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ARRUDA, R. K.

“A pergunta que antecede a fala: um procedimento para o ator


no cinema”. São Paulo: Universidade de São Paulo; Bolsista da FAPESP
realizando Doutorado; Prof. Dr. Armando Sergio da Silva. Atriz e Pedagoga.

RESUMO

Palavras-chave: Ator. Cinema. Meisner. Memorização. Fala Interna.

O objetivo deste texto é revelar a perspectiva de o ator fixar o foco em um


elemento interno (neste caso “uma pergunta”), enquanto uma ação explode
fresca e não planejada — mesmo se considerando a rigidez de um roteiro de
cinema. Para isso, lanço mão da descrição de um procedimento elaborado
durante as filmagens do filme Medo de Sangue, em fevereiro de 2011, em
Curitiba, sob a direção de Luciano Coelho. Trata-se de uma intersecção entre o
exercício da “repetição”, de Sanford Meisner (proposto durante a preparação
do filme, que trouxe consequências para a prática artística e pedagógica da
autora) e a Memorização Através da Escrita, de François Khan, desdobrado em
pesquisa de mestrado no Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do
Ator (CEPECA), na USP.

ABSTRACT

Keywords: Actor. Cinema. Meisner. Memorization. Internal Speeach.

The aim of this text is to reveal the actor’s perspective to fix the focus in an
internal element (in this case “a question”) while an action explodes fresh and
unplaned even considering the rigidity of a cinema text. With this goal I take
hold of a description of a proceeding set up during the making up of the picture
“Fear of Blood” in february 2011, in Curitiba, under the direction of Luciano
Coelho. It is about an intersection between the exercise of “repetition” of
Sanford Meisner (proposed during the movies preparation, which brought up
consequences to the author’s artistic and pedagogical praxis), and the
“Memorization Through Writing”, of Francis Khan, given sequence through an
MSc research project in the Centro de Pesquisa em Experimentação Cênica do
Ator (CEPECA) na USP.

Dias antes de começar as filmagens de Medo de Sangue, me encontrei com


Luciano Coelho e Álvaro Garutti em São Paulo1. Nosso primeiro ensaio
começou com um exercício simples: Álvaro e eu, ator e atriz, frente a frente,
lançando sentenças que, por sua vez, eram repetidas, pelo outro, em forma de
pergunta. Por exemplo, eu dizia: “Sua barba é bonita”. Ele me perguntava:
“Minha barba é bonita?” Eu repetia: “Sua barba é bonita!”. Ao chegarmos a
Curitiba para a preparação que antecederia as filmagens, novamente aquele
exercício — desta vez com variações: podíamos nos deslocar pelo espaço e
usávamos intenções (instruídas por Marcelo Munhoz, preparador de elenco do
filme2.

1
Luciano Coelho é diretor de cinema formado pela “Escuela Internacional de Cine y TV” de San
Antonio de Los Baños, Cuba, e coordenador do Projeto Olho Vivo, em Curitiba. Álvaro Garutti é
ator paulistano que trabalha com teatro e cinema.
2
Marcelo Munhoz desenvolve pesquisa em pedagogia do ator (Projeto Olho Vivo, Curitiba).

1
Fiquei intrigada ao perceber que, a cada repetição, as frases suscitavam
diferentes ações; ao repetir a pergunta, já era outra a intenção do ator. Cada
repetição evocava, ora a provocação, ora a ironia, desprezo, súplica. Cada
“Sua barba é bonita!” implicava outra entonação e a ação física não planejada,
que explodia. A estrutura fixa era “a frase” — que se repetia, mas a música da
voz, a manifestação física e o repertório (que começava a ser construído)
implicavam um imaginário plástico. A relação intersubjetiva entre um homem e
uma mulher (que estava em jogo) se transformava.

