferir do patrimônio da associação ao do mandatário ou de terceiros os imóveis
situados nas adjacências do Parque Nacional ABC.

Nessa direção, o contrato de mandato em causa própria dispõe que o mandatário


contratou os serviços de georreferenciamento para os imóveis rurais de propriedade de Y
atingidos pelo Parque Nacional ABC, sua zona de amortecimento, corredores ecológicos e
áreas de entorno.

Mais adiante, o contrato de mandato em causa própria descreve os imóveis rurais objeto
do negócio, os quais, na literalidade do preceito, se situariam “dentro dos limites do
Parque Nacional ABC, zona de amortecimento, corredor ecológico e área de entorno de
referido Parque”, de ora em diante denominados conjuntamente como PABC, a saber
(…)”.

Pela simples leitura dos dispositivos contratuais, depreende-se que os imóveis rurais que
poderiam ser adquiridos pelo mandatário em causa própria localizam-se, à evidência,
dentro e fora do Parque Nacional ABC, sendo a parte exterior ao Parque composta pela
zona de amortecimento, corredor ecológico e área de entorno. As áreas interna e
externa ao Parque, nas quais se situam todos os imóveis rurais, denominam-se, na
expressão empregada pelas partes, “conjuntamente PABC”, a denotar que os imóveis
rurais não se inserem exclusivamente dentro dos estritos limites do Parque.

A inserção pela autonomia privada da referência à “zona de amortecimento, corredor


ecológico e área de entorno” evidencia a mais não poder a vontade declarada das partes
no sentido de introduzir, no âmbito do negócio, a venda pela associação da parte
exterior ao Parque Nacional ABC.

Além disso, X obrigou-se a pagar preço por hectare e a assumir dívidas de Y tendo por
pressuposto a extensão dos imóveis rurais – nela incluídos o interior do Parque, a zona
de amortecimento, o corredor ecológico e a área de entorno -, aí residindo o sinalagma
da relação contratual. Por outras palavras, o mandatário assume obrigações de elevada
monta em contraprestação à entrega, por Y, de bens imóveis rurais situados dentro e
fora do perímetro do Parque Nacional ABC, de tal maneira que a diminuição da área dos
imóveis rurais adquiridos implicaria desequilíbrio da equação econômica do negócio, em
flagrante violação ao princípio do equilíbrio econômico dos contratos.

Dúvidas não há: o contrato de mandato em causa própria tem por objeto a outorga por
Y ao mandatário de poderes para alienar a si ou a terceiros os bens imóveis rurais
localizados dentro do Parque Nacional ABC, bem como na zona de amortecimento, no
corredor ecológico e na área de entorno.

Por isso mesmo, o mandatário, ao pretender adquirir as áreas do entorno do Parque


Nacional ABC, não age em excesso de poderes, mas dentro dos estritos limites da
outorga de poderes conferida por Y.

Assim sendo, e diante do cumprimento por X da obrigação de pagar o preço,


comprovado pelo termo de cessão de dívida com exoneração de obrigação, e, segundo
informa o Consulente, do adimplemento da obrigação de assunção das dívidas descritas
no contrato de mandato em causa própria, não há óbice à transferência da propriedade
dos imóveis rurais descritos no contrato de mandato em causa própria ao mandatário.
5. Conclusão

1. Na espécie, verifica-se a outorga por Y, em caráter irrevogável, de poderes especiais


e específicos a X com vistas à transferência dos imóveis descritos no negócio para si,
mediante o pagamento de preço predefinido, ao lado de irrestritos poderes à prática de
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atos reputados imprescindíveis pelo mandatário para a execução do mandato. As partes


objetivaram, com a celebração do contrato de mandato em causa própria, finalidade
econômica mais ampla pertinente ao contrato de compra e venda, sendo certo que se
encontram presentes os elementos essenciais desse tipo contratual: (a) a identificação
dos bens, cuja titularidade se pretendia transferir, por meio da referência nominal e
topográfica das fazendas, com indicação das respectivas áreas; (b) preço a ser pago por
hectare, ao lado da assunção das dívidas de Y pelo mandatário; e (c) a celebração do
negócio por instrumento público, a prescindir, portanto, da prática de qualquer ato
adicional pelo mandante.

