Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Giacoia Júnior O. A visão da morte ao longo do tempo. Medicina (Ribeirão Preto) 2005; 38(1): 13-19.
1
Schopenhauer, A. Die Welt als Wille und Vorstellung II (O Mundo como Vontade e Representação II). Suplementos ao primeiro volume.
In: Saemtliche Werke. Ed. Wolfgang Frhr. Von Loehneysen. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1986, volume II, p. 83. Salvo indicação em contrário,
as traduções são de minha autoria.
2
Schopenhauer, A. Die Welt als Wille und Vorstellung I (O Mundo como Vontade e Representação I). Livro I. In: Saemtliche Werke.
Ed. Wolfgang Frhr. Von Loehneysen. Frankfurt/M: Suhrkamp, 1986, volume I, p. 75.
13
Giacoia Junior O
Se levarmos em consideração que todas as ciências Nessa acepção, a morte é situada para além do
especiais, como domínios circunscritos e particulares limiar do inteiramente outro, e se a morte pode ser
de conhecimento teórico, procedimentos metodológicos portadora de algum sentido, como por exemplo aque-
e aplicação técnica, brotaram do tronco comum da le celebrado no canto dos poetas ou nos ritos e monu-
filosofia – e se esta nasce do espanto causado pelo mentos funerários, esse sentido só pode se apresentar
destino incontornável da morte - então podemos me- para os vivos: “Em sua função de memória coletiva, a
dir bem a importância do tema que hoje nos reúne e a epopéia não é feita para os mortos; quando ela fala
lucidez que inspirou sua escolha. No entanto, com essa deles, ou da morte, é sempre aos vivos que ela se
introdução, meu intento era apenas prestar uma sin- dirige. Da morte, nela mesma, dos mortos entre os
gela homenagem filosófica aos organizadores do co- mortos, não há nada a dizer. Eles estão do outro lado
lóquio, e não aborrecer o público com reflexões abs- de um limiar que ninguém pode transpor sem desapa-
tratas. recer, que nenhuma palavra pode alcançar sem per-
Sendo assim, sem abandonar totalmente o ter- der todo sentido: mundo da noite onde reina o inaudível,
ritório que me é familiar, gostaria de passar direta- ao mesmo tempo silêncio e alarido”.4
mente para o plano mais concreto do significado his- Assim compreendida, a morte é vista, antes de
tórico e social da morte, tomando por base os rituais e tudo, como transpasse, travessia, ultrapassagem de
cerimônias funerárias, a arquitetura e o estatuário, as fronteira, de modo que os cerimoniais fúnebres e as
inscrições obtuárias, a representação pictórica que diferentes formas de edificações, inscrições funerári-
cerca a morte em diferentes civilizações. Elas ofere- as, toda a ideologia presente nas representações pic-
cem um importante indicativo, como pretendo demons- tóricas e esculturais da morte - ainda que variando de
trar, das maneiras diversas como as culturas se rela- acordo com o enquadramento cultural distinto em que
cionam com e se posicionam em face da morte. se inscrevem na história dos povos -, assumem a mes-
A esse respeito, começo por um elemento que ma função social de partes integrantes de rituais de
me parece poder ser identificado como uma constan- passagem. Por meio delas, o defunto é conduzido na
te antropológica na interpretação cultural da morte travessia para o outro lado, para a outra margem da
na história dos povos. A morte não se refere apenas existência, marcando entre os vivos a presença de um
ao envelhecimento contínuo, à transitoriedade, ao vazio, escavando uma ausência positiva que se con-
declínio inexorável de todas as forças vivas. Ela evo- serva, de diferentes maneiras, na memória coletiva
ca também um outro mundo, aterrador, “aquele da dos que sobreviveram. As cerimônias fúnebres são,
confusão, do caos, do ininteligível, onde não existe mais portanto, o memorial de passagem dos que deixaram
nada nem ninguém”.3 a vida e adquiriram um novo status social: o estatuto
A metáfora desse abismo, espaço vazio e indi- que pertence à condição de morto.
