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E
xistem relações profundas en- seu próprio conjunto de belos e insti-
Ildeu de Castro Moreira
tre Ciência, cultura e arte no gantes poemas, todos eles associados Instituto de Física - UFRJ
processo de criação humana. No a temas científicos. Limitamo-nos ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

entanto, a discussão integrada dessas também a alguns poucos comentários


dimensões raramente se realiza nas de caráter geral sobre cada tópico con-
salas de aula. Numa tentativa de mo- siderado.
tivar a discussão de alguns temas cien- Ciência e poesia pertencem à mes-
tíficos importantes e atuais, em par- ma busca imaginativa humana,
ticular dentro da Física, mas não exclu- embora ligadas a domínios diferentes
sivamente, propomos a exploração, em de conhecimento e valor. A visão poé-
sala, de poemas referentes à Ciência tica cresce da intuição criativa, da
existentes na Literatura brasileira e experiência humana singular e do co-
portuguesa, de forma interligada e em nhecimento do poeta. A Ciência gira
interação com outras disciplinas em torno do fazer concreto, da cons-
(Português e História, por exemplo). trução de imagens comuns, da expe-
Dentro do objetivo didático expos- riência compartilhada e da edificação
to, poemas foram aqui reunidos do conhecimento coletivo sobre o
segundo um tema “científico” geral. mundo circundante. Tem como vín-
A idéia é que sejam discutidos de ma- culo restritivo, ao contrário da poesia,
neira interdisciplinar, de preferência o representar adequadamente o com-
acompanhados de um apanhado his- portamento material; tem, mais pro-
tórico das relações fundamente que a
entre Ciência e poe- Ciência e poesia pertencem leitura poética do
sia relativas àquele à mesma busca imaginativa mundo, a capacida-
tema, do contexto humana, embora ligadas a de de permitir a pre-
científico e literário domínios diferentes de
visão e a transfor-
associado e de aná- conhecimento e valor
mação direta do
lises sobre o conteú-
entorno material. As aproximações
do e forma dos poemas. Os temas
entre Ciência e poesia revelam-se, no
abordados nesta primeira ação explo-
ratória foram: a máquina do mundo; entanto, muito ricas, se olhadas
tempo e evolução; a matéria; os as- dentro de um mesmo sentimento do
tros; a bomba atômica; caos e fractais; mundo. A criatividade e a imaginação
vida, pensamento e complexidade; são o húmus comum de que se
cânticos dos quânticos; a ciência em nutrem. Na origem desses dois
si. Percorremos vários momentos da movimentos, as incertezas de uma
literatura poética lusa e brasileira, realidade complexa que demanda
iniciando por Os Lusíadas, o grande várias faces que podem transformar-
poema épico da nossa língua. Os poe- se em versos, em gedankens ou ser re-
mas selecionados a seguir são apenas presentados por formas matemáticas. A interdisciplinaridade em sala de aula é um
exemplos possíveis; muitas outras Haroldo de Campos dizia, sobre tema importante e que deve sempre ser
Schenberg, que: na estante de Mário explorado pelo professor. Neste artigo, mostra-
escolhas poderiam ter sido feitas. Um se como Física e Literatura podem formar um
professor, com imaginação, dedicação física e poesia coexistem - como asas de belo dueto para tornar mais interessante a
e tempo, poderá com certeza construir um pássaro. interação entre ambas.

Física na Escola, v. 3, n. 1, 2002 Poesia na Aula de Ciências? 17


Nos tempos atuais, em que a É Deus; mas o que é Deus, ninguém o escasso.
Ciência e a tecnologia impregnam pro- entende, Duzentos cursos faz, dá ele um passo.
fundamente nossa cultura e permeiam Que a tanto o engenho humano não se Olha estoutro debaixo, que esmaltado
nosso cotidiano, com seus benefícios estende. De corpos lisos anda e radiantes,
Que também nele tem curso ordenado
extraordinários mas também com suas Este orbe que, primeiro, vai cercando
E nos seus axes correm cintilantes.
mazelas, a poesia poderia parecer um Os outros mais pequenos que em si
Bem vês como se veste e faz ornado
anacronismo. Mas, talvez, as muitas tem,
Co largo Cinto de ouro, que estelantes
pequenas verdades científicas Que está com luz tão clara radiando,
Animais doze traz afigurados,
Que a vista cega e a mente vil
constituam apenas uma abordagem Aposentos de Febo limitados.