É comum a dificuldade de falar o texto-dado pelo autor; este que se constitui


por uma série de reelaborações e cortes, cujos materiais acumulam uma
espécie de subtexto subjacente ao qual o ator não tem acesso. Vendo a “ponta
do iceberg” (de todo um processo de construção imaginária e simbólica que o
texto mais esconde que revela), o ator não tem outra coisa a fazer se não
constituir um outro imaginário. No entanto, o exercício da “repetição” (como é
chamado este procedimento no “método Meisner”) faz nascer diferentes ações
subjacentes à estrutura verbal — além de enquadrar este ator na linguagem
cinematográfica que deve evocar uma pessoa viva, que quer, age, se
relaciona, se afeta, entra em conflito. Segundo Marcelo Munhoz:

É a própria base de tentar construir algo que se chama de procedimento naturalista.


Magicamente posiciona a gente nesse lugar. Porque é o procedimento que desmonta
tudo aquilo, quando ele é levado até o fim, desmonta o rastro do que é “interpretação”,
“representação”. Te coloca naquele lugar que é bem próprio do cinema, que é estar
diante de uma pessoa e não de um ator3.

O arranjo do ator é composto tanto por elementos fixos quanto móveis


(circulantes, fluidos). É isto que a “repetição” de Meisner implica: a re-
formulação imaginária se abre, não é mais fixa (fica solta); e o material fixo é a
frase (externa) — e também esta que traduzimos por “intenção” ou “objetivo”
(interna). Ou seja, existe a possibilidade de se introduzir, previamente, um
material (nomeado) — a intenção, objetivo ou fala interna — para provocar um
outro, fresco (que brota na hora): a “ação interna”. Quanto mais complexa a
cadeia de palavras dadas pelo autor, mais difícil é provocar este frescor, de
maneira a fazer jus a esta complexidade.

Para isto, lançamos mão do procedimento difundido por François Khan, ator da
Fondazione Pontedera Teatro: a Memorização Através da Escrita4. Neste, o
texto-dado e tomado como fala externa e, em vez de ser “decorado”, é
memorizado pela repetição da sua escrita. Ou seja, o ator reescreve o
manuscrito inúmeras vezes até a memorização se completar. Poderíamos dizer
que um dos benefícios é evitar que se condicione a fala a uma entonação pré-
estabelecida (que o ato de decorar implica). No entanto, mesmo com a
Memorização Através da Escrita, o ator tende a presentificar a entonação do
seu repertório (que retorna) — mesmo quando fala, pela primeira vez, diante do
outro, envolvido com esta “outra cadeia” das ações que surgem na hora.

3
Entrevista concedida à autora em 25/05/2011.
4
Ver: KHAN, François. Reflexões sobre a prática da memória no ofício do ator de teatro.
Revista Sala Preta, ECA-USP, 2002 – v. 9, 2009.

2
No entanto, há um ganho incontestável. Durante a memorização ele escuta —
o texto — e a sua imaginação alça voo. As associações se instalam e “roubam
o foco”; um universo imaginário (fluido, plástico) se abre, rico de associações;
relações intersubjetivas são constituídas; o ator passa a ter “a vontade de falar
o texto” (porque há uma série de imagens internas que circulam articuladas às
falas, fundamentando uma espécie de pulsão, desejo de “agir com o texto”). As
palavras voam, escapam, elas “estão loucas para sair”. Em cena, o texto “sai” e
há a surpresa (até mesmo o susto) diante da força da ação subjacente à
palavra.

Em pesquisa, propus um desdobramento: memorizar não apenas o texto-dado,


mas a fala interna — para que o ator possa improvisar com um encadeamento
interno complexo5. Durante a montagem de uma cena de Heiner Müller —
“Esperando Valmont”6 — eu, que tive formação em teatro físico, sentia palavras
latejando (internamente) enquanto um repertório físico constituído retornava,
encontrando o seu lugar. Na medida em que a palavra (por exemplo) “Idiota”
ecoava; o foco se situava nesta palavra (que ninguém ouvia, só eu)7 e
“Valmont” (a primeira fala do texto de Müller) escapava: ela brotava da boca8.
Junto, a ação física já elaborada em “jogo de absorção”, aos moldes de um
treinamento barbiano9. Partituras físicas, compostas por atividades de mimese
ou “atividades físicas” de lançar, empurrar e puxar10, em contato com o texto-
dado, haviam se transformado em ações físicas11 — que, por sua vez,
evocavam um imaginário em torno de relações ficcionais (e, absorvidas,
ganhavam densidade)12. Criou-se, assim, um repertório de ações físicas que
retornou enquanto o foco se concentrava na “fala interna” (esta criada de
maneira confidencial, segredada). Quando “Idiota!’ se instala, a ação física já
elaborada aparece no corpo — como se ajudasse a conduzir “a libido” que a
palavra articula.

