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f! DIREITO MODERNO
O estado de necessidade
Nicolas Israel
Com a colaboração de Laurent Gryn
Tradução
MARIA ERMANTINA DE ALMEIDA PRADO GALVÃO
Revisão da tradução
CLAUDlA BERLINER
�
wmfmartinsfontes
SÃO PAULO 2009
ÍNDICE
1! edição 2009
Tradução
MARIA ERMANTlNA DE ALMCIDA PRADO GALVÃO
Revisão da tradução
Cla11dia lkrliner INTRODUÇÃO. O estado de necessidade ................... VII
Acompa.nhilmento editorial
Luzia Aparecida tios Su11tos
Revisões gráficas CAPÍTULO I. A justiça legal: Aristóteles e Tomás de
Ana Paula Luccisa"o
Ana Mt1ria Alvares
Aquino................................................................. 1
Produção gráfica As diferentes concepções do mérito segundo o direito po-
G,:rr,/do Altx�
Paginação/fotolitos
lítico.............................................................................. 1
Stiulio J Deseuvolvimt..,,to f.llitorial O bem co,num .................... :................................. ......... 5
A origem da lei natural ................................................ 9
Dados lnlemacionais de C.talogaçlo na Publicaçlo (OP)
(Cârnaril Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Os preceitos da lei natural............................................ 15
A transcendência de uma ordem de valores.................. 20
Israel, Nicolas
Genealogia do di�ito moderno: o estado de necessidade /
Nicolas Israel com a colaboração de L1urent Gryn ; tradução CAPÍTULO II. A distinção entre o direito e a moral 27
Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão; revisão da tra
dução Claudia Berline.r. -São Paulo: Editora WMF Martins
A regra jurídica .......................................................... .. 27
Fontes, 2009. - (Biblioh.. 'Cajurídica WMF) O direito natural........................................................... 31
1itulo original: Cé.néalogic du droil modeme: l'etat de né- Justiça distributiva, justiça comutativa......................... 34
C'CSSilé.
ISBN 978-85-7827•133-6
A resistência do juiz...................................................... 41
O direito de propriedade............................................... 46
1. Direito - Filosofia - História 2. Justiça social 3. Necessi
dade (Di rc.ito) 1. Cryn, Laurc.nt. 11. Berliner, Claudia. Ili. TI-
tulo. CAPÍTULO III. O advento do direito subjetivo: Gui-
09-03807 CDU·340.12 lherme de Ockham............................................ 53
Índices para catálogo sistemático: A discussão sobre a pobreza.......................................... 53
1. Gen�alogia do direito .340.12
A moral nominalista..................................................... 58
A dedução do direito subjetivo...................................... 65
Todos os direitos destn edição reserondos à
Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Co11se/lteiro Rnmnllw, 330 01325-000 São Pnulo SP Brnsil CAPÍTULO IV. Suarez: a fundação do direito natu-
Te/. (11) 3241.3677 Fnx (11) 3101.1042 ral subjetivo........................................................ 71
,•-11,ni/: ilifo@wmf111arti11sfo11tes.co111.br ltltp://w1tnv.w11ifmarli11sfo11/es.co111.br
ÍNDICE
1! edição 2009
Tradução
MARIA ERMANTlNA DE ALMCIDA PRADO GALVÃO
Revisão da tradução
Cla11dia lkrliner INTRODUÇÃO. O estado de necessidade ................... VII
Acompa.nhilmento editorial
Luzia Aparecida tios Su11tos
Revisões gráficas CAPÍTULO I. A justiça legal: Aristóteles e Tomás de
Ana Paula Luccisa"o
Ana Mt1ria Alvares
Aquino................................................................. 1
Produção gráfica As diferentes concepções do mérito segundo o direito po-
G,:rr,/do Altx�
Paginação/fotolitos
lítico.............................................................................. 1
Stiulio J Deseuvolvimt..,,to f.llitorial O bem co,num .................... :................................. ......... 5
A origem da lei natural ................................................ 9
Dados lnlemacionais de C.talogaçlo na Publicaçlo (OP)
(Cârnaril Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Os preceitos da lei natural............................................ 15
A transcendência de uma ordem de valores.................. 20
Israel, Nicolas
Genealogia do di�ito moderno: o estado de necessidade /
Nicolas Israel com a colaboração de L1urent Gryn ; tradução CAPÍTULO II. A distinção entre o direito e a moral 27
Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão; revisão da tra
dução Claudia Berline.r. -São Paulo: Editora WMF Martins
A regra jurídica .......................................................... .. 27
Fontes, 2009. - (Biblioh.. 'Cajurídica WMF) O direito natural........................................................... 31
1itulo original: Cé.néalogic du droil modeme: l'etat de né- Justiça distributiva, justiça comutativa......................... 34
C'CSSilé.
ISBN 978-85-7827•133-6
A resistência do juiz...................................................... 41
O direito de propriedade............................................... 46
1. Direito - Filosofia - História 2. Justiça social 3. Necessi
dade (Di rc.ito) 1. Cryn, Laurc.nt. 11. Berliner, Claudia. Ili. TI-
tulo. CAPÍTULO III. O advento do direito subjetivo: Gui-
09-03807 CDU·340.12 lherme de Ockham............................................ 53
Índices para catálogo sistemático: A discussão sobre a pobreza.......................................... 53
1. Gen�alogia do direito .340.12
A moral nominalista..................................................... 58
A dedução do direito subjetivo...................................... 65
Todos os direitos destn edição reserondos à
Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Co11se/lteiro Rnmnllw, 330 01325-000 São Pnulo SP Brnsil CAPÍTULO IV. Suarez: a fundação do direito natu-
Te/. (11) 3241.3677 Fnx (11) 3101.1042 ral subjetivo........................................................ 71
,•-11,ni/: ilifo@wmf111arti11sfo11tes.co111.br ltltp://w1tnv.w11ifmarli11sfo11/es.co111.br
O estado de "pura natureza"......................................... 71 INTRODUÇÃO
A lei natural: um comando da razão............................ 73
A faculdade moral ... . . . . . . ...... . .... ... . .. . .... .. . . . .... . ... . .. . .... . .. . 78 O estado de necessidade
Direito subjetivo e justiça lega l..................................... 80
"Quando os homens são amigos
já não há necessidade de justiça."
CAPÍTULO V. Grócio: uma nova concepção da justi-
ça comutativa...................................................... 89 ARISTÓTELES
tudes de caridade e de solidariedade, mas assegura a inspirações antagônicas, a reflexão jurídica de Aristóteles
restauração de uma concepção obliterada do direito na e a teologia da lei natural.
tural. Não se trata de afirmar que uma situação excepcio A tradição nominalista, reavivada pela obra de Gui
nal suspende as regras vigentes e favorece o renascimen lherme de Ockham, vai, pois, empenhar-se em superar
to de relações humanas marcadas por uma solidarieda essa confusão entre a moral e o direito, mas à custa de
de exemplar. Esse estado de necessidade que, como ve um verdadeiro desnaturamento da relação jurídica. Se
remos, não é um estado de exceção, não abole a ordem parece inconcebível deduzir o direito de um comando
do direito; permite reformular, ao contrário, a perspecti que emana de nossa natureza moral, poderemos inferi
va de um direito de resistência num regime legítimo, ga lo de maneira unilateral, a partir dos poderes naturais de
rante do bem ou do interesse comuns. que o sujeito dispõe? O direito deixaria de ser uma rela
O estudo genealógico do direito moderno supõe, ção empenhada pela igualdade, mas um poder ou uma
assim, retraçar o movimento de ocultamento da questão liberdade inerentes ao sujeito. Nessa nova perspectiva, a
do direito natural e do estado de necessidade que o re ordem política já não é justa na medida em que se con
vela. Essa relação de igualdade imanente às relações so forma à lei natural, mas porque garante a cada indivíduo
ciais foi de início excluída por uma série de injunções a proteção de seus direitos subjetivos.
morais, sob o impulso da tradição da lei natural. A con A exigência de equidade consegue então suplantar
trovérsia provocada pela obra de Rawls, referente à prio a preeminência da justiça social, já que agora se trata de
ridade do justo com relação ao bem, é assim reconduzi defender o direito dos outros como se fosse o seu, e não
da a uma interrogação elementar: até que ponto a moral mais de indagar-se sobre a distribuição primordial a cujo
chega a irrigar o direito? Será concebível fundamentar os termo o direito de cada um foi outorgado. A obra de Gró
nossos direitos numa concepção particular do bem?2 A cio parece, desse ponto de vista, exemplar, sendo a justiça
moral visa retificar as disposições que afetam os indiví distributiva excluída da esfera jurídica a fim de deixar "o
duos e convida, no âmbito da justiça legal, a ordenar-se direito do primeiro ocupante" confirmar a repartição desi
pelos outros respeitando o bem comum, ao passo que, gual dos bens exteriores. Apenas o indivíduo já detentor
na ordem do direito, a relação entre as pessoas é sim de direitos tem condições de resistir e não aquele que rei
plesmente subordinada a uma repartição igual dos bens vindica a conquista de novas relações de igualdade.
exteriores. A radicalidade da relação jurídica se vê, pois, No prolongamento da ruptura operada por Grócio
suspensa, uma vez que a justiça da lei positiva depende com a questão da justiça distributiva, Hobbes acabará
de sua conformidade à lei natural, a urna ordem de valo assentando o direito de resistência num direito subjetivo
res inserida nos corações. A análise que Tomás de Aqui inalienável à segurança. O receio da morte violenta se
no consagra ao direito parece, assim, dividida entre duas apresenta, então, como a fonte de uma resistência amo
ral. Essa igualdade perante o risco da morte violenta se
2. M. Sande!, Le Libéra/isme et /es limites de ln justice, trad. fr. J.-F. Spitz,
impõe, assim, como o fundamento intangível da tradição
Le Seuil, 1999, pp. 268-9. dos direitos humanos.
X I
GENEALOGIA DO DIRETO MODERNO O ESTADO DE NECESSIDADE XI
tudes de caridade e de solidariedade, mas assegura a inspirações antagônicas, a reflexão jurídica de Aristóteles
restauração de uma concepção obliterada do direito na e a teologia da lei natural.
tural. Não se trata de afirmar que uma situação excepcio A tradição nominalista, reavivada pela obra de Gui
nal suspende as regras vigentes e favorece o renascimen lherme de Ockham, vai, pois, empenhar-se em superar
to de relações humanas marcadas por uma solidarieda essa confusão entre a moral e o direito, mas à custa de
de exemplar. Esse estado de necessidade que, como ve um verdadeiro desnaturamento da relação jurídica. Se
remos, não é um estado de exceção, não abole a ordem parece inconcebível deduzir o direito de um comando
do direito; permite reformular, ao contrário, a perspecti que emana de nossa natureza moral, poderemos inferi
va de um direito de resistência num regime legítimo, ga lo de maneira unilateral, a partir dos poderes naturais de
rante do bem ou do interesse comuns. que o sujeito dispõe? O direito deixaria de ser uma rela
O estudo genealógico do direito moderno supõe, ção empenhada pela igualdade, mas um poder ou uma
assim, retraçar o movimento de ocultamento da questão liberdade inerentes ao sujeito. Nessa nova perspectiva, a
do direito natural e do estado de necessidade que o re ordem política já não é justa na medida em que se con
vela. Essa relação de igualdade imanente às relações so forma à lei natural, mas porque garante a cada indivíduo
ciais foi de início excluída por uma série de injunções a proteção de seus direitos subjetivos.
morais, sob o impulso da tradição da lei natural. A con A exigência de equidade consegue então suplantar
trovérsia provocada pela obra de Rawls, referente à prio a preeminência da justiça social, já que agora se trata de
ridade do justo com relação ao bem, é assim reconduzi defender o direito dos outros como se fosse o seu, e não
da a uma interrogação elementar: até que ponto a moral mais de indagar-se sobre a distribuição primordial a cujo
chega a irrigar o direito? Será concebível fundamentar os termo o direito de cada um foi outorgado. A obra de Gró
nossos direitos numa concepção particular do bem?2 A cio parece, desse ponto de vista, exemplar, sendo a justiça
moral visa retificar as disposições que afetam os indiví distributiva excluída da esfera jurídica a fim de deixar "o
duos e convida, no âmbito da justiça legal, a ordenar-se direito do primeiro ocupante" confirmar a repartição desi
pelos outros respeitando o bem comum, ao passo que, gual dos bens exteriores. Apenas o indivíduo já detentor
na ordem do direito, a relação entre as pessoas é sim de direitos tem condições de resistir e não aquele que rei
plesmente subordinada a uma repartição igual dos bens vindica a conquista de novas relações de igualdade.
exteriores. A radicalidade da relação jurídica se vê, pois, No prolongamento da ruptura operada por Grócio
suspensa, uma vez que a justiça da lei positiva depende com a questão da justiça distributiva, Hobbes acabará
de sua conformidade à lei natural, a urna ordem de valo assentando o direito de resistência num direito subjetivo
res inserida nos corações. A análise que Tomás de Aqui inalienável à segurança. O receio da morte violenta se
no consagra ao direito parece, assim, dividida entre duas apresenta, então, como a fonte de uma resistência amo
ral. Essa igualdade perante o risco da morte violenta se
2. M. Sande!, Le Libéra/isme et /es limites de ln justice, trad. fr. J.-F. Spitz,
impõe, assim, como o fundamento intangível da tradição
Le Seuil, 1999, pp. 268-9. dos direitos humanos.
XII GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO
1. Éthiq11e à Nicomaque, V, 10, 1134 a (trad. fr. J. Ritter, "Le droit naturel
chez Aristote", Archives de philosophie, 1969, p. 446).
2. lbid., 1134 b, p. 249.
3. Métaphysique, A, 2, 982 b, trad. fr. J. Tricot, Paris, V rin, p. 18.
XII GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO
1. Éthiq11e à Nicomaque, V, 10, 1134 a (trad. fr. J. Ritter, "Le droit naturel
chez Aristote", Archives de philosophie, 1969, p. 446).
2. lbid., 1134 b, p. 249.
3. Métaphysique, A, 2, 982 b, trad. fr. J. Tricot, Paris, V rin, p. 18.
2 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMAS DE AQUINO 3
de fundamentada na i.gualdade"4• A igualdade política Qual deve ser então o princípio de partilha da auto
supõe, assim, uma relação entre governantes e governa ridade política? Todos os cidadãos concordam com a
dos baseada na reciprocidade5 . ideia de uma partilha do poder, mas conforme aspirem
A busca da igualdade na detenção do poder político ao governo monárquico, aristocrático ou democrático,
mostra-se, pois, o princípio formal da constituição da Ci eles se engalfinham a respeito dos indivíduos a quem se
dade.A justiça política só se impõe"para os que vivem na deve entregar a autoridade política8: "Pois, em geral, é vi
turalmente sob o domínio da lei[...] a quem pertence uma sando a igualdade que se fica sedicioso."9 Com efeito,
parte igual no direito de governar e de ser govemado"6• "[ ...] se as pessoas estão de acordo sobre o fato de que o
Compete, assim, às diferentes"disposições constitu absolutamente justo é o justo segundo o mérito, as di
vergências surgem [ ... ] do fato de que uns, embora se
cionais" próprias de cada Cidade reger a partilha do po
jam iguais sobre determinado ponto, pensam ser total
der político entre os cidadãos. O direito político é, assim,
mente iguais, e os outros, se são desiguais em algum as
suscetível de variar segundo a natureza das diferentes
pecto, creem-se dignos de ser desiguais em tudo" 1 º.
constituições7 . Se cada um recebe honras públicas segundo seu mé
rito11, não se deve recear que a concepção do mérito, à
4. Les Poliliques, VI, 2, 1317 b, trad. fr. P. Pellegrin, Paris, GF, p. 418. "O po qual toda a organização política é vinculada, dependa
der político se aplica a homens livres e iguais" (ibid., 1, 7, 1255 b, p. 108; Ul, 6, por sua vez de opiniões instáveis, porquanto" os demo
1279 a, pp. 227-8).
5. "Na maioria dos regimes políticos é-se alternadamente governante e cratas o fazem consistir numa condição livre, os partidá
governado (pois quer-se ser igual de natureza sem diferença alguma)" (Les Po rios da oligarquia, ou na riqueza ou na nobreza da raça,
litiques, I, 12, 1259 b, pp. 127-8).
6. Éthique à Nicomaque, V, 10, 1134 b, trad. fr. J. Tricot, p. 250. "Daquele
e os defensores da aristocracia, na virtude"? 12 Cada indi
que tem a faculdade de participar no poder deliberativo ou judiciário, dizemos víduo pode estimar o grau de igualdade que a Cidade
que é cidadão da cidade em questão" (Les Politiques, Ili, 1, 1275 b, p. 209); "( ...] deve alcançar, levando em conta, segundo a condição que
não se deve crer que seja escravidão viver segu.ndo a constituição, é, ao con
trário, a salvação" (ibid., V, 9, 1310 a, p. 384). lhe é própria, a liberdade, a virtude, a riqueza ou o nas
7. O conceito de politeía, que se pode traduzir por "constituição", as cimento dos cidadãos 13• O justo político parece, portan-
sume, em Aristóteles, um significado particular. "A constituição (1t0Âuao:) era
i
prmitivamente o direito do cidadão, alternadamente governante e governa
do, de participar da direção e da gestão da cidade, no nível da consulta, da ju 8. Les Poliliques, LU, 9, 1280 a, pp. 233-4. "Se todo o mundo está de acor
risprudência e do exercício das funções públicas. Num segundo sentido, é a do que o justo é a igualdade proporcional, as pessoas estão enganadas sobre
'ordem' estabelecida que rege juridicamente essa participação" Q. Ritter, "Le o que ela é" (V, 1, 1301 a, p. 341).
droit naturel chez Aristote", art. cit., p. 433); "Uma constituição é uma organi 9. Tbid., 1301 b, p. 344.
zação que concerne às magistraturas nas cidades, de que maneira são parti 10. lbid. Macpherson salienta judiciosamente que o projeto de um filó
lhadas, a qual é soberana na constituição e qual é o fim de cada uma dessas sofo como Hobbes será, ao contrário, encontrar uma forma de igualdade (o
comunidades" (Les Politiques, N, 1, 1289 a, p. 208). Leo Straus prefere traduzir receio da morte violenta é aqui compartilhado por todos) que anula as dife
JtOÂ.l'tElO: por "regime": "O regime significa simultaneamente a f orma de vida rentes formas de desiguaJdades, ainda que sociais (La Théorie polilique de
de uma sociedade, seu estilo de vida, seu gosto moral, a forma dessa socieda /'individualisme possessif, Paris, Gallimard, 1971, pp. 99, 105 e 211).
de, a f orma do Estado, a forma do governo, o espírito de suas leis" (Q11'est-ce 11. ttliique à Nicom11q11e, V, 6, 1131 a, p. 227.
que /11 philosophie politique?, trad. fr. O. Seyden, Paris, PUF, 1992, p. 38; cf. Droit 12. lbid., p. 228.
nahtrel et histoire, Paris, Flammarion, 1986, pp. 128-9). "A constituição é uma 13. "Há três títulos para reivindicar a igualdade na constituição, a liber
espécie de vida para uma cidade" (Les Politiques, [V, 11, 1295 b, p. 312). dade, a riqueza, a virtude (o quarto, com efeito, aquele a que chamam o nas-
2 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMAS DE AQUINO 3
de fundamentada na i.gualdade"4• A igualdade política Qual deve ser então o princípio de partilha da auto
supõe, assim, uma relação entre governantes e governa ridade política? Todos os cidadãos concordam com a
dos baseada na reciprocidade5 . ideia de uma partilha do poder, mas conforme aspirem
A busca da igualdade na detenção do poder político ao governo monárquico, aristocrático ou democrático,
mostra-se, pois, o princípio formal da constituição da Ci eles se engalfinham a respeito dos indivíduos a quem se
dade.A justiça política só se impõe"para os que vivem na deve entregar a autoridade política8: "Pois, em geral, é vi
turalmente sob o domínio da lei[...] a quem pertence uma sando a igualdade que se fica sedicioso."9 Com efeito,
parte igual no direito de governar e de ser govemado"6• "[ ...] se as pessoas estão de acordo sobre o fato de que o
Compete, assim, às diferentes"disposições constitu absolutamente justo é o justo segundo o mérito, as di
vergências surgem [ ... ] do fato de que uns, embora se
cionais" próprias de cada Cidade reger a partilha do po
jam iguais sobre determinado ponto, pensam ser total
der político entre os cidadãos. O direito político é, assim,
mente iguais, e os outros, se são desiguais em algum as
suscetível de variar segundo a natureza das diferentes
pecto, creem-se dignos de ser desiguais em tudo" 1 º.
constituições7 . Se cada um recebe honras públicas segundo seu mé
rito11, não se deve recear que a concepção do mérito, à
4. Les Poliliques, VI, 2, 1317 b, trad. fr. P. Pellegrin, Paris, GF, p. 418. "O po qual toda a organização política é vinculada, dependa
der político se aplica a homens livres e iguais" (ibid., 1, 7, 1255 b, p. 108; Ul, 6, por sua vez de opiniões instáveis, porquanto" os demo
1279 a, pp. 227-8).
5. "Na maioria dos regimes políticos é-se alternadamente governante e cratas o fazem consistir numa condição livre, os partidá
governado (pois quer-se ser igual de natureza sem diferença alguma)" (Les Po rios da oligarquia, ou na riqueza ou na nobreza da raça,
litiques, I, 12, 1259 b, pp. 127-8).
6. Éthique à Nicomaque, V, 10, 1134 b, trad. fr. J. Tricot, p. 250. "Daquele
e os defensores da aristocracia, na virtude"? 12 Cada indi
que tem a faculdade de participar no poder deliberativo ou judiciário, dizemos víduo pode estimar o grau de igualdade que a Cidade
que é cidadão da cidade em questão" (Les Politiques, Ili, 1, 1275 b, p. 209); "( ...] deve alcançar, levando em conta, segundo a condição que
não se deve crer que seja escravidão viver segu.ndo a constituição, é, ao con
trário, a salvação" (ibid., V, 9, 1310 a, p. 384). lhe é própria, a liberdade, a virtude, a riqueza ou o nas
7. O conceito de politeía, que se pode traduzir por "constituição", as cimento dos cidadãos 13• O justo político parece, portan-
sume, em Aristóteles, um significado particular. "A constituição (1t0Âuao:) era
i
prmitivamente o direito do cidadão, alternadamente governante e governa
do, de participar da direção e da gestão da cidade, no nível da consulta, da ju 8. Les Poliliques, LU, 9, 1280 a, pp. 233-4. "Se todo o mundo está de acor
risprudência e do exercício das funções públicas. Num segundo sentido, é a do que o justo é a igualdade proporcional, as pessoas estão enganadas sobre
'ordem' estabelecida que rege juridicamente essa participação" Q. Ritter, "Le o que ela é" (V, 1, 1301 a, p. 341).
droit naturel chez Aristote", art. cit., p. 433); "Uma constituição é uma organi 9. Tbid., 1301 b, p. 344.
zação que concerne às magistraturas nas cidades, de que maneira são parti 10. lbid. Macpherson salienta judiciosamente que o projeto de um filó
lhadas, a qual é soberana na constituição e qual é o fim de cada uma dessas sofo como Hobbes será, ao contrário, encontrar uma forma de igualdade (o
comunidades" (Les Politiques, N, 1, 1289 a, p. 208). Leo Straus prefere traduzir receio da morte violenta é aqui compartilhado por todos) que anula as dife
JtOÂ.l'tElO: por "regime": "O regime significa simultaneamente a f orma de vida rentes formas de desiguaJdades, ainda que sociais (La Théorie polilique de
de uma sociedade, seu estilo de vida, seu gosto moral, a forma dessa socieda /'individualisme possessif, Paris, Gallimard, 1971, pp. 99, 105 e 211).
de, a f orma do Estado, a forma do governo, o espírito de suas leis" (Q11'est-ce 11. ttliique à Nicom11q11e, V, 6, 1131 a, p. 227.
que /11 philosophie politique?, trad. fr. O. Seyden, Paris, PUF, 1992, p. 38; cf. Droit 12. lbid., p. 228.
nahtrel et histoire, Paris, Flammarion, 1986, pp. 128-9). "A constituição é uma 13. "Há três títulos para reivindicar a igualdade na constituição, a liber
espécie de vida para uma cidade" (Les Politiques, [V, 11, 1295 b, p. 312). dade, a riqueza, a virtude (o quarto, com efeito, aquele a que chamam o nas-
4 GENEALOGIA DO DTRElTO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMÁS DE AQUINO 5
to, afetado por certo número de variações, que traduzem O bem comum
as diferentes concepções do mérito. Cada constituição
emprega urna determinada concepção do mérito que Como interpretar a noção de justiça legal? Como sa
está na fonte da repartição do poder político14 • lienta Aristóteles,"é evidente que todas as ações prescritas
Toda constituição dá, assim, origem a um conjunto pela lei são, num sentido, justas; de fato, as ações defini
de leis particulares 15 no princípio do que Aristóteles no das pela lei positiva são legais, e cada uma delas é justa"1�.
meia justiça legal. Vê-se, portanto, que, se a ordem jurí Mas acrescenta que a lei só está no princípio da jus
dica encontra a condição de sua emergência numa co tiça na medida em que se empenha em promover o bem
munidade política que repousa na associação entre cida comum da Cidade: "Chamamos ações justas todas aque
dãos livres e iguais, ela não pode reduzir-se a isso. As leis las que tendem a produzir ou a conservar a felicidade com
que emanam de cada tipo de constituição vão prosseguir os elementos que a compõem para a comunidade políti
a edificação da ordem jurídica. ca."17 A lei positiva encontra, pois, a fonte de sua justiça
em suá. aptidão para assegurar o bem da comunidade,
assim como em sua capacidade para conduzir os cida
dãos ao bem que lhes é próprio, para lhes propor uma
existência virtuosa 18.
cimento ilustre, acompanha os dois últimos, pois o nascimento ilustre é uma
Portanto, o legislador jamais deve perder de vista a
riqueza e uma virtude antigas)[...]" (Les Politiques, IV, 8, 1294 a, p. 305). "Uma distinção entre a virtude e o vício, e a lei deve parecer-lhe
constituição é a organização das magistraturas, que todos partilham entre si um instrumento destinado a tornar os "cidadãos bons e
seja em virtude do poder daqueles que dela tomam parte, seja em virtude de justos" 19• Uma autêntica comunidade política emprega to
alguma igualdade comum entre eles; refiro-me, por exemplo, ao poder das
pessoas modestas ou ao das pessoas abastadas, ou a alguma outra comum a
dos os recursos de que dispõe para garantir a cada cida
esses dois grupos. Portanto, é necessário que haja tantas constituições quan dão as condições de uma existência virtuosa20, que está
tas organizações de magistraturas há, em virtude das superioridades e das di
ferenças mútuas das partes da cidade" (ibid., N, 3, 1290 a, p. 285). i
14. "A cidade é uma determinada comunidade formada pelas pessoas 16. Éthique à Nic.omaque, V, 3, 1129 b, p. 217-9.
semelhantes, mas tendo em vista uma vida que seja a melhor possível. Mas, 17. Tbid., p. 218.
já que o melhor é a felicidade, a qual é uma realização e um uso perfeitos 18. fbid.
de uma virtude, e ocorre que alguns podem tomar parte nesta e outros 19. Les Politiques, W, 9, 1280 a, p. 235; "a lei nos prescreve uma maneira
de viver conforme às diversas virtudes particulares" (Éthique à Nicomaque, V, 5,
pouco ou nada, é evidente que essa é a causa da existência de diferentes va
11.30 b, p. 224)."Mas[os homens] se parecem e[...] perpetuam a comunidade
riedades de cidade e de várias constituições. Como os povos partem cada {
política também com o único objetivo de viver. Talvez, de fato, haja uma par
um à caça da felicidade de uma maneira diferente e com meios diferentes,
te de felicidade no simples fato de viver se é uma vida não cumulada demais
eles criam os diversos modos de vida e as diversas constituições" (Les Poli de penas. Aliás, é evidente que a maioria dos homens suporta muitos sofri
tiques, VII, 8, 1328 a-b, p. 474). "Aquele que pretende realizar uma pesquisa mentos de tanto que é apegada à vida, como se esta tivesse em si mesma uma
apropriada sobre uma excelente constituição deve primeiro necessariamen alegria e uma doçura naturais" (Les Politiques, IU, 6, 1278 b, p. 226).
te definir qual é o modo de vida mais digno de ser escolhido" (ibid., VII, 1, 20."Os legisladores tomam bons os cidadãos fazendo-os contrair certos
1323 a, p. 449). hábitos: é exatamente esse o almejo de todo legislador, e, se não o cumpre
15. "Pois é segundo as constituições que é preciso estabelecer as leis, e bem, sua obra f alhou, e é nisso que uma boa constituição se distingue de uma
todas são assim estabelecidas, e não as constituições segundo as leis" (ibid., IV, má"(Élhique à Nic.omaque, li, 1, 1103 b, p. 89). "Quando esse indivíduo, essa mi
1, 1289 a, p. 280). noria ou essa maioria governam com o fito da vantagem comum, necessaria-
4 GENEALOGIA DO DTRElTO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMÁS DE AQUINO 5
to, afetado por certo número de variações, que traduzem O bem comum
as diferentes concepções do mérito. Cada constituição
emprega urna determinada concepção do mérito que Como interpretar a noção de justiça legal? Como sa
está na fonte da repartição do poder político14 • lienta Aristóteles,"é evidente que todas as ações prescritas
Toda constituição dá, assim, origem a um conjunto pela lei são, num sentido, justas; de fato, as ações defini
de leis particulares 15 no princípio do que Aristóteles no das pela lei positiva são legais, e cada uma delas é justa"1�.
meia justiça legal. Vê-se, portanto, que, se a ordem jurí Mas acrescenta que a lei só está no princípio da jus
dica encontra a condição de sua emergência numa co tiça na medida em que se empenha em promover o bem
munidade política que repousa na associação entre cida comum da Cidade: "Chamamos ações justas todas aque
dãos livres e iguais, ela não pode reduzir-se a isso. As leis las que tendem a produzir ou a conservar a felicidade com
que emanam de cada tipo de constituição vão prosseguir os elementos que a compõem para a comunidade políti
a edificação da ordem jurídica. ca."17 A lei positiva encontra, pois, a fonte de sua justiça
em suá. aptidão para assegurar o bem da comunidade,
assim como em sua capacidade para conduzir os cida
dãos ao bem que lhes é próprio, para lhes propor uma
existência virtuosa 18.
cimento ilustre, acompanha os dois últimos, pois o nascimento ilustre é uma
Portanto, o legislador jamais deve perder de vista a
riqueza e uma virtude antigas)[...]" (Les Politiques, IV, 8, 1294 a, p. 305). "Uma distinção entre a virtude e o vício, e a lei deve parecer-lhe
constituição é a organização das magistraturas, que todos partilham entre si um instrumento destinado a tornar os "cidadãos bons e
seja em virtude do poder daqueles que dela tomam parte, seja em virtude de justos" 19• Uma autêntica comunidade política emprega to
alguma igualdade comum entre eles; refiro-me, por exemplo, ao poder das
pessoas modestas ou ao das pessoas abastadas, ou a alguma outra comum a
dos os recursos de que dispõe para garantir a cada cida
esses dois grupos. Portanto, é necessário que haja tantas constituições quan dão as condições de uma existência virtuosa20, que está
tas organizações de magistraturas há, em virtude das superioridades e das di
ferenças mútuas das partes da cidade" (ibid., N, 3, 1290 a, p. 285). i
14. "A cidade é uma determinada comunidade formada pelas pessoas 16. Éthique à Nic.omaque, V, 3, 1129 b, p. 217-9.
semelhantes, mas tendo em vista uma vida que seja a melhor possível. Mas, 17. Tbid., p. 218.
já que o melhor é a felicidade, a qual é uma realização e um uso perfeitos 18. fbid.
de uma virtude, e ocorre que alguns podem tomar parte nesta e outros 19. Les Politiques, W, 9, 1280 a, p. 235; "a lei nos prescreve uma maneira
de viver conforme às diversas virtudes particulares" (Éthique à Nicomaque, V, 5,
pouco ou nada, é evidente que essa é a causa da existência de diferentes va
11.30 b, p. 224)."Mas[os homens] se parecem e[...] perpetuam a comunidade
riedades de cidade e de várias constituições. Como os povos partem cada {
política também com o único objetivo de viver. Talvez, de fato, haja uma par
um à caça da felicidade de uma maneira diferente e com meios diferentes,
te de felicidade no simples fato de viver se é uma vida não cumulada demais
eles criam os diversos modos de vida e as diversas constituições" (Les Poli de penas. Aliás, é evidente que a maioria dos homens suporta muitos sofri
tiques, VII, 8, 1328 a-b, p. 474). "Aquele que pretende realizar uma pesquisa mentos de tanto que é apegada à vida, como se esta tivesse em si mesma uma
apropriada sobre uma excelente constituição deve primeiro necessariamen alegria e uma doçura naturais" (Les Politiques, IU, 6, 1278 b, p. 226).
te definir qual é o modo de vida mais digno de ser escolhido" (ibid., VII, 1, 20."Os legisladores tomam bons os cidadãos fazendo-os contrair certos
1323 a, p. 449). hábitos: é exatamente esse o almejo de todo legislador, e, se não o cumpre
15. "Pois é segundo as constituições que é preciso estabelecer as leis, e bem, sua obra f alhou, e é nisso que uma boa constituição se distingue de uma
todas são assim estabelecidas, e não as constituições segundo as leis" (ibid., IV, má"(Élhique à Nic.omaque, li, 1, 1103 b, p. 89). "Quando esse indivíduo, essa mi
1, 1289 a, p. 280). noria ou essa maioria governam com o fito da vantagem comum, necessaria-
6 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMAS DE AQUINO 7
na origem da amizade política entre os homens, da con vas25, ao passo que a virtude de justiça designa uma re
córdia 2'. A Cidade não pode, assim, confundir-se com lação com os outros26.
uma"aliança militar" ou com uma associação voltada à Aristóteles concebe a justiça geral como uma virtude
acumulação dos bens. Ela não é"uma comunidade de completa, que abrange o conjunto das virtudes morais27.
lugar, estabelecida com vistas a evitar as injustiças mú A coragem ou a temperança, que são virtudes morais, se
tuas e permitir as trocas" 22• tornam, de fato, componentes da justiça geral assim que
Não obstante, a relação essencial instaurada por são orientadas para os outros. Através dessa nova orien
Aristóteles entre a justiça das leis positivas e a busca do tação, as virtudes morais visam o geral, o bem comum. A
bem comum levanta uma dificuldade incontornável: "Pois, justiça geral é, portanto, uma virtude pela qual o cidadão
sem dúvida, não é a mesma coisa ser um homem de bem cumpre o que deve à comunidade.
e ser um bom cidadão de algu m Estado."23 Em que sentido poderemos sustentar que essa justi
A fim de aprofundar o significado dessa questão de ça é geral? Tomás de Aquino interpreta o significado des
cisiva, convém definir a natureza do bem comum. O bem se epíteto de maneira particularmente esclarecedora. A
comum coincide com o conjunto das condições objetivas justiça não é geral no sentido de que ela procederia da
que outorgam aos cidadãos a possibilidade de realizar os adição do conjunto das virtudes particulares; pois uma
fins inseridos em sua natureza e de levar uma vida vir entidade pode ser, igualmente, concebida como geral "do
tuosa. Portanto, não é possível descobrir a menor discor ponto de vista de sua potência, tal como uma causa uni
dância entre o bem do indivíduo e o bem comum, uma versal em relação a todos os seus efeitos; por exemplo, o
vez que este último tende a garantir, para cada cidadão, Sol que ilumina ou transforma todos os corpos por sua
a capacidade de realizar os fins que lhe foram atribuídos potência" 28• A justiça legal deve ser apreendida como ge
por sua natureza24 . ral, pois"ela ordena os atos das outras virtudes para seu
Mas essa identificação parece submeter o conceito fim, o que equivale a movê-los por seu comando"."Qual
de virtude a certa tensão, já que oscila entre dois polos quer virtude pode ser chamada de justiça legal pelo fato
opostos. A virtude moral é relativa a cada indivíduo, de ela ser ordenada ao bem comum", pela obra da vir
supõe um meio-termo entre duas disposições excessi- tude de justiça que é "geral por sua potência motora"29.
As leis positivas, que constituem o polo objetivo da jus
mente essas constituições são retas, mas quando é com o fito da vantagem tiça geral, orientam cada uma das virtudes particulares
própria desse indivíduo, desse pequeno ou desse grande número, são des para o bem comum.
vios" (Les Politiques, rn, 7, 1279 a, p.229).
21. Éthique à Nicomaque, IX, 6, 1167 a-b, pp. 449-50.
22. Les Politiques, lll, 9, 1280 b, p. 236. 25.Éthique à Nicomaque, li, 6, 1107 a, p. 106.
23. Éthique à Nicomaq11e, V, 5, 1130 b, p. 224; Les Politiq11es, vn, 2, 1324 a, 26. Tbid., V, 3, 1129 b, p.219. Cf.Tomás de Aquino, Somme théologique, ed.
p.453. A. Raulin, trad. fr.A. M. Roguet, Paris, Le Cerf, 1984-1986, 4 vols., Il-TI, 57, 1.
24. "Pois são as mesmas coisas que são excelentes para um particular e 27."Essa forma de justiça, então, é uma virtude completa, não, porém,
para uma comunidade, e é isso que o legislador deve fazer entrar na alma dos no sentido absoluto, mas em nossas relações com os outros"(ibid.).
homens" (Les Politiques, Vil, 14, 1333 b, p. 499; Éthique à Nicomaque, 1, 1, 1094 28. Somme théologiq11e, íl-ll, 58, 6, resp.
b, p. 35). 29. Ibid.
6 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMAS DE AQUINO 7
na origem da amizade política entre os homens, da con vas25, ao passo que a virtude de justiça designa uma re
córdia 2'. A Cidade não pode, assim, confundir-se com lação com os outros26.
uma"aliança militar" ou com uma associação voltada à Aristóteles concebe a justiça geral como uma virtude
acumulação dos bens. Ela não é"uma comunidade de completa, que abrange o conjunto das virtudes morais27.
lugar, estabelecida com vistas a evitar as injustiças mú A coragem ou a temperança, que são virtudes morais, se
tuas e permitir as trocas" 22• tornam, de fato, componentes da justiça geral assim que
Não obstante, a relação essencial instaurada por são orientadas para os outros. Através dessa nova orien
Aristóteles entre a justiça das leis positivas e a busca do tação, as virtudes morais visam o geral, o bem comum. A
bem comum levanta uma dificuldade incontornável: "Pois, justiça geral é, portanto, uma virtude pela qual o cidadão
sem dúvida, não é a mesma coisa ser um homem de bem cumpre o que deve à comunidade.
e ser um bom cidadão de algu m Estado."23 Em que sentido poderemos sustentar que essa justi
A fim de aprofundar o significado dessa questão de ça é geral? Tomás de Aquino interpreta o significado des
cisiva, convém definir a natureza do bem comum. O bem se epíteto de maneira particularmente esclarecedora. A
comum coincide com o conjunto das condições objetivas justiça não é geral no sentido de que ela procederia da
que outorgam aos cidadãos a possibilidade de realizar os adição do conjunto das virtudes particulares; pois uma
fins inseridos em sua natureza e de levar uma vida vir entidade pode ser, igualmente, concebida como geral "do
tuosa. Portanto, não é possível descobrir a menor discor ponto de vista de sua potência, tal como uma causa uni
dância entre o bem do indivíduo e o bem comum, uma versal em relação a todos os seus efeitos; por exemplo, o
vez que este último tende a garantir, para cada cidadão, Sol que ilumina ou transforma todos os corpos por sua
a capacidade de realizar os fins que lhe foram atribuídos potência" 28• A justiça legal deve ser apreendida como ge
por sua natureza24 . ral, pois"ela ordena os atos das outras virtudes para seu
Mas essa identificação parece submeter o conceito fim, o que equivale a movê-los por seu comando"."Qual
de virtude a certa tensão, já que oscila entre dois polos quer virtude pode ser chamada de justiça legal pelo fato
opostos. A virtude moral é relativa a cada indivíduo, de ela ser ordenada ao bem comum", pela obra da vir
supõe um meio-termo entre duas disposições excessi- tude de justiça que é "geral por sua potência motora"29.
As leis positivas, que constituem o polo objetivo da jus
mente essas constituições são retas, mas quando é com o fito da vantagem tiça geral, orientam cada uma das virtudes particulares
própria desse indivíduo, desse pequeno ou desse grande número, são des para o bem comum.
vios" (Les Politiques, rn, 7, 1279 a, p.229).
21. Éthique à Nicomaque, IX, 6, 1167 a-b, pp. 449-50.
22. Les Politiques, lll, 9, 1280 b, p. 236. 25.Éthique à Nicomaque, li, 6, 1107 a, p. 106.
23. Éthique à Nicomaq11e, V, 5, 1130 b, p. 224; Les Politiq11es, vn, 2, 1324 a, 26. Tbid., V, 3, 1129 b, p.219. Cf.Tomás de Aquino, Somme théologique, ed.
p.453. A. Raulin, trad. fr.A. M. Roguet, Paris, Le Cerf, 1984-1986, 4 vols., Il-TI, 57, 1.
24. "Pois são as mesmas coisas que são excelentes para um particular e 27."Essa forma de justiça, então, é uma virtude completa, não, porém,
para uma comunidade, e é isso que o legislador deve fazer entrar na alma dos no sentido absoluto, mas em nossas relações com os outros"(ibid.).
homens" (Les Politiques, Vil, 14, 1333 b, p. 499; Éthique à Nicomaque, 1, 1, 1094 28. Somme théologiq11e, íl-ll, 58, 6, resp.
b, p. 35). 29. Ibid.
8 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMAS DE AQUINO 9
A distinção, estabelecida pelos pensadores moder de ramificações que seriam, não obstante, subtraídas à
nos, entre as disposições legislativas que visam o bom sua dominação. O justo já não deriva somente da con
funcionamento do Estado e as leis morais que favorecem formidade às leis civis que emanam da constituição, mas
o aperfeiçoamento individual é, portanto, pouco acen supõe o respeito pelo bem comum.
tuada em Aristóteles. Se a lei civil prescreve a virtude, é O direito, o que é justo, seria, pois, edificado sobre a
simplesmente na medida em que esta concorre para o natureza do homem, que, apesar de sua relativa indeter
bem comum. Em consequência, a perfeição individual e minação, a atualização flutuante de sua potência, "tem
moral do homem pode ser distinguida de sua perfeição em toda parte a mesma força"33• É universalmente justo
política, mesmo que elas permaneçam indissociáveis. que as leis de uma cidade, estabelecidas pelo legislador,
Mas cumprirá então considerar que a vida política se esforcem em realizar as virtualidades da natureza hu
deve permitir o desenvolvimento de qualidades não po mana. A ordem jurídica excede sua base política desde
líticas, o acesso a uma perfeição não social?30 A virtude que provenha de uma fonte ética, que se atribua a exis
contemplativa, que manifesta a excelência de nossa natu tência virtuosa como tarefa. A imanência absoluta dessa
reza intelectiva, será parte integrante do bem comum?31 norma de justiça ao conjunto dos regimes políticos se
No entanto, se não há discordância entre o bem do apresenta, portanto, como uma ausência de relatividade
indivíduo e o da comunidade, somos então forçados a à diversidade das comunidades: "Há apenas uma única
reconhecer a relativa transcendência do bem comum em forma de governo (1toÂ.t'tEUXt) que seja em toda parte na
relação à perfeição dos diferentes regimes políticos. Se turalmente a melhor."34 Tal é a constituição cujas leis pro
os homens não conseguem humanizar-se, realizar as movem o bem comum e permitem a cada cidadão reali
virtualidades de sua natureza, senão no âmbito de uma zar as virtudes de sua natureza.
cidade singular32, fica manifesto que o bem ao qual eles
aspiram naturalmente já não é ordenado unicamente à
prosperidade de uma comunidade política particular. A origem da lei natural
Uma vez que o bem comum é concebido como o foco da
justiça das leis positivas, surge uma nova questão funda No entanto, Aristóteles não hesitou em recusar a
mental: dever-se-á afirmar que o bem comum usufrui imanência universal de tal ordem de valores, quando ela
uma existência transcendente em relação à diversidade é invocada sob a forma de uma lei natural onipresente.
dos regimes políticos? Nessa hipótese, a comunidade po A invocação da lei natural seria apenas um subterfúgio,
lítica seria o fundamento de uma ordem jurídica dotada
33. L. Ritter, "Le droit naturel chez Aristote", art. cit., p. 446.
34. Éthiq11e à Nicomaq11e, V, 10, 1135 a, p. 252. Como salientou com jus
30. L. Strauss, Qu'est-ce q11e la phi/osophie politique?, op. cit., p. 91. Cf. Éthi teza G: Romcyer Dherbey, o termo "por toda parte" (mxv-i:cxxou) não possui
que à Nicomaque, 1178 a-b, pp. 516-9. um sentido distributivo que qualifique "o melhor regime para esta ou aquela
31. Cf. M. Bastit, Naissance de la /oi modeme, Paris, PUF, 1990, pp. 114-5, Cidade dados o lugar e as circunstâncias" mas designa antes "o que está em
nota 99. vigor na maior parte" (La Q11estion du droit nat11rel, Paris, Vrin, "L.:exccllencc de
32. Les Politiq11es, I, 2, 1252 b-1253 a, pp. 90-2. la vie", 2002, p. 136).
8 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMAS DE AQUINO 9
A distinção, estabelecida pelos pensadores moder de ramificações que seriam, não obstante, subtraídas à
nos, entre as disposições legislativas que visam o bom sua dominação. O justo já não deriva somente da con
funcionamento do Estado e as leis morais que favorecem formidade às leis civis que emanam da constituição, mas
o aperfeiçoamento individual é, portanto, pouco acen supõe o respeito pelo bem comum.
tuada em Aristóteles. Se a lei civil prescreve a virtude, é O direito, o que é justo, seria, pois, edificado sobre a
simplesmente na medida em que esta concorre para o natureza do homem, que, apesar de sua relativa indeter
bem comum. Em consequência, a perfeição individual e minação, a atualização flutuante de sua potência, "tem
moral do homem pode ser distinguida de sua perfeição em toda parte a mesma força"33• É universalmente justo
política, mesmo que elas permaneçam indissociáveis. que as leis de uma cidade, estabelecidas pelo legislador,
Mas cumprirá então considerar que a vida política se esforcem em realizar as virtualidades da natureza hu
deve permitir o desenvolvimento de qualidades não po mana. A ordem jurídica excede sua base política desde
líticas, o acesso a uma perfeição não social?30 A virtude que provenha de uma fonte ética, que se atribua a exis
contemplativa, que manifesta a excelência de nossa natu tência virtuosa como tarefa. A imanência absoluta dessa
reza intelectiva, será parte integrante do bem comum?31 norma de justiça ao conjunto dos regimes políticos se
No entanto, se não há discordância entre o bem do apresenta, portanto, como uma ausência de relatividade
indivíduo e o da comunidade, somos então forçados a à diversidade das comunidades: "Há apenas uma única
reconhecer a relativa transcendência do bem comum em forma de governo (1toÂ.t'tEUXt) que seja em toda parte na
relação à perfeição dos diferentes regimes políticos. Se turalmente a melhor."34 Tal é a constituição cujas leis pro
os homens não conseguem humanizar-se, realizar as movem o bem comum e permitem a cada cidadão reali
virtualidades de sua natureza, senão no âmbito de uma zar as virtudes de sua natureza.
cidade singular32, fica manifesto que o bem ao qual eles
aspiram naturalmente já não é ordenado unicamente à
prosperidade de uma comunidade política particular. A origem da lei natural
Uma vez que o bem comum é concebido como o foco da
justiça das leis positivas, surge uma nova questão funda No entanto, Aristóteles não hesitou em recusar a
mental: dever-se-á afirmar que o bem comum usufrui imanência universal de tal ordem de valores, quando ela
uma existência transcendente em relação à diversidade é invocada sob a forma de uma lei natural onipresente.
dos regimes políticos? Nessa hipótese, a comunidade po A invocação da lei natural seria apenas um subterfúgio,
lítica seria o fundamento de uma ordem jurídica dotada
33. L. Ritter, "Le droit naturel chez Aristote", art. cit., p. 446.
34. Éthiq11e à Nicomaq11e, V, 10, 1135 a, p. 252. Como salientou com jus
30. L. Strauss, Qu'est-ce q11e la phi/osophie politique?, op. cit., p. 91. Cf. Éthi teza G: Romcyer Dherbey, o termo "por toda parte" (mxv-i:cxxou) não possui
que à Nicomaque, 1178 a-b, pp. 516-9. um sentido distributivo que qualifique "o melhor regime para esta ou aquela
31. Cf. M. Bastit, Naissance de la /oi modeme, Paris, PUF, 1990, pp. 114-5, Cidade dados o lugar e as circunstâncias" mas designa antes "o que está em
nota 99. vigor na maior parte" (La Q11estion du droit nat11rel, Paris, Vrin, "L.:exccllencc de
32. Les Politiq11es, I, 2, 1252 b-1253 a, pp. 90-2. la vie", 2002, p. 136).
10 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMAS DE AQUINO 11
"um procedimento retórico útil para se defender peran gundo a qual uma razão divina governa, de maneira
te os tribunais"35."Se a lei escrita é desfavorável à nossa imanente, a ordem do mundo. O sábio estoico já não é
causa, é preciso ter recurso à lei comum, a razões mais filiado a determinada cidade, ameaçada de dissolução em
equitativas e mais justas. Cumpre dizer que [... ] o equi razão de sua particularidade, mas é um cidadão do mun
tativo permanece sempre e jamais muda, assim como a do, pronto a se submeter voluntariamente à lei natural
lei comum, que é segundo a natureza, ao passo que as que insufla o universo. Em compensação, Aristóteles de
leis escritas costumam mudar; daí as palavras pronun modo algum parecia pensar em deduzir as nossas incli
ciadas na Antígona de Sófocles."36 nações racionais da ação que uma razão divina poderia
Segundo Aristóteles, a questão da virtude, indivi exercer no mundo sublunar.
dual ou coletiva, não pode ser imediatamente apreendi Tentemos retraçar as etapas decisivas ligadas à for
da através da noção de lei natural. Devido à sua nature mação da doutrina da lei natural. Paulo afirma, na Epís
za, o homem dispõe de um "princípio interno de movi tola aos romanos, que "quando os gentios, que não têm a
mento"37, que o inclina a agir segundo uma finalidade lei, fazem naturalmente as coisas que a lei manda, não
imanente. Nossas inclinações racionais que derivam des tendo a lei, a si mesmos servem de lei. Fazendo ver que
sa orientação natural bastam para criar as condjções de o que é prescrito pela lei está escrito no coração, como a
uma existência virtuosa, sem que seja necessário confe consciência deles disso dá provas pela diversidade das
rir-lhes a forma de uma lei, concebida como uma regra reflexões e dos pensamentos que os acusam, ou que os
da razão portadora de uma obrigação38• defendem"4º. Cada homem poderia, pois, descobrir uma
Como explicar, então, que a lei natural, apreendida ordem de valores naturalmente gravada nele, uma lei ín
como injunção racional, possa ter-se imposto, segundo tima que o erigiria juiz do que é bem ou mal nas ações
Aristóteles, como a fonte inesgotável da justiça da ordem humanas.
legal? A irrupção da doutrina da lei natural no campo ju Mas Paulo acrescenta que, em consequência do erro
rídico foi preparada por certa afinidade entre o cristianis de Adão, da desobediência original, essa lei corre o risco
mo e o estoicismo tardio. Se a lei natural pôde ser invo de permanecer inoperante: "Acho em mim a vontade de
cada como uma injunção da razão, foi em nome de uma fazer o bem, mas não acho o meio de realizá-lo[...] mes
concepção fundamentalmente alheia a Aristóteles39, se-
mo quando quero fazer o bem, encontro em mim uma
lei que se opõe a isso, porque o mal reside em mim."41
35. P. Aubenque, "La loi sclon Aristote", Archives de phi/osophie d11 droit, Agostinho vai propor uma interpretação célebre da
1980, p. 152.
36. Aristóteles, Rhétoriq11e, 1, trad. fr. M. Dufour, Paris, Gallimard, 1998, epístola de Paulo acentuando, de maneira desmedida, a
1375 a, p. 89; 1373 b, p. 82. decadência de nossa natureza consecutiva ao pecado
37. Aristóteles, Physique, n, 1, 192 b, trad. fr. P. Pellegrin, Paris, GF, 2000,
p. 116.
original, em detrimento da inscrição de uma lei natural
38. tthique à Nicomaque, X, 5, 1180 a, p. 526.
39. "Os estoicos serão os primeiros a falar de uma /ex nah1me, que governa
ao mesmo tempo os fenômenos cósmicos e as sanções humanas, impondo-se 40. Epístola aos romanos 2, 14-15.
até aos deuses" (P. Aubenque, "La loi naturelle chez Aristote", art. cit., p. 150). 41. Ibid., Vfl, 18 e 21.
10 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMAS DE AQUINO 11
"um procedimento retórico útil para se defender peran gundo a qual uma razão divina governa, de maneira
te os tribunais"35."Se a lei escrita é desfavorável à nossa imanente, a ordem do mundo. O sábio estoico já não é
causa, é preciso ter recurso à lei comum, a razões mais filiado a determinada cidade, ameaçada de dissolução em
equitativas e mais justas. Cumpre dizer que [... ] o equi razão de sua particularidade, mas é um cidadão do mun
tativo permanece sempre e jamais muda, assim como a do, pronto a se submeter voluntariamente à lei natural
lei comum, que é segundo a natureza, ao passo que as que insufla o universo. Em compensação, Aristóteles de
leis escritas costumam mudar; daí as palavras pronun modo algum parecia pensar em deduzir as nossas incli
ciadas na Antígona de Sófocles."36 nações racionais da ação que uma razão divina poderia
Segundo Aristóteles, a questão da virtude, indivi exercer no mundo sublunar.
dual ou coletiva, não pode ser imediatamente apreendi Tentemos retraçar as etapas decisivas ligadas à for
da através da noção de lei natural. Devido à sua nature mação da doutrina da lei natural. Paulo afirma, na Epís
za, o homem dispõe de um "princípio interno de movi tola aos romanos, que "quando os gentios, que não têm a
mento"37, que o inclina a agir segundo uma finalidade lei, fazem naturalmente as coisas que a lei manda, não
imanente. Nossas inclinações racionais que derivam des tendo a lei, a si mesmos servem de lei. Fazendo ver que
sa orientação natural bastam para criar as condjções de o que é prescrito pela lei está escrito no coração, como a
uma existência virtuosa, sem que seja necessário confe consciência deles disso dá provas pela diversidade das
rir-lhes a forma de uma lei, concebida como uma regra reflexões e dos pensamentos que os acusam, ou que os
da razão portadora de uma obrigação38• defendem"4º. Cada homem poderia, pois, descobrir uma
Como explicar, então, que a lei natural, apreendida ordem de valores naturalmente gravada nele, uma lei ín
como injunção racional, possa ter-se imposto, segundo tima que o erigiria juiz do que é bem ou mal nas ações
Aristóteles, como a fonte inesgotável da justiça da ordem humanas.
legal? A irrupção da doutrina da lei natural no campo ju Mas Paulo acrescenta que, em consequência do erro
rídico foi preparada por certa afinidade entre o cristianis de Adão, da desobediência original, essa lei corre o risco
mo e o estoicismo tardio. Se a lei natural pôde ser invo de permanecer inoperante: "Acho em mim a vontade de
cada como uma injunção da razão, foi em nome de uma fazer o bem, mas não acho o meio de realizá-lo[...] mes
concepção fundamentalmente alheia a Aristóteles39, se-
mo quando quero fazer o bem, encontro em mim uma
lei que se opõe a isso, porque o mal reside em mim."41
35. P. Aubenque, "La loi sclon Aristote", Archives de phi/osophie d11 droit, Agostinho vai propor uma interpretação célebre da
1980, p. 152.
36. Aristóteles, Rhétoriq11e, 1, trad. fr. M. Dufour, Paris, Gallimard, 1998, epístola de Paulo acentuando, de maneira desmedida, a
1375 a, p. 89; 1373 b, p. 82. decadência de nossa natureza consecutiva ao pecado
37. Aristóteles, Physique, n, 1, 192 b, trad. fr. P. Pellegrin, Paris, GF, 2000,
p. 116.
original, em detrimento da inscrição de uma lei natural
38. tthique à Nicomaque, X, 5, 1180 a, p. 526.
39. "Os estoicos serão os primeiros a falar de uma /ex nah1me, que governa
ao mesmo tempo os fenômenos cósmicos e as sanções humanas, impondo-se 40. Epístola aos romanos 2, 14-15.
até aos deuses" (P. Aubenque, "La loi naturelle chez Aristote", art. cit., p. 150). 41. Ibid., Vfl, 18 e 21.
12 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMAS DE AQUINO 13
no coração dos homens. Desde a transgressão do man Tomás de Aquino estima que a lei natural recobra
damento divino, o homem não consegue extrair de sua sua primazia desde que se saliente que ela procede de
natureza as forças suficientes para cumprir os fins de seu uma l. ei eterna. Como conceber essa lei eterna?47 A lei
ser42• Sem, todavia, recusar a afirmação segundo a qual eterna nada mais é senão o governo da comunidade do
regras morais poderiam estar inseridas em nossa nature universo tal como se realiza segundo a razão divina48 :"O
za43, Agostinho considera que a lei natural indelével foi governo providencial de Deus conduz cada ser ao seu
obnubilada pela falta, deixou de inspirar a conduta dos próprio fim."49
homens44 • Portanto, a lei natural resulta da impressão dessa
De encontro a essa interpretação, Tomás de Aquino lei eterna em nosso ser. Todos os seres "participam de
vai tentar restaurar a integridade de nossa natureza ao certo modo da lei eterna pelo fato de que, recebendo a
afirmar que ela não foi corrompida, alterada, pelo peca impressão dessa lei em si mesmos, eles possuem incli
do original, mas somente enfraquecida45 . Dispomos de nações que os empurram aos atos e aos fins que lhes
uma natureza perfectível cuja potência é preciso atuali são próprios" 50. Mas"a criatura racional está submetida
zar, que se encontra naturalmente orientada para fins, à providência divina de maneira mais excelente pelo
ainda que nossa alma racional nem sempre consiga do fato de ela mesma participar dessa providência proven
mar os movimentos passionais oriundos de uma carne do a si mesma e aos outros [... ] . É tal participação da lei
renitente. Esse trabalho de reabilitação dos recursos de eterna que, na criatura racional, é chamada de lei natu
nossa natureza vai efetuar-se sob o impulso do pensa ral."51 Compreende-se, assim, que"a luz de nossa razão
mento estoico, tal como foi interpretado, principalmente natural, fazendo-nos discernir o que é bem e o que é
por Cícero: "Existe, claro, uma verdadeira lei, é a reta ra mal, nada mais é senão uma impressão em nós da luz
zão; ela é conforme à natureza, difundida em todos os divina"52•
homens; é imutável e eterna; suas ordens chamam ao Em que sentidos os ensinamentos morais, dispensa
dever; suas proibições desviam da falta."46 dos por nossa razão natural, podem ser concebidos como
a expressão de uma lei? As inclinações de nossa nature
za racional, que provêm da razão divina atuante no mun
42. Cilé de Dieu, ed. L. Jerphagnon, Paris, GaUimard, "La Pléiade", XIV, 15. do, são erigidas em regras de ação. Com efeito, segundo
43. Libre arbitre, 1, 16, p. 422; Confessions, II, IV, 9, p. 809, ed. L. Jerphag
non, Paris, Gallimard, "La Pléiade".