também,
incompleta e limitada do mundo. Empíreo se nomeia, onde logrando Olha, por outras partes, a pintura
Relembremos Einstein: Não superesti- Puras almas estão daquele Bem Que as estrelas fulgentes vão fazendo:
mem a ciência e seus métodos quando se Tamanho, que Ele só se entende e Olha a Carreta, atenta a Cinosura,
trata de problemas humanos! A poesia e alcança, Andrômeda e seu pai, e o Drago
a arte, que parecem constituir necessi- De quem não há no mundo horrendo.
dades urgentes de afirmação da expe- semelhança. Vê de Cassiopeia a fermosura
riência individual, uma visão comple- E do Orionte o gesto turbulento;
Aqui, só verdadeiros, gloriosos
mentar e indispensável da experiência Olha o Cisne morrendo que suspira,
Divos estão, porque eu, Saturno e
A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira.
humana, não podem ficar de fora das Jano,
atividades interdisciplinares com os Júpiter, Juno, fomos fabulosos, Debaixo deste grande Firmamento,
jovens nas escolas, mesmo aquelas Fingidos de mortal e cego engano. Vês o céu de Saturno, Deus antigo;
ligadas ao aprendizado de Ciências. Só pera fazer versos deleitosos Júpiter logo faz o movimento,
Servimos; e, se mais o trato humano E Marte abaixo, bélico inimigo;
A Máquina do Mundo Nos pode dar, é só que o nome nosso O claro Olho do céu, no quarto
Nestas estrelas pôs o engenho vosso. assento,
Neste tópico, nada melhor do que E Vênus, que os amores traz consigo,
iniciar com o grande poema da litera- E também, porque a Santa
Providência, Mercúrio, de eloqüência soberana;
tura portuguesa escrito por Camões. Com três rostos, debaixo vai Diana.
Que em Júpiter aqui se representa,
Muitos temas de astronomia e da vi- Por espíritos mil, que tem prudência, Em todos estes orbes, diferente
são geocêntrica hegemônica no século Governa o Mundo todo que sustenta Curso verás, nuns grave e noutros
XVI surgem ali entre as glórias, suces- (Insiná-lo a profética ciência, leve;
sos e insucessos das armas e da gente Em muitos dos exemplos que apresenta: Ora fogem do Centro longamente,
portuguesa. Trata-se, em particular, Os que são bons, guiando, favorecem, Ora da Terra estão caminho breve,
de um excelente ponto de partida para Os maus, em quanto podem, nos Bem como quis o Padre onipotente,
uma possível interação entre o profes- empecem); Que o fogo fez e o ar, o vento e neve,
sor de Física, o de Português e o de Quer logo aqui a pintura, que varia, Os quais verás que jazem mais a dentro
História. Outros poetas da língua por- Agora deleitando, ora insinando, E tem co Mar a Terra por seu centro.
tuguesa abordaram, sob óticas diver- Dar-lhe nomes que a antiga Poesia A Máquina do Mundo
sas, o tema da ‘Máquina do Mundo’, A seus Deuses já dera, fabulando; Antonio Gedeão
Que os Anjos de celeste companhia
aqui iniciado por Camões, como Car- O Universo é feito essencialmente de
Deuses o sacro verso está chamando;
los Drummond de Andrade e Haroldo Nem nega que esse nome preminente coisa nenhuma.
de Campos. Reproduzimos abaixo dois Também aos maus se dá, mas Intervalos, distâncias, buracos,
menos conhecidos, do século XX. O falsamente. porosidade etérea.
primeiro deles é um belíssimo poema Espaço vazio, em suma.
Enfim que o sumo Deus, que por O resto, é a matéria.
do físico, poeta e divulgador da Ciência segundas
Rómulo de Carvalho, falecido poucos Causas obra no Mundo, tudo manda. Daí, que este arrepio,
anos atrás, e que escrevia sob o pseu- E, tornando a contar-te das profundas este chamá-lo e tê-lo, erguê-lo e
dônimo de Antonio Gedeão. O último, Obras da Mão Divina veneranda: defrontá-lo,
esta fresta de nada aberta no vazio,
que trata da visão quântica do mun- Debaixo deste círculo, onde as mundas
Almas divinas gozam, que não anda, deve ser um intervalo.
do, é da lavra do poeta brasileiro mo-
derno Marco Lucchesi. Outro corre, tão leve e tão ligeiro, A Quarta Parede
Que não se enxerga: é o Mobile Marco Lucchesi
Os Lusíadas - Canto X - 80/90 primeiro.
