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SUMÁRIO ISBN 978-85-463-0351-9


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Representações do Tempo
No Jornalismo de
Mudanças Climáticas
E Danos Ambientais

Simão Farias Almeida

Ideia – João Pessoa – 2018

SUMÁRIO ISBN 978-85-463-0351-9


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Todos os direitos e responsabilidades


sobre os textos são do autor.

Diagramação/Capa
Magno Nicolau

Ilustração da capa
Arquivo da editora.

Revisão
Ana Lúcia de Sena Cavalcante

Ficha Catalográfica elaborada pela Bibliotecária


Gilvanedja Mendes, CRB 15/810

A447r Almeida, Simão Farias.


Representações do tempo no jornalismo de mudanças
climáticas e danos ambientais / Simão Farias Almeida. -
João Pessoa: Ideia, 2018.
104p.
ISBN 978-85-463-0351-9
1. Jornalismo ambiental. 2. Representações – tempo.
3. Mudanças Climáticas. 4. Danos Ambientais. I. Título

CDU 070:504

EDITORA
www.ideiaeditora.com.br
(83) 3222-5986

SUMÁRIO ISBN 978-85-463-0351-9


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Sumário

Prefácio, 5

Apresentação, 8

Tempo de (re)começar, 12

Tempo de refletir
A adaptação climática em tempo de mitigação: uma
leitura pós-colonial de livros-reportagem, 15

A história e o futuro de um ecossistema em


reportagem da Veja sobre o rompimento de
barragem em Mariana, 79

Tempo de seguir o diálogo, 99

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Prefácio

O livro Representações do tempo no jorna-


lismo de mudanças climáticas e de danos ambi-
entais explora uma questão fundamental do nosso
tempo que vem ganhando cada vez mais espaço
nos fóruns internacionais. Atravessamos uma gra-
ve crise socioambiental decorrente das ações hu-
manas sobre a natureza, acelerada pelo aqueci-
mento global, e com consequências diretas sobre a
qualidade de vida de todos os habitantes do plane-
ta. A imprensa tem uma função decisiva no sentido
de minimizar os impactos sobre o meio ambiente,
produzindo e difundindo ações e modelos susten-
táveis de desenvolvimento.
Ao analisar três livros-reportagem, escritos
por jornalistas renomados, e a cobertura da tragé-
dia de Mariana (MG), sob a ótica dos impactos so-
cioambientais, na revista Veja, o autor traz à tona
alguns problemas e desafios da cobertura em meio
ambiente, assinalando, por outro lado, as possíveis
estratégias no sentido de agregar valor às notícias.
Na era das tecnologias digitais, a produção e a di-
fusão das notícias têm operado no “limite extremo
da velocidade”. O fator tempo reduz drasticamente
a capacidade jornalística de imprimir profundidade
aos fatos, de criar espaços de diálogo entre os mais

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diversos setores envolvidos com as questões ambi-


entais.
O autor assinala a importância das grandes
reportagens e do formato livro-reportagem, na con-
textualização das notícias ambientais, embasado
na premissa de que o “fato jornalístico é permeado
de história, atualidade e perspectivas futuras”. A
capacidade interpretativa da reportagem contribui
para esclarecer os “contextos, as causas e as con-
sequências”. Além de fatores temporais, a produ-
ção de notícias em meio ambiente também tem si-
do prejudicada pelo uso excessivo de fontes oficiais
em detrimento daqueles sujeitos que são direta-
mente afetados pelos problemas ambientais, em
geral, as vítimas das tragédias. O emprego de múl-
tiplas fontes de informação estimula o debate, a
diversidade de opiniões, os interesses contraditó-
rios, a busca de consensos etc.
Os fatos noticiados no passado podem indi-
car as causas dos fatos ocorridos no presente (o
fato em si) e assim sucessivamente. É no movimen-
to de retroalimentação entre o passado e o presente
que se amplia a predisposição jornalística de ante-
ver fatos, de fazer projeções, de alertar para possí-
veis desastres e tragédias que possam ocorrer no
futuro, de trabalhar mais preventivamente. A práti-
ca do jornalismo preventivo na cobertura das ques-
tões ambientais é uma abordagem ainda pouco ex-
plorada nos estudos de jornalismo e para a qual
não se tem dado a devida atenção. O jornalismo
ambiental “retrata apenas os impactos na natureza
esquecendo as causas do passado que poderiam
evitar futuras tragédias” [ver Tempo de (re)come-
çar].
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O Caso Mariana (MG) é um dos exemplos


mais notáveis e esclarecedores de uma tragédia
anunciada. Se a imprensa tivesse denunciado pre-
viamente as irregularidades da empresa Samarco
na extração de minério na região, é possível que
esse desastre de proporções gigantescas, teria sido
evitado. A introdução de novas variáveis (a atenção
aos temas emergentes) ao noticiário ambiental fa-
vorece a inserção de múltiplas fontes de informa-
ção.
Simão Farias Almeida traz mais uma impor-
tante contribuição aos estudos do jornalismo. Este
livro representa um esforço no sentido de atribuir
valor às notícias em meio ambiente, apontando,
para a necessidade de se resgatar antigos elemen-
tos inerentes ao campo, como a reportagem, o li-
vro-reportagem, o jornalismo interpretativo e a
busca sempre incessante pelas múltiplas fontes de
informação.
Ao assinalar os principais problemas e desa-
fios, e enumerar as possíveis estratégias, o autor
chama a atenção sobre os estudos e demandas no
jornalismo, num momento em que enfrentamos
uma grave crise de identidade, impulsionada pelo
poder desestruturador das tecnologias digitais.

Schirley Luft
Professora do Curso de Comunicação
Social– Jornalismo e Pesquisadora do Grupo de Pesquisa
Mídia, conhecimento e meio ambiente: olhares da Amazônia
da Universidade Federal de Roraima (UFRR)

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Apresentação

As mudanças climáticas são um desafio para


os jornalistas que precisam incluir no cotidiano a
reflexão sobre suas práticas. Um olhar cuidadoso é
uma exigência cada vez maior nesses tempos difí-
ceis no qual a lógica do mercado penetra na alma
humana gerando cegueira para as possibilidades
de construção de um mundo com justiça socioam-
biental.
Representações do tempo no jornalismo
de mudanças climáticas e de danos ambientais,
do Prof. Dr. Simão Farias Almeida, da Universidade
Federal de Roraima, oferece aos jornalistas, pes-
quisadores e professores de jornalismo, assim co-
mo aos estudantes uma oportunidade para pensar
a profissão e compreender a necessidade de adotar
um olhar mais abrangente que contemple a diver-
sidade de saberes, sem ficar refém de fontes oriun-
das da ciência, do governo, das instituições.
É necessário ouvir o ribeirinho, o indígena, a
dona de casa, o agricultor, o morador da favela, a
vítima do desastre. É preciso contextualizar, bus-
car as raízes do problema, seus reflexos no presen-
te e as consequências para o futuro. É urgente co-
brar políticas públicas de mitigação das mudanças
climáticas e agir na perspectiva da justiça social,