2. A escritura pública consiste em mandato que outorga poderes especiais e específicos a


X com vistas à transferência dos imóveis descritos no negócio para si ou terceiros,
mediante o pagamento de preço predefinido. Tal negócio não contém qualquer previsão
que desnature o contrato de mandato em causa própria. À guisa de exemplo, as
obrigações assumidas pelo mandatário relativas ao serviço de assistência jurídica e à
administração dos bens constituem obrigações acessórias do contrato de mandato em
causa própria, isto é, efeitos secundários do negócio que, por isso mesmo, não alteram a
sua causa. Tais obrigações servem de instrumento à concretização da função do negócio,
não sendo essenciais, entretanto, à qualificação do contrato. De outra parte, a assunção
de dívidas pelo mandatário não configura obrigação no interesse do mandante, capaz de
desnaturar o contrato de mandato em causa própria, mas integra a contraprestação do
ajuste, ou seja, o preço pela transferência da titularidade dos bens imóveis.

3. A referência aos imóveis rurais objeto do contrato de mandato em causa própria de


acordo com o nome das fazendas, localização e área revela-se suficiente à identificação
dos bens, os quais se encontram precisamente determinados. Ainda que assim não se
entendesse, os bens constantes do contrato de mandato em causa própria seriam no
mínimo determináveis, a depender do georreferenciamento para que se tornassem
determinados, o que, só por isso, se mostra suficiente para a compra e venda. O
contrato, por gerar apenas efeitos obrigacionais, não exige que o bem seja determinado,
bastando a sua determinabilidade. Por isso mesmo, as matrículas identificadas no
georreferecimento que não constam expressamente na “escritura pública” inserem-se no
objeto do contrato de mandato em causa própria, vez que integram os imóveis rurais
determinados de acordo com a indicação do nome da Fazenda, localização e área.

Por outro lado, a previsão de georreferecimento não tem o condão de descaracterizar a


individuação do bem essencial à transferência da propriedade, de sorte a desnaturar o
contrato de mandato em causa própria. A rigor, o georreferenciamento consiste em
exigência legislativa com vistas a descrever o imóvel rural em seus limites,
características e confrontações, objetivando fornecer às autoridades públicas e aos
cartórios de registro de imóveis arquivos digitais contendo os dados sobre os bens, a
possibilitar a atualização da situação cartorial e cadastral da propriedade.

4. O contrato de mandato em causa própria traduz negócio indireto, mediante o qual as


partes perseguem finalidade econômica mais ampla do que a finalidade jurídica
predisposta pelo ordenamento para o tipo do contrato de mandato. Para que se
configure o contrato de mandato em causa própria, revela-se imprescindível que se
encontrem presentes todos os elementos essenciais ao contrato perseguido. Por essa
razão, o contrato de mandato em causa própria consubstancia-se em título hábil a gerar
para Y a obrigação de transferir o domínio dos bens a X, tal como ocorre no contrato de
compra e venda, tendo eficácia de alienação definitiva dos imóveis rurais ao outorgado.

5. A irrevogabilidade da “escritura pública”, essencial ao contrato de mandato em causa


própria e prevista expressamente pelas partes, importa a ineficácia de eventual
revogação pelo mandante.