5
Ver ARRUDA, R. K. A função do manuscrito nas artes cênicas: testemunho e reflexões de
uma pesquisatriz. Anais do X Congresso Internacional de Crítica Genética: POA, 2010.
6
Com o texto Quartett, de Heiner Müller.
7
Trata-se da imagem acústica de Sausurre, ecoando internamente como quando recitamos em
silêncio um poema ou presentificamos mentalmente a letra de uma música. Estes “sons” são
as imagens acústicas – os significantes. Ver SAUSURRE, F. Curso de Linguística Geral. São
Paulo: Cultrix, 2006.
8
Ver “Jogo e escrita no trabalho do ator com o texto dramático: relato de uma experiência em
diálogo com a tradição” em SILVA, A. (org). CEPECA, uma oficina de pesquisAtores. São
Paulo: Associação Amigos da Praça, 2009.
9
Trata-se da técnica de partiturização física difundida pelos atores do Odin Teatret.
10
Me refiro à modalidade barbiana, que implica a abstração do corpo para que um sentido seja
revelado a posteriori. As ações físicas destas partituras não evocam a ação ficcional. Ver “A
hipótese de uma estrutura na diversidade dos jogos de criação atoral”¨. Araraquara: Revista de
Cultura Artística, ano 4, vol. 1.
11
Me refiro à ação física tal como aparece em Grotowski: com a ação intersubjetiva, relação,
ficção. Ver GROTOWSKI, J. Sobre o Método das Ações Físicas. Palestra no Festival de Teatro
de Santo Arcangelo (Itália) em junho de 1988.
12
A “absorção” é operação frequente no teatro físico: a ação física diminui (é “absorvida”) até
restar um traço, vestígio que sustenta o corpo e lhe empresta densidade, mistério, dilatação. O
termo absorção se encontra em Decroux e dilatação em Eugênio Barba.

3
Vê-se o que Stanislavski chama “psicofísico”: uma integração, uma impressão
digital (SILVA, 2010)13. No entanto, o elemento fixo é a palavra (interna) —
porque memorizada (pela escrita). Não “uma” fala, mas a sucessão, a “cadeia”
— que sucessivamente interrompe a enunciação (externa), instalando, a cada
momento, nova ação.

Foi com este princípio que “a pergunta” do exercício “repetição” (de Meisner
reelaborado por Marcelo Munhoz e Luciano Coelho) foi posta, pela autora, em
Memorização Através da Escrita. Em Medo de Sangue a fala inteira foi
elaborada assim: 1. memoriza-se pela repetição da escrita as frases em
cadeia, cada qual com a pergunta que a antecede (em vez de apenas “Tem
uma sacada na minha casa!”, escreve-se “Tem uma sacada na minha casa?
Tem uma sacada na minha casa!”); 2. concentra-se o foco na “pergunta
interna” que antecede a fala (e não é enunciada); 3. a fala explode como
resposta, conclusão, escolha repentina, arremate de um pensamento.