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pois os mais vulneráveis sempre vão ser os mais


pobres.
Neste livro o autor investiga as representa-
ções de tempo na cobertura ambiental de danos e
de mudanças climáticas, sinalizando a urgência
das medidas de mitigação que não devem ser em-
purradas para o futuro. Para realizar a tarefa ana-
lisa a cobertura sobre o aquecimento global através
dos livros-reportagem Caiu do céu: o promissor
negócio do aquecimento global (2014) de McKen-
zie Funk; A espiral da morte: como a humanida-
de alterou a máquina do clima (2016), de Claudio
Angelo e Diário do clima (2012), de Sônia Bridi.
Inclui na análise a grande reportagem sobre o
rompimento da barragem de rejeitos em Mariana
(MG), O mapa da destruição, publicada na revista
Veja em 2 de dezembro de 2015, tendo como auto-
res Pieter Zalis (editor), Jonne Roriz (repórter foto-
gráfico) e Fernanda Allegretti (repórter). Nesta re-
portagem a discussão teórico-crítica é baseada nos
estudos de Wilson Gomes e Maurice Mouillaud.
Adotando a perspectiva pós-colonial para
empreender a análise, Simão aciona um referencial
teórico consistente que permite aos leitores perce-
berem as lacunas da narrativa jornalística quando
segue o enfoque econômico dos especialistas de
países detentores de tecnologias ambientais. A
análise também segue os parâmetros do livro-
reportagem, que, conforme Edvaldo Pereira Lima
deve valorizar mais as fontes não oficiais. Assim, as
vítimas das mudanças climáticas e outros desas-
tres terão visibilidade nas narrativas das grandes
reportagens e também nos livros-reportagem po-
dendo convocar os leitores a perceberem os pro-
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blemas ambientas por outro ângulo que é o ângulo


dos marginalizados pelo capitalismo.
Nem sempre o olhar da ciência, dos gover-
nos e outras instituições terá empatia com aqueles
que moram em áreas de risco. Por que foram morar
nesses locais? Avaliam assim como se isso fosse
uma escolha. Soluções para esses casos sempre
são remetidas para o futuro, como se o presente
não exigisse medidas impactantes para garantir a
cidadania ambiental de todos.
O jornalismo, como aponta Simão Farias Al-
meida, tem o potencial de contribuir na construção
da cidadania ambiental dando voz às vitimas e aos
pobres do mundo, mas para tanto precisa assumir
o paradigma socioambiental. Lembrando a encícli-
ca Laudato Si, do Papa Francisco, o autor alerta
que não haverá cidadania ambiental nem para os
pobres nem para os ricos enquanto o desprezo pela
casa comum alimentar o processo de aquecimento
global.
Na medida em que se dedica à analise dos
textos escolhidos o autor destaca aspectos positi-
vos e fragilidades, e deixa claro seu posicionamento
favorável à mitigação, que exige uma “democracia
planetária da cidadania ambiental compartilhada”.
A adaptação marca as diferenças econômicas e so-
ciais, privilegia as nações ricas - as maiores res-
ponsáveis pelo aquecimento do planeta – e aposta
nas soluções ecotecnocráticas, que por sua vez fa-
vorecem o capital. Em relação à reportagem da re-
vista Veja o autor chama a atenção para a falta de
contextualização das causas do desastre.
No inicio da obra, Simão afirma que o jor-
nalismo interpretativo carece de paradigma analíti-
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co. O complemento vem no final, quando aciona


Wilson Bueno que defende um jornalismo ambien-
tal interpretativo que “contextualize as repercus-
sões sociais das descobertas e das análises”.
Representações do tempo no jornalismo
de mudanças climáticas e de danos ambientais
chega num momento em que mais do que nunca
precisamos pautar o jornalismo por uma ética do
cuidado amoroso. A crise socioambiental exige que
o jornalismo assuma seu protagonismo para a
transformação da sociedade tendo em vista a sus-
tentabilidade da vida no Planeta. Este livro oferece
ao leitor a oportunidade para refletir sobre a práti-
ca profissional frente aos problemas ambientais.
Nas palavras de Serge Moscovici:“[...] o que preci-
samos, de agora em diante, é construir nossa soci-
edade e nossa história a partir da natureza”.

Ilza Maria Tourinho Girardi


Professora titular do Departamento de Comunicação
da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação
da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS).

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Tempo de (re)começar

O tempo permeia o jornalismo de sentidos de


presença e de testemunho, forjando o presente dos
fatos mesmo estes acontecendo no dia anterior,
num passado recente ou remoto. As marcas tem-
porais medem a relação dos meios e dos jornalistas
com esses fatos. “O dia de ontem”, “Nesta manhã”,
“Iremos acompanhar as repercussões [ou os des-
dobramentos]” são expressões reveladoras da posi-
ção do profissional, simulando sua proximidade,
abrangência, acuidade técnica e discursiva. Os
discursos jornalísticos podem insinuar a conclusão
ou o prolongamento dos acontecimentos, e, desta
forma, não escolhem apenas retratar o passado
como novidade e atualidade, como também esten-
dem a cobertura às projeções e dimensões futuras.
O jornalismo ambiental possui particularida-
des no tratamento da realidade: retrata apenas os
impactos na natureza esquecendo as causas do
passado que poderiam evitar futuras tragédias ou
delineia um panorama da atualidade dos fatos se-
guido de perspectivas da sua regularidade e do seu
prolongamento nos espaços naturais. Dada a
emergência das crises ecológicas e sociais no sécu-
lo XXI, a angulação jornalística não deve limitar os
discursos factuais no relato sobre o “dia anterior”.
O viés interpretativo contribui ao atentar para os

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contextos, as causas e as consequências de modo


que determinado desastre não se repita.
O propósito deste livro é investigar as repre-
sentações de tempo na cobertura ambiental de da-
nos e de mudanças climáticas, tentando demons-
trar o futuro enquanto marca temporal capaz de
forçar o presente a rever suas urgências sem adiá-
las a médio e longo prazo. A devastação ambiental
requer esse tempo de soluções calculadas em rela-
ção aos prejuízos futuros.
Analisaremos a cobertura dos livros-
reportagem Caiu do céu: o promissor negócio do
aquecimento global (2014), A espiral da morte:
como a humanidade alterou a máquina do clima
(2016) e Diário do clima (2012) acerca do aqueci-
mento global, e da grande reportagem O mapa da
destruição (2015) publicada na revista Veja sobre
o rompimento da barragem de rejeitos em Mariana
(MG)1. O construto crítico será mediado pelas pers-
pectivas pós-coloniais com a intenção de demarcar
e agenciar as maiores vítimas da devastação da na-
tureza. Deste modo, as representações do tempo e
as dimensões ecológicas e sociais das catástrofes
vão ser compreendidas por meio dos discursos de
grupos minoritários atrelados ao papel de conven-
cer os majoritários sobre a resolução de problemas
e conflitos entre o homem e o meio ambiente.

1
A ordem de análise considera primeiro os gêneros livro-reportagem e
grande reportagem e segundo a angulação discursiva de vítimas dos
danos ambientais e das mudanças climáticas, prejudicada nas narrativas
Caiu do céu: o promissor negócio do aquecimento global e A espiral da
morte: como a humanidade alterou a máquina do clima.

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Os estudos pós-coloniais oferecem paradig-


mas convergentes à cidadania ambiental de todos
os seres humanos e não humanos. Esperamos ofe-
recer subsídios para compreender que as urgências
do nosso tempo interpelam o futuro a se antecipar
devido às crises humanitárias e ecológicas cujos
sentidos permeiam entre si. Boa leitura!