6. A procuração afigura-se ato jurídico unilateral de outorga de poderes. Já o mandato


consiste em espécie contratual cuja função técnico-jurídica se traduz na execução de
atos pelo mandatário em nome do mandante. Ou seja, a representação é essencial ao
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mandato, para o qual é imprescindível, portanto, a contemplatio domini e a outorga de


poderes. Esta pode se dar no próprio corpo do contrato ou em documento avulso, isto é,
na procuração, que lhe serve de instrumento. A procuração destina-se a demonstrar os
poderes de que se investe o mandatário em face de terceiros, sem que se revele o
conteúdo da relação interna entre mandante e mandatário. No caso em exame, a
outorga de poderes ocorreu no próprio contrato de mandato em causa própria,
dispensando-se, conseguintemente, instrumento específico de procuração. A procuração
outorgada teria por finalidade permitir a exibição dos poderes do mandatário aos
terceiros – o que sequer ocorreu no caso concreto – sem que a estes fosse dado
conhecer o conteúdo interno do mandato, de forma a manter íntegra a confidencialidade
do ajuste, em consonância com o contrato de mandato em causa própria. De mais a
mais, a procuração em causa própria ora em exame refere-se expressamente ao
contrato de mandato em causa própria do qual decorre, ali se consignando que os
poderes de X são outorgados “conforme escritura pública de ratificação de ato jurídico”.
Assim sendo, mesmo em tese, porque redigido consoante tal documento, não poderia
jamais revogar o contrato de mandato em causa própria. Por essas razões, a celebração
posterior da procuração em causa própria, despicienda já que a outorga de poderes se
encontra contida no contrato, não acarreta a extinção do mandato em causa própria.

7. Justamente por se tratar de mandato em causa própria, Y conferiu a X poderes


ilimitados para que pudesse praticar todos os atos que considerasse necessários à
transferência da propriedade dos imóveis a si ou a terceiros, de modo que a atuação de
X se operava em nome de Y, mas no seu próprio interesse, estando, por isso mesmo,
dispensado de prestar contas ao mandante.

8. No caso concreto, Y, representada por seu presidente por seu primeiro tesoureiro,
celebrou com X escritura pública de ratificação do ato jurídico, na mesma data da
assinatura do contrato de mandato em causa própria, com o escopo de ratificar todos os
termos, cláusulas e condições constantes deste último. Além disso, posteriormente, Y
realizou assembleia geral extraordinária, na qual o negócio foi expressamente ratificado
pelos seus associados. Tais atos praticados por Y e pelos seus órgãos demonstram a
ratificação do negócio levado a cabo por Z, a extirpar qualquer dúvida quanto à
representatividade de Y ou aos poderes outorgados a X. Desse modo, eventuais vícios
atinentes aos poderes de Z para celebrar o contrato de mandato em causa própria ou,
ainda, aos poderes especiais e específicos de X para alienar a si ou a terceiros os bens
imóveis rurais, restariam inequivocamente convalidados (art. 662 do CC/2002).

9. A execução voluntária do negócio por Y por meio (a) da emissão de termo de cessão
de dívida com exoneração de obrigação, no qual cede e transfere a X dívidas atinentes a
determinadas notificações de lançamento, lavradas pela Receita Federal, e, em
contrapartida, exonera o mandatário de cumprir determinadas obrigações e de atuar em
processos indicados no mesmo instrumento, dando plena quitação; e (b) da destituição
de X do patrocínio de determinada ação judicial mencionada no mesmo instrumento
denota o expresso reconhecimento de Y relativo à plena validade e eficácia do contrato
de mandato em causa própria, a sanear os supostos vícios de anulabilidade, nos termos
do art. 175 do CC/2002. Extinguem-se, pois, todas eventuais pretensões, ações e
exceções de que dispusesse Y para atacar o negócio. Por outro lado, pretender agora
anular o ato representaria adotar comportamento manifestamente incompatível com sua
conduta anterior, em frontal violação ao princípio da boa-fé objetiva que deve nortear a
atuação dos contratantes.

1 “Art. 685. Conferido o mandato com a cláusula ‘em causa própria’, a sua revogação
não terá eficácia, nem se extinguirá pela morte de qualquer das partes, ficando o
mandatário dispensado de prestar contas, e podendo transferir para si os bens móveis
ou imóveis objeto do mandato, obedecidas as formalidades legais.”