Esta foi a
Luís de Camões Com este rapto e grande movimento bela e preciosa
Vês aqui a grande máquina do Mundo, Vão todos os que dentro tem no seio; lição de Bohr
Etérea e elemental, que fabricada Por obra deste, o Sol, andando a tento, e Mann
Assim foi do Saber, alto e profundo, O dia e noite faz, com curso alheio. de sua mecânica
Que é sem princípio e meta limitada. Debaixo deste leve, anda outro lento, sublime
Quem cerca em derredor este rotundo Tão lento e subjugado a duro freio, antes maldestra
Globo e sua superfície tão limada, Que, enquanto Febo, de luz nunca hoje tão bela

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como laura, discurso poético. mões e suas incursões astronômicas,
nise e glaura Aqui tomamos dois exemplos. mas inúmeros outros podem ser ci-
esferas João Cabral nos fala do tempo que tados ao longo dos últimos séculos.
musicantes existe na agulha de um instante e Seguem-se apenas dois exemplos, que
de Pitágoras... Murilo Mendes faz um estudo poético falam da Lua e da órbita dos planetas,
esta foi sendo que o segundo deles foi escrito
do caos que lembra a conflagração
a bela por um matemático e poeta que atu-
e preciosa
final.
almente é professor da UFRJ.
descoberta Habitar o Tempo
que João Cabral de Melo Neto Satélite
a máquina Para não matar seu tempo, imaginou:
Manuel Bandeira
do mundo vivê-lo enquanto ele ocorre, ao vivo; Fim de tarde.
flutua no instante finíssimo em que ocorre, No céu plúmbeo
em mil pedaços em ponta de agulha e porém acessível; A lua baça
partículas viver seu tempo: para o que ir viver Paira
sabores num deserto literal ou de alpendres; Muito cosmograficamente
(lauras em ermos, que não distraiam de viver Satélite.
e jasmins a agulha de um só instante, plenamente. Desmetaforizada,
também flutuam) Plenamente: vivendo-o de dentro dele; Desmitificada,
ínvios habitá-lo, na agulha de cada instante, Despojada do velho segredo de
mares em cada agulha instante: e habitar nele melancolia,
e o nada tudo o que habitar cede ao habitante. Não é agora o golfão de cismas,
sobrenada E de volta de ir habitar seu tempo: O astro dos loucos é dos enamorados,
entre infinitos ele corre vazio, o tal tempo ao vivo; Mas tão-somente
infinitos e como além de vazio, transparente, Satélite.
o instante a habitar passa invisível. Ah Lua deste fim de tarde,
Tempo e Evolução Portanto: para não matá-lo, matá-lo; Demissionária de atribuições românticas,
Em quase todos os ramos da ár- matar o tempo, enchendo-o de coisas; Sem show para as dìsponibilidades
vore da Ciência, um dos conceitos cen- em vez do deserto, ir viver nas ruas sentimentais!
trais no entendimento dos fenômenos onde o enchem e o matam as pessoas;
pois como o tempo ocorre transparente Fatigado de mais valia,
naturais é da evolução no tempo. Gosto de ti assim:
e só ganha corpo e cor com seu miolo
Também na literatura poética univer- (o que não passou do que lhe passou), Coisa em si,
sal, o tempo é um dos temas mais re- para habitá-lo: só no passado, morto. - Satélite.
correntes, pela vinculação óbvia com
Estudo para um Caos Kepleriana
a vida e a morte.
Murilo Mendes Ricardo Kubrusly
Dentro da visão científica clássica, Acordanoite
O último anjo derramou seu cálice no ar.
o tempo é considerado como um
Os sonhos caem na cabeça do homem, universo besta
parâmetro essencial de referência, uni- As crianças são expelidas do ventre esse com muitos planetas
dimensional, ordenado e contínuo, materno, estrelas que não se sabem
que flui independentemente de seu en- As estrelas se despregam do firmamento, luzes
torno. Essa concepção tornou-se, a Uma tocha enorme pega fogo no fogo, e tantas teorias
partir do século XVII, profundamente A água dos rios e dos mares jorra tantos matemáticos
entranhada na Física e se espraiou pa- cadáveres.