Simão Farias Almeida

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Tempo de refletir
A adaptação climática em
tempo de mitigação:
uma leitura pós-colonial de
livros-reportagem
O tempo no jornalismo, a mitigação e a cida-
dania ambiental

O debate sobre as mudanças climáticas não


pode ser vítima da crise de pensamento devido à
inércia diante de seus efeitos no presente e no
futuro próximo. A adaptação e a mitigação devem
ser consideradas soluções opostas em um processo
de responsabilidade ambiental e social. A primeira
implica em desenvolvimento de projetos econômi-
cos e científicos necessários a reduzir os impactos
dessas mudanças na comunidade planetária; a
segunda tem a capacidade de reunir todas as
sociedades e comunidades regionais, nacionais e
globais em torno da alteração de comportamentos
poluidores e destrutivos por meio de soluções sus-
tentáveis. David Archer e Stefan Rahmstorf (2010,

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p.188) apontam que a mitigação de mudanças de


comportamento depende de negociação política e
deve ser esgotada para então se pensar a adapta-
ção dos países e da humanidade às mudanças
climáticas. A problemática se institui ao reconhecer
os modelos adaptativos, viáveis economicamente
aos países desenvolvidos e suas elites econômicas,
como a saída mais cabível em relação às urgências.
Deste modo, a crise de pensamento relaciona-se ao
problema de compreensão do tempo comum atual
e do porvir.
A representação do tempo nas narrativas
jornalísticas está atrelada à cobertura dos aconte-
cimentos em determinados contextos e épocas.
Adriano Duarte Rodrigues (in MOUILLAUD; POR-
TO, 2002, p.230) defende a capacidade da mídia
em neutralizar as marcas enunciativas de tempo,
lugar e pessoa relacionadas com o predomínio da
referencialidade e a estratégia universalizante de
seu próprio discurso. Assim, os meios forjam o dis-
curso do presente mesmo tratando de fatos ocorri-
dos no dia anterior, num passado recente ou remo-
to. O futuro desestabiliza esta operação e incide na
ampliação do tratamento factual além do “aqui e
agora”. Wilson Gomes (2009, p.32) aponta esta
problemática de angulação através da qual as
perspectivas também cobram discursos apesar da
prioridade dada aos panoramas históricos e da
atualidade:

De um lado, há a ideia de diferença entre o tempo


do fato e o tempo da narração. Neste caso, a dife-
rença é aparente; o fato é lançado ao passado,
porque este é reconhecidamente o campo daquilo

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que não está ao nosso alcance, do irrevogável.


Mesmo porque se pode falar de fatos presentes –
que, ainda que não sejam narrados, podem ser
testemunhados. Por outro lado, há a diferença en-
tre o tempo do fato e o tempo das dimensões e
elementos que o geraram na rede de causalidade.

É nesse “tempo das dimensões” que a


cobertura “dribla” o propósito de recorte do fato já
dado e muitas vezes retratado como finalizado e
“irrevogável”, assim submetido ao campo das certe-
zas e crivado de realidade para projetar a atuali-
dade e suas causas no tempo vindouro. Wilson
Gomes (2009, p.16) ao discutir uma teoria do fato
jornalístico aponta o descrédito da ideia do dado
definitivo e independente da angulação subjetiva;
ao contrário, pela descrição factual podem transi-
tar opiniões, desejos, súplicas (GOMES, 2009,
p.32). Ao questionar as ideias de objetividade e
factualidade permanentes na relação com o passa-
do e o presente, o jornalismo pode assumir as
subjetividades referentes também ao futuro. Por
outro lado, o porvir tem a possibilidade de confron-
tar o que Maurice Mouillaud (2002, p.79) chama de
“trama homogênea de uma narrativa”, de modo a
marcar seu espaço nas sequências descontínuas
da história. É neste ligamento delineado também
por brechas temporais que o futuro pode ter
aspectos factuais além das projeções e subje-
tividades.
A cobertura de mudanças climáticas precisa
se enredar nas narrativas subjetivas além do trata-
mento objetivo a partir do confronto entre a
adaptação excludente dos pobres e a mitigação
possível de incluir os menos favorecidos economi-

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ca-mente por meio de projetos comunitários


sustentáveis. O tempo atual e vindouro do aque-
cimento global deve ser visto como o momento da
cidadania ambiental.
Segundo Enrique Leff (2009, p.317), nas
unidades ambientais se articulam complemen-
taridades e incompatibilidades de “temporalidades
diferenciadas dos processos geográficos, ecológicos,
econômicos, tecnológicos, políticos e culturais”, de
circulação do capital e da inovação, difusão e apro-
priação de tecnologias ambientais, da evolução
biológica e da apropriação cultural da natureza. As
comunidades tradicionais das florestas e dos de-
mais ecossistemas terrestres adotam a respon-
sabilidade da mitigação através de práticas susten-
táveis, contrapondo-se aos interesses financeiros
dos lucros oportunistas da adaptação às mudanças
climáticas.
O jornalismo contribui com sua parcela em
favor da cidadania ecológica por meio da cobertura
estendida em relação ao fato histórico, do dia ante-
rior e imediato. Os teóricos da mídia ambiental
Richard Maxwell e Toby Miller (2012, p.140) defen-
dem que a “Green citizenship transcend
conventional political economic space and time,
extending beyond the here and now toward a
globally sustainable ecology”2. O propósito susten-
tável e cidadão permanente e prolongado ao futuro
inclui a “environmental citizenship” [cidadania
ambiental] dos projetos institucionais e a

2
“Cidadania verde transcende o tempo e o espaço econômico político
convencional, estendendo além do aqui e agora em direção a uma
ecologia globalmente sustentável” (tradução livre nossa).

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”sustainability citizenship” [sustentabilidade


cidadã] dos ativistas contra a “resistance
citizenship” [resistência à cidadania]3 dos políticos
burocratas (John Barry apud MAXWELL; MILLER,
2012, p.8), estes últimos mais atrelados a modelos
economicistas de adaptação climática.
Para Maxwell e Miller (2012, p.138), “Envi-
ronmental justice and sustainability crossed lines
of class, race, gender, interregional, and intergene-
rational difference”4. Daí a cidadania ecológica es-
tar mais relacionada à mitigação do que à adapta-
ção. Quem luta contra o tráfico de animais, por
exemplo, não pode se desinteressar dos pobres,
conforme sinaliza o Papa Francisco (2015, p.75) no
parágrafo 91 de sua encíclica ambiental Laudato
Si’. Segundo ele, no parágrafo 139 da mesma en-
cíclica,

Não há duas crises separadas: uma ambiental e


outra social; mas uma única e complexa crise so-
cioambiental. As diretrizes para a solução reque-
rem uma abordagem integral para combater a po-
breza, devolver a dignidade aos excluídos e, si-
multaneamente cuidar da natureza (PAPA FRAN-
CISCO, 2015, p.114).

Os pobres e a natureza têm em comum o


estado de subjugação imposto pela economia
atrelado ao desenvolvimento do capital. A solução,
de fato, é garantir a subsistência e a preservação

3
Traduções livres nossas.
4
“Justiça ambiental e sustentabilidade cruzaram as fronteiras de
diferenças de classe, raça, gênero, interregionais e entre gerações”
(tradução livre nossa).

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através da sustentabilidade socioambiental. Os


estudos pós-coloniais aplicados ao meio ambiente
somam forças a esses propósitos questionando
modelos paradigmáticos tradicionalmente exclu-
dentes e oferecendo assertivas teóricas e críticas a
partir das quais legitimam a cidadania ambiental.
Esses estudos usam o conceito de agência
com o intuito de legitimar a expansão de espaços
de representatividade e de discurso das minorias. A
filósofa pós-colonial Gayatri Spivak fala em agência
etnocultural que permite o sujeito subalterno falar
de dentro dos espaços de poder e garantir cidada-
nia:

“Then a line of communication is established


between a member of subaltern groups and the
circuits of citizenship or institutionality, the su-
baltern has been inserted into the long road to
hegemony”5 (SPIVAK, 1999, p.310).