44. Cité de Die11, op. cit., XlX, 14.
45. "A inclinação natural para a virtude diminuiu pelo pecado" (Somme 47. Cf. Agostinho, Libre arbitre, 1, 15, p. 422. Tomás de Aquino, Somme
théologiq11e, 1-11, 85, 1, rép.). "No tocante aos preceitos morais, a razão humana théologique, 1-ll, 93, 3, resp.
não podia enganar-se sobre os preceitos mais gerais da lei natural no teor uni 48. "Toda a comunidade do universo é governada pela razão divina"(Som
versal deles, se bem que o hábito ao pecado perturbasse seu olhar no porme me théologique, 1-ll, 91,], resp.). Sobre a noção de "governo universal", d. De la
nor da ação" (ibid., 99, 2, sol. 2). royauté, in Petite Somme politiq11e, Paris, PierreTéqui editeur, 1997, II, 1, p. 91.
46. De la rép11blique, trad. fr. E. Brégu et, Paris, Gallimard, 1994, IIJ, 22, pp. 49. Somme contre les Gentils, Paris, Le Cerf, 1993, III, 115.
103-4; "11ah1ra jus est, quod 11011 opinio genuit; sed q11aeda111 innata vis inseniil" (De 50. Somme théologique, 1-ll, 91, 2, resp.
/'invention, li, 53, 161; G. Verbeke, A11x origines de la notion de "foi 11at11relle", La 51. Ibid.
filosofia della natura, Milão, 1966). 52. lbid.
12 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMAS DE AQUINO 13
no coração dos homens. Desde a transgressão do man Tomás de Aquino estima que a lei natural recobra
damento divino, o homem não consegue extrair de sua sua primazia desde que se saliente que ela procede de
natureza as forças suficientes para cumprir os fins de seu uma l. ei eterna. Como conceber essa lei eterna?47 A lei
ser42• Sem, todavia, recusar a afirmação segundo a qual eterna nada mais é senão o governo da comunidade do
regras morais poderiam estar inseridas em nossa nature universo tal como se realiza segundo a razão divina48 :"O
za43, Agostinho considera que a lei natural indelével foi governo providencial de Deus conduz cada ser ao seu
obnubilada pela falta, deixou de inspirar a conduta dos próprio fim."49
homens44 • Portanto, a lei natural resulta da impressão dessa
De encontro a essa interpretação, Tomás de Aquino lei eterna em nosso ser. Todos os seres "participam de
vai tentar restaurar a integridade de nossa natureza ao certo modo da lei eterna pelo fato de que, recebendo a
afirmar que ela não foi corrompida, alterada, pelo peca impressão dessa lei em si mesmos, eles possuem incli
do original, mas somente enfraquecida45 . Dispomos de nações que os empurram aos atos e aos fins que lhes
uma natureza perfectível cuja potência é preciso atuali são próprios" 50. Mas"a criatura racional está submetida
zar, que se encontra naturalmente orientada para fins, à providência divina de maneira mais excelente pelo
ainda que nossa alma racional nem sempre consiga do fato de ela mesma participar dessa providência proven
mar os movimentos passionais oriundos de uma carne do a si mesma e aos outros [... ] . É tal participação da lei
renitente. Esse trabalho de reabilitação dos recursos de eterna que, na criatura racional, é chamada de lei natu
nossa natureza vai efetuar-se sob o impulso do pensa ral."51 Compreende-se, assim, que"a luz de nossa razão
mento estoico, tal como foi interpretado, principalmente natural, fazendo-nos discernir o que é bem e o que é
por Cícero: "Existe, claro, uma verdadeira lei, é a reta ra mal, nada mais é senão uma impressão em nós da luz
zão; ela é conforme à natureza, difundida em todos os divina"52•
homens; é imutável e eterna; suas ordens chamam ao Em que sentidos os ensinamentos morais, dispensa
dever; suas proibições desviam da falta."46 dos por nossa razão natural, podem ser concebidos como
a expressão de uma lei? As inclinações de nossa nature
za racional, que provêm da razão divina atuante no mun
42. Cilé de Dieu, ed. L. Jerphagnon, Paris, GaUimard, "La Pléiade", XIV, 15. do, são erigidas em regras de ação. Com efeito, segundo
43. Libre arbitre, 1, 16, p. 422; Confessions, II, IV, 9, p. 809, ed. L. Jerphag
non, Paris, Gallimard, "La Pléiade".
44. Cité de Die11, op. cit., XlX, 14.
45. "A inclinação natural para a virtude diminuiu pelo pecado" (Somme 47. Cf. Agostinho, Libre arbitre, 1, 15, p. 422. Tomás de Aquino, Somme
théologiq11e, 1-11, 85, 1, rép.). "No tocante aos preceitos morais, a razão humana théologique, 1-ll, 93, 3, resp.
não podia enganar-se sobre os preceitos mais gerais da lei natural no teor uni 48. "Toda a comunidade do universo é governada pela razão divina"(Som
versal deles, se bem que o hábito ao pecado perturbasse seu olhar no porme me théologique, 1-ll, 91,], resp.). Sobre a noção de "governo universal", d. De la
nor da ação" (ibid., 99, 2, sol. 2). royauté, in Petite Somme politiq11e, Paris, PierreTéqui editeur, 1997, II, 1, p. 91.
46. De la rép11blique, trad. fr. E. Brégu et, Paris, Gallimard, 1994, IIJ, 22, pp. 49. Somme contre les Gentils, Paris, Le Cerf, 1993, III, 115.
103-4; "11ah1ra jus est, quod 11011 opinio genuit; sed q11aeda111 innata vis inseniil" (De 50. Somme théologique, 1-ll, 91, 2, resp.
/'invention, li, 53, 161; G. Verbeke, A11x origines de la notion de "foi 11at11relle", La 51. Ibid.
filosofia della natura, Milão, 1966). 52. lbid.
14 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMÁS DE AQUINO 15
Tomás de Aquino, a lei, apreendida em sua essência, coin providencial e pelas propensões que o vinculam aos
cide com "uma regra de ação, uma medida dos nossos fins de sua natureza58 •
atos, segundo a qual somos solicitados a agir ou, ao con
trário, somos dissuadidos de agir" 53•
Basta que nossa razão ordene nossas ações a um fim Os preceitos da lei natural
para que ele constitua uma regra. A regra de ação esta
belece, portanto, um "vínculo" entre o agente" e certa
II II
Tentemos determinar o teor da lei natural, identifi
maneira de agir" 54, dá origem a uma obrigação legal. De car seus diferentes preceitos. Segundo Tomás de Aquino,
ve-se, então, considerar que a lei natural traduz uma o conjunto desses preceitos deriva de um axioma da ra
obrigação que seria inerente à natureza do homem? Se zão prática, evidente por si só: "O bem é o que todos os
essa regra de ação é concebida como natural, é porque seres desejam. Logo, o primeiro preceito da lei que se
repousa num princípio não exterior, mas interior, de mo deve fazer é buscar o bem e evitar o mal."59 Uma vez que
vimento55. Portanto, a lei natural mostra-se como a regra a busca do bem decorre de uma finalidade imanente à
imanente em virtude da qual um ser tende para seu fim nossa natureza, Tomás de Aquino vai resgatar diretamen
ou para seu bem. A racionalidade dessa lei deve-se ao te um ensinamento de Cícero e estimar que "é segundo
fato de ela vincular o indivíduo aos fins que lhe são atri a própria ordem das inclinações naturais que se toma a
buídos por sua natureza56 • A obrigação legal aqui é por ordem dos preceitos da lei natural" 60• Em primeiro lugar,
tadora de um vínculo que repousa na finalidade natural "toda substância busca a conservação de seu ser, segun
e que ainda não provém de um comando arbitrário acom do sua natureza própria [...]. Em segundo lugar[...] per
u
panhado de sanções. tence à lei natral o que a natureza ensina a todos os
Dado que toda inclinação natural para agir é orde animais, por exemplo, a união entre o macho e a fêmea,
nada para um fim e traduz uma regra de ação, ela pró 11
os cuidados dos filhotes[...]. Em terceiro lugar, encontra
pria pode ser chamada de lei, não a título essencial, mos no homem uma atração para o bem conforme à sua
mas a título de participação" 57. O homem dotado de uma natureza de ser razoável [...] assim, ele tem uma inclina
alma racional é, portanto, submetido à lei eterna de ção natural para conhecer a verdade sobre Deus e para
dois modos diferentes: ao mesmo tempo pelo conheci viver em sociedade. Nesse sentido, pertence à lei natural
mento racional que ele consegue elaborar da ordem [...], por exemplo, que o homem evite a ignorância ou
não faça mal ao próximo com quem deve viver" 61•
53. lbid., 1-11, 90, 1, resp.
54. Ibid. 58. "Ou a lei eterna é participada por modo de conhecimento, ou então
55. "A impressão do prinápio interno de ação nos seres da natureza de por modo de ação e de paixão, na medida em que participada sob forma de
sempenha o mesmo papel que a promulgação da lei acerca dos homens" princípio interno de atividade" (ibid., 93, 6, resp.).
(ibid., 93, 5, sol. 1). 59. lbid., 94, 2, resp.
56. Seja a lei natural ou positiva, ela é por essência uma "ordem de ra 60. lbid. Cf. Cícero, Trai/é des devoirs, IV, em Les Stoiciens, Paris, Gallí
zão" Q.-F. Courtine, Nature et empire de la foi, Paris, Vrin, 1999, p. 62). mard, "La Pléiade", 1962, pp. 498-9.
57. So111111e théologique, 90, 1, sol. 1. 61. Somme théologique, 94, 2, resp.
14 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMÁS DE AQUINO 15
Tomás de Aquino, a lei, apreendida em sua essência, coin providencial e pelas propensões que o vinculam aos
cide com "uma regra de ação, uma medida dos nossos fins de sua natureza58 •
atos, segundo a qual somos solicitados a agir ou, ao con
trário, somos dissuadidos de agir" 53•
Basta que nossa razão ordene nossas ações a um fim Os preceitos da lei natural
para que ele constitua uma regra. A regra de ação esta
belece, portanto, um "vínculo" entre o agente" e certa
II II
Tentemos determinar o teor da lei natural, identifi
maneira de agir" 54, dá origem a uma obrigação legal. De car seus diferentes preceitos. Segundo Tomás de Aquino,
ve-se, então, considerar que a lei natural traduz uma o conjunto desses preceitos deriva de um axioma da ra
obrigação que seria inerente à natureza do homem? Se zão prática, evidente por si só: "O bem é o que todos os
essa regra de ação é concebida como natural, é porque seres desejam. Logo, o primeiro preceito da lei que se
repousa num princípio não exterior, mas interior, de mo deve fazer é buscar o bem e evitar o mal."59 Uma vez que
vimento55. Portanto, a lei natural mostra-se como a regra a busca do bem decorre de uma finalidade imanente à
imanente em virtude da qual um ser tende para seu fim nossa natureza, Tomás de Aquino vai resgatar diretamen
ou para seu bem. A racionalidade dessa lei deve-se ao te um ensinamento de Cícero e estimar que "é segundo
fato de ela vincular o indivíduo aos fins que lhe são atri a própria ordem das inclinações naturais que se toma a
buídos por sua natureza56 • A obrigação legal aqui é por ordem dos preceitos da lei natural" 60• Em primeiro lugar,
tadora de um vínculo que repousa na finalidade natural "toda substância busca a conservação de seu ser, segun
e que ainda não provém de um comando arbitrário acom do sua natureza própria [...]. Em segundo lugar[...] per
u
panhado de sanções. tence à lei natral o que a natureza ensina a todos os
Dado que toda inclinação natural para agir é orde animais, por exemplo, a união entre o macho e a fêmea,
nada para um fim e traduz uma regra de ação, ela pró 11
os cuidados dos filhotes[...]. Em terceiro lugar, encontra
pria pode ser chamada de lei, não a título essencial, mos no homem uma atração para o bem conforme à sua
mas a título de participação" 57. O homem dotado de uma natureza de ser razoável [...] assim, ele tem uma inclina
alma racional é, portanto, submetido à lei eterna de ção natural para conhecer a verdade sobre Deus e para
dois modos diferentes: ao mesmo tempo pelo conheci viver em sociedade. Nesse sentido, pertence à lei natural
mento racional que ele consegue elaborar da ordem [...], por exemplo, que o homem evite a ignorância ou
não faça mal ao próximo com quem deve viver" 61•
53. lbid., 1-11, 90, 1, resp.
54. Ibid. 58. "Ou a lei eterna é participada por modo de conhecimento, ou então
55. "A impressão do prinápio interno de ação nos seres da natureza de por modo de ação e de paixão, na medida em que participada sob forma de
sempenha o mesmo papel que a promulgação da lei acerca dos homens" princípio interno de atividade" (ibid., 93, 6, resp.).
(ibid., 93, 5, sol. 1). 59. lbid., 94, 2, resp.
56. Seja a lei natural ou positiva, ela é por essência uma "ordem de ra 60. lbid. Cf. Cícero, Trai/é des devoirs, IV, em Les Stoiciens, Paris, Gallí
zão" Q.-F. Courtine, Nature et empire de la foi, Paris, Vrin, 1999, p. 62). mard, "La Pléiade", 1962, pp. 498-9.
57. So111111e théologique, 90, 1, sol. 1. 61. Somme théologique, 94, 2, resp.
16 GENEALOGIA DO DfRElTO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMAS DE AQUINO 17
Tomás de Aquino considera que cada ser é inclinado Assim, esses preceitos morais oriundos de princípios
naturalmente para a atividade que convém à sua essên imutáveis podem ser suspensos pelo surgimento de ex
cia. Na medida em que a "alma razoável é a forma pró ceções contingentes, bem como pela intervenção da lei
pria do homem, há em todo ser humano uma inclinação divina. "O homicídio de um inocente e também o adul
natural para agir segundo a razão"62. A lei natural mos tério e o roubo são atos contrários à lei natural. Mas ve
tra-se, pois, o princípio da existência virtuosa, ela coman mos que isso foi mudado por Deus, por exemplo quando
da o exercício das virtudes de temperança, coragem, pru prescreveu a Abraão matar o filho inocente (Gn 22, 2), ou
dência e justiça, cuja fonte exclusiva é a razão63 • quando mandou aos judeus subtrair os vasos tirados dos
Desde que se impõe como "verdadeiro e reto aos egípcios (Ex 12, 35), ou, enfim, quando ordenou a Oseias
olhos de todos que se aja segundo a razão", importa re tomar uma mulher de prostituição (Os 1, 2)."67 Compreen
conhecer que "a lei de natureza é idêntica para todos em de-se assim que"[ ...] os preceitos do Decálogo, quanto à
seus primeiros princípios gerais"64• Mas, se nos apega razão de justiça que implicam, são invariáveis. Mas, na
mos"às aplicações próprias" da lei natural que coincidem aplicação aos casos específicos, tal determinação, por
com as" conclusões dos princípios gerais", a validade de exemplo que este ou aquele ato seja ou não um homicí
las se restringe à"maioria dos casos", elas podem esbar dio, um roubo ou um adultério, não é imutável"68•
rar em exceções. Por exemplo, o preceito segundo o qual: Apesar de certo número de coincidências69, Tomás
"deve-se devolver o que se recebeu em depósito" impõe de Aquino propõe, assim, uma distinção particularmen
se pelo exercício da razão como uma conclusão, mas tro te fecunda entre a lei natural e a lei divina. Quais são os
peça em exceções, por exemplo se alguém reclama o de traços característicos da lei divina?" Chama-se direito di
pósito "no intuito de combater a pátria"65• vino o que é promulgado por Deus, trate-se de coisas
Nessa perspectiva, Tomás de Aquino salienta que, se naturalmente justas, mas cuja justiça é oculta aos homens,
os preceitos morais do Decálogo ou do Evangelho per ou de coisas que se tomam justas por instituição divina.
tencem à lei natural, é a título de conclusões que pode De sorte que o direito divino bem como o direito huma
mos deduzir racionalmente de seus princípios gerais66 • no se desdobra: de um lado, na lei divina, as coisas man
dadas porque são boas, e proibidas porque são más; do
62. lbid., 3, resp.
63. "Os atos de virtude são todos regidos pela lei natural; a razão de cada superioridade do direito natural sobre o direito positivo provém do fato de ser
um edita, de fato, que é preciso agir virtuosamente" (ibid.). "Assim cumpre que confirmado pela revelação. "A razão natural de cada um [ ... ] discerne imedia
todas as inclinações naturais que dependem das outras potências sejam orde tamente o que é preciso fazer ou não fazer; assim: 'Honrarás teus pai e mãe,
nadas segundo a razão" (ibid., 4, sol. 3). não matarás, não roubarás"' (ibid., 100, 1, resp.; 100, 3, resp.; M. Villey, Leçons
64. lbid., 4, resp. d'histoire de ln philosophie du droit, op. cit., p. 213).
65. lbid. 67. Somme théologique, 5, sol. 1.
66. A célebre frase de Graciano, segundo a qual " o direito natural é o que 68. lbid., 100, 8, sol. 3.
está contido na lei e no Evangelho [... ] não deve ser compreendida no senti 69. "As virtudes morais dirigem a atividade racional no campo das pai
do de que tudo o que está contido na Lei mosaica e no Evangelho provém da xões interiores e das operações exteriores. Portanto, é evidente que os precei
lei natural, mas no sentido de que tudo que depende da lei natural neles está tos estabelecidos pela lei divina devem ocupar-se dos atos de todas as virtu
plenamente ensinado [ ... ]" (ibid, sol. 1; ibid, 98, 5, resp.). Mas, para Graciano, a des" (ibíd., 100, 2, resp., e 99, 4, resp.).
16 GENEALOGIA DO DfRElTO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMAS DE AQUINO 17
Tomás de Aquino considera que cada ser é inclinado Assim, esses preceitos morais oriundos de princípios
naturalmente para a atividade que convém à sua essên imutáveis podem ser suspensos pelo surgimento de ex
cia. Na medida em que a "alma razoável é a forma pró ceções contingentes, bem como pela intervenção da lei
pria do homem, há em todo ser humano uma inclinação divina. "O homicídio de um inocente e também o adul
natural para agir segundo a razão"62. A lei natural mos tério e o roubo são atos contrários à lei natural. Mas ve
tra-se, pois, o princípio da existência virtuosa, ela coman mos que isso foi mudado por Deus, por exemplo quando
da o exercício das virtudes de temperança, coragem, pru prescreveu a Abraão matar o filho inocente (Gn 22, 2), ou
dência e justiça, cuja fonte exclusiva é a razão63 • quando mandou aos judeus subtrair os vasos tirados dos
Desde que se impõe como "verdadeiro e reto aos egípcios (Ex 12, 35), ou, enfim, quando ordenou a Oseias
olhos de todos que se aja segundo a razão", importa re tomar uma mulher de prostituição (Os 1, 2)."67 Compreen
conhecer que "a lei de natureza é idêntica para todos em de-se assim que"[ ...] os preceitos do Decálogo, quanto à
seus primeiros princípios gerais"64• Mas, se nos apega razão de justiça que implicam, são invariáveis. Mas, na
mos"às aplicações próprias" da lei natural que coincidem aplicação aos casos específicos, tal determinação, por
com as" conclusões dos princípios gerais", a validade de exemplo que este ou aquele ato seja ou não um homicí
las se restringe à"maioria dos casos", elas podem esbar dio, um roubo ou um adultério, não é imutável"68•
rar em exceções. Por exemplo, o preceito segundo o qual: Apesar de certo número de coincidências69, Tomás
"deve-se devolver o que se recebeu em depósito" impõe de Aquino propõe, assim, uma distinção particularmen
se pelo exercício da razão como uma conclusão, mas tro te fecunda entre a lei natural e a lei divina. Quais são os
peça em exceções, por exemplo se alguém reclama o de traços característicos da lei divina?" Chama-se direito di
pósito "no intuito de combater a pátria"65• vino o que é promulgado por Deus, trate-se de coisas
Nessa perspectiva, Tomás de Aquino salienta que, se naturalmente justas, mas cuja justiça é oculta aos homens,
os preceitos morais do Decálogo ou do Evangelho per ou de coisas que se tomam justas por instituição divina.
tencem à lei natural, é a título de conclusões que pode De sorte que o direito divino bem como o direito huma
mos deduzir racionalmente de seus princípios gerais66 • no se desdobra: de um lado, na lei divina, as coisas man
dadas porque são boas, e proibidas porque são más; do
62. lbid., 3, resp.
63. "Os atos de virtude são todos regidos pela lei natural; a razão de cada superioridade do direito natural sobre o direito positivo provém do fato de ser
um edita, de fato, que é preciso agir virtuosamente" (ibid.). "Assim cumpre que confirmado pela revelação. "A razão natural de cada um [ ... ] discerne imedia
todas as inclinações naturais que dependem das outras potências sejam orde tamente o que é preciso fazer ou não fazer; assim: 'Honrarás teus pai e mãe,
nadas segundo a razão" (ibid., 4, sol. 3). não matarás, não roubarás"' (ibid., 100, 1, resp.; 100, 3, resp.; M. Villey, Leçons
64. lbid., 4, resp. d'histoire de ln philosophie du droit, op. cit., p. 213).
65. lbid. 67. Somme théologique, 5, sol. 1.
66. A célebre frase de Graciano, segundo a qual " o direito natural é o que 68. lbid., 100, 8, sol. 3.
está contido na lei e no Evangelho [... ] não deve ser compreendida no senti 69. "As virtudes morais dirigem a atividade racional no campo das pai
do de que tudo o que está contido na Lei mosaica e no Evangelho provém da xões interiores e das operações exteriores. Portanto, é evidente que os precei
lei natural, mas no sentido de que tudo que depende da lei natural neles está tos estabelecidos pela lei divina devem ocupar-se dos atos de todas as virtu
plenamente ensinado [ ... ]" (ibid, sol. 1; ibid, 98, 5, resp.). Mas, para Graciano, a des" (ibíd., 100, 2, resp., e 99, 4, resp.).
18 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMÀS DE AQUINO 19
outro, as que são boas porque mandadas, ou más porque Assim, é importante dissociar duas formas de interiori
proibidas." 70 dade: "O que é interior ao homem pode entender-se em
Não obstante, a lei divina é necessária, para além dois sentidos: seja em relação com a natureza humana,
das falhas da razão humana confrontada com situações sendo assim que a lei natural é uma lei posta no coração
contingentes e particulares, porque o homem é ordena do homem; ou então é algo que se acrescenta à nature
do para um fim, a beatitude da visio dei, que não é pro za e é introduzido no homem pelo dom da graça. Neste
porcional à sua capacidade natural, que excede"os recur último sentido, a lei nova é posta no homem, não se li
sos naturais das faculdades humanas" 71• Além da lei na mitando a indicar-lhe o que é preciso fazer, mas também
tural, bem como da lei humana, é, pois, necessário que ajudando a realizá-lo." 77
uma lei seja revelada por Deus para conduzir o homem Seja qual for a extensão de sua ingerência na esfera
para seu fim sobrenaturaln. Por outro lado, a intervenção da interioridade, de sua aptidão para aperfeiçoar o ho
de uma lei divina se impõe igualmente para que os mo mem a partir do interior, a lei divina ordena o homem
vimentos interiores da alma que se furtam às leis huma para um fim, o conhecimento e o amor de Deus, que ul
nas, reservadas somente aos atos exteriores, sejam corri trapassa sua natureza e excede suas forças nativas78• Mas
gidos73; não devendo esses atos exteriores, que não po Tomás de Aquino não pretende de maneira alguma edi
demos proibir, ficar impunes74 • ficar um conjunto de leis positivas sobre a base da lei di
vina, precisamente porque ela solicita forças que supe
A aptidão da lei divina para transformar o homem a
ram a nossa natureza social. Em contraste com a inspi
partir do interior75 permite a Tomás de Aquino estabele t
ração predominante do agostinismo políico, a socieda
cer um corte entre a lei antiga, empenhada principal
de política não é absorvida por uma ordem de valores que
mente em reger os atos exteriores, e a lei nova que se es
a transcende, levada por um movimento ascensional. A
força em dispor interiormente os homens à obediência76•
palavra revelada de Deus não constitui em absoluto um
princípio de organização política ou jurídica.
70. Tbid., □-□, 57, 2, sol. 3. Mesmo que Tomás de Aquino retome a afirmação
71. lbid., 91, 4, resp.
72. "Com a lei divina, a comunidade em causa é a dos homens para com agostiniana segundo a qual uma lei injusta é desprovida
Deus, seja na vida presente, seja na vida futura; por isso os preceitos que essa de qualquer dimensão legal79, somente a lei natural, e não
lei propõe não negligenciam nada do que pode dispor a humanidade para
suas boas relações com Deus" (ibid., 100, 2, resp.).
a lei divina, tem condições de garantir a justiça das leis
73. "No que concerne ao movimento interior da vontade, não se é obri- positivas80, em virtude de sua indefectível busca do bem
gado a obedecer aos homens, mas apenas a Deus" (ibid., □-□, 104, 5, resp.). comum. "Todavia, numa lei iníqua, na medida em que
74. Ibid., 1-fl, 91, 4, resp.
75. M. Bastit, Naissnnce de la /oi moderne, op. cit., p. 144.
76. Somme théologique, 1-□, 107, 1, sol. 2. Mas no campo das obras exte
riores, descobrimos uma profunda unidade entre os preceitos morais do De 77. lbid., 106, 1, sol. 2. "Como a graça pressupõe a natureza, a lei divina
cálogo e os do Evangelho: "O uso apropriado da graça, por sua vez, é feito pe pressupõe necessariamente a lei natural" (ibid., 99, 2, sol. 1).
las obras de caridade. Estas, na medida em que são necessárias à virtude, se 78. lbid., 1-□, 5, 5, resp.
relacionam com os preceitos morais, já promulgados na lei antiga" (ibid., 108, 79. Le libre arbitre, I, 16, p. 422.
2, resp.). 80. Somme théologique, 1-11, 95, 2, resp.
18 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMÀS DE AQUINO 19
outro, as que são boas porque mandadas, ou más porque Assim, é importante dissociar duas formas de interiori
proibidas." 70 dade: "O que é interior ao homem pode entender-se em
Não obstante, a lei divina é necessária, para além dois sentidos: seja em relação com a natureza humana,
das falhas da razão humana confrontada com situações sendo assim que a lei natural é uma lei posta no coração
contingentes e particulares, porque o homem é ordena do homem; ou então é algo que se acrescenta à nature
do para um fim, a beatitude da visio dei, que não é pro za e é introduzido no homem pelo dom da graça. Neste
porcional à sua capacidade natural, que excede"os recur último sentido, a lei nova é posta no homem, não se li
sos naturais das faculdades humanas" 71• Além da lei na mitando a indicar-lhe o que é preciso fazer, mas também
tural, bem como da lei humana, é, pois, necessário que ajudando a realizá-lo." 77
uma lei seja revelada por Deus para conduzir o homem Seja qual for a extensão de sua ingerência na esfera
para seu fim sobrenaturaln. Por outro lado, a intervenção da interioridade, de sua aptidão para aperfeiçoar o ho
de uma lei divina se impõe igualmente para que os mo mem a partir do interior, a lei divina ordena o homem
vimentos interiores da alma que se furtam às leis huma para um fim, o conhecimento e o amor de Deus, que ul
nas, reservadas somente aos atos exteriores, sejam corri trapassa sua natureza e excede suas forças nativas78• Mas
gidos73; não devendo esses atos exteriores, que não po Tomás de Aquino não pretende de maneira alguma edi
demos proibir, ficar impunes74 • ficar um conjunto de leis positivas sobre a base da lei di
vina, precisamente porque ela solicita forças que supe
A aptidão da lei divina para transformar o homem a
ram a nossa natureza social. Em contraste com a inspi
partir do interior75 permite a Tomás de Aquino estabele t
ração predominante do agostinismo políico, a socieda
cer um corte entre a lei antiga, empenhada principal
de política não é absorvida por uma ordem de valores que
mente em reger os atos exteriores, e a lei nova que se es
a transcende, levada por um movimento ascensional. A
força em dispor interiormente os homens à obediência76•
palavra revelada de Deus não constitui em absoluto um
princípio de organização política ou jurídica.
70. Tbid., □-□, 57, 2, sol. 3. Mesmo que Tomás de Aquino retome a afirmação
71. lbid., 91, 4, resp.
72. "Com a lei divina, a comunidade em causa é a dos homens para com agostiniana segundo a qual uma lei injusta é desprovida
Deus, seja na vida presente, seja na vida futura; por isso os preceitos que essa de qualquer dimensão legal79, somente a lei natural, e não
lei propõe não negligenciam nada do que pode dispor a humanidade para
suas boas relações com Deus" (ibid., 100, 2, resp.).
a lei divina, tem condições de garantir a justiça das leis
73. "No que concerne ao movimento interior da vontade, não se é obri- positivas80, em virtude de sua indefectível busca do bem
gado a obedecer aos homens, mas apenas a Deus" (ibid., □-□, 104, 5, resp.). comum. "Todavia, numa lei iníqua, na medida em que
74. Ibid., 1-fl, 91, 4, resp.
75. M. Bastit, Naissnnce de la /oi moderne, op. cit., p. 144.
76. Somme théologique, 1-□, 107, 1, sol. 2. Mas no campo das obras exte
riores, descobrimos uma profunda unidade entre os preceitos morais do De 77. lbid., 106, 1, sol. 2. "Como a graça pressupõe a natureza, a lei divina
cálogo e os do Evangelho: "O uso apropriado da graça, por sua vez, é feito pe pressupõe necessariamente a lei natural" (ibid., 99, 2, sol. 1).
las obras de caridade. Estas, na medida em que são necessárias à virtude, se 78. lbid., 1-□, 5, 5, resp.
relacionam com os preceitos morais, já promulgados na lei antiga" (ibid., 108, 79. Le libre arbitre, I, 16, p. 422.
2, resp.). 80. Somme théologique, 1-11, 95, 2, resp.
20 GENEALOGIA DO DfREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMAS DE AQUINO 21
conserva uma aparência de lei, em razão da ordem ema te na origem de profundas dissensões. Apesar da finali
nante da autoridade que a porta, há ainda uma deriva dade inerente ao seu ser racional, cada indivíduo julga o
ção da lei eterna." 81 bem e o mal segundo as paixões que lhe afetam a natu
Mas toda lei, natural ou positiva, na medida em que rezaK5 . Uma vez que cada indivíduo tende para um bem
ordena os indivíduos para os fins que lhes são próprios, que lhe parece próprio, a multidão corre o risco de se de
visa o bem comum82 • Tomás de Aquino propõe, assim, sagregar, o que ameaça a coesão social. "Isso ocorre logi
uma definição geral da lei: "Uma colocação em ordem camente. Pois não há identidade entre o bem próprio e o
(ordinatio) da razão com vistas ao bem comum, promul bem comum. Os seres são divididos sob o ângulo de seus
gada por quem é encarregado da comunidade."83 Tomás bens próprios, e unidos sob o ângulo do bem comum."86
de Aquino salienta imediatamente que a lei natural en Embora os homens tendam naturalmente a se associar a
controu-se promulgada, já que foi implantada por Deus fim de realizar as disposições de seu ser, a multidão pa
no espírito dos homens84 • rece, não obstante, incapaz de se governar por si só. A
instituição da autoridade política aparece como uma con
sequência inevitável da vida social. A multidão deve, por
A transcendência de uma ordem de valores tanto, submeter-se à forma de autoridade política apta
para governá-la segundo o bem que lhe é verdadeira
É nessa fase do raciocínio que Tomás de Aquino rea mente comum: "Domina-se o outro como se domina um
ta, em aparência, se excetuamos a nova perspectiva ini homem livre quando se dirige este para seu bem pró
ciada pela doutrina da lei natural, com o ensinamento prio, ou para o bem comum. E tal dominação do homem
aristotélico. As leis positivas se tomam justas quando sobre o homem teria existido no estado de inocência [... ]
[pois] a vida social de uma multidão não poderia existir
preservam um bem que é comum à natureza de cada ho
sem um dirigente que busca o bem comum."K7
mem e permitem a cada cidadão realizar as disposições
Ora, o bem comum coincide, num primeiro sentido,
de sua natureza levando uma existência virtuosa. O bem
como já salientara Agostinho, com a paz civil88: "O bem
comum mostra-se, portanto, o objeto da lei natural.
e a salvação de uma multidão reunida em sociedade es
Mas Tomás de Aquino considera que não é simples
tão na manutenção de sua unidade, a que chamamos
mente porque os homens cobiçam bens idênticos, cuja
paz."89 Mas essa salvaguarda da unidade da multidão,
posse é exclusiva, que são conduzidos a se dividir. A per
seguição de bens radicalmente diferentes está igualmen -
85. "Homens diferentes são inclinados por natureza a fins diferentes; es
tes à cobiça, aqueles à busca das honras [... ]" (ibid., 94, 4, ob. 3).
81. fbid., 93, 3, sol. 2. 86. De la royauté, l, 1, p. 45.
82. lbid., 90, 2, resp. 87. Somme théologique, l, 96, 4, resp. "Se, então, uma multidão de homens
83. fbid., 4, resp. Como observa J.-F. Courtine, é a estrutura da "ordena livres é ordenada por aquele que a governa ao bem comum da multidão, te
ção para" que fundamenta a natureza analógica da lei em Tomás de Aquino mos um governo reto e justo" (De la royauté, l, 1, p. 46).
(Nature et empire de la /oi, op. dt., p. 96). 88. Cité de Dieu, XIX, 12 e 13.
84. Somme théologique, I-m, 90, 4, sol. 1. 89. De la royauté, l, 2, p. 49.
20 GENEALOGIA DO DfREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMAS DE AQUINO 21
conserva uma aparência de lei, em razão da ordem ema te na origem de profundas dissensões. Apesar da finali
nante da autoridade que a porta, há ainda uma deriva dade inerente ao seu ser racional, cada indivíduo julga o
ção da lei eterna." 81 bem e o mal segundo as paixões que lhe afetam a natu
Mas toda lei, natural ou positiva, na medida em que rezaK5 . Uma vez que cada indivíduo tende para um bem
ordena os indivíduos para os fins que lhes são próprios, que lhe parece próprio, a multidão corre o risco de se de
visa o bem comum82 • Tomás de Aquino propõe, assim, sagregar, o que ameaça a coesão social. "Isso ocorre logi
uma definição geral da lei: "Uma colocação em ordem camente. Pois não há identidade entre o bem próprio e o
(ordinatio) da razão com vistas ao bem comum, promul bem comum. Os seres são divididos sob o ângulo de seus
gada por quem é encarregado da comunidade."83 Tomás bens próprios, e unidos sob o ângulo do bem comum."86
de Aquino salienta imediatamente que a lei natural en Embora os homens tendam naturalmente a se associar a
controu-se promulgada, já que foi implantada por Deus fim de realizar as disposições de seu ser, a multidão pa
no espírito dos homens84 • rece, não obstante, incapaz de se governar por si só. A
instituição da autoridade política aparece como uma con
sequência inevitável da vida social. A multidão deve, por
A transcendência de uma ordem de valores tanto, submeter-se à forma de autoridade política apta
para governá-la segundo o bem que lhe é verdadeira
É nessa fase do raciocínio que Tomás de Aquino rea mente comum: "Domina-se o outro como se domina um
ta, em aparência, se excetuamos a nova perspectiva ini homem livre quando se dirige este para seu bem pró
ciada pela doutrina da lei natural, com o ensinamento prio, ou para o bem comum. E tal dominação do homem
aristotélico. As leis positivas se tomam justas quando sobre o homem teria existido no estado de inocência [... ]
[pois] a vida social de uma multidão não poderia existir
preservam um bem que é comum à natureza de cada ho
sem um dirigente que busca o bem comum."K7
mem e permitem a cada cidadão realizar as disposições
Ora, o bem comum coincide, num primeiro sentido,
de sua natureza levando uma existência virtuosa. O bem
como já salientara Agostinho, com a paz civil88: "O bem
comum mostra-se, portanto, o objeto da lei natural.
e a salvação de uma multidão reunida em sociedade es
Mas Tomás de Aquino considera que não é simples
tão na manutenção de sua unidade, a que chamamos
mente porque os homens cobiçam bens idênticos, cuja
paz."89 Mas essa salvaguarda da unidade da multidão,
posse é exclusiva, que são conduzidos a se dividir. A per
seguição de bens radicalmente diferentes está igualmen -
85. "Homens diferentes são inclinados por natureza a fins diferentes; es
tes à cobiça, aqueles à busca das honras [... ]" (ibid., 94, 4, ob. 3).
81. fbid., 93, 3, sol. 2. 86. De la royauté, l, 1, p. 45.
82. lbid., 90, 2, resp. 87. Somme théologique, l, 96, 4, resp. "Se, então, uma multidão de homens
83. fbid., 4, resp. Como observa J.-F. Courtine, é a estrutura da "ordena livres é ordenada por aquele que a governa ao bem comum da multidão, te
ção para" que fundamenta a natureza analógica da lei em Tomás de Aquino mos um governo reto e justo" (De la royauté, l, 1, p. 46).
(Nature et empire de la /oi, op. dt., p. 96). 88. Cité de Dieu, XIX, 12 e 13.
84. Somme théologique, I-m, 90, 4, sol. 1. 89. De la royauté, l, 2, p. 49.
22 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMAS DE AQUINO 23
que permite resistir às forças de dissolução, representa em razão de sua indeterminação, até mesmo de seu
apenas a condição mínima da Cidade. Segundo Tomás inacabamento, poderia, apesar dos limites que lhe são
de Aquino, em contraste com os pensadores modernos, atribuídos, prestar-se a atualizações diferentes segundo
a sociedade política não tem como fim cabal manter a a diversidade dos regimes políticos. O indivíduo foi, ao
coesão dos cidadãos, protegê-los contra a ameaça da u
contrário, criado sociável por natreza; a capacidade
guerra civil: "O fim cabal de uma multidão reunida em das relações sociais para modelar-lhe a essência94 pare
sociedade é viver segundo a virtude."'!() Não obstante, a ce atenuada pela potência divina, que se toma a garan
existência virtuosa dos cidadãos é subordinada a duas te da integridade de uma natureza humana doravante
condições, a abundância dos bens materiais e a preser imutável. A implantação da lei natural no espírito dos
vação da paz91 • homens é a prova evidente que consagra a nova inte
Com toda a lógica, Tomás de Aquino esbarra então gridade de nossa natureza. Ao passo que a natureza
na questão clássica, legada por Aristóteles, referente à humana estará exposta à mudança na ordem do direi
distinção entre o homem virtuoso e o bom cidadão. Sa to95, a lei natural é imutável em seus primeiros princí
bendo que "a peculiaridade da lei é levar os sujeitos ao pios, somente algumas conclusões inferidas podem ser
que lhes constitui virtude própria", empenhar-se em tor suspensas pela contingência das coisas, ou de uma in
ná-los bons, falta considerar se essa bondade é "absolu tercessão direta da divindade. A imutabilidade dos pri
ta ou relativa"92• Se o bem buscado coincide com o que é meiros princípios da lei natural provém diretamente da
útil ou agradável, se se mostra relativo "a determinado providência divina, tal como é revelada pela finalidade
regime político", o conceito de bondade possui então atuante em nossa natureza.
um significado unívoco nas expressões "bom cidadão" Além da imanência universal da natureza humana
e "bom ladrão"- designa simplesmente a capacidade para ao conjunto dos regimes políticos, concebida por Aristó
operar de maneira apropriada para um objetivo93 • É in teles, a lei natural imutável já manifesta a transcendên
concebível assimjlar a destreza em empregar meios cia de uma ordem de valores, anterior à invocação pela
i
adaptados a um fm artificial com a finalidade imanente lei divina de uma sobrenatureza qualquer% _ A potência
pela qual procuramos o bem que convém à nossa natu do ato criador, através da providência imanente que ele
reza de homem. A relação da lei natura] com o bem co continua a exercer em nosso ser, garante a existência ab
mum da Cidade procede de uma finalidade imanente ao soluta do bem comum, para além do interesse próprio
nosso ser. de cada comunidade97•
Mas, com Tomás de Aquino, o homem já não é um
animal político no sentido de que a natureza humana,
94. Cf. G. de Lagarde, La Naissance de /'esprit /nique a11 Moyen Âge, Saint
Paul-Trois-Châteaux, Ed. Béatrice, Paris, Droz, 1946, V, pp. 211-2.
95. So111111e théologique, fl-11, 57, 2, sol. 1.
90. Ibid., 11, 3, p. 97. 96. "O fim cabal da vida humana é a felicidade ou a beatitude"(ibid., 1-11,
91. Ibid., LI, 4, pp. 102-3. 90, 2, resp.).
92. Somme théologiq11e, 1-LI, 92, 1, resp. 97. M. Bastit recusa essa transcendência precisamente porque ele assimi
93. Ibid. la lei natural e direito natural (Naissance de la foi modeme, op. cit., pp. 113-4).
22 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMAS DE AQUINO 23
que permite resistir às forças de dissolução, representa em razão de sua indeterminação, até mesmo de seu
apenas a condição mínima da Cidade. Segundo Tomás inacabamento, poderia, apesar dos limites que lhe são
de Aquino, em contraste com os pensadores modernos, atribuídos, prestar-se a atualizações diferentes segundo
a sociedade política não tem como fim cabal manter a a diversidade dos regimes políticos. O indivíduo foi, ao
coesão dos cidadãos, protegê-los contra a ameaça da u
contrário, criado sociável por natreza; a capacidade
guerra civil: "O fim cabal de uma multidão reunida em das relações sociais para modelar-lhe a essência94 pare
sociedade é viver segundo a virtude."'!() Não obstante, a ce atenuada pela potência divina, que se toma a garan
existência virtuosa dos cidadãos é subordinada a duas te da integridade de uma natureza humana doravante
condições, a abundância dos bens materiais e a preser imutável. A implantação da lei natural no espírito dos
vação da paz91 • homens é a prova evidente que consagra a nova inte
Com toda a lógica, Tomás de Aquino esbarra então gridade de nossa natureza. Ao passo que a natureza
na questão clássica, legada por Aristóteles, referente à humana estará exposta à mudança na ordem do direi
distinção entre o homem virtuoso e o bom cidadão. Sa to95, a lei natural é imutável em seus primeiros princí
bendo que "a peculiaridade da lei é levar os sujeitos ao pios, somente algumas conclusões inferidas podem ser
que lhes constitui virtude própria", empenhar-se em tor suspensas pela contingência das coisas, ou de uma in
ná-los bons, falta considerar se essa bondade é "absolu tercessão direta da divindade. A imutabilidade dos pri
ta ou relativa"92• Se o bem buscado coincide com o que é meiros princípios da lei natural provém diretamente da
útil ou agradável, se se mostra relativo "a determinado providência divina, tal como é revelada pela finalidade
regime político", o conceito de bondade possui então atuante em nossa natureza.
um significado unívoco nas expressões "bom cidadão" Além da imanência universal da natureza humana
e "bom ladrão"- designa simplesmente a capacidade para ao conjunto dos regimes políticos, concebida por Aristó
operar de maneira apropriada para um objetivo93 • É in teles, a lei natural imutável já manifesta a transcendên
concebível assimjlar a destreza em empregar meios cia de uma ordem de valores, anterior à invocação pela
i
adaptados a um fm artificial com a finalidade imanente lei divina de uma sobrenatureza qualquer% _ A potência
pela qual procuramos o bem que convém à nossa natu do ato criador, através da providência imanente que ele
reza de homem. A relação da lei natura] com o bem co continua a exercer em nosso ser, garante a existência ab
mum da Cidade procede de uma finalidade imanente ao soluta do bem comum, para além do interesse próprio
nosso ser. de cada comunidade97•
Mas, com Tomás de Aquino, o homem já não é um
animal político no sentido de que a natureza humana,
94. Cf. G. de Lagarde, La Naissance de /'esprit /nique a11 Moyen Âge, Saint
Paul-Trois-Châteaux, Ed. Béatrice, Paris, Droz, 1946, V, pp. 211-2.
95. So111111e théologique, fl-11, 57, 2, sol. 1.
90. Ibid., 11, 3, p. 97. 96. "O fim cabal da vida humana é a felicidade ou a beatitude"(ibid., 1-11,
91. Ibid., LI, 4, pp. 102-3. 90, 2, resp.).
92. Somme théologiq11e, 1-LI, 92, 1, resp. 97. M. Bastit recusa essa transcendência precisamente porque ele assimi
93. Ibid. la lei natural e direito natural (Naissance de la foi modeme, op. cit., pp. 113-4).
24 GENEALOGIA DO DLREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMÁS DE AQUINO 25
Uma vez que o fim da associação política coincide dade, pela proscrição de atos indiferentes, que não são
com a existência virtuosa dos cidadãos, Tomás de Aqui intrinsecamente maus. Nesse sentido, a lei positiva con
no afirma, então, que as leis positivas, estabelecidas pela segue criar uma obrigação que lhe é própria, não deri
vontade do legislador, devem ser estritamente subordi vada da lei natural.
nadas aos preceitos da lei natural. A lei humana provirá Mas Tomás de Aquino continua empenhado em
apenas de maneira marginal de um princípio que lhe é salientar os limites da lei humana, já que considera que
próprio; portanto, ela não é dependente de uma vonta ela não consegue reger tudo 103, nem proscrever atos que
de arbitrária, mas define simplesmente as modalidades não prejudicam o bem comum. Embora a lei humana se
u
de aplicação da lei natral. As leis humanas são, portan empenhe em deixar os homens virtuosos, ela não
to, disposições particulares, descobertas pela razão, para pode, reprimir todos os vícios, com o risco de exacer
a execução das leis naturais911 • bá-los.
Tomás de Aquino precisa que inventariemos dois ti Segundo Tomás de Aquino, essas duas formas de
pos de derivação a partir da lei natural99• Certas leis hu derivação a partir da lei natura] vão encontrar-se no prin
manas decorrem da lei natural a título de conclusões. O cípio de uma nova distinção, no seio do direito positivo,
preceito segundo o qual "não se deve matar"deriva como entre o direito das gentes (jus gentium 11)4) e o direito civil.
uma conclusão do princípio que nos intima a "não fazer "O direito das gentes é algo natural ao homem, na me
o mal". Mas certas disposições legais são apenas "deter dida em que este é um ser racional, porque esse direito
minações" dos princípios da lei natural: "A lei de nature deriva da lei natural como uma conclusãÇ? que não está
za prescreve que quem comete uma falta seja punido; muito afastada dos princípios." 105 Em compensação,"[...]
mas que seja punido com tal pena é uma determinação o que deriva da lei de natureza a título de determinação
da lei de natureza."Hxi particular concerne ao direito civil"1116• O direito das gen
Essas duas formas de derivação autorizam-nos, por tes parece, pois, independente do consentimento das na
tanto, a distinguir dois tipos de lei humana: as conclu ções, provém da consideração de um bem comum que
sões "recebem da lei natural uma parte do poder delas", transcende a pluralidade das comunidades políticas.
ao passo que as determinações 1111, as especificações, "re
cebem seu poder somente da lei humana"102• A lei huma
103. fbid., 11-11, 78, 1, resp.
na toma-se então, por si mesma, uma norma de morali- 104. Como enfatiza R. Dérathé, esse termo designava, na origem, entre
os roma.nos, o" direito das embaixadas. Era esse verossímilmente seu sentido
mais primitivo. Depois [ ... ] ele designou as regras jurídicas aplicáveis no inte
98. Somme théologique, 1-1.1, 91, 3, resp. rior do Estado romano, nas relações entre os estrangeiros, ou entre estrangei
99. Ibid., 95, 2, resp. ros e cidadãos roma.nos" (Jean-Jacques Rousseau et Ia science politique de son
100. lbid. temps, Paris, Vrin, 1992, p. 389). Bartolo decidirá depois operar uma cisão no
101. Segundo M. Villey, o conceito de determinação pode igualmente próprio seio do direito das gentes entre o que é ditado pela razão natural e o
assumir um duplo significado, qualificando a um só tempo uma decisão arbi que é estabelecido pelo consentimento das nações (cf. R. Tuck, Natural Rights
trária do legislador e uma conclusão racional do juiz (Leçons d'histoire de la phi Theories, Cambridge, Cambridge University Press, 1979, p. 35).
losophie du droit, op. cit., p. 212, nota 2; Somme théologique, J.[I, 99, 4, resp.). 105. Somme théologique, 1-11, 95, 4, sol. 1.
102. Somme théologique. 106. Ibid., resp.
24 GENEALOGIA DO DLREITO MODERNO A JUSTIÇA LEGAL: ARISTÓTELES E TOMÁS DE AQUINO 25
Uma vez que o fim da associação política coincide dade, pela proscrição de atos indiferentes, que não são
com a existência virtuosa dos cidadãos, Tomás de Aqui intrinsecamente maus. Nesse sentido, a lei positiva con
no afirma, então, que as leis positivas, estabelecidas pela segue criar uma obrigação que lhe é própria, não deri
vontade do legislador, devem ser estritamente subordi vada da lei natural.
nadas aos preceitos da lei natural. A lei humana provirá Mas Tomás de Aquino continua empenhado em
apenas de maneira marginal de um princípio que lhe é salientar os limites da lei humana, já que considera que
próprio; portanto, ela não é dependente de uma vonta ela não consegue reger tudo 103, nem proscrever atos que
de arbitrária, mas define simplesmente as modalidades não prejudicam o bem comum. Embora a lei humana se
u
de aplicação da lei natral. As leis humanas são, portan empenhe em deixar os homens virtuosos, ela não
to, disposições particulares, descobertas pela razão, para pode, reprimir todos os vícios, com o risco de exacer
a execução das leis naturais911 • bá-los.
Tomás de Aquino precisa que inventariemos dois ti Segundo Tomás de Aquino, essas duas formas de
pos de derivação a partir da lei natural99• Certas leis hu derivação a partir da lei natura] vão encontrar-se no prin
manas decorrem da lei natural a título de conclusões. O cípio de uma nova distinção, no seio do direito positivo,
preceito segundo o qual "não se deve matar"deriva como entre o direito das gentes (jus gentium 11)4) e o direito civil.
uma conclusão do princípio que nos intima a "não fazer "O direito das gentes é algo natural ao homem, na me
o mal". Mas certas disposições legais são apenas "deter dida em que este é um ser racional, porque esse direito
minações" dos princípios da lei natural: "A lei de nature deriva da lei natural como uma conclusãÇ? que não está
za prescreve que quem comete uma falta seja punido; muito afastada dos princípios." 105 Em compensação,"[...]
mas que seja punido com tal pena é uma determinação o que deriva da lei de natureza a título de determinação
da lei de natureza."Hxi particular concerne ao direito civil"1116• O direito das gen
Essas duas formas de derivação autorizam-nos, por tes parece, pois, independente do consentimento das na
tanto, a distinguir dois tipos de lei humana: as conclu ções, provém da consideração de um bem comum que
sões "recebem da lei natural uma parte do poder delas", transcende a pluralidade das comunidades políticas.
ao passo que as determinações 1111, as especificações, "re
cebem seu poder somente da lei humana"102• A lei huma
103. fbid., 11-11, 78, 1, resp.
na toma-se então, por si mesma, uma norma de morali- 104. Como enfatiza R. Dérathé, esse termo designava, na origem, entre
os roma.nos, o" direito das embaixadas. Era esse verossímilmente seu sentido
mais primitivo. Depois [ ... ] ele designou as regras jurídicas aplicáveis no inte
98. Somme théologique, 1-1.1, 91, 3, resp. rior do Estado romano, nas relações entre os estrangeiros, ou entre estrangei
99. Ibid., 95, 2, resp. ros e cidadãos roma.nos" (Jean-Jacques Rousseau et Ia science politique de son
100. lbid. temps, Paris, Vrin, 1992, p. 389). Bartolo decidirá depois operar uma cisão no
101. Segundo M. Villey, o conceito de determinação pode igualmente próprio seio do direito das gentes entre o que é ditado pela razão natural e o
assumir um duplo significado, qualificando a um só tempo uma decisão arbi que é estabelecido pelo consentimento das nações (cf. R. Tuck, Natural Rights
trária do legislador e uma conclusão racional do juiz (Leçons d'histoire de la phi Theories, Cambridge, Cambridge University Press, 1979, p. 35).
losophie du droit, op. cit., p. 212, nota 2; Somme théologique, J.[I, 99, 4, resp.). 105. Somme théologique, 1-11, 95, 4, sol. 1.
102. Somme théologique. 106. Ibid., resp.
26 GENEALOGTA DO DIREITO MODERNO
Tomás de Aquino considera até mesmo que a busca um deve resolver-se então a reconhecer a inanidade do
do bem comum, apoiada pela finalidade natural, pode direito natural. Ora, segundo Aristóteles, uma justiça imu
entrar em conflito com o respeito pelo direito:"Por exem tável só poderia existir entre os deuses, ao passo que no
plo, quando os encargos são repartidos desigualmente na mundo sublunar, "ainda que nele também exista uma
comunidade, mesmo que sejam ordenados para o bem co certa justiça natural, tudo nesse campo é, porém, passí
mum."20 Tal é o princípio da distinção entre a justiça ge vel de mudança [ ...]. E dentre as coisas que têm a possi
ral, empenhada em preservar o bem comum, e a justiça bilidade de serem diferentes do que são, é fácil ver quais
particular, garante dos direitos do indivíduo. tipos de coisas são naturais e quais são aquelas que não
Em que sentido será possível afirmar que uma lei o são, mas repousam na lei e na convenção" 23.
que se empenha em promover o bem comum pode ser Mas não se trata somente de afirmar aqui que a na
injusta, atentar contra os direitos dos cidadãos? tureza humana só existe em potencial, que está sujeita a
Basta reconhecer a pregnância de um direito natu variações, até mesmo a falhas, que um ser natural, que
ral, imanente às relações sociais, que deve ser dissociado detém um princípio interno de movimento, nem sempre
da lei natural, inserida na natureza humana. Enquanto a consegue realizar os fins que lhe foram atribuídos. Nes
lei natural é imutável, reportada a seus princípios fun se sentido, o direito natural político, que permite identi
damentais, o direito natural se apresenta como essen ficar a melhor constituição, a forma de organização polí
cialmente flutuante e movediço. Aristóteles se aplicou, tica mais bem adaptada à natureza humana, pode estar
de fato, num texto célebre e cuja interpretação é particu sujeito a flutuações, apesar de sua preeminência.
larmente controvertida, a combater os pensadores sofis Não obstante, as variações da justiça geral devem
tas 21 , que tiram partido das variações do direito natural ser dissociadas daquelas que afetam a justiça particular.
para estabelecer-lhe a inanidade e sustentar que todas as Assim como o direito natural político possui mais cons
prescrições jurídicas são convencionais ou positivas e tância em comparação às disposições constitucionais bem
emanam da vontade de um legislador. como às leis positivas, submetidas a flutuações irreme
diáveis, é importante reconhecer que uma relação social
Como interpretar as variações do direito natural de
é portadora de uma justiça particular, que, apesar de
um regime político para outro? Se o"que é natural é imu
suas possíveis variações segundo a diversidade das rela
tável e em toda parte tem a mesma força (como é o caso
ções sociais, desfruta uma estabilidade superior daque
do fogo, que queima igualmente aqui e na Pérsia)" 22, cada
la que afeta suas expressões positivas, dependentes da
versatilidade das opiniões. O direito é apreendido como
tificam com a virtude"(ibid., I, 10, 1198 a-1199 b, pp. 67-8). Como salienta M.
Finley, a democracia ateniense era o teatro de uma reivindicação quase revo
natural, pois ele "não depende desta ou daquela opi-
lucionária: a abolição das dívidas e a redistribuição das terras (L'lnvenlion de ln
politique, trad. fr. J. Calier, Paris, Flammarion, 1985, p. 160).
20. Somme théologique, 1-11, 96, 4, resp. 23. lbid. "O que é natural a um ser dotado de uma natureza imutável
21. Sobre as figuras de Cálicles e Licofronte, cf. respectivamente Platão, deve ser em toda parte e sempre o mesmo. Mas não é esse o caso da nature
Gorgins, 483 b; Les Politiques, III, 9, 1280 b, p. 235. za humana, que é submetida à mudança; eis por que o que é natural ao ho
22. Éthiq11e à Nico111nq11e, V, 10, 1134 b, p. 251. mem às vezes pode faltar" (So111111e théologiq11e, 11-IJ, 57, 2, sol. 1).
32 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A DISTINÇÃO ENTRE O DIREITO E A MORAL 33
Tomás de Aquino considera até mesmo que a busca um deve resolver-se então a reconhecer a inanidade do
do bem comum, apoiada pela finalidade natural, pode direito natural. Ora, segundo Aristóteles, uma justiça imu
entrar em conflito com o respeito pelo direito:"Por exem tável só poderia existir entre os deuses, ao passo que no
plo, quando os encargos são repartidos desigualmente na mundo sublunar, "ainda que nele também exista uma
comunidade, mesmo que sejam ordenados para o bem co certa justiça natural, tudo nesse campo é, porém, passí
mum."20 Tal é o princípio da distinção entre a justiça ge vel de mudança [ ...]. E dentre as coisas que têm a possi
ral, empenhada em preservar o bem comum, e a justiça bilidade de serem diferentes do que são, é fácil ver quais
particular, garante dos direitos do indivíduo. tipos de coisas são naturais e quais são aquelas que não
Em que sentido será possível afirmar que uma lei o são, mas repousam na lei e na convenção" 23.
que se empenha em promover o bem comum pode ser Mas não se trata somente de afirmar aqui que a na
injusta, atentar contra os direitos dos cidadãos? tureza humana só existe em potencial, que está sujeita a
Basta reconhecer a pregnância de um direito natu variações, até mesmo a falhas, que um ser natural, que
ral, imanente às relações sociais, que deve ser dissociado detém um princípio interno de movimento, nem sempre
da lei natural, inserida na natureza humana. Enquanto a consegue realizar os fins que lhe foram atribuídos. Nes
lei natural é imutável, reportada a seus princípios fun se sentido, o direito natural político, que permite identi
damentais, o direito natural se apresenta como essen ficar a melhor constituição, a forma de organização polí
cialmente flutuante e movediço. Aristóteles se aplicou, tica mais bem adaptada à natureza humana, pode estar
de fato, num texto célebre e cuja interpretação é particu sujeito a flutuações, apesar de sua preeminência.
larmente controvertida, a combater os pensadores sofis Não obstante, as variações da justiça geral devem
tas 21 , que tiram partido das variações do direito natural ser dissociadas daquelas que afetam a justiça particular.
para estabelecer-lhe a inanidade e sustentar que todas as Assim como o direito natural político possui mais cons
prescrições jurídicas são convencionais ou positivas e tância em comparação às disposições constitucionais bem
emanam da vontade de um legislador. como às leis positivas, submetidas a flutuações irreme
diáveis, é importante reconhecer que uma relação social
Como interpretar as variações do direito natural de
é portadora de uma justiça particular, que, apesar de
um regime político para outro? Se o"que é natural é imu
suas possíveis variações segundo a diversidade das rela
tável e em toda parte tem a mesma força (como é o caso
ções sociais, desfruta uma estabilidade superior daque
do fogo, que queima igualmente aqui e na Pérsia)" 22, cada
la que afeta suas expressões positivas, dependentes da
versatilidade das opiniões. O direito é apreendido como
tificam com a virtude"(ibid., I, 10, 1198 a-1199 b, pp. 67-8). Como salienta M.