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2 “Procuração em causa própria (in rem propriam, in rem suam) é aquela em que são
outorgados poderes ao procurador para administrar certo negócio, como coisa sua, no
seu próprio interesse, fazendo suas as vantagens do mesmo negócio” (Carvalho Santos,
J. M. de. Código Civil brasileiro interpretado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961. vol.
18, p. 317).

3 Seja consentido remeter a Tepedino, Gustavo. Das várias espécies de contrato. Do


mandato. Da comissão. Da agência e distribuição. Da corretagem. Do transporte. In:
Teixeira, Sálvio de Figueiredo (coord.). Comentários ao novo Código Civil. Rio de
Janeiro: Forense, 2008. vol. 10, p. 171: “Trata-se, a rigor, de negócio indireto, cuja
finalidade econômica perseguida pelas partes é mais ampla do que a finalidade jurídica
predisposta pelo ordenamento: embora as partes celebrem típico contrato de mandato,
desempenham a finalidade econômica do contrato de cessão ou do negócio para o qual o
mandato seria preparatório”.

4 Conforme observado em outra sede, “afigura-se a procuração em causa própria título


hábil e suficiente a gerar a obrigação de transferir o domínio, já que nela se encontram
necessariamente presentes os elementos essenciais da compra e venda ou de outro
negócio cujos efeitos são perseguidos pelo mandato in rem suam, e capazes de produzir
a transferência dos bens de um patrimônio para outro (…)” (Tepedino, Gustavo, Das
várias espécies de contrato… cit., p. 176). Na mesma direção, sublinha Mário Ferreira:
“O mandato in rem propriam se caracteriza como variante da cessão de direitos ou da
transmissão de domínio, sempre que o respectivo instrumento contiver todos os
requisitos substanciais desses contratos” (Do mandato em causa própria no direito civil
brasileiro. São Paulo: Escolas Profissionaes do Lyceu Coração de Jesus, 1933. p. 84). Ver
tb. Lopes, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
1999. vol. 4, p. 367.

5 “A procuração em causa própria é instrumento de procura, mas já no interesse


exclusivo do procurador. Ele é outorgado da procura e não mais precisa prestar contas
do que fizer. O outorgante cortou as suas ligações com os direitos, pretensões e ações a
que a procura se refere. O procurador pratica os atos que o outorgante teria, por si, de
praticar; mas para si, e não para o outorgante. (…) A procuração em causa própria tem
a grande conveniência de permitir que o procurador transfira a si, ou para outrem, os
direitos, pretensões e ações que tem o outorgante e dos quais eventualmente se
desligou” (Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. São Paulo: Ed. RT, 1984. t.
XXXIX. p. 253-254). Cf., ainda, a lição de Clovis Bevilaqua: “Na procuração em causa
própria, o mandatário exerce o mandato no seu próprio interesse. (…) Sendo do
mandatário o interesse do exercício da procuradoria, não tem ele que prestar contas da
sua gestão. Pelo mesmo motivo, os seus poderes são ilimitados” (Código Civil dos
Estados Unidos do Brasil comentado. Rio de Janeiro: Paulo de Azevedo, 1957. vol. 5, p.
52). Ver tb. Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro:
Forense, 2004. vol. 3, p. 415.

6 “A procuração em causa própria é irrevogável, de modo que as causas extintivas a que


se refere o art. 1.316, I-III, do Código Civil não a atingem. (…) Na procuração em causa
própria há a outorga de poderes e a atribuição de direito, de modo que esse elemento
passa à frente. Daí a irrevogabilidade e a inextinguibilidade pela morte ou interdição do
procurado ou do procurador, ou pela mudança de estado de qualquer dos dois” (Pontes
de Miranda, op. cit., t. XLIII, p. 153-155). Na mesma direção, assevera Caio Mário da
Silva Pereira: “Pela sua natureza e pelos seus efeitos, a procuração em causa própria é
irrevogável, e sobrevive à morte do mandante ou do mandatário, porque traduz
obrigação transmissível aos herdeiros. Nesta hipótese o Código determina que a
revogação do mandato estipulado no exclusivo interesse do mandatário é ineficaz (art.
684)” (op. cit., p. 415). Confira-se também Gomes, Orlando. Contratos. Rio de Janeiro:
Forense, 2007. p. 356; e, na jurisprudência, STJ, REsp 303.707 (JRP\2002\219), 3.ª T.,
j. 19.11.2001, rel. Min. Nancy Andrighi.