Ao agenciar esses espaços, as minorias po-


dem falar por elas mesmas (SPIVAK, 1999, p.261).
Mark Orbe (1998, p.4) por meio da teoria da comu-
nicação co-cultural aponta a capacidade de mem-
bros dos grupos minoritários em arregimentar
membros de outros grupos com o propósito de con-
frontar as estruturas sociais dominantes. Pensar a
comunicação co-cultural das minorias acerca das
mudanças climáticas requer a investigação de mo-
dalidades discursivas das vítimas do aquecimento

5
“Então uma linha de comunicação é estabelecida entre um membro de
grupos subalternos e os circuitos de cidadania ou institucionalidade, o
subalterno tem sido inserido num longo caminho hegemônico” (tradução
livre nossa)

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global em narrativas jornalísticas de interpretação


do clima e de suas alterações antropocêntricas, ou
seja, motivadas pelo homem. O jornalismo inter-
pretativo carece de paradigma analítico dessas
mudanças que pode ser sugerido por pesquisado-
res das ciências ambientais.
David Archer e Stefan Rahmstorf (2010,
p.62-63) apontam linhas de raciocínio a respeito de
etapas da análise climática:

First, there are so-called “detection and attributi-


on” studies. This refers to a specific set of statisti-
cal techniques which allow us to “detect” climate
changes in an observational data set (that means,
to distinguish a real change from mere random
fluctuations) and to “attribute” these changes to a
set of causes [...]
Second, there is the overall “balance of evidence”
[...] that determines the confidence we have in our
understanding of the causes of climate change.
This balance of evidence includes the results of
the formal “detection and attribution” studies6.

A detecção lida com dados climáticos não


aleatórios, a atribuição angula um conjunto de
causas e o balanço de evidências aponta as conse-
quências dos fenômenos delimitados nas duas

6
“Primeiro, há os conhecidos estudos de detecção e atribuição. Estes se
referem ao conjunto de técnicas estatísticas que nos permitem detectar
mudanças climáticas em um conjunto de dados observados (o que
significa distinguir a mudança real de meras oscilações aleatórias) e
atribuir essas mudanças ao conjunto de causas.
Segundo, há balanço geral de evidências [...] que determina a confiança
que temos em nossa compreensão das causas de mudanças climáticas.
Este balanço de evidências inclui o resultado dos estudos oficiais de
atribuição e detecção” (tradução livre nossa).

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primeiras etapas. Ao transferirmos esses processos


ao jornalismo, eles convergem, respectivamente,
para as práticas interpretativas de análise quanti-
tativa ou estatística, da enumeração de causas e
do confronto contextual e sistêmico de causas e
consequências no qual se incluem os elementos
avaliados nas etapas anteriores. Entendemos ser
esse o papel do jornalista interpretativo ao buscar
a ligação entre os fatos e sua explicação (BEL-
TRÃO, 1976, p.54), evitando angular acontecimen-
tos complexos como eventos simples (SCHUDSON,
2010, p.174), valorizando a amplitude de extensão
e aprofundamento do tratamento do tema analo-
gamente ao escritor jornalista na reportagem em
formato livro (LIMA, 2009, p.26) e fazendo a expo-
sição interpretada de informações, estatísticas e
dados, confrontando-os com depoimentos de fontes
especializadas, caso de cientistas e intelectuais
(WYSS, 2008, p.169-170).
A teoria pós-colonial do jornalismo de mu-
danças climáticas entende a importância da angu-
lação discursiva das fontes não oficiais, principal-
mente de quem sofre o aquecimento global, em
relação às suas causas e aos seus efeitos, atri-
buindo assim perfil individual e social ao problema.
Mesmo sendo leigas em dados e estatísticas, as
testemunhas e vítimas dos fatos climáticos são
capazes de dimensionar o panorama e as perspec-
tivas temporais das tentativas de adaptação e dos
modelos mitigadores de suas comunidades, socie-
dades e nações. Veremos se as minorias represen-
tadas nas produções aqui analisadas ultrapassam
os limites de atuação ecológica de seus grupos nos
termos de Richard Maxwell e Toby Miller (2012,
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p.138) e manifestam suas perspectivas discursivas


tanto quanto profissionais e cientistas.
O livro-reportagem é a produção jornalística
em longo formato capaz de tratar temas de forma
mais extensiva e aprofundada, valorizando mais as
fontes não oficiais do que os meios periódicos tra-
dicionais (LIMA, 2009, p.84-85). Edvaldo Pereira
Lima (2009, p.26) legitima seu fórum de perma-
nência ao descobrir relações entre fatos e contex-
tos, ultrapassando o tempo limitado do presente
em direção à fixação na contemporaneidade. Por-
tanto, pode abranger a história, a atualidade e as
perspectivas futuras das mudanças climáticas,
pois seu debate implica nas considerações das pro-
jeções problemáticas da adaptação e urgentes da
mitigação. Veremos como as fontes nas reporta-
gens em formato livro analisadas em seguida lidam
com os fenômenos climáticos contemporâneos.

Caiu do céu: o promissor negócio do aqueci-


mento global

Pretendemos nesta seção analisar os discur-


sos do jornalista americano McKenzie Funk e de
seus entrevistados no livro-reportagem Caiu do
céu: o promissor negócio do aquecimento global
(2014) sobre as soluções economicistas de adapta-
ção às mudanças climáticas. A narrativa jornalísti-
ca, escrita em seis anos (FUNK, 2016, p.19), enu-
mera os projetos científicos de engenharia ambien-
tal excludentes dos pobres tendo em vista a des-
preocupação em relação às práticas e aos projetos
globais atuais e futuros de mitigação, intercalando
com a referência a outros atrelados exclusivamente
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às soluções financeiras das nações desenvolvidas e


das minorias ricas.
Funk (2016, p.131) desenvolve uma metáfora
por meio da qual distingue os dois conceitos:

Se apagar incêndios pode ser considerado uma


metáfora grosseira para o combate à mudança
climática, então as brigadas de bombeiros públi-
cas estariam mais próximas da mitigação – do
corte de emissões para o bem comum -, e as
equipes privadas mais próximas da adaptação,
com cidades ou países individuais esforçando-se
para proteger os próprios terrenos. Vale recordar
que, no caso do combate a incêndios, isso já foi
tentado.