Finley, a democracia ateniense era o teatro de uma reivindicação quase revo
natural, pois ele "não depende desta ou daquela opi-
lucionária: a abolição das dívidas e a redistribuição das terras (L'lnvenlion de ln
politique, trad. fr. J. Calier, Paris, Flammarion, 1985, p. 160).
20. Somme théologique, 1-11, 96, 4, resp. 23. lbid. "O que é natural a um ser dotado de uma natureza imutável
21. Sobre as figuras de Cálicles e Licofronte, cf. respectivamente Platão, deve ser em toda parte e sempre o mesmo. Mas não é esse o caso da nature
Gorgins, 483 b; Les Politiques, III, 9, 1280 b, p. 235. za humana, que é submetida à mudança; eis por que o que é natural ao ho
22. Éthiq11e à Nico111nq11e, V, 10, 1134 b, p. 251. mem às vezes pode faltar" (So111111e théologiq11e, 11-IJ, 57, 2, sol. 1).
34 GENFALOGfA DO DlREITO MODERNO A DISTINÇÃO ENTRE O DlREfTO E A MORAL 35
nião" 24• Se descobrimos no próprio seio das relações so dados tanto mais bens comuns a uma pessoa quanto seu
ciais relações justas, é na medida em que elas não são lugar na comunidade é preponderante." 27 Essa justiça
subordinadas ao consentimento das partes ou à institui distributiva é particular, a despeito de sua referência ao
ção de uma convenção. bem comum, pois o indivíduo é o termo visado por essa
Fica claro, portanto, que, segundo Tomás de Aquino, repartição, o elemento ao qual as coisas comuns são
é inconcebível atribuir aos homens direitos independen ajustadas. Ao passo que no âmbito da justiça legal, o ter
temente das relações sociais em cujo seio eles se inse mo visado coincide com o bem comum: "Pertence à jus
rem. A sociedade política não repousa em direitos do ho tiça legal ordenar para o bem comum os bens particula
mem primordiais, mas é unicamente em referência à res; mas, inversamente, ordenar o bem comum para o
parte dos bens materiais ou imateriais que se outorga a bem dos indivíduos, distribuindo-o a eles, concerne à
cada um, segundo justas relações, que é possível identi justiça particular." 28
ficar direitos individuais25• A concepção tomista do direi A participação no bem comum não deve ocultar a
to se situa, portanto, aquém da demarcação moderna partilha dos bens públicos29• No seio da justiça particu
entre um direito objetivo, formado pelo conjunto das leis, lar, a repartição dos bens públicos não decorre da avalia
e um direito subjetivo, que supõe o reconhecimento de ção de cada indivíduo em função de sua aptidão para
uma qualidade moral inerente a um sujeito. promover o bem comum. A igualdade que se encontra
no princípio da distribuição não é, em absoluto, finaliza
da por .uma relação com um modelo qualquer da natu
Justiça distributiva, justiça comutativa reza humana. O direito natural político, que, como vi
mos, permite distribuir as magistraturas segundo o mé
Se o direito natural é uma relação fundamentada na rito de cada um, não faz parte da justiça particular, mas
igualdade, Tomás de Aquino vai prosseg uir o comentário da justiça geral: "Àquele que prevalece em mérito, será
do pensamento de Aristóteles indicando que é possível dada mais honra." 30 A partilha do poder se efetua aqui
ajustar-se aos outros segundo dois modos de igualdade em função do bem comum da sociedade sem levar em
diferentes. Existe uma justiça distributiva "chamada a re conta a igualdade imanente às relações sociais. A con
partir proporcionalmente o bem comum da sociedade" 26. cepção do mérito que está no princípio da repartição dos
Essa forma de justiça que distribui as honras e as rique cargos públicos varia conforme a forma de vida virtuosa
zas procede segundo uma igualdade proporcional: "São erigida em norma primordial. A questão da atribuição do
poder político deve ser distinguida daquela que incide
24. Ibid., p. 250.
25. Encontramos, portanto, de maneira indireta, para além da opção po 27. fbid., 2, resp.
sitivista de Kelsen, o prinópio da demonstração do caráter ideológico da no 28. fbid., 1, sol. 4.
ção de direito natural subjetivo (Théorie pure d11 droit, op. cit., IV, 29, p. 137; IV, 29. Cf. C. Castoriadis, "Valeur, égalité, justice, politique: de Marx à Aris
41, p. 296). tote e d'Aristote à nous", Textures, n? 75/12-13, pp. 31-3.
26. fbid., Il-ll, 61, 1, resp. 30. Éthique à Nicomaque, VIII, 16, 1163 b, p. 428.
34 GENFALOGfA DO DlREITO MODERNO A DISTINÇÃO ENTRE O DlREfTO E A MORAL 35
nião" 24• Se descobrimos no próprio seio das relações so dados tanto mais bens comuns a uma pessoa quanto seu
ciais relações justas, é na medida em que elas não são lugar na comunidade é preponderante." 27 Essa justiça
subordinadas ao consentimento das partes ou à institui distributiva é particular, a despeito de sua referência ao
ção de uma convenção. bem comum, pois o indivíduo é o termo visado por essa
Fica claro, portanto, que, segundo Tomás de Aquino, repartição, o elemento ao qual as coisas comuns são
é inconcebível atribuir aos homens direitos independen ajustadas. Ao passo que no âmbito da justiça legal, o ter
temente das relações sociais em cujo seio eles se inse mo visado coincide com o bem comum: "Pertence à jus
rem. A sociedade política não repousa em direitos do ho tiça legal ordenar para o bem comum os bens particula
mem primordiais, mas é unicamente em referência à res; mas, inversamente, ordenar o bem comum para o
parte dos bens materiais ou imateriais que se outorga a bem dos indivíduos, distribuindo-o a eles, concerne à
cada um, segundo justas relações, que é possível identi justiça particular." 28
ficar direitos individuais25• A concepção tomista do direi A participação no bem comum não deve ocultar a
to se situa, portanto, aquém da demarcação moderna partilha dos bens públicos29• No seio da justiça particu
entre um direito objetivo, formado pelo conjunto das leis, lar, a repartição dos bens públicos não decorre da avalia
e um direito subjetivo, que supõe o reconhecimento de ção de cada indivíduo em função de sua aptidão para
uma qualidade moral inerente a um sujeito. promover o bem comum. A igualdade que se encontra
no princípio da distribuição não é, em absoluto, finaliza
da por .uma relação com um modelo qualquer da natu
Justiça distributiva, justiça comutativa reza humana. O direito natural político, que, como vi
mos, permite distribuir as magistraturas segundo o mé
Se o direito natural é uma relação fundamentada na rito de cada um, não faz parte da justiça particular, mas
igualdade, Tomás de Aquino vai prosseg uir o comentário da justiça geral: "Àquele que prevalece em mérito, será
do pensamento de Aristóteles indicando que é possível dada mais honra." 30 A partilha do poder se efetua aqui
ajustar-se aos outros segundo dois modos de igualdade em função do bem comum da sociedade sem levar em
diferentes. Existe uma justiça distributiva "chamada a re conta a igualdade imanente às relações sociais. A con
partir proporcionalmente o bem comum da sociedade" 26. cepção do mérito que está no princípio da repartição dos
Essa forma de justiça que distribui as honras e as rique cargos públicos varia conforme a forma de vida virtuosa
zas procede segundo uma igualdade proporcional: "São erigida em norma primordial. A questão da atribuição do
poder político deve ser distinguida daquela que incide
24. Ibid., p. 250.
25. Encontramos, portanto, de maneira indireta, para além da opção po 27. fbid., 2, resp.
sitivista de Kelsen, o prinópio da demonstração do caráter ideológico da no 28. fbid., 1, sol. 4.
ção de direito natural subjetivo (Théorie pure d11 droit, op. cit., IV, 29, p. 137; IV, 29. Cf. C. Castoriadis, "Valeur, égalité, justice, politique: de Marx à Aris
41, p. 296). tote e d'Aristote à nous", Textures, n? 75/12-13, pp. 31-3.
26. fbid., Il-ll, 61, 1, resp. 30. Éthique à Nicomaque, VIII, 16, 1163 b, p. 428.
36 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A DISTINÇÃO ENTRE O DIREITO E A MORAL 37
sobre a repartição justa dos bens exteriores. Parece, de Não obstante, para seguir a metáfora tomista já cita
fato, absurdo pensar em distribujr bens avaliando o mé da, o sol da justiça geral não poderia transformar a justi
rito moral de cada indivíduo31• ça particular. A justiça geral não pode modificar a orien
Não obstante, a igualdade inerente à justiça particu tação da justiça particular como ela modifica as virtudes
lar não é fundamentada numa reciprocidade que sus de coragem ou de temperança colocando-as a serviço do
penderia as posições sociais preponderantes. Como, en bem comum. A justiça particular visa a igualdade ineren
tão, estabelecer uma distribuição dos bens públicos no te a uma relação social, a que se refere à partilha dos
âmbito da justiça particular? Qual deverá ser, por exem bens exteriores entre cidadãos; é inconcebível submetê
plo, o princípio da alocação dos recursos educativos? A la a um fim distinto da igualdade sem a aniquilar: "O
igualdade proporcional conseguirá manter uma real igual bem comum da Cidade e o bem particular de uma pes
dade das chances entre os indivíduos?32 Poder-se-á pre soa diferem entre si formalmente." 33 Apenas o bem na
tender recorrer a essa justiça particular distributiva para
tural do indivíduo, sua existência virtuosa, pode ser inte
conceder vantagens aos que têm menos?
grado ao bem comum.
Essa dissociação entre o bem comum e o direito do
Segundo Tomás de Aqumo, a injustiça inerente às leis
indjvíduo, entre os dois termos visados pela justiça legal
que se opõem, em nome do bem comum, a urna igual
e pela justiça distributiva particular, levanta uma série de
questões cujo alcance se mostra capital para retraçar a distribuição é isenta de dúvida34, mesmo que ela não
genealogia do direito moderno. Como dirimir um litígio, possa desobrigar os sujeitos de seu dever de obediência,
ou um conflito, que sobrevém entre as leis destinadas a autorizá-los a resistir e até mesmo a se rebelar. Tomás de
preservar o bem comum e as justas reivindicações dos Aqumo favorece a emergência de uma dificuldade com a
indivíduos que exigem o que lhes é devido segundo a qual ele não se confronta diretamente, a do direito de re
igualdade proporcional? Uma decisão política destinada sistência num regime legítimo, empenhado em preser
a favorecer a concretização dos fins da natureza humana var o bem comum. Cada cidadão é, evidentemente, sub
poderá ser injusta, contrária aos direitos do indjvíduo? metido, por exemplo, ao dever moral que lhe intima pa
Como veremos no âmbito do pensamento de Locke, as gar seus impostos, mas, para além de certa proporção,
desigualdades sociais podem integrar-se a um regime essa exigência, ligada à justiça legal, atenta contra a inte
empenhado em realizar as virtualidades da natureza hu gridade dos direitos de cada indivíduo.
mana, cuja finalidade é constituída pelo bem comum. A Dessa forma de justiça que rege a relação dos indi
justiça das leis positivas ficará ameaçada quando elas ten víduos com os bens comuns da Cidade se distingue a
tam submeter ao bem comum relações sociais que con justiça comutativa, "que tem por objeto as trocas mútuas
cernem à justiça particular? entre duas pessoas" privadas35 .
31. John Rawls, Théorie de ln justice, pp. 348-9. [Trad. bras. Uma teoria da 33. S0111111e théologique, 58, 7, sol. 2.
justiça, São Paulo, Martins Fontes, 2008]. 34. Tbid., 1-11, 96, 4, resp.
32. Tbid,, p. 550. 35. Tbid., li-li, 61, 1, resp.
36 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A DISTINÇÃO ENTRE O DIREITO E A MORAL 37
sobre a repartição justa dos bens exteriores. Parece, de Não obstante, para seguir a metáfora tomista já cita
fato, absurdo pensar em distribujr bens avaliando o mé da, o sol da justiça geral não poderia transformar a justi
rito moral de cada indivíduo31• ça particular. A justiça geral não pode modificar a orien
Não obstante, a igualdade inerente à justiça particu tação da justiça particular como ela modifica as virtudes
lar não é fundamentada numa reciprocidade que sus de coragem ou de temperança colocando-as a serviço do
penderia as posições sociais preponderantes. Como, en bem comum. A justiça particular visa a igualdade ineren
tão, estabelecer uma distribuição dos bens públicos no te a uma relação social, a que se refere à partilha dos
âmbito da justiça particular? Qual deverá ser, por exem bens exteriores entre cidadãos; é inconcebível submetê
plo, o princípio da alocação dos recursos educativos? A la a um fim distinto da igualdade sem a aniquilar: "O
igualdade proporcional conseguirá manter uma real igual bem comum da Cidade e o bem particular de uma pes
dade das chances entre os indivíduos?32 Poder-se-á pre soa diferem entre si formalmente." 33 Apenas o bem na
tender recorrer a essa justiça particular distributiva para
tural do indivíduo, sua existência virtuosa, pode ser inte
conceder vantagens aos que têm menos?
grado ao bem comum.
Essa dissociação entre o bem comum e o direito do
Segundo Tomás de Aqumo, a injustiça inerente às leis
indjvíduo, entre os dois termos visados pela justiça legal
que se opõem, em nome do bem comum, a urna igual
e pela justiça distributiva particular, levanta uma série de
questões cujo alcance se mostra capital para retraçar a distribuição é isenta de dúvida34, mesmo que ela não
genealogia do direito moderno. Como dirimir um litígio, possa desobrigar os sujeitos de seu dever de obediência,
ou um conflito, que sobrevém entre as leis destinadas a autorizá-los a resistir e até mesmo a se rebelar. Tomás de
preservar o bem comum e as justas reivindicações dos Aqumo favorece a emergência de uma dificuldade com a
indivíduos que exigem o que lhes é devido segundo a qual ele não se confronta diretamente, a do direito de re
igualdade proporcional? Uma decisão política destinada sistência num regime legítimo, empenhado em preser
a favorecer a concretização dos fins da natureza humana var o bem comum. Cada cidadão é, evidentemente, sub
poderá ser injusta, contrária aos direitos do indjvíduo? metido, por exemplo, ao dever moral que lhe intima pa
Como veremos no âmbito do pensamento de Locke, as gar seus impostos, mas, para além de certa proporção,
desigualdades sociais podem integrar-se a um regime essa exigência, ligada à justiça legal, atenta contra a inte
empenhado em realizar as virtualidades da natureza hu gridade dos direitos de cada indivíduo.
mana, cuja finalidade é constituída pelo bem comum. A Dessa forma de justiça que rege a relação dos indi
justiça das leis positivas ficará ameaçada quando elas ten víduos com os bens comuns da Cidade se distingue a
tam submeter ao bem comum relações sociais que con justiça comutativa, "que tem por objeto as trocas mútuas
cernem à justiça particular? entre duas pessoas" privadas35 .
31. John Rawls, Théorie de ln justice, pp. 348-9. [Trad. bras. Uma teoria da 33. S0111111e théologique, 58, 7, sol. 2.
justiça, São Paulo, Martins Fontes, 2008]. 34. Tbid., 1-11, 96, 4, resp.
32. Tbid,, p. 550. 35. Tbid., li-li, 61, 1, resp.
38 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A DISTINÇÃO ENTRE O DIREITO E A MORAL 39
A justiça comutativa procede segundo uma estrita mo da emergência da noção de direito subjetivo. A obri
igualdade aritmética e não mais proporcional36• Essa for gação jurídica é uma relação que se impõe às duas par
ma de igualdade não deve desenvolver-se segundo tes, não deve ser confundida com o dever natural que in
"uma proporção das coisas com as pessoas", mas segun cumbe ao indivíduo se conf ormar com seus compromis
do uma"igualdade de coisas com coisas", sem acepção de sos, respeitar a palavra dada. A obrigação jurídica não é,
pessoa:"Tudo o que um recebeu a mais tomando daqui portanto, nem legal nem moral.
lo que é do outro, eJe lhe restitui em igual quantidade."37 A obrigação jurídica pode, então, ser distinguida do
Essa forma de justiça intervém nas trocas comerciais, dever moral sem invocar a noção de consentimento4 1.
mas também na correção dos danos infligidos a outrem 38 • Pois a obrigação jurídica não é essencialmente subordi
A nova perspectiva, iniciada pela consideração des nada ao consentimento das partes, ela pode ser natural.
sa justiça corretiva, permite-nos completar a elaboração Não podemos contentar-nos em afirmar, principalmen
do conceito de direito. O direito não é somente uma re te com Grócio, que a obrigação jurídica supõe, diferente
lação fundamentada na igualdade, é uma relação que, mente do dever, um comprometimento voluntário, uma
precisamente por repousar na igualdade e e·stabelecer transferência de direito42. Se é concebível que não sou
um vínculo (vinculum) entre os indivíduos, é portadora obrigado simplesmente pelo que eu quis43, não é em
de uma obrigação. nome dos deveres naturais aos quais sou sujeito, mas em
O que é uma obrigação jurídica? Se a obrigação jurí razão do vínculo que uma relação de igualdade me im
dica não é imediatamente legal, é porque o vínculo que põe. Por exemplo, no âmbito da justiça penal, o direito
ela instaura não provém de uma finalidade inerente à na reconhecido decorre da obrigação que incumbe ao indi
tureza humana ou de um comando arbitrário acompa víduo de reparar o dano causado. Nesse sentido, punir
nhado de sanções3�, mas deriva de uma relação de igual um indivíduo com a pena que merece equivale a lhe atri
dade. A fim de receber o nosso direito, é necessário que buir seu direito44 . Trata-se, portanto, de distinguir o direi-
uma obrigação nos ligue a um outro indivíduo. O direito
é uma relação entre as partes ligadas pela igualdade. 41. R.Tuck propõe uma distnção i
entre a obrigação e o dever, mas recor
Mas isso não implica que o direito atribuído a um rendo à noção de consentimento, de comprometimento voluntário (Nnh1ml
Rights Theories, op. cit., p. 9).
coincida com o dever de respeitá-lo que pesa sobre o ou 42. Cf. igualmente, sobre o dever natural de justiça, Rawls, Théorie de ln
tro411. O direito pode ser dissociado do dever antes mes- justice, op. cit., pp. l 44-5, p. 377.
43. ).-F. Spitz,John Locke et les fondements de la liberlé moderne, Paris, PUF,
2001, p. 16; sobre a crítica do consentimento passivo extorquido sob coação,
36. "Por igualdade numérica refiro-me ao fato de ser idêntico e igual cf. Locke, Second tmité, XVI,§ 176.
pela quantidade ou grandeza [ ...]" (Les Politiques, V, 1, 1301 b, p. 334). 44. Cf. M. Villey, Leçons d'histoire de la philosophie du droit, op. cit., p. 232.
37. Somme théologique, U-U, 61, 2, resp. Crócio considera que se trata de uma expressão abusiva: "A locução vulgar as
38. Cf. Éthique à Nicomnque, V, 7, 1131 b-1132 a, pp. 231-4; V, 6, 1130 b- desnaturou, pela qual dizemos que a pena é devida ao delinquente: o que é
1131 a, pp. 224-5. totalmente impróprio; pois aquele a quem uma coisa é propriamente devida
39. R. Seve, Leibniz e/ /'école modeme du droit nnhml, Paris, PUF, 1989, p. 20. 'tem um direito contra a outra parte. Mas, quando dizemos que uma pena é
40. R. Tuck, Natural Rights Theories, op. cit., pp. 160-1; cf. Pufcndorf, Droit devida a alguém, queremos dizer outra coisa, apenas que é justo que ele seja
de ln nnhire et des gens, Irl, 5, 3. punido" (Droit de la guerre et de la pnix, 11, XX, [l, 2, pp. 450-1).
38 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A DISTINÇÃO ENTRE O DIREITO E A MORAL 39
A justiça comutativa procede segundo uma estrita mo da emergência da noção de direito subjetivo. A obri
igualdade aritmética e não mais proporcional36• Essa for gação jurídica é uma relação que se impõe às duas par
ma de igualdade não deve desenvolver-se segundo tes, não deve ser confundida com o dever natural que in
"uma proporção das coisas com as pessoas", mas segun cumbe ao indivíduo se conf ormar com seus compromis
do uma"igualdade de coisas com coisas", sem acepção de sos, respeitar a palavra dada. A obrigação jurídica não é,
pessoa:"Tudo o que um recebeu a mais tomando daqui portanto, nem legal nem moral.
lo que é do outro, eJe lhe restitui em igual quantidade."37 A obrigação jurídica pode, então, ser distinguida do
Essa forma de justiça intervém nas trocas comerciais, dever moral sem invocar a noção de consentimento4 1.
mas também na correção dos danos infligidos a outrem 38 • Pois a obrigação jurídica não é essencialmente subordi
A nova perspectiva, iniciada pela consideração des nada ao consentimento das partes, ela pode ser natural.
sa justiça corretiva, permite-nos completar a elaboração Não podemos contentar-nos em afirmar, principalmen
do conceito de direito. O direito não é somente uma re te com Grócio, que a obrigação jurídica supõe, diferente
lação fundamentada na igualdade, é uma relação que, mente do dever, um comprometimento voluntário, uma
precisamente por repousar na igualdade e e·stabelecer transferência de direito42. Se é concebível que não sou
um vínculo (vinculum) entre os indivíduos, é portadora obrigado simplesmente pelo que eu quis43, não é em
de uma obrigação. nome dos deveres naturais aos quais sou sujeito, mas em
O que é uma obrigação jurídica? Se a obrigação jurí razão do vínculo que uma relação de igualdade me im
dica não é imediatamente legal, é porque o vínculo que põe. Por exemplo, no âmbito da justiça penal, o direito
ela instaura não provém de uma finalidade inerente à na reconhecido decorre da obrigação que incumbe ao indi
tureza humana ou de um comando arbitrário acompa víduo de reparar o dano causado. Nesse sentido, punir
nhado de sanções3�, mas deriva de uma relação de igual um indivíduo com a pena que merece equivale a lhe atri
dade. A fim de receber o nosso direito, é necessário que buir seu direito44 . Trata-se, portanto, de distinguir o direi-
uma obrigação nos ligue a um outro indivíduo. O direito
é uma relação entre as partes ligadas pela igualdade. 41. R.Tuck propõe uma distnção i
entre a obrigação e o dever, mas recor
Mas isso não implica que o direito atribuído a um rendo à noção de consentimento, de comprometimento voluntário (Nnh1ml
Rights Theories, op. cit., p. 9).
coincida com o dever de respeitá-lo que pesa sobre o ou 42. Cf. igualmente, sobre o dever natural de justiça, Rawls, Théorie de ln
tro411. O direito pode ser dissociado do dever antes mes- justice, op. cit., pp. l 44-5, p. 377.
43. ).-F. Spitz,John Locke et les fondements de la liberlé moderne, Paris, PUF,
2001, p. 16; sobre a crítica do consentimento passivo extorquido sob coação,
36. "Por igualdade numérica refiro-me ao fato de ser idêntico e igual cf. Locke, Second tmité, XVI,§ 176.
pela quantidade ou grandeza [ ...]" (Les Politiques, V, 1, 1301 b, p. 334). 44. Cf. M. Villey, Leçons d'histoire de la philosophie du droit, op. cit., p. 232.
37. Somme théologique, U-U, 61, 2, resp. Crócio considera que se trata de uma expressão abusiva: "A locução vulgar as
38. Cf. Éthique à Nicomnque, V, 7, 1131 b-1132 a, pp. 231-4; V, 6, 1130 b- desnaturou, pela qual dizemos que a pena é devida ao delinquente: o que é
1131 a, pp. 224-5. totalmente impróprio; pois aquele a quem uma coisa é propriamente devida
39. R. Seve, Leibniz e/ /'école modeme du droit nnhml, Paris, PUF, 1989, p. 20. 'tem um direito contra a outra parte. Mas, quando dizemos que uma pena é
40. R. Tuck, Natural Rights Theories, op. cit., pp. 160-1; cf. Pufcndorf, Droit devida a alguém, queremos dizer outra coisa, apenas que é justo que ele seja
de ln nnhire et des gens, Irl, 5, 3. punido" (Droit de la guerre et de la pnix, 11, XX, [l, 2, pp. 450-1).
40 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A DlSTENÇÃO ENTRE O DIREITO E A MORAL 41
to penal geral, que estipula as penas de acordo com o culada pela igualdade nos previne contra dois escolhos:
atentado feito ao bem comum da sociedade, do direito subordinar o conjunto das relações sociais à preservação
penal, oriundo da justiça particular, que ajusta as san do bem comum ou então fazer de cada indivíduo o cria
ções aos danos infligidos. dor de seus direitos pela liberdade ilusória de seu con
Por outro lado, se nos referimos mais particularmen sentimento.
te às trocas comerciais, constatamos que a justiça comu Não obstante, a distinção entre a igualdade propor
tativa se impõe, sejam as transações privadas voluntárias cional e aritmética não conduz Aristóteles, tampouco To
ou involuntárias; no seio das trocas privadas "voluntá más de Aquino, a levantar a questão decisiva: a justiça dis
rias ou involuntárias, o meio-termo se determina da mes tributiva deve estar no fundamento da justiça comutativa?
ma maneira: a igualdade da compensação" 45• Nessas con
dições, fica manifesto, como observou judiciosamente
Michel Villey, que a justiça de urna relação social é irre A resistência do juiz
dutível ao consentimento das partes46 . Não basta que um
trabalhador miserável consinta em ratificar as cláusulas Qual é a instância que deve fazer que prevaleçam os
de seu contrato de trabalho para que a relação que ele direitos do indivíduo em face dos detentores da autori
mantém com seu empregador se tome justa47 • A justiça dade política, que governam a Cidade ordenando-a para
de um contrato de trabalho não decorre simplesmente o bem comum?"� É a um magistrado subalterno, ao juiz,
do respeito pelas duas partes da palavra dada, mas tam que compete proteger os direitos do indivíduo contra os
bém da relação objetiva, da igualdade aritmética entre a ataques que lhe são dirigidos por uma legislação que or
parte das riquezas produzidas e o salário pago. Apenas a dena, de maneira escrupulosa, cada cidadão para o bem
justiça geral, garante do bem comum, tem condições de comum. No entanto, não se deve confundir a equidade
metamorfosear o respeito da palavra dada em obrigação de que o juiz dá prova na aplicação das leis civis com sua
moral ou legal, passível de sanções. aptidão para fazer valer o direito, para defender sua ju
Referindo-nos a urna igualdade proporcional ou arit risdição.
mética, impõe-se urna norma de justiça, distinta a um só A questão do direito é, evidentemente, irredutível à
tempo das leis positivas protetoras do bem comum como da equidade, que supõe a adaptação da lei natural ou
dos acordos contratuais ou das convenções coletivas.
positiva a casos particulares contingentes: "O equitativo,
Conceber o direito do indivíduo como uma relação vin-
mesmo sendo justo, não é o justo segundo a lei, mas um
corretivo da justiça legal" 49.
45. Somme théologique, U-II, 61, 3, resp.
46. M. Villey, La Formation de la pensée j11ridiq11e 111oderne, Paris, Montch
rétien, 1975, pp. 467-9. [Trad. bras. A formação do pensa111e11l0 jurídico moderno, 48. fbid., 1-11, 90, 3 resp.
São Paulo, WMF Martins Fontes, 2006.] 49. Éthiq11e à Nico111aq11e, V, 14, 1137 b, p. 267. S0111111e théologique, ll-11,
47."Pode acontecer que alguém cometa algo realmente injusto sem que Ü0, 1 e 2. A adaptação de uma lei geral a casos particulares supõe o recurso à
rer, quando ele [... ] apoia voluntariamente a injustiça, por exemplo se dá volun igualdade proporcional? (Cf. C. Castoriadis, "Valeur, égalité, justice, politique:
tariamente a alguém mais do que lhe deve"(Som111e théologique, íl-11, 59, 3, resp.). de Marx à Aristote ct d' Aristote à nous", art. cit., pp. 42-3.)
40 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A DlSTENÇÃO ENTRE O DIREITO E A MORAL 41
to penal geral, que estipula as penas de acordo com o culada pela igualdade nos previne contra dois escolhos:
atentado feito ao bem comum da sociedade, do direito subordinar o conjunto das relações sociais à preservação
penal, oriundo da justiça particular, que ajusta as san do bem comum ou então fazer de cada indivíduo o cria
ções aos danos infligidos. dor de seus direitos pela liberdade ilusória de seu con
Por outro lado, se nos referimos mais particularmen sentimento.
te às trocas comerciais, constatamos que a justiça comu Não obstante, a distinção entre a igualdade propor
tativa se impõe, sejam as transações privadas voluntárias cional e aritmética não conduz Aristóteles, tampouco To
ou involuntárias; no seio das trocas privadas "voluntá más de Aquino, a levantar a questão decisiva: a justiça dis
rias ou involuntárias, o meio-termo se determina da mes tributiva deve estar no fundamento da justiça comutativa?
ma maneira: a igualdade da compensação" 45• Nessas con
dições, fica manifesto, como observou judiciosamente
Michel Villey, que a justiça de urna relação social é irre A resistência do juiz
dutível ao consentimento das partes46 . Não basta que um
trabalhador miserável consinta em ratificar as cláusulas Qual é a instância que deve fazer que prevaleçam os
de seu contrato de trabalho para que a relação que ele direitos do indivíduo em face dos detentores da autori
mantém com seu empregador se tome justa47 • A justiça dade política, que governam a Cidade ordenando-a para
de um contrato de trabalho não decorre simplesmente o bem comum?"� É a um magistrado subalterno, ao juiz,
do respeito pelas duas partes da palavra dada, mas tam que compete proteger os direitos do indivíduo contra os
bém da relação objetiva, da igualdade aritmética entre a ataques que lhe são dirigidos por uma legislação que or
parte das riquezas produzidas e o salário pago. Apenas a dena, de maneira escrupulosa, cada cidadão para o bem
justiça geral, garante do bem comum, tem condições de comum. No entanto, não se deve confundir a equidade
metamorfosear o respeito da palavra dada em obrigação de que o juiz dá prova na aplicação das leis civis com sua
moral ou legal, passível de sanções. aptidão para fazer valer o direito, para defender sua ju
Referindo-nos a urna igualdade proporcional ou arit risdição.
mética, impõe-se urna norma de justiça, distinta a um só A questão do direito é, evidentemente, irredutível à
tempo das leis positivas protetoras do bem comum como da equidade, que supõe a adaptação da lei natural ou
dos acordos contratuais ou das convenções coletivas.
positiva a casos particulares contingentes: "O equitativo,
Conceber o direito do indivíduo como uma relação vin-
mesmo sendo justo, não é o justo segundo a lei, mas um
corretivo da justiça legal" 49.
45. Somme théologique, U-II, 61, 3, resp.
46. M. Villey, La Formation de la pensée j11ridiq11e 111oderne, Paris, Montch
rétien, 1975, pp. 467-9. [Trad. bras. A formação do pensa111e11l0 jurídico moderno, 48. fbid., 1-11, 90, 3 resp.
São Paulo, WMF Martins Fontes, 2006.] 49. Éthiq11e à Nico111aq11e, V, 14, 1137 b, p. 267. S0111111e théologique, ll-11,
47."Pode acontecer que alguém cometa algo realmente injusto sem que Ü0, 1 e 2. A adaptação de uma lei geral a casos particulares supõe o recurso à
rer, quando ele [... ] apoia voluntariamente a injustiça, por exemplo se dá volun igualdade proporcional? (Cf. C. Castoriadis, "Valeur, égalité, justice, politique:
tariamente a alguém mais do que lhe deve"(Som111e théologique, íl-11, 59, 3, resp.). de Marx à Aristote ct d' Aristote à nous", art. cit., pp. 42-3.)
42 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A DISTINÇÃO ENTRE O DlREITO E A MORAL 43
Contudo, parece que Tomás de Aquino, que enfati ção que lhe permite revelar a injustiça da lei natural ou
za certas observações de Aristóteles, contribui para de positivª 53.
preciar o ofício do juiz em comparação com a obra do O direito mostra-se o objeto da virtude de justiça
legislador. "Os legisladores julgam para o conjunto dos particular que deve habitar constantemente o juiz. Um
casos e com vistas no futuro; ao passo que, nos tribu juiz é juiz desde que seja animado por"uma vontade per
nais, os juízes decidem casos atuais, perante os quais são pétua e constante de conceder a cada um o seu direito"54•
influenciados pelo amor, pelo ódio, pela cupidez. É as Não obstante, a jurisdição do juiz se estende igual
sim que o juízo deles é deturpado. Portanto, a justiça mente às determinações da lei natural. Como já observa
viva que é o juiz não é encontrada em muitos homens. mos, as leis humanas se declinam em conclusões e de
[...] Por isso foi necessário determinar pela lei o que terminações da lei natural. Ora, Tomás de Aquino não
cumpria julgar no maior número de casos possível e dei abandona a determinação da lei natural apenas à deci
xar pouco espaço para a decisão dos homens."50 Se nos são arbitrária do legislador. Confrontada com o silêncio
referimos à letra das leis positivas encarregadas de pro da lei natural, essa obra de determinação abrange uma
mover o bem comum, ou ao espírito de equidade pelo dimensão a um só tempo moral e jurídica.
qual a aplicação delas fica modulada, a função do juiz só Certas proibições mostram-se conclusões da lei na
pode ser suplantada pela obra do legislador, cuja inspi tural, que nos intima a não fazer o mal. Essas conclusões
ração primeira tenta-se reavivar. Então importa simples se apresentam como comandos morais que visam o bem
mente "fazer-se intérprete do que o próprio legislador da comunidade. Mas, entre elas, algu mas apresentam o
teria dito se estivesse estado presente naquele momen risco de tropeçar em exceções. Um juízo esclarecido pelo
to"51. Ao contrário, se pedimos ao juiz "restaurar a igu al espírito de equidade deverá intervir todas as vezes que
dade" de uma relação social, é precisamente porque, um preceito exigir uma adaptação às situações particula
nesse caso, o ofício que lhe é entregue não é aplicar ou res55. Não devolver o depósito àquele que conta utilizá
adaptar a lei, mas proteger os direitos do indivíduo. "Ir lo para combater a pátria constitui uma aplicação equi
perante o juiz é ir perante a justiça, pois o juiz tende a tativa da conclusão da lei natural, segundo a qual cumpre
ser como que uma justiça viva."52 O juiz se apresenta, restituir o bem que nos foi confiado. O magistrado res-
dessa vez, sob uma luz nova, como um derradeiro recur
so em face da ameaça que o legislador pode fazer que 53. Talvez seja essa uma das fontes da teoria protestante da resistência do
pese sobre os direitos individuais. Sem dispor de um di "magistrado subalterno", fiel à justiça divina, apesar de sua violação pelo so
berano (Q. Skinner, Les Fondements de la pensée politique modeme, Paris, Albin
reito subjetivo de resistência, o juiz detém uma jurisdi- Michel, 2001, pp. 636-41). Esse direito não subjetivo de resistência reaparece no
pensamento de Locke ao sabor de certo número de metamorfoses, cf. J.-F.
Spitz, John Locke et les fondements de la liberté modeme, op. cit., p. 19 e pp. 278-9.
50. Somme t/1éologiq11e, 1-11, 95, 1, sol. 2. Cf. Aristóteles, Rhétorique, 1, 1354 a- 54. Somme théologique, íl-11, 58, 1, ob. 1.
1354 b, pp. 17-8. 55. "A sentença incide sobre casos particulares. Ora, nenhuma lei escri
51. Éthique n Nicomaque, V, 14, 1137 b, p. 267. ta pode prever todos os casos particulares, como o Filósofo o demonstra"
52. lbid., V, 7, 1132 a, p. 235. (ibid., 1-11, 60, 5, ob.).
42 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A DISTINÇÃO ENTRE O DlREITO E A MORAL 43
Contudo, parece que Tomás de Aquino, que enfati ção que lhe permite revelar a injustiça da lei natural ou
za certas observações de Aristóteles, contribui para de positivª 53.
preciar o ofício do juiz em comparação com a obra do O direito mostra-se o objeto da virtude de justiça
legislador. "Os legisladores julgam para o conjunto dos particular que deve habitar constantemente o juiz. Um
casos e com vistas no futuro; ao passo que, nos tribu juiz é juiz desde que seja animado por"uma vontade per
nais, os juízes decidem casos atuais, perante os quais são pétua e constante de conceder a cada um o seu direito"54•
influenciados pelo amor, pelo ódio, pela cupidez. É as Não obstante, a jurisdição do juiz se estende igual
sim que o juízo deles é deturpado. Portanto, a justiça mente às determinações da lei natural. Como já observa
viva que é o juiz não é encontrada em muitos homens. mos, as leis humanas se declinam em conclusões e de
[...] Por isso foi necessário determinar pela lei o que terminações da lei natural. Ora, Tomás de Aquino não
cumpria julgar no maior número de casos possível e dei abandona a determinação da lei natural apenas à deci
xar pouco espaço para a decisão dos homens."50 Se nos são arbitrária do legislador. Confrontada com o silêncio
referimos à letra das leis positivas encarregadas de pro da lei natural, essa obra de determinação abrange uma
mover o bem comum, ou ao espírito de equidade pelo dimensão a um só tempo moral e jurídica.
qual a aplicação delas fica modulada, a função do juiz só Certas proibições mostram-se conclusões da lei na
pode ser suplantada pela obra do legislador, cuja inspi tural, que nos intima a não fazer o mal. Essas conclusões
ração primeira tenta-se reavivar. Então importa simples se apresentam como comandos morais que visam o bem
mente "fazer-se intérprete do que o próprio legislador da comunidade. Mas, entre elas, algu mas apresentam o
teria dito se estivesse estado presente naquele momen risco de tropeçar em exceções. Um juízo esclarecido pelo
to"51. Ao contrário, se pedimos ao juiz "restaurar a igu al espírito de equidade deverá intervir todas as vezes que
dade" de uma relação social, é precisamente porque, um preceito exigir uma adaptação às situações particula
nesse caso, o ofício que lhe é entregue não é aplicar ou res55. Não devolver o depósito àquele que conta utilizá
adaptar a lei, mas proteger os direitos do indivíduo. "Ir lo para combater a pátria constitui uma aplicação equi
perante o juiz é ir perante a justiça, pois o juiz tende a tativa da conclusão da lei natural, segundo a qual cumpre
ser como que uma justiça viva."52 O juiz se apresenta, restituir o bem que nos foi confiado. O magistrado res-
dessa vez, sob uma luz nova, como um derradeiro recur
so em face da ameaça que o legislador pode fazer que 53. Talvez seja essa uma das fontes da teoria protestante da resistência do
pese sobre os direitos individuais. Sem dispor de um di "magistrado subalterno", fiel à justiça divina, apesar de sua violação pelo so
berano (Q. Skinner, Les Fondements de la pensée politique modeme, Paris, Albin
reito subjetivo de resistência, o juiz detém uma jurisdi- Michel, 2001, pp. 636-41). Esse direito não subjetivo de resistência reaparece no
pensamento de Locke ao sabor de certo número de metamorfoses, cf. J.-F.
Spitz, John Locke et les fondements de la liberté modeme, op. cit., p. 19 e pp. 278-9.
50. Somme t/1éologiq11e, 1-11, 95, 1, sol. 2. Cf. Aristóteles, Rhétorique, 1, 1354 a- 54. Somme théologique, íl-11, 58, 1, ob. 1.
1354 b, pp. 17-8. 55. "A sentença incide sobre casos particulares. Ora, nenhuma lei escri
51. Éthique n Nicomaque, V, 14, 1137 b, p. 267. ta pode prever todos os casos particulares, como o Filósofo o demonstra"
52. lbid., V, 7, 1132 a, p. 235. (ibid., 1-11, 60, 5, ob.).
44 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO
A DISTINÇÃO ENTRE O DIREITO E A MORAL 45
mesmo que, segundo a diversidade das sociedades polí
gata as intenções do legislador, sem ir contra a exigência
moral que nos intima a preservar o bem comum. ticas, circunstâncias particulares possam restringir o grau
No entanto, uma parte das disposições legais se de realização dessa natureza.
apresenta como"determinações" da lei natural:"A lei de Não obstante, as determinações da lei natural po
natureza prescreve que quem comete uma falta seja pu dem igualmente revestir uma dimensão jurídica. Por
nido; mas que seja punido com esta ou aquela pena é exemplo, a determinação da pena visará simplesmente o
uma determinação da lei de natureza." 56 Qual será, aqui, bem da comunidade? Como observa Michel Villey, tra
o vínculo que liga a lei natural à sua determinação? tando-se do direito penal, "os juízes nele têm a missão
As determinações não decorrem necessariamente de medir faltas e lhes proporcionam as penas"59• Mas a
de uma aplicação equitativa das conclusões da lei natu exigência de proporcionar a pena à falta é subordinada à
ral. Elas enunciam, ao contrário, uma regra que não pode forma de injustiça constatada. A injustiça supõe "uma
deduzir-se da lei natural ou das intenções que presidi desigualdade nos bens"60, mas também uma violação da
ram à legislação. Não pode tratar-se de aplicar uma lei lei que "pode até mesmo existir mantendo objetivamen
geral a uma situação particular, já que o processo de edi te a igualdade, como no caso em que se quer obrigar pela
ficação da norma singular intervém precisamente na au força, mas sem sucesso"61• Assim,"a reparação da primei
sência de indicações manifestas da lei natural57 • Assim, ra consequência é assegurada pela restituição que resta
certas normas de moralidade irão se impor em virtude belece a igualdade, e basta para consegui-lo que se de
da singularidade de cada uma das comunidades políti volva somente o que se roubou. Mas, para apagar a fal
cas. O estudo dessas determinações da lei natural leva ta, é necessário uma punição que compete ao juiz infli
Tomás de Aquino a restituir certa plasticidade à nature gir. É por isso que, enquanto não se foi condenado pelo
za humana, conforme ao ensinamento aristotélico. So juiz, não se é obrigado a restituir mais do que se tirou.
mente é exigido que essas normas não contravenham Mas, uma vez condenado, deve-se sofrer a pena"62• Pro
aos princípios da lei natural 5x_ Nesse sentido, a atenção porcionar a pena à falta equivale, de um lado, a restaurar
dirigida ao bem da comunidade, assim como ao caráter a igualdade e, do outro, a estimar a importância do aten
específico de seus costumes, presidirá à obra de"determi tado ao bem comum a fim de avaliar a pena segundo a
nação". A imutabilidade da natureza humana continua gravidade da falta moral. As duas formas de injustiça se
sendo o princípio da identificação do melhor regime, rão levadas em conta pelo juiz no cálculo da pena. A de
terminação da pena se prende, portanto, ao mesmo tem
po à justiça corretiva particular e à justiça geral.
56. Ibid., 1-11, 95, 2, resp.
S';l. É necessário que uma lei seja "justa, realizável segundo a natureza e
o costume do país, adaptada ao tempo e ao lugar, isso significa que a lei de 59. M. Villey, Q11estio11s de sainl Thomas sur /e droit et la politique, op. cit.,
verá ser adaptada à disciplina dos costumes" (ibid., 1-íl, 95, 3, resp.). p. 126.
58. "Mas a regra primeira da razão é a lei de natureza. Por isso toda lei 60. Somme théologique, IJ-IJ, 62, 3, resp.
estipulada pelos homens só tem razão de lei na medida em que deriva da lei 61. Ibid.
de natureza. Se ela desvia cm algum ponto da lei natural, então já não é uma 62. Tbid.
lei, mas uma corrupção da lei" (ibid., 1-11, 95, 2, resp.).
44 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO
A DISTINÇÃO ENTRE O DIREITO E A MORAL 45
mesmo que, segundo a diversidade das sociedades polí
gata as intenções do legislador, sem ir contra a exigência
moral que nos intima a preservar o bem comum. ticas, circunstâncias particulares possam restringir o grau
No entanto, uma parte das disposições legais se de realização dessa natureza.
apresenta como"determinações" da lei natural:"A lei de Não obstante, as determinações da lei natural po
natureza prescreve que quem comete uma falta seja pu dem igualmente revestir uma dimensão jurídica. Por
nido; mas que seja punido com esta ou aquela pena é exemplo, a determinação da pena visará simplesmente o
uma determinação da lei de natureza." 56 Qual será, aqui, bem da comunidade? Como observa Michel Villey, tra
o vínculo que liga a lei natural à sua determinação? tando-se do direito penal, "os juízes nele têm a missão
As determinações não decorrem necessariamente de medir faltas e lhes proporcionam as penas"59• Mas a
de uma aplicação equitativa das conclusões da lei natu exigência de proporcionar a pena à falta é subordinada à
ral. Elas enunciam, ao contrário, uma regra que não pode forma de injustiça constatada. A injustiça supõe "uma
deduzir-se da lei natural ou das intenções que presidi desigualdade nos bens"60, mas também uma violação da
ram à legislação. Não pode tratar-se de aplicar uma lei lei que "pode até mesmo existir mantendo objetivamen
geral a uma situação particular, já que o processo de edi te a igualdade, como no caso em que se quer obrigar pela
ficação da norma singular intervém precisamente na au força, mas sem sucesso"61• Assim,"a reparação da primei
sência de indicações manifestas da lei natural57 • Assim, ra consequência é assegurada pela restituição que resta
certas normas de moralidade irão se impor em virtude belece a igualdade, e basta para consegui-lo que se de
da singularidade de cada uma das comunidades políti volva somente o que se roubou. Mas, para apagar a fal
cas. O estudo dessas determinações da lei natural leva ta, é necessário uma punição que compete ao juiz infli
Tomás de Aquino a restituir certa plasticidade à nature gir. É por isso que, enquanto não se foi condenado pelo
za humana, conforme ao ensinamento aristotélico. So juiz, não se é obrigado a restituir mais do que se tirou.
mente é exigido que essas normas não contravenham Mas, uma vez condenado, deve-se sofrer a pena"62• Pro
aos princípios da lei natural 5x_ Nesse sentido, a atenção porcionar a pena à falta equivale, de um lado, a restaurar
dirigida ao bem da comunidade, assim como ao caráter a igualdade e, do outro, a estimar a importância do aten
específico de seus costumes, presidirá à obra de"determi tado ao bem comum a fim de avaliar a pena segundo a
nação". A imutabilidade da natureza humana continua gravidade da falta moral. As duas formas de injustiça se
sendo o princípio da identificação do melhor regime, rão levadas em conta pelo juiz no cálculo da pena. A de
terminação da pena se prende, portanto, ao mesmo tem
po à justiça corretiva particular e à justiça geral.
56. Ibid., 1-11, 95, 2, resp.
S';l. É necessário que uma lei seja "justa, realizável segundo a natureza e
o costume do país, adaptada ao tempo e ao lugar, isso significa que a lei de 59. M. Villey, Q11estio11s de sainl Thomas sur /e droit et la politique, op. cit.,
verá ser adaptada à disciplina dos costumes" (ibid., 1-íl, 95, 3, resp.). p. 126.
58. "Mas a regra primeira da razão é a lei de natureza. Por isso toda lei 60. Somme théologique, IJ-IJ, 62, 3, resp.
estipulada pelos homens só tem razão de lei na medida em que deriva da lei 61. Ibid.
de natureza. Se ela desvia cm algum ponto da lei natural, então já não é uma 62. Tbid.
lei, mas uma corrupção da lei" (ibid., 1-11, 95, 2, resp.).
46 . GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A DISTINÇÃO ENTRE O DIREITO E A MORAL 47
Fica claro que o direito civil abrange a um só tempo vidade racional consegue estabelecer verdadeiras rela
injunções de inspiração moral e preceitos juríclicos63, ao ções jurídicas.
passo que o direito das gentes, que deriva das conclu A instauração da propriedade privada apresenta-se
sões da lei natural, reúne urna série de injunções morais assirn, para a razão, como um corolário da lei natural. A
que visam o bem da humanidade, que encontramos em instituição da propriedade privada já não aparece, se
todas as comunidades políticas64 • Convém, então, operar gundo a perspectiva agostiniana, como uma consequên
uma distinção entre essas conclusões morais universais, cia deplorável resultante da queda, mas parece propícia
as determinações morais ordenadas para o único bem de à satisfação das necessidades do gênero humano. "Com
uma comunidade política particular e as determinações efeito, ao considerar esse campo absolutamente e em si,
jurídicas da lei natural. não há nada nele que o faça pertencer a um inclivíduo e
não a outro. Mas, se consideramos o interesse de sua
cultura ou de seu uso aprazível, é preferível que perten
O direito de propriedade ça a um e não ao outro."67
Não obstante, não é possível identificar a proprieda
Tomás de Aquino observa, ademais, para além dos de privada, tal como ela é deduzida, como um corolário
limites atribuídos à lei natural, que a análise do direito da lei natural, com o dominium (o "domínio natural") so
natural também pode permanecer lacunar, reclamar um bre todas as coisas inferiores que foi dado por Deus aos
complemento. Portanto, é importante proceder ao estu homens: "O homem tem um domínio natural sobre es
do das condições pelas quais os homens conseguem au ses bens exteriores, pois, pela razão e pela vontade, pode
mentar o campo de aplicação desse clireito. O justo por servir-se deles para a sua utilidade, como sendo feitos
natureza pode, na realidade, ser considerado de duas por ele."l>R
maneiras distintas. Pode ser considerado "absolutamen Como explicar que Tomás de Aquino recorra à noção
te e em si", como quando se a.firma que é justo "se eu der de dominium natural para descrever o estado de inocên
tanto e receber o mesmo tanto", ou então ser apreendido cia? Convém primeiro salientar que o dominium natural
"relativamente às suas consequências"65. Ora, Tomás de não coincide de modo algum com um direito natural qual
Aquino explica que " examinar uma coisa comparando-a quer, mesmo que ele possa encontrar-se justificado, a
com suas consequências" é urna atividade que depende exemplo da propriedade privada, pela lei natural.
da razão66 • Toda a questão consiste em saber se essa ati- Enquanto um autor como Graciano clissociava "a
posse comum", inerente ao estado de inocência, da pro-
63. "Quanto ao que deriva da lei de natureza a título de determinação
particular, isso concerne ao direito civil", ibid, 1-LI, 95, 4, resp. 67. lbid. Cf. Aristóteles, Les Politiques, II, 5, 1263 a, pp. 151-2.
64. "Pois ao direito das gentes se vincula o que decorre da lei de nature 68. Somme théologiq11e, 66, 1, resp. "Façamos o homem à nossa imagem e
za à maneira de conclusões vindas de princípios" (ibid., 1-11, 95, 4, resp.) à nossa semelhança, e que ele mande nos peixes do mar, nos pássaros do céu,
65. lbid., 3, rcsp. nos animais, em toda a terra, e em todos os répteis que se mexem sob o céu"
66. Ibid. (Gênese 1, 26.28-30).
46 . GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A DISTINÇÃO ENTRE O DIREITO E A MORAL 47
Fica claro que o direito civil abrange a um só tempo vidade racional consegue estabelecer verdadeiras rela
injunções de inspiração moral e preceitos juríclicos63, ao ções jurídicas.
passo que o direito das gentes, que deriva das conclu A instauração da propriedade privada apresenta-se
sões da lei natural, reúne urna série de injunções morais assirn, para a razão, como um corolário da lei natural. A
que visam o bem da humanidade, que encontramos em instituição da propriedade privada já não aparece, se
todas as comunidades políticas64 • Convém, então, operar gundo a perspectiva agostiniana, como uma consequên
uma distinção entre essas conclusões morais universais, cia deplorável resultante da queda, mas parece propícia
as determinações morais ordenadas para o único bem de à satisfação das necessidades do gênero humano. "Com
uma comunidade política particular e as determinações efeito, ao considerar esse campo absolutamente e em si,
jurídicas da lei natural. não há nada nele que o faça pertencer a um inclivíduo e
não a outro. Mas, se consideramos o interesse de sua
cultura ou de seu uso aprazível, é preferível que perten
O direito de propriedade ça a um e não ao outro."67
Não obstante, não é possível identificar a proprieda
Tomás de Aquino observa, ademais, para além dos de privada, tal como ela é deduzida, como um corolário
limites atribuídos à lei natural, que a análise do direito da lei natural, com o dominium (o "domínio natural") so
natural também pode permanecer lacunar, reclamar um bre todas as coisas inferiores que foi dado por Deus aos
complemento. Portanto, é importante proceder ao estu homens: "O homem tem um domínio natural sobre es
do das condições pelas quais os homens conseguem au ses bens exteriores, pois, pela razão e pela vontade, pode
mentar o campo de aplicação desse clireito. O justo por servir-se deles para a sua utilidade, como sendo feitos
natureza pode, na realidade, ser considerado de duas por ele."l>R
maneiras distintas. Pode ser considerado "absolutamen Como explicar que Tomás de Aquino recorra à noção
te e em si", como quando se a.firma que é justo "se eu der de dominium natural para descrever o estado de inocên
tanto e receber o mesmo tanto", ou então ser apreendido cia? Convém primeiro salientar que o dominium natural
"relativamente às suas consequências"65. Ora, Tomás de não coincide de modo algum com um direito natural qual
Aquino explica que " examinar uma coisa comparando-a quer, mesmo que ele possa encontrar-se justificado, a
com suas consequências" é urna atividade que depende exemplo da propriedade privada, pela lei natural.
da razão66 • Toda a questão consiste em saber se essa ati- Enquanto um autor como Graciano clissociava "a
posse comum", inerente ao estado de inocência, da pro-
63. "Quanto ao que deriva da lei de natureza a título de determinação
particular, isso concerne ao direito civil", ibid, 1-LI, 95, 4, resp. 67. lbid. Cf. Aristóteles, Les Politiques, II, 5, 1263 a, pp. 151-2.
64. "Pois ao direito das gentes se vincula o que decorre da lei de nature 68. Somme théologiq11e, 66, 1, resp. "Façamos o homem à nossa imagem e
za à maneira de conclusões vindas de princípios" (ibid., 1-11, 95, 4, resp.) à nossa semelhança, e que ele mande nos peixes do mar, nos pássaros do céu,
65. lbid., 3, rcsp. nos animais, em toda a terra, e em todos os répteis que se mexem sob o céu"
66. Ibid. (Gênese 1, 26.28-30).
48 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A D/STINÇÂO ENTRE O DIREITO E A MORAL 49
priedade privada (dominium) relativa ao estado civil69, To justificada pela lei natural precisamente porque essa su
más de Aquino opera uma verdadeira revolução concei perioridade se insere na finalidade naturaF3• O dominium
tua} ao referir-se a um dominium não mais civil, mas na natural, para Tomás de Aquino, escapa à esfera do direi
tural. Deveremos, por essa razão, reinserir a inovação to to, é comparável ao estado de fato pelo qual o senhor
mista na tradição, que remonta a Acúrcio e que será de (dominus) dispõe de seu domínio natural, de suas terras,
senvolvida no século XIV por Bartolo, empenhada em de seus escravos74 •
conceber o usufruto e a propriedade como duas formas A partir do momento em que nos concentramos sim
de dominium, um útil, o outro direto? 7º plesmente nesse usufruto, no poder de usar bens exte
O aporte dessa tradição jurídica, que considera que riores, apreendido como um dominium natural, "o ho
todos os jura in re, o usufruto bem como a propriedade, mem não deve possuir esses bens como se lhe fossem
dependem do dominium, situa-se no estrito âmbito do di próprios, mas como sendo de todos, no sentido de que
reito civil. Com efeito, sustentar que o usufruto, que o direi deve partilhá-los de bom grado com os necessitados"75•
to de ocupar e de usar, aparenta-se a um dominium útil, Mas, se consideramos os bens exteriores segundo o po
equivale a conferir a esse direito uma dimensão ativa, sub der que o homem tem de "geri-los e dispor deles", o di
traída a todo acordo prévio. O usufruto supõe, evidente reito de propriedade recobra toda a sua legitimidade.
mente, um controle, uma dominação sobre o bem possuí Com efeito, "uma coisa é dita de direito natural de duas
do que é possível transferir ou defender em justiça71 • formas. De um lado, porque a natureza inclina a isso.
O que sobra então desse dominium privado inerente [ ...] Do outro, porque a natureza não sugere o contrário.
ao usufruto, dessa dominação garantida pelo estado ci [ ...] Nesse sentido, dizem que 'a posse comum de todos
vil, quando o consideramos natural, inerente ao estado os bens e a liberdade idêntica para todos são de direito
de inocência? Trata-se simplesmente, para Tomás de natural'; isso quer dizer que a distinção das posses e a
Aquino, de se projetar numa dimensão que já não é ju servidão não são sugeridas pela natureza, mas pela ra
rídica, mas que traduz a superioridade concedida ao ho zão dos homens para o bem da vida humana. E, mesmo
mem por Deus sobre as coisas naturais. Tal é o resultado nisso, a lei de natureza não é modificada, a não ser por
da criação divina, os homens dominam em comum as adição"76.
criaturas naturais, pois elas foram concebidas para o uso A propriedade privada não é, portanto, contrária à
deles72 • A dominação do homem sobre as coisas acha-se lei natural, "ela se lhe acrescenta por uma precisão devi
da à razão humana"n, o que implica que ela pertence "ao
69. Decreto, 1, 1, 7, citado por R. Tuck, Natuml Rights Theories, op. cit., p. 18. direito das gentes". Tomás de Aquino explicita assim sua
70. lbid., pp. 16-7. Bartolo define o "do111i11i11111 direto", a propriedade,
como "o direito de dispor de um objeto corporal sem outra restrição além do
que a lei proíbe" (ibid.). 73. Som111e théologiq11e, 1, 96, 1, resp., e 4, resp.
71. /bid., p. 16. 74. R. Tuck, Nnruml Rights Theories, op. cit., p. 1O.
72. Sobre o poder mágico e o magnetismo natural do domador como 75. S0111111e théologiq11e, 11-11, 66, 2, resp. Cf. 1, 98, 1, sol. 3.
fonte do do111ini11111, cf. G. de Lagarde, La Naissnnce de l'esprit laiq11e nu déc/in 76. /bid., 1-U, 94, 5, sol. 3.
d11 Moyen Âge, op. cit., p. 179, nota 1. 77. lbid.
48 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A D/STINÇÂO ENTRE O DIREITO E A MORAL 49
priedade privada (dominium) relativa ao estado civil69, To justificada pela lei natural precisamente porque essa su
más de Aquino opera uma verdadeira revolução concei perioridade se insere na finalidade naturaF3• O dominium
tua} ao referir-se a um dominium não mais civil, mas na natural, para Tomás de Aquino, escapa à esfera do direi
tural. Deveremos, por essa razão, reinserir a inovação to to, é comparável ao estado de fato pelo qual o senhor
mista na tradição, que remonta a Acúrcio e que será de (dominus) dispõe de seu domínio natural, de suas terras,
senvolvida no século XIV por Bartolo, empenhada em de seus escravos74 •
conceber o usufruto e a propriedade como duas formas A partir do momento em que nos concentramos sim
de dominium, um útil, o outro direto? 7º plesmente nesse usufruto, no poder de usar bens exte
O aporte dessa tradição jurídica, que considera que riores, apreendido como um dominium natural, "o ho
todos os jura in re, o usufruto bem como a propriedade, mem não deve possuir esses bens como se lhe fossem
dependem do dominium, situa-se no estrito âmbito do di próprios, mas como sendo de todos, no sentido de que
reito civil. Com efeito, sustentar que o usufruto, que o direi deve partilhá-los de bom grado com os necessitados"75•
to de ocupar e de usar, aparenta-se a um dominium útil, Mas, se consideramos os bens exteriores segundo o po
equivale a conferir a esse direito uma dimensão ativa, sub der que o homem tem de "geri-los e dispor deles", o di
traída a todo acordo prévio. O usufruto supõe, evidente reito de propriedade recobra toda a sua legitimidade.
mente, um controle, uma dominação sobre o bem possuí Com efeito, "uma coisa é dita de direito natural de duas
do que é possível transferir ou defender em justiça71 • formas. De um lado, porque a natureza inclina a isso.