Os vulcões vomitam cometas em furor as órbitas são pernas merecidas
ra outros domínios da Ciência. Na se-
E as mil pernas da Grande dançarina monumentos
gunda metade do século XIX, o con- geometria
Fazem cair sobre a terra uma chuva de
ceito de entropia, introduzido como elipses traçadas num invisível preto
lodo.
padrão de medida para a desordem Rachou-se o teto do céu em quatro remotamente controladas
crescente de um sistema natural, cris- partes: por botões à minha mesa
talizou a perspectiva de um caos ter- Instintivamente eu me agarro ao abismo. sou quem as concebe
minal: a morte térmica do mundo. A Procurei meu rosto, não o achei. em pânico
Ciência parecia dar as mãos às concep- Depois a treva foi ajuntada à própria duzentos anos atrasado.
ções religiosas de uma conflagração treva.
final, sem perceber que tais especula- A Matéria
ções estavam baseadas em determi-
Os Astros Buscar entender a constituição das
nado modelo de sistema fechado, a As estrelas, planetas, galáxias, co- coisas e utilizar isto em seu proveito
que o universo poderia não querer se metas e outros objetos que são objeto sempre foi um desafio básico em todas
adaptar. Esta noção de caos final, en- de estudo da Astronomia têm sido um as civilizações. Aqui reproduzimos al-
tremeada com a do caos primordial, tema constante e inspirador para inú- guns poemas que vão desde Camões,
habitava já a cultura, a Filosofia e o meros poetas. Já mencionamos Ca- que retrata a teoria aristotélica dos qua-

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tro elementos, até a surpresa dos poetas onde se plasma
Dos céus descendo
(e cientistas) modernos com a estranha o modo inaugural
Meu Deus eu vejo
estrutura da matéria que nossa mente do protoplasma...
De pára-quedas?
e nossos aparelhos mal conseguem vis- a sombra luminosa Uma coisa branca
lumbrar. Uma história de um átomo de um quasar Como uma fôrma
foi esboçada poeticamente pelo escritor e as formas múltiplas De estatuária
e médico Rodolfo Teófilo, que desempe- de ser e estar Talvez a fôrma
Do homem primitivo
nhou importante atividade nas cam- as quase borboletas,
A costela branca!
panhas de vacinação no Nordeste, há e sabores
Talvez um seio
cerca de um século . Lucchesi explora a de quarks, e de sombras,
Despregado à lua
supersimetria, os quarks e os quasares. e motores...
Talvez o anjo
na antemanhã de rosas Tutelar cadente
Os Lusíadas - Canto VI
o arrebol Talvez a Vênus
Luís de Camões e o quase amor que rege Nua, de clâmide
E vê primeiro, em cores variadas, o pôr-do-sol Talvez a inversa
Do velho Caos a tão confusa face; Branca pirâmide
Vem-se os quatro Elementos trasladados, resíduos de giocondas
Do pensamento
Em diversos ofícios ocupados. beatrizes
Talvez o troço
Ali, sublime, o Fogo estava em cima, sonhando com poetas
De uma coluna
Que em nenhuma matéria se sustinha; infelizes...
Da eternidade
Daqui as cousas vivas sempre anima, assim agia Deus Apaixonado
Depois que Prometeu furtado o tinha. sive natura Não sei indago
Logo após ele, leve se sublima na zona fria Dizem-me todos
O invisível Ar, que mais acima da matéria escura É A BOMBA ATÔMICA
Tomou lugar, e, nem por quente ou frio, (...)
e o rígido
Algum deixa no mundo estar vazio.
combate prosseguia II
História de um Átomo (Eternidade do ser e do não ser, A bomba atômica é triste
da matéria) e ainda prossegue, Coisa mais triste não há
Rodolfo Teófilo que o nada Quando cai, cai sem vontade
se insinua noite e dia Vem caindo devagar
Fui átomo de rocha, fui granito,
Tão devagar vem caindo
Fui lava de vulcão, fui flor mimosa, Que dá tempo a um passarinho
Sutil perfume, nuvem borrascosa A Bomba Atômica
De pousar nela e voar...
Manchando a transparência do infinito. O impacto da bomba atômica em Coitada da bomba atômica
Vaguei no espaço... errante aerolito Hiroshima deixou registros memo- Que não gosta de matar!
Transpus mundos de essência vaporosa. ráveis na pena de poetas brasileiros,
Coitada da bomba atômica
De santos fui artéria vigorosa, como Carlos Drummond e Vinicius. Que não gosta de matar
O coração formei a ser maldito. Fiquemos com um poema deste que Mas que ao matar mata tudo
Nasci com a Terra; gaz eu fui com ela, escreveu também o bem conhecido Animal e vegetal
Estive de Princípio na procela, Rosa de Hiroshima, que foi musicado Que mata a vida da terra
Fui nebulosa, sol, planeta agora. E mata a vida do ar
por Ney Matogrosso. A discussão dos Mas que também mata a guerra...