ferenciado em que a vida se precipita na escuridão das Essas formas simbólicas em que a morte se re-
sombras, no anonimato de um caos indizível e impen- gistra nos rituais e monumentos fúnebres permitem
sável, corresponde à face obscura, aterradora, da ex- distinguir as principais figuras históricas da morte, cujo
periência social e histórica da morte, mesmo naquelas perfil singular foi traçado a partir das maneiras como
culturas, como a hindu, por exemplo, em que o morrer diferentes sociedades assimilaram o fato bruto da
é interpretado como passagem para o Absoluto, cons- morte, dando a ela uma significação cultural, e inscre-
tituindo a verdade redentora e o horizonte final de sig- vendo-a no sistema dos valores simbólicos que asse-
nificação para a vida dos homens. Nas principais civi- guram o funcionamento e a reprodução da ordem so-
lizações da antiguidade, e a despeito de suas diferen- cial.
ças essenciais quanto ao significado ético-religioso da Nesse sentido, é fundamental observar que a
morte, esta se apresenta sempre como um limiar maneira como uma determinada sociedade se
intransponível, uma fronteira que delimita uma região posiciona perante a morte e os seus mortos desempe-
de sombras definitivamente inacessível para os vivos. nha um papel decisivo na constituição e na manuten-
3
Vernant, J-P. Mort grecque mort à deux faces. In: L’Individu, La Mort, L’Amour. Soi-Même et L’Autre en Grêce Ancienne .
Paris: Gallimard, 1982, p. 89.
4
Vernant, J-P. Mort grecque mort à deux faces. In: L’Individu, La Mort, L’Amour. Soi-Même et L’Autre en Grêce Ancienne.
Paris: Gallimard, 1982, p. 86.
14
A visão da morte ao longo do tempo
ção de sua própria identidade coletiva, na medida em pertences, insígnias e objetos de uso, suas vestimentas
que essa integração da morte e da relação com ela e até mesmo de suas comidas prediletas.
constitui um dos elementos mais relevantes para a Cuidava-se, com zelo extremo, para que nada
formação de uma tradição cultural comum. faltasse na travessia, nada perturbasse, ou violasse, o
A esse respeito, considero elucidativo o parale- espaço sagrado do túmulo ou mausoléu, cujo necroló-
lo traçado pelo filósofo e antropólogo francês Jean- gio registrava a pertença do morto a uma determina-
Pierre Vernant que põe em destaque, de um lado, a da linhagem ou família, assim como a seu status e
relação de todo e qualquer povo civilizado com o seu importância social. Situados junto às cidades, os ce-
Outro, com aquilo que é considerado por ele como o mitérios a elas pertenciam de modo essencial, demar-
diferente de si, ou como a alteridade, e, por outro lado, cando como que os limites em que o mundo dos vivos
a relação entre os diferentes povos e essa grande se comunicava com o espaço dos mortos, tendo nele
alteridade, esse outro absoluto da vida, que é a morte. suas raízes.
“Todo grupo humano se pensa e se quer a si “No fundo de seus sepulcros, os mortos for-
mesmo como um todo organizado, como uma ordem: mam assim as raízes que, dando ao grupo humano seu
ele se afirma como o mundo da cultura; ele é o ‘civi- ponto de ancoragem no solo, lhe asseguram a estabi-
lizado’; porisso mesmo ele se define em relação ao lidade no espaço e a continuidade no tempo. Quando
que é outro que ele: o caos, o informe, o selvagem, o um conquistador pretende destruir ou reduzir à servi-
bárbaro. De maneira análoga, cada sociedade deve dão uma nação inimiga, é preciso, de início, extirpar
afrontar essa alteridade radical, essa extrema ausên- suas raízes: as tumbas, violadas, são abertas, os ossos
cia de forma, esse não ser por excelência, que consti- pulverizados são dispersos ao vento. Com suas amar-
tui o fenômeno da morte. É-lhe necessário, de uma ras rompidas, as comunidades flutuam: semelhantes a
maneira ou de outra, integrá-la a seu universo mental um cadáver privado de sepultura, lançado às feras,
e às suas práticas institucionais. Para um grupo de cujo espectro é condenado a vagabundear sem fim;
homens, constituir-se um passado comum, elaborar privados de poder penetrar no reino dos mortos, eles
uma memória coletiva, enraizar o presente de todos são abandonados à errância, à marginalidade, ao caos.