O escritor jornalista inicia a narrativa res-


paldando as práticas mitigadoras e denuncia os
limites econômicos das adaptativas. Adiante, re-
produz depoimento do ambientalista e autor do
Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climá-
ticas (IPCC) Atiq Rahman a respeito das respostas
oficiais a essas mudanças: adaptação via tecnolo-
gias de assistência, mitigação e derrota, esta últi-
ma associada à migração resultante da falta de en-
fretamento aos problemas biorregionais (FUNK,
2016, p.243). No entanto, se considerarmos o pa-
radigma socioambiental, não devemos dissociar as
crises internas de um país e o aquecimento global,
realidade mais comum a uns do que a outros e es-
quecer a solidariedade planetária.
O arquiteto Koen Olthuis limita os projetos
adaptativos à oportunidade do “modo de reagir à
Mãe Natureza” não encarada enquanto um pro-
blema e sim meio de melhoria de vida (FUNK,

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2016, p.259). Já o advogado Newt Gingrich dife-


rencia a atitude mitigadora de modificar a cultura
em relação à natureza e a adaptativa advinda da
geoengenharia de modificação do ambiente (FUNK,
2016, p.306), esta última considerada de produção
em grande escala por geoengenheiro (FUNK, 2016,
p.307). Assim, os interlocutores do autor precari-
zam a agência da mitigação a favor de uma nova
consciência ecológica global e adotam o princípio
do desenvolvimentismo aliado ao conhecimento
técnico-científico. O físico Nathan Myhrvold contra-
ria seus próprios termos dos graves problemas eco-
lógicos localizados no espaço e no tempo, excetu-
ando as causas humanas de mudanças de tempe-
ratura do planeta (FUNK, 2016, p.319). Esses dis-
cursos permeiam todo o livro-reportagem, endos-
sando o subtítulo da obra “promissor negócio do
aquecimento global”, mas também sendo perma-
nentemente confrontados com as consequências
sofridas pelos pobres. O jornalista dizima as dúvi-
das sobre os termos quando aponta a adaptação
como preparação para um planeta alterado e a mi-
tigação é a tentativa de reduzir as emissões de ga-
ses poluentes (FUNK, 2016, p.19), antecipando-se
à angulação das fontes oficiais discordantes.

Fontes da adaptação e da mitigação

McKenzie Funk (2016, p.15) segue contrari-


ando as vozes oficiais ao falar das economias sub-
desenvolvidas:

“os países pobres, em grande parte tropicais, os


menos responsáveis pelo consumo que alimenta

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as fábricas que produzem as emissões causadoras


do aquecimento, sofrerão o maior impacto”.

Apesar de projetar os efeitos negativos no


futuro (“sofrerão”), denuncia as soluções seletivas
da adaptação climática, limitadas às nações desen-
volvidas e suas elites econômicas e sociais, ironi-
zando seu poderio capitalista no pastiche de seus
discursos, ou seja, nas negativas forjadas de asser-
tivas, não reproduzidos entre aspas (“Podemos pa-
gar os sistemas de dessalinização; podemos pagar
os quebra-mares”):

o aquecimento global não é ainda a ameaça exis-


tencial que é para um habitante do Egito, das
Ilhas Marshall ou de Staten Island (EUA). Signifi-
ca uma temporada de esqui mais curta, uma fatia
de pão mais cara, uma nova oportunidade de ne-
gócios. Podemos pagar os sistemas de dessalini-
zação; podemos pagar os quebra-mares (FUNK,
2016, p.19).

Desta maneira, a adaptação é retratada na


presentificação dos fatos econômicos concretos dos
efeitos das mudanças climáticas. O escritor jorna-
lista enumera somente o balanço financeiro de su-
as consequências, despreocupando-se com as cau-
sas do aquecimento. A mitigação depende de ativis-
tas, políticos e cientistas lúcidos ao encarar a pro-
blemática de publicização dos riscos do aqueci-
mento a fim de o público reagir a curto prazo
(FUNK, 2016, p.16). O discurso, porém, projeta ati-
tudes por parte de fontes oficiais e não oficiais para
o futuro. Funk (2016, p.20) recupera precariamen-
te sua crítica localizada na atualidade alargada dos

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acontecimentos quando aponta a carência de cau-


sas:

“É tão difícil associar a ação humana a uma cau-


sa climática específica quanto associar o boletim
meteorológico de hoje – ou uma safra ruim de tri-
go – a mudanças climáticas de longo prazo”.

Este é o caso no qual o futuro (“longo prazo”)


ganha fórum de presente (“de hoje”) ao relacionar
as causas antropocêntricas às prolongadas conse-
quências no tempo. As entrelinhas discursivas su-
gerem: a mitigação somente é percebida em sua
urgência por meio dos atributos factuais de atuali-
dade concreta. O trecho também revela que sua
atitude depende do agenciamento da mediação das
informações dos problemas ambientais responsável
por atualizar as projeções futuras nos contextos e
nos fatos presentes.
Os interesses financeiros continuam arregi-
mentando as críticas aos custos dos prejuízos das
mudanças climáticas com a intenção de justificar
medidas de adaptação:

A Grã-Bretanha recentemente tinha pedido a sir


Nicholas Stern, seu principal economista, que fi-
zesse um estudo dos prováveis efeitos do aqueci-
mento global nos mercados mundiais. Suas des-
cobertas foram terríveis: o custo de emissões de-
senfreadas de gases de efeito estufa equivaleria à
perda de 5% ou mais do PIB mundial por ano, to-
do ano, para sempre (FUNK, 2016, p.28).

Trata-se da adaptação em grande escala do


ponto de vista mercadológico que abrange apenas a
macroeconomia, cenário com o qual a mitigação

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gera controvérsias. Mais adiante, o autor reproduz


discurso de executivo do petróleo análogo a estas
proposições financistas globais:
“Colocar o urso-polar na Lei de Proteção às Espé-
cies Ameaçadas de Extinção não vai contribuir em
nada para retardar o recuo do gelo” (FUNK, 2016,
p.58).

A ironia desconsidera o papel da agência so-


cioambiental em lutar não só pelas geleiras, mas
também pelos humanos e não humanos direta-
mente atingidos pela crise do clima, ainda mais
prejudicada pelo prolongamento das soluções dian-
te dos efeitos climáticos (“retardar o recuo do ge-
lo”).
Cientista social norueguês revela os interes-
ses escusos de relatório em prol do nicho da explo-
ração mineral:

“A Avaliação do Impacto Climático no Ártico ana-


lisa a maneira como a mudança climática afeta as
condições de produção de petróleo e de gás, não
como a produção de petróleo e gás afeta a mu-
dança climática global” (FUNK, 2016, p.58).

A assertiva desmascara os reais compromis-


sos da adaptação com as mudanças no meio ambi-
ente e não de comportamentos anti-ecológicos, pre-
terindo as causas econômicas e tratando-as ape-
nas como efeitos. A soberba das companhias petro-
líferas é ainda mais precarizada ao assumirem o
reconhecimento do aquecimento global, todavia
necessário à circulação do capital dependente do

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degelo para mobilidade dos navios-tanque no con-


tinente ártico (FUNK, 2016, p.61).
McKenzie Funk (2016, p.63) endossa em se-
guida o papel das vítimas não responsáveis pela
crise climática partindo da consciência da “conexão
entre o comportamento irregular do clima local e as
implicações mais amplas da mudança climática,
incluindo as ameaças às reservas de água e às re-
giões litorâneas”, sinalizada pelo CEO da compa-
nhia Shell Jeroen van der Veer em relatório de pro-
jeção até 2050, futuro marcado na expressão “im-
plicações mais amplas”. A capacidade pró-ativa do
diretor executivo, não da companhia petrolífera,
indica que empresas como essa são agenciadas pe-
las visões ecológicas socialmente reconhecidas
através de alguns de seus representantes. A pro-
blemática está no fato de que os propósitos mitiga-
dores não chegam à ideologia do alto escalão atre-
lado a uma visão economicista, assim os relatórios
muitas vezes apenas pretendem associar uma ima-
gem de responsabilidade social às ideias sem ações
práticas, além de se limitar às consequências.
O “colonialismo ambiental” além de praticado
pelas empresas contra as nações subdesenvolvidas
e em desenvolvimento, também atropela o mercado
de energias limpas:

“Os importadores de biocombustíveis incentivam


sem querer os países mais pobres a destruir flo-
restas tropicais para cultivar cana e dendê, resul-
tando em emissões do CO² que estava depositado
no solo das antigas florestas” (FUNK, 2016, p.65).