Há cem mil séculos vivo m’encarnando, riscos e das aplicações da Ciência, as- Bomba atômica que aterra!
Águia n’altura, verme rastejando, sim como dos aspectos éticos envol- Pomba atônita da paz!
Pólen voando pelo espaço a fora. vidos na atividade científica podem ser
estimulados a partir deles. E estes são Pomba tonta, bomba atômica
Modo Inaugural
Tristeza, consolação
Marco Lucchesi temas importantes a se discutirem nas
Flor puríssima do urânio
Na luz deserta escolas, já que a formação adequada Desabrochada no chão
do primeiro dia para a cidadania passa também por Da cor pálida do hélium
está quebrada uma correta apreciação da Ciência e E odor de rádium fatal
a supersimetria da tecnologia, seus funcionamentos Loelia mineral carnívora
e assim despontam e seus usos. Radiosa rosa radical.
múltiplos destinos
A Bomba Atômica Nunca mais, oh bomba atômica
no mar onipresente
de neutrinos... Vinicius de Moraes Nunca em tempo algum, jamais
Seja preciso que mates
I
e vagam quase-seres Onde houve morte demais:
e = mc2 Fique apenas tua imagem
pelo mundo
EINSTEIN Aterradora imagem
lançados num abismo
Deusa, visão dos céus que me domina Sobre as grandes catedrais:
alto e profundo
. . . tu que és mulher e nada mais! Guarda de uma nova era
na luta intempestiva (“Deusa”, valsa carioca.) Arcanjo insigne da paz!

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Caos e Fractais O astrônomo pode calcular seu turno, tece maravilhosamente
onde se encontrará o planeta Júpiter uma manhã, numa representação pic-
A análise do comportamento de em três mil anos. tórica muito apropriada à idéia das
sistemas não lineares trouxe, nas últi- Mas nenhum biólogo propriedades emergentes como cons-
mas décadas, elementos renovados de pode prever
truções acima das partes.
reflexão sobre uma questão fundamen- onde a borboleta pousará.
tal na Filosofia e nas ciências: o papel Fractal A Idéia
do acaso e da necessidade no quadro César Nascimento, Alê Muniz Augusto dos Anjos
conceitual construído pelo homem em Fractal pode ter beleza De onde ela vem? De que matéria bruta
sua tentativa de entender e de prever o Fractal, apesar da certeza Vem essa luz que sobre as nebulosas
comportamento da natureza. Com o Fractal, ô, ô, revela beleza Cai de incógnitas criptas misteriosas
Como as estalactites duma gruta?!
caos determinístico ressurgiu o debate Dando se tira que em todo aço,
sobre o determinismo, o livre arbítrio, Até no mais puro traço, Vem da psicogenética e alta luta
o significado das leis da natureza e ca- Existe um momento tal, Do feixe de moléculas nervosas,
Existe um momento-flor Que, em desintegrações maravilhosas,
pacidade humana de prever eventos Que poderá vir a ser fractal Delibera, e depois, quer e executa!
futuros.
As estruturas multifacetadas e ru- Traço um traço ao lado do traço Vem do encéfalo absconso que a
Na diagonal da diagonal constringe,
gosas emanadas da natureza e prove- Chega em seguida às cordas do laringe,
Fractal
nientes também dos estudos do caos con- Tísica, tênue, mínima, raquítica...
duziram à criação de novas geometrias, Uma fractal pode ter beleza
Apesar da certeza Quebra a força centrípeta que a amarra,
como a dos fractais que, no exemplo a Mas, de repente, e quase morta, esbarra
Uma fractal pode ter.
seguir, surge musicada em ritmo No mulambo da língua paralítica!
nordestino. A ordem pode emanar da de- Dedico “Fractal” à bravura e
sordem e vice-versa. E ambas como ca-
criatividade dos cientistas da As Cismas do Destino
América Latina. Augusto dos Anjos
tegorias instáveis e contextuais. Inicie-
mos com Murilo Mendes, que faz bro- A universal complexidade é que Ela
Vida e Pensamento, Fractais e
Compreende. E se, por vezes, se divide,
tar do caos as criações orgânicas. Affon- Complexidade Mesmo ainda assim, seu todo não reside
so Romano explora as conseqüências do No quociente isolado da parcela!