num ‘outrora’ desvanecido, mas do qual a rememoração Na ótica mesopotâmia, uma sociedade cortada de seus
se impõe, unanimemente partilhada, é também – é de mortos não tem mais lugar no tabuleiro de xadrez da
início – conferir a certos personagens defuntos ou a extensão terrestre. Com suas raízes, ela perde sua
certos aspectos desses personagens, graças a um ri- estabilidade, sua consistência, sua coesão”.6
tual funerário apropriado, um estatuto social tal que No interior dessas culturas ancestrais, os rituais
eles permanecem, em sua condição de mortos, inscri- de inumação manifestam o siginificado tanto da vida
tos no coração da vida presente, que eles intervenham quanto da morte: para os povos mesopotâmios, o es-
nela, enquanto mortos, que eles tomem a parte que sencial consiste na administração adequada da exis-
lhes cabe na dominação das forças sociais de que tência na terra, no registro de sua identidade, sendo a
dependem o equilíbrio da comunidade e a permanên- morte uma espécie de queda, rebaixamento, diminui-
cia de sua ordem”. 5 ção da vida - ou melhor, uma condição degradada de
Tendo isso como ponto de partida, situemos, por existência, o apagamento e a sombra do que outrora
exemplo, o significado presente nos rituais de inumação era vivo.
- de sepultamento dos corpos dos defuntos -, tal como Aqui, trata-se, antes de tudo, de uma estratégia
praticado pelas sociedades da antiga Mesopotâmia, de assimilação política da morte, de manter, demar-
considerada em muitos importantes sentidos o berço cando as fronteiras que separam uma da outra, a con-
de nossa própria civilização. Os povos mesopotâmios tinuidade do mundo da vida e do mundo da morte, im-
tinham por costume enterrar os corpos dos mortos da plantando a morte num subterrâneo terrestre.
maneira mais escrupulosa, sendo o cadáver cuidado- Exatamente no contrário disso consistia o ritual
samente acompanhado de todas as marcas mais dis- funerário dos antigos hindus: não o sepultamento, não
tintivas de sua identidade pessoal e familiar, como seus a edificação de mausoléus ou pirâmides mortuárias,
5
Vernant, J-P. Trois Idéologies de la Mort. In: L’Individu, La Mort, L’Amour. Soi-Même et L’Autre en Grêce Ancienne. Paris: Gallimard,
1982, p. 105.
6
Vernant, J-P. Trois Idéologies de la Mort. In: L’Individu, La Mort, L’Amour. Soi-Même et L’Autre en Grêce Ancienne. Paris: Gallimard,
1982, p. 108.
15
Giacoia Junior O
não a representação pictórica e escultural, mas a inci- e da cremação entre os antigos gregos. O mesmo
neração crematória. O cadáver não era conservado gesto cultural – a incineração – com um sentido com-
com as marcas de sua identidade, personalidade e in- pletamente distinto da cremação entre os hindus. No
serção social, mas completamente consumido pelo caso dos gregos, as cinzas não são lançadas ao anoni-
fogo, destruído até às cinzas, que eram lançadas ao mato dos ventos, mas cuidadosamente guardadas com
vento, ou nas águas dos rios, sendo o morto despojado memória dos mortos, Como os hindus, os antigos gre-
de todos os seus traços identitários. Imolado como ví- gos cremavam os corpos dos mortos, como sacrifício
tima sacrificial, a destruição do cadáver marcava a expiação de tudo o que era mortal e perecível, para
dissolução integral da existência terrena, a purgação preparar a passagem dos mortos para uma outra con-
de todos os seus pecados, sendo a vida individual, ela dição de existência - a saber, a condição social de
própria, significada como dilaceração da unidade, con- mortos.