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7 Art. 500. Se, na venda de um imóvel, se estipular o preço por medida de extensão, ou
se determinar a respectiva área, e esta não corresponder, em qualquer dos casos, às
dimensões dadas, o comprador terá o direito de exigir o complemento da área, e, não
sendo isso possível, o de reclamar a resolução do contrato ou abatimento proporcional
ao preço. (…) § 3.º Não haverá complemento de área, nem devolução de excesso, se o
imóvel for vendido como coisa certa e discriminada, tendo sido apenas enunciativa a
referência às suas dimensões, ainda que não conste, de modo expresso, ter sido a venda
ad corpus.

8 “Segundo o § 3.º do presente artigo, na venda ad corpus, isto é, em que a referência à


extensão é meramente enunciativa, sendo a coisa objeto do contrato vendida como
certa e discriminada, não se admitirão reclamações do vendedor ou do comprador
quanto à sua área. (…) Exemplo bastante comum da espécie, tem-se na venda de um
terreno onde, além da menção à extensão, constam discriminados os seus precisos
limites, pela alusão aos imóveis confrontantes. Não é necessário constar expressamente
no contrato que a venda é ad corpus, bastando verificar-se somente que haja a venda
de um imóvel certo e discriminado, não sendo preponderante suas medidas e
dimensões” (Tepedino, Gustavo et al. Código Civil interpretado conforme a Constituição
da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. vol. 2, p. 165-166); Cf., ainda, Caio Mário
da Silva Pereira: “Na venda ad corpus, que é aquela em que o imóvel é transferido como
coisa certa e discriminada, ou o terreno bem delimitado, o comprador nada pode
reclamar porque não foi uma área o objeto do contrato, porém uma gleba caracterizada
por suas confrontações, caracteres de individuação, tapumes etc., não importando para
o contrato se em maior ou menor número de hectares (CC, art. 500, § 3.º). Para que
uma venda se caracterize como ad corpus não exige a lei que o contrato assim a
qualifique expressamente” (op. cit., p. 193).

9 “Se o mandatário ratifica o negócio jurídico ou o ato jurídico stricto sensu (= dá


poderes após o uso deles), o negócio jurídico, ou o ato jurídico strictu sensu, é eficaz
quanto ao mandante, ex tunc“ (Pontes de Miranda, op. cit., t. XLIII, p. 71); “O
representado poderá ratificar os atos praticados por aquele que não tenha poderes de
representação ou os tenha extrapolado. Em não havendo ratificação, o ato será ineficaz
em relação ao mandante, considerando-se mera gestão de negócios. (…) A ratificação
constitui declaração unilateral de vontade; encerra consentimento ao ato praticado pelo
mandatário, a posteriori, suprindo a outorga do poder omitido, com o intuito de vincular
o mandante ao terceiro. (…) A ratificação produz efeito ex tunc de modo a retroagir à
data de celebração do ato. Afigura-se, assim, como uma espécie de ‘mandato retroativo’,
validando o ato desde o dia de sua celebração” (Tepedino, Gustavo. Das várias espécies
de contrato… cit., p. 82-85). Diverso não se mostra o entendimento dos tribunais: “O
mandato aludido no art. 1.295, do CC, pode ser suplementado por ratificação do
mandante, configurada por ato inequívoco que confirme a prática dos atos realizados por
quem não detinha poderes suficientes” (STJ, REsp 280791, 1.ª T., j. 19.04.2001, rel.
Min. Francisco Falcão).

10 “Art. 653. Opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em
seu nome, praticar atos ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do
mandato.”

11 Tepedino, Gustavo, Das várias espécies de contrato… cit., p. 3. Na mesma sede,


observou-se: “A esta publicidade ou exteriorização de que se está a agir em nome de
outrem designa-se contemplatio domini, núcleo central da representação. A contemplatio
domini consiste justamente na atuação ostensiva do representante (não em nome
próprio mas) em nome do representado, o dominus negotii“.

12 “Art. 497. Sob pena de nulidade, não podem ser comprados, ainda que em hasta
pública: I – pelos tutores, curadores, testamenteiros e administradores, os bens
confiados à sua guarda ou administração.”

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13 Em comentário ao art. 1.133 do CC/1916, asseverou Carvalho Santos: “Visa-se, em


suma, com a proibição que aí no texto está consignada, a evitar que o cumprimento do
dever entre em conflito com o interesse, correndo risco de ser por este dominado. E se o
dever daqueles a quem se confiam interesses alheios é procurar auxiliar que as coisas
por ele administradas alcancem o melhor preço quando são postas à venda, se a lei lhes
permitisse ou pudessem trair o seu dever, afastando os concorrentes, de modo a
conseguirem comprar os bens por preço ínfimo” (Carvalho Santos, J. M. de. Código Civil
brasileiro interpretado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1964. vol. 16, p. 117). V., ainda,
Clovis Bevilaqua: “As proibições deste artigo têm um fundamento moral transparente:
manter a isenção de ânimo naqueles, a quem se confiam interesses alheios. A lei quer
impedi-los de sucumbir, como diz Huc, à tentação de sacrificar o seu dever ao que
considerem seu interesse” (Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro:
Paulo Azevedo, 1958. vol. 4, p. 242).

14 “Art. 1.133. Não podem ser comprados, ainda em hasta pública: (…) II – pelos
mandatários, os bens, de cuja administração, ou alienação, estejam encarregados.”

15 Carvalho Santos, J. M., op. cit., vol. 16, p. 140.

16 Código Civil interpretado. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1963. vol. 3, p. 274-276.
Conforme se observou em outra sede: “O ato de confirmação de um negócio jurídico
anulável, para retirar dele a anomalia que o persegue desde o momento de seu
nascimento, pode ser expresso ou tácito. A confirmação expressa é a revelada por
documento escrito, que contenha a inequívoca intenção das partes de confirmar o ato
jurídico anulável, em toda a sua substância (art. 173). A tácita revela-se por meio de
comportamento do agente que, na qualidade de devedor da obrigação e ciente do vício
que macula o negócio jurídico, mesmo assim a cumpre. Inicia a execução da obrigação e
esse comportamento traduz, tacitamente, o propósito de lhe reconhecer validade e
eficácia, não obstante sua má-formação inicial. São exemplos de conduta incompatível
com o propósito de promover a anulação do negócio e, portanto, reveladores de
confirmação tácita, o pagamento parcial, a percepção de juros, as modificações do
contrato, entre outros. Nestas hipóteses, a confirmação expressa é dispensada, valendo
a prova da confirmação tácita para preservar-se a validade do ato jurídico” (Tepedino,
Gustavo et al. Código Civil interpretado. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. vol. 1, p.
325-326).

17 Cf. sobre o tema Tepedino, Gustavo, Das várias espécies de contrato… cit., p. 86 e
ss.

18 “Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas


consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.”

19 Tepedino, Gustavo. Novos princípios contratuais e teoria da confiança: a exegese da


cláusula to the best knowledge of the sellers. Temas de direito civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 2006. t. II, p. 248. V. tb. Rodrigues, Silvio. Direito civil. São Paulo: Saraiva,
2003. vol. 1, p. 186; Oliveira, Eduardo Andrade Ribeiro de. Comentários ao novo Código
Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2008. vol. 2, p. 242.

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