Esta “memorização da pergunta” — encadeada ao texto-dado — foi


experimentada em criação de espetáculo na USP (em que me coloco como
atriz)14 e curso ministrado na SP Escola de Teatro, em São Paulo. É visível:
colocar uma pergunta antes da frase — e memorizar o encadeamento — é agir
sobre o texto, a fala, o corpo, o tempo; é provocar a ruptura; fazer pausa; um
substituir de ações. A pergunta estabelece uma ação, no silêncio, anterior à
resposta implicada na fala externa; se cria um tempo precedente a cada fala,
preenchido por uma ação a mais; se rompe com a cadeia que seria contínua e
daria impressão de texto decorado. A riqueza da fala está no revezamento
destas ações que interrompem a linearidade da enunciação — se intrometendo
no silêncio (porque não são enunciadas) e dando lugar à fala externa que se
estabelece como impulso porque substitui a primeira15.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARRUDA, R. K. Apropriação de Texto: Um Jogo de Imagens. Dissertação de


Mestrado. São Paulo: ECA-USP, 2009.
____________. Jogo e escrita no trabalho com o texto dramático: Relato de
uma experiência em diálogo com a tradição. In: A. S. SILVA (org) CEPECA:
Uma Oficina de PesquisAtores. São Paulo: Associação dos Amigos da Praça,
pp. 214-226, 2010.

13
O termo impressão digital, proposto por Armando Silva, implica a resultante de um arranjo de
anteparos (os materiais do ator), no corpo, de maneira contingente: “Cada um reage de um
jeito aos anteparos” (SILVA, 2009). Ver ARRUDA, R. K. Anteparo e impressão digital, a
hipótese de um par fundamental. Anais do VI Congresso da ABRACE. São Paulo: ECA – USP,
2010 e SILVA, A. S. Interpretação: Uma Oficina da Essência. In: A. S. SILVA (org.) CEPECA:
Uma Oficina de PesquisAtores. São Paulo: Associação dos Amigos da Praça, pp. 28-130,
2010.
14
Trata-se do espetáculo “Minha Vida”, baseado no romance homônimo de Nelson Rodrigues
(como Suzana Flag), que está sendo criado no CEPECA-USP.
15
O princípio da troca como propulsora do impulso foi uma das conclusões da pesquisa de
mestrado desenvolvida na USP e orientada pelo Prof. Dr. Armando Sérgio da Silva. Ver
ARRUDA, R. K. Apropriação de Texto: Um Jogo de Imagens. Dissertação de mestrado, São
Paulo: ECA-USP, 2009 e ARRUDA, R. K. Subpartitura e texto-dado: a troca para a inscrição do
impulso. Anais da V Reunião Científica da ABRACE, São Paulo: ECA – USP, 2009.

4
____________. Subpartitura e texto-dado: a troca para a inscrição do
impulso. Anais da V Reunião Científica da ABRACE, São Paulo: ECA – USP,
2009.
____________. Anteparo e impressão digital, a hipótese de um par
fundamental. Anais do VI Congresso da ABRACE. São Paulo: ECA – USP,
2010.
____________. A função do manuscrito nas artes cênicas: testemunho e
reflexões de uma pesquisatriz. Anais do X Congresso Internacional de Crítica
Genética: POA, 2010.
____________. A hipótese de uma estrutura na diversidade dos jogos de
criação atoral. Araraquara: Revista de Cultura Artística, ano 4, vol. 1.
BARBA, E. A Canoa de Papel: Tratado de Antropologia Teatral. São Paulo:
Hucitec, 1994.
CABAS, A. G. Curso e discurso na obra de Jacques Lacan. São Paulo:
Centauro Ed., 2005.
GROTOWSKI, J. Sobre o Método das Ações Físicas. Palestra no Festival de
Teatro de Santo Arcangelo (Itália) em junho de 1988.
<http://www.grupotempo.com.br/tex_grot.html>.
KHAN, François. Reflexões sobre a prática da memória no ofício do ator de
teatro. Revista Sala Preta, ECA-USP, 2002 – v. 9, 2009.
LACAN, J. O Seminário. Livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. SAUSURRE, F. Curso de
Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 43.
MEISNER, Sanford. On Acting. New York: Random House. Postlewait,
Thomas, 1998.
SILVA, A. S. Interpretação: Uma Oficina da Essência. In: A. S. SILVA (org.)
CEPECA: Uma Oficina de PesquisAtores. São Paulo: Associação dos Amigos
da Praça, pp. 28-130, 2010.

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