flito, delito e transgressão, que deve ser expiada pela No entanto, em sentido totalmente oposto ao
morte. dos brâmanes hindus, o sacrifício não tinha a intenção
Esta, por sua vez, é interpretada, entre os hindus, de apagar por completo os registros mundanos do fa-
como a via de acesso ao Absoluto, ao Eterno, ao lecido, de dissolver para sempre sua identidade, fun-
Nirvana e à paz originária: “o sábio que compreendeu dindo-a com o Absoluto, mas de determinar dois tipos,
que o ser individual é uma amostra, um golpe do aca- fundamentalmente diversos, de mortos: de um lado, a
so da natureza, uma configuração possível entre mi- morte regular, uniforme e anônima, que acomete o
lhares de possíveis na história da espécie se identifica comum dos mortais. Esses são os cadáveres crema-
com a vida universal e se desprende de sua individua- dos coletivamente e depositados em vala comum. De
lidade, encontrando por meio do conhecimento essa outro lado, são levados à pira crematória os corpos
atitude natural que faz com que esqueçamos nossa falecidos dos grandes heróis, na cerimônia da bela
finitude”.7 morte, a morte precoce no campo de batalha – aquela
De modo que é na morte e pela morte que se cuja marca distintiva está em ser a atestação mais
coloca o verdadeiro horizonte de sentido para a vida, efetiva da virtude e da excelência.
justamente o contrário de seu significado para as civi- Essa morte torna distinto, torna aristocrático e,
lizações da Mesopotâmia : “As comunidades hindus em sentido grego, verdadeiramente imortal o morto. É
bramânicas, no que a elas concerne, não buscam im- somente por ela – pela prova da virtude na morte –
plantar sua permanência na terra. Elas se enraízam que um autêntico grego antigo se tornava um indiví-
no além. A vida coletiva, a ordem social, estritamente duo, passava a ser alguém, cuja vida é digna de lem-
ritualizadas, não têm preço senão na medida em que, brança. Exemplo mais importante dessa inscrição para
desde o início, elas visam a se ultrapassar, introduzin- sempre na memória coletiva é a morte de Aquiles,
do-se num outro plano de existência, num domínio de tombado na flor da idade e no campo de combate mais
realidade diferente. A morte não é a interrupção da aguerrido. Morte celebrada pela epopéia que funda a
vida, nem seu enfraquecimento ou sua sombra. Ela identidade helênica, a Ilíada de Homero
constitui o horizonte de sentido sem o qual o curso da Aquiles, o herói, é ali descrito como o melhor
existência, para pessoas e para os grupos, não teria dos gregos, justamente pelo rigor implacável de sua
nem direção, nem sentido, nem valor. Integrar o indi- biografia, pelo radicalismo de seus feitos e façanhas,
víduo na comunidade, assinalar-lhe seu lugar, seu pa- pela recusa intransigente de qualquer compromisso e
pel, seu exato status, é fixar a ordem das etapas que, acomodação, pela excelência guerreira, a única ca-
aqui nesse mundo, permitem sair dele, liberar-se dele, paz de proporcionar a glória. Esse Aquiles permanece
para reencontrar o absoluto”.8 na morte eternamente jovem, na plenitude de suas
Para ilustrar, de modo eloqüente a diversidade forças, sua legenda sendo sempre repetida a cada
cultural na relação com a experiência da morte, seria declamação da Ilíada, como cimento da identidade
oportuno evocar agora o sentido do ritual funerário social dos gregos.
7
Dicionário de Ética e Filosofia Moral. Ed. Monique Canto-Sperber. Trad. Ana Maria Ribeiro-Althoff et allii. São Leopoldo: Editora da
Unisinos, 2003; verbete Vida e Morte, volume II, p. 748s.
8
Vernant, J-P. Trois Idéologies de la Mort. In: L’Individu, La Mort, L’Amour. Soi-Même et L’Autre en Grêce Ancienne. Paris: Gallimard,
1982, p. 110.