Nesse caso, a mitigação também acaba sendo


regulada pelos interesses de países desenvolvidos
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em detrimento de outros submetidos à derrota, nos


termos apontados pelo ambientalista e membro do
painel do clima IPCC Atiq Rahman, de provocar o
aumento de emissão de gases e sofrer o aqueci-
mento mais especificamente, em seu território. O
fato revela o cenário global e local da adaptação e
da mitigação no qual realidades e contextos biorre-
gionais são confrontados em relações de subjuga-
ção e dependência econômica. As causas do aque-
cimento global – desmatamento florestal – arregi-
mentadas pelas periferias do capitalismo são até
apontadas, porém, descontextualizadas das causas
reais provenientes da geopolítica das nações colo-
nizadoras da adaptação e da mitigação climática.
A inovação em descobertas adaptativas con-
tinua sendo regulada pelos maiores emissores de
carbono, caso do mercado da “máquina de fazer
neve”, cujas “soluções valem por seus efeitos cola-
terais” (FUNK, 2016, p.100), atestando sua viabili-
dade limitada a quem detém o capital econômico. A
mitigação das geleiras enquanto reservas de água
naturalmente represada e distribuída como bem
comum revela a importância do agenciamento eco-
lógico da alteração das ações humanas por conta
dos efeitos das mudanças climáticas:

A diminuição das geleiras coloca em risco o su-


primento de água de 77 milhões de pessoas nos
Andes tropicais, assim como a energia hidrelétrica
que gera metade da eletricidade da Bolívia, do
Equador e do Peru. Na Ásia, 2 bilhões de pessoas
em cinco grandes bacias hidrográficas – as dos
rios Ganges, Indo, Brahmaputra, Yang-Tsé e
Amarelo – dependem da água que vem do derre-
timento do Himalaia (FUNK, 2016, p.104).

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O jornalista, mesmo que demonstre a força


financeira das soluções adaptativas, a confronta
por meio da detecção da legitimidade dos propósi-
tos mitigadores de alcance público e social da pre-
servação do ecossistema planetário: bilhões de
pessoas no planeta dependem da água proveniente
naturalmente de geleiras. Muitos modelos de adap-
tação climática são enumerados em suas medidas
paliativas: proposta de cobrir monte com material
negro a fim de criar ilha artificial de calor e induzir
chuvas dependendo da força e da frequência dos
ventos (FUNK, 2016, p.111), projeto futuro de des-
salinização, purificação, armazenamento e trans-
porte de água via rede de dutos e frotas de navios
(FUNK, 2016, p.140-141), reproduzir a ação dos
vulcões para tapar a luz do sol e reduzir a tempera-
tura global a partir da emissão de enxofre (FUNK,
2016, p.296), bombear milhões de toneladas de
dióxido de enxofre na estratosfera todo ano por
meio de tubos capazes de emiti-los a quilômetros
de altura, mas sem efeito contra a acidificação dos
oceanos (FUNK, 2016, p.313), fazer circular a água
mais quente da superfície dos oceanos para as pro-
fundezas mais frias “como se passassem o mar
numa batedeira” (FUNK, 2016, p.314), modelo de
geoengenharia de Grande Muralha Verde no Saara
financiado pela Espanha com o intuito de evitar
imigrações a seu território (FUNK, 2016, p.191-
192). Este último perpassa por uma crise humani-
tária além de ambiental, tendo em vista a subjuga-
ção dos propósitos ecológicos a fatores políticos e
diplomáticos:

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Para os países em desenvolvimento, majoritaria-


mente agrários, mais próximos da natureza, isso
significa defesas contra aquilo que a natureza es-
tá se tornando. Para os mais ricos, significa a
mesma coisa e também algo mais: defesas contra
migrantes e outros transbordamentos (FUNK,
2016, p.191).

A adaptação (“defesas contra”) faz a liga entre


o presente dos efeitos do aquecimento e o futuro
dos espaços naturais (“aquilo que a natureza está
se tornando”), temporalidades carentes de ações
mais efetivas em relação às mudanças de compor-
tamento ecológico e humanitário.
O diplomata espanhol e chefe de relações in-
ternacionais da União Européia Javier Solana, em
outro trecho do livro-reportagem, oficializa a preo-
cupação do continente mais com os migrantes das
mudanças climáticas do que com as crises ecológi-
cas de seus países de origem (FUNK, 2016, p.195).
Na geopolítica do aquecimento global, cabem os
processos adaptativos dos “cidadãos” dos países
desenvolvidos, não os habitantes de nações que
não têm direito nem a soluções mitigadoras nem de
adaptação climática em seus territórios. Os pobres
são subjugados ao poderio capitalista de seus Es-
tados nacionais, interessados no usufruto econô-
mico de desvio de verbas de soluções ambientais
dependentes de investimentos externos como a
Grande Muralha Verde no Saara (FUNK, 2016,
p.205), e ao desinteresse diplomático das políticas
adaptativas de países historicamente colonizadores
destinadas exclusivamente aos seus “cidadãos”.
Essas políticas escravizam trabalhadores, a
exemplo de operários de Bangladesh responsáveis

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pela construção de vários quebra-mares provisó-


rios. O testemunho deles ao escritor jornalista di-
mensiona a exploração de mão de obra apresenta-
da na detecção de números e no balanço de evi-
dências do aquecimento global:

Os trabalhadores se juntaram a nossa volta, e


lhes perguntamos quantas vezes haviam constru-
ído paredões ali. Eles discutiram entre si. ‘Sete,
oito vezes’, finalmente traduziu Atique. Pouco an-
tes do ciclone Sidr, a praia ficava a 1,5 quilômetro
‘naquela direção’, explicou um homem, apontando
para o meio do largo rio. O capataz me disse que
eles estavam trabalhando nesse último quebra-
mar havia três semanas, colocando cerca de 10
mil blocos e 45 mil sacos de areia. Cada bloco pe-
sava 120 quilos, e cada saco de areia, 160 quilos
[...]. Acharam um trabalhador diurno de Mirzaka-
lu e pediram-lhe que tirasse a camisa também.
Suas costas estavam sangrando em meia dúzia de
cortes (FUNK, 2016, p.231).

As nações não possuem projetos de mitiga-


ção a longo prazo, submetendo nativos a crimes
trabalhistas e ambientais, e os estrangeiros a con-
dições de visitantes indesejados e barrados em su-
as fronteiras. A Índia viu-se diante do acesso a seu
território de imigrantes de Bangladesh vítimas de
inundações seguidas de salinização do rio Ganges
e refugiados climáticos de ciclones (FUNK, 2016,
p.236). O ingresso de alguns bengalis é tratado
como “invasão silenciosa” por Enamul Hoque, re-
presentante do National Intelligence Council res-
ponsável pelo mapeamento climático na Ásia
(FUNK, 2016, p.238). Por isso o ambientalista Atiq
Rahman trata o imigrante das mudanças climáti-

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cas aquém da mitigação e da adaptação, mais pro-


pício a estigmas de derrotados do aquecimento glo-
bal e da diplomacia (FUNK, 2016, p.243).
Segundo Rahman, a corrupção não se limita
aos processos adaptativos:

“muita tecnologia de emissões zero sendo transfe-


rida para lugares que já não emitem quase nada.
E nada acontece. Para os pobres, não acontece
absolutamente nada” (FUNK, 2016, p.245).