bater de asas de uma borboleta, uma Ao se estudar sistemas constituí-
metáfora que se espalhou na literatura dos de muitos elementos, verificou-
Máquina Breve
se que podem apresentar novas pro-
de divulgação científica para caracterizar Cecília Meireles
priedades, as propriedades emergentes,
a sensibilidade às condições iniciais. O pequeno vaga-lume
não contidas na escala inferior. Ou
A Inicial com sua verde lanterna,
seja, o todo é mais do que as partes,
que passava pela sombra
Murilo Mendes seu funcionamento não está contido inquietando a flor e a treva
Os sons transportam o sino. inteiramente na análise de suas partes — meteoro da noite, humilde,
isoladas. O termo sistemas complexos dos horizontes da relva;
Abro a gaiola do céu,
Dei vida àquela nuvem. passou a ser utilizado para designar o pequeno vaga-lume,
estruturas constituídas de muitos ele- queimada a sua lanterna,
As criações orgânicas mentos que interagem de forma não jaz carbonizado e triste
Que eu levantei do caos e qualquer brisa o carrega:
linear e que podem apresentar pro-
Sobem comigo mortalha de exíguas franjas
Sem o suporte da máquina,
priedades adaptativas; existe neles a
que foi seu corpo de festa.
Deixam este exílio composto possibilidade do aparecimento de si-
tuações de auto-organização, com a Parecia uma esmeralda
De água, terra, fogo e ar.
emergência de comportamentos cole- e é um ponto negro na pedra.
A inicial da minha amada Foi luz alada, pequena
tivos novos.
Surge na blusa do vento. estrela em rápida seta.
Refiz pensamentos, galeras...
Exemplos de estruturas que pode- Quebrou-se a máquina breve
Enquanto a tarde pousava riam ser melhor descritas por estes na precipitada queda.
O candelabro aos meus pés. sistemas são a vida e o próprio pensa- E o maior sábio do mundo
mento, cuja razão e constituição já sabe que não a conserta.
Desse caos erguem-se criações orgânicas.
povoavam a imaginação e aguçavam
Tecendo a Manhã
Poema Tirado de “Breve História da a lógica dos poetas há muito tempo.
João Cabral de Melo Neto
Ciência” - a busca da verdade do Augusto dos Anjos, um dos maiores
norueguês Irik Newth poetas de literatura brasileira, passea- Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
Affonso Romano de Sant’Anna va tranqüilo por entre esta universal
De um que apanhe esse grito que ele
Aparentemente complexidade, enquanto Cecília Mei- e o lance a outro; de um outro galo
existe um número infinito de seres vivos reles nos fala de máquina delicada- que apanhe o grito que um galo antes
que seguem a lei da probabilidade. mente construída. João Cabral, por e o lance a outro; e de outros galos

Física na Escola, v. 3, n. 1, 2002 Poesia na Aula de Ciências? 21


que com muitos outros galos se cruzem Quantidade que se medir Sorriso de cinema vale
os fios de sol de seus gritos de galo, Qualidade que se expressar vinte e quatro passos
para que a manhã, desde uma teia tênue, por segundo, o planeta gira
Fragmento infinitésimo
se vá tecendo, entre todos os galos. completamente tonto.
Quase que apenas mental
E, se encorpando em tela, entre todos, Dentro deste verso
Quantum granulado no mel
se erguendo tenda, onde entrem todos, sua boca muda,
Quantum ondulado do sal.
se entretendendo para todos, no toldo deslizo de skate
Mel de urânio, sal de rádio
(a manhã) que plana livre de armação. no suave das nádegas,
Qualquer coisa quase ideal
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo aqueço veias
que, tecido, se eleva por si: luz balão. Cântico dos cânticos no ouro caminho do ventre.