16
A visão da morte ao longo do tempo
Permito-me aqui insinuar que também nós, como ser encontrada entre os ascetas, os monges, os que
herdeiros culturais dos antigos gregos, conservamos praticam a renúncia e se tornam faquires. Seus cor-
algum traço dessa morte heróica, dessa comprovação pos, ao contrário de todos os outros, não são crema-
da excelência pela coragem diante da morte: permito- dos em sacrifício, mas enterrados, em posição de me-
me aqui evocar a lembrança da morte de Ayrton Senna ditação. Sobre as suas covas são edificados lugares
que, para além de toda exploração midiática, marcou sagrados de peregrinação e memória, como uma indi-
um momento na história nacional em que nos senti- cação de que o verdadeiro sentido da vida consiste no
mos, todos nós, um pouco identificados com o herói depojamento do corpo e na preparação para a morte.
ceifado no melhor de seus anos, mas cuja bravura o Morte igualmente gloriosa, mas em sentido inverso da
levou a ultrapassar os limites perante os quais recua, bela morte dos heróis gregos.
intimidada, a maioria dos mortais. No caso da bela morte, entre os gregos, não é
Como observa Jean-Pierre Vernant, “existir ‘in- por ser a morte do rei, ou do sacerdote, ou do grande
dividualmente’ para o grego é tornar-se e permanecer pai de família que a morte tem um significado ao mes-
‘memorável’: escapa-se ao anonimato, ao esqueci- mo tempo ético e estético, Não se trata, portanto, da
mento, ao apagamento – à morte, portanto – pela pró- demarcação de um grupo especial na comunidade dos
pria morte, uma morte que, abrindo-vos o acesso ao vivos , como signo da pertença a uma linhagem, ou a
canto glorificador, vos torna mais presente para a co- um status social. Como afirma Vernant, a morte do
munidade, em vossa condição de herói defunto, do que herói é estritamente individual e individualizante, e é
os vivos o são, por eles mesmos. Essa manutenção porisso que ela é digna de permanecer para sempre
contínua no seio do grupo é assegurada principalmen- no canto imortal do poeta: “No e pelo canto épico os
te pela epopéia em sua forma de poesia oral. Cele- heróis representam os ‘homens de outrora’, eles cons-
brando as proezas dos heróis de outrora, ela tem a tituem, para o grupo, seu ‘passado’; eles formam as-
função, para o conjunto do mundo grego, de memória sim as raízes em que se implanta a tradição cultural
coletiva”9 que serve de cimento ao conjunto dos helenos, onde
A esse respeito, seria oportuno contrastar as eles e reconhecem a si mesmos porque é somente
diferentes figuras simbólicas da morte, tal como elas através do gesto desses personagens desaparecidos
se desenham nessas diferentes civilizações. Tomemos, que sua própria existência social adquire sentido, va-
em primeiro lugar, a morte dos reis entre os povos da lor, continuidade”.10
Mesopotâmia. Os reis são figuras absolutamente sin- Para nos aproximarmos um pouco mais de nossa
gulares e especiais – intercessores situados a meio própria identidade cultural, cabe observar que, duran-
caminho entre os humanos mortais e os deuses imor- te boa parte da história dos judeus, assim como para a
tais. Em virtude de sua posição social e política, a morte civilização cristã, de que fazemos parte, a experiência
dos reis adquire um significado particular: eles são se- da morte foi também vivida na chave ritualística da
pultados com honrarias, seus cadáveres sepultados em passagem e da transposição para o além. Para os ju-
mausoléus faustosos, sua imagem conservada para deus - pelo menos para aqueles que acreditavam na
sempre nas estátuas postadas em templo e palácios, ressurreição após a morte -, bem como para os cris-
como registro perene de sua origem, ascendência e de tãos, a morte promovia o acesso para uma outra di-
sua importância para a vida comum do povo. mensão da vida, seja de eterno sofrimento e expiação
Já entre os antigos hindus, a grande personali- nos infernos, ou de bem aventurança no paraíso, do
dade não é nem o rei nem o herói. O indivíduo admirá- qual fomos expulsos pelo pecado original.
vel, cuja morte merece destaque e registro permanen- É por escrúpulo e sentimento religioso, e em
te é aquele que é capaz de negar-se a si mesmo, de expectativa da ressurreição que, durante muito tempo
apagar já em vida os traços individuais de sua existên- e quem sabe até os dias de hoje, cultivamos o hábi-
cia, recusando-se a satisfazer os dois mais poderosos to social de sepultar solenemente os corpos de nossos
mananciais da vida: o desejo de conservação e de re- defuntos. “Em decorrência disso, a tradição cristã
produção. Entre os hindus, a verdadeira virtude só pode estabeleceu que a morte era uma espécie de sono
9,10
Vernant, J-P. Mort grecque mort à deux faces. In: L’Individu, La Mort, L’Amour. Soi-Même et L’Autre en Grêce Ancienne. Paris:
Gallimard, 1982, p. 83.