O discurso reforça a ideia dos pobres en-


quanto subjugados políticos, econômicos, sociais,
culturais, diplomáticos e ambientais. São escravi-
zados e esquecidos seja em modelos de adaptação
seja de mitigação.
Se uma ilha desaparece devido às conse-
quências do aquecimento global, seus cidadãos e
principalmente, os mais pobres, refugiados de uma
crise a longo prazo, planetária embora local ou re-
gional, também perdem a cidadania ambiental
além da político-diplomática: “Se um país foi para
debaixo d’água, continua a ser um Estado?”, per-
gunta o professor de direito Michael Gerrard.

“Qual a cidadania de seu povo desabrigado? Que


direitos terão essas pessoas aonde forem – e quem
terá de recebê-las? E será que o país e seu povo
dispõem de recursos legais?” (FUNK, 2016,
p.249).

Outra dúvida é se um povo que tentou se


adaptar aos efeitos provocados por países desen-
volvidos e pela falta de uma mitigação comparti-
lhada entre as nações tem direito a uma cidadania

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planetária e ser livres para transitar e residir em


qualquer território. Os modelos forjam ainda “abri-
gar refugiados climáticos”, caso de alternativas ci-
entíficas através das quais bactérias alimentadas
por ureia dão liga na formação de placas de areni-
tos para quebra-mares e no congelamento de du-
nas de modo a impedir processos de desertificação
no deserto do Saara (FUNK, 2016, p.257).
O discurso do arquiteto Koen Olthuis de-
monstra a dimensão da adaptação climática indife-
rente a soluções imediatas contra o aquecimento:
“construir um mundo flutuante em cima da água
em vez de tentar manter a água de fora” (FUNK,
2016, p.260). Desta forma, a geoengenharia é legi-
timada enquanto ciência do futuro e desapegada
da mitigação. A agronomia em testes de modifica-
ção genética inventa espécies vegetais aptas a se
desenvolver num solo castigado pelas mudanças
climáticas:

“Os ativistas identificaram pelo menos 2.195 re-


gistros de patentes relacionados a [sic] ‘resistência
ao estresse abiótico’ – resistência a temperaturas
extremas, resistência a secas, resistência a qual-
quer coisa no ambiente que, embora não esteja
viva, não é amigável” (FUNK, 2016, p.283).

O problema são os efeitos destes alimentos


no corpo humano e de animais. Os agricultores
pobres não os produzem, pois não têm acesso ao
conhecimento genético dos grandes laboratórios,
todavia são induzidos a adaptar-se devido a funda-
ções como a de Bil Gates não se interessarem na
mitigação da redução de emissão de carbono
(FUNK, 2016, p.285).
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A adaptação não escolhe classe, raça, etnia,


gênero, nacionalidade, espécie submetendo ho-
mens, vegetais, animais e ecossistemas a seus pro-
jetos não inibidores de seus próprios efeitos colate-
rais. A pesquisa científica do professor S. Matthew
Liao da Universidade de Nova York chegou a pro-
por a modificação genética de seres humanos para
gerar “descendentes menores, que consumissem
menos recursos e causassem menos emissões”
(FUNK, 2016, p.290). Diante de uma proposta des-
sas, compreendemos o processo de desumanização
provocado pela ideologia da adaptação. A partir de-
la, somos todos “pobres” financeiros, de humani-
dade e de futuro. Se os países já tivessem chegado
a acordos nos paineis climáticos, não seríamos
submetidos a propósitos como esse. Enquanto eles
são o futuro no “aqui e agora”, os processos adap-
tativos roubam-nos deles.
A crise da adaptação ou da mitigação climá-
tica é uma crise de cidadania ambiental e planetá-
ria. O físico Nathan Myhrvold chega a ironizar os
pobres do mundo econômico, para ele, desprovidos
dos benefícios da redução das emissões de gases
poluentes na atmosfera:

A abordagem voltada exclusivamente para as


emissões era “particularmente rude com os povos
pobres da Terra”, disse. “Somos um país rico, en-
tão tivemos meios de fazer um monte de coisas.
Os povos pobres não podem – ou não querem. Na
Ásia, na China, eles querem o desenvolvimento
industrial deles, e não sei como detê-los”. Na Áfri-
ca, a lógica era mais implacável. “Aquelas pessoas
vivem bem à margem”, explicou. “Agora, alguns
dizem: ‘Ah, a mudança climática vai ser pior para

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eles’”. É verdade. No entanto, se você já está mor-


rendo de fome, ou de malária, ou de um monte de
outras doenças que poderiam ser mitigadas com
quantidades de dinheiro bem pequenas em com-
paração com aquilo que o mundo rico estaria dis-
posto a gastar com a mudança climática, surge
uma questão moral interessante: quanto gastar?
(FUNK, 2016, p.316-317).

O cientista limita a mitigação a fatores eco-


nomicistas num discurso marcado pelos propósitos
das elites financeiras dos países desenvolvidos,
submetendo os pobres à “esmola” ou ao desprezo
total dos principais emissores responsáveis pelo
aquecimento global. Confunde ainda o modelo eco-
nômico de um país, imposto pelas elites partidárias
à sua população, com a união planetária sem fron-
teiras via mitigação global em favor de todos os se-
res. O mau uso de determinados Estados nacionais
de ajuda financeira destinada a projetos adaptati-
vos não justifica o desinteresse pelo futuro comum.
O autor solapa o direito à voz dos desfavorecidos
sociais e ambientais, delimitando apenas os dis-
cursos deles apropriados e forjados pela fonte es-
pecializada.
Daí McKenzie Funk concluir o livro-
reportagem denunciando ainda por meio de seu
pastiche crítico a falência moral das elites industri-
ais, motivadoras e beneficiadoras das mudanças
climáticas, por isso critica

“O desequilíbrio entre ricos no Norte e pobres no


Sul – herdado da história e da geografia, acelera-
do pelo aquecimento – está ficando ainda mais
enraizado” (FUNK, 2016, p.331).

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No entanto, adiante aponta o fato dos ativis-


tas ambientais evitarem os beneficiados pelo aque-
cimento global “porque qualquer ganho pontual
turva a imagem, no mais catastrófica [sic], de um
mundo sem reduções de emissões” (FUNK, 2016,
p.331). O discurso exclui as necessidades dos po-
bres num mundo dependente da mudança de
comportamentos não sustentáveis. Recupera sua
denúncia ao associar o problema perverso da falta
de limites econômicos do livre mercado à crise da
geopolítica do clima. Porém, recusa o papel de ci-
dadania socioambiental e planetária atribuído aos
projetos mitigadores:

Não estamos simplesmente tomando um emprés-


timo contra nosso próprio futuro. Na maior parte
dos casos, não somos nossas próprias vítimas.
Depender da empatia para formatar nossa respos-
ta à mudança climática costuma ser considerado
ingênuo – as vítimas do aquecimento estão longe
no espaço, longe no tempo, e as balas são invisí-
veis -, mas creio ser mais ingênuo ter esperanças
de que nós, no Norte, vamos reduzir significati-
vamente as emissões, ou o consumo, ou oferecer
os recursos necessários para que países distantes
possam adaptar-se porque pessoalmente nos sen-
timos ameaçados (FUNK, 2016, p.331-332).

De fato, as distintas realidades de mitigação


e de adaptação das nações provocam temporalida-
des diferenciadas entre modelos economicistas e
sustentáveis, mas também a problemática ecológi-
ca, conforme o próprio autor aponta está enredada
a pensamentos meramente ou acima de tudo capi-
talistas dos países desenvolvidos, produzindo uma
espécie de geopolítica ambiental na qual o Norte

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tem nas mãos o destino das populações do Sul,


desinteressados do futuro comum do planeta Ter-
ra. Funk (2016, p.332) endossa essa angulação no
último trecho do livro, demarcando seu pensamen-
to de democracia ambiental mesmo tendo sobreva-
lor financeiro, de desenvolvimentismo mesmo lem-
brando dos pobres do aquecimento global:

A mudança climática costuma ser formulada co-


mo uma questão científica, econômica ou ambien-
tal, e não como uma questão de justiça humana,
como deveria ser com mais frequência. A partir
deste momento, muitos podem ficar ricos. Muitos
podem ter um barato. A vida vai seguir em frente.
No entanto, antes que ela siga, todos deveríamos
ter certeza de que entendemos a realidade do que
estamos comprando (FUNK, 2016, p.332).

Ele forja a necessidade de uma cidadania


ambiental mediante as crises ecológicas conse-
quentes das mudanças climáticas provocadas
principalmente pelos ricos, entretanto submete os
mais necessitados ao padrão economicista perma-
nente e prolongado pelas soluções de adaptação. O
livro-reportagem acaba sugerindo que a mitigação
e os processos adaptativos climáticos não oferecem
um futuro melhor à humanidade, daí legitimar
mais a segunda probabilidade de reação a essas
mudanças. Se angulasse a problemática pelos as-
pectos socioambientais e da cidadania sustentável
e não pela burocracia das políticas econômicas,
delimitaria a única saída mitigadora aos fatos da
atualidade e do porvir. Agiu mal ao nivelar as solu-
ções mitigadoras em sua complexidade política,
econômica, social, cultural e ecológica, na qual os

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pobres também têm direitos a um planeta preser-


vado e limpo, às práticas adaptadoras limitadas a
um presente sem futuro à vista.
Apesar de o livro-reportagem aprofundar o
debate, detectar, atribuir e fazer o balanço das
consequências, precariza o aprimoramento da re-
dução de causas em vez de riscos mais relaciona-
dos aos efeitos. Enquanto houver crise social e
ambiental relativas ao aquecimento global, não ha-
verá cidadania planetária nem dos pobres e nem
dos ricos porque todos os humanos seguirão de-
sumanizados e todos os seres não humanos serão
vítimas de seu desprezo pela própria casa comum,
como nomeia o Papa Francisco no subtítulo de sua
encíclica Laudato Si’: sobre o cuidado da casa
comum.

Os pobres na crise da adaptação em tempo de


mitigação

A leitura pós-colonial permite enxergar as


lacunas da narrativa jornalística, cuja cobertura
ficou limitada ao olhar principalmente econômico
dos especialistas de países detentores de tecnologi-
as ambientais e do escritor jornalista, apesar de
também ecológica e, de certa forma, preocupada
com os pobres, diante do discurso precarizado de
um de seus interlocutores cientistas. A produção
contraria a característica do livro-reportagem, se-
gundo Edvaldo Pereira Lima (2009, p.84-85), de
legitimar mais as fontes não oficiais além das ofici-
ais em relação ao regime de funcionamento dos
meios de comunicação periódicos. Os pobres víti-
mas dos efeitos das mudanças climáticas e dos pa-
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íses desenvolvidos ficam sem discursos devidamen-


te marcados na narrativa, inclusive no caso da ex-
ploração de mão de obra dos trabalhadores de
Bangladesh, talvez porque iriam permear de aspec-
tos extrafactuais (angústias e desejos) a atribuição
de causas e o balanço de evidências, e prejudicari-
am o status interpretativo da análise da adaptação
climática. Por essa razão McKenzie Funk renegou o
papel de agência dessa minoria social em galgar
espaços de visibilidade e negociação. Se o escritor
jornalista angulasse as soluções de países em de-
senvolvimento e subdesenvolvidos, os excluídos
sociais automaticamente apareceriam na cobertura
de projetos sustentáveis de comunidades tradicio-
nais. Além disso, Funk não questiona os impactos
dos modelos adaptativos na natureza; desloca a
crítica de um contexto a outro sem problematizar
as soluções temporárias. Portanto, falta à sua ex-
posição interpretada a complexidade dos fatos, os
quais nunca poderiam ser tratados enquanto even-
tos simples geridos pela ciência da geoengenharia.
A adaptação e a mitigação possuem tempora-
lidades diferenciadas; a segunda sempre é posta no
futuro talvez porque dependa de negociação entre
nações desenvolvidas e as outras, entre as elites
econômicas, os ativistas e as comunidades tradici-
onais, de modo a reservar a primeira ao campo de
possibilidades mais concretas e rápidas engessa-
das pelo jornalismo de atualidade por meio da fac-
tualidade e do caráter noticioso. Os países e suas
sociedades não podem ser vítimas da crise de pen-
samento e da apatia diante dos efeitos do aqueci-
mento global no presente e no futuro próximo. As
produções jornalísticas devem assim, legitimar su-
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as práticas factuais e extrafactuais porque a cons-


ciência e a cidadania planetárias passam também
pela solidariedade e pelo afeto em relação às maio-
res vítimas do capitalismo destrutivo e ao nosso
tempo na Terra.

A espiral da morte: como a humanidade alterou


a máquina do clima

O escritor jornalista brasileiro Claudio Angelo


evidencia em A espiral da morte (2016) os efeitos
das mudanças climáticas no planeta, primordial-
mente na Antártida e no Ártico. A metáfora do títu-
lo foi criada pelo glaciologista americano Mark Ser-
reze para substituir de forma didática as expres-
sões “retroalimentação positiva” e “amplificação
ártica” referentes à dificuldade de recongelamento
do pólo Norte no inverno após perda de gelo no ve-
rão. O jornalista em seu livro-reportagem extrapola
esse sentido às alterações provocadas pelo homem
no clima da Terra (ANGELO, 2016, p.11). As pala-
vras do autor na introdução da narrativa dão a di-
mensão da problemática de representar as tempo-
ralidades do aquecimento global ao discutir as
consequências nas geleiras das regiões polares: ora
atesta os efeitos das emissões de gases no presen-
te, ora especula a crise climática nos pólos do pla-
neta através de verbo no futuro do pretérito (“seri-
am as primeiras a sentir os efeitos”) (ANGELO,
2016, p.10). Segundo ele, abalos sísmicos na Gro-
enlândia são um sintoma de mudanças profundas
já ocorrendo nas grandes massas de gelo, mas o
“impacto dramático” sobre a humanidade apenas
acontecerá nas próximas décadas e séculos (AN-
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GELO, 2016, p.30). Essa perspectiva é contraditó-


ria à nossa posição neste livro, no qual defendemos
a percepção das mudanças climáticas e da urgên-
cia da mitigação já na atualidade.
Angelo (2016, p.15) parece deixar-se confun-
dir pela opção dos sistemas políticos em “pender
para uma corrida aos recursos naturais que vêm
ficando mais acessíveis com o degelo – inclusive o
petróleo, agravador do aquecimento global”. A so-
lução mais rápida da adaptação associada à aber-
tura de nicho econômico é preferida em detrimento
da mitigação negociada entre todos os envolvidos.
Mas ele se recupera ao distinguir os conceitos de
tempo e clima confundidos pelo ceticismo climáti-