O que sobra então desse dominium privado inerente [ ...] Do outro, porque a natureza não sugere o contrário.
ao usufruto, dessa dominação garantida pelo estado ci [ ...] Nesse sentido, dizem que 'a posse comum de todos
vil, quando o consideramos natural, inerente ao estado os bens e a liberdade idêntica para todos são de direito
de inocência? Trata-se simplesmente, para Tomás de natural'; isso quer dizer que a distinção das posses e a
Aquino, de se projetar numa dimensão que já não é ju servidão não são sugeridas pela natureza, mas pela ra
rídica, mas que traduz a superioridade concedida ao ho zão dos homens para o bem da vida humana. E, mesmo
mem por Deus sobre as coisas naturais. Tal é o resultado nisso, a lei de natureza não é modificada, a não ser por
da criação divina, os homens dominam em comum as adição"76.
criaturas naturais, pois elas foram concebidas para o uso A propriedade privada não é, portanto, contrária à
deles72 • A dominação do homem sobre as coisas acha-se lei natural, "ela se lhe acrescenta por uma precisão devi
da à razão humana"n, o que implica que ela pertence "ao
69. Decreto, 1, 1, 7, citado por R. Tuck, Natuml Rights Theories, op. cit., p. 18. direito das gentes". Tomás de Aquino explicita assim sua
70. lbid., pp. 16-7. Bartolo define o "do111i11i11111 direto", a propriedade,
como "o direito de dispor de um objeto corporal sem outra restrição além do
que a lei proíbe" (ibid.). 73. Som111e théologiq11e, 1, 96, 1, resp., e 4, resp.
71. /bid., p. 16. 74. R. Tuck, Nnruml Rights Theories, op. cit., p. 1O.
72. Sobre o poder mágico e o magnetismo natural do domador como 75. S0111111e théologiq11e, 11-11, 66, 2, resp. Cf. 1, 98, 1, sol. 3.
fonte do do111ini11111, cf. G. de Lagarde, La Naissnnce de l'esprit laiq11e nu déc/in 76. /bid., 1-U, 94, 5, sol. 3.
d11 Moyen Âge, op. cit., p. 179, nota 1. 77. lbid.
50 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A DISTINÇÃO ENTRE O DfREITO E A MORAL 51
concepção do direito das gentes com a ajuda de uma de riores serão, portanto, atribuídos segundo as regras que
finjção do jurisconsulto Gaio: "O que a razão natural es emanam da justiça particular, distributiva ou comutativa,
tabelece em todos os homens, o que todas as nações ob de sorte que a alocação das propriedades não terá de se
servam, chamamo-lo o direito das gentes."78 Nesse sen proporcionar com o bem comum.
tido, como vimos, o direito das gentes, apesar de sua ado Apesar de al gu ma flutuação no emprego das ex
ção unânime pelas nações, não depende de uma forma pressões"direito natural" e"lei natural", esse texto de To
qualquer de consentimento. más de Aquino nos permite resgatar três níveis distintos
Segu ndo Tomás de Aquino, o direito das gentes já de análise: o dominium natural, a justificação da proprie
não pode coincidir com um direito natural decadente79 • dade privada pela lei natural e a repartição jurídica dos
É em virtude de uma análise racional referente à eficácia bens privativos.
f
da cultura ou ao"pací ico uso" de um campo, que um di Não obstante, o poder sobre as coisas conferido ao
reito de propriedade sobre um lote, o poder exclusivo de indivíduo pela propriedade privada não deixa de estar
geri-lo e de dispor dele pode ser atribuído. estreitamente enquadrado pela moral, o abastado deve
Não obstante, a propriedade privada é legitimada ser animado pela virtude da justiça: "O rico não é injus
pela lei natural ou pelo direito? Se a instituição da pro to, quando, sendo o primeiro a apoderar-se da posse de
priedade procede de uma conclusão racional da lei natu um bem que era comum na origem, ele participa dele
ral, não devemos estimar que apenas uma determinação com os outros."Hº
jurídica pode presidir à distribuição das propriedades? No entanto, a disparidade dos patrimônjos entre o
De qual legitimidade dispõem os homens uma vez rico e o pobre nos põe diante de um caso hipotético ex
que se apropriam dos bens de maneira privativa? Como cepcional, em que a moral vai conseguir irrigar o direito.
vimos, Tomás de Aquino legitima a propriedade privada "Segu ndo a ordem natural estabelecida pela providência
pela consideração do bem comum da humanidade. É djvina, os seres inferiores são destinados a suprir às ne
conveniente, porém, dissociar a questão da legitimidade cessidades do homem. Eis por que os bens que algu ns
da propriedade privada daquela que se reporta à distri possuem em superabundância são devidos, de direito
buição dos bens exteriores. Se conseguirmos estabelecer natural, à alimentação dos pobres."81 Os bens deste mun
que a apropriação privativa é uma coisa legítima, sempre do devem, de todo modo, ser ordenados para as neces
faltará determinar as modalidades segu ndo as quais os sidades primordiais dos homens, bem como para o bem
bens exteriores serão recebidos em partilha. A conclusão comum da sociedade. A posse comum originária permi
racional que autoriza a repartição dos bens deverá, pois,
te restaurar um"direito natural latente"82 que fundamen-
traduzir-se em preceitos jurídicos, em regras inerentes às
relações sociais vinculadas pela igualdade. Os bens exte-
80. Somme théologiq11e, li-LI, 66, 2, sol. 2.
81. Ibid., 11-11, 66, 7, resp. Cf. M. Villey, Leçons d'histoire de la philosophie
78. lbid., 58, 3, resp. du droít, op. cit., p. 216.
79. a. J.-M. Aubert, Le Droit romnin dnns /'ceuvre de snint Thomas, op. cit., 82. J.-M. Aubert, Le Droit romnin dans l'reuvre de saint Thomas, op. cit.,
p. 117. p. 118.
50 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO A DISTINÇÃO ENTRE O DfREITO E A MORAL 51
concepção do direito das gentes com a ajuda de uma de riores serão, portanto, atribuídos segundo as regras que
finjção do jurisconsulto Gaio: "O que a razão natural es emanam da justiça particular, distributiva ou comutativa,
tabelece em todos os homens, o que todas as nações ob de sorte que a alocação das propriedades não terá de se
servam, chamamo-lo o direito das gentes."78 Nesse sen proporcionar com o bem comum.
tido, como vimos, o direito das gentes, apesar de sua ado Apesar de al gu ma flutuação no emprego das ex
ção unânime pelas nações, não depende de uma forma pressões"direito natural" e"lei natural", esse texto de To
qualquer de consentimento. más de Aquino nos permite resgatar três níveis distintos
Segu ndo Tomás de Aquino, o direito das gentes já de análise: o dominium natural, a justificação da proprie
não pode coincidir com um direito natural decadente79 • dade privada pela lei natural e a repartição jurídica dos
É em virtude de uma análise racional referente à eficácia bens privativos.
f
da cultura ou ao"pací ico uso" de um campo, que um di Não obstante, o poder sobre as coisas conferido ao
reito de propriedade sobre um lote, o poder exclusivo de indivíduo pela propriedade privada não deixa de estar
geri-lo e de dispor dele pode ser atribuído. estreitamente enquadrado pela moral, o abastado deve
Não obstante, a propriedade privada é legitimada ser animado pela virtude da justiça: "O rico não é injus
pela lei natural ou pelo direito? Se a instituição da pro to, quando, sendo o primeiro a apoderar-se da posse de
priedade procede de uma conclusão racional da lei natu um bem que era comum na origem, ele participa dele
ral, não devemos estimar que apenas uma determinação com os outros."Hº
jurídica pode presidir à distribuição das propriedades? No entanto, a disparidade dos patrimônjos entre o
De qual legitimidade dispõem os homens uma vez rico e o pobre nos põe diante de um caso hipotético ex
que se apropriam dos bens de maneira privativa? Como cepcional, em que a moral vai conseguir irrigar o direito.
vimos, Tomás de Aquino legitima a propriedade privada "Segu ndo a ordem natural estabelecida pela providência
pela consideração do bem comum da humanidade. É djvina, os seres inferiores são destinados a suprir às ne
conveniente, porém, dissociar a questão da legitimidade cessidades do homem. Eis por que os bens que algu ns
da propriedade privada daquela que se reporta à distri possuem em superabundância são devidos, de direito
buição dos bens exteriores. Se conseguirmos estabelecer natural, à alimentação dos pobres."81 Os bens deste mun
que a apropriação privativa é uma coisa legítima, sempre do devem, de todo modo, ser ordenados para as neces
faltará determinar as modalidades segu ndo as quais os sidades primordiais dos homens, bem como para o bem
bens exteriores serão recebidos em partilha. A conclusão comum da sociedade. A posse comum originária permi
racional que autoriza a repartição dos bens deverá, pois,
te restaurar um"direito natural latente"82 que fundamen-
traduzir-se em preceitos jurídicos, em regras inerentes às
relações sociais vinculadas pela igualdade. Os bens exte-
80. Somme théologiq11e, li-LI, 66, 2, sol. 2.
81. Ibid., 11-11, 66, 7, resp. Cf. M. Villey, Leçons d'histoire de la philosophie
78. lbid., 58, 3, resp. du droít, op. cit., p. 216.
79. a. J.-M. Aubert, Le Droit romnin dnns /'ceuvre de snint Thomas, op. cit., 82. J.-M. Aubert, Le Droit romnin dans l'reuvre de saint Thomas, op. cit.,
p. 117. p. 118.
52 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO
respeito deles, depara com dificuldades quase insuperá maneiras pelas quais podemos exercer nosso dominium
veis: será possível usar perpetuamente uma coisa, ou con natura1 13, cada um é, portanto, perfeitamente livre para
sumir bens consumíveis, sem ser realmente proprietário renunciar a ele.-Depois da queda, cada homem recebeu,
deles?8 de fato, em virtude do jus poli, um poder de apropriação
É empenhando-se em defender esse voto de pobre ajustado ao estado de decadência.
za, que supõe a dissociação entre o uso de uma coisa e o Em compensação, se paramos de apreender a posse
direito de propriedade detido sobre ela, que Guilherme de um bem segundo o jus poli, mas nos referimos ao "di
de Oc.kham vai elaborar a noção de direito subjetivo. "Di reito da praça pública (jus fon)", este pode ser visto como
zer, de fato, como faz João XXII, que [... ] não é possível um direito subjetivo de propriedade, como um "poder de
distinguri entre o uso e o domínio senhorial (dominium) usar a coisa (jus utendi); garantido por uma aptidão para
entendido como propriedade, é uma heresia manifesta." 9 defender essa posse em justiça, tal como é outorgada por
Segundo Ockham, a posse de um mesmo bem pode uma lei humana 14• Enquanto a sanção do direito do céu
ser encarada sob dois ângulos diferentes. À primeira vis
é deixada ao arbítrio divino, o jus fori é verdadeiramente
ta, é manifesto que todos os homens receberam a per
protegido por sentenças executórias, garantidas por for
missão de desfrutá-los por intervenção de uma conces
ça pública. O direito, apreendido nessa nova acepção,
são divina. O direito do céu (jus poli) gratifica cada ho
mem, em virtude da superioridade natural, que sua ra não coincide, pois, com uma mera permissão de usar, re
zão lhe confere, de poder desfrutar os bens exteriores e sultante de uma repartição justa, mas se apresenta como
consumi-los10. Os franciscanos reivindicam simplesmen um poder exclusivo sobre uma coisa, preservado por uma
te a detenção desse dominium natural sobre as coisas, lei positiva e cuja violação é acompanhada de sanções.
que almejam exercer em comum11 a fim de suspender os No âmbito do jus fori, cada indivíduo vê, pois, reconhe
efeitos devastadores da queda original, que forçou os ho cido seu poder de exigir a proteção de seus bens peran
mens a desfrutar o poder deles sobre as coisas de manei te um tribuna1 15 . Ninguém deve, portanto, dispor do di
ra privativa 12• A apropriação privada é apenas uma das reito de se opor aos poderes que foram legalmente con
cedidos.
8. Sobre a questão do usufruto dos bens fungíveis, cf. Tomás de Aquino,
Enquanto Tomás de Aquino considera que o domi
S0111111e théologique, LI-Il, 78, 1. nium natural e o direito natural pertencem a duas ordens
9. Court Trai/é du pouvoir tyra1111iq11e, ITI, 9, p. 212. independentes, segundo Ockham o direito subjetivo de
1 O. "Jus 1111te111 poli non est aliud quam potes/as co11formis mtioni rectae"
(Opus 1101111gint11 diemm, cap. 65), M. Villey, Ln Fon1111tion de /11 penséejuridique 1110- propriedade provém da maneira pela qual o dominium
deme, op. cit., p. 251; M. Bastit, Naissance de /11 /oi moderne, op. cit., p. 251.
11. É importante operar uma distinção entre o uso em comum de bens
pertencentes a todos, relativo ao estado de inocência, e a propriedade coleti 13. Ibid., p. 274.
va tal como foi particularmente adotada pela ordem dominicana. Sobre a con 14. '711s utendi est potes/as licita 11te11di re extri11sec11, q1111 quis sine culpa et
tradição inerente à noção de propriedade coletiva aplicada ao estado de ino absque causa mtio11abili privari 11011 debet invitus, et si privatus fuerit, priv11nte111
cência, cf. Lockc, Second Trai/é du gouvemement civil, V, 25. poterit in judicio convenire" (Opus 11011agi11tn diemm, cap. 2).
12. Court Traité du pouvoir tyrmmiq11e, IH, 7, p. 207. Cf. M. Bastit, Naissan 15. Opus 1101111gi11t11 dim1111, cap. 6, citado por M. Bastit, Nniss1111ce de la /oi
ce de la /oi modeme, op. cit., pp. 272-3. modeme, op. cit., p. 262.
56 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO O ADVENTO DO DIREITO SUBJETIVO: GUILHERME DE OCKHAM 57
respeito deles, depara com dificuldades quase insuperá maneiras pelas quais podemos exercer nosso dominium
veis: será possível usar perpetuamente uma coisa, ou con natura1 13, cada um é, portanto, perfeitamente livre para
sumir bens consumíveis, sem ser realmente proprietário renunciar a ele.-Depois da queda, cada homem recebeu,
deles?8 de fato, em virtude do jus poli, um poder de apropriação
É empenhando-se em defender esse voto de pobre ajustado ao estado de decadência.
za, que supõe a dissociação entre o uso de uma coisa e o Em compensação, se paramos de apreender a posse
direito de propriedade detido sobre ela, que Guilherme de um bem segundo o jus poli, mas nos referimos ao "di
de Oc.kham vai elaborar a noção de direito subjetivo. "Di reito da praça pública (jus fon)", este pode ser visto como
zer, de fato, como faz João XXII, que [... ] não é possível um direito subjetivo de propriedade, como um "poder de
distinguri entre o uso e o domínio senhorial (dominium) usar a coisa (jus utendi); garantido por uma aptidão para
entendido como propriedade, é uma heresia manifesta." 9 defender essa posse em justiça, tal como é outorgada por
Segundo Ockham, a posse de um mesmo bem pode uma lei humana 14• Enquanto a sanção do direito do céu
ser encarada sob dois ângulos diferentes. À primeira vis
é deixada ao arbítrio divino, o jus fori é verdadeiramente
ta, é manifesto que todos os homens receberam a per
protegido por sentenças executórias, garantidas por for
missão de desfrutá-los por intervenção de uma conces
ça pública. O direito, apreendido nessa nova acepção,
são divina. O direito do céu (jus poli) gratifica cada ho
mem, em virtude da superioridade natural, que sua ra não coincide, pois, com uma mera permissão de usar, re
zão lhe confere, de poder desfrutar os bens exteriores e sultante de uma repartição justa, mas se apresenta como
consumi-los10. Os franciscanos reivindicam simplesmen um poder exclusivo sobre uma coisa, preservado por uma
te a detenção desse dominium natural sobre as coisas, lei positiva e cuja violação é acompanhada de sanções.
que almejam exercer em comum11 a fim de suspender os No âmbito do jus fori, cada indivíduo vê, pois, reconhe
efeitos devastadores da queda original, que forçou os ho cido seu poder de exigir a proteção de seus bens peran
mens a desfrutar o poder deles sobre as coisas de manei te um tribuna1 15 . Ninguém deve, portanto, dispor do di
ra privativa 12• A apropriação privada é apenas uma das reito de se opor aos poderes que foram legalmente con
cedidos.
8. Sobre a questão do usufruto dos bens fungíveis, cf. Tomás de Aquino,
Enquanto Tomás de Aquino considera que o domi
S0111111e théologique, LI-Il, 78, 1. nium natural e o direito natural pertencem a duas ordens
9. Court Trai/é du pouvoir tyra1111iq11e, ITI, 9, p. 212. independentes, segundo Ockham o direito subjetivo de
1 O. "Jus 1111te111 poli non est aliud quam potes/as co11formis mtioni rectae"
(Opus 1101111gint11 diemm, cap. 65), M. Villey, Ln Fon1111tion de /11 penséejuridique 1110- propriedade provém da maneira pela qual o dominium
deme, op. cit., p. 251; M. Bastit, Naissance de /11 /oi moderne, op. cit., p. 251.
11. É importante operar uma distinção entre o uso em comum de bens
pertencentes a todos, relativo ao estado de inocência, e a propriedade coleti 13. Ibid., p. 274.
va tal como foi particularmente adotada pela ordem dominicana. Sobre a con 14. '711s utendi est potes/as licita 11te11di re extri11sec11, q1111 quis sine culpa et
tradição inerente à noção de propriedade coletiva aplicada ao estado de ino absque causa mtio11abili privari 11011 debet invitus, et si privatus fuerit, priv11nte111
cência, cf. Lockc, Second Trai/é du gouvemement civil, V, 25. poterit in judicio convenire" (Opus 11011agi11tn diemm, cap. 2).
12. Court Traité du pouvoir tyrmmiq11e, IH, 7, p. 207. Cf. M. Bastit, Naissan 15. Opus 1101111gi11t11 dim1111, cap. 6, citado por M. Bastit, Nniss1111ce de la /oi
ce de la /oi modeme, op. cit., pp. 272-3. modeme, op. cit., p. 262.
58 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO O ADVENTO DO DIREITO SUBJETTVO: GUILHERME DE OCKHAM 59
natural de cada um sobre as coisas foi modificado, por lutas, suas diferentes formas de relação não poderiam
uma série de leis positivas, num poder privativo de des constituir realidade nenhuma, mas encontram-se sim
frutar seu bem e defendê-lo na justiça. Embora o direi plesmente conotadas por termos, signos relativos. Por
to positivo não seja natural, porquanto procede de uma tanto, não existe nenhuma ordem natural, que pudésse
lei positiva, ele deriva, ainda assim, de um poder natura] mos depreender, cujo ser se sobreporia aos elementos or
de dominação que Deus concedeu a cada homem em vir denados 18. A concepção, que se encontra no fundamen
tude de seu ser racional16 • to da moral tomista, de uma ordem natural ligada pela
Portanto, fica evidente, segundo Ockham, que a licen finalidade, de uma relação racional dos atos dos homens
ça conferida aos franciscanos, de usar bens consumptí com os fins de sua natureza, é diretamente recusada por
veis ou de obter o usufruto de bens imóveis, é perfeita Ockham.
mente conciliável com a aspiração deles a se abster de A primazia conferida por Tomás de Aquino à ordem
toda forma de propriedade. Cristo e os apóstolos não natural, à esfera das causas instrumentais e secundárias,
renunciaram ao ato de usar uma coisa exterior, como equivaleria, de fato, a minar a onipotência de Deus. Se
alojar-se, nutrir-se, vestir-se, mas simplesmente ao po Ockham adota a distinção tomista entre a potência abso
der, concedido por uma lei positiva, de trocar ou de alie luta de Deus e sua potência ordenada19 é para melhor
nar esses bens. Ao passo que a licença é revogável pelo subvertê-la do interior 20 • Não é possível subordinar a
doador, o direito é irrevogável sem o consentimento do vontade de Deus à ordem do bem, ela é absolutamente
titular. insondável para a luz natural. Os milagres, meros objetos
de crença, trazem a prova de que Deus pode suspender a
ordem das·causas naturais e secundárias a todo instante.
A moral nominalista A providência de Deus no mundo não se exerce de ma
neira imanente conduzindo os seres para o fim atribuído
Fica claro, então, que a elaboração do conceito de pela natureza deles, mas o domínio de sua potência ab
direito objetivo decorre das premissas metafísicas do no soluta é tamanho que cada coisa natural se reduz ao es
minalismo. Ockham se empenha, de fato, em salientar o tado presente de sua vontade, a cada instante ela é pas
caráter puramente nominal da categoria aristotélica de sível de uma criação ou de uma aniquilação fuJminante21 •
relação 17 • Essa categoria já não é um gênero do ser; en O reconhecimento da potência absoluta de Deus
contramos, no real, apenas substâncias singulares abso- permite, portanto, libertar o indivíduo das formas desper
sonalizantes que o encerram - a ordem natural das cau-
16. "Tanto o domínio comum a todo o gênero humano quanto esse poder
de apropriação das coisas temporais foram introduzidos pelo direito de Deus,
por uma concessão particular de Deus" (Court Trai/é du pouvoir tyrannique, lll, 7, 18. Sentences, 1, dist. XXX, qu. 1; Quodlibeta, Vil, qu. 13.
p. 208). Segundo R.Tuck, a dimensão ativa do direito não estaria vinculada à in 19. Somme théologique, 1, 25, 5, sol. 1.
tegração da noção de poder na esfera jurídica, como sugere M. Villey, mas aos 20. Quodlibeta,VI, qu. 1.
recursos do conceito de dominium (Nnh1ml Rights Theories, op. cit., p. 23). 21. Sentences, l, dist. n, qu. 5. Cf. P. Alféri, Guillm1111e d'Ockhnm, /e singu
17. Somme logique, trad. fr. J. Biard, Mauvezin, Ed. TER, 1993, 1, cap. 49. lier, Paris, Minuit, 1989.
58 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO O ADVENTO DO DIREITO SUBJETTVO: GUILHERME DE OCKHAM 59
natural de cada um sobre as coisas foi modificado, por lutas, suas diferentes formas de relação não poderiam
uma série de leis positivas, num poder privativo de des constituir realidade nenhuma, mas encontram-se sim
frutar seu bem e defendê-lo na justiça. Embora o direi plesmente conotadas por termos, signos relativos. Por
to positivo não seja natural, porquanto procede de uma tanto, não existe nenhuma ordem natural, que pudésse
lei positiva, ele deriva, ainda assim, de um poder natura] mos depreender, cujo ser se sobreporia aos elementos or
de dominação que Deus concedeu a cada homem em vir denados 18. A concepção, que se encontra no fundamen
tude de seu ser racional16 • to da moral tomista, de uma ordem natural ligada pela
Portanto, fica evidente, segundo Ockham, que a licen finalidade, de uma relação racional dos atos dos homens
ça conferida aos franciscanos, de usar bens consumptí com os fins de sua natureza, é diretamente recusada por
veis ou de obter o usufruto de bens imóveis, é perfeita Ockham.
mente conciliável com a aspiração deles a se abster de A primazia conferida por Tomás de Aquino à ordem
toda forma de propriedade. Cristo e os apóstolos não natural, à esfera das causas instrumentais e secundárias,
renunciaram ao ato de usar uma coisa exterior, como equivaleria, de fato, a minar a onipotência de Deus. Se
alojar-se, nutrir-se, vestir-se, mas simplesmente ao po Ockham adota a distinção tomista entre a potência abso
der, concedido por uma lei positiva, de trocar ou de alie luta de Deus e sua potência ordenada19 é para melhor
nar esses bens. Ao passo que a licença é revogável pelo subvertê-la do interior 20 • Não é possível subordinar a
doador, o direito é irrevogável sem o consentimento do vontade de Deus à ordem do bem, ela é absolutamente
titular. insondável para a luz natural. Os milagres, meros objetos
de crença, trazem a prova de que Deus pode suspender a
ordem das·causas naturais e secundárias a todo instante.
A moral nominalista A providência de Deus no mundo não se exerce de ma
neira imanente conduzindo os seres para o fim atribuído
Fica claro, então, que a elaboração do conceito de pela natureza deles, mas o domínio de sua potência ab
direito objetivo decorre das premissas metafísicas do no soluta é tamanho que cada coisa natural se reduz ao es
minalismo. Ockham se empenha, de fato, em salientar o tado presente de sua vontade, a cada instante ela é pas
caráter puramente nominal da categoria aristotélica de sível de uma criação ou de uma aniquilação fuJminante21 •
relação 17 • Essa categoria já não é um gênero do ser; en O reconhecimento da potência absoluta de Deus
contramos, no real, apenas substâncias singulares abso- permite, portanto, libertar o indivíduo das formas desper
sonalizantes que o encerram - a ordem natural das cau-
16. "Tanto o domínio comum a todo o gênero humano quanto esse poder
de apropriação das coisas temporais foram introduzidos pelo direito de Deus,
por uma concessão particular de Deus" (Court Trai/é du pouvoir tyrannique, lll, 7, 18. Sentences, 1, dist. XXX, qu. 1; Quodlibeta, Vil, qu. 13.
p. 208). Segundo R.Tuck, a dimensão ativa do direito não estaria vinculada à in 19. Somme théologique, 1, 25, 5, sol. 1.
tegração da noção de poder na esfera jurídica, como sugere M. Villey, mas aos 20. Quodlibeta,VI, qu. 1.
recursos do conceito de dominium (Nnh1ml Rights Theories, op. cit., p. 23). 21. Sentences, l, dist. n, qu. 5. Cf. P. Alféri, Guillm1111e d'Ockhnm, /e singu
17. Somme logique, trad. fr. J. Biard, Mauvezin, Ed. TER, 1993, 1, cap. 49. lier, Paris, Minuit, 1989.
60 I
GENEALOGIA DO DIRE TO MODENO
R
em nossa aptidão para romper com elas, a fim de nos bondade intrínseca do fim atribuído por ele. Os precei
submeter melhor aos mandamentos divinos. A moral no tos do Decálogo só são bons porque foram prescritos e
minalista chega, pois, à conclusão de que o "bem expres não impostos em razão da bondade deles28 • A lei natural
sa simplesmente o encontro entre um ser livre e um pre já não é a regra racional inerente a uma inclinação natu
ceito exterior"26. ral, mas parece coincidir com um mandamento divino
Os preceitos promulgados por Deus não são de positivo. A imutabilidade da lei natural depende da cons
modo al gu m marcados de uma necessidade que ema tância do decreto divino.
naria da essência divina, permanecem radicalmente ar Mas Ockham vai imprimir a essa reflexão moral
bitrários, expressando simplesmente o estado atual de uma inflexão decisiva. Seria errôneo estimar que ele se
sua vontade. Num texto célebre, Ockham salienta, as dedica a reduzir a moralidade natural a uma soma de
sim, que o ódio ao próximo, o roubo, o adultério, pode mandamentos divinos arbitrários. Pois é precisamente
em nome de uma injunção divina que os homens são
riam constituir atos meritórios se Deus o decidisse, dada
forçados a submeter sua vontade aos mandamentos que
a sua potência absoluta. Assim também, se, de acordo
emanam da reta razão deles. O critério da moralidade
com a religião revelada, o amor a Deus deve ser o fim
natural se toma assim formal, a matéria do ato realizado
cabal da humanidade, essa potência absoluta poderia
não concorre em absoluto para a sua virtude. O que im
conduzir a vontade humana a uma total indiferença acer
porta é que esse ato manifesta uma subordinação infalí
ca dos diversos meios para alcançar esse fim27 • A teleo
vel à reta razão29 • Quer o homem subordine sua vontade
logia natural já não está, portanto, no princípio da mo
aos mandamentos divinos ou aos imperativos da reta ra
ralidade, já não se trata de identificar as diferentes vir
zão, a moralidade de sua ação reside estritamente nesse
tudes ou disposições que chegam a realizar os fins da
ato formal de submissão, independentemente do con
natureza humana.
teúdo da ação realizada. "O homem virtuoso é o homem
Se a vontade humana é, por si só, indiferente a qual que decide de uma vez por todas amar a Deus acima de
quer fim, unicamente um mandamento imposto do ex todas as coisas, ou obedecer cegamente às ordens da
terior pode fixar as condições do ato moral. Portanto, o reta razão." 30
ato moral está separado, pela potência absoluta de Deus,
das tendências do agente, ele supõe a imposição a uma
28. Sentences, m, dist. 37, qu. 4; 11, qu. 19, sois. 3 e 4. Segundo Tomás de
vontade livre e indiferente de um mandamento trans Aquino, é somente se nos referimos ao direito positivo que podemos afirmar,
cendente. Segundo Ockham, o princípio de obrigação em certos casos, que uma coisa não é má porque proibida. Em compensação,
moral decorre apenas do mandamento divino e não da segu ndo a lei natural, "o pecado é sempre mau porque proibido"(Somme théo
logique, 1-11, 71, 6, sol. 4).
29. Sentences, III, qu. 12, 111, citado por G. de Lagarde, La Naissance de
/'esprit laique au déclin du Moyen Age, op. cit., p. 75, nota 57. Talvez devamos ver
26. G. de Lagarde, La Naissance de l'esprit laique au déclin du Moyen Age,
aí uma das fontes da célebre análise proposta por Kant em Fundamentos da
op. cit., p. 55.
metafísica dos costumes?
27. Sentences, N, qu. 14. "Se alguém vem a mim, e não odeia o pai e a
30. G. de Lagarde, La Naissance de l'esprit laique ai, déclin du Moyen Age,
mãe, a mulher, os filhos, os innãos e as innãs, e mesmo sua própria vida, ele
op. cit., p. 78.
não pode ser meu discípulo" (Lucas 14, 26). Cf. Suarez, De legibus, U, 6, 4, p. 430.
62 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO
I
O ADVENTO DO DIRETO SUBJETNO: GUILHERME DE OCKHAM 63
em nossa aptidão para romper com elas, a fim de nos bondade intrínseca do fim atribuído por ele. Os precei
submeter melhor aos mandamentos divinos. A moral no tos do Decálogo só são bons porque foram prescritos e
minalista chega, pois, à conclusão de que o "bem expres não impostos em razão da bondade deles28 • A lei natural
sa simplesmente o encontro entre um ser livre e um pre já não é a regra racional inerente a uma inclinação natu
ceito exterior"26. ral, mas parece coincidir com um mandamento divino
Os preceitos promulgados por Deus não são de positivo. A imutabilidade da lei natural depende da cons
modo al gu m marcados de uma necessidade que ema tância do decreto divino.
naria da essência divina, permanecem radicalmente ar Mas Ockham vai imprimir a essa reflexão moral
bitrários, expressando simplesmente o estado atual de uma inflexão decisiva. Seria errôneo estimar que ele se
sua vontade. Num texto célebre, Ockham salienta, as dedica a reduzir a moralidade natural a uma soma de
sim, que o ódio ao próximo, o roubo, o adultério, pode mandamentos divinos arbitrários. Pois é precisamente
em nome de uma injunção divina que os homens são
riam constituir atos meritórios se Deus o decidisse, dada
forçados a submeter sua vontade aos mandamentos que
a sua potência absoluta. Assim também, se, de acordo
emanam da reta razão deles. O critério da moralidade
com a religião revelada, o amor a Deus deve ser o fim
natural se toma assim formal, a matéria do ato realizado
cabal da humanidade, essa potência absoluta poderia
não concorre em absoluto para a sua virtude. O que im
conduzir a vontade humana a uma total indiferença acer
porta é que esse ato manifesta uma subordinação infalí
ca dos diversos meios para alcançar esse fim27 • A teleo
vel à reta razão29 • Quer o homem subordine sua vontade
logia natural já não está, portanto, no princípio da mo
aos mandamentos divinos ou aos imperativos da reta ra
ralidade, já não se trata de identificar as diferentes vir
zão, a moralidade de sua ação reside estritamente nesse
tudes ou disposições que chegam a realizar os fins da
ato formal de submissão, independentemente do con
natureza humana.
teúdo da ação realizada. "O homem virtuoso é o homem
Se a vontade humana é, por si só, indiferente a qual que decide de uma vez por todas amar a Deus acima de
quer fim, unicamente um mandamento imposto do ex todas as coisas, ou obedecer cegamente às ordens da
terior pode fixar as condições do ato moral. Portanto, o reta razão." 30
ato moral está separado, pela potência absoluta de Deus,
das tendências do agente, ele supõe a imposição a uma
28. Sentences, m, dist. 37, qu. 4; 11, qu. 19, sois. 3 e 4. Segundo Tomás de
vontade livre e indiferente de um mandamento trans Aquino, é somente se nos referimos ao direito positivo que podemos afirmar,
cendente. Segundo Ockham, o princípio de obrigação em certos casos, que uma coisa não é má porque proibida. Em compensação,
moral decorre apenas do mandamento divino e não da segu ndo a lei natural, "o pecado é sempre mau porque proibido"(Somme théo
logique, 1-11, 71, 6, sol. 4).
29. Sentences, III, qu. 12, 111, citado por G. de Lagarde, La Naissance de
/'esprit laique au déclin du Moyen Age, op. cit., p. 75, nota 57. Talvez devamos ver
26. G. de Lagarde, La Naissance de l'esprit laique au déclin du Moyen Age,
aí uma das fontes da célebre análise proposta por Kant em Fundamentos da
op. cit., p. 55.
metafísica dos costumes?
27. Sentences, N, qu. 14. "Se alguém vem a mim, e não odeia o pai e a
30. G. de Lagarde, La Naissance de l'esprit laique ai, déclin du Moyen Age,
mãe, a mulher, os filhos, os innãos e as innãs, e mesmo sua própria vida, ele
op. cit., p. 78.
não pode ser meu discípulo" (Lucas 14, 26). Cf. Suarez, De legibus, U, 6, 4, p. 430.
64 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO O ADVENTO DO DIREITO SUBJETIVO: GWLHERME DE OCKHAM 65
Compreende-se assim que a lei natural, concebida privilegiar os atos interiores da vontade, mas trata-se
como o conjunto dos imperativos da razão humana, não também de reconhecer que urna intenção corno a de dar
seja atingida por urna contingência superior àquela da uma esmola só reveste uma dimensão moral por sua
natureza humana. A lei natural corresponde a um esta submissão ao imperativo da razão.
do arbitrário da vontade divina, que se impõe absoluta Tal restrição do campo de aplicação dos imperativos
mente enquanto Deus não se resolve a criar urna nova morais, dos preceitos da lei natural, não favorece a su
natureza humana31 . bordinação das leis positivas à moral. As situações hi
O nominalismo de Ockharn concede, então, à razão potéticas em que se poderia declarar urna lei positiva in
humana urna autonomia superior àquela conferida pela justa porque infringe, de maneira manifesta, um manda
moral tomista, que a subordina à primazia de urna ordem mento moral, parecem excepcionais34 . A extensão do
natural dotada de urna finalidade latente. Ockharn pode, campo dos atos indiferentes vai, portanto, aumentar a au
assim, rematar a reviravolta de perspectiva já iniciada, tonomia do direito positivo em relação à esfera moral.
afirmando que os imperativos da reta razão constituem o
cerne da lei divina positiva. A evidência racional inerente
às injunções da reta razão consegue reforçar os manda A dedução do direito subjetivo
mentos positivos que provêm simplesmente de uma re
É no âmago do silêncio dos mandamentos divinos
velação expressa. Os preceitos divinos corroborados pela
positivos ou dos imperativos raciocinais, inaptos para di
reta razão são absolutos e imutáveis, comuns a todas as
rimir o conjunto dos litígios inerentes à vida social, que
nações, ao passo que os que retiram sua legitimidade de
o homem descobre a soberania de que é portador: "O di
sua mera promulga ção sofrem certo número de exceções32 •
reito divino e natural confere aos homens o poder de es
Essa nova concepção da moral vai permitir restrin
tabelecer juízes e governadores que possuem o poder de
gir-lhe o campo de aplicação e aumentar, em compara coagir aqueles que lhes são sujeitos."35 O direito subjeti
ção com a moral tomista, o campo dos atos indiferen vo de Deus concede, pois, a cada indivíduo, fiel ou in
tes."Todo ato individual proveniente de uma deliberação fieP6, por urna delegação de soberania, o poder de insti
da razão é necessariamente bom ou rnau." 33 Segundo tuir urna jurisdição temporal37. A relação imediata que cada
Ockham, ao contrário, existem atos racionais moralmen
te indiferentes. O ato moral se concentra na intenção de
34. G. de Lagarde, ÚI Naissance de l'esprit /aiq11e a11 déclin du Moyen Age,
obedecer à reta razão. Não importa somente considerar op. cit., pp. 156-7 e 171-2.
que os atos exteriores são moralmente indiferentes para 35. Co11rt Trai/é du pouvoir tyrannique, m, 11, p. 215; IV, 10, p. 257.
36. "O duplo poder que acabamos de tratar (a saber, o poder de se apro
priar das coisas temporais e de estabelecer governadores dotados de jurisdição)
31. lbid., pp. 113-4. é dado por Deus de maneira imediata, não somente aos fiéis, mas igualmente
32. lbid., p. 138. aos infiéis" (Court Traité d11 pouvoir tyrannique, [li, 8, p. 210; IV, 10, p. 258).
33. Tomás de Aquino, Somme théologique, 1-11, 18, 9, resp. Mas "outros 37. "No tocante à jurisdição temporal considerada cm sua acepção pró
atos[ ...] são indiferentes segundo seu gênero; a lei tem a função de penniti-los" pria [ ...] que significa um poder de governar e de coagir os outros na medida
(ibid., 92, 2, resp.). cm são sujeitos" (ibid., Ili, 11, p. 214).
64 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO O ADVENTO DO DIREITO SUBJETIVO: GWLHERME DE OCKHAM 65
Compreende-se assim que a lei natural, concebida privilegiar os atos interiores da vontade, mas trata-se
como o conjunto dos imperativos da razão humana, não também de reconhecer que urna intenção corno a de dar
seja atingida por urna contingência superior àquela da uma esmola só reveste uma dimensão moral por sua
natureza humana. A lei natural corresponde a um esta submissão ao imperativo da razão.
do arbitrário da vontade divina, que se impõe absoluta Tal restrição do campo de aplicação dos imperativos
mente enquanto Deus não se resolve a criar urna nova morais, dos preceitos da lei natural, não favorece a su
natureza humana31 . bordinação das leis positivas à moral. As situações hi
O nominalismo de Ockharn concede, então, à razão potéticas em que se poderia declarar urna lei positiva in
humana urna autonomia superior àquela conferida pela justa porque infringe, de maneira manifesta, um manda
moral tomista, que a subordina à primazia de urna ordem mento moral, parecem excepcionais34 . A extensão do
natural dotada de urna finalidade latente. Ockharn pode, campo dos atos indiferentes vai, portanto, aumentar a au
assim, rematar a reviravolta de perspectiva já iniciada, tonomia do direito positivo em relação à esfera moral.
afirmando que os imperativos da reta razão constituem o
cerne da lei divina positiva. A evidência racional inerente
às injunções da reta razão consegue reforçar os manda A dedução do direito subjetivo
mentos positivos que provêm simplesmente de uma re
É no âmago do silêncio dos mandamentos divinos
velação expressa. Os preceitos divinos corroborados pela
positivos ou dos imperativos raciocinais, inaptos para di
reta razão são absolutos e imutáveis, comuns a todas as
rimir o conjunto dos litígios inerentes à vida social, que
nações, ao passo que os que retiram sua legitimidade de
o homem descobre a soberania de que é portador: "O di
sua mera promulga ção sofrem certo número de exceções32 •
reito divino e natural confere aos homens o poder de es
Essa nova concepção da moral vai permitir restrin
tabelecer juízes e governadores que possuem o poder de
gir-lhe o campo de aplicação e aumentar, em compara coagir aqueles que lhes são sujeitos."35 O direito subjeti
ção com a moral tomista, o campo dos atos indiferen vo de Deus concede, pois, a cada indivíduo, fiel ou in
tes."Todo ato individual proveniente de uma deliberação fieP6, por urna delegação de soberania, o poder de insti
da razão é necessariamente bom ou rnau." 33 Segundo tuir urna jurisdição temporal37. A relação imediata que cada
Ockham, ao contrário, existem atos racionais moralmen
te indiferentes. O ato moral se concentra na intenção de
34. G. de Lagarde, ÚI Naissance de l'esprit /aiq11e a11 déclin du Moyen Age,
obedecer à reta razão. Não importa somente considerar op. cit., pp. 156-7 e 171-2.
que os atos exteriores são moralmente indiferentes para 35. Co11rt Trai/é du pouvoir tyrannique, m, 11, p. 215; IV, 10, p. 257.
36. "O duplo poder que acabamos de tratar (a saber, o poder de se apro
priar das coisas temporais e de estabelecer governadores dotados de jurisdição)
31. lbid., pp. 113-4. é dado por Deus de maneira imediata, não somente aos fiéis, mas igualmente
32. lbid., p. 138. aos infiéis" (Court Traité d11 pouvoir tyrannique, [li, 8, p. 210; IV, 10, p. 258).
33. Tomás de Aquino, Somme théologique, 1-11, 18, 9, resp. Mas "outros 37. "No tocante à jurisdição temporal considerada cm sua acepção pró
atos[ ...] são indiferentes segundo seu gênero; a lei tem a função de penniti-los" pria [ ...] que significa um poder de governar e de coagir os outros na medida
(ibid., 92, 2, resp.). cm são sujeitos" (ibid., Ili, 11, p. 214).
66 GENEALOGIA DO DfREITO MODERNO O ADVENTO DO DTREITO SUBJETTVO: GWLHERME DE OCKHAM 67
indivíduo mantém com a potência absoluta de Deus o gundo Tomás de Aquino, sempre é, ao contrário, a partir
investe legitimamente de uma parcela de soberania, de da relação existente entre bens exteriores que se conse
um poder constituinte311 • gue apreender uma relação social entre dois indivíduos.
O "poder de se apropriar das coisas temporais" e o A relação entre os bens exteriores não é estritamente re
"poder de estabelecer uma jurisdição", autorizados pelo presentativa, é independente do consentimento das par
direito do céu, parecem, portanto, proceder de uma fon tes, mas ancorada numa relação de igualdade objetiva.
te comum, o dominium, a dominação natural que cada Enquanto, segndou
a perspectiva tomista, sempre é
homem exerce sobre seus próprios atos39 • A partir dai, o a partir de uma repartição igual dos bens que um indiví
direito é inerente ao sujeito, é a expressão do poder na duo se vê dotado de uma capacidade efetiva de agir, a
tural de sua vontade, de sua liberdade de indiferença40 • ancoragem do direito subjetivo no dominium natural au
A rejeição da categoria da relação invalida também toriza Ockham a fazer do indivíduo, por si só, um sujei
qualquer dedução do direito a partir da igualdade ima to de direito. O direito já não é concebido como uma re
nente a uma relação social. Segundo Ockham, se a rela lação entre indivíduos, pela qual se tenta igualar as rela
ção fosse real, sobreposta às entidades que ela une, ela ções entre as pessoas pela repartição dos bens exteriores.
poderia então ser estabelecida independentemente des Mas o direito é diretamente inferido da vontade de um
tas41 . Da mesma forma que a paternidade poderia ser indivíduo, indiferente a qualquer fim. A ordem social é,
concedida a um homem que nunca gerou, ou o estatuto portanto, reconstruída a partir de uma soma de domí
de escravo outorgado a um senhor, a igualdade se impo nios individuais, de direitos subjetivos, cuja coexistência
ria independentemente dos sujeitos postos em relação. o poder temporal tenta assegurar. A justiça de uma rela
A igualdade atuante numa relação social já não encon ção social se reduz ao consentimento das partes ou aos
traria seu fundamento nos direitos individuais cujas re juramentos de fidelidade a que elas se prestam42.
lações convém ajustar a partir apenas do consentimento Assim, a soberania política já não se impõe natural
das partes. Apenas os poderes jurídicos que emanam mente para orientar uma multidão desunida para a bus
dos indivíduos podem ser objeto de uma correlação ex ca do bem comum, mas procede do consentimento pelo
terior, inspirada pela exigência de reciprocidade. Ora, se- qual homens reunidos transferem a autoridade de que
foram investidos por Deus. "O poder de criar leis e direi
38. "O 'direito subjetivo' é um produto da onipotência divina.[ ... ] Deus tos humanos de início pertenceu essencialmente ao povo.
concedeu a todos os homens o dominium, ou dominação sobre as aiaturas in
feriores" (M. Villley, Le Droit et Ies droits de l'homme, Paris, PUF, 1983, p. 123). Depois, o povo transferiu esse poder de fazer leis [... ]."43
39."Existe uma distinção entre o domínio senhorial próprio e o poder de Estabelece-se assim uma correlação essencial entre o ad-
se apropriar das coisas temporais[ ... ] assim também, entre o poder de estabe
lecer uma jurisdição e essa própria jurisdição" (Court Traité du pouvoir tymnni
que, UI, 9, p. 211). r
42. Segundo M. Villey, o advento do direito subjetivo traduz "o espíito
40. Segundo a formulação de M. Villey, a invenção do direito subjetivo dos homens da Idade Média", as aspirações da sociedade feudal (La Fonnation
equivale a"desnaturar a rela ção em poder unilateral" (Essais de philosophie du de la pensée juridique moderne, op. cit., p. 266; G. de Lagarde, La Naissance de
droit, op. cit., p. 156). l'esprit laique au déclin du Moyen Age, op. cit., VI, pp. 200-2).
41. Somme de logique, op. cit., cap. 50, pp. 166-7. 43. Court Traité du pouvoir tymnnique, UI, 14, p. 222.
66 GENEALOGIA DO DfREITO MODERNO O ADVENTO DO DTREITO SUBJETTVO: GWLHERME DE OCKHAM 67
indivíduo mantém com a potência absoluta de Deus o gundo Tomás de Aquino, sempre é, ao contrário, a partir
investe legitimamente de uma parcela de soberania, de da relação existente entre bens exteriores que se conse
um poder constituinte311 • gue apreender uma relação social entre dois indivíduos.
O "poder de se apropriar das coisas temporais" e o A relação entre os bens exteriores não é estritamente re
"poder de estabelecer uma jurisdição", autorizados pelo presentativa, é independente do consentimento das par
direito do céu, parecem, portanto, proceder de uma fon tes, mas ancorada numa relação de igualdade objetiva.
te comum, o dominium, a dominação natural que cada Enquanto, segndou
a perspectiva tomista, sempre é
homem exerce sobre seus próprios atos39 • A partir dai, o a partir de uma repartição igual dos bens que um indiví
direito é inerente ao sujeito, é a expressão do poder na duo se vê dotado de uma capacidade efetiva de agir, a
tural de sua vontade, de sua liberdade de indiferença40 • ancoragem do direito subjetivo no dominium natural au
A rejeição da categoria da relação invalida também toriza Ockham a fazer do indivíduo, por si só, um sujei
qualquer dedução do direito a partir da igualdade ima to de direito. O direito já não é concebido como uma re
nente a uma relação social. Segundo Ockham, se a rela lação entre indivíduos, pela qual se tenta igualar as rela
ção fosse real, sobreposta às entidades que ela une, ela ções entre as pessoas pela repartição dos bens exteriores.
poderia então ser estabelecida independentemente des Mas o direito é diretamente inferido da vontade de um
tas41 . Da mesma forma que a paternidade poderia ser indivíduo, indiferente a qualquer fim. A ordem social é,
concedida a um homem que nunca gerou, ou o estatuto portanto, reconstruída a partir de uma soma de domí
de escravo outorgado a um senhor, a igualdade se impo nios individuais, de direitos subjetivos, cuja coexistência
ria independentemente dos sujeitos postos em relação. o poder temporal tenta assegurar. A justiça de uma rela
A igualdade atuante numa relação social já não encon ção social se reduz ao consentimento das partes ou aos
traria seu fundamento nos direitos individuais cujas re juramentos de fidelidade a que elas se prestam42.
lações convém ajustar a partir apenas do consentimento Assim, a soberania política já não se impõe natural
das partes. Apenas os poderes jurídicos que emanam mente para orientar uma multidão desunida para a bus
dos indivíduos podem ser objeto de uma correlação ex ca do bem comum, mas procede do consentimento pelo
terior, inspirada pela exigência de reciprocidade. Ora, se- qual homens reunidos transferem a autoridade de que
foram investidos por Deus. "O poder de criar leis e direi
38. "O 'direito subjetivo' é um produto da onipotência divina.[ ... ] Deus tos humanos de início pertenceu essencialmente ao povo.
concedeu a todos os homens o dominium, ou dominação sobre as aiaturas in
feriores" (M. Villley, Le Droit et Ies droits de l'homme, Paris, PUF, 1983, p. 123). Depois, o povo transferiu esse poder de fazer leis [... ]."43
39."Existe uma distinção entre o domínio senhorial próprio e o poder de Estabelece-se assim uma correlação essencial entre o ad-
se apropriar das coisas temporais[ ... ] assim também, entre o poder de estabe
lecer uma jurisdição e essa própria jurisdição" (Court Traité du pouvoir tymnni
que, UI, 9, p. 211). r
42. Segundo M. Villey, o advento do direito subjetivo traduz "o espíito
40. Segundo a formulação de M. Villey, a invenção do direito subjetivo dos homens da Idade Média", as aspirações da sociedade feudal (La Fonnation
equivale a"desnaturar a rela ção em poder unilateral" (Essais de philosophie du de la pensée juridique moderne, op. cit., p. 266; G. de Lagarde, La Naissance de
droit, op. cit., p. 156). l'esprit laique au déclin du Moyen Age, op. cit., VI, pp. 200-2).
41. Somme de logique, op. cit., cap. 50, pp. 166-7. 43. Court Traité du pouvoir tymnnique, UI, 14, p. 222.
68 GENEALOGIA DO DTREITO MODERNO O ADVENTO DO DTREITO SUBJETIVO: GUILHERME DE OCKHAM 69
vento do direito subjetivo e a possibilidade de sua trans fins que são inerentes à natureza humana, mas é relati
ferência44 . Isso atesta, como veremos, que a resistência do va aos diferentes poderes que os indivíduos aspiram a
indivíduo não chega realmente a se assentar no alicerce proteger juridicamente. A busca do bem comum já não é
do direito subjetivo. o fundamento exclusivo da autoridade política. É im
A autoridade política instituída tem, assim, direito pressionante constatar que os homens trabalham, com o
de legislar, de recorrer ao artifício da lei positiva, para ope poder de seu consentimento, para a edificação da ordem
rar a partilha das propriedades45 . A autoridade edificada social, na medida em que deixam de ser ordenados para
por convenção promulga leis, que permitem a cada indi o bem que lhes é próprio. Tal é a conclusão a que chega
víduo gozar de direitos subjetivos, de determinados po rá Rawls: apenas um homem racional, indiferente a qual
deres garantidos pela força pública46 • quer fim, pode trabalhar, com o poder de seu consenti
Assim começa a esboçar-se a virada a cujo termo a mento, para a edificação de uma ordem justa.
lei já não será apreendida como uma colocação em or Mas, uma vez que indivíduos consentem livremente
dem racional, mas como o que emana do poder de uma em edificar uma jurisdição temporal encarregada de pro
autoridade superior. O direito objetivo, o conjunto das ver à utilidade comum, eles são obrigados, em nome da
leis positivas, já não tem por vocação preservar as rela "equidade natural", ditada pela reta razão, a respeitar
ções de igualdade que devem reger as relações sociais, suas promessas48 : "Não é universalmente verdade que
mas importa, a partir de então, garantir aos indivíduos os toda coisa que nasce de certas causas também é dissol
poderes aos quais aspiram. Assim também, a justiça le vida por essas mesmas causas. E, é claro, isso não é ver
gal já não se dedica somente à preservação do bem co dade quando se trata das relações de domínio de senho
mum, a promulgar leis que permitam aos cidadãos rea ria porque, pela simples expressão da vontade, alguém
lizar os fins de sua natureza, mas provê igualmente à uti pode sujeitar-se à dominação de outra pessoa, ao passo
lidade comum que procede do consentimento de todos47. que não lhe é possível dissolver essa mesma sujeição por
A utilidade comum já não se deduz da consideração dos sua única vontade."49 Embora a transferência de sobera
nia que decorre do consentimento do povo não seja uma
44. Assim como a vertigem provocada pela liberdade de indiferença simples alienação, Ockham vai enquadrar essa delega
conduz a curvar-se aos mandamentos divinos ou às injunções da razão, cada ção de poder em estritos limites. O príncipe que recebeu
indivíduo aliena a parcela de soberania que possui a uma autoridade política
(cf. A. de Muralt, La Structure de la philosophie politique modeme, op. cit., pp. 56 o direito de comandar em virtude de um contrato não
e 79-80). a. Grócio, Le Droit de la guerre et de la pau:, trad. fr. P. Pradier-Fodé pode ser privado dele sem seu assentimentoS{'. Não obs
ré, Paris, PUF, 1999, 1, 3, 8, 1-2, pp. 99-100.
45. Court Tmité du pouvoir tyrannique, ITI, 15, p. 225.
tante, o povo detém o poder ocasional de depor um
46. Temos de constatar o contraste entre a colação gratuita do poder de príncipe cuja conduta fosse imoral ou que não se curvas-
instituir chefes e a necessidade da instituição da propriedade em razão da
queda (cf. G. de Lagarde, La Naissance de l'esprit lai'que au déc/in du Moyen Age,
op. cit., IV, pp. 222-3). 48. Co,,rt Traité du pouvoir tymnniq,,e, rv, 10, p. 258.
47. Sobre a possível indiferença do consentimento de todos acerca do 49. lbid., N, 13, p. 263.
bem comum como um prolongamento da indiferença do indivíduo para com 50. G. de Lagarde, La Naissance de l'esprit laique au déclin du Moyen Age,
fins de sua natureza, d. ibid., VI, p. 202. op. cit., VI, p. 207.
68 GENEALOGIA DO DTREITO MODERNO O ADVENTO DO DTREITO SUBJETIVO: GUILHERME DE OCKHAM 69
vento do direito subjetivo e a possibilidade de sua trans fins que são inerentes à natureza humana, mas é relati
ferência44 . Isso atesta, como veremos, que a resistência do va aos diferentes poderes que os indivíduos aspiram a
indivíduo não chega realmente a se assentar no alicerce proteger juridicamente. A busca do bem comum já não é
do direito subjetivo. o fundamento exclusivo da autoridade política. É im
A autoridade política instituída tem, assim, direito pressionante constatar que os homens trabalham, com o
de legislar, de recorrer ao artifício da lei positiva, para ope poder de seu consentimento, para a edificação da ordem
rar a partilha das propriedades45 . A autoridade edificada social, na medida em que deixam de ser ordenados para
por convenção promulga leis, que permitem a cada indi o bem que lhes é próprio. Tal é a conclusão a que chega
víduo gozar de direitos subjetivos, de determinados po rá Rawls: apenas um homem racional, indiferente a qual
deres garantidos pela força pública46 • quer fim, pode trabalhar, com o poder de seu consenti
Assim começa a esboçar-se a virada a cujo termo a mento, para a edificação de uma ordem justa.
lei já não será apreendida como uma colocação em or Mas, uma vez que indivíduos consentem livremente
dem racional, mas como o que emana do poder de uma em edificar uma jurisdição temporal encarregada de pro
autoridade superior. O direito objetivo, o conjunto das ver à utilidade comum, eles são obrigados, em nome da
leis positivas, já não tem por vocação preservar as rela "equidade natural", ditada pela reta razão, a respeitar
ções de igualdade que devem reger as relações sociais, suas promessas48 : "Não é universalmente verdade que
mas importa, a partir de então, garantir aos indivíduos os toda coisa que nasce de certas causas também é dissol
poderes aos quais aspiram. Assim também, a justiça le vida por essas mesmas causas. E, é claro, isso não é ver
gal já não se dedica somente à preservação do bem co dade quando se trata das relações de domínio de senho
mum, a promulgar leis que permitam aos cidadãos rea ria porque, pela simples expressão da vontade, alguém
lizar os fins de sua natureza, mas provê igualmente à uti pode sujeitar-se à dominação de outra pessoa, ao passo
lidade comum que procede do consentimento de todos47. que não lhe é possível dissolver essa mesma sujeição por
A utilidade comum já não se deduz da consideração dos sua única vontade."49 Embora a transferência de sobera
nia que decorre do consentimento do povo não seja uma
44. Assim como a vertigem provocada pela liberdade de indiferença simples alienação, Ockham vai enquadrar essa delega
conduz a curvar-se aos mandamentos divinos ou às injunções da razão, cada ção de poder em estritos limites. O príncipe que recebeu
indivíduo aliena a parcela de soberania que possui a uma autoridade política
(cf. A. de Muralt, La Structure de la philosophie politique modeme, op. cit., pp. 56 o direito de comandar em virtude de um contrato não
e 79-80). a. Grócio, Le Droit de la guerre et de la pau:, trad. fr. P. Pradier-Fodé pode ser privado dele sem seu assentimentoS{'. Não obs
ré, Paris, PUF, 1999, 1, 3, 8, 1-2, pp. 99-100.
45. Court Tmité du pouvoir tyrannique, ITI, 15, p. 225.
tante, o povo detém o poder ocasional de depor um
46. Temos de constatar o contraste entre a colação gratuita do poder de príncipe cuja conduta fosse imoral ou que não se curvas-
instituir chefes e a necessidade da instituição da propriedade em razão da
queda (cf. G. de Lagarde, La Naissance de l'esprit lai'que au déc/in du Moyen Age,
op. cit., IV, pp. 222-3). 48. Co,,rt Traité du pouvoir tymnniq,,e, rv, 10, p. 258.
47. Sobre a possível indiferença do consentimento de todos acerca do 49. lbid., N, 13, p. 263.
bem comum como um prolongamento da indiferença do indivíduo para com 50. G. de Lagarde, La Naissance de l'esprit laique au déclin du Moyen Age,
fins de sua natureza, d. ibid., VI, p. 202. op. cit., VI, p. 207.