17
Giacoia Junior O
profundo, mediado pela expectativa da ressurreição, organismo, a pulsão de morte, entendida como uma
quando as almas voltariam a habitar os corpos. Essa espécie de atavismo ou inércia biológica - a saber, uma
idéia introduziu uma nova percepção e poupou gera- tendência, inscrita na essência mesma de todo ser or-
ções ao longo de séculos da idéia aterradora do fim gânico para regredir ao estágio inorgânico de onde
definitivo.”11 proveio.
Dessa maneira, o próprio sentido de imortalida- Creio poder afirmar que a intuição predominante
de da alma se diferencia de acordo com as diversas para nós – e talvez sobretudo para vocês, profissio-
maneiras de integração e gestão simbólica da morte nais e futuros profissionais da saúde – é a da morte
pelas diferentes civilizações. Para os antigos gregos, vista principalmente como uma disfunção orgânica,
por exemplo, ela era, principalmente, a glória cantada como óbito e falecimento – portanto como alguma
de geração a geração pelos poetas, que fazia fulgurar coisa essencialmente negativa, como um não ser, um
na memória a lembrança da grande individualidade. mal a ser tratado, justamente como aquilo que não
Para os hindus, ela significava o avesso simétrico da deve acontecer e que lhes compete evitar, com todas
personalidade individual, ela era, antes, o despojamento as forças, algo a ser removido, suprimido. A essa ide-
do indivíduo, o reencontro redentor com o Absoluto, ologia clínica da morte pertence sua subtração do es-
no qual se abisma e dissolve tudo o que é singular e paço social das vivências domésticas, seu ocultamen-
pessoal. to no espaço cerrado das enfermarias, a sua retirada
Para os judeus, pelo menos durante parte de do campo de visibilidade e audição (quase já não mais
sua história, e também para nós cristãos, ela significa se emprega a expressão ‘grito de agonia’), seu encer-
a passagem para a vida eterna e verdadeira, prefe- ramento discreto e velado, na forma silenciosa da morte
rencialmente para a vida no jardim do Éden, em eter- hospitalar. Dessa experiência está ausente aquela an-
na contemplação e presença de Deus. Nesse sentido, tiga dimensão de sentido, que fazia da morte um ritual
pode-se afirmar que “o homem cristão deveria acre- de passagem, uma transição para o além, pranteada e
ditar que somente ao morrer iniciaria a verdadeira vida, exposta nas salas de visita.
assim os ritos fúnebres, o sermão e a missa faziam Os desenvolvimentos atuais das biotecnologias
parte de uma educação para enfrentar a morte, ou transtornaram e complicaram nossas antigas formas
por outra, incutir um determinado ideal de eternidade, sociais de percepção, pensamento e sentimento a res-
relacionado com as maneiras de viver, de se conduzir peito da relação de pertencimento mútuo entre vida e
na vida, incluindo a maneira certa de entender e acei- morte. Os notáveis progressos das ciências biomédicas
tar a morte.”12 proporcionam atualmente para a bioética um fértil
Ao nos aproximarmos de nossa conclusão, ca- campo de indagações, para as quais estamos muito
beria perguntar pelo sentido que atribuímos atualmen- longe de poder oferecer respostas amplamente com-
te à experiência existencial e antropológica da morte. partilhadas, como, por exemplo, a pergunta pelo senti-
Como é sabido, somos os herdeiros do Esclarecimen- do ético da exigência humanitária, ou da decisão clíni-
to científico, esse movimento que promoveu a racio- ca de deixar morrer.
nalização completa e a dessacralização integral de Ao lado disso, e num nível de complicação teó-
todas as esferas da cultura. De posse dessa herança rica e prática ainda mais elevado, as biotecnologias
cultural, nós temos também da morte uma vivência põem à disposição do fazer humano “novas possibili-
dessacralizada, leiga, sobretudo clínica - um modo de dades em matéria de procriação humana e animal (ex.