Quântico dos quânticos
O Cântico dos Quânticos Canto de louvor A pequena morte pulveriza
De amor ao vento meu corpo imortal,
O extraordinário sucesso da Física
Vento arte do ar o beijo solda lábios,
Clássica contribuiu para o fortalecimento só a memória falece.
das concepções mecanicistas, mas ele foi Balançando o corpo da flor
Levando o veleiro pro mar A Ciência em si
profundamente abalado no início do
De pensamento em chamas
século XX. O comportamento da matéria Como funciona a Ciência? Quais
Inspiração
no domínio microscópico e suas Arte de criar o saber as suas similaridades ou diferenças
repercussões macroscópicas, em particu- Arte, descoberta, invenção com a arte? Quais os impactos do
lar o estudo da interação entre radiação e Teoria em grego quer dizer pensamento científico na cultura
matéria, conduziram a resultados O ser em contemplação humana? Qual o papel que
experimentais que contrariavam as desempenhou a introdução das idéias
Cântico dos cânticos
previsões clássicas. Novas idéias, Quântico dos quânticos científicas em vários momentos de
experimentos e técnicas apuradas nossa história? Como os usos e
conduziram a uma profunda revolução Sei que a arte é irmão da ciência
Ambas filhas de um Deus fugaz abusos da Ciência e da tecnologia
na Física nas primeiras décadas do século ameaçam a humanidade? Como a
Que faz num momento e no mesmo
passado. A emergência da Física Quântica Ciência se relaciona com a cultura no
momento desfaz.
atingiu profundamente as concepções vi- Brasil? Quais as limitações da Ciência
gentes sobre o determinismo ao atribuir Ondas Quânticas como percebidas pelos poetas? Alguns
um caráter essencialmente probabilístico André Carneiro poemas podem nos auxiliar e ser
à descrição dos fenômenos microscópicos. pontos de partida para tais
O universo só existe
Os estranhos fenômenos quânticos, discussões. O primeiro deles vem da
quando observo.
embora não tivessem, na época imediata, Lento vôo da asa, pena irônica de um estudante bra-
deixado uma repercussão tão grande teu andar de praia, sileiro da Universidade de Coimbra,
quanto a relatividade, ecoam atualmente a nuvem gorda de água em 1785, ao ironizar a Viradeira por-
por entre os versos de muitos poetas e desaparecem tuguesa e o alijamento do pensamen-
músicos contemporâneos. Bandeira se eu falho. to científico com o retorno da deusa
examina onde e como anda a onda e o Penso, alto atravessa
da Estupidez a Portugal. Outros, mais
moderno bardo Gilberto Gil entoa o e molda um fato.
atuais, tratam da Ciência em si e de
cântico dos quânticos em um CD O espelho me inventa,
a ruga não sou eu quem traço. sua inserção em nosso mundo, da
chamado Quantum. André Carneiro viaja ciência que sonha e do verso que
sereno nas ondas quânticas. Comprimo o corpo de átomos investiga.
entro nos túneis de mundo
A Onda e passo. Reino da Estupidez (1785)
Manuel Bandeira Você sorri, Francisco de Melo Franco
a onda anda não acredita no inseto dourado A mole Estupidez cantar pretendo
aonde anda quando eu pouso na face. Que, distante da Europa desterrada
a onda? Na Lusitânia vem fundar seu Reino.
Energias quânticas
a onda ainda (...)
modelam seios e braços.
ainda onda
ainda anda Retrato não reconheço, - “Muito ilustres e sábios acadêmicos!
aonde? linhas do rosto, Por direito divino e por humano,
aonde? corpo e vontade desmancho, Creio que deve ser restituída
a onda a onda teço de novo, sou co-autor À grande Estupidez a dignidade
sem nenhum quadro. Que nesta Academia gozou sempre.
Quanta Bem sabeis quão sagrados os direitos
Explico o momento,
Gilberto Gil a nave tomba, Da antigüidade são; por eles somos,
Quanta do latim gotas translúcidas Ao lugar que ocupamos, elevados.
Plural de quantum giram prótons e nêutrons Oculta vos não é a violência
Quando quase não há neste céu de maio. Com que foi desta posse desbulhada.

22 Poesia na Aula de Ciências? Física na Escola, v. 3, n. 1, 2002


Vós, testemunhas sois dos Recebamos a nossa Protetora; levando à proa
sentimentos O que foi sempre seu, em paz governe”. a orgulhosa máscara
Com que a vimos partir tão de Francis Bacon...
desprezada: A Ciência em si
Gilberto Gil, Arnaldo Antunes Cuidado, Capitão,
Porém sempre, apesar do seu desterro
Cuidado. . .
Constante, tributei dentro em meu Se toda coincidência
peito Tende a que se entenda Grafito Para Maiakovski
Homenagens devidas à que fora E toda lenda Murilo Mendes
Na minha infância carinhosa Mestra Quer chegar aqui
Um cosmonauta cantando dá volta ao
E na velhice, singular Patrona.