70 GENEALOGIA DO DIREITO MODENO
R
A ruptura moderna se cumprirá realmente quando o absoluta de Deus, permite a formulação de um princípio
direito subjetivo for inferido apenas da natureza huma de grande valor heurístico. Tudo o que é concebido como
na, reconduzida ao seu estado de "pura natureza". Mas, formalmente distinto pode existir separadamente em vir
no intervalo, a difusão do nominalismo vai contribuir tude da potência absoluta de Deus2•
para o desenvolvimento de urna doutrina moderna do A transposição desse princípio epistemológico no
direito natural, concebido como o sistema das leis natu campo político vai conduzir Suarez a levantar uma ques
rais. A natureza separada do indivíduo vai encontrar-se tão de alcance considerável. Uma vez que o homem é um
no princípio da dedução de uma soma de preceitos mo
animal social que não pode existir fora da Cidade, será
rais modificada em sistema de regras juridicas53. Por con
possível conceber um "estado de pura natureza", formal
seguinte, antes mesmo da .intervenção da lei positiva, a
mente distinto do estado civil?
lei natural consegue assegurar a fundação do direito sub
Esse estado de pura natureza deve ser concebido in
jetivo, concebido como uma faculdade moral.
dependentemente da separação entre o estado de ino
cência e o estado de decadência, iniciada pela teologia
51. Court Traité du pollvoir tyrannique, VI, 6 e 13. Ê nessa perspectiva que
Ockham apareceu como um dos iniciadores da concepção de um direito de 1. Opus oxoniense, ll, dist. n, qu. 1. A distinção formal vai tomar-se urna
resistência não subjetivo, cf. Q. Skinner, Les Fonde111e11ts de la pensée politique ferramenta usual na idade clássica, cf. Descartes, Méditations métaphysiques,
moderne, op. cit., pp. 534 e 538. méditation sixiême, p. 487; Réponses ma premiêres objections, p. 539, ed. Alquié,
52. C. de Lagarde, La Naissance de /'esprit lai"que au déc/in du Moyen Age, 11, Paris, Classiques Carnier, 1996.
op. dt., p. 167. 2. Cf. A. de Muralt, La Structllre de la philosophie poli tique moderne, op. cit.,
53. M. Villey, La Fom1ation de la pensée j11ridiq11e 111oderne, op. cit., p. 270. p. 45.
70 GENEALOGIA DO DIREITO MODENO
R
A ruptura moderna se cumprirá realmente quando o absoluta de Deus, permite a formulação de um princípio
direito subjetivo for inferido apenas da natureza huma de grande valor heurístico. Tudo o que é concebido como
na, reconduzida ao seu estado de "pura natureza". Mas, formalmente distinto pode existir separadamente em vir
no intervalo, a difusão do nominalismo vai contribuir tude da potência absoluta de Deus2•
para o desenvolvimento de urna doutrina moderna do A transposição desse princípio epistemológico no
direito natural, concebido como o sistema das leis natu campo político vai conduzir Suarez a levantar uma ques
rais. A natureza separada do indivíduo vai encontrar-se tão de alcance considerável. Uma vez que o homem é um
no princípio da dedução de uma soma de preceitos mo
animal social que não pode existir fora da Cidade, será
rais modificada em sistema de regras juridicas53. Por con
possível conceber um "estado de pura natureza", formal
seguinte, antes mesmo da .intervenção da lei positiva, a
mente distinto do estado civil?
lei natural consegue assegurar a fundação do direito sub
Esse estado de pura natureza deve ser concebido in
jetivo, concebido como uma faculdade moral.
dependentemente da separação entre o estado de ino
cência e o estado de decadência, iniciada pela teologia
51. Court Traité du pollvoir tyrannique, VI, 6 e 13. Ê nessa perspectiva que
Ockham apareceu como um dos iniciadores da concepção de um direito de 1. Opus oxoniense, ll, dist. n, qu. 1. A distinção formal vai tomar-se urna
resistência não subjetivo, cf. Q. Skinner, Les Fonde111e11ts de la pensée politique ferramenta usual na idade clássica, cf. Descartes, Méditations métaphysiques,
moderne, op. cit., pp. 534 e 538. méditation sixiême, p. 487; Réponses ma premiêres objections, p. 539, ed. Alquié,
52. C. de Lagarde, La Naissance de /'esprit lai"que au déc/in du Moyen Age, 11, Paris, Classiques Carnier, 1996.
op. dt., p. 167. 2. Cf. A. de Muralt, La Structllre de la philosophie poli tique moderne, op. cit.,
53. M. Villey, La Fom1ation de la pensée j11ridiq11e 111oderne, op. cit., p. 270. p. 45.
72 GENEALOGIA DO DIREITO MODENO
R
SUAREZ: A FUNDAÇÃO DO DIREITO NATURAL SUBJETNO 73
cristã. O recurso à teoria da distinção formal deve permi O homem em sua condição natural não é um ser as
tir apreender a humanidade num estado em que tudo o social, mas é, ao contrário, apto para a vida comurutária9 •
que se aparenta com a revelação se encontra posto de Compreende-se, então, que essa distinção formal entre
lado, a narrativa da• queda bem como a perspectiva da o estado de natureza e o estado civil foi preparada pela
redenção. doutrina tomista da lei natural que postula a transcen
A invocação da potência absoluta de Deus nos leva dência de uma natureza humana, dotada de inclinações
a elaborar uma ficção, que suspende o acontecimento racionais, em comparação com a sociedade política. O
histórico da revelação divina para considerar o homem homem transcende a sociedade política porque foi cria
uma simples criatura racionaP. O estado de pura nature do sociável por natureza.
za se impõe para além da natureza decaída ou de uma
"sobrenatureza" qualquer, trata-se de estudar o homem
em sua perfeição natural intrínseca4 • Segundo Suarez, é A lei natural:
importante simplesmente compreender que Deus pode um comando da razão
ria ter criado a natureza do homem sem a ordenar para
um fim sobrenatural, mesmo que isso seja dado como Portanto, Suarez vai esforçar-se para identificar"a lei
impossível5 • A afirmação, corrente na idade clássica, do da pura natureza"w. Essa dedução da lei natural, a partir
caráter hipotético do estado de natureza encontra aqui do estado de pura natureza, leva-o a se distanciar da
sua fonte6 • Nesse contexto, certas descrições pagãs do concepção tomista. Segundo Suarez, a dedução tomista
estado de natureza poderão recuperar sua legitimidade. da lei natural não se alicerçou na apreensão da verdadei
A concepção estoica que postula um homem social e ra ra condição natural do homem11. A análise tomista é de
cional7 se imporá em detrimento da descrição epicurista pendente de uma definição da lei "excessivamente am
que toma por modelo a"vida errante dos animais"�. pla e geral", segundo a qual"a lei é certa regra e medida
que prescreve a al gu ém fazer algo ou o dissuade de fazê-
3. J. Terrel, Les Théories du pacte social, Paris, Le Seuil, 2001, pp. 33-4. 10 . Nessa perspectiva, "a lei abarcaria não só os homens
12
Deus"21• Embora reconheça que a vontade divina é dota mo que não fizesse uso da razão [...] e que no homem
esse próprio comando da reta razão fosse dado - pres
da de uma liberdade absoluta22, não se arrisca a deduzir
crevendo, por exemplo, que é errado mentir-, ele teria a
disso a arbitrariedade dos preceitos divinos. Como Deus
mesma razão de lei que tem atualmente, já que ele cons
criou o homem como um animal social, não é concebí
tituiria uma lei ostensiva da malícia existente intrinseca
vel que os princípios de moralidade inscritos na razão
mente no objeto."25 O bem e o mal, na medida em que
humana se revelem fermentos de discórdia, de falta de são somente conhecidos pela razão, não podem consti
sociabilidade23• tuir por si sós princípios de ação. Embora continue con
Mas Suarez se esforça em descobrir uma via inter forme à natureza do homem buscar o bem e evitar o
mediária, já que é impossível, ao contrário, negar à lei mal, a ideia de uma natureza humana investida por uma
natural a sua dimensão "prescritiva" para conceder-lhe dinâmica que a orientaria naturalmente para o bem já
simplesmente o título de "lei indicativa do que é preciso não é concebível. Toda dedução da lei natural a partir de
cumprir ou abster-se de fazer, daquilo que é por sua na urna finalidade imanente parece alterar a forma da obri
tureza intrinsecamente bom e necessário ou intrinseca gação que lhe é própria.A dimensão essencial da lei con
mente mau"24• Suarez salienta assim, para melhor se dis siste doravante em "uma ordem e um mandamento"2�.A
tanciar dela, a célebre hipótese à qual chegou outra tra subordinação da vontade humana aos imperativos divi
dição de pensamento: "Gregório de Rimini, seguido por nos constituirá o único princípio da obrigação moral, o
outros, afirma que, mesmo que Deus não existisse, mes- vínculo intimado pela finalidade natural é suspenso. A
lei de natureza já não se aparenta com uma lei cosmoló
21. Ibid., 11, 6, 4, p. 43]. "E.5sa é a posição de Guilhenne de Ockham. Ele gica, portanto ela não é natural "porque sua realização é
afinna que nenhum ato é maldoso exceto se foi proibido por Deus; não há ato
maldoso que não possa tomar-se bom se Deus o prescreve e vice-versa" natural, ou seja, efetiva-se necessariamente como a in
(ibid.). Cf. ibid., li, 15, 3-4, pp. 555-7. clinação natural dos bichos e das coisas animadas, mas
22. lbid., li, VI, 23, p. 450. porque essa lei é certa propriedade da natureza e porque
23. "A vontade divina, se bem que seja absolutamente livre exterionnen
te, no entanto, uma vez realizado um ato livre determinado, ela pode ser obri o próprio Deus a introduziu na natureza"27• Nesse senti
gada a realizar outro ato. Assim, se ela quer prometer no absoluto, fica obriga do, a lei permanece natural urna vez que sua promulga
da a cumprir o que foi prometido. E se ela quer falar ou revelar, deve necessa
riamente revelar a verdade. Da mesma maneira, se ela quer criar o mundo e
ção resulta da inscrição de um mandamento divino ins
preservá-lo conformemente a um fim determinado, ela não pode parar de go crito na razão humana28 •
verná-lo com sua providência" (ibid., 11, VI, 23, p. 450). O ato pelo qual Deus
criou a natureza moral do homem não exerce coerção nenhuma sobre a von J
tade divina, mesmo que não a deixe indiferente. Suarez propõe uma solução 25. Ibid., p. 429. Hipótese famosa que Grócio evocará ao mesmo tempo
(da qual Leibniz se lembrará), segundo a qual a vontade prescritiva de Deus que se aliava à posição defendida por Suarez (Le Droit de la guerre et de la pau:,
na origem da obrigação moral é determinada pela vontade criadora antece Prolégomenes, XI, p. 12; cf. R. Seve, Leibniz et /'école du droit naturel, op. cit.,
dente (cf. R. Seve, Leibniz et /'école du droit naturel, op. cit., p. 47). "Uma vez su pp. 37-9).
posta a vontade de criar a natureza racional provida de um conhecimento su 26. De legibus, 1, n, 6, p. 105. "A lei não somente esclarece, mas também
ficiente para fazer o bem ou o mal com o concurso divino suficiente para as faz mover-se e cria um impulso" (ibid., 1, 4, 7, p. 136).
duas coisas, Deus não deixou de querer proibir a essa criatura os atos intrin 27. Ibid., 1, ill, 10, p. 121.
secamente maus nem de querer prescrever os atos honestos necessários" 28. "Portanto, a própria luz natural constitui por si uma promulgação su
(ibid., pp. 450-1; De legibus, 1, 9, 3, p. 214). ficiente da lei natural. E isso não porque ela põe em evidência a conformida-
24. De legibus, li, 6, 3, p. 428.
76 GENF..ALOGTA DO DTRETTO MODERNO
! SUAREZ: A FUNDAÇÃO DO DIREITO NATURAL SUB]ETNO 77
Deus"21• Embora reconheça que a vontade divina é dota mo que não fizesse uso da razão [...] e que no homem
esse próprio comando da reta razão fosse dado - pres
da de uma liberdade absoluta22, não se arrisca a deduzir
crevendo, por exemplo, que é errado mentir-, ele teria a
disso a arbitrariedade dos preceitos divinos. Como Deus
mesma razão de lei que tem atualmente, já que ele cons
criou o homem como um animal social, não é concebí
tituiria uma lei ostensiva da malícia existente intrinseca
vel que os princípios de moralidade inscritos na razão
mente no objeto."25 O bem e o mal, na medida em que
humana se revelem fermentos de discórdia, de falta de são somente conhecidos pela razão, não podem consti
sociabilidade23• tuir por si sós princípios de ação. Embora continue con
Mas Suarez se esforça em descobrir uma via inter forme à natureza do homem buscar o bem e evitar o
mediária, já que é impossível, ao contrário, negar à lei mal, a ideia de uma natureza humana investida por uma
natural a sua dimensão "prescritiva" para conceder-lhe dinâmica que a orientaria naturalmente para o bem já
simplesmente o título de "lei indicativa do que é preciso não é concebível. Toda dedução da lei natural a partir de
cumprir ou abster-se de fazer, daquilo que é por sua na urna finalidade imanente parece alterar a forma da obri
tureza intrinsecamente bom e necessário ou intrinseca gação que lhe é própria.A dimensão essencial da lei con
mente mau"24• Suarez salienta assim, para melhor se dis siste doravante em "uma ordem e um mandamento"2�.A
tanciar dela, a célebre hipótese à qual chegou outra tra subordinação da vontade humana aos imperativos divi
dição de pensamento: "Gregório de Rimini, seguido por nos constituirá o único princípio da obrigação moral, o
outros, afirma que, mesmo que Deus não existisse, mes- vínculo intimado pela finalidade natural é suspenso. A
lei de natureza já não se aparenta com uma lei cosmoló
21. Ibid., 11, 6, 4, p. 43]. "E.5sa é a posição de Guilhenne de Ockham. Ele gica, portanto ela não é natural "porque sua realização é
afinna que nenhum ato é maldoso exceto se foi proibido por Deus; não há ato
maldoso que não possa tomar-se bom se Deus o prescreve e vice-versa" natural, ou seja, efetiva-se necessariamente como a in
(ibid.). Cf. ibid., li, 15, 3-4, pp. 555-7. clinação natural dos bichos e das coisas animadas, mas
22. lbid., li, VI, 23, p. 450. porque essa lei é certa propriedade da natureza e porque
23. "A vontade divina, se bem que seja absolutamente livre exterionnen
te, no entanto, uma vez realizado um ato livre determinado, ela pode ser obri o próprio Deus a introduziu na natureza"27• Nesse senti
gada a realizar outro ato. Assim, se ela quer prometer no absoluto, fica obriga do, a lei permanece natural urna vez que sua promulga
da a cumprir o que foi prometido. E se ela quer falar ou revelar, deve necessa
riamente revelar a verdade. Da mesma maneira, se ela quer criar o mundo e
ção resulta da inscrição de um mandamento divino ins
preservá-lo conformemente a um fim determinado, ela não pode parar de go crito na razão humana28 •
verná-lo com sua providência" (ibid., 11, VI, 23, p. 450). O ato pelo qual Deus
criou a natureza moral do homem não exerce coerção nenhuma sobre a von J
tade divina, mesmo que não a deixe indiferente. Suarez propõe uma solução 25. Ibid., p. 429. Hipótese famosa que Grócio evocará ao mesmo tempo
(da qual Leibniz se lembrará), segundo a qual a vontade prescritiva de Deus que se aliava à posição defendida por Suarez (Le Droit de la guerre et de la pau:,
na origem da obrigação moral é determinada pela vontade criadora antece Prolégomenes, XI, p. 12; cf. R. Seve, Leibniz et /'école du droit naturel, op. cit.,
dente (cf. R. Seve, Leibniz et /'école du droit naturel, op. cit., p. 47). "Uma vez su pp. 37-9).
posta a vontade de criar a natureza racional provida de um conhecimento su 26. De legibus, 1, n, 6, p. 105. "A lei não somente esclarece, mas também
ficiente para fazer o bem ou o mal com o concurso divino suficiente para as faz mover-se e cria um impulso" (ibid., 1, 4, 7, p. 136).
duas coisas, Deus não deixou de querer proibir a essa criatura os atos intrin 27. Ibid., 1, ill, 10, p. 121.
secamente maus nem de querer prescrever os atos honestos necessários" 28. "Portanto, a própria luz natural constitui por si uma promulgação su
(ibid., pp. 450-1; De legibus, 1, 9, 3, p. 214). ficiente da lei natural. E isso não porque ela põe em evidência a conformida-
24. De legibus, li, 6, 3, p. 428.
78 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO SUAREZ: A FUNDAÇÃO DO DfREITO NATURAL SUBJETIVO 79
Essa lei natural se distingue então da lei divina reve apenas o objeto de outro direito prescritivo."30 Esse direi
lada. O homem pode apreender as injunções da lei na to subjetivo ou dominativo, concebido como o objeto da
tural pelo simples uso da razão, enquanto o teor da re lei natural prescritiva, é definido como uma "faculdade
velação excede suas faculdades de ser racional. A lei na moral": "Direito às vezes significa a faculdade moral de
tural permanece, assim, prescritiva, urna vez que traduz al guma coisa (ad rem) ou sobre algum a coisa (in re)."31 O
a conjunção da obrigação, cujos portadores são os man direito subjetivo designa, pois,"um poder moral particu
damentos divinos, com o que é intrinsecamente bom ou lar que todos possuem sobre o que é seu ou sobre o que
mau para a nossa natureza tal como foi criada. A lei na lhe é devido. De fato, dizemos que o proprietário de uma
tural já não procede de uma inclinação natural, mas su coisa tem direito sobre ela e que o trabalhador tem direi
põe um comando da razão: tais são"os primeiros princí to ao seu salário, e assim afirmamos 'que ele merece seu
pios gerais da moral, como: é preciso ser honesto e abs salário'"32•
ter-se do mal. Não faça ao próximo o que não quererias Assim, Suarez parece ser um dos primeiros pensa
que te fizessem"29• dores a reconhecer a existência de um direito subjetivo
ou dominativo natural. Nesse sentido, "a comunidade
dos bens também faria parte, segundo certo modo, des
A faculdade moral se domínio humano em virtude do direito natural, se ne
nhuma repartição das coisas tivesse sido instituída. Os
Portanto, é a partir dessa concepção prescritiva da lei homens teriam um direito positivo e efetivo ao uso dos
natural, indissociável do reconhecimento da natureza bens comuns"33• Esse domínio natural dos bens comuns
moral do homem, que Suarez vai proceder à dedução do se apresenta como uma faculdade moral, pois supõe a
direito subjetivo. Daí em diante, o direito subjetivo já obediência a certas regras que decorrem da lei natural:
não provém simplesmente de uma lei positiva e civil, mas, "Não proibir a ninguém, nem tomar difícil o uso neces
prolongando a inovação nominalista, ele parece engas sário dos bens cornuns."34 Suarez opera, portanto, uma
tado na lei natural, ela mesma inserida na razão huma ruptura de alcance considerável com a tradição tomista,
na: "Essa diferença entre o direito prescritivo e o direito já que o dominium natural exercido em comum sobre as
dominativo (jus dominativum) consiste no fato de que o coisas se encontra reinserido na ordem do direito.
primeiro se compõe de regras ou de princípios do agir Da mesma forma, essa liberdade natural que Tomás
bem que implicam uma verdade necessária [... ], ele se de Aquino excluía da esfera do direito aparece desde en-
fundamenta na retidão ou na malevolência intrínseca de
seu objeto. O direito dominativo, em contrapartida, é
30. Ibid., li, 14, 16, p. 545.
31. Ibid., ll, 17, 2, p. 597. Suarez endossa aqui, explicitamente, a distin
ção oriunda do direito romano entre o jus ad rem e o jus in re (R. Tuck, Natural
de ou a desconformidade intrínsecas aos atos que a luz incriada de Deus mos Rights Theories, op. cit., p. 14).
tra, mas também porque ela inculca nos homens que as ações contrárias de 32. De legibus, 1, 2, 5, p. 104.
sagradam ao autor da natureza [ ...)" (ibid., LI, VI, 24, p. 452). 33. Ibid., li, 14, 16, p. 545.
29. Ibid., ll, 7, 5, p. 460. 34. Ibid., 11, 14, 19, p. 547.
78 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO SUAREZ: A FUNDAÇÃO DO DfREITO NATURAL SUBJETIVO 79
Essa lei natural se distingue então da lei divina reve apenas o objeto de outro direito prescritivo."30 Esse direi
lada. O homem pode apreender as injunções da lei na to subjetivo ou dominativo, concebido como o objeto da
tural pelo simples uso da razão, enquanto o teor da re lei natural prescritiva, é definido como uma "faculdade
velação excede suas faculdades de ser racional. A lei na moral": "Direito às vezes significa a faculdade moral de
tural permanece, assim, prescritiva, urna vez que traduz al guma coisa (ad rem) ou sobre algum a coisa (in re)."31 O
a conjunção da obrigação, cujos portadores são os man direito subjetivo designa, pois,"um poder moral particu
damentos divinos, com o que é intrinsecamente bom ou lar que todos possuem sobre o que é seu ou sobre o que
mau para a nossa natureza tal como foi criada. A lei na lhe é devido. De fato, dizemos que o proprietário de uma
tural já não procede de uma inclinação natural, mas su coisa tem direito sobre ela e que o trabalhador tem direi
põe um comando da razão: tais são"os primeiros princí to ao seu salário, e assim afirmamos 'que ele merece seu
pios gerais da moral, como: é preciso ser honesto e abs salário'"32•
ter-se do mal. Não faça ao próximo o que não quererias Assim, Suarez parece ser um dos primeiros pensa
que te fizessem"29• dores a reconhecer a existência de um direito subjetivo
ou dominativo natural. Nesse sentido, "a comunidade
dos bens também faria parte, segundo certo modo, des
A faculdade moral se domínio humano em virtude do direito natural, se ne
nhuma repartição das coisas tivesse sido instituída. Os
Portanto, é a partir dessa concepção prescritiva da lei homens teriam um direito positivo e efetivo ao uso dos
natural, indissociável do reconhecimento da natureza bens comuns"33• Esse domínio natural dos bens comuns
moral do homem, que Suarez vai proceder à dedução do se apresenta como uma faculdade moral, pois supõe a
direito subjetivo. Daí em diante, o direito subjetivo já obediência a certas regras que decorrem da lei natural:
não provém simplesmente de uma lei positiva e civil, mas, "Não proibir a ninguém, nem tomar difícil o uso neces
prolongando a inovação nominalista, ele parece engas sário dos bens cornuns."34 Suarez opera, portanto, uma
tado na lei natural, ela mesma inserida na razão huma ruptura de alcance considerável com a tradição tomista,
na: "Essa diferença entre o direito prescritivo e o direito já que o dominium natural exercido em comum sobre as
dominativo (jus dominativum) consiste no fato de que o coisas se encontra reinserido na ordem do direito.
primeiro se compõe de regras ou de princípios do agir Da mesma forma, essa liberdade natural que Tomás
bem que implicam uma verdade necessária [... ], ele se de Aquino excluía da esfera do direito aparece desde en-
fundamenta na retidão ou na malevolência intrínseca de
seu objeto. O direito dominativo, em contrapartida, é
30. Ibid., li, 14, 16, p. 545.
31. Ibid., ll, 17, 2, p. 597. Suarez endossa aqui, explicitamente, a distin
ção oriunda do direito romano entre o jus ad rem e o jus in re (R. Tuck, Natural
de ou a desconformidade intrínsecas aos atos que a luz incriada de Deus mos Rights Theories, op. cit., p. 14).
tra, mas também porque ela inculca nos homens que as ações contrárias de 32. De legibus, 1, 2, 5, p. 104.
sagradam ao autor da natureza [ ...)" (ibid., LI, VI, 24, p. 452). 33. Ibid., li, 14, 16, p. 545.
29. Ibid., ll, 7, 5, p. 460. 34. Ibid., 11, 14, 19, p. 547.
80 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO SUAREZ: A FUNDAÇÃO DO DIREITO NATURAL SUBJETNO 81
tão como o objeto de um domínio individual, de um di minium natural. Como a propriedade privada poderá tor
reito subjetivo natural: "A liberdade pertence ao direito nar-se um direito, quando ela não é objeto de nenhuma
natural positivamente e não só negativamente, porque a prescrição da lei natural?
própria natureza conferiu ao homem um verdadeiro do Entre os preceitos da lei natural, Suarez dissocia os
mínio sobre a sua liberdade." 35 Como vimos, se a liber preceitos positivos, que proíbem ou prescrevem, dos pre
dade é concedida pela lei natural para Tomás de Aquino, ceitos simplesmente negativos pelos quais a lei natural
é"de maneira negativa, porque a natureza não sugere o tolera uma ação sem se pronunciar positivamente sobre
contrário"36• Ora, segundo Suarez, a liberdade original ela311• O homem detém toda a liberdade de modificar o
que está no fundamento da destinação moral do ser hu direito natural subjetivo, na medida em que nenhuma lei
mano, de sua aptidão para obedecer, toma-se, de certa natural se oponha a essa transformação. A delimitação
forma, o objeto de um direito natural subjetivo. Mas con dos bens comuns em propriedades privadas, provocada
vém não confundir esse direito subjetivo com uma mera por novas condições de vida, não vai de encontro à lei
licença, uma vez que não existe direito subjetivo que seja natural39 •
Assim também, "pelo próprio fato de o homem ser
independente de uma prescrição da lei natural. O direi
dono de sua liberdade, ele pode vendê-la ou aliená-la" 40•
to dominativo, embora não seja diretamente inferido da
Suarez se expõe, assim, a uma dificuldade com que Locke
natureza do homem, no entanto vincula-se a ela pela se baterá diretamente. Até que ponto o domínio de que
mediação de uma lei inserida em sua razão. dispomos sobre a nossa liberdade permitirá. aliená-la
sem arruinar o fundamento de nossa existência moral?
O reconhecimento da lei moral é subordinado à liberda
Direito subjetivo e justiça legal de originária usufruída pelos homens41 • Como explicar
então que o homem livre, que exerce um domínio sobre
Se o exercício de um direito, apreendido como uma seus atos, possa tomar-se dono de sua liberdade? Toma
faculdade moral, supõe o encontro de uma vontade livre mos a encontrar, assim, essa correlação essencial, já sa
e de um preceito37, o direito subjetivo pode ser conferido lientada, entre o advento do direito subjetivo e sua ine
por uma lei natural bem como por uma lei positiva. vitável transferência.
Quais serão as modificações que podemos trazer ao
direito natural dominativo? O direito de usar coisas de 38. "Uma coisa pode ser de direito natural de duas maneiras, ou seja, ne
modo privativo não pode ser diretamente inferido do do- gativa e positivamente. Dizemos que ela o é negativamente quando o direito
natural não proíbe, mas tolera, mesmo que não prescreva nisso de uma ma
neira positiva. Ao contrário, quando ele prescreve algo, dizemos que é um pre
ceito positivo de direito natural, e quando o proíbe, dizemos que é positiva
35. lbid., II, J 4, 16, p. 545. mente contra o direito natural" (ibid., LI, XIV, 14, p. 543).
36. So111111e t/Jéologique, U-11, 66, 2, resp. 39. "Por isso a repartição das coisas não vai de encontro ao direito natu
37. "O efeito próprio da lei consiste em estabelecer um vínculo e uma ral positivo, uma vez que não existia nenhum preceito natural o proibindo"
obrigação moral. Em consequência, os únicos seres capazes disso são os seres (ibid., II, 14, 14, p. 543).
racionais, não na totalidade de seus atos, mas unicamente no tôcante aos atos 40. fbid., li, 14, 18, p. 547.
que realizam livremente" (De legib11s, il, 2, 11, p. 383}. 41. "Toda moralidade depende da liberdade" (ibid., li, 2, 11, p. 383).
80 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO SUAREZ: A FUNDAÇÃO DO DIREITO NATURAL SUBJETNO 81
tão como o objeto de um domínio individual, de um di minium natural. Como a propriedade privada poderá tor
reito subjetivo natural: "A liberdade pertence ao direito nar-se um direito, quando ela não é objeto de nenhuma
natural positivamente e não só negativamente, porque a prescrição da lei natural?
própria natureza conferiu ao homem um verdadeiro do Entre os preceitos da lei natural, Suarez dissocia os
mínio sobre a sua liberdade." 35 Como vimos, se a liber preceitos positivos, que proíbem ou prescrevem, dos pre
dade é concedida pela lei natural para Tomás de Aquino, ceitos simplesmente negativos pelos quais a lei natural
é"de maneira negativa, porque a natureza não sugere o tolera uma ação sem se pronunciar positivamente sobre
contrário"36• Ora, segundo Suarez, a liberdade original ela311• O homem detém toda a liberdade de modificar o
que está no fundamento da destinação moral do ser hu direito natural subjetivo, na medida em que nenhuma lei
mano, de sua aptidão para obedecer, toma-se, de certa natural se oponha a essa transformação. A delimitação
forma, o objeto de um direito natural subjetivo. Mas con dos bens comuns em propriedades privadas, provocada
vém não confundir esse direito subjetivo com uma mera por novas condições de vida, não vai de encontro à lei
licença, uma vez que não existe direito subjetivo que seja natural39 •
Assim também, "pelo próprio fato de o homem ser
independente de uma prescrição da lei natural. O direi
dono de sua liberdade, ele pode vendê-la ou aliená-la" 40•
to dominativo, embora não seja diretamente inferido da
Suarez se expõe, assim, a uma dificuldade com que Locke
natureza do homem, no entanto vincula-se a ela pela se baterá diretamente. Até que ponto o domínio de que
mediação de uma lei inserida em sua razão. dispomos sobre a nossa liberdade permitirá. aliená-la
sem arruinar o fundamento de nossa existência moral?
O reconhecimento da lei moral é subordinado à liberda
Direito subjetivo e justiça legal de originária usufruída pelos homens41 • Como explicar
então que o homem livre, que exerce um domínio sobre
Se o exercício de um direito, apreendido como uma seus atos, possa tomar-se dono de sua liberdade? Toma
faculdade moral, supõe o encontro de uma vontade livre mos a encontrar, assim, essa correlação essencial, já sa
e de um preceito37, o direito subjetivo pode ser conferido lientada, entre o advento do direito subjetivo e sua ine
por uma lei natural bem como por uma lei positiva. vitável transferência.
Quais serão as modificações que podemos trazer ao
direito natural dominativo? O direito de usar coisas de 38. "Uma coisa pode ser de direito natural de duas maneiras, ou seja, ne
modo privativo não pode ser diretamente inferido do do- gativa e positivamente. Dizemos que ela o é negativamente quando o direito
natural não proíbe, mas tolera, mesmo que não prescreva nisso de uma ma
neira positiva. Ao contrário, quando ele prescreve algo, dizemos que é um pre
ceito positivo de direito natural, e quando o proíbe, dizemos que é positiva
35. lbid., II, J 4, 16, p. 545. mente contra o direito natural" (ibid., LI, XIV, 14, p. 543).
36. So111111e t/Jéologique, U-11, 66, 2, resp. 39. "Por isso a repartição das coisas não vai de encontro ao direito natu
37. "O efeito próprio da lei consiste em estabelecer um vínculo e uma ral positivo, uma vez que não existia nenhum preceito natural o proibindo"
obrigação moral. Em consequência, os únicos seres capazes disso são os seres (ibid., II, 14, 14, p. 543).
racionais, não na totalidade de seus atos, mas unicamente no tôcante aos atos 40. fbid., li, 14, 18, p. 547.
que realizam livremente" (De legib11s, il, 2, 11, p. 383}. 41. "Toda moralidade depende da liberdade" (ibid., li, 2, 11, p. 383).
82 GENEALOGIA DO DLREITO MODERNO
1 SUAREZ: A FUNDAÇÃO DO DlREffO NATURAL SUBJETIVO 83
Mas quais serão as modalidades jurídicas necessá to civil45, proibindo o roubo e a apropriação do bem
rias para tomar legítimas essas modificações do direito alheio.
dominativo?"A liberdade e qualquer direito civil, mesmo Ao contrário, as determinações trazem um conteú
que tenham sido outorgados positivamente pela nature do jurídico que não se conclui da lei de natureza, pois"é
za, podem ser mudados pelo homem, porque, em cada certo que a lei civil não se deduz, por assim dizer, espe
pessoa, seu exercício depende não só de sua própria von culativamente dos primeiros princípios da lei natural e
tade, mas também do Estado." 42 Compete unicamente segundo urna conclusão absoluta. Mas é apresentada
ao direito civil proceder à divisão das propriedades ou li pela vontade do soberano sob a modalidade de urna de
mitar a liberdade de cada um43 • terminação"46.
A lei humana deve se moldar, no teor do que ela A determinação resultará então de urna decisão ar
prescreve, aos princípios da moralidade dispensados pela bitrária do legislador? Suarez vai operar uma distinção
lei natural "já que nenhum ser inferior pode estabelecer particularmente fecunda entre o conteúdo das disposi
uma obrigação contrária à lei e à vontade de seu superior; ções legislativas e o que ele denomina razão ou justiça
mas urna lei que prescreve um ato maldoso vai de encon da lei47. Para que urna lei fique de acordo com a razão,
tro à lei de Deus que o proíbe" 44• Uma lei humana con "não basta que seu conteúdo seja honesto, é preciso que
trária aos mandamentos inscritos na razão natural jamais observe igualmente uma forma justa e razoável"48•
poderá, pois, guardar um poder de obrigação. Para promulgar urna lei segundo uma forma justa, é
Suarez reconhece, porém, a exemplo de Tomás de preciso, salienta Suarez, reunir algumas condições: "A
Aquino, que não é possível deduzir todas as leis civis da primeira corresponde à justiça legal à qual compete por
lei natural. Distingue igualmente, no seio dos preceitos direito buscar o bem comum. [...] A segunda corresponde
da lei de natureza, as determinações e as conclusões. En à justiça comutativa segundo a qual o legislador não deve
tre as leis civis, algumas elaboram um direito novo, en prescrever mais do que lhe é possível. [ ...] A terceira for
quanto outras são simplesmente declarativas, transcre ma de justiça corresponde à justiça distributiva, igual
vem os preceitos da justiça natural. As conclusões da lei mente necessária na lei porque, prescrevendo à multidão,
natural não manifestam, como vimos, nenhum conteú
do jurídico, elas não possibilitam, assim, a instauração de 45. "Seja qual for o grau segundo o qual a instituição da propriedade não
uma partilha justa dos bens. Embora a repartição igual é prescrita pelo direito natural, contudo, uma vez estabelecida e uma vez re
dos bens e a instituição da propriedade privada não se partidos os bens, o direito natural proíbe o roubo ou a apropriação do bem
alheio" (ibid., II, 14, 17, p. 546).
jam deduzidas da lei natural, esta obriga, todavia, o res 46. Ibid., I1, 7, 5, p. 460.
peito dos direitos de propriedade delimitados pelo direi- 47. "Portanto, é evidente que o que é apresentado a uns e aos outros é a
razão da lei, porquanto, como afirma São Paulo: 'Sabemos que o que a lei enun
cia é destinado àqueles que lhe são submetidos.' Logo, a lei implica essencialmen
te uma relação determinada com aqueles a quem ela se impõe, e, por conse
42. Ibid., li, 14, 19, p. 547.
guinte, é necessário explicar os limites dessa relação para desenvolver-lhe a
43. "As leis civis podem mudar ou transferir o direito dominativo por
razão" (ibid., 1, 6, 1, p. 163).
uma razão legítima" (ibid., II, XN, 19, p. 547).
44. Ibid., 1, 9, 4, p. 215.
48. Ibid., l, 9, 12, p. 223.
82 GENEALOGIA DO DLREITO MODERNO
1 SUAREZ: A FUNDAÇÃO DO DlREffO NATURAL SUBJETIVO 83
Mas quais serão as modalidades jurídicas necessá to civil45, proibindo o roubo e a apropriação do bem
rias para tomar legítimas essas modificações do direito alheio.
dominativo?"A liberdade e qualquer direito civil, mesmo Ao contrário, as determinações trazem um conteú
que tenham sido outorgados positivamente pela nature do jurídico que não se conclui da lei de natureza, pois"é
za, podem ser mudados pelo homem, porque, em cada certo que a lei civil não se deduz, por assim dizer, espe
pessoa, seu exercício depende não só de sua própria von culativamente dos primeiros princípios da lei natural e
tade, mas também do Estado." 42 Compete unicamente segundo urna conclusão absoluta. Mas é apresentada
ao direito civil proceder à divisão das propriedades ou li pela vontade do soberano sob a modalidade de urna de
mitar a liberdade de cada um43 • terminação"46.
A lei humana deve se moldar, no teor do que ela A determinação resultará então de urna decisão ar
prescreve, aos princípios da moralidade dispensados pela bitrária do legislador? Suarez vai operar uma distinção
lei natural "já que nenhum ser inferior pode estabelecer particularmente fecunda entre o conteúdo das disposi
uma obrigação contrária à lei e à vontade de seu superior; ções legislativas e o que ele denomina razão ou justiça
mas urna lei que prescreve um ato maldoso vai de encon da lei47. Para que urna lei fique de acordo com a razão,
tro à lei de Deus que o proíbe" 44• Uma lei humana con "não basta que seu conteúdo seja honesto, é preciso que
trária aos mandamentos inscritos na razão natural jamais observe igualmente uma forma justa e razoável"48•
poderá, pois, guardar um poder de obrigação. Para promulgar urna lei segundo uma forma justa, é
Suarez reconhece, porém, a exemplo de Tomás de preciso, salienta Suarez, reunir algumas condições: "A
Aquino, que não é possível deduzir todas as leis civis da primeira corresponde à justiça legal à qual compete por
lei natural. Distingue igualmente, no seio dos preceitos direito buscar o bem comum. [...] A segunda corresponde
da lei de natureza, as determinações e as conclusões. En à justiça comutativa segundo a qual o legislador não deve
tre as leis civis, algumas elaboram um direito novo, en prescrever mais do que lhe é possível. [ ...] A terceira for
quanto outras são simplesmente declarativas, transcre ma de justiça corresponde à justiça distributiva, igual
vem os preceitos da justiça natural. As conclusões da lei mente necessária na lei porque, prescrevendo à multidão,
natural não manifestam, como vimos, nenhum conteú
do jurídico, elas não possibilitam, assim, a instauração de 45. "Seja qual for o grau segundo o qual a instituição da propriedade não
uma partilha justa dos bens. Embora a repartição igual é prescrita pelo direito natural, contudo, uma vez estabelecida e uma vez re
dos bens e a instituição da propriedade privada não se partidos os bens, o direito natural proíbe o roubo ou a apropriação do bem
alheio" (ibid., II, 14, 17, p. 546).
jam deduzidas da lei natural, esta obriga, todavia, o res 46. Ibid., I1, 7, 5, p. 460.
peito dos direitos de propriedade delimitados pelo direi- 47. "Portanto, é evidente que o que é apresentado a uns e aos outros é a
razão da lei, porquanto, como afirma São Paulo: 'Sabemos que o que a lei enun
cia é destinado àqueles que lhe são submetidos.' Logo, a lei implica essencialmen
te uma relação determinada com aqueles a quem ela se impõe, e, por conse
42. Ibid., li, 14, 19, p. 547.
guinte, é necessário explicar os limites dessa relação para desenvolver-lhe a
43. "As leis civis podem mudar ou transferir o direito dominativo por
razão" (ibid., 1, 6, 1, p. 163).
uma razão legítima" (ibid., II, XN, 19, p. 547).
44. Ibid., 1, 9, 4, p. 215.
48. Ibid., l, 9, 12, p. 223.
84 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO SUAREZ: A FUNDAÇÃO DO DIREITO NATURAL SUBJETIVO 85
ela distribui, por assim dizer, um encargo entre as dife Se uma lei só pode ser justa com a condição de se
rentes partes da comunidade conforme o bem delas."'19 ordenar para o interesse comum, Suarez salienta, como
Suarez toma cuidado em dissociar essas normas for vimos, que ela deve respeitar a forma da justiça distribu
mais da justiça, que definem a razão da lei, das normas tiva50 : "A lei é normalmente apresentada à comunidade
materiais ou morais dispensadas pela lei da natureza. considerada não coletivamente, mas distributivamente,
Em que sentido será concebível dissociar a moralidade ou seja, para que todos e cada um, na medida em que
da lei das exigências da justiça. legal? constituem a comunidade, se moldem a ela segundo uma
Como indicamos, não é crível, segundo Tomás de divisão de acordo com a condição da lei." 51 A dimensão
Aquino, que uma lei conforme à honestidade não seja, distributiva da lei civil está na origem da nova relação
ao mesmo tempo, ordenada para o bem comum. Dado moral que une os cidadãos.
que o bem moral individual e o bem comum permane O vínculo moral que une os sujeitos não provém so
cem indissociáveis, é inconcebível que uma lei civil pos mente do império da lei natural que estabelece uma ver
sa visar o bem moral do homem sem que combine com dadeira comunidade entre os homens52 • A" comunidade
o bem da comunidade. Ora, operando uma distinção política ou mística [é] unida moralmente em congrega
entre a matéria e a razão da lei, Suarez estima que pode ção por intermédio de vínculos específicos" 53. A lei dis
sobrevir um conflito entre o bem moral individual e o tributiva, que se dirige aos sujeitos através da singulari
bem comum. Uma lei moral, se bem que prescreva uma dade de seus direitos subjetivos, institui, entre eles, uma
ação conforme à natureza racional do homem, poderia, correlação moral, pois ela os submete igualmente à lei
nessa hipótese, ir de encontro às exigências da justiça que emana de um superior. Segundo Suarez, é impor
geral. Segundo ele, parece possível prescrever, de ma tante estabelecer a existência de uma nova forma de re
neira injusta, coisas por outro lado conformes à lei na
lação moral que já não vincula os indivíduos coletiva
tural. Mas, nessa nova perspectiva, somente a justiça le
mente ao bem comum segundo uma finalidade natural,
gal se choca contra a esfera moral, e não a justiça parti
mas que os apreende distributivamente segundo a sin
cular, garante das relações de igualdade imanentes às
gularidade dé seus direitos subjetivos. Uma lei civil geral
relações sociais.
institui uma relação moral entre os sujeitos, pois estabe
Qual será a concepção do bem comum que autoriza
lece uma correlação entre seus direitos subjetivos, em
tal conjetura? Unicamente a consideração de um inte
resse comum tem condições de entrar em conflito com o
bem moral individual. Suarez reforça assim essa nova 50. "A terceira forma de justiça corresponde à justiça distributiva, igual
mente necessária na lei porque, prescrevendo para a multidão, ela distribui,
concepção da justiça legal, vislumbrada por Ockham, que por assim dizer, um encargo entre as diferentes partes da comunidade segun
se separa do bem comum para melhor preservar o inte do o bem delas. É por isso que é preciso observar nessa distribuição uma
igualdade proporcional que compete à justiça distributiva" (ibid., 1, IX, 13,
resse de todos. pp. 223-4).
51. lbid., 1, 6, 17, p. 178.
52. /bid., I, 6, 18, p. 178.
49. lbid., 1, 9, 13, p. 223. 53. /bid.
84 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO SUAREZ: A FUNDAÇÃO DO DIREITO NATURAL SUBJETIVO 85
ela distribui, por assim dizer, um encargo entre as dife Se uma lei só pode ser justa com a condição de se
rentes partes da comunidade conforme o bem delas."'19 ordenar para o interesse comum, Suarez salienta, como
Suarez toma cuidado em dissociar essas normas for vimos, que ela deve respeitar a forma da justiça distribu
mais da justiça, que definem a razão da lei, das normas tiva50 : "A lei é normalmente apresentada à comunidade
materiais ou morais dispensadas pela lei da natureza. considerada não coletivamente, mas distributivamente,
Em que sentido será concebível dissociar a moralidade ou seja, para que todos e cada um, na medida em que
da lei das exigências da justiça. legal? constituem a comunidade, se moldem a ela segundo uma
Como indicamos, não é crível, segundo Tomás de divisão de acordo com a condição da lei." 51 A dimensão
Aquino, que uma lei conforme à honestidade não seja, distributiva da lei civil está na origem da nova relação
ao mesmo tempo, ordenada para o bem comum. Dado moral que une os cidadãos.
que o bem moral individual e o bem comum permane O vínculo moral que une os sujeitos não provém so
cem indissociáveis, é inconcebível que uma lei civil pos mente do império da lei natural que estabelece uma ver
sa visar o bem moral do homem sem que combine com dadeira comunidade entre os homens52 • A" comunidade
o bem da comunidade. Ora, operando uma distinção política ou mística [é] unida moralmente em congrega
entre a matéria e a razão da lei, Suarez estima que pode ção por intermédio de vínculos específicos" 53. A lei dis
sobrevir um conflito entre o bem moral individual e o tributiva, que se dirige aos sujeitos através da singulari
bem comum. Uma lei moral, se bem que prescreva uma dade de seus direitos subjetivos, institui, entre eles, uma
ação conforme à natureza racional do homem, poderia, correlação moral, pois ela os submete igualmente à lei
nessa hipótese, ir de encontro às exigências da justiça que emana de um superior. Segundo Suarez, é impor
geral. Segundo ele, parece possível prescrever, de ma tante estabelecer a existência de uma nova forma de re
neira injusta, coisas por outro lado conformes à lei na
lação moral que já não vincula os indivíduos coletiva
tural. Mas, nessa nova perspectiva, somente a justiça le
mente ao bem comum segundo uma finalidade natural,
gal se choca contra a esfera moral, e não a justiça parti
mas que os apreende distributivamente segundo a sin
cular, garante das relações de igualdade imanentes às
gularidade dé seus direitos subjetivos. Uma lei civil geral
relações sociais.
institui uma relação moral entre os sujeitos, pois estabe
Qual será a concepção do bem comum que autoriza
lece uma correlação entre seus direitos subjetivos, em
tal conjetura? Unicamente a consideração de um inte
resse comum tem condições de entrar em conflito com o
bem moral individual. Suarez reforça assim essa nova 50. "A terceira forma de justiça corresponde à justiça distributiva, igual
mente necessária na lei porque, prescrevendo para a multidão, ela distribui,
concepção da justiça legal, vislumbrada por Ockham, que por assim dizer, um encargo entre as diferentes partes da comunidade segun
se separa do bem comum para melhor preservar o inte do o bem delas. É por isso que é preciso observar nessa distribuição uma
igualdade proporcional que compete à justiça distributiva" (ibid., 1, IX, 13,
resse de todos. pp. 223-4).
51. lbid., 1, 6, 17, p. 178.
52. /bid., I, 6, 18, p. 178.
49. lbid., 1, 9, 13, p. 223. 53. /bid.
86 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO SUAREZ: A FUNDAÇÃO DO DIREITO NATURAL SUBJETIVO 87
virtude da autoridade superior de que emana54 . Esse vín realidade, na qual as coisas não são intrinsecamente nem
culo moral se instaura quando indivíduos que dispõem boas nem más,"o ato se torna bom a partir da eficácia e
de direitos subjetivos se submetem livremente à lei que da finalidade da lei"57• Suarez transpõe, pois, para o cam
provém de uma autoridade superior. po jurídico a moral nominalista que supõe a submissão
A lei civil já não se pauta, pois, por um bem comum de uma vontade livre à autoridade de uma instância su
que lhe é preexistente, por uma relação moral entre o in perior. Uma vez que a lei positiva emana da autoridade
divíduo e a comunidade, mas ela estabelece um vínculo, de um superior, ela parece dotada de um terrível poder
que garante o interesse comum, entre os direitos de cada de criação dos valores, na origem da instituição de um
um. Embora Suarez conceda à análise tomista que o bem interesse comum.
comum "não depende da intenção do legislador", ele pa Enquanto na análise tomista o correlato do bem co
rece, não obstante, resultar da coordenação que a lei civil mum era o bem moral individual, a partir daí o corolário
impõe aos poderes morais de cada indivíduo55. O interes da utilidade comum é um ato moralmente indiferente,
se comum provém, portanto, da supremacia pela qual ele supõe a proteção dos direitos individuais. A defesa,
axiologicamente neutra, do direito subjetivo reveste en
uma autoridade soberana consegue assegurar a coexis
tão uma dimensão moral.
tência entre os direitos subjetivos segundo uma lei geral.
A análise do interesse comum abandona a questão
A concepção da justiça legal proposta por Suarez
da igualdade imanente às relações sociais para se consa
aparece no princípio de uma nova forma de confusão
grar à defesa dos direitos subjetivos. Os direitos do indi
entre a esfera moral e a ordem do direito. A justiça par
víduo deverão doravante se pautar pela utilidade co
ticular se esvai em proveito unicamente da justiça legal, mum e não mais pelo que é devido a cada indivíduo, em
concebida como a relação moral que uma lei geral insti virtude de uma relação ligada pela igualdade. Essa nova
tui entre direitos subjetivos. Esse vínculo moral, consti concepção da justiça legal abole a um só tempo a consi
tutivo da ordem jurídica, repousa na obediência a co deração do bem moral imanente ao indivíduo, assim
mandos positivos56• como a atenção à repartição dos bens exteriores que de
Reencontramos assim a concepção já defendida por correm de uma relação jurídica.
Ockham, segundo a qual os "atos indiferentes" consti
tuem o campo próprio da lei positiva. Nessa ordem de
54. "O preceito legal como tal requer necessariamente um poder supe
rior daquele que prescreve sobre aquele a quem se dirige o preceito" (ibid., 1,
8, 3, p. 202). "Um homem qualquer não pode prescrever a outro homem, nem
um igual (para dizê-lo assim) obrigar um igual" (ibid., p. 203).
55. Ibid., 1, 7, 9, p. 192. M. Bastit, Naissance de la /oi moderne, op. cit., pp.
321-2.
56. "A lei positiva, no sentido próprio, é aquela que acrescenta uma obri
gação à margem do que a natureza intrínseca do objeto exige" (De legibus, Il,
6, 7, p. 461). 57. Jbid., I, 9, 5, p. 216.
86 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO SUAREZ: A FUNDAÇÃO DO DIREITO NATURAL SUBJETIVO 87
virtude da autoridade superior de que emana54 . Esse vín realidade, na qual as coisas não são intrinsecamente nem
culo moral se instaura quando indivíduos que dispõem boas nem más,"o ato se torna bom a partir da eficácia e
de direitos subjetivos se submetem livremente à lei que da finalidade da lei"57• Suarez transpõe, pois, para o cam
provém de uma autoridade superior. po jurídico a moral nominalista que supõe a submissão
A lei civil já não se pauta, pois, por um bem comum de uma vontade livre à autoridade de uma instância su
que lhe é preexistente, por uma relação moral entre o in perior. Uma vez que a lei positiva emana da autoridade
divíduo e a comunidade, mas ela estabelece um vínculo, de um superior, ela parece dotada de um terrível poder
que garante o interesse comum, entre os direitos de cada de criação dos valores, na origem da instituição de um
um. Embora Suarez conceda à análise tomista que o bem interesse comum.
comum "não depende da intenção do legislador", ele pa Enquanto na análise tomista o correlato do bem co
rece, não obstante, resultar da coordenação que a lei civil mum era o bem moral individual, a partir daí o corolário
impõe aos poderes morais de cada indivíduo55. O interes da utilidade comum é um ato moralmente indiferente,
se comum provém, portanto, da supremacia pela qual ele supõe a proteção dos direitos individuais. A defesa,
axiologicamente neutra, do direito subjetivo reveste en
uma autoridade soberana consegue assegurar a coexis
tão uma dimensão moral.
tência entre os direitos subjetivos segundo uma lei geral.
A análise do interesse comum abandona a questão
A concepção da justiça legal proposta por Suarez
da igualdade imanente às relações sociais para se consa
aparece no princípio de uma nova forma de confusão
grar à defesa dos direitos subjetivos. Os direitos do indi
entre a esfera moral e a ordem do direito. A justiça par
víduo deverão doravante se pautar pela utilidade co
ticular se esvai em proveito unicamente da justiça legal, mum e não mais pelo que é devido a cada indivíduo, em
concebida como a relação moral que uma lei geral insti virtude de uma relação ligada pela igualdade. Essa nova
tui entre direitos subjetivos. Esse vínculo moral, consti concepção da justiça legal abole a um só tempo a consi
tutivo da ordem jurídica, repousa na obediência a co deração do bem moral imanente ao indivíduo, assim
mandos positivos56• como a atenção à repartição dos bens exteriores que de
Reencontramos assim a concepção já defendida por correm de uma relação jurídica.
Ockham, segundo a qual os "atos indiferentes" consti
tuem o campo próprio da lei positiva. Nessa ordem de
54. "O preceito legal como tal requer necessariamente um poder supe
rior daquele que prescreve sobre aquele a quem se dirige o preceito" (ibid., 1,
8, 3, p. 202). "Um homem qualquer não pode prescrever a outro homem, nem
um igual (para dizê-lo assim) obrigar um igual" (ibid., p. 203).
55. Ibid., 1, 7, 9, p. 192. M. Bastit, Naissance de la /oi moderne, op. cit., pp.
321-2.
56. "A lei positiva, no sentido próprio, é aquela que acrescenta uma obri
gação à margem do que a natureza intrínseca do objeto exige" (De legibus, Il,
6, 7, p. 461). 57. Jbid., I, 9, 5, p. 216.
Capítulo V
Grócio: uma nova concepção
da justiça comutativa
dão pelo Estado, não é em virtude da contribuição do não tenha menos, ao termo da transação, do que o direi
particular para a coletividade, mas porque o Estado se to subjetivo que ele possuía originalmente27.
terá comprometido, por uma "promessa perfeita", a res Grócio infere a exigência de igualdade da natureza
tituir a soma gasta por este. Na ausência de promessa, a do ato contratual "que foi imaginado com o intuito da
obrigação atribuída ao Estado seria, por conseguinte, utilidade"28. A fim de discernir a natureza do contrato, é
simplesmente moral, o que não autorizaria o cidadão a preciso identificar a intenção que inspirou sua execução.
reivindicar um direito. Segundo Aristóteles, ao contrário, Uma vez que um homem transfere um direito, devemos
a promessa não interfere com o que é devido a cada um, supor que o faz para a sua própria utilidade, ou seja, com
já que o direito resulta de uma relação de igualdade a intenção de receber um direito equivalente. Nesse sen
imanente, sempre independente da vontade dos con tido, cumpre reconhecer nos contratos injustos quer o
tratantes. efeito de uma vontade de enganar o outro sobre o valor
O Estado não recorre, segundo Grócio, a nenhuma da coisa trocada29, quer o efeito de um erro sobre a esti
r
distibuição quando faz justiça ao cidadão, limita-se a mativa do preço da mercadoria30• Em ambos os casos, a
cumprir sua parte do contrato comutativo23• Ao passo exigência de igualdade não é satisfeita e o contrato deve
que a justiça distributiva particular requer, segundo Aris ser corrigido. Tendo em conta a intenção das partes, a
tóteles, que os direitos de cada um sejam determinados justiça do contrato exige que se proceda a transferências
segundo uma relação de igualdade imanente, o exercício de direitos subjetivos iguais, que a alienação desses di
da justiça comutativa é daí em diante subordinado a reitos se efetue segundo a forma da reciprocidade.
uma transferência de direitos subjetivos. A justiça comutativa visa a preservação de um direi
O que distinguirá essa transferência de direitos sub to subjetivo, por meio de uma transferência de direitos
jetivos da justiça comutativa concebida por Aristóteles?24 equivalentes. Grócio só concebe os direitos dos sujeitos
Segundo Grócio, "a natureza ordena observar a igual através do consentimento que os une, ao passo que, para
dade nos contratos, a ponto mesmo que da desigualda Aristóteles, os direitos emanam necessariamente de uma
de deva nascer o direito em proveito de quem obteve relação social objetiva.
menos"25.Assim, "o que prometem ou o que dão, presu Portanto, estamos autorizados a reivindicar direitos
me-se que o prometem ou o dão como o equivalente do apenas a partir de direitos subjetivos formalmente ad
que receberão, e como devido em razão dessa igualda quiridos. No exemplo proposto por Grócio, na ausência
de"26. A justiça comutativa consiste em que o cidadão de promessa da autoridade soberana, estaríamos lidan
do, da parte do particular, com um contrato "de benevo-
23. DGP, li, Xll, lll, 1, p. 332; DGP, LI, Xll, IV, p. 334.
24. "O justo nas transações privadas, sendo uma espécie de igual, e o in
justo uma espécie de desigual, não é, entretanto, o igual segundo a proporção 27. "Mas, em todos os contratos comutativos, essa igualdade deve ser
de há pouco, mas segundo a proporção aritmética" (Éthique à Nicomnque, V, 7, escrupulosamente observada" (DGP, n, XII, XI, 1, p. 337).
1131 b-1132 a, p. 232). 28. DGP, U, XII, LX, 1, p. 335.
25. DGP, II, XII, Vlll, p. 335. 29. Ibid.
26. DGP, li, Xll, XI, 1, p. 337. 30. DGP, li, XII, XIV, 1, p. 339.
94 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO GRÓOO: UMA NOVA CONCEPÇÃO DA JUSTIÇA COMUTATIVA 95
dão pelo Estado, não é em virtude da contribuição do não tenha menos, ao termo da transação, do que o direi
particular para a coletividade, mas porque o Estado se to subjetivo que ele possuía originalmente27.
terá comprometido, por uma "promessa perfeita", a res Grócio infere a exigência de igualdade da natureza
tituir a soma gasta por este. Na ausência de promessa, a do ato contratual "que foi imaginado com o intuito da
obrigação atribuída ao Estado seria, por conseguinte, utilidade"28. A fim de discernir a natureza do contrato, é
simplesmente moral, o que não autorizaria o cidadão a preciso identificar a intenção que inspirou sua execução.
reivindicar um direito. Segundo Aristóteles, ao contrário, Uma vez que um homem transfere um direito, devemos
a promessa não interfere com o que é devido a cada um, supor que o faz para a sua própria utilidade, ou seja, com
já que o direito resulta de uma relação de igualdade a intenção de receber um direito equivalente. Nesse sen
imanente, sempre independente da vontade dos con tido, cumpre reconhecer nos contratos injustos quer o
tratantes. efeito de uma vontade de enganar o outro sobre o valor
O Estado não recorre, segundo Grócio, a nenhuma da coisa trocada29, quer o efeito de um erro sobre a esti
r
distibuição quando faz justiça ao cidadão, limita-se a mativa do preço da mercadoria30• Em ambos os casos, a
cumprir sua parte do contrato comutativo23• Ao passo exigência de igualdade não é satisfeita e o contrato deve
que a justiça distributiva particular requer, segundo Aris ser corrigido. Tendo em conta a intenção das partes, a
tóteles, que os direitos de cada um sejam determinados justiça do contrato exige que se proceda a transferências
segundo uma relação de igualdade imanente, o exercício de direitos subjetivos iguais, que a alienação desses di
da justiça comutativa é daí em diante subordinado a reitos se efetue segundo a forma da reciprocidade.
uma transferência de direitos subjetivos. A justiça comutativa visa a preservação de um direi
O que distinguirá essa transferência de direitos sub to subjetivo, por meio de uma transferência de direitos
jetivos da justiça comutativa concebida por Aristóteles?24 equivalentes. Grócio só concebe os direitos dos sujeitos
Segundo Grócio, "a natureza ordena observar a igual através do consentimento que os une, ao passo que, para
dade nos contratos, a ponto mesmo que da desigualda Aristóteles, os direitos emanam necessariamente de uma
de deva nascer o direito em proveito de quem obteve relação social objetiva.
menos"25.Assim, "o que prometem ou o que dão, presu Portanto, estamos autorizados a reivindicar direitos
me-se que o prometem ou o dão como o equivalente do apenas a partir de direitos subjetivos formalmente ad
que receberão, e como devido em razão dessa igualda quiridos. No exemplo proposto por Grócio, na ausência
de"26. A justiça comutativa consiste em que o cidadão de promessa da autoridade soberana, estaríamos lidan
do, da parte do particular, com um contrato "de benevo-
23. DGP, li, Xll, lll, 1, p. 332; DGP, LI, Xll, IV, p. 334.
24. "O justo nas transações privadas, sendo uma espécie de igual, e o in
justo uma espécie de desigual, não é, entretanto, o igual segundo a proporção 27. "Mas, em todos os contratos comutativos, essa igualdade deve ser
de há pouco, mas segundo a proporção aritmética" (Éthique à Nicomnque, V, 7, escrupulosamente observada" (DGP, n, XII, XI, 1, p. 337).
1131 b-1132 a, p. 232). 28. DGP, U, XII, LX, 1, p. 335.
25. DGP, II, XII, Vlll, p. 335. 29. Ibid.
26. DGP, li, Xll, XI, 1, p. 337. 30. DGP, li, XII, XIV, 1, p. 339.
96 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO GRÓOO: UMA NOVA CONCEPÇÃO DA JUSTIÇA COMUTATNA 97
lência puramente gratuita" 3 1, que é "um fato útil, do qual to"34• Será possível estabelecer uma relação de preemi
não é necessário falar, porquanto propicia, na verdade, nência entre a lei natural e os direitos subjetivos naturais?
utilidade, mas não produz nenhum efeito de direito. Dá A lei natural encontra sua fonte em tudo o que favo
se o mesmo com a doação pela qual a propriedade é rece a vida social35, ela revela, sob a forma de injunções
transferida"32• Não é concebível que uma autêntica dfa tiradas da razão36, a sociabilidade natural do homem. Os
tribuição possa aplicar-se a outra coisa senão a aptidões, preceitos da lei natural não coincidem com uma inclina
sendo que estas sempre dependem das virtudes morais ção imanente que procederia do dinamismo de nossa
e não do direito propriamente dito33 • Quem não tem di natureza, são impostos pela razão sob a forma de co
reitos efetivos sobre uma coisa nunca pode reivindicar mandos. Mas, segundo Grócio, esses preceitos sempre
um título de propriedade, mesmo que uma parte lhe seja continuariam válidos "mesmo quando concordássemos,
devida em virtude de relações de igualdade imanentes. o que não pode ser aceito sem um grande crime, que não
É por não poder conceber relações jurídkas inde há Deus ou que os problemas humanos não são objeto
pendentemente de direitos subjetivos preexistentes que de seus cuidados"37• Se Deus continua sendo o autor da
Grócio assimila o que Aristóteles distinguira tão ciosa natureza, o homem pode apreender as exigências de seu
mente, a distribuição moral e a distribuição jurídica, ane ser independentemente da revelação e do conhecimen
xando à moral tudo o que, em Aristóteles, pertencia à to de sua destinação sobrenatural. Grócio, na esteira de
justiça distributiva particular. Suarez, separa a ordem da natureza da ordem da revela
ção para alcançar a pura natureza38•
Os preceitos da lei natural manifestam, sob a forma
A origem dos direitos subjetivos de mandamentos, o conjunto dos deveres necessários à
coesão da sociedade. Mas as obrigações da lei natural, a
Mas, se a justiça particular já não intervém na distri exemplo das qualidades morais, nã .o concernem todas
buição dos bens, falta identificar a fonte dos direitos ad ao mesmo gênero. Embora certos preceitos imponham
quiridos. O direito subjetivo de propriedade procede da deveres cujo respeito é estritamente obrigatório, eles não
lei natural? conferem nenhum direito aos particulares, do qual cada
O direito, além de designar a faculdade, é "sinônimo um seria beneficiário39 • Assim, os deveres dos filhos para
de lei, tomado no sentido mais amplo, e que significa
uma regra das ações morais que obrigam ao que é hones- 34. DGP, 1, 1, IX, p. 37.
35. DGP, Prolégomenes, Vlll, p. 11.
36. "Preocupei-me de início em vincular as provas das coisas que dizem
respeito ao direito da natureza a noções tão certas que ninguém possa negá-las
31. DGP, li, XII, 11, p. 332. a não ser que se force. Os princípios, de fato, desse direito, se prestardes bem
32. Ibid. atenção, são por si sós claros e evidentes, quase a exemplo das coisàs que per
33. "Ocorre, de fato, em muitos casos, que exista uma obrigação em nós, cebemos pelos sentidos exteriores" (DGP, Prolégomenes, XXXIX).
sem que nenhum direito seja conferido a outrem; como se nota no dever de 37. DGP, Prolégomenes, XI, p. 2. Cf. Suarez, De legib11s, 11, 6, 3, p. 429.
caridade e do reconhecimento, com o qual se parece esse dever da constância 38. J. Terrel, Les Théories d11 pncte socinI, op. cit., pp. 33-4.
em manter a palavra, ou da fidelidade" (DGP, 11, XI, IU, p. 320). 39. DGP, 1, 1, IX, 1, pp. 37-8.
96 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO GRÓOO: UMA NOVA CONCEPÇÃO DA JUSTIÇA COMUTATNA 97
lência puramente gratuita" 3 1, que é "um fato útil, do qual to"34• Será possível estabelecer uma relação de preemi
não é necessário falar, porquanto propicia, na verdade, nência entre a lei natural e os direitos subjetivos naturais?
utilidade, mas não produz nenhum efeito de direito. Dá A lei natural encontra sua fonte em tudo o que favo
se o mesmo com a doação pela qual a propriedade é rece a vida social35, ela revela, sob a forma de injunções
transferida"32• Não é concebível que uma autêntica dfa tiradas da razão36, a sociabilidade natural do homem. Os
tribuição possa aplicar-se a outra coisa senão a aptidões, preceitos da lei natural não coincidem com uma inclina
sendo que estas sempre dependem das virtudes morais ção imanente que procederia do dinamismo de nossa
e não do direito propriamente dito33 • Quem não tem di natureza, são impostos pela razão sob a forma de co
reitos efetivos sobre uma coisa nunca pode reivindicar mandos. Mas, segundo Grócio, esses preceitos sempre
um título de propriedade, mesmo que uma parte lhe seja continuariam válidos "mesmo quando concordássemos,
devida em virtude de relações de igualdade imanentes. o que não pode ser aceito sem um grande crime, que não
É por não poder conceber relações jurídkas inde há Deus ou que os problemas humanos não são objeto
pendentemente de direitos subjetivos preexistentes que de seus cuidados"37• Se Deus continua sendo o autor da
Grócio assimila o que Aristóteles distinguira tão ciosa natureza, o homem pode apreender as exigências de seu
mente, a distribuição moral e a distribuição jurídica, ane ser independentemente da revelação e do conhecimen
xando à moral tudo o que, em Aristóteles, pertencia à to de sua destinação sobrenatural. Grócio, na esteira de
justiça distributiva particular. Suarez, separa a ordem da natureza da ordem da revela
ção para alcançar a pura natureza38•
Os preceitos da lei natural manifestam, sob a forma
A origem dos direitos subjetivos de mandamentos, o conjunto dos deveres necessários à
coesão da sociedade. Mas as obrigações da lei natural, a
Mas, se a justiça particular já não intervém na distri exemplo das qualidades morais, nã .o concernem todas
buição dos bens, falta identificar a fonte dos direitos ad ao mesmo gênero. Embora certos preceitos imponham
quiridos. O direito subjetivo de propriedade procede da deveres cujo respeito é estritamente obrigatório, eles não
lei natural? conferem nenhum direito aos particulares, do qual cada
O direito, além de designar a faculdade, é "sinônimo um seria beneficiário39 • Assim, os deveres dos filhos para
de lei, tomado no sentido mais amplo, e que significa
uma regra das ações morais que obrigam ao que é hones- 34. DGP, 1, 1, IX, p. 37.
35. DGP, Prolégomenes, Vlll, p. 11.
36. "Preocupei-me de início em vincular as provas das coisas que dizem
respeito ao direito da natureza a noções tão certas que ninguém possa negá-las
31. DGP, li, XII, 11, p. 332. a não ser que se force. Os princípios, de fato, desse direito, se prestardes bem
32. Ibid. atenção, são por si sós claros e evidentes, quase a exemplo das coisàs que per
33. "Ocorre, de fato, em muitos casos, que exista uma obrigação em nós, cebemos pelos sentidos exteriores" (DGP, Prolégomenes, XXXIX).
sem que nenhum direito seja conferido a outrem; como se nota no dever de 37. DGP, Prolégomenes, XI, p. 2. Cf. Suarez, De legib11s, 11, 6, 3, p. 429.
caridade e do reconhecimento, com o qual se parece esse dever da constância 38. J. Terrel, Les Théories d11 pncte socinI, op. cit., pp. 33-4.
em manter a palavra, ou da fidelidade" (DGP, 11, XI, IU, p. 320). 39. DGP, 1, 1, IX, 1, pp. 37-8.
98 GENEALOGlA DO DIREITO MODERNO GRÓC/O: UMA NOVA CONCEPÇÃO DA JUSTIÇA COMUTATNA 99
com os pais se fundamentam na piedade filial sem que proprietário e implica abster-se do bem que lhe foi alie
os pais sejam autorizados a reivindicar o reconhecimen nado. A lei natural só é portadora de uma obrigação ju
to como um direito40 • Essas obrigações pertencem ao di rídica por causa de direitos subjetivos de propriedade
reito, mas num sentido amplo, um direito que inclui o adquiridos. A transferência do direito subjetivo se en
conjunto dos deveres morais41 • Contudo, a lei natural é contra, pois, no fundamento de uma obrigação jurídica
igualmente portadora de uma obrigação, não mais mo que invade, de uma parte, o campo da lei natural, a par
tir de então encarregada de proteger juridicamente os
ral, mas estritamente jurídica.
direitos subjetivos de que os indivíduos ctispõem. Nesse
É do dever de cada um "abster-se do bem alheio",
sentido, a obrigação jurídica já não coincide com o vín
11
cumprir suas promessas" e reparar o dano causado por
II
40. "Não sendo essa obrigação fundamentada num direito [ ...] mas na 44. DGP, II, n, 1, p. 179.
piedade filial, no respeito, no reconhecimento, o que fosse feito contrariamen 45."Pode-se fazer uma ideia disso pela comparação que se encontra em
te a esse dever não seria mais nulo do que o seria uma doação feita por um Cícero, no livrom, de seu tratado De finibus: 'Ainda que o teatro seja comum,
proprietário qualquer, contra as regras da economia" (DGP, a, V, li(, 11, p. 223). pode-se no entanto dizer, com razão, que cada lugar pertence àquele que o
41. "Dessa noção de direito decorreu uma outra mais ampla" (DGP, IX, ocupa"' (ibid.).
p. 11). 46. "Todas as coisas, como diz Justino, continuavam comuns e perten
42. Ibid. ciam indivisamente a todos como um patrimônio comum. Disso decorria que
43. A. Matheron, "Spinoza et la problématique juridique de Grotius", op. cada homem podia apoderar-se, para suas necessidades, do que queria, e con
cil., p. 84. sumir o que podia ser consumido" (ibid.).
98 GENEALOGlA DO DIREITO MODERNO GRÓC/O: UMA NOVA CONCEPÇÃO DA JUSTIÇA COMUTATNA 99
com os pais se fundamentam na piedade filial sem que proprietário e implica abster-se do bem que lhe foi alie
os pais sejam autorizados a reivindicar o reconhecimen nado. A lei natural só é portadora de uma obrigação ju
to como um direito40 • Essas obrigações pertencem ao di rídica por causa de direitos subjetivos de propriedade
reito, mas num sentido amplo, um direito que inclui o adquiridos. A transferência do direito subjetivo se en
conjunto dos deveres morais41 • Contudo, a lei natural é contra, pois, no fundamento de uma obrigação jurídica
igualmente portadora de uma obrigação, não mais mo que invade, de uma parte, o campo da lei natural, a par
tir de então encarregada de proteger juridicamente os
ral, mas estritamente jurídica.
direitos subjetivos de que os indivíduos ctispõem. Nesse
É do dever de cada um "abster-se do bem alheio",
sentido, a obrigação jurídica já não coincide com o vín
11
cumprir suas promessas" e reparar o dano causado por
II
40. "Não sendo essa obrigação fundamentada num direito [ ...] mas na 44. DGP, II, n, 1, p. 179.
piedade filial, no respeito, no reconhecimento, o que fosse feito contrariamen 45."Pode-se fazer uma ideia disso pela comparação que se encontra em
te a esse dever não seria mais nulo do que o seria uma doação feita por um Cícero, no livrom, de seu tratado De finibus: 'Ainda que o teatro seja comum,
proprietário qualquer, contra as regras da economia" (DGP, a, V, li(, 11, p. 223). pode-se no entanto dizer, com razão, que cada lugar pertence àquele que o
41. "Dessa noção de direito decorreu uma outra mais ampla" (DGP, IX, ocupa"' (ibid.).
p. 11). 46. "Todas as coisas, como diz Justino, continuavam comuns e perten
42. Ibid. ciam indivisamente a todos como um patrimônio comum. Disso decorria que
43. A. Matheron, "Spinoza et la problématique juridique de Grotius", op. cada homem podia apoderar-se, para suas necessidades, do que queria, e con
cil., p. 84. sumir o que podia ser consumido" (ibid.).
100 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO GRÓOO: UMA NOVA CONCEPÇÃO DA JUSTIÇA COMUTATIVA 101
Se, como escreve Grócio, "aquilo de que cada um ro ocupante, mas, se a pessoa se levanta e uma outra o
se tinha apoderado, outro não podia tirar-lhe sem in toma, a injustiça será tanto mais difícil para estabelecer
justiça"47, devemos admitir que a obrigação jurídica que quanto a vontade da primeira pessoa de se tornar pro
prescreve "abster-se do bem aJheio" 48 já é válida no es prietária do lugar permanecer desprovida de publicida
tado de inocência. Em consequência, o direito subje de. Os direitos subjetivos de propriedade existem no es
tivo de propriedade parece preceder toda legislação ci tado de inocência, mas são dificilmente discerníveis.
vil ou todo acordo entre os homens. Mas será por isso A convenção pela quaJ "(...] todos ficaram de acordo
natural? que o que cada um ocuparia; ele o possuiria como coisa
Esse direito pode ser diretamente inferido do domi particular"51 confere transparência às relações de pro
nium natural que Deus conferiu ao homem. Nesse sen priedade e facilita, assim, a aplicação dos preceitos jurí
tido, como observamos, Grócio se insere na tradição que dicos da lei naturaJ. Tornando públicas as relações de
põe o dominium na origem do direito subjetivo. Mas o propriedade, essa convenção favorece a paz entre os ho
direito de propriedade é, porém, "o resultado de uma mens e reduz as ocasiões de conflito. São as consequên
convenção, seja expressa, por meio de uma partilha, por cias da queda vinculadas ao desenvolvimento das técni
exemplo; seja tácita, mediante, por exemplo, uma ocupa cas que tornarão necessário o reconhecimento público
ção"49. A convenção acrescenta um elemento ao direito da propriedade52•
do primeiro ocupante que seria constitutivo do direito de Mas esse reconhecimento público não institui esses
propriedade? direitos, os quais procedem diretamente da providência
Como vimos, o direito do primeiro ocupante não divina. O consentimento, tácito ou expresso, que segun
procede de um princípio convencionaJ, mas do fato de do Grócio dá origem ao direito de propriedade, mais per
que Deus quis que o homem exercesse urna dominação mite o reconhecimento de um direito do que a sua insti
sobre as coisas naturais. O consentimento implica, po tuição53. O exercício da justiça comutativa se enraíza no
rém, a vantagem de suscitar um reconhecimento públi direito do primeiro ocupante e não procede de uma jus
co do que cada um quer tomar seu. A vontade privada e ta distribuição dos benss,1 •
secreta de cada um dos proprietários não basta para esse A apropriação e a primeira ocupação substituem a
fim50 . Na ausência de reconhecimento público, um pro distribuição anteriormente atribuída à justiça particu
prietário encontrará dificuldades para fazer vaJer seu di lar. A primeira convenção certifica legalmente relações
reito. O lugar de teatro pertence efetivamente ao primei-
51. DGP, U, li, li, 5, p. 182.
47. lbid. 52. DGP, fl, 11, 11, 1-4, p. 180.
48. DGP, Prolégomenes, VIII, p. 11. 53. R. Tuck, Natuml Rights Theories, op. cit., p. 77.
49. lbid., 11, fl, 11, 5, p. 182. 54. "Grócio atribui a esse 'modo de aquisição original' um alcance uni
50. "Aprendemos, ao mesmo tempo, como as coisas se tomaram proprie versal: por uma primeira ocupação se justificariam não só as posses imobiliá
dades.Isso não ocorreu por um mero ato de vontade; pois os outros não po rias de qualquer particular, mas também as soberanias dos Estados sobre seus
diam saber, a fim de abster--se disso, o que cada um queria tomar seu, e várias respectivos territórios e seus territórios coloniais" (M.Villey, Formation de la
pessoas podiam querer apropriar-se do mesmo objeto"(DGP, [I, □, li, 5, p.182). pensée j11ridiq11e modeme, op. cit., p. 629).
100 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO GRÓOO: UMA NOVA CONCEPÇÃO DA JUSTIÇA COMUTATIVA 101
Se, como escreve Grócio, "aquilo de que cada um ro ocupante, mas, se a pessoa se levanta e uma outra o
se tinha apoderado, outro não podia tirar-lhe sem in toma, a injustiça será tanto mais difícil para estabelecer
justiça"47, devemos admitir que a obrigação jurídica que quanto a vontade da primeira pessoa de se tornar pro
prescreve "abster-se do bem aJheio" 48 já é válida no es prietária do lugar permanecer desprovida de publicida
tado de inocência. Em consequência, o direito subje de. Os direitos subjetivos de propriedade existem no es
tivo de propriedade parece preceder toda legislação ci tado de inocência, mas são dificilmente discerníveis.
vil ou todo acordo entre os homens. Mas será por isso A convenção pela quaJ "(...] todos ficaram de acordo
natural? que o que cada um ocuparia; ele o possuiria como coisa
Esse direito pode ser diretamente inferido do domi particular"51 confere transparência às relações de pro
nium natural que Deus conferiu ao homem. Nesse sen priedade e facilita, assim, a aplicação dos preceitos jurí
tido, como observamos, Grócio se insere na tradição que dicos da lei naturaJ. Tornando públicas as relações de
põe o dominium na origem do direito subjetivo. Mas o propriedade, essa convenção favorece a paz entre os ho
direito de propriedade é, porém, "o resultado de uma mens e reduz as ocasiões de conflito. São as consequên
convenção, seja expressa, por meio de uma partilha, por cias da queda vinculadas ao desenvolvimento das técni
exemplo; seja tácita, mediante, por exemplo, uma ocupa cas que tornarão necessário o reconhecimento público
ção"49. A convenção acrescenta um elemento ao direito da propriedade52•
do primeiro ocupante que seria constitutivo do direito de Mas esse reconhecimento público não institui esses
propriedade? direitos, os quais procedem diretamente da providência
Como vimos, o direito do primeiro ocupante não divina. O consentimento, tácito ou expresso, que segun
procede de um princípio convencionaJ, mas do fato de do Grócio dá origem ao direito de propriedade, mais per
que Deus quis que o homem exercesse urna dominação mite o reconhecimento de um direito do que a sua insti
sobre as coisas naturais. O consentimento implica, po tuição53. O exercício da justiça comutativa se enraíza no
rém, a vantagem de suscitar um reconhecimento públi direito do primeiro ocupante e não procede de uma jus
co do que cada um quer tomar seu. A vontade privada e ta distribuição dos benss,1 •
secreta de cada um dos proprietários não basta para esse A apropriação e a primeira ocupação substituem a
fim50 . Na ausência de reconhecimento público, um pro distribuição anteriormente atribuída à justiça particu
prietário encontrará dificuldades para fazer vaJer seu di lar. A primeira convenção certifica legalmente relações
reito. O lugar de teatro pertence efetivamente ao primei-
51. DGP, U, li, li, 5, p. 182.
47. lbid. 52. DGP, fl, 11, 11, 1-4, p. 180.
48. DGP, Prolégomenes, VIII, p. 11. 53. R. Tuck, Natuml Rights Theories, op. cit., p. 77.
49. lbid., 11, fl, 11, 5, p. 182. 54. "Grócio atribui a esse 'modo de aquisição original' um alcance uni
50. "Aprendemos, ao mesmo tempo, como as coisas se tomaram proprie versal: por uma primeira ocupação se justificariam não só as posses imobiliá
dades.Isso não ocorreu por um mero ato de vontade; pois os outros não po rias de qualquer particular, mas também as soberanias dos Estados sobre seus
diam saber, a fim de abster--se disso, o que cada um queria tomar seu, e várias respectivos territórios e seus territórios coloniais" (M.Villey, Formation de la
pessoas podiam querer apropriar-se do mesmo objeto"(DGP, [I, □, li, 5, p.182). pensée j11ridiq11e modeme, op. cit., p. 629).
102 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO GRÔCIO: UMA NOVA CONCEPÇÃO DA JUSTIÇA COMUTATNA 103
de propriedade que assim se constituíram. A evolução Transferência de direito e lei civil
ou a transformação dessas relações resultarão de dife
rentes transações e de contratos, a justiça comutativa O direito de propriedade não é o único direito de
zelará simplesmente pela preservação dos direitos ad que dispomos por natureza. O direito, que abarca o po II
quiridos por cada um. Mas é importante salientar que der tanto sobre si mesmo - a que chamamos liberdade -
Grócio não subordina a convenção que reconhece os quanto sobre os outros, tais como o poder paterno, o po
direitos de cada um ao nascimento do Estado. Quando der senhorial" 56, pertence naturalmente a todos. Grócio
aparece a soberania política, ela já encontra diante de si considera, a exemplo de Suarez, que o homem dispõe de
uma sociedade civil estruturada por relações de pro sua liberdade como dispõe dos bens de que é proprietá
priedade. Locke se insere, portanto, na esteira de Grócio rio. A fundação do direito de liberdade é, aliás, em todos
quando afirma que o fim que comanda a instituição do os pontos conforme à do direito de propriedade57• O gozo
Estado se confunde com a defesa do direito natural de de nossa liberdade supõe o exercício de um direito de
propriedade. propriedade sobre as nossas ações. Baseada no modelo
Mas, se o direito subjetivo de propriedade se consti do direito de propriedade, a liberdade não procede dos
tui independentemente dos preceitos da lei natural, até preceitos da lei natural, mas da natureza do homem à
que ponto ele continuará sendo uma qualidade moral? qual Deus concedeu o livre-arbítrio. Esse direito de liber
Contrariamente ao que Hobbes acabará pensando, dade é igualmente alienável, como atesta a escravidão
a lei natural não tem sua origem num desejo de conser contratual, forma de sujeição "pela qual um indivíduo se
vação, mas numa tendência à sociabilidade. O exercício dá em servidão perfeita" 58.
de um direito subjetivo está em conformidade com a lei A soberania política se enraíza, assim, na transferên
natural quando supõe o respeito pelos bens alheios. A cia desse direito subjetivo à liberdade59. O homem se
qualidade moral designa essa faculdade que o homem compromete, pelo consentimentor�i, a submeter-se às leis
dispõe de exercer seu direito levando em conta o dos ou civis e às decisões do poder político61 • O dever de se con-
tros. Assim, os direitos subjetivos são independentes da
lei natural do ponto de vista da gênese deles, mas per 56. DGP, 1, I, V, p. 36.
manecem regidos por ela quanto ao exercício. O exercí 57. A. Matheron, "Spinoza et la problématique juridique de Grotius", op.
cit., p. 83.
cio de um direito sempre supõe a mediação dos precei 58. DGP, II, V, XXVII, 1, p. 245.
tos da lei natural55 . 59. "Por que, então, não seria permitido a um povo, dependente apenas
de si mesmo, submeter-se a um único indivíduo ou a vários, transferndo-lhes
i
quiridos por cada um. Mas é importante salientar que der tanto sobre si mesmo - a que chamamos liberdade -
Grócio não subordina a convenção que reconhece os quanto sobre os outros, tais como o poder paterno, o po
direitos de cada um ao nascimento do Estado. Quando der senhorial" 56, pertence naturalmente a todos. Grócio
aparece a soberania política, ela já encontra diante de si considera, a exemplo de Suarez, que o homem dispõe de
uma sociedade civil estruturada por relações de pro sua liberdade como dispõe dos bens de que é proprietá
priedade. Locke se insere, portanto, na esteira de Grócio rio. A fundação do direito de liberdade é, aliás, em todos
quando afirma que o fim que comanda a instituição do os pontos conforme à do direito de propriedade57• O gozo
Estado se confunde com a defesa do direito natural de de nossa liberdade supõe o exercício de um direito de
propriedade. propriedade sobre as nossas ações. Baseada no modelo
Mas, se o direito subjetivo de propriedade se consti do direito de propriedade, a liberdade não procede dos
tui independentemente dos preceitos da lei natural, até preceitos da lei natural, mas da natureza do homem à
que ponto ele continuará sendo uma qualidade moral? qual Deus concedeu o livre-arbítrio. Esse direito de liber
Contrariamente ao que Hobbes acabará pensando, dade é igualmente alienável, como atesta a escravidão
a lei natural não tem sua origem num desejo de conser contratual, forma de sujeição "pela qual um indivíduo se
vação, mas numa tendência à sociabilidade. O exercício dá em servidão perfeita" 58.
de um direito subjetivo está em conformidade com a lei A soberania política se enraíza, assim, na transferên
natural quando supõe o respeito pelos bens alheios. A cia desse direito subjetivo à liberdade59. O homem se
qualidade moral designa essa faculdade que o homem compromete, pelo consentimentor�i, a submeter-se às leis
dispõe de exercer seu direito levando em conta o dos ou civis e às decisões do poder político61 • O dever de se con-
tros. Assim, os direitos subjetivos são independentes da
lei natural do ponto de vista da gênese deles, mas per 56. DGP, 1, I, V, p. 36.
manecem regidos por ela quanto ao exercício. O exercí 57. A. Matheron, "Spinoza et la problématique juridique de Grotius", op.
cit., p. 83.
cio de um direito sempre supõe a mediação dos precei 58. DGP, II, V, XXVII, 1, p. 245.
tos da lei natural55 . 59. "Por que, então, não seria permitido a um povo, dependente apenas
de si mesmo, submeter-se a um único indivíduo ou a vários, transferndo-lhes
i
formar ao direito civil derivará então de um preceito da var para onde sentimos que nossa própria natureza nos
lei natural, da obrigação de cumprir as promessas. conduz"(,(,.
Não obstante, a instituição da soberania tem reper Grócio concede, porém, que a utilidade é "a causa
cussões sobre o direito de propriedade, uma vez que, ocasional do direito civil"67, já que está no interesse dos
"tendo a sociedade civil sido estabelecida para manter a homens submeter-se a uma autoridade poütica68 • Assim,
tranquilidade, o Estado adquire de inicio, sobre nós e so "o cidadão que infringe o direito civil com vistas à sua
bre tudo o que nos pertence, urna espécie de direito su utilidade presente destrói o germe que contém seu inte
perior, na medida em que isso é necessário para esse resse vindouro e o de toda a sua posteridade"69.
fim"62• Embora conservemos um poder sobre nossos O direito civil estará destinado a preservar um bem
bens, o Estado dispõe do direito de apoderar-se deles a comum de natureza moral ou então a garantir a utilida
partir do momento em que o interesse público o exige. de comum? Como separar as exigências morais ligadas
Com efeito, a faculdade "existente em consideração do ao desenvolvimento de cada um da utilidade comum que
interesse dos particulares" é menos eminente do que a supõe a defesa, pelo Estado, dos direitos de cada um?
"superior a esse direito vulgar, e que pertence à comuni A dificuldade está em conciliar a pregnância dos di
dade sobre as pessoas e os bens dos indivíduos que dela reitos subjetivos que cada um procurará preservar e a
fazem parte, com vistas ao interesse geral"63. Qual será a existência de um princípio de sociabilidade natural que
natureza do interesse geral que preside à instituição do se expressa através dos preceitos da lei natural. Embora
Estado e justifica esse direito de preensão sobre os bens o homem permaneça fundamentalmente interessado na
dos particulares? preservação de seus direitos, em detrimento de qualquer
Grócio discerne no homem "uma inclinação domi preocupação comunitária, nem por isso a lei natural pro
nante para a vida socia1"64• Refuta a ideia segundo a qual cede dos direitos subjetivos, ela não resulta, no modelo
"a utilidade é como que a mãe da justiça e da equida hobbesiano, de um cálculo de razão que visaria prote
de"65. A associação civil manifesta uma exigência da na gê-los. Ademais, ela abrange obrigações que não são di
tureza humana e, mesmo na hipótese em que "não se retamente ligadas à defesa dos direitos subjetivos. Portan
prometesse nenhuma utilidade da observação do direi to, está fora de questão apreender o homem como um ser
to, seria obra de sabedoria e não de loucura deixar-se le- fechado em si mesmo, fixado em seus interesses particu
lares. A lei natural e os direitos naturais provêm de fon-
62. DGP, 1, IV, II, 1, p. 132. "A associação pela qual vários chefes de famí
lia se reúnem para formar um povo e um Estado confere ao Corpo sobre seus 66. DGP, Prolégomenes, XVlll, p. 15.
membros o mais extenso direito; porque é a sociedade mais perfeita e porque 67. DGP, Prolégomcnes, XVI, p. 14.
não há nenhuma ação exterior do homem que ou não se reporte por si só a 68. "A5sim é que muitos homens, fracos por si sós, e não querendo dei
essa sociedade, ou não possa reportar-se a ela conforme as circunstâncias" xar-se oprimir por mais fortes do que eles, entenderam-se para estabelecer e
(DGP, li, V, XXIU, p. 243). manter, com forças comuns, tribunais, a fim de que todos juntos predominas
63. DGP, 1, 1, VI, p. 36. sem sobre aqueles aos quais cada um deles não era capaz de resistir sozinho"
64. DGP, Prolégomenes, VU, p. 11. (DGP, Prolégomenes, XIX, p. 15).
65. DGP, Prolégomenes, XVI, p. 13. 69. DGP, Prolégomenes, xvm, p. 14.
104 GENE ALOGIA DO DIREITO MODERNO GRÓCIO: UMA NOVA CONCEPÇÃO DAJUST1ÇA COMUTATNA 105
formar ao direito civil derivará então de um preceito da var para onde sentimos que nossa própria natureza nos
lei natural, da obrigação de cumprir as promessas. conduz"(,(,.
Não obstante, a instituição da soberania tem reper Grócio concede, porém, que a utilidade é "a causa
cussões sobre o direito de propriedade, uma vez que, ocasional do direito civil"67, já que está no interesse dos
"tendo a sociedade civil sido estabelecida para manter a homens submeter-se a uma autoridade poütica68 • Assim,
tranquilidade, o Estado adquire de inicio, sobre nós e so "o cidadão que infringe o direito civil com vistas à sua
bre tudo o que nos pertence, urna espécie de direito su utilidade presente destrói o germe que contém seu inte
perior, na medida em que isso é necessário para esse resse vindouro e o de toda a sua posteridade"69.
fim"62• Embora conservemos um poder sobre nossos O direito civil estará destinado a preservar um bem
bens, o Estado dispõe do direito de apoderar-se deles a comum de natureza moral ou então a garantir a utilida
partir do momento em que o interesse público o exige. de comum? Como separar as exigências morais ligadas
Com efeito, a faculdade "existente em consideração do ao desenvolvimento de cada um da utilidade comum que
interesse dos particulares" é menos eminente do que a supõe a defesa, pelo Estado, dos direitos de cada um?
"superior a esse direito vulgar, e que pertence à comuni A dificuldade está em conciliar a pregnância dos di
dade sobre as pessoas e os bens dos indivíduos que dela reitos subjetivos que cada um procurará preservar e a
fazem parte, com vistas ao interesse geral"63. Qual será a existência de um princípio de sociabilidade natural que
natureza do interesse geral que preside à instituição do se expressa através dos preceitos da lei natural. Embora
Estado e justifica esse direito de preensão sobre os bens o homem permaneça fundamentalmente interessado na
dos particulares? preservação de seus direitos, em detrimento de qualquer
Grócio discerne no homem "uma inclinação domi preocupação comunitária, nem por isso a lei natural pro
nante para a vida socia1"64• Refuta a ideia segundo a qual cede dos direitos subjetivos, ela não resulta, no modelo
"a utilidade é como que a mãe da justiça e da equida hobbesiano, de um cálculo de razão que visaria prote
de"65. A associação civil manifesta uma exigência da na gê-los. Ademais, ela abrange obrigações que não são di
tureza humana e, mesmo na hipótese em que "não se retamente ligadas à defesa dos direitos subjetivos. Portan
prometesse nenhuma utilidade da observação do direi to, está fora de questão apreender o homem como um ser
to, seria obra de sabedoria e não de loucura deixar-se le- fechado em si mesmo, fixado em seus interesses particu
lares. A lei natural e os direitos naturais provêm de fon-
62. DGP, 1, IV, II, 1, p. 132. "A associação pela qual vários chefes de famí
lia se reúnem para formar um povo e um Estado confere ao Corpo sobre seus 66. DGP, Prolégomenes, XVlll, p. 15.
membros o mais extenso direito; porque é a sociedade mais perfeita e porque 67. DGP, Prolégomcnes, XVI, p. 14.
não há nenhuma ação exterior do homem que ou não se reporte por si só a 68. "A5sim é que muitos homens, fracos por si sós, e não querendo dei
essa sociedade, ou não possa reportar-se a ela conforme as circunstâncias" xar-se oprimir por mais fortes do que eles, entenderam-se para estabelecer e
(DGP, li, V, XXIU, p. 243). manter, com forças comuns, tribunais, a fim de que todos juntos predominas
63. DGP, 1, 1, VI, p. 36. sem sobre aqueles aos quais cada um deles não era capaz de resistir sozinho"
64. DGP, Prolégomenes, VU, p. 11. (DGP, Prolégomenes, XIX, p. 15).
65. DGP, Prolégomenes, XVI, p. 13. 69. DGP, Prolégomenes, xvm, p. 14.
106 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO GRÔOO: UMA NOVA CONCEPÇÃO DA JUSTIÇA COMUI'ATNA 107
tes diferentes e contribuem juntos para compor uma or A análise da justiça penal proposta por Grócio é, a
dem social conf orme à natureza humana. esse respeito, exemplar. Grócio toma cuidado em distin
Grócio salienta, porém, que "em matéria de coisas guir a questão do castigo daquela que incide sobre a obri
equitativas e honestas, cumpre colocar em primeira li gação de reparar os danos. De fato, é preciso separar "o
nha o que é devido; em segunda linha, o que, conquan caráter vicioso da ação de seu efeito. Pois o castigo res
to não devido, é confoune ao dever"7º. As obrigações ju ponde ao primeiro; a reparação dos danos ao segundo"72•
rídicas propriamente ditas, vinculadas à defesa dos direi Qual será, segundo Grócio, o princípio da justiça penal?
tos subjetivos, prevalecem,. em consequência, sobre as Se podemos estimar que quem é punido merece sê
obrigações morais. Estas últimas são deixadas à mercê lo, "isso, porém, não deve ser interpretado como se lhe
de cada um, exceto as situações em que são relacionadas acontecesse alguma coisa daquilo que requer a justiça in
com a preservação dos direitos subjetivos71 , quando elas timativa"73. Esta só lida, corno vimos, com obrigações mo
se transformam em obrigações jurídicas. Embora a so rais, ela distribui os elogios e as recriminações de acordo
ciedade favoreça a realização das virtualidades da natu com o valor moral das ações. Mas, se não se reconhece a
reza humana, sua tarefa primordial consistirá, porém, em
um homem o poder de exigir um direito porque o mere
defender os direitos subjetivos. A lei natural, assim como
ce, ele tampouco pode assumir uma reparação porque se
o direito civil dela decorrente, parece, nessas condições,
teria subtraído a uma obrigação moral. Assim como a
ser mais um instrumento de que os homens dispõem
para defender seus direitos subjetivos do que um meio bondade moral não autoriza uma reivindicação jurídica,
de realizar suas aspirações morais. A utilidade comum se o vício moral não confere o direito de punir.
reduz, por conseguinte, em razão das leis civis e da lei Se a pena depende da justiça comutativa é porque
natural, à soma dos interesses particulares, que não de "aquele que pune deve, para punir legitimamente, ter o
verão ser confundidos com o bem comum. direito de punir: direito esse que nasce do crime do cul
Enquanto relaciona o interesse geral com a nature pado"74. Logo, não são as exigências relativas ao bem co
za do homem, Grócio parece adotar a ideia clássica de mum que fundamentarão a legitimidade das reparações.
um bem comum que garantiria a realização das virtuali Tomás de Aquino, como vimos, considerava, porém, que
dades da natureza humana. Mas, uma vez que associa o a determinação da pena cabia em parte à justiça geral,
interesse geral e o direito no sentido estrito, as conside que a pena devia não só visar a restauração de uma re
rações relativas à utilidade comum e à preservação dos lação justa, mas também ser proporcional à gravidade do
direitos dos particulares parecem prevalecer. atentado contra o bem comum. Ele não limitava o exer
cício da justiça penal apenas aos desrespeitos das exi
70. DGP, 11, vn, ru, p. 260.
gências da justi.ça particular.
71. "Pois o direito natural, considerado lei, não contempla somente as
coisas ordenadas pela justiça nomeada por nós expletrice; mas encerra em si os
atos das outras virtudes, como a temperança, a coragem, a prudência, na medi 72. DGP, n, XX, XXll, p. 422.
da em que o exercício dessas virtudes, em certas circunstâncias, não é somente 73. DGP, a, XX, n, 2, p. 450.
honesto, mas obrigatório" (DGP, n, 1, IX, 1, p. 169). 74. DGP, n, XX, li, 3, p. 451.
106 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO GRÔOO: UMA NOVA CONCEPÇÃO DA JUSTIÇA COMUI'ATNA 107
tes diferentes e contribuem juntos para compor uma or A análise da justiça penal proposta por Grócio é, a
dem social conf orme à natureza humana. esse respeito, exemplar. Grócio toma cuidado em distin
Grócio salienta, porém, que "em matéria de coisas guir a questão do castigo daquela que incide sobre a obri
equitativas e honestas, cumpre colocar em primeira li gação de reparar os danos. De fato, é preciso separar "o
nha o que é devido; em segunda linha, o que, conquan caráter vicioso da ação de seu efeito. Pois o castigo res
to não devido, é confoune ao dever"7º. As obrigações ju ponde ao primeiro; a reparação dos danos ao segundo"72•
rídicas propriamente ditas, vinculadas à defesa dos direi Qual será, segundo Grócio, o princípio da justiça penal?
tos subjetivos, prevalecem,. em consequência, sobre as Se podemos estimar que quem é punido merece sê
obrigações morais. Estas últimas são deixadas à mercê lo, "isso, porém, não deve ser interpretado como se lhe
de cada um, exceto as situações em que são relacionadas acontecesse alguma coisa daquilo que requer a justiça in
com a preservação dos direitos subjetivos71 , quando elas timativa"73. Esta só lida, corno vimos, com obrigações mo
se transformam em obrigações jurídicas. Embora a so rais, ela distribui os elogios e as recriminações de acordo
ciedade favoreça a realização das virtualidades da natu com o valor moral das ações. Mas, se não se reconhece a
reza humana, sua tarefa primordial consistirá, porém, em
um homem o poder de exigir um direito porque o mere
defender os direitos subjetivos. A lei natural, assim como
ce, ele tampouco pode assumir uma reparação porque se
o direito civil dela decorrente, parece, nessas condições,
teria subtraído a uma obrigação moral. Assim como a
ser mais um instrumento de que os homens dispõem
para defender seus direitos subjetivos do que um meio bondade moral não autoriza uma reivindicação jurídica,
de realizar suas aspirações morais. A utilidade comum se o vício moral não confere o direito de punir.
reduz, por conseguinte, em razão das leis civis e da lei Se a pena depende da justiça comutativa é porque
natural, à soma dos interesses particulares, que não de "aquele que pune deve, para punir legitimamente, ter o
verão ser confundidos com o bem comum. direito de punir: direito esse que nasce do crime do cul
Enquanto relaciona o interesse geral com a nature pado"74. Logo, não são as exigências relativas ao bem co
za do homem, Grócio parece adotar a ideia clássica de mum que fundamentarão a legitimidade das reparações.
um bem comum que garantiria a realização das virtuali Tomás de Aquino, como vimos, considerava, porém, que
dades da natureza humana. Mas, uma vez que associa o a determinação da pena cabia em parte à justiça geral,
interesse geral e o direito no sentido estrito, as conside que a pena devia não só visar a restauração de uma re
rações relativas à utilidade comum e à preservação dos lação justa, mas também ser proporcional à gravidade do
direitos dos particulares parecem prevalecer. atentado contra o bem comum. Ele não limitava o exer
cício da justiça penal apenas aos desrespeitos das exi
70. DGP, 11, vn, ru, p. 260.
gências da justi.ça particular.
71. "Pois o direito natural, considerado lei, não contempla somente as
coisas ordenadas pela justiça nomeada por nós expletrice; mas encerra em si os
atos das outras virtudes, como a temperança, a coragem, a prudência, na medi 72. DGP, n, XX, XXll, p. 422.
da em que o exercício dessas virtudes, em certas circunstâncias, não é somente 73. DGP, a, XX, n, 2, p. 450.
honesto, mas obrigatório" (DGP, n, 1, IX, 1, p. 169). 74. DGP, n, XX, li, 3, p. 451.
108 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO GRÓCJO: UMA NOVA CONCEPÇÃO DA JUSTIÇA COMUTATIVA 109
Segundo Grócio, o princípio da determinação da segundo o princípio da igualdade buscando o que é de
pena depende do dano in fligido à vítima, bem como do vido, mas será subordinada à utilidade comum, à preser
atentado cometido contra a utilidade comum. A pena visa vação dos direitos de todos.
doravante a utilidade da vítima, que "consiste em impedir Embora Grócio saliente que seria uma pura injusti
que, mais tarde, ela não sofra nada igual da parte do mes ça "tirar de outrem o que lhe pertence, sem motivo pré
mo indivíduo ou de outros"75. Mas a pena é destinada vio e plausível"7"\ ainda assim o interesse geral pode per
igualmente a "impedir que aquele que prejudicou a um feitamente se impor com prejuízo dos direitos do indiví
só prejudique outros" 76• A determinação da pena supõe a duo. A prevalência do interesse geral na determinação
estimativa dos efeitos esperados da sanção sobre a paz e dos direitos de cada um em nada prejulga a salvaguarda
a tranquilidade públicas, sobre a preservação dos direitos deles. A tradição jurídica clássica conjurava esse risco
subjetivos de cada um77. Assim, por exemplo, a estimati considerando que a justiça não devia ser ordenada para
va da pena deverá considerar "a vida [do criminoso] que a utilidade comum, mas para relações de igualdade en
havia precedido e que havia seguido a falta"78 a fim de tre os particulares.
melhor julgar a utilidade da sanção para a sociedade. A edificação do Estado pela transferência dos direi
Portanto, Grócio reserva as penas às situações em tos subjetivos ao soberano abolirá por isso toda forma de
que se atenta contra os direitos dos particulares, exclui direito de resistência? Os homens serão incondicional
da penalidade todo o campo dos vícios morais. A finali mente submetidos à lei do soberano?
dade da pena consiste na utilidade comum, na proteção Segundo Grócio, os indivíduos dispõem de um di
dos direitos subjetivos de cada um. reito natural de resistência, necessário para repelir as in
justiças de que são vítimas. Antes de Locke, ele conside
ra que um dos direitos primordiais ao qual os indivíduos
A emergência do direito de resistência renunciam para instituir o soberano é o direito de minis
trar justiçaM. Essa renúncia permite precaver-se contra a
Não obstante, segundo Grócio, a repartição original
dos bens exteriores, que governa o exercício da justiça 79. DGP, U, VIl, I, p. 258.
comutativa, não é imutável. Se a necessidade impuser, o 80. "É verdade que todos os homens têm naturalmente, como dissemos
mais acima, o direito de resistir para repelir a injúria que lhes [é) feita. Mas,
soberano poderá perfeitamente operar uma nova distri como a sociedade civil foi estabelecida para manter a tranquilidade, o Estado
buição dos bens. Essa nova repartição não se efetuará adquire sobre nós e sobre o que nos pertence uma espécie de direito superior,
na medida em que isso é necessário para esse fim. Portanto, o Estado pode,
para o bem da paz pública e da ordem, proibir esse direito comum de resis
75. DGP, 11, XX, vm, 1, p. 458. tência; e não se deve duvidar de que ele o tenha querido, já que de outro modo
76. DGP, 11, XX, IX, 1, p. 462. não poderia atingir seu objetivo"(DGP, 1, N, IJ, 1, p. 132). "[ ...] a liberdade de
77. "Se os mais culpados são mais gravemente, e os menos culpados mais prover mediante castigos os interesses da sociedade humana que, no começo,
levemente punidos, isso só ocorre como uma consequência, e não é o que se como dissemos, pertencia aos particulares, permaneceu, depois do estabeleci
tem primeira e principalmente em vista"(DGP, li, XX, 11, 1, p. 450). mento dos Estados e das jurisdições, nos poderes soberanos" (DGP, 11, XX, 40,
78. DGP, II, XX, XXX, 4, p. 483. 1, p. 490). É dessa maneira que Grócio justifica o direito de ingerência.
108 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO GRÓCJO: UMA NOVA CONCEPÇÃO DA JUSTIÇA COMUTATIVA 109
Segundo Grócio, o princípio da determinação da segundo o princípio da igualdade buscando o que é de
pena depende do dano in fligido à vítima, bem como do vido, mas será subordinada à utilidade comum, à preser
atentado cometido contra a utilidade comum. A pena visa vação dos direitos de todos.
doravante a utilidade da vítima, que "consiste em impedir Embora Grócio saliente que seria uma pura injusti
que, mais tarde, ela não sofra nada igual da parte do mes ça "tirar de outrem o que lhe pertence, sem motivo pré
mo indivíduo ou de outros"75. Mas a pena é destinada vio e plausível"7"\ ainda assim o interesse geral pode per
igualmente a "impedir que aquele que prejudicou a um feitamente se impor com prejuízo dos direitos do indiví
só prejudique outros" 76• A determinação da pena supõe a duo. A prevalência do interesse geral na determinação
estimativa dos efeitos esperados da sanção sobre a paz e dos direitos de cada um em nada prejulga a salvaguarda
a tranquilidade públicas, sobre a preservação dos direitos deles. A tradição jurídica clássica conjurava esse risco
subjetivos de cada um77. Assim, por exemplo, a estimati considerando que a justiça não devia ser ordenada para
va da pena deverá considerar "a vida [do criminoso] que a utilidade comum, mas para relações de igualdade en
havia precedido e que havia seguido a falta"78 a fim de tre os particulares.
melhor julgar a utilidade da sanção para a sociedade. A edificação do Estado pela transferência dos direi
Portanto, Grócio reserva as penas às situações em tos subjetivos ao soberano abolirá por isso toda forma de
que se atenta contra os direitos dos particulares, exclui direito de resistência? Os homens serão incondicional
da penalidade todo o campo dos vícios morais. A finali mente submetidos à lei do soberano?
dade da pena consiste na utilidade comum, na proteção Segundo Grócio, os indivíduos dispõem de um di
dos direitos subjetivos de cada um. reito natural de resistência, necessário para repelir as in
justiças de que são vítimas. Antes de Locke, ele conside
ra que um dos direitos primordiais ao qual os indivíduos
A emergência do direito de resistência renunciam para instituir o soberano é o direito de minis
trar justiçaM. Essa renúncia permite precaver-se contra a
Não obstante, segundo Grócio, a repartição original
dos bens exteriores, que governa o exercício da justiça 79. DGP, U, VIl, I, p. 258.
comutativa, não é imutável. Se a necessidade impuser, o 80. "É verdade que todos os homens têm naturalmente, como dissemos
mais acima, o direito de resistir para repelir a injúria que lhes [é) feita. Mas,
soberano poderá perfeitamente operar uma nova distri como a sociedade civil foi estabelecida para manter a tranquilidade, o Estado
buição dos bens. Essa nova repartição não se efetuará adquire sobre nós e sobre o que nos pertence uma espécie de direito superior,
na medida em que isso é necessário para esse fim. Portanto, o Estado pode,
para o bem da paz pública e da ordem, proibir esse direito comum de resis
75. DGP, 11, XX, vm, 1, p. 458. tência; e não se deve duvidar de que ele o tenha querido, já que de outro modo
76. DGP, 11, XX, IX, 1, p. 462. não poderia atingir seu objetivo"(DGP, 1, N, IJ, 1, p. 132). "[ ...] a liberdade de
77. "Se os mais culpados são mais gravemente, e os menos culpados mais prover mediante castigos os interesses da sociedade humana que, no começo,
levemente punidos, isso só ocorre como uma consequência, e não é o que se como dissemos, pertencia aos particulares, permaneceu, depois do estabeleci
tem primeira e principalmente em vista"(DGP, li, XX, 11, 1, p. 450). mento dos Estados e das jurisdições, nos poderes soberanos" (DGP, 11, XX, 40,
78. DGP, II, XX, XXX, 4, p. 483. 1, p. 490). É dessa maneira que Grócio justifica o direito de ingerência.
110 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO GRÓGO: UMA NOVA CONCEPÇÃO DA JUSTIÇA COMUTATNA 111
eventual transformação da sociedade numa "multidão volta ao direito primitivo."1!4 Assim, "o que numa circuns
desordenada"81• Essa transferência do direito de resistên tância semelhante a caridade recomendaria, não duvido
cia não conferirá à autoridade soberana um poder abso que se possa fazer dela uma lei humana"85. Dever-se-á
luto sobre os cidadãos? concluir disso que o princípio de caridade permite ao
Segundo Grócio, "certas leis, mesmo entre as de homem recobrar direitos que anteriormente transferiu?
Deus, conquanto concebidas em termos gerais, encerram A extrema necessidade se tomaria então a única situação
em si mesmas uma exceção tácita para os casos de extre na qual a aptidão ou o mérito concederia direitos86 .
ma necessidade"82• A aplicação da lei civil pode legitima Mas Grócio não chega a desenvolver tal argu menta
mente ser suspensa por ocasião de situações excepcio ção. Consegue fundamentar o direito de resistência man
nais. Mas como pensar a existência de um direito subje tendo uma estrita distinção entre o direito e a aptidão.
tivo de resistência quando, por seu consentimento, o ci Embora a desobediência possa revelar-se conforme ao
dadão parece ter alienado ao poder político o domínio recomendado pela caridade, nem por isso o direito de re
cabal de suas ações? sistência se enraíza no princípio de caridade, mas num ver
O exame do direito de propriedade permite levantar dadeiro direito subjetivo. Grócio o enuncia expressamen
interrogações similares. A obrigação jurídica de respeitar te: "A razão dessa decisão não é a que alguns autores
os direitos subjetivos de cada um não dissuade nem um alegam, a de que o proprietário da coisa é obrigado, pela
pouco Grócio de admitir que na "lei de propriedade, a lei de caridade, a dá-la a quem carece do necessário." 87
necessidade extrema parece ter sido excetuada"83• O re Essa observação parece visar diretamente a afirma
conhecimento do direito de propriedade por uma con ção tomista que já encontramos. Se gundo Grócio, não é
venção pública não proíbe, pois, sua transgressão ou sua preciso suspender a distinção entre a moral e o direito
suspensão em certas circunstâncias excepcionais. para admitir que os necessitados podem, em certas cir
Os preceitos morais da lei natural encontrarão, em cunstâncias, violar um direito de propriedade sem com
isso infringir uma obrigação jurídica qualquer.
cada uma dessas circunstâncias, o poder de irrigar o
A desobediência à lei, bem como a apropriação do
direito?
bem alheio, podem tomar-se legítimas se recorremos às
Grócio admite que, nas situações de extrema neces
intenções do legisladorAA. Quando a obediência estrita a
sidade, os direitos naturais do homem reaparecem e subs
tituem os direitos subjetivos que resultam das transações
e das trocas: "Os bens não parecem ter sido distribuídos 84. DGP, II, TI, VI, 4, p. 186.
85. DGP, 1, IV, VII, 2, p. 142.
a proprietários senão com a reserva favorável de uma 86. Como vimos, Tomás de Aquino recorre a esse argumento para sa
lientar que existem cirtunstâncias em que a moral pode irrigar o direito.
87. DGP, O, ll, VI, 4, p. 185.
81. Tbid. 88. "Ora, a lei em questão parece depender da vontade daqueles que se
82. DGP, 1, IV, vn, 1, p. 141. associam originariamente para formar uma sociedade civil, e dos quais ema
83. DGP, II, IJ, VI, 2, p. 185. "No caso de semelhante necessidade, se al na o poder que passa em seguida aos governantes. Supondo, então, que se
guém vem a subtrair um objeto necessário à sua vida, ele não comete um rou pergunte a eles se pretenderiam impor a todos os cidadãos a dura necessidade
bo" (DGP, II, li, VI, 4, p. 185). de morrer, em vez de pegar as armas, em qualquer ocasião, para defender-se
110 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO GRÓGO: UMA NOVA CONCEPÇÃO DA JUSTIÇA COMUTATNA 111
eventual transformação da sociedade numa "multidão volta ao direito primitivo."1!4 Assim, "o que numa circuns
desordenada"81• Essa transferência do direito de resistên tância semelhante a caridade recomendaria, não duvido
cia não conferirá à autoridade soberana um poder abso que se possa fazer dela uma lei humana"85. Dever-se-á
luto sobre os cidadãos? concluir disso que o princípio de caridade permite ao
Segundo Grócio, "certas leis, mesmo entre as de homem recobrar direitos que anteriormente transferiu?
Deus, conquanto concebidas em termos gerais, encerram A extrema necessidade se tomaria então a única situação
em si mesmas uma exceção tácita para os casos de extre na qual a aptidão ou o mérito concederia direitos86 .
ma necessidade"82• A aplicação da lei civil pode legitima Mas Grócio não chega a desenvolver tal argu menta
mente ser suspensa por ocasião de situações excepcio ção. Consegue fundamentar o direito de resistência man
nais. Mas como pensar a existência de um direito subje tendo uma estrita distinção entre o direito e a aptidão.
tivo de resistência quando, por seu consentimento, o ci Embora a desobediência possa revelar-se conforme ao
dadão parece ter alienado ao poder político o domínio recomendado pela caridade, nem por isso o direito de re
cabal de suas ações? sistência se enraíza no princípio de caridade, mas num ver
O exame do direito de propriedade permite levantar dadeiro direito subjetivo. Grócio o enuncia expressamen
interrogações similares. A obrigação jurídica de respeitar te: "A razão dessa decisão não é a que alguns autores
os direitos subjetivos de cada um não dissuade nem um alegam, a de que o proprietário da coisa é obrigado, pela
pouco Grócio de admitir que na "lei de propriedade, a lei de caridade, a dá-la a quem carece do necessário." 87
necessidade extrema parece ter sido excetuada"83• O re Essa observação parece visar diretamente a afirma
conhecimento do direito de propriedade por uma con ção tomista que já encontramos. Se gundo Grócio, não é
venção pública não proíbe, pois, sua transgressão ou sua preciso suspender a distinção entre a moral e o direito
suspensão em certas circunstâncias excepcionais. para admitir que os necessitados podem, em certas cir
Os preceitos morais da lei natural encontrarão, em cunstâncias, violar um direito de propriedade sem com
isso infringir uma obrigação jurídica qualquer.
cada uma dessas circunstâncias, o poder de irrigar o
A desobediência à lei, bem como a apropriação do
direito?
bem alheio, podem tomar-se legítimas se recorremos às
Grócio admite que, nas situações de extrema neces
intenções do legisladorAA. Quando a obediência estrita a
sidade, os direitos naturais do homem reaparecem e subs
tituem os direitos subjetivos que resultam das transações
e das trocas: "Os bens não parecem ter sido distribuídos 84. DGP, II, TI, VI, 4, p. 186.
85. DGP, 1, IV, VII, 2, p. 142.
a proprietários senão com a reserva favorável de uma 86. Como vimos, Tomás de Aquino recorre a esse argumento para sa
lientar que existem cirtunstâncias em que a moral pode irrigar o direito.
87. DGP, O, ll, VI, 4, p. 185.
81. Tbid. 88. "Ora, a lei em questão parece depender da vontade daqueles que se
82. DGP, 1, IV, vn, 1, p. 141. associam originariamente para formar uma sociedade civil, e dos quais ema
83. DGP, II, IJ, VI, 2, p. 185. "No caso de semelhante necessidade, se al na o poder que passa em seguida aos governantes. Supondo, então, que se
guém vem a subtrair um objeto necessário à sua vida, ele não comete um rou pergunte a eles se pretenderiam impor a todos os cidadãos a dura necessidade
bo" (DGP, II, li, VI, 4, p. 185). de morrer, em vez de pegar as armas, em qualquer ocasião, para defender-se
112 GENEALOGIA DO DlREITO MODERNO GRÓCIO: UMA NOVA CONCEPÇÃO DA JUSTIÇA COMUTATWA 113
uma lei provoca uma situação inconciliável com as in unicamente da injustiça feita a um indivíduo. A revolta
tenções do legislador, pode ser legítimo desobedecer. de uma minoria, se põe em perigo os direitos da maio
Sendo as convenções humanas estabelecidas para a van ria, nunca poderá ser justificada.
tagem de todos, o direito civil, que decorre dessas con O direito de resistência se liga, portanto, a uma apli
venções, deverá visar a utilidade comum. Apenas quan cação equitativa do direito civil, e não a um princípio de
do a aplicação das leis se mostrar prejudicial, ou seja, moralidade, ou a uma relação de igualdade. O direito ci
contrária às intenções dos primeiros legisladores, é que vil só se impõe pela persistência da utilidade que lhe
os homens poderão recobrar seus direitos primitivos. O presidiu a elaboração. A resistência não parece ainda ali
direito subjetivo de resistência procede, assim, de uma cerçada num direito subjetivo em parte inalienável.
aplicação equitativa da lei civil, de uma estrita fidelidade Essa justificação do direito de resistência atesta a es
às decisões dos primeiros legisladores. A análise que Gró treita correlação entre a utilidade comum e o direito. Os
cio consagra ao direito de resistência nos permite levan direitos naturais do homem ressurgem por ocasião de
tar uma questão decisiva: qual será a articulação que se toda situação prejudicial ao bem público. A utilidade co
deve estabelecer entre a repartição original dos bens ex mum se mostra, assim, o fundamento indefectível do di
teriores e a irrupção do estado de necessidade? reito civil, ela não é simplesmente sua causa ocasional.
Esse direito de resistência é, porém, circunscrito pelo No entanto, Grócio propõe conceder outro funda
próprio princípio que lhe fundamenta a legitimidade. O mento ao direito de resistência. O direito de resistir não
indivíduo poderá transgredir a lei, mas não deverá "toda procederia da "injustiça ou do crime daquele que nos ex
via perder de vista o bem público"89, nenhuma resistên põe ao perigo [mas] do fato de que a natureza confia a
cia poderá, pois, ser permitida desde que ameace a pre cada um de nós o cuidado de nós mesmos"91• Cumprirá,
servação dos direitos dos outros cidadãos. Essa conside por conseguinte, dissociar, no estado de natureza, bem
ração prevalece igualmente no estado de natureza, já como no estado civil, o direito de resistência que se en
que pode acontecer que, "a vida do agressor sendo útil à raíza nesse direito à vida de suas formas distintas, as
maioria, não seja possível matá-lo sem crime; e isto [...] quais repousam na injustiça cometida ou na interpreta
em virtude do próprio direito de natureza"90• O exercício ção equitativa da lei.
do direito de resistência sempre é subordinado à consi Esse direito à vida, que procede diretamente da pro
deração da utilidade comum, que o direito natura], sob vidência divina, não parece ser alienável92• Até mesmo os
suas diferentes formas, deve preservar. Então, não é con
escravos, que contudo se "submeteram espontaneamen
cebível deduzir a legitimidade do direito de resistência
te à servidão", podem "prover à sua salvação pela fuga
[••• ]" • Por conseguinte, o escravo conserva, depois da
93
uma lei provoca uma situação inconciliável com as in unicamente da injustiça feita a um indivíduo. A revolta
tenções do legislador, pode ser legítimo desobedecer. de uma minoria, se põe em perigo os direitos da maio
Sendo as convenções humanas estabelecidas para a van ria, nunca poderá ser justificada.
tagem de todos, o direito civil, que decorre dessas con O direito de resistência se liga, portanto, a uma apli
venções, deverá visar a utilidade comum. Apenas quan cação equitativa do direito civil, e não a um princípio de
do a aplicação das leis se mostrar prejudicial, ou seja, moralidade, ou a uma relação de igualdade. O direito ci
contrária às intenções dos primeiros legisladores, é que vil só se impõe pela persistência da utilidade que lhe
os homens poderão recobrar seus direitos primitivos. O presidiu a elaboração. A resistência não parece ainda ali
direito subjetivo de resistência procede, assim, de uma cerçada num direito subjetivo em parte inalienável.
aplicação equitativa da lei civil, de uma estrita fidelidade Essa justificação do direito de resistência atesta a es
às decisões dos primeiros legisladores. A análise que Gró treita correlação entre a utilidade comum e o direito. Os
cio consagra ao direito de resistência nos permite levan direitos naturais do homem ressurgem por ocasião de
tar uma questão decisiva: qual será a articulação que se toda situação prejudicial ao bem público. A utilidade co
deve estabelecer entre a repartição original dos bens ex mum se mostra, assim, o fundamento indefectível do di
teriores e a irrupção do estado de necessidade? reito civil, ela não é simplesmente sua causa ocasional.
Esse direito de resistência é, porém, circunscrito pelo No entanto, Grócio propõe conceder outro funda
próprio princípio que lhe fundamenta a legitimidade. O mento ao direito de resistência. O direito de resistir não
indivíduo poderá transgredir a lei, mas não deverá "toda procederia da "injustiça ou do crime daquele que nos ex
via perder de vista o bem público"89, nenhuma resistên põe ao perigo [mas] do fato de que a natureza confia a
cia poderá, pois, ser permitida desde que ameace a pre cada um de nós o cuidado de nós mesmos"91• Cumprirá,
servação dos direitos dos outros cidadãos. Essa conside por conseguinte, dissociar, no estado de natureza, bem
ração prevalece igualmente no estado de natureza, já como no estado civil, o direito de resistência que se en
que pode acontecer que, "a vida do agressor sendo útil à raíza nesse direito à vida de suas formas distintas, as
maioria, não seja possível matá-lo sem crime; e isto [...] quais repousam na injustiça cometida ou na interpreta
em virtude do próprio direito de natureza"90• O exercício ção equitativa da lei.
do direito de resistência sempre é subordinado à consi Esse direito à vida, que procede diretamente da pro
deração da utilidade comum, que o direito natura], sob vidência divina, não parece ser alienável92• Até mesmo os
suas diferentes formas, deve preservar. Então, não é con
escravos, que contudo se "submeteram espontaneamen
cebível deduzir a legitimidade do direito de resistência
te à servidão", podem "prover à sua salvação pela fuga
[••• ]" • Por conseguinte, o escravo conserva, depois da
93
sica da justiça?' Segundo Hobbes, a justiça comutativa um indivíduo com o qual nenhum contrato foi concluí
não supõe "a igualdade dos valores das coisas sobre as do6 . O dano objetivo sofrido, que atenta contra os direi
quais incide o contrato", pois não se comete injustiça ne tos do indivíduo, nem por isso constitui urna violação da
nhuma "ao vender mais caro do que se compra"2• A jus justiça, uma inf ração às cláusulas de um acordo. Assim,
tiça de uma relação contratual não procede da proporção quando é causado um erro, a sanção não é proporciona
objetiva que lhe seria inerente, da igualdade entre o que da à reparação do dano infligido, mas será deduzida, de
é dado e recebido: "O valor de todas as coisas que são maneira abstrata, da falta com a palavra dada. Ademais,
objeto de um contrato é medido pelo apetite dos contra as decisões individuais, que fixam o teor do contrato, são
tantes; o valor justo é, portanto, aquele que aceitam for evidentemente submetidas às diferentes condições pro
necer."3 No âmbito da justiça comutativa, o mérito se liga mulgadas pelo Estado no tocante à regulamentação dos
à parte que é a primeira a cumprir o acordado e que"me acordos contratuais7•
rece que o outro faça o mesmo"4• Na esteira de Grócio, No entanto, a despeito dessa concepção duplamen
Hobbes considera que a obrigação jurídica repousa numa te positivista da justiça, que enquadra o consentimento
transferência de direito. Mas, deixando o mérito enxer das partes com a ajuda das leis civis, a própria possibili
tar-se na transferência de direito, Hobbes resgata uma dade do contrato repousa no reconhecimento, pelas
concepção do mérito que, como observamos, era alheia i
duas partes, da prmazia de urna máxima naturaJ: "Pode
ao pensamento de Grócio. ser difícil negar totalmente que a justiça consista em al
Devemos então concluir que a justiça de um contra guma igualdade, nem que seja simplesmente pelo fato
to é estritamente redutível ao consentimento das partes? de que, sendo todos naturalmente iguais, um não atri
Hobbes opera, nesse sentido, uma distinção fundamen bua a si mais direito do que aos outros."8 Se a injustiça
tal entre o errado, que supõe o não respeito de uma con pode ser definida como "a não execução das conven-
venção concluída com uma parte5, e o dano infligido a
erro para com a outra parte, há injustiça porque a terceira lei é infringida"
1. "Os autores dividem a justiça das ações em justiça comutativa e justi (J. Terrel, Hobbes: matérialisme et politique, Paris, Vrin, 1994, p. 177).
ça distributiva. A primeira, dizem, consiste numa proporção aritmética, a se 6. Éléments de la /oi naturelle et politiq11e, Paris, Le Livre de Poche, 2003, 1,
gu nda, numa proporção geométrica. Portanto, põem a justiça comutativa na XVl, 3, pp. 194-6; Le Citoyen, UI, 4, p. 115; Lév., XV, pp. 149-50. Segundo Grócio,
igu aldade dos valores das coisas sobre as quais incide o contrato, e a justiça o conceito de dano se insere num âmbito jurídico. "O dano é o fato de ter a me
distributiva na distribuição de vantagens iguais aos homens de mérito igual" nos; consiste no fato de al guém ter menos do que o que lhe pertence, seja que
(Léviathan [Lév.], trad. fr. F. Tricaud, Paris, Sirey, 1971, XV, p. 150). ele tenha o que é dele da natureza sozinha; seja que o tenha como consequên
2. [bid., p. 150; Le Citoyen 011 les fondements de la politiq11e, Paris, GF, 1982, cia de algu m fato humano, em virtude, por exemplo, do direito de proprieda
Ill, 6, p. 117. de ou de uma convenção; seja que o tenha da lei" (DGP, n, XVII, li, 1, p. 416).
3. Lév., X, pp. 150-1. 7. "É necessário que os homens partilhem aquilo que podem dispensar,
4. [bid., p. 151; "Daquele que é o primeiro a cumprir o acordado em caso e que se transfiram mutuamente a propriedade que têm sobre as coisas, me
de contrato, diz-se que ele merece o que deve receber pela execução da outra diante troca e contrato mútuo. Por isso, compete à República, ou seja, ao so
parte. [ ...] No contrato, o que recebo de meu cocontratante é poder merecer berano, fixar a maneira pela qual deverão ser feitos os contratos de todas as
que ele renuncie a seu direito" (Lév., XVl, p. 135). espécies entre os sujeitos (referentes, por exemplo, à compra, à venda, à tro
5. "Mesmo que o erro (inj11ry) e o ato injusto sejam duas denominações ca, ao empréstimo, ao alu guel)" (Lév., XXJV, p. 267).
diferentes de uma mesma realidade, eles não devem ser confundidos [ ...] há 8. Le Citoyen, Ili, 6, p. 117.
116 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 117
sica da justiça?' Segundo Hobbes, a justiça comutativa um indivíduo com o qual nenhum contrato foi concluí
não supõe "a igualdade dos valores das coisas sobre as do6 . O dano objetivo sofrido, que atenta contra os direi
quais incide o contrato", pois não se comete injustiça ne tos do indivíduo, nem por isso constitui urna violação da
nhuma "ao vender mais caro do que se compra"2• A jus justiça, uma inf ração às cláusulas de um acordo. Assim,
tiça de uma relação contratual não procede da proporção quando é causado um erro, a sanção não é proporciona
objetiva que lhe seria inerente, da igualdade entre o que da à reparação do dano infligido, mas será deduzida, de
é dado e recebido: "O valor de todas as coisas que são maneira abstrata, da falta com a palavra dada. Ademais,
objeto de um contrato é medido pelo apetite dos contra as decisões individuais, que fixam o teor do contrato, são
tantes; o valor justo é, portanto, aquele que aceitam for evidentemente submetidas às diferentes condições pro
necer."3 No âmbito da justiça comutativa, o mérito se liga mulgadas pelo Estado no tocante à regulamentação dos
à parte que é a primeira a cumprir o acordado e que"me acordos contratuais7•
rece que o outro faça o mesmo"4• Na esteira de Grócio, No entanto, a despeito dessa concepção duplamen
Hobbes considera que a obrigação jurídica repousa numa te positivista da justiça, que enquadra o consentimento
transferência de direito. Mas, deixando o mérito enxer das partes com a ajuda das leis civis, a própria possibili
tar-se na transferência de direito, Hobbes resgata uma dade do contrato repousa no reconhecimento, pelas
concepção do mérito que, como observamos, era alheia i
duas partes, da prmazia de urna máxima naturaJ: "Pode
ao pensamento de Grócio. ser difícil negar totalmente que a justiça consista em al
Devemos então concluir que a justiça de um contra guma igualdade, nem que seja simplesmente pelo fato
to é estritamente redutível ao consentimento das partes? de que, sendo todos naturalmente iguais, um não atri
Hobbes opera, nesse sentido, uma distinção fundamen bua a si mais direito do que aos outros."8 Se a injustiça
tal entre o errado, que supõe o não respeito de uma con pode ser definida como "a não execução das conven-
venção concluída com uma parte5, e o dano infligido a
erro para com a outra parte, há injustiça porque a terceira lei é infringida"
1. "Os autores dividem a justiça das ações em justiça comutativa e justi (J. Terrel, Hobbes: matérialisme et politique, Paris, Vrin, 1994, p. 177).
ça distributiva. A primeira, dizem, consiste numa proporção aritmética, a se 6. Éléments de la /oi naturelle et politiq11e, Paris, Le Livre de Poche, 2003, 1,
gu nda, numa proporção geométrica. Portanto, põem a justiça comutativa na XVl, 3, pp. 194-6; Le Citoyen, UI, 4, p. 115; Lév., XV, pp. 149-50. Segundo Grócio,
igu aldade dos valores das coisas sobre as quais incide o contrato, e a justiça o conceito de dano se insere num âmbito jurídico. "O dano é o fato de ter a me
distributiva na distribuição de vantagens iguais aos homens de mérito igual" nos; consiste no fato de al guém ter menos do que o que lhe pertence, seja que
(Léviathan [Lév.], trad. fr. F. Tricaud, Paris, Sirey, 1971, XV, p. 150). ele tenha o que é dele da natureza sozinha; seja que o tenha como consequên
2. [bid., p. 150; Le Citoyen 011 les fondements de la politiq11e, Paris, GF, 1982, cia de algu m fato humano, em virtude, por exemplo, do direito de proprieda
Ill, 6, p. 117. de ou de uma convenção; seja que o tenha da lei" (DGP, n, XVII, li, 1, p. 416).
3. Lév., X, pp. 150-1. 7. "É necessário que os homens partilhem aquilo que podem dispensar,
4. [bid., p. 151; "Daquele que é o primeiro a cumprir o acordado em caso e que se transfiram mutuamente a propriedade que têm sobre as coisas, me
de contrato, diz-se que ele merece o que deve receber pela execução da outra diante troca e contrato mútuo. Por isso, compete à República, ou seja, ao so
parte. [ ...] No contrato, o que recebo de meu cocontratante é poder merecer berano, fixar a maneira pela qual deverão ser feitos os contratos de todas as
que ele renuncie a seu direito" (Lév., XVl, p. 135). espécies entre os sujeitos (referentes, por exemplo, à compra, à venda, à tro
5. "Mesmo que o erro (inj11ry) e o ato injusto sejam duas denominações ca, ao empréstimo, ao alu guel)" (Lév., XXJV, p. 267).
diferentes de uma mesma realidade, eles não devem ser confundidos [ ...] há 8. Le Citoyen, Ili, 6, p. 117.
118 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 119
ções"9, isso não implica de modo algu m que ela se con tanto, uma correlação essencial entre a emergência dos
funda com a simples violação do compromisso das par direitos subjetivos e a assimilação da igualdade à reci
tes,pois a justiça decorre da virtude de equjdade. A eqw procidade. A igualdade jurídica, a partir de então,é con
dade mostra-se como a fonte original da justiça, pois ela cebida como a detenção reciproca de direitos subjetivos.
é a virtude que se empenha em respeitar a igualdade na A virtude de eqwdade, que coincide com o respeito
tural entre os homens. Essa nova concepção da equida da igu aldade natural, constitui o fundamento natural da
justiça 13, pois ela é a condição da instauração da paz en
de se djstingue radicalmente do significado que a trarução
tre os homens. Os indivíduos,"[ ... ] julgando-se iguais,
aristotélica havia conferido a essa noção, assimilando-a
recusarão concluir a paz,a não ser em pé de igualdade" 14•
a um "corretivo da justiça legal". "Se, nessas condições,
Pois, segundo Hobbes, tudo o que salvagu arda a paz é
algu ns exigem para si, fazendo a paz, o que não quere
justo por natureza15• A teoria hobbesiana da justiça comu
riam conceder aos outros,eles agem contrariamente à lei tativa escapa assim ao positivismo, mas à custa de uma
[... ] que ordena reconhecer a igualdade natural." 1 º erradicação radical do direito natural clássico pela lei na
Todo indivíduo que não se curva perante as cláusu tural de equidade. Esta substitui, portanto, a lei positiva
las do contrato ao qual subscreveu infringe a lei natural que,segu ndo Suarez, consegwa instituir valores ao asse
de equidade,que nos intima a não nos atribuir um direi
gurar a coordenação dos direitos subjetivos.
to que denegaríamos aos outros. O dano sofrido,mesmo Nessa perspectiva, uma justa distribuição só poderá
que não constitua uma afronta (injuria), pode ser conce provir desse espírito de equidade 16 que concede a todos
bido como iníquo se o indivíduo é lesado em seu direito direitos de créruto igu ais, defende o direito alheio como
natural 11. Basta, então,para ser justo, colocar-se no lugar o seu próprio. Já não se trata de descobrir o direito, de
do outro. A igualdade na origem do direito já não é con estabelecer relações de igualdade dentro das relações so
cebida como uma proporção imanente a uma relação so ciais, mas de atribuir a todos direitos subjetivos iguais:
cial, mas coincide com uma forma de reciprocidade já "Deve-se contentar com uma liberdade para com os ou
formulada, em seu tempo, pelo Evangclho 12• Existe, por- tros igual a que se concederia aos outros com relação a
si mesmo." 17 Essa forma de igualdade permite a todos
9. Lév., XV, p. 143.
reter uma parte igual do direito natural original 1s_
1O. Lév., XV, p. 154; "Eu indico como nona lei da natureza esta: que cada
um reconheça o outro como sendo seu igual por natureza" (ibid.). Assim é o
indivíduo "moderado", que não desrespeita a igualdade natural entre os ho 13. J. Terrcl, Les Théories d11 pnde social, op. cit., p. 197.
mens por glória vã (Éléments de ln /oi nnhirelle e/ politique, I, XIV, 2, p. 177). 14. Léu., XV, p. 154.
11. Léu., XVIII, p. 183. 15. Le Citoyen, III, 32, p. 128; Lév., XV, pp. 159-60.
12. Lév., XIV, p. 130; "Não faças a outrem o que não quererias que fizes 16. "Isto é na verdade uma justa distribuição e pode ser chamada (em
sem a ti mesmo; essa frase mostra-lhe que todo o estudo das leis da natureza bora impropriamente) de justiça distributiva, porém mais propriamente de
que lhe compete consiste somente, quando ele pesa as ações dos outros cm equidade" (Léu., XV, p. 151}.
comparação com as deles, e elas lhe parecem pesadas demais, cm pô-las no 17. Léu., XIV, p. 129.
outro prato da balança, e as deles no seu lugar, a fim de que suas paixões e seu 18. "A décima lei da natureza manda a todos ministrar a justiça com uma
amor-próprio nada possam acrescentar ao peso" (Lév., XV, pp. 157-8); Le Ci distribuição igual de favor às duas partes. Pela lei precedente, é proibido que
toyen, Ili, 26, p. 124. Cf. Mateus 7, 12. nos atribuamos mais direito de natureza do que concedemos aos outros" (Le
118 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 119
ções"9, isso não implica de modo algu m que ela se con tanto, uma correlação essencial entre a emergência dos
funda com a simples violação do compromisso das par direitos subjetivos e a assimilação da igualdade à reci
tes,pois a justiça decorre da virtude de equjdade. A eqw procidade. A igualdade jurídica, a partir de então,é con
dade mostra-se como a fonte original da justiça, pois ela cebida como a detenção reciproca de direitos subjetivos.
é a virtude que se empenha em respeitar a igualdade na A virtude de eqwdade, que coincide com o respeito
tural entre os homens. Essa nova concepção da equida da igu aldade natural, constitui o fundamento natural da
justiça 13, pois ela é a condição da instauração da paz en
de se djstingue radicalmente do significado que a trarução
tre os homens. Os indivíduos,"[ ... ] julgando-se iguais,
aristotélica havia conferido a essa noção, assimilando-a
recusarão concluir a paz,a não ser em pé de igualdade" 14•
a um "corretivo da justiça legal". "Se, nessas condições,
Pois, segundo Hobbes, tudo o que salvagu arda a paz é
algu ns exigem para si, fazendo a paz, o que não quere
justo por natureza15• A teoria hobbesiana da justiça comu
riam conceder aos outros,eles agem contrariamente à lei tativa escapa assim ao positivismo, mas à custa de uma
[... ] que ordena reconhecer a igualdade natural." 1 º erradicação radical do direito natural clássico pela lei na
Todo indivíduo que não se curva perante as cláusu tural de equidade. Esta substitui, portanto, a lei positiva
las do contrato ao qual subscreveu infringe a lei natural que,segu ndo Suarez, consegwa instituir valores ao asse
de equidade,que nos intima a não nos atribuir um direi
gurar a coordenação dos direitos subjetivos.
to que denegaríamos aos outros. O dano sofrido,mesmo Nessa perspectiva, uma justa distribuição só poderá
que não constitua uma afronta (injuria), pode ser conce provir desse espírito de equidade 16 que concede a todos
bido como iníquo se o indivíduo é lesado em seu direito direitos de créruto igu ais, defende o direito alheio como
natural 11. Basta, então,para ser justo, colocar-se no lugar o seu próprio. Já não se trata de descobrir o direito, de
do outro. A igualdade na origem do direito já não é con estabelecer relações de igualdade dentro das relações so
cebida como uma proporção imanente a uma relação so ciais, mas de atribuir a todos direitos subjetivos iguais:
cial, mas coincide com uma forma de reciprocidade já "Deve-se contentar com uma liberdade para com os ou
formulada, em seu tempo, pelo Evangclho 12• Existe, por- tros igual a que se concederia aos outros com relação a
si mesmo." 17 Essa forma de igualdade permite a todos
9. Lév., XV, p. 143.
reter uma parte igual do direito natural original 1s_
1O. Lév., XV, p. 154; "Eu indico como nona lei da natureza esta: que cada
um reconheça o outro como sendo seu igual por natureza" (ibid.). Assim é o
indivíduo "moderado", que não desrespeita a igualdade natural entre os ho 13. J. Terrcl, Les Théories d11 pnde social, op. cit., p. 197.
mens por glória vã (Éléments de ln /oi nnhirelle e/ politique, I, XIV, 2, p. 177). 14. Léu., XV, p. 154.
11. Léu., XVIII, p. 183. 15. Le Citoyen, III, 32, p. 128; Lév., XV, pp. 159-60.
12. Lév., XIV, p. 130; "Não faças a outrem o que não quererias que fizes 16. "Isto é na verdade uma justa distribuição e pode ser chamada (em
sem a ti mesmo; essa frase mostra-lhe que todo o estudo das leis da natureza bora impropriamente) de justiça distributiva, porém mais propriamente de
que lhe compete consiste somente, quando ele pesa as ações dos outros cm equidade" (Léu., XV, p. 151}.
comparação com as deles, e elas lhe parecem pesadas demais, cm pô-las no 17. Léu., XIV, p. 129.
outro prato da balança, e as deles no seu lugar, a fim de que suas paixões e seu 18. "A décima lei da natureza manda a todos ministrar a justiça com uma
amor-próprio nada possam acrescentar ao peso" (Lév., XV, pp. 157-8); Le Ci distribuição igual de favor às duas partes. Pela lei precedente, é proibido que
toyen, Ili, 26, p. 124. Cf. Mateus 7, 12. nos atribuamos mais direito de natureza do que concedemos aos outros" (Le
120 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBf.S E LOCKE 121
Portanto, o direito já não é o que rege o acordo de de um outro, é porque o poder deste foi objeto de uma
maneira imanente mas, apreendido sob sua forma sub transferência, da qual provém o mérito que lhe é conce
jetiva, ele se toma o próprio objeto do contrato. O direi dido23. Hobbes considera, portanto, que a noção de trans
to já não constitui o princípio da distribuição, mas se con ferência de poder intervém tanto na esfera econômica
funde com o objeto atribuído, segundo a injunção moral como no campo político, mesmo que não lhe seja possí
inerente à virtude de equidade. O equilibrio então é con vel considerar, como veremos, que o homem é senhor de
cebido como "a principal lei de natureza" à qual o juiz sua liberdade. Esse mercado de poderes vai então impor
deve saber curvar-se 19• se como um árbitro impessoal, incumbido de cumprir
Poder-se-á, nessas condições, restaurar o princípio da uma missão de distribuição, de atribuição a cada um do
justiça distributiva, conceder "vantagens iguais aos ho valor que lhe cabe. "Como para as outras coisas, assim
mens de igual mérito"? 2º Será uma injustiça atribuir a um também no que concerne ao homem, não é o vendedor
homem menos ou mais do que ele merece? Trata-se de mas o comprador que determina o preço. Um homem
identificar o significado que essas interrogações confe pode até (é esse o caso da maioria) atribuir-se o mais alto
rem à noção de mérito. Segundo Hobbes, o mérito de um valor possível: seu verdadeiro valor, no entanto, não ex
indivíduo não deve ser avaliado por referência ao bem cede a estimativa que os outros fazem dele."24 Isso quer
comum visado pela sociedade, ou avaliado pelo que lhe é dizer que o valor moral de um homem é relativo à oferta
devido pela coletividade. "O valor ou a importância de e à procura?25 A desigualdade entre os homens não pro
um homem é, como para qualquer outro objeto, seu pre cede, portanto, simplesmente da lei civil2'', mas também
·ço, ou seja, o que se daria para dispor de seu poder: as
desse mercado de poderes. Esse mercado se impõe como
sim, não é uma grandeza absoluta, mas algo que depen
árbitro antes mesmo da intervenção do soberano.
de da necessidade e do juízo alheio."21 Portanto, o méri
Parece bem arriscado confiar a esse mercado de po
to de um homem parece coincidir com o valor que lhe é
deres a função exclusiva de avaliar o mérito de cada um,
concedido no seio de um mercado de poderes. Com efei
to, "o trabalho humano também é um bem suscetível de de determinar o que lhe é devido pela coletividade.
ser trocado com vistas a uma vantagem, como qualquer
outra coisa"22• Se um indivíduo pode dispor da potência
O direito natural à segurança
Citoye11, Ili, 15, p. 121); uibid., é de presumir que cm todos os casos que a lei
escrita esqueceu, cumpre seguir a lei da equidade natural, que ordena dar a A emergência de um direito natural subjetivo vem,
iguais coisas iguais"(X]V, 14, p. 251). assim, paliar o valor insuficiente que esse mercado de
,19. Lév., XXVl, p. 302. As leis naturais também devem ser designadas
como "leis morais: elas consistem nas virtudes morais tais como a justiça, a
equidade e todas as disposições de espírito favoráveis à paz e à caridade"
(ibid., p. 305). 23. Macpherson, La Théorie politiq11e de /'111divid11nlis111e possessif, op. cit,
20. Lév., XV, p. 150. p. 47.
21. Lév., X, p. 83. Macpherson, La Théorie politique de l'i11divid11nlis111e pos 24. Lév., X, p. 83.
sessif, op. cit., pp. 73-4. 25. a. Rawls, Théorie de ln justice, op. cit., p. 349.
22. Léu., XXIV, p. 262. 26. Le Citoyen, 111, 13, p. 120.
120 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBf.S E LOCKE 121
Portanto, o direito já não é o que rege o acordo de de um outro, é porque o poder deste foi objeto de uma
maneira imanente mas, apreendido sob sua forma sub transferência, da qual provém o mérito que lhe é conce
jetiva, ele se toma o próprio objeto do contrato. O direi dido23. Hobbes considera, portanto, que a noção de trans
to já não constitui o princípio da distribuição, mas se con ferência de poder intervém tanto na esfera econômica
funde com o objeto atribuído, segundo a injunção moral como no campo político, mesmo que não lhe seja possí
inerente à virtude de equidade. O equilibrio então é con vel considerar, como veremos, que o homem é senhor de
cebido como "a principal lei de natureza" à qual o juiz sua liberdade. Esse mercado de poderes vai então impor
deve saber curvar-se 19• se como um árbitro impessoal, incumbido de cumprir
Poder-se-á, nessas condições, restaurar o princípio da uma missão de distribuição, de atribuição a cada um do
justiça distributiva, conceder "vantagens iguais aos ho valor que lhe cabe. "Como para as outras coisas, assim
mens de igual mérito"? 2º Será uma injustiça atribuir a um também no que concerne ao homem, não é o vendedor
homem menos ou mais do que ele merece? Trata-se de mas o comprador que determina o preço. Um homem
identificar o significado que essas interrogações confe pode até (é esse o caso da maioria) atribuir-se o mais alto
rem à noção de mérito. Segundo Hobbes, o mérito de um valor possível: seu verdadeiro valor, no entanto, não ex
indivíduo não deve ser avaliado por referência ao bem cede a estimativa que os outros fazem dele."24 Isso quer
comum visado pela sociedade, ou avaliado pelo que lhe é dizer que o valor moral de um homem é relativo à oferta
devido pela coletividade. "O valor ou a importância de e à procura?25 A desigualdade entre os homens não pro
um homem é, como para qualquer outro objeto, seu pre cede, portanto, simplesmente da lei civil2'', mas também
·ço, ou seja, o que se daria para dispor de seu poder: as
desse mercado de poderes. Esse mercado se impõe como
sim, não é uma grandeza absoluta, mas algo que depen
árbitro antes mesmo da intervenção do soberano.
de da necessidade e do juízo alheio."21 Portanto, o méri
Parece bem arriscado confiar a esse mercado de po
to de um homem parece coincidir com o valor que lhe é
deres a função exclusiva de avaliar o mérito de cada um,
concedido no seio de um mercado de poderes. Com efei
to, "o trabalho humano também é um bem suscetível de de determinar o que lhe é devido pela coletividade.
ser trocado com vistas a uma vantagem, como qualquer
outra coisa"22• Se um indivíduo pode dispor da potência
O direito natural à segurança
Citoye11, Ili, 15, p. 121); uibid., é de presumir que cm todos os casos que a lei
escrita esqueceu, cumpre seguir a lei da equidade natural, que ordena dar a A emergência de um direito natural subjetivo vem,
iguais coisas iguais"(X]V, 14, p. 251). assim, paliar o valor insuficiente que esse mercado de
,19. Lév., XXVl, p. 302. As leis naturais também devem ser designadas
como "leis morais: elas consistem nas virtudes morais tais como a justiça, a
equidade e todas as disposições de espírito favoráveis à paz e à caridade"
(ibid., p. 305). 23. Macpherson, La Théorie politiq11e de /'111divid11nlis111e possessif, op. cit,
20. Lév., XV, p. 150. p. 47.
21. Lév., X, p. 83. Macpherson, La Théorie politique de l'i11divid11nlis111e pos 24. Lév., X, p. 83.
sessif, op. cit., pp. 73-4. 25. a. Rawls, Théorie de ln justice, op. cit., p. 349.
22. Léu., XXIV, p. 262. 26. Le Citoyen, 111, 13, p. 120.
122 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO OS DfREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 123
poderes confere a cada homem 27• A despeito dos direitos pelos outros, mas de um receio mútuo que eles têm uns
rudimentares que sua condição social lhe outorga, cada dos outros." 30
homem é, por natureza, titular de direitos. A ideia de um Mas a hipótese do estado de natureza não projeta os
direito natural subjetivo consagra então o movimento de homens num estado de isolamento, desligado de qual
emancipação do indivíduo de encontro a relações sociais quer laço sociaP 1• A vida solitária não está no principio
que traduzem as primícias da economia mercantil ou os do estado de natureza, ela é sua consequência infalível
vestígios da organização medieval. se nada é empreendido para prevenir a ameaça da guer
u
Como poder-se-á inferir um direito natral do ho ra civil32• Essa hipótese permite, ao contrário, elucidar a ín
mem? Com a condição de recusar a natureza política do dole de um homem civilizado33, a partir de uma"inferên
homem e de considerá-lo um indivíduo no estado de na cia tirada das paixões"34• O direito original não está, por
tureza, numa situação que, longe de preceder a civiliza tanto, arraigado na natureza racional, no ser moral do
ção, parece resultar dela: "Na busca do direito do Estado, homem, mas decorre de paixões privilegiadas que reve
e do dever dos sujeitos, se bem que não se precise rom lam essa índole do homem sociaP5•
per a sociedade civil, é preciso, porém, tomá-la como se
estivesse dissolvida, quer dizer [que] é preciso entender 30. lbid., 1, 2, p. 93. "Fizeram-me essa objeção, de que não é verdade que
qual é o natural dos homens, o que é que os torna apro os homens pudessem contratar pelo receio mútuo uma sociedade civil, e que,
ao contrário, se eles se receassem mutuamente assim, não poderiam ter su
priados para formar cidades ou incapazes disso."28 portado a visão uns dos outros. Parece-me que esses senhores confundem o
Não obstante, Hobbes chega à conclusão de que esse receio com o terror e a aversão. Refiro-me, com esse primeiro termo, apenas
estado não pode revelar um homem criado sociável por a uma pu.ra apreensão ou previsão de um mal vindouro. E acho que não só a
fuga é um efeito do receio: mas também a suspeita, a desconfiança, a precau
natureza: "Ainda que o homem desejasse naturalmente ção, e até acho que há medo em tudo contra o que nos precavemos e com que
a sociedade, não se seguiria que ele tivesse nascido so nos fortificamos contra o receio" (ibid., p. 94).
31. O procedimento de Hobbes, neste ponto, não é estritamente nomi
ciável, quero dizer, com todas as condições requeridas nalista (cf. M. Villey, Essnis de philasophie du droit, op. cit., pp. 187-8).
para adquiri-la."2'1 A sociabilidade natural, defendida 32. "A vida do homem é então solitária, necessitada, penosa, quase ani
por Grócio, é substituída por uma atitude de descon mal, e breve• (Lév., XIII, p. 125; J. Terrel, Les Tlléories d11 pacte social, op. cit.,
p. 142). "Que um estado de pura natureza, noutras palavras, de liberdade ab
fiança para com o próximo: "Se o receio fosse estirpa soluta, tal como aquele dos homens que não são soberanos nem súditos, seja
do de entre os homens, eles se entregariam, por natu um estado de anarquia e de guerra [ ... ]"(Lév., XXXI, p. 378).
33. Montesquieu e Rousseau apresentam, portanto, sob a forma de uma
reza, mais avidamente à dominação do que à sociedade. objeção o que se aparenta com uma leitura de Hobbes particularmente pene
Portanto, é algo totalmente comprovado que a origem das trante (De l'esprit des /ois, Pris,
a
CF, 1993, 1, 2) [trad. bras. O esp(rito das leis, São
Paulo, Martins Fontes, 4� ed., 2005); "todos, falando sem parar de necessidade,
maiores e das mais duradouras sociedades não vem de de avidez, de opressão, de desejos e de orgulho, transportaram para o estado de
uma recíproca benevolência que os homens têm uns natureza ideias que haviam tirado da sociedade. Falavam do homem selvagem
e pintavam o homem civil" (Discours s11r l'origi11e et les fo11de1111:11ts de l'inégalité
pam,i les /10111111es, Paris, GF, p. 158). ffrad. bras. DiSCLlrso sobre a origem e os funda
mmtos da desig11nldnde entre os homens, São Paulo, Martins Fontes, 2� ed., 2005.J
27. "Não há melhor sinal de uma distribuição igual de qualquer coisa que
34. Lév., XILI, p. 125.
seja do que o fato de cada um estar satisfeito com sua parte" (Lév., XIII, p. 122). 35. Como salientou Rousseau, "Hobbes viu muito bem o defeito de to
28. Le Citoye11, prefácio, p. 71.
das as definições modernas do direito natural"(Discours s1ir /'origine et /es fon
29. lbid., 1, 2, pp. 93-4.
demenls de /'inégnlité pan11i les hommes, op. cit., 1, p. 195).
122 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO OS DfREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 123
poderes confere a cada homem 27• A despeito dos direitos pelos outros, mas de um receio mútuo que eles têm uns
rudimentares que sua condição social lhe outorga, cada dos outros." 30
homem é, por natureza, titular de direitos. A ideia de um Mas a hipótese do estado de natureza não projeta os
direito natural subjetivo consagra então o movimento de homens num estado de isolamento, desligado de qual
emancipação do indivíduo de encontro a relações sociais quer laço sociaP 1• A vida solitária não está no principio
que traduzem as primícias da economia mercantil ou os do estado de natureza, ela é sua consequência infalível
vestígios da organização medieval. se nada é empreendido para prevenir a ameaça da guer
u
Como poder-se-á inferir um direito natral do ho ra civil32• Essa hipótese permite, ao contrário, elucidar a ín
mem? Com a condição de recusar a natureza política do dole de um homem civilizado33, a partir de uma"inferên
homem e de considerá-lo um indivíduo no estado de na cia tirada das paixões"34• O direito original não está, por
tureza, numa situação que, longe de preceder a civiliza tanto, arraigado na natureza racional, no ser moral do
ção, parece resultar dela: "Na busca do direito do Estado, homem, mas decorre de paixões privilegiadas que reve
e do dever dos sujeitos, se bem que não se precise rom lam essa índole do homem sociaP5•
per a sociedade civil, é preciso, porém, tomá-la como se
estivesse dissolvida, quer dizer [que] é preciso entender 30. lbid., 1, 2, p. 93. "Fizeram-me essa objeção, de que não é verdade que
qual é o natural dos homens, o que é que os torna apro os homens pudessem contratar pelo receio mútuo uma sociedade civil, e que,
ao contrário, se eles se receassem mutuamente assim, não poderiam ter su
priados para formar cidades ou incapazes disso."28 portado a visão uns dos outros. Parece-me que esses senhores confundem o
Não obstante, Hobbes chega à conclusão de que esse receio com o terror e a aversão. Refiro-me, com esse primeiro termo, apenas
estado não pode revelar um homem criado sociável por a uma pu.ra apreensão ou previsão de um mal vindouro. E acho que não só a
fuga é um efeito do receio: mas também a suspeita, a desconfiança, a precau
natureza: "Ainda que o homem desejasse naturalmente ção, e até acho que há medo em tudo contra o que nos precavemos e com que
a sociedade, não se seguiria que ele tivesse nascido so nos fortificamos contra o receio" (ibid., p. 94).
31. O procedimento de Hobbes, neste ponto, não é estritamente nomi
ciável, quero dizer, com todas as condições requeridas nalista (cf. M. Villey, Essnis de philasophie du droit, op. cit., pp. 187-8).
para adquiri-la."2'1 A sociabilidade natural, defendida 32. "A vida do homem é então solitária, necessitada, penosa, quase ani
por Grócio, é substituída por uma atitude de descon mal, e breve• (Lév., XIII, p. 125; J. Terrel, Les Tlléories d11 pacte social, op. cit.,
p. 142). "Que um estado de pura natureza, noutras palavras, de liberdade ab
fiança para com o próximo: "Se o receio fosse estirpa soluta, tal como aquele dos homens que não são soberanos nem súditos, seja
do de entre os homens, eles se entregariam, por natu um estado de anarquia e de guerra [ ... ]"(Lév., XXXI, p. 378).
33. Montesquieu e Rousseau apresentam, portanto, sob a forma de uma
reza, mais avidamente à dominação do que à sociedade. objeção o que se aparenta com uma leitura de Hobbes particularmente pene
Portanto, é algo totalmente comprovado que a origem das trante (De l'esprit des /ois, Pris,
a
CF, 1993, 1, 2) [trad. bras. O esp(rito das leis, São
Paulo, Martins Fontes, 4� ed., 2005); "todos, falando sem parar de necessidade,
maiores e das mais duradouras sociedades não vem de de avidez, de opressão, de desejos e de orgulho, transportaram para o estado de
uma recíproca benevolência que os homens têm uns natureza ideias que haviam tirado da sociedade. Falavam do homem selvagem
e pintavam o homem civil" (Discours s11r l'origi11e et les fo11de1111:11ts de l'inégalité
pam,i les /10111111es, Paris, GF, p. 158). ffrad. bras. DiSCLlrso sobre a origem e os funda
mmtos da desig11nldnde entre os homens, São Paulo, Martins Fontes, 2� ed., 2005.J
27. "Não há melhor sinal de uma distribuição igual de qualquer coisa que
34. Lév., XILI, p. 125.
seja do que o fato de cada um estar satisfeito com sua parte" (Lév., XIII, p. 122). 35. Como salientou Rousseau, "Hobbes viu muito bem o defeito de to
28. Le Citoye11, prefácio, p. 71.
das as definições modernas do direito natural"(Discours s1ir /'origine et /es fon
29. lbid., 1, 2, pp. 93-4.
demenls de /'inégnlité pan11i les hommes, op. cit., 1, p. 195).
124 GENEALOGIA DO DfREITO MODERNO OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 125
Os homens saídos do estado de natureza são colo conservar?4º Se o direito é a detenção de um poder livre,
cados em pé de igualdade: "A diferença de um homem ele não pode ser outorgado por uma lei que é acima de
para outro não é tão considerável que um homem possa tudo obrigação, fonte de deveres4 '.Ao passo que nós nos
por essa razão reclamar para si mesmo uma vantagem a empenhamos simplesmente, até agora, em estudar as
qual um outro não possa pretender."31' Nessa condição diferentes maneiras pelas quais o direito e a lei se distin
marcada pela igualdade das forças, nenhum homem pode guem, Hobbes aparece como o primeiro autor que ousa
submeter duradouramente um outro. sustentar que a lei é o contrário do direito: "A lei é um
Fica então evidente que o estado de natureza aban vínculo, o direito, uma liberdade, e são coisas diametral
dona os homens na fruição de uma liberdade ilimitada. mente opostas."42 Uma vez que o direito é concebido
Essa liberdade poderá ainda ser concebida como uma como uma liberdade que desobriga, nada mais distingue
"faculdade moral"? Quando Suarez emite a hipótese da a obrigação jurídica da obrigação legal.
pura natureza, ele não se arrisca a deduzir o direito subje Se o direito subjetivo, apreendido como uma facul
tivo de um estado de natureza, no qual a vontade huma dade moral, procede de uma prescrição da lei natural, o
na estaria subtraída à dominação da lei natural. direito natural original, concebido por Hobbes, parece
O pensamento de Hobbes não é, sobre esse ponto, impor-se por causa do silêncio da lei. A liberdade já não
desprovido de ambiguidade: poderíamos considerar que procede da obrigação que se impõe a uma vontade se
é a partir do dever de se conservar, que se impõe como a parada de suas inclinações sensíveis, mas decorre do si
lei do estado de natureza, que se pode inferir dele um di lêncio ensurdecedor da lei. A liberdade surge como um
reito, uma liberdade na escolha dos meios para assegu direito subjetivo, uma qualidade inerente ao sujeito, em
rar a conservação pessoaP7 . Se consideramos que o direi razão da ausência de qualquer lei transcendente ao esta
to positivo tira sua legitimidade da lei natura 1 38, ele então do de natureza43•
é definido como "liberdade irrepreensível"39. Mas a lei
u Assim se manifesta uma nova fi gu ra do direito na
natural que chegaria a fndar o direito positivo ainda po
tural, que já não é vinculada a uma relação social, mas
deria ser concebida como uma lei, já que não exerce ne
concebida como um poder livre outorgado pela condição
nhuma coerção exterior, nada subtrai à liberdade de se
natural dos homens: "O direito de natureza[... ] é a liber
dade que todos têm de usar como quiser seu poder pró
36. Lév., Xlfl, p. 121. prio para a preservação[...] de sua própria vida."44 Hobbes
37. Assim como observa H. Warrender, os homens não parecem livres
para se abster de assegurar sua conservação (The Political Philosophy of Hobbes, é, porém, um dos raros pensadores do contrato social a
Oxford, Clarendon Press, 1957, p. 216).
38. "Em todo caso, a liberdade natural, que as leis mais deixaram do que
estabeleceram, é um direito: pois, sem elas, essa liberdade permaneceria intei 40. M. Villey, Essnis de philosophie d11 droit, op. cit., p. 194.
ra; mas a lei natural e a divina lhe deram a primeira restrição" (Le Citoyen, XIV, 41. "A essência da lei não é soltar, mas amarrar" (Éléments de ln foi nntu-
3, p. 244). relle et politique, li, X, 5, p. 338).
39. Éléments de la /oi naturelle et politique, 1, XIV, 6, p. 179. M.Villey, La For- 42. Le Citoyen, XIV, 3, p. 245.
111atio11 de ln pensée j11ridiq11e modeme, op. cit., pp. 658-9; Essnis de philosophie du 43. Lév., Vl, p. 48; Xl11, p. 126.
droit, op. cit., p. 190. 44. Lév., XIV, p. 128.
124 GENEALOGIA DO DfREITO MODERNO OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 125
Os homens saídos do estado de natureza são colo conservar?4º Se o direito é a detenção de um poder livre,
cados em pé de igualdade: "A diferença de um homem ele não pode ser outorgado por uma lei que é acima de
para outro não é tão considerável que um homem possa tudo obrigação, fonte de deveres4 '.Ao passo que nós nos
por essa razão reclamar para si mesmo uma vantagem a empenhamos simplesmente, até agora, em estudar as
qual um outro não possa pretender."31' Nessa condição diferentes maneiras pelas quais o direito e a lei se distin
marcada pela igualdade das forças, nenhum homem pode guem, Hobbes aparece como o primeiro autor que ousa
submeter duradouramente um outro. sustentar que a lei é o contrário do direito: "A lei é um
Fica então evidente que o estado de natureza aban vínculo, o direito, uma liberdade, e são coisas diametral
dona os homens na fruição de uma liberdade ilimitada. mente opostas."42 Uma vez que o direito é concebido
Essa liberdade poderá ainda ser concebida como uma como uma liberdade que desobriga, nada mais distingue
"faculdade moral"? Quando Suarez emite a hipótese da a obrigação jurídica da obrigação legal.
pura natureza, ele não se arrisca a deduzir o direito subje Se o direito subjetivo, apreendido como uma facul
tivo de um estado de natureza, no qual a vontade huma dade moral, procede de uma prescrição da lei natural, o
na estaria subtraída à dominação da lei natural. direito natural original, concebido por Hobbes, parece
O pensamento de Hobbes não é, sobre esse ponto, impor-se por causa do silêncio da lei. A liberdade já não
desprovido de ambiguidade: poderíamos considerar que procede da obrigação que se impõe a uma vontade se
é a partir do dever de se conservar, que se impõe como a parada de suas inclinações sensíveis, mas decorre do si
lei do estado de natureza, que se pode inferir dele um di lêncio ensurdecedor da lei. A liberdade surge como um
reito, uma liberdade na escolha dos meios para assegu direito subjetivo, uma qualidade inerente ao sujeito, em
rar a conservação pessoaP7 . Se consideramos que o direi razão da ausência de qualquer lei transcendente ao esta
to positivo tira sua legitimidade da lei natura 1 38, ele então do de natureza43•
é definido como "liberdade irrepreensível"39. Mas a lei
u Assim se manifesta uma nova fi gu ra do direito na
natural que chegaria a fndar o direito positivo ainda po
tural, que já não é vinculada a uma relação social, mas
deria ser concebida como uma lei, já que não exerce ne
concebida como um poder livre outorgado pela condição
nhuma coerção exterior, nada subtrai à liberdade de se
natural dos homens: "O direito de natureza[... ] é a liber
dade que todos têm de usar como quiser seu poder pró
36. Lév., Xlfl, p. 121. prio para a preservação[...] de sua própria vida."44 Hobbes
37. Assim como observa H. Warrender, os homens não parecem livres
para se abster de assegurar sua conservação (The Political Philosophy of Hobbes, é, porém, um dos raros pensadores do contrato social a
Oxford, Clarendon Press, 1957, p. 216).
38. "Em todo caso, a liberdade natural, que as leis mais deixaram do que
estabeleceram, é um direito: pois, sem elas, essa liberdade permaneceria intei 40. M. Villey, Essnis de philosophie d11 droit, op. cit., p. 194.
ra; mas a lei natural e a divina lhe deram a primeira restrição" (Le Citoyen, XIV, 41. "A essência da lei não é soltar, mas amarrar" (Éléments de ln foi nntu-
3, p. 244). relle et politique, li, X, 5, p. 338).
39. Éléments de la /oi naturelle et politique, 1, XIV, 6, p. 179. M.Villey, La For- 42. Le Citoyen, XIV, 3, p. 245.
111atio11 de ln pensée j11ridiq11e modeme, op. cit., pp. 658-9; Essnis de philosophie du 43. Lév., Vl, p. 48; Xl11, p. 126.
droit, op. cit., p. 190. 44. Lév., XIV, p. 128.
126 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 127
não alicerçar sua filosofia política na exist�ncia de uma é feito com todo direito poderá, assim, atentar contra a
vontade livre, mas na negação do livre-arbítrio45 • O de equidade ou a justiça51 • Paradoxalmente, uma liberdade
sejo que deriva necessariamente do receio de um perigo jurídica, construída artificialmente, decorre forçosamen
é assimilado a uma vontade livre46 • A liberdade natural te do receio da morte violenta.
aqui traduz simplesmente a ausência de obstáculos le Hobbes inventa, assim, uma nova concepção da igual
gais que poderiam constranger, do exterior, a vontade dade natural que traduz uma condição compartilhada
necessária de dispor de todos os meios para salvaguar por todos, capaz de fragmentar os grupos sociais. "Des
dar nossa vida47 . O direito natural de um indivíduo não sa igualdade das aptidões decorre uma igualdade na es
cria, pois, nenhuma obrigação jurídica para outro48 • perança de atingir nossos fins." 52 Ora, a igualdade na de
Essa vontade livre que surge da dissipação de toda tenção das forças naturais converte a igualdade da espe
instância legal será suficiente para erigir um autêntico rança numa igualdade do receio: "Por causa dessa igual
direito natural do homem? Esse poder ilimitado de que dade das forças, e de outras faculdades, que se encontra
rer se converte verdadeiramente em direito apenas se é entre os homens no estado de natureza [... ] ninguém
submetido à exigência original de conservação pessoal. pode ficar seguro de sua conservação, nem esperar al
O direito supõe o uso racional de nossa liberdade49 • O ho cançar um tempo muito longo de vida." 53 As desigualda
mem ávido de glória não dispõe de direito nenhum. Isso des sociais entre os homens podem ser suspensas pela
traz a prova de que Hobbes resiste à força de atração consideração de uma forma de igualdade fundamental:
exercida pelo pensamento de Maquiavel e renuncia a a igualdade perante o risco da morte violenta. Todos os
deduzir o direito natural do comportamento efetivo dos indivíduos estão expostos a uma insegurança igual que
homens. chega a desagregar o princípio da coesão de cada grupo
Segundo Hobbes, o receio da morte violenta é o foco social. A coesão de classe induzida pelas desigualda
primitivo da justiça ao qual se deve vincular todo poder des sociais é suprimida pelo receio da morte violenta,
natural para transformá-lo em direito subjetivo. Se essa igualmente compartilhada por todos os cidadãos54 • A des
liberdade ilimitada se impõe a despeito de toda lei, é por peito das desigualdades sociais provocadas pelo desejo
que a vulnerabilidade da condição natural dos homens
justifica o que emana do receio da morte violenta511 • O que
e direito não queremos dizer outra coisa senão a liberdade que cada um tem
de usar suas faculdades naturais, conforrnemente à reta razão. Donde tiro a
45. Lév., XXI, p. 222. conclusão de que o primeiro fundamento do direito da natureza é que cada
46. lbid. um conserva, tanto quanto pode, seus membros e sua vida" (Le Citoyen, 1, 7,
47. Lév., XIV, p. 128. p. 96; Éléments de ln /oi nnhire/le et politique, l, 14, p. 179). "Certo grau soberano
48. J. Terrel, Hobbes: 111nlérinlis111e el politique, op. cil., p. 160. de receio" (Le Citoyen, li, 18, pp. 109-10}; cf. L. Strauss, La Philosophie politique
49. M. Villey, Essais de philosophie d11 droit, op. cit., p. 192. de Hobbes, Paris, Bclin, 1991.
50. "Não há, portanto, nada para recriminar nem para repreender, não 51. J. Terrel, Hobbes: mntérinlisme el politiq11e, op. cil., p. 177, nota 3.
se faz nada contra o uso da reta razão quando, por todos os tipos de meios, 52. Lév., Xlll, p. 122.
trabalha-se pela conservação própria, defende-se o corpo e os membros da 53.Le Citoyen, 1, 16, p. 100.
morte, ou das dores que a precedem. Ora, todos admitem que o que não é con 54. Macpherson, La Théorie politiq11e de l'i11divid11nlisme possessif, op. cil.,
tra a reta razão é justo, e é feito com todo o direito.Fbis com as palavras justo p.105.
126 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 127
não alicerçar sua filosofia política na exist�ncia de uma é feito com todo direito poderá, assim, atentar contra a
vontade livre, mas na negação do livre-arbítrio45 • O de equidade ou a justiça51 • Paradoxalmente, uma liberdade
sejo que deriva necessariamente do receio de um perigo jurídica, construída artificialmente, decorre forçosamen
é assimilado a uma vontade livre46 • A liberdade natural te do receio da morte violenta.
aqui traduz simplesmente a ausência de obstáculos le Hobbes inventa, assim, uma nova concepção da igual
gais que poderiam constranger, do exterior, a vontade dade natural que traduz uma condição compartilhada
necessária de dispor de todos os meios para salvaguar por todos, capaz de fragmentar os grupos sociais. "Des
dar nossa vida47 . O direito natural de um indivíduo não sa igualdade das aptidões decorre uma igualdade na es
cria, pois, nenhuma obrigação jurídica para outro48 • perança de atingir nossos fins." 52 Ora, a igualdade na de
Essa vontade livre que surge da dissipação de toda tenção das forças naturais converte a igualdade da espe
instância legal será suficiente para erigir um autêntico rança numa igualdade do receio: "Por causa dessa igual
direito natural do homem? Esse poder ilimitado de que dade das forças, e de outras faculdades, que se encontra
rer se converte verdadeiramente em direito apenas se é entre os homens no estado de natureza [... ] ninguém
submetido à exigência original de conservação pessoal. pode ficar seguro de sua conservação, nem esperar al
O direito supõe o uso racional de nossa liberdade49 • O ho cançar um tempo muito longo de vida." 53 As desigualda
mem ávido de glória não dispõe de direito nenhum. Isso des sociais entre os homens podem ser suspensas pela
traz a prova de que Hobbes resiste à força de atração consideração de uma forma de igualdade fundamental:
exercida pelo pensamento de Maquiavel e renuncia a a igualdade perante o risco da morte violenta. Todos os
deduzir o direito natural do comportamento efetivo dos indivíduos estão expostos a uma insegurança igual que
homens. chega a desagregar o princípio da coesão de cada grupo
Segundo Hobbes, o receio da morte violenta é o foco social. A coesão de classe induzida pelas desigualda
primitivo da justiça ao qual se deve vincular todo poder des sociais é suprimida pelo receio da morte violenta,
natural para transformá-lo em direito subjetivo. Se essa igualmente compartilhada por todos os cidadãos54 • A des
liberdade ilimitada se impõe a despeito de toda lei, é por peito das desigualdades sociais provocadas pelo desejo
que a vulnerabilidade da condição natural dos homens
justifica o que emana do receio da morte violenta511 • O que
e direito não queremos dizer outra coisa senão a liberdade que cada um tem
de usar suas faculdades naturais, conforrnemente à reta razão. Donde tiro a
45. Lév., XXI, p. 222. conclusão de que o primeiro fundamento do direito da natureza é que cada
46. lbid. um conserva, tanto quanto pode, seus membros e sua vida" (Le Citoyen, 1, 7,
47. Lév., XIV, p. 128. p. 96; Éléments de ln /oi nnhire/le et politique, l, 14, p. 179). "Certo grau soberano
48. J. Terrel, Hobbes: 111nlérinlis111e el politique, op. cil., p. 160. de receio" (Le Citoyen, li, 18, pp. 109-10}; cf. L. Strauss, La Philosophie politique
49. M. Villey, Essais de philosophie d11 droit, op. cit., p. 192. de Hobbes, Paris, Bclin, 1991.
50. "Não há, portanto, nada para recriminar nem para repreender, não 51. J. Terrel, Hobbes: mntérinlisme el politiq11e, op. cil., p. 177, nota 3.
se faz nada contra o uso da reta razão quando, por todos os tipos de meios, 52. Lév., Xlll, p. 122.
trabalha-se pela conservação própria, defende-se o corpo e os membros da 53.Le Citoyen, 1, 16, p. 100.
morte, ou das dores que a precedem. Ora, todos admitem que o que não é con 54. Macpherson, La Théorie politiq11e de l'i11divid11nlisme possessif, op. cil.,
tra a reta razão é justo, e é feito com todo o direito.Fbis com as palavras justo p.105.
128 GENF.ALOGIA DO DIREITO MODERNO OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 129
exacerbado de honras e de riquezas, a provação da inse somente a posse juridicamente garantida, mas o domí
gurança consegue restaurar, no próprio seio de uma so nio (dominium) propício à constituição de uma indivi
ciedade injusta, uma forma de igualdade primitiva. dualidade livre. Locke se insere, assim, na tradição de
Enquanto não se manifesta o receio da morte vio pensamento segundo a qual os direitos do indivíduo pro
u
lenta, a hipótese do estado de natreza chega a deixar de vêm de um dominium natural de cada um que se exerce
lado a sociedade poütica, sem suspender as diferentes igualmente sobre a sua própria vida, sua liberdade, assim
posições sociais. A concepção hobbesiana do estado de como sobre seus bens57. A propriedade, concebida se
natureza não implica somente o deslocamento do poder gundo essa acepção genérica, mostra-se a base indispen
soberano, mas também a dissolução de toda posição so sável da liberdade58. Logo, a liberdade já não é apreendi
cial. O receio da morte violenta confere, portanto, a cada da como original, aparece como um instrumento privile
qual um direito natural subjetivo cujo exercício no seio giado59 a serviço de um domínio natural, de um domi
do estado civil traria o risco de provocar o ressurgimen nium primordial. Portanto, já não é o receio da morte
to do estado de natureza. violenta que transforma o nosso poder natural em direi
Essa elaboração radical do estado de natureza cons to, mas a obrigação que compete ao homem de exercer
titui uma antecipação surpreendente da construção con um domínio soberano sobre o campo moral que lhe é
ceitual que conduzirá Rawls à hipótese da "posição origi próprio. Ao passo que Hobbes não se arriscou a inferir o
nal"55. Mas, com Hobbes, a igual aspiração à segurança se direito natural de assegurar a conservação pessoal a par
impõe em detrimento das exigências da justiça social. tir de um dominium qualquer, Locke restabelece a tradi
ção, iniciada por Gerson e desenvolvida por Suarez e
Grócio, segundo a qual o homem é proprietário de sua
O direito natural de propriedade liberdade/,().
No entanto, no capítulo V do Segundo tratado, Locke
O segundo direito original que se pode inferir da se empenha em explicar o nascimento da propriedade
natureza do homem é a propriedade. Segundo Locke, a privada concebida num sentido restrito, como a posse ju
propriedade usufruída por um homem deve ser entendi ridicamente garantida de uma coisa. Essa própria con
da num sentido genérico, ela inclui "sua vida, sua Uber cepção restrita do direito de propriedade vai cindir-se em
dade e seus bens" 56• Portanto, a propriedade aqui não é duas formas distintas, conforme essa posse seja limitada
pelo uso ou se tome ilimitada pela invenção da moeda.
55. Rawls, Théorie de ln justicr, op. cit., p. 550.
56. Second Tmité d11 go11veme111e11t civil, Paris, PUF, 1994, Vil, 87, p. 62; os
homens têm •o projeto de se unir para a preservação mútua de sua vida, de 57. R. Tuck, Natural Rights Theories, op. cit., pp. 3, 169-71 .
sua liberdade e de seus bens, ao que dou o nome genérico de propriedade" 58. Cf. J.-F. Spitz,]ohn l..ocke e/ les fondements de ln liberté moderne, op. cit.,
(IX, 123, p. 90). "Por propriedade, deve-se entender, aqui como alhures, a pro p. 302 .
priedade que os homens têm sobre sua pessoa bem como aquela que têm so 59 . A liberdade constitui a muralha da salvaguarda do indivíduo (Second
bre seus bens• (XV, 173, p. 127}; cf. Macpherson, ÚI Théorie politiq11e de Tmité, UI, 17).
l'i11divid11nlisme possessif, op. cit., p. 159, nota 3. 60. R. Tuck, Nnh1ml Rights TT1eories, op. cit., pp. 26-7, 29-30, 170.
128 GENF.ALOGIA DO DIREITO MODERNO OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 129
exacerbado de honras e de riquezas, a provação da inse somente a posse juridicamente garantida, mas o domí
gurança consegue restaurar, no próprio seio de uma so nio (dominium) propício à constituição de uma indivi
ciedade injusta, uma forma de igualdade primitiva. dualidade livre. Locke se insere, assim, na tradição de
Enquanto não se manifesta o receio da morte vio pensamento segundo a qual os direitos do indivíduo pro
u
lenta, a hipótese do estado de natreza chega a deixar de vêm de um dominium natural de cada um que se exerce
lado a sociedade poütica, sem suspender as diferentes igualmente sobre a sua própria vida, sua liberdade, assim
posições sociais. A concepção hobbesiana do estado de como sobre seus bens57. A propriedade, concebida se
natureza não implica somente o deslocamento do poder gundo essa acepção genérica, mostra-se a base indispen
soberano, mas também a dissolução de toda posição so sável da liberdade58. Logo, a liberdade já não é apreendi
cial. O receio da morte violenta confere, portanto, a cada da como original, aparece como um instrumento privile
qual um direito natural subjetivo cujo exercício no seio giado59 a serviço de um domínio natural, de um domi
do estado civil traria o risco de provocar o ressurgimen nium primordial. Portanto, já não é o receio da morte
to do estado de natureza. violenta que transforma o nosso poder natural em direi
Essa elaboração radical do estado de natureza cons to, mas a obrigação que compete ao homem de exercer
titui uma antecipação surpreendente da construção con um domínio soberano sobre o campo moral que lhe é
ceitual que conduzirá Rawls à hipótese da "posição origi próprio. Ao passo que Hobbes não se arriscou a inferir o
nal"55. Mas, com Hobbes, a igual aspiração à segurança se direito natural de assegurar a conservação pessoal a par
impõe em detrimento das exigências da justiça social. tir de um dominium qualquer, Locke restabelece a tradi
ção, iniciada por Gerson e desenvolvida por Suarez e
Grócio, segundo a qual o homem é proprietário de sua
O direito natural de propriedade liberdade/,().
No entanto, no capítulo V do Segundo tratado, Locke
O segundo direito original que se pode inferir da se empenha em explicar o nascimento da propriedade
natureza do homem é a propriedade. Segundo Locke, a privada concebida num sentido restrito, como a posse ju
propriedade usufruída por um homem deve ser entendi ridicamente garantida de uma coisa. Essa própria con
da num sentido genérico, ela inclui "sua vida, sua Uber cepção restrita do direito de propriedade vai cindir-se em
dade e seus bens" 56• Portanto, a propriedade aqui não é duas formas distintas, conforme essa posse seja limitada
pelo uso ou se tome ilimitada pela invenção da moeda.
55. Rawls, Théorie de ln justicr, op. cit., p. 550.
56. Second Tmité d11 go11veme111e11t civil, Paris, PUF, 1994, Vil, 87, p. 62; os
homens têm •o projeto de se unir para a preservação mútua de sua vida, de 57. R. Tuck, Natural Rights Theories, op. cit., pp. 3, 169-71 .
sua liberdade e de seus bens, ao que dou o nome genérico de propriedade" 58. Cf. J.-F. Spitz,]ohn l..ocke e/ les fondements de ln liberté moderne, op. cit.,
(IX, 123, p. 90). "Por propriedade, deve-se entender, aqui como alhures, a pro p. 302 .
priedade que os homens têm sobre sua pessoa bem como aquela que têm so 59 . A liberdade constitui a muralha da salvaguarda do indivíduo (Second
bre seus bens• (XV, 173, p. 127}; cf. Macpherson, ÚI Théorie politiq11e de Tmité, UI, 17).
l'i11divid11nlisme possessif, op. cit., p. 159, nota 3. 60. R. Tuck, Nnh1ml Rights TT1eories, op. cit., pp. 26-7, 29-30, 170.
130 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 131
o direito de se apropriar de uma parte das riquezas co rança no fundamento do direito, pela perspectiva de uma
muns para suprir às suas necessidades9l1_ Locke acompa tranquilidade assentada no trabalho95 . Se ligamos essa
análise à doutrina calvinista da vocação, a referência ao
nha a tradição tomista, afirmando que a lei natural é a
trabalho já não é somente o sinal manifesto do advento
fonte da legitimidade moral da propriedade privada, mas
do capitalismo, mas se apresenta também como uma
a ruptura se realiza quando o trabalho se impõe como o
obrigação moral que resulta da queda original96•
fundamento da divisão das posses91.
Cada um detém, assim, um direito de propriedade
Mesmo que os homens pertençam em última ins sobre o produto de sua indústria, mas esse direito per
tância apenas a Deus, como cada indivíduo, na ordem do manece limitado pelo uso. Com efeito, como o homem
direito humano, é "proprietário de sua própria pessoa não dispõe de nenhum direito sobre o que não é neces
[... ] o trabalho de seu corpo e a ob ra de suas mãos [... ] sário à sua sobrevivência, ele não pode, sem transgredir
lhe pertencem como coisa particular" 92• Uma vez que o a lei natural, deixar que se deteriorem coisas97 cujo uso
zelo e a energia desenvolvidos pela atividade laboriosa ele não tem, pois elas continuam por isso a pertencer ao
são indissociáveis do trabalhador, este possuirá por di criador delas. Não é tanto o cuidado com o outro quan
reito os efeitos de seu trabalho. Portanto, existe um direi to o escândalo moral do desperdício o que limita a pro
to natural à propriedade dos frutos do nosso trabalho. priedade98.
Assim como Deus é proprietário de nossas vidas porque Mas Locke de maneira alguma considera que, no seio
a criou, o homem é proprietário dos frutos de seu traba de um estado de necessidade, o dever de caridade possa
lho93. O receio da morte violenta é relegado em proveito conduzir a suspender a delimitação em propriedadesw.
do trabalho que se toma produtor de direitos94• Locke ten Invoca"o direito urgente e prioritário daqueles que estão
ta substituir a análise hobbesiana, que coloca a insegu- em perigo de morte" apenas para opô-lo à reivindicação
de uma reparação desproporcional dos danos de guer
90. Hobbes já sa lientava que a lei na tural, que nos recomenda buscar a ra 100• Visto que o direito de propriedade privada pode ser
paz, nos intima a renunci a r a o comunismo original, o qual é a expressão do inferido da condição natural dos homens, o estado de
"direito sobre toda s a s cois a s"(Le Citoye11, N, 4, p. 131). Por essa a ssimilação,
Hobbes considera a comunida de original edênic a um fermento de discórdi a ,
que está na origem do assa ssínio de Abel. Locke, op. cif., pp. 260-2.
91. Qual é o elemento que, cm Tomás de Aquino, desempenha o papel 95. ]. Dunn, La Pensée politique de John
96. lbid., pp. 123, p. 252, 266.
de delimit a ção reservado a o traba lho? (Somme théologique, fl-Il, 66, 1, resp.) te úteis à vida são coisas perecí
Grócio já considera que o traba lho constitui uma da s forma s da apropriação 97. "A maior pa rte das coisas rea lmen amos para
que se lteram e estr a gam qua ndo não a s utiliz
(R. Tuck, Natural Rights Theories, op. cit., p. 171). veis, isso quer dizer a
o direito de se apropriar de uma parte das riquezas co rança no fundamento do direito, pela perspectiva de uma
muns para suprir às suas necessidades9l1_ Locke acompa tranquilidade assentada no trabalho95 . Se ligamos essa
análise à doutrina calvinista da vocação, a referência ao
nha a tradição tomista, afirmando que a lei natural é a
trabalho já não é somente o sinal manifesto do advento
fonte da legitimidade moral da propriedade privada, mas
do capitalismo, mas se apresenta também como uma
a ruptura se realiza quando o trabalho se impõe como o
obrigação moral que resulta da queda original96•
fundamento da divisão das posses91.
Cada um detém, assim, um direito de propriedade
Mesmo que os homens pertençam em última ins sobre o produto de sua indústria, mas esse direito per
tância apenas a Deus, como cada indivíduo, na ordem do manece limitado pelo uso. Com efeito, como o homem
direito humano, é "proprietário de sua própria pessoa não dispõe de nenhum direito sobre o que não é neces
[... ] o trabalho de seu corpo e a ob ra de suas mãos [... ] sário à sua sobrevivência, ele não pode, sem transgredir
lhe pertencem como coisa particular" 92• Uma vez que o a lei natural, deixar que se deteriorem coisas97 cujo uso
zelo e a energia desenvolvidos pela atividade laboriosa ele não tem, pois elas continuam por isso a pertencer ao
são indissociáveis do trabalhador, este possuirá por di criador delas. Não é tanto o cuidado com o outro quan
reito os efeitos de seu trabalho. Portanto, existe um direi to o escândalo moral do desperdício o que limita a pro
to natural à propriedade dos frutos do nosso trabalho. priedade98.
Assim como Deus é proprietário de nossas vidas porque Mas Locke de maneira alguma considera que, no seio
a criou, o homem é proprietário dos frutos de seu traba de um estado de necessidade, o dever de caridade possa
lho93. O receio da morte violenta é relegado em proveito conduzir a suspender a delimitação em propriedadesw.
do trabalho que se toma produtor de direitos94• Locke ten Invoca"o direito urgente e prioritário daqueles que estão
ta substituir a análise hobbesiana, que coloca a insegu- em perigo de morte" apenas para opô-lo à reivindicação
de uma reparação desproporcional dos danos de guer
90. Hobbes já sa lientava que a lei na tural, que nos recomenda buscar a ra 100• Visto que o direito de propriedade privada pode ser
paz, nos intima a renunci a r a o comunismo original, o qual é a expressão do inferido da condição natural dos homens, o estado de
"direito sobre toda s a s cois a s"(Le Citoye11, N, 4, p. 131). Por essa a ssimilação,
Hobbes considera a comunida de original edênic a um fermento de discórdi a ,
que está na origem do assa ssínio de Abel. Locke, op. cif., pp. 260-2.
91. Qual é o elemento que, cm Tomás de Aquino, desempenha o papel 95. ]. Dunn, La Pensée politique de John
96. lbid., pp. 123, p. 252, 266.
de delimit a ção reservado a o traba lho? (Somme théologique, fl-Il, 66, 1, resp.) te úteis à vida são coisas perecí
Grócio já considera que o traba lho constitui uma da s forma s da apropriação 97. "A maior pa rte das coisas rea lmen amos para
que se lteram e estr a gam qua ndo não a s utiliz
(R. Tuck, Natural Rights Theories, op. cit., p. 171). veis, isso quer dizer a
necessidade não pode provocar o ressurgimento da pos O direito subjetivo natural mostra-se a partir daí ainda
se em comum original, anterior a esse estado de nature mais instável e inconstante do que o direito natural ob
za. É, na melhor das hipóteses, essa forma de proprieda jetivo, pois ele repousa em desejos variáveis e oscilan
de privada, limitada pelo uso, que poderíamos ver tes 105. A todo momento um desejo de acumulação de
ressurgir numa situação de urgência. O estado de neces senfreada pode se transformar em desejo desvairado de
sidade permitiria então a cada indivíduo voltar a ser pro gastar.
prietário. A demonstração conduzida por Locke parece esbar
No entanto, parece que não seja essa propriedade rar numa série de dificuldades fundamentais. Sua solu
embrionária que o Estado tenha como objetivo proteger. ção é crucial, pois, na medida em que o Estado é instituí
Nesse estado de natureza, o governo civil não parece ne do para garantir um direito de propriedade original, tra
cessário, já que o homem não tem condições de se pro ta-se de identificar o fim legítimo que limita a extensão
piciar mais do que pode consumir, ou de privar o outro de seu poder. O Estado terá sido edificado para proteger
da parte necessária à sua subsistência. A impotência físi essa primeira forma de propriedade, limitada pela consi
deração do direito de uso de todos, contra os abusos li
ca do indivíduo, entregue às suas próprias forças, favore
gados à apropriação passional desencadeada pela inven
ce a sociabilidade natural. Essa condição original permi
ção da moeda? Ou então o Estado deverá preservar a
te o surgimento de uma "idade de ouro", em que só se
aquisição ilimitada das fortunas contra as reivindkações
deixa o estado de natureza para se submeter a um gover
dos indivíduos espoliados? O direito natural que o Esta
no moderado, no qual não se levanta nenhuma discór
do deve salvaguardar será limitado pela preocupação
dia entre governantes e govemados 101 .
com o bem comum? A sociedade será o instrumento de
Não obstante, por influência da invenção da moe
aplicação da lei natural ou o aparelho de salvaguarda de
da, de um ato convencionaJ 1º2, o direito natural de pro
um direito natural ilimitado?
priedade vai perder sua estabilidade aparente para so O que procuram os homens quando inventam a
frer uma metamorfose radical: o direito de adquirir sem moeda? Pra a
Locke, a instituição do dinheiro proporcio
limite substit iu o direito de desfrutar o que é necessário nou aos homens a ocasião de conservar e de aumentar
à vida1113 • suas possesHln _ A invenção da moeda favorece a liberação
O direito ilimitado de adquirir é uma metamorfose do desejo mais intenso do ser humano 107 . O homem na
do "direito sobre todas as coisas" definido por Hobbes? 1 º4 tural é frustrado, não pode possuir mais do que o estrito
101. lbid., VIII, 111, p. 82: "as primeiras idades do mundo"(ibid., V, 36,
p. 27); sobre a monarquia guerreira, não hereditária (ibid., Vlll, pp. 107-8), cuja 105. Como transformar no objeto de um respeito universal inclinações
11,
missão principal consiste em proteger os cidadãos contra os ataques exteriores. sensíveis contingentes? (Kant, Fonde111ents de ln métnphysique des IIICl'Urs,
102. "O valor imaginário do dinheiro"(ibid., XVI, p. 184). p. 115.)
103. Tbid., V, 50. 106. Second Tmité, V, 48.
104. Para Hobbes, esse direito sobre todas as coisas não estabelece ne 107. "Nos primórdios, quando o desejo de possuir além de suas neces
apenas
nhuma propriedade duradoura, uma vez que não pode haver meu e teu no es sidades ainda não alterara o valor intrínseco das coisas, que depende
tado de natureza (Lév., XIII, p. 126). da utilidade delas para a vida do homem [ .. .)" (Second Tmité, V, 37, p. 28).
138 GENEALOGIA DO DTREITO MODERNO OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 139
necessidade não pode provocar o ressurgimento da pos O direito subjetivo natural mostra-se a partir daí ainda
se em comum original, anterior a esse estado de nature mais instável e inconstante do que o direito natural ob
za. É, na melhor das hipóteses, essa forma de proprieda jetivo, pois ele repousa em desejos variáveis e oscilan
de privada, limitada pelo uso, que poderíamos ver tes 105. A todo momento um desejo de acumulação de
ressurgir numa situação de urgência. O estado de neces senfreada pode se transformar em desejo desvairado de
sidade permitiria então a cada indivíduo voltar a ser pro gastar.
prietário. A demonstração conduzida por Locke parece esbar
No entanto, parece que não seja essa propriedade rar numa série de dificuldades fundamentais. Sua solu
embrionária que o Estado tenha como objetivo proteger. ção é crucial, pois, na medida em que o Estado é instituí
Nesse estado de natureza, o governo civil não parece ne do para garantir um direito de propriedade original, tra
cessário, já que o homem não tem condições de se pro ta-se de identificar o fim legítimo que limita a extensão
piciar mais do que pode consumir, ou de privar o outro de seu poder. O Estado terá sido edificado para proteger
da parte necessária à sua subsistência. A impotência físi essa primeira forma de propriedade, limitada pela consi
deração do direito de uso de todos, contra os abusos li
ca do indivíduo, entregue às suas próprias forças, favore
gados à apropriação passional desencadeada pela inven
ce a sociabilidade natural. Essa condição original permi
ção da moeda? Ou então o Estado deverá preservar a
te o surgimento de uma "idade de ouro", em que só se
aquisição ilimitada das fortunas contra as reivindkações
deixa o estado de natureza para se submeter a um gover
dos indivíduos espoliados? O direito natural que o Esta
no moderado, no qual não se levanta nenhuma discór
do deve salvaguardar será limitado pela preocupação
dia entre governantes e govemados 101 .
com o bem comum? A sociedade será o instrumento de
Não obstante, por influência da invenção da moe
aplicação da lei natural ou o aparelho de salvaguarda de
da, de um ato convencionaJ 1º2, o direito natural de pro
um direito natural ilimitado?
priedade vai perder sua estabilidade aparente para so O que procuram os homens quando inventam a
frer uma metamorfose radical: o direito de adquirir sem moeda? Pra a
Locke, a instituição do dinheiro proporcio
limite substit iu o direito de desfrutar o que é necessário nou aos homens a ocasião de conservar e de aumentar
à vida1113 • suas possesHln _ A invenção da moeda favorece a liberação
O direito ilimitado de adquirir é uma metamorfose do desejo mais intenso do ser humano 107 . O homem na
do "direito sobre todas as coisas" definido por Hobbes? 1 º4 tural é frustrado, não pode possuir mais do que o estrito
101. lbid., VIII, 111, p. 82: "as primeiras idades do mundo"(ibid., V, 36,
p. 27); sobre a monarquia guerreira, não hereditária (ibid., Vlll, pp. 107-8), cuja 105. Como transformar no objeto de um respeito universal inclinações
11,
missão principal consiste em proteger os cidadãos contra os ataques exteriores. sensíveis contingentes? (Kant, Fonde111ents de ln métnphysique des IIICl'Urs,
102. "O valor imaginário do dinheiro"(ibid., XVI, p. 184). p. 115.)
103. Tbid., V, 50. 106. Second Tmité, V, 48.
104. Para Hobbes, esse direito sobre todas as coisas não estabelece ne 107. "Nos primórdios, quando o desejo de possuir além de suas neces
apenas
nhuma propriedade duradoura, uma vez que não pode haver meu e teu no es sidades ainda não alterara o valor intrínseco das coisas, que depende
tado de natureza (Lév., XIII, p. 126). da utilidade delas para a vida do homem [ .. .)" (Second Tmité, V, 37, p. 28).
OS DCREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 141
140 GENFALOGIA DO DIREITO MODERNO
em outras nações, homens que se venderam a si mes
necessário. Antes da instauração da moeda, o dominium
mos; mas é claro que era como homens que fazem tra
natural parece garantir apenas uma forma de existência
balho pesado e não como escravos."111 Na medida em que
primitiva. O dinheiro assegura a extensão das posses, o
o direito, como vimos, é deduzido de relações morais
progresso do comércio, sem risco de deterioração dos
instituídas por Deus, nenhum mal pode ser infligido ao
bens consumíveis. No estado de natureza, os homens
podem, assim, estabelecer contratos comerciais'°8• indivíduo cuja imoralidade tornou escravo, enquanto o
Mas, embora consigam trocar bens cuja posse é le servidor permanece juridicamente protegido' 12.
gítima, até que ponto podem apropriar-se do trabalho Portanto, é impressionante constatar que, quando
alheio? Segundo Locke, as relações salariais não são evi Locke se refere, no âmbito da análise do salariado, à pro
dentemente incompatíveis com o estado de natureza: priedade alienável da força de trabalho, ele suspende o
"Um homem livre se constitui por si só o servidor de um significado genérico que conferiu ao conceito de pro
outro vendendo-lhe, por um tempo determinado, os ser priedade. A alienação temporária da propriedade da for
viços que ele se compromete a prestar-lhe em troca do ça de trabalho não implicaria aquela da vida e da liber
salário que receberá [... ] entretanto, ele dá ao patrão ape dade; o homem, em virtude do dominium, permanece
nas um poder temporário sobre ele, e esse poder não vai proprietário de sua lfüerdade. É o que explica a ambigui
além do que contém o contrato que firmaram." 109 O sa dade fundamental do conceito de propriedade em Locke,
lariado supõe, pois, um contrato que se baseia no con que ora inclui a vida e a liberdade, ora as exclui assim que
sentimento das partes. cumpre distinguir o salariado da escravidão113.
Não obstante, as consequências da aquisição ilimi Entretanto, em que sentido o desejo de aquisição ili
tada podem deixar a cada um, como meio de subsistên mitado poderá tornar-se um direito? Não será condena
cia, apenas a venda de sua própria força de trabalho.
do pela tradição religiosa com a qual Locke recusa rom -
Cumpre, porém, dissociar os escravos que "perderam por
per? Apesar da condenação moral que pesa sobre a cu
seus erros o direito que tinham sobre a sua vida, assim
pidez"4, Locke justifica moralmente o direito ilimitado
como a sua Liberdade e seus bens" dos servidores que só
alienaram temporariamente a propriedade de sua força de adquirir, de se entregar à apropriação infinita, por sua
de trabalho 1 w. "Reconheço que vemos, entre os judeus e consequência essencial, a felicidade de todos. Será ainda
possível sustentar que as riquezas acumuladas em virtu
108. "As promessas e os mercados de escambo entre os dois homens da
de desse direito de aquisição ilimitado concorrem para a
ilha deserta de que Garcilasso de la Vega fala em sua história do Peru , ou então prosperidade de todos? "O rei de um território vasto e
entre um suíço e um indígena nas florestas da América, obrigam-nos, claro, um
cm relação ao outro, se bem que estejam num perfeito estado de natureza. Pois
a verdade e o respeito da palavra dada pertencem aos homens como homens,
111. lbid., IV, 24, p. 20.
e não como membros de uma sociedade" (Second Trai/é, 11, 14, p. 12; 1, 4, p. 5). op. cit., p. 118.
112. J. Dunn, La Pensée politique de John Locke,
109. lbid., VU, 85, pp. 60-1. "A turfa que meu servidor cortou[ ... ] [se tor
113. Macpherson, Ln Théorie politiq11e de l'indiv
idualisme possessif, op. cit.,
na] minha propriedade" (ibid., V, 28, p. 23).
pp. 241-2 .
110. lbid., VII, 85, p. 61. "Não tendo nenhum poder sobre sua própria VIU, 111, p. 82). Cf. Mac
114. "I:amor seeleratus habendi" (Second Traité,
vida, o homem não pode, por contrato ou consentimento, tornar-se escravo me posses sif, op. cit., p. 260.
de outra pessoa" (ibid., N, 23, pp. 19-20). pherson, Ln Théorie politique de /'individualis
OS DCREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 141
140 GENFALOGIA DO DIREITO MODERNO
em outras nações, homens que se venderam a si mes
necessário. Antes da instauração da moeda, o dominium
mos; mas é claro que era como homens que fazem tra
natural parece garantir apenas uma forma de existência
balho pesado e não como escravos."111 Na medida em que
primitiva. O dinheiro assegura a extensão das posses, o
o direito, como vimos, é deduzido de relações morais
progresso do comércio, sem risco de deterioração dos
instituídas por Deus, nenhum mal pode ser infligido ao
bens consumíveis. No estado de natureza, os homens
podem, assim, estabelecer contratos comerciais'°8• indivíduo cuja imoralidade tornou escravo, enquanto o
Mas, embora consigam trocar bens cuja posse é le servidor permanece juridicamente protegido' 12.
gítima, até que ponto podem apropriar-se do trabalho Portanto, é impressionante constatar que, quando
alheio? Segundo Locke, as relações salariais não são evi Locke se refere, no âmbito da análise do salariado, à pro
dentemente incompatíveis com o estado de natureza: priedade alienável da força de trabalho, ele suspende o
"Um homem livre se constitui por si só o servidor de um significado genérico que conferiu ao conceito de pro
outro vendendo-lhe, por um tempo determinado, os ser priedade. A alienação temporária da propriedade da for
viços que ele se compromete a prestar-lhe em troca do ça de trabalho não implicaria aquela da vida e da liber
salário que receberá [... ] entretanto, ele dá ao patrão ape dade; o homem, em virtude do dominium, permanece
nas um poder temporário sobre ele, e esse poder não vai proprietário de sua lfüerdade. É o que explica a ambigui
além do que contém o contrato que firmaram." 109 O sa dade fundamental do conceito de propriedade em Locke,
lariado supõe, pois, um contrato que se baseia no con que ora inclui a vida e a liberdade, ora as exclui assim que
sentimento das partes. cumpre distinguir o salariado da escravidão113.
Não obstante, as consequências da aquisição ilimi Entretanto, em que sentido o desejo de aquisição ili
tada podem deixar a cada um, como meio de subsistên mitado poderá tornar-se um direito? Não será condena
cia, apenas a venda de sua própria força de trabalho.
do pela tradição religiosa com a qual Locke recusa rom -
Cumpre, porém, dissociar os escravos que "perderam por
per? Apesar da condenação moral que pesa sobre a cu
seus erros o direito que tinham sobre a sua vida, assim
pidez"4, Locke justifica moralmente o direito ilimitado
como a sua Liberdade e seus bens" dos servidores que só
alienaram temporariamente a propriedade de sua força de adquirir, de se entregar à apropriação infinita, por sua
de trabalho 1 w. "Reconheço que vemos, entre os judeus e consequência essencial, a felicidade de todos. Será ainda
possível sustentar que as riquezas acumuladas em virtu
108. "As promessas e os mercados de escambo entre os dois homens da
de desse direito de aquisição ilimitado concorrem para a
ilha deserta de que Garcilasso de la Vega fala em sua história do Peru , ou então prosperidade de todos? "O rei de um território vasto e
entre um suíço e um indígena nas florestas da América, obrigam-nos, claro, um
cm relação ao outro, se bem que estejam num perfeito estado de natureza. Pois
a verdade e o respeito da palavra dada pertencem aos homens como homens,
111. lbid., IV, 24, p. 20.
e não como membros de uma sociedade" (Second Trai/é, 11, 14, p. 12; 1, 4, p. 5). op. cit., p. 118.
112. J. Dunn, La Pensée politique de John Locke,
109. lbid., VU, 85, pp. 60-1. "A turfa que meu servidor cortou[ ... ] [se tor
113. Macpherson, Ln Théorie politiq11e de l'indiv
idualisme possessif, op. cit.,
na] minha propriedade" (ibid., V, 28, p. 23).
pp. 241-2 .
110. lbid., VII, 85, p. 61. "Não tendo nenhum poder sobre sua própria VIU, 111, p. 82). Cf. Mac
114. "I:amor seeleratus habendi" (Second Traité,
vida, o homem não pode, por contrato ou consentimento, tornar-se escravo me posses sif, op. cit., p. 260.
de outra pessoa" (ibid., N, 23, pp. 19-20). pherson, Ln Théorie politique de /'individualis
142 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 143
fértil não é tão bem nutrido, alojado e vestido quanto um zidas de um direito natural desde então original. Como
jornaleiro na lnglaterra."115 Se o desenvolvimento da apro manter a primazia da lei natural se ela descobre sua fon
priação ilimitada provoca uma penúria de terras, esta se te num direito subjetivo original?
ria, não obstante, compensada pelo crescimento da pro Designando esse desejo de acumulação como um
dutividade: "Aquele que se apropria por si só de uma ter direito natural subjetivo, Locke atribui ao Estado um fim
ra por seu trabalho não diminui, mas ao contrário au legítimo. O direito de propriedade que resulta desse de
menta, os recursos comuns do gênero humano. Pois a sejo de acumulação é a partir daí constituído como direi
quantidade de bens úteis à manutenção da vida huma to original, inalienável e natural do homem.
na produzida por um acre de terra cercada e cultivada é Qual é a concepção do bem comum apresentada
dez vezes maior [ ... ] do que aquela produzida por um aqui por Locke? Mesmo que ele pareça referir-se à no
acre de terra de igual riqueza, mas que permanece incul ção de interesse comum quando leva em conta o interes
ta e comum."1 16 Se a delimitação das propriedades favo se bem compreendido "dos jornaleiros", dos mais desfa
vorecidos, ele parece, porém, defender uma concepção
rece a preservação da humanidade, não subsiste nenhum
do bem comum de inspiração tomista. A sociedade polí
antagonismo entre o dever de caridade e a acumulação
tica é dotada de uma dimensão normativa em razão da
ilimitada. O direito de propriedade em Locke, sem poder
finalidade imanente que a enerva. O Estado deve não só
ser suspenso pelo dever de caridade, permanece limita permitir aos indivíduos proteger suas propriedades, mas
do por ele 117• Rawls se lembrará dessa análise no momen também cumprir os fins de sua natureza e conformar-se
to de formular o princípio de diferença - as desiguaJda às injunções divinas.
des sociais ou econômicas sempre devem ser introduzi No entanto, enquanto a sociedade política tende a
das em benefício dos desfavorecidos m . preservar o bem comum, a permitir aos cidadãos realizar
O desejo de acumulação ilimitada se toma um direi as virtualidades morais da natureza deles, ela pode, não
to assim que é vinculado à teoria clássica da lei natural, obstante, acolher em seu seio formas de injustiça social,
que nos intima a zelar pelo bem comum da sociedade. de distribuição desigual dos bens exteriores 119 • Segundo
Locke tenta inserir no âmbito de uma lei natural um de Locke, alguns dirigentes poderiam até ficar tentados a
sejo aparentemente incompatível com esta. Ao mesmo desviar essa finalidade natural em seu proveito, para ser
tempo, os preceitos da lei natural que nos convidam a vir seus interesses privados 120• Logo, encontramos aqui a
buscar a paz e a nos preocupar com o bem da huma questão central que a leitura de Tomás de Aquino permi
nidade se tomam regras da razão que parecem ser dedu- tiu-nos levantar: até que ponto o respeito do bem co
mum poderá atentar contra os direitos do indivíduo? 121
115. Second Traité, V, 41, p. 32.
116. Tbid., V, 37, p. 29; Macpherson, La Théorie politique de /'individua/isme 119. J. Dunn, La Pe11sée politique de Locke, op. cit., pp. 132-3.
possessif, op. cit., pp. 233-5. 120. Second Traité, XIV, 164, p. 121.
117. J. Dunn, "Justice and Locke's Political Theory", Political Studies, vol. 121. "Já que o fim do governo é o bem da comunidade, todas as mudan
XVI, 1968, pp. 74, 81. ças que lhe trazem e que tendem a esse fim não podem usurpar os direitos de
118. Rawls, Théorie de la justice, op. cit., pp. 109, 115. ninguém" (ibid., XIV, 163, pp. 119-20).
142 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 143
fértil não é tão bem nutrido, alojado e vestido quanto um zidas de um direito natural desde então original. Como
jornaleiro na lnglaterra."115 Se o desenvolvimento da apro manter a primazia da lei natural se ela descobre sua fon
priação ilimitada provoca uma penúria de terras, esta se te num direito subjetivo original?
ria, não obstante, compensada pelo crescimento da pro Designando esse desejo de acumulação como um
dutividade: "Aquele que se apropria por si só de uma ter direito natural subjetivo, Locke atribui ao Estado um fim
ra por seu trabalho não diminui, mas ao contrário au legítimo. O direito de propriedade que resulta desse de
menta, os recursos comuns do gênero humano. Pois a sejo de acumulação é a partir daí constituído como direi
quantidade de bens úteis à manutenção da vida huma to original, inalienável e natural do homem.
na produzida por um acre de terra cercada e cultivada é Qual é a concepção do bem comum apresentada
dez vezes maior [ ... ] do que aquela produzida por um aqui por Locke? Mesmo que ele pareça referir-se à no
acre de terra de igual riqueza, mas que permanece incul ção de interesse comum quando leva em conta o interes
ta e comum."1 16 Se a delimitação das propriedades favo se bem compreendido "dos jornaleiros", dos mais desfa
vorecidos, ele parece, porém, defender uma concepção
rece a preservação da humanidade, não subsiste nenhum
do bem comum de inspiração tomista. A sociedade polí
antagonismo entre o dever de caridade e a acumulação
tica é dotada de uma dimensão normativa em razão da
ilimitada. O direito de propriedade em Locke, sem poder
finalidade imanente que a enerva. O Estado deve não só
ser suspenso pelo dever de caridade, permanece limita permitir aos indivíduos proteger suas propriedades, mas
do por ele 117• Rawls se lembrará dessa análise no momen também cumprir os fins de sua natureza e conformar-se
to de formular o princípio de diferença - as desiguaJda às injunções divinas.
des sociais ou econômicas sempre devem ser introduzi No entanto, enquanto a sociedade política tende a
das em benefício dos desfavorecidos m . preservar o bem comum, a permitir aos cidadãos realizar
O desejo de acumulação ilimitada se toma um direi as virtualidades morais da natureza deles, ela pode, não
to assim que é vinculado à teoria clássica da lei natural, obstante, acolher em seu seio formas de injustiça social,
que nos intima a zelar pelo bem comum da sociedade. de distribuição desigual dos bens exteriores 119 • Segundo
Locke tenta inserir no âmbito de uma lei natural um de Locke, alguns dirigentes poderiam até ficar tentados a
sejo aparentemente incompatível com esta. Ao mesmo desviar essa finalidade natural em seu proveito, para ser
tempo, os preceitos da lei natural que nos convidam a vir seus interesses privados 120• Logo, encontramos aqui a
buscar a paz e a nos preocupar com o bem da huma questão central que a leitura de Tomás de Aquino permi
nidade se tomam regras da razão que parecem ser dedu- tiu-nos levantar: até que ponto o respeito do bem co
mum poderá atentar contra os direitos do indivíduo? 121
115. Second Traité, V, 41, p. 32.
116. Tbid., V, 37, p. 29; Macpherson, La Théorie politique de /'individua/isme 119. J. Dunn, La Pe11sée politique de Locke, op. cit., pp. 132-3.
possessif, op. cit., pp. 233-5. 120. Second Traité, XIV, 164, p. 121.
117. J. Dunn, "Justice and Locke's Political Theory", Political Studies, vol. 121. "Já que o fim do governo é o bem da comunidade, todas as mudan
XVI, 1968, pp. 74, 81. ças que lhe trazem e que tendem a esse fim não podem usurpar os direitos de
118. Rawls, Théorie de la justice, op. cit., pp. 109, 115. ninguém" (ibid., XIV, 163, pp. 119-20).
144 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO
OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 145
Deveremos então considerar que, para
Locke, as desi qual os indivíduos consentem em transferir uma parte
gualdades sociais só se tornam um alvo
quando são obs desse direito natural para garantir seus direitos inaliená
táculo para as vocações individuais, para
a realização de veis à segurança e à propriedade.
nossos deveres morais? 122 De maneira
recíproca, como Se "ninguém pode conferir a outro mais poder do
dissemos, a busca exclusiva do desenv
olvimento de nos que ele tem em si mesmo" 126, é preciso, pois, distinguir a
sa natureza moral poderia justificar cert
as formas de desi parte do direito natural da qual o indivíduo se despoja
gualdade social, sem provocar o menor
estado de neces para instituir a soberania daquela que, precisamente por
sidade.
não poder ser objeto de uma transferência, atribui ao po
der soberano seu fim legítimo. Os indivíduos se desti
Poder soberano e direitos subjetivos tuem do direito, que lhes é conferido pelo estado de na
tureza, de governar-se a si mesmos a fim de proteger a
liberdade e a propriedade inalienáveis deles 127• "Os direi
Qual será a forma que esses direitos à segurança e à tos do homem" coincidem com a parte inalienável do di
propriedade assumirão no estado civil? Como salienta reito natural.
Hobbes, cada particular detém urna parte da liberdade Para Hobbes, a fim de pôr um termo na lógica de
que usufruía no estado de natureza 123• O direito que os guerra que reina no estado de natureza, indivíduos se
homens detêm na sociedade política deve ser inferido da comprometem, uns para com os outros, a renunciar ao
natureza do ato contratual pelo qual os indivíduos edifi seu "direito sobre todas as coisas" 12R e a autorizar todas
cam o poder soberano: "É no ato em que fazemos nossa as ações que o beneficiário dessa desistência poderá rea
submissão que residem a um só tempo as nossas obriga lizar para lhes assegurar a conservação. Portanto, é pela
ções e a nossa liberdade." 124 instituição de um representante único que uma multidão
Hobbes assim como Locke extrai da escola do direi desordenada de homens tem acesso ao estatuto jurídico
to natural a tese da origem contratual da soberania. Os de povo 129•
homens dispõem do direito de estabelecer uma sobera Qual será a natureza desse ato de instit uição? Não
nia legislativa, pois é um dos meios que podem reivindi se trata somente de renunciar ao exercício de meu direi
car a fim de assegurar sua própria conservação. A fonte to ilimitado sobre todas as coisas, mas também de con
da soberania está no poder que cada um possui, por di ceder a um representante o direito de agir em meu nome,
reito de natureza, de governar-se a si mesmo 12", ao pas de efetuar, para assegurar minha conservação, ações das
so que seu fundamento se encontra na convenção pela
126. SecondTmité, XI, 135, p. 243.
122. J. Dunn, La Pensée politique de John 127. "Os próprios sábios viram q ue era preciso resolver-se a sacri6car
Locke, op. cit., p. 252.
123. "Aquilo que nomeamos próprio uma parte de sua liberdade à conservação da outra, como um ferido manda
é o que cada particular pode man
ter para si sem infringir as leis"(De Cive, cortar o braço para salvar o resto do corpo"(Rousseau, Disco11rs s11r /'origine et
VI, 15, Paris, Sircy, 1981, pp. 159-60).
124. Lév., XXI, p. 229. les fondements de /'inégalité panni les hommes, ll, pp. 219-20).
125. Lév., XVII, p. 177. 128. Lév., XJV, p. 129.
129. Lév., XVI, p. 166.
144 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO
OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 145
Deveremos então considerar que, para
Locke, as desi qual os indivíduos consentem em transferir uma parte
gualdades sociais só se tornam um alvo
quando são obs desse direito natural para garantir seus direitos inaliená
táculo para as vocações individuais, para
a realização de veis à segurança e à propriedade.
nossos deveres morais? 122 De maneira
recíproca, como Se "ninguém pode conferir a outro mais poder do
dissemos, a busca exclusiva do desenv
olvimento de nos que ele tem em si mesmo" 126, é preciso, pois, distinguir a
sa natureza moral poderia justificar cert
as formas de desi parte do direito natural da qual o indivíduo se despoja
gualdade social, sem provocar o menor
estado de neces para instituir a soberania daquela que, precisamente por
sidade.
não poder ser objeto de uma transferência, atribui ao po
der soberano seu fim legítimo. Os indivíduos se desti
Poder soberano e direitos subjetivos tuem do direito, que lhes é conferido pelo estado de na
tureza, de governar-se a si mesmos a fim de proteger a
liberdade e a propriedade inalienáveis deles 127• "Os direi
Qual será a forma que esses direitos à segurança e à tos do homem" coincidem com a parte inalienável do di
propriedade assumirão no estado civil? Como salienta reito natural.
Hobbes, cada particular detém urna parte da liberdade Para Hobbes, a fim de pôr um termo na lógica de
que usufruía no estado de natureza 123• O direito que os guerra que reina no estado de natureza, indivíduos se
homens detêm na sociedade política deve ser inferido da comprometem, uns para com os outros, a renunciar ao
natureza do ato contratual pelo qual os indivíduos edifi seu "direito sobre todas as coisas" 12R e a autorizar todas
cam o poder soberano: "É no ato em que fazemos nossa as ações que o beneficiário dessa desistência poderá rea
submissão que residem a um só tempo as nossas obriga lizar para lhes assegurar a conservação. Portanto, é pela
ções e a nossa liberdade." 124 instituição de um representante único que uma multidão
Hobbes assim como Locke extrai da escola do direi desordenada de homens tem acesso ao estatuto jurídico
to natural a tese da origem contratual da soberania. Os de povo 129•
homens dispõem do direito de estabelecer uma sobera Qual será a natureza desse ato de instit uição? Não
nia legislativa, pois é um dos meios que podem reivindi se trata somente de renunciar ao exercício de meu direi
car a fim de assegurar sua própria conservação. A fonte to ilimitado sobre todas as coisas, mas também de con
da soberania está no poder que cada um possui, por di ceder a um representante o direito de agir em meu nome,
reito de natureza, de governar-se a si mesmo 12", ao pas de efetuar, para assegurar minha conservação, ações das
so que seu fundamento se encontra na convenção pela
126. SecondTmité, XI, 135, p. 243.
122. J. Dunn, La Pensée politique de John 127. "Os próprios sábios viram q ue era preciso resolver-se a sacri6car
Locke, op. cit., p. 252.
123. "Aquilo que nomeamos próprio uma parte de sua liberdade à conservação da outra, como um ferido manda
é o que cada particular pode man
ter para si sem infringir as leis"(De Cive, cortar o braço para salvar o resto do corpo"(Rousseau, Disco11rs s11r /'origine et
VI, 15, Paris, Sircy, 1981, pp. 159-60).
124. Lév., XXI, p. 229. les fondements de /'inégalité panni les hommes, ll, pp. 219-20).
125. Lév., XVII, p. 177. 128. Lév., XJV, p. 129.
129. Lév., XVI, p. 166.
146 GENEALOGIA DO DCREITO MODERNO
OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 147
quais eu não deixo d e ser o autor 1Jt1 • Cada um dos indi
víduos se compromete reciprocamente a ser o autor de cidadãos, submetê-los, como o requer a paz civil, a uma
todas as ações executadas pelo soberano. única vontade soberana 135•
Uma vez que cada indivíduo autoriza, por um man Hobbes estima, pois, que ho mens disseminados no
dato ilimitado, seu representante a recorrer a todas as estado de natureza são mais temíveis para cada um de
medidas úteis para preservar a segurança do povo 13', o les do que o poder absoluto de um Estado soberano . O
poder soberano erigido por esse ato contratual dispõe de que equivale , segundo Locke, a aceitar, para se precaver
um direito ilimitado, absoluto '32• contra "os gambás e as raposas", ser devorado "por
leões" 136• Hobbes acreditou, dadas as circunstâncias his
Dado que os sujeitos simplesmente se compromet e
tóricas de que era testemunha, que as co nsequências da
ram uns para com os o utros a autorizar todas as ações do
anarquia deveriam ser mais temidas do que os abusos do
soberano , o poder sob erano não é amarrado por nenhu
poder moná rquico. Retoma, assim, expressamente, a aná
ma convenção, ele não é limitado por nenhuma obriga
lise que Bodin opunha à teoria huguenote do direito de
ção contratua1' 33. A obrigação política que repousa no resistência: "A licenciosa anarquia [... ] que é pior do que
consentimento, na transferência do direito de se gover a mais forte tirania do mundo." 137 Os direitos privados
nar, é, portanto, unilateral. dos cidadãos são solidamente garantidos uns em relação
No entanto, a natureza absoluta da soberania não aos outros, mas podem ser suspensos a qualquer mo
depende somente da especificidade do ato contratual, mento pela onipotência do Estado : "A pro pri edade que
mas também da finalidade da instituiçã o política: a se um sujeito tem re ferente às suas terras consiste no direi
gurança dos sujeitos' 34• Segundo Hobbes, a finalidade to de proibir seu uso a qualquer outra p essoa; mas não
buscada pela sociedade civil não é necessariamente um no direito de proibi-lo ao soberano." 138 É nesse âmbito
princípio de limitação da soberania, mas pode constituir que a expropriação e a espoliação podem to mar-se legí-
a justificação cabal d e se u caráter absoluto. Somente um
poder absoluto conseguirá reduzir as dissensões entre 135. Os cidadãos perdem, assim, o direito de agir de acordo com su a
consciência, ou seja, segundo s u a opinião privada (Lév., XX]X, p. 345).
136. Second Traité, VU, 93, p. 68; "Quem está exposto ao poder arbitrário
130. J. Terrel, Les Théories du pncte social, op. cit.,
pp. 181-2. de um único homem que tem 100 000 sob su as ordens encontra-se, de fato,
131_ Uv., XVII, p. 178; xvrn, p. 184.
numa sit u ação bem pior do que quem está exposto ao poder arbitrário de
132. "Ninguém suporta, de fato, nenh u ma
obrigação que não emane de 100 000 indivíduos isolados"(ibid., XI, 137, p. 100).
um ato q ue ele mesmo estabeleceu, já que
por natureza todos os homens são 137. La République, Paris, Livre de Poche, 1993, prefácio, p. 50; IV, 7,
igualmente livres" (Lév., XXI, p. 229). "Ning
uém é obrigado por u ma conven p. 402; VI, 4, p. 522.
ção da qual não é o a utor" (Lév., XVI, p. 164).
138. Lév., XXIV, pp. 264-5; XXIX, pp. 346-7. A dou trina segundo a qual
133. Lév., XVIII, pp. 181-2; Le Citoyen, VI,
20, pp. 164-6. Não obstante, "todo particula r tem de seus bens uma propriedade absoluta [ ...] tende à dis
como saliento u com toda justeza M. Villey, o
soberano permanece parte de um solução da República" (Lév., XXIX, p. 346). Locke não deixa de refutar esse
contrato, de uma troca de prestações recípr
ocas, já que ele define e sanciona ponto: "Pois a propriedade não está cm absoluto em segurança, mesmo que
o direito dos sujeitos, mesmo qu ando não é
obrigado a isso por nenhum con existam leis justas e equitativas que lhe determinem os respectivos limites en
trato, po r nenhum compromisso (Lév., XIV,
pp. 132-3; cf. Ln Fon11atio11 de la tre os sujeitos, quando aqu ele que comanda a esses mesmos su jeitos possui o
pe11sée juridique 111odenre, op. cit., p. 673 e nota 1).
poder de tirar das pessoas privadas a parte da propriedade delas que lhe agra
134. Le Citoyen, VI, 13, p. 156. da e de usá-la ou dispor dela como convém"(SecondTraité, XI, 138, pp.101-2;
Xl, 139; XVI, 192).
146 GENEALOGIA DO DCREITO MODERNO
OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 147
quais eu não deixo d e ser o autor 1Jt1 • Cada um dos indi
víduos se compromete reciprocamente a ser o autor de cidadãos, submetê-los, como o requer a paz civil, a uma
todas as ações executadas pelo soberano. única vontade soberana 135•
Uma vez que cada indivíduo autoriza, por um man Hobbes estima, pois, que ho mens disseminados no
dato ilimitado, seu representante a recorrer a todas as estado de natureza são mais temíveis para cada um de
medidas úteis para preservar a segurança do povo 13', o les do que o poder absoluto de um Estado soberano . O
poder soberano erigido por esse ato contratual dispõe de que equivale , segundo Locke, a aceitar, para se precaver
um direito ilimitado, absoluto '32• contra "os gambás e as raposas", ser devorado "por
leões" 136• Hobbes acreditou, dadas as circunstâncias his
Dado que os sujeitos simplesmente se compromet e
tóricas de que era testemunha, que as co nsequências da
ram uns para com os o utros a autorizar todas as ações do
anarquia deveriam ser mais temidas do que os abusos do
soberano , o poder sob erano não é amarrado por nenhu
poder moná rquico. Retoma, assim, expressamente, a aná
ma convenção, ele não é limitado por nenhuma obriga
lise que Bodin opunha à teoria huguenote do direito de
ção contratua1' 33. A obrigação política que repousa no resistência: "A licenciosa anarquia [... ] que é pior do que
consentimento, na transferência do direito de se gover a mais forte tirania do mundo." 137 Os direitos privados
nar, é, portanto, unilateral. dos cidadãos são solidamente garantidos uns em relação
No entanto, a natureza absoluta da soberania não aos outros, mas podem ser suspensos a qualquer mo
depende somente da especificidade do ato contratual, mento pela onipotência do Estado : "A pro pri edade que
mas também da finalidade da instituiçã o política: a se um sujeito tem re ferente às suas terras consiste no direi
gurança dos sujeitos' 34• Segundo Hobbes, a finalidade to de proibir seu uso a qualquer outra p essoa; mas não
buscada pela sociedade civil não é necessariamente um no direito de proibi-lo ao soberano." 138 É nesse âmbito
princípio de limitação da soberania, mas pode constituir que a expropriação e a espoliação podem to mar-se legí-
a justificação cabal d e se u caráter absoluto. Somente um
poder absoluto conseguirá reduzir as dissensões entre 135. Os cidadãos perdem, assim, o direito de agir de acordo com su a
consciência, ou seja, segundo s u a opinião privada (Lév., XX]X, p. 345).
136. Second Traité, VU, 93, p. 68; "Quem está exposto ao poder arbitrário
130. J. Terrel, Les Théories du pncte social, op. cit.,
pp. 181-2. de um único homem que tem 100 000 sob su as ordens encontra-se, de fato,
131_ Uv., XVII, p. 178; xvrn, p. 184.
numa sit u ação bem pior do que quem está exposto ao poder arbitrário de
132. "Ninguém suporta, de fato, nenh u ma
obrigação que não emane de 100 000 indivíduos isolados"(ibid., XI, 137, p. 100).
um ato q ue ele mesmo estabeleceu, já que
por natureza todos os homens são 137. La République, Paris, Livre de Poche, 1993, prefácio, p. 50; IV, 7,
igualmente livres" (Lév., XXI, p. 229). "Ning
uém é obrigado por u ma conven p. 402; VI, 4, p. 522.
ção da qual não é o a utor" (Lév., XVI, p. 164).
138. Lév., XXIV, pp. 264-5; XXIX, pp. 346-7. A dou trina segundo a qual
133. Lév., XVIII, pp. 181-2; Le Citoyen, VI,
20, pp. 164-6. Não obstante, "todo particula r tem de seus bens uma propriedade absoluta [ ...] tende à dis
como saliento u com toda justeza M. Villey, o
soberano permanece parte de um solução da República" (Lév., XXIX, p. 346). Locke não deixa de refutar esse
contrato, de uma troca de prestações recípr
ocas, já que ele define e sanciona ponto: "Pois a propriedade não está cm absoluto em segurança, mesmo que
o direito dos sujeitos, mesmo qu ando não é
obrigado a isso por nenhum con existam leis justas e equitativas que lhe determinem os respectivos limites en
trato, po r nenhum compromisso (Lév., XIV,
pp. 132-3; cf. Ln Fon11atio11 de la tre os sujeitos, quando aqu ele que comanda a esses mesmos su jeitos possui o
pe11sée juridique 111odenre, op. cit., p. 673 e nota 1).
poder de tirar das pessoas privadas a parte da propriedade delas que lhe agra
134. Le Citoyen, VI, 13, p. 156. da e de usá-la ou dispor dela como convém"(SecondTraité, XI, 138, pp.101-2;
Xl, 139; XVI, 192).
148 GENEALOGIA DO DlREJTO MODERNO OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBf.S E LOCKE 149
timas. A restrição das liberdades públicas se mostra, por pública [...] mandou-lhe usar para distinguir o direito e o
tanto, a condição da segurança dos direitos privados. errado, ou seja, o que é contrário à regra e o que não lhe
As leis civis estabelecidas pela vontade do legislador é contrário." 142 Mas o recurso ao conceito de comando
se tomam, nesse contexto, uma fonte maior de direito, não deixa pairar nenhuma dúvida sobre a concepção po
elas estatuem sobre o justo e o injusto 139• Qual é a con sitivista da justiça que atua aqui. "Há comando quando se
cepção da lei civil proposta por Hobbes? Dentre "as leis diz 'Faça isto' ou 'Não faça isto' e quando não se tem de
humanas positivas", ele opera uma distinção entre as esperar outra razão além da vontade daquele que fala as
"leis penais [...] que dão a conhecer qual pena deverá ser sim [...] a razão de seu comando é sua própria vontade e
infligida àqueles que violam a lei" e as "leis distributivas nada mais." 143 A justiça já não é uma forma de igualdade
[ ...] que determinam os direitos dos sujeitos, dando a co imanente à ordem social, ou a obediência a uma lei natu
nhecer a todos o que os faz adquirir e conservar a pro ral ou divina, ela supõe a obediência aos comandos do
priedade das terras e dos outros bens, e um direito ou soberano. As leis civis definem as obrigações cujo respei
uma liberdade de ação" I'Iº. Encontramos, no âmbito des to é garantido pela força pública, mas às quais o legisla
sa análise da lei civil, a tese, vislumbrada por Suarez, se dor não pode ser sujeitado 144 • Renunciando ao seu direi
gundo a qual a distribuição já não está no princípio do to natural sobre todas as coisas, os indivíduos deixaram
direito, mas se limita a repartir direitos subjetivos já cons ao soberano o uso de um direito natural absoluto 145•
tituídos. Essa concepção distributiva da lei positiva se A liberdade civil dos cidadãos "reside [ ...] apenas nas
apoia numa análise etimológica: "Isso os antigos conhe coisas sobre as quais, ao regulamentar as ações deles, o
ciam bem, e o denominavam nomos, ou seja, repartição, soberano silenciou" 146• Ademais, o Estado-Leviatã não
isso a que chamamos lei." I4I dispõe de nenhum domínio sobre a liberdade de cons
Hobbes parece assim atenuar o poder criador de di ciência dos sujeitos. Segundo Hobbes, é inconsequente
reito que o pensamento tomista conferia à lei positiva. querer "estender o poder da lei, que é somente a regra
Esta parece perder seu poder criador, permite simples das ações, aos próprios pensamentos e à consciência dos
mente guardar uma parcela de um direito subjetivo já homens, escrutando-lhes o sentimento por exame e in
possuído. A lei civil é incumbida de coordenar os direi quisição, não obstante a conf ormidade de suas palavras
tos subjetivos de cada um e não de revelar as form as de e ações" 147•
igualdade imanentes às relações sociais.
Se a lei civil se apresenta como o comando de um 142. lbid., XXVI, p. 282. Le Citoyen, VI, 9, p. 153.
poder soberano, é com a condição de visar o justo: "A lei 143. Tbid., XXV,p. 271.
144. Tbid., XXVI, p. 283.
civil é, para cada sujeito, o conjunto das regras que a Re- 145. O soberano "tem sobre os particulares um poder tão grande e jus
to quanto cada um tem fora da sociedade sobre sua própria pessoa" (Le Ci
toyen, VI, 18, p. 163).
139. Léu., XXVI,pp. 282,289,306. 146. Tbid., XXI, pp. 224,232; XXVI,p. 311.
140. lbid., XXVI, p. 306. Le Citoyen, XIV, 6,p. 246; Suarez, De 147. lbid., XLVI, p. 691. "Um particular sempre tem a liberdade [pois o
legib11s, 1,6,
17, p. 178. pensamento é livre] de acreditar ou não acreditar em seu coração" (ibid.,
141. /bid., XXIV, p. 263. XXXVII,p. 471). "Quanto ao pensamento e à crença interiores dos homens,dos
148 GENEALOGIA DO DlREJTO MODERNO OS DIREITOS DO HOMEM: HOBBf.S E LOCKE 149
timas. A restrição das liberdades públicas se mostra, por pública [...] mandou-lhe usar para distinguir o direito e o
tanto, a condição da segurança dos direitos privados. errado, ou seja, o que é contrário à regra e o que não lhe
As leis civis estabelecidas pela vontade do legislador é contrário." 142 Mas o recurso ao conceito de comando
se tomam, nesse contexto, uma fonte maior de direito, não deixa pairar nenhuma dúvida sobre a concepção po
elas estatuem sobre o justo e o injusto 139• Qual é a con sitivista da justiça que atua aqui. "Há comando quando se
cepção da lei civil proposta por Hobbes? Dentre "as leis diz 'Faça isto' ou 'Não faça isto' e quando não se tem de
humanas positivas", ele opera uma distinção entre as esperar outra razão além da vontade daquele que fala as
"leis penais [...] que dão a conhecer qual pena deverá ser sim [...] a razão de seu comando é sua própria vontade e
infligida àqueles que violam a lei" e as "leis distributivas nada mais." 143 A justiça já não é uma forma de igualdade
[ ...] que determinam os direitos dos sujeitos, dando a co imanente à ordem social, ou a obediência a uma lei natu
nhecer a todos o que os faz adquirir e conservar a pro ral ou divina, ela supõe a obediência aos comandos do
priedade das terras e dos outros bens, e um direito ou soberano. As leis civis definem as obrigações cujo respei
uma liberdade de ação" I'Iº. Encontramos, no âmbito des to é garantido pela força pública, mas às quais o legisla
sa análise da lei civil, a tese, vislumbrada por Suarez, se dor não pode ser sujeitado 144 • Renunciando ao seu direi
gundo a qual a distribuição já não está no princípio do to natural sobre todas as coisas, os indivíduos deixaram
direito, mas se limita a repartir direitos subjetivos já cons ao soberano o uso de um direito natural absoluto 145•
tituídos. Essa concepção distributiva da lei positiva se A liberdade civil dos cidadãos "reside [ ...] apenas nas
apoia numa análise etimológica: "Isso os antigos conhe coisas sobre as quais, ao regulamentar as ações deles, o
ciam bem, e o denominavam nomos, ou seja, repartição, soberano silenciou" 146• Ademais, o Estado-Leviatã não
isso a que chamamos lei." I4I dispõe de nenhum domínio sobre a liberdade de cons
Hobbes parece assim atenuar o poder criador de di ciência dos sujeitos. Segundo Hobbes, é inconsequente
reito que o pensamento tomista conferia à lei positiva. querer "estender o poder da lei, que é somente a regra
Esta parece perder seu poder criador, permite simples das ações, aos próprios pensamentos e à consciência dos
mente guardar uma parcela de um direito subjetivo já homens, escrutando-lhes o sentimento por exame e in
possuído. A lei civil é incumbida de coordenar os direi quisição, não obstante a conf ormidade de suas palavras
tos subjetivos de cada um e não de revelar as form as de e ações" 147•
igualdade imanentes às relações sociais.
Se a lei civil se apresenta como o comando de um 142. lbid., XXVI, p. 282. Le Citoyen, VI, 9, p. 153.
poder soberano, é com a condição de visar o justo: "A lei 143. Tbid., XXV,p. 271.
144. Tbid., XXVI, p. 283.
civil é, para cada sujeito, o conjunto das regras que a Re- 145. O soberano "tem sobre os particulares um poder tão grande e jus
to quanto cada um tem fora da sociedade sobre sua própria pessoa" (Le Ci
toyen, VI, 18, p. 163).
139. Léu., XXVI,pp. 282,289,306. 146. Tbid., XXI, pp. 224,232; XXVI,p. 311.
140. lbid., XXVI, p. 306. Le Citoyen, XIV, 6,p. 246; Suarez, De 147. lbid., XLVI, p. 691. "Um particular sempre tem a liberdade [pois o
legib11s, 1,6,
17, p. 178. pensamento é livre] de acreditar ou não acreditar em seu coração" (ibid.,
141. /bid., XXIV, p. 263. XXXVII,p. 471). "Quanto ao pensamento e à crença interiores dos homens,dos
150 GENEALOGIA DO DIREITO MODERNO OS DlREITOS DO HOMEM: HOBBES E LOCKE 151
Como conciliar a orientação absolutista dessa con o despojamento dos sujeitos permite ao soberano deter
cepção da soberania 14 � com a inelutável persistência de um direito natural ilimitado, fica evidente que o sobera
uma parte do direito natural na sociedade civil? 149 no "não recebeu deles seu direito de agir, mas sol1).ente
Não há, parece, nenhuma conciliação possível, o ato seu direito de agir em nome deles" 154• O caráter ilimita
de autorização ilimitado não restringe em absoluto o di do da soberania não implica uma obrigação incondicio
reito natural de salvaguardar a vida: "Permitindo-lhe ma nal de obedecer 155 • Assistimos, pois, à colisão de duas so
tar-me, nem por isso sou obrigado a matar a mim mes beranias antagonistas, pois os sujeitos não abdicaram de
mo se ele me ordenar." 150 Como o sujeito poderá resistir todo direito de resistência 156.
àquilo do que se reconhece o autor? 1 51 Para superar essa Nessa perspectiva, Hobbes considera que a deserção
dificuldade, é preciso voltar à dissociação entre o meca do campo de batalha pode ser aceita; quando os solda
nismo de despojamento e o processo de autorização 152 • dos "não o fazem por traição, mas por medo, não se es
Se a transferência de direito cria uma obrigação de obe tima que c