representação e aculturação que se desdobra pratica- congelamento de embriões), de fracionamento de or-
mente apenas no resgistro biológico. Mesmo para o ganismos (ex. enxertos), de transformação de orga-
fundador da Psicanálise, essa modalidade de saber que nismos (ex. animais transgênicos) fazendo surgir dile-
elaborou uma reflexão densa e profunda sobre a vida mas que não são mais apenas relativos ao direito de
e a morte, mesmo para Sigmund Freud, a morte foi transmitir vida e/ou de suprimi-la, mas que tocam ao
identificada, sobretudo com uma pulsão presente no direito de remodelá-la, de produzir seres vivos novos,
11
Fleck, E. C. D. Almas cristãs em corpos doentes – sensibilidade barroca nas reduces jesuítico-guaranis do século XVII .
In: Keil, I. E Tiburi, M. O Corpo Torturado. Porto Alegre: Ed. Escritos, 2004, p. 199.
12
Fleck, E. C. D. Almas cristãs em corpos doentes – sensibilidade barroca nas reduces jesuítico-guaranis do século
XVII. In: Keil, I. E Tiburi, M. O Corpo Torturado. Porto Alegre: Ed. Escritos, 2004, p. 216.
18
A visão da morte ao longo do tempo
e até mesmo de industrializar essa produção (com o mais a sobrevivência heróica na memória popular,
risco de marginalizar espécies naturais consideradas guardada para sempre pelo canto do poeta; não mais
obsoletas). O homem já se vê na obrigação de dirigir a sobrevida dos reis magníficos, ou das grandes per-
a evolução biológica, e capaz de corrigir os defeitos sonagens da história política dos povos, também não
de sua própria natureza.”13 mais a fusão com o Absoluto, ou a eterna bem aven-
Tais condições reconfiguram também, intro- turança no Paraíso, mas a sobrevida como reprodu-
duzindo-as num plano de sentido totalmente inédito, ção, virtualmente infinita, de artefatos técnicos do fa-
nossas antigas crenças e esperanças de imortalidade: zer humano. E, com isso, encerro essa comunicação
eles indicam que, para nós, a arcaica representação sem o efeito tranquilizador de uma conclusão positiva,
da morte, assim como o sempre presente desejo de mas abrindo para um novo horizonte de indagações
perpetuação da vida - a ela inevitavelmente associado urgentes: a que tipo de ética podemos e devemos re-
-, adquire hoje um contorno inusitado, digno de ser correr para a adequada compreensão e possível solu-
pensado em toda sua extensão e profundidade: não ção de tais problemas?
Giacoia Junior O. Death conceptions through the times . Medicina ( Ribeirão Preto) 2005; 38: 13-19.
Abstract: The goal of this article is to present some elements that exhibit the historic aspect of
the death experience, in a such a way that offers subject for a reflexion about the various meanings
the symbolic expression of death assume in funereal rituals, religious cults and artistic
manifestations in different cultures.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Schopenhauer A. Die welt als wille und vorstellung II (O mundo
como vontade e representação II). In: Sämtliche Werke. Frank-
Canto-Sperber M, ed. Dicionário de ética e filosofia moral. Verbe- furt/M: Suhrkamp: Ed. Wolfgang Frhr. Von Loehneysen;
te Vida e Morte. Trad. AM Ribeiro-Althoff et allii. São Leopoldo: 1986. Vol. II.
Editora da Unisinos; 2003. Vol. II, p. 748s.
Vernant J-P. L’individu, la mort, l’amour. soi-même et l’autre en
Keil IE, Tiburi M. O corpo torturado. Porto Alegre: Ed. Escritos; Grêce ancienne. Paris: Gallimard; 1982.
2004.
13
Dicionário de Ética e Filosofia Moral. Ed. Monique Canto-Sperber. Trad. Ana Maria Ribeiro-Althoff et allii. São Leopoldo: Editora da
Unisinos, 2003; verbete Vida e Morte, volume II, p. 748s.
19