A ciência não se aprende cosmos
Entrai pois, companheiros, em vós
A ciência apreende Enquanto eu desfaço a barba.
mesmos,
A ciência em si
Ponderai sem paixão: para que serve Constrói-se a décima musa
As pestanas queimar sobre os autores, Se toda estrela cadente Economia dirigida Unatotal
A estimável saúde arruinando? Cai pra fazer sentido Que deverá mover o homem novo
P’ra levar este tempo em bom E todo mito
Planifica-se nos laboratórios
sossego, Quer ter carne aqui
A futura direção dos ventos
Divertir e passar alegremente, A ciência não se ensina Extrai-se a energia das algas
Acaso precisais de mais ciência? A ciência insemina Opera-se o sol
Se os dias desta breve e curta vida A ciência em si
Tivéssemos com os livros perturbado Eletrifica-se a eternidade
Teríamos acaso mais prebendas, Se o que pode ver, ouvir, pegar, medir, Reversível
Mais dinheiro, mais honra, mais pesar
Entretanto
estima? Do avião a jato ao jaboti
O PLANETA NÃO ESTÁ MADURO
De que podem servir estes estudos Desperta o que ainda não, não se pôde
PARA A ALEGRIA.
Que mais da moda se cultivam hoje? pensar
A barb’ra geometria tão gabada Do sono eterno ao eterno devir Terminemos esse passeio poético-
Que mil proposições, todas heréticas, Como a órbita da Terra abraça o científico com uma homenagem a um
Aqui faz ensinar publicamente, vácuo devagar
físico brasileiro que soube conjugar co-
Sabeis para que presta neste mundo? Para alcançar o que já estava aqui
Se a crença quer se materializar mo poucos, na sua prática de físico e
Diga-o a Inquisição e mais não digo.
Oh, góticos estudos nunca ouvidos Tanto quanto a experiência quer se de humanista, a Ciência e a arte.
Nos tempos, em que tanto florescia abstrair Hieróglifo para Mario Schoenberg
Um Seara, maior do que o seu nome A ciência não avança Haroldo de Campos
Um Pupilo, um frei Paulo de São A ciência alcança
Mauro o olhar transfinito do mário
A ciência em si. nos ensina
Que sempre chorarão os frades
bentos! Os Filósofos a ponderar melhor a indecifrada
Histórias Naturais, Foronomias, Carlos Saldanha equação cósmica (...)
Químicas, Anatomias, e outros nomes Ante o empolgamento na estante de mário
Difíceis de reter, são as ciências que foi galvanizando física e poesia coexistem
Que vieram trazer os estrangeiros.
sucessivamente como asas de um pássaro -
Há coisa mais cruel, mais desumana,
os frades copistas, espaço curvo -
Mais contrária à razão, que ver os
os geômetras, colhidas pela têmpera absoluta de
médicos,
os astrônomos, volpi
Um cadáver humano espatifando,
os pálidos almirantes com suas
Um corpo que habitou o Espírito seu marxismo zen
lunetas,
Santo? é dialético
Nunca tal praticaste, oh bom Lopes, os monarcas augustos com suas
e dialógico
Quando pelo Natal, em um carneiro, esferas armilares,
O bofe, o coração, as tripas todas, e os tabeliões e deixa ver que a sabedoria
A teus hábeis discípulos mostravas. Ante as maravilhas da Ciência pode ser tocável como uma planta
Quem pode sem desprezo ver um e do Progresso Tecnológico, que cresce das raízes e deita folhas
lente Aconteceu que e viça
De imensos estudantes rodeado, os filósofos, pouco a pouco, e logo se resolve numa flor de lótus
Pelos campos vagar, ali colhendo, com suas idéias vagas, de onde
Uma ervinha, uma flor, um suas caraminholas na cabeça, - só visível quando damos conta -
gafanhoto? um após outro, um bodisatva nos dirige seu olhar
Acolá, c’um fuzil ferindo as pedras? entre chacotas mal disfarçadas, transfinito.
Deixemos, pois, um dia, oh sábia foram sendo jogados ao mar,
Talvez, relembrando Gedeão, uma
gente, tichipum, tichipum,
Estes prestígios que nos têm cegado; por cima do parapeito do convés fresta de nada aberta no vazio possa
Ponhamos como dantes estas coisas do Barco do Conhecimento vir a ser também a poesia em uma
Em seu antigo ser; como bons filhos que navega por mares ignotos, sala de aula.

Física na Escola, v. 3, n. 1, 2002 Poesia na Aula de Ciências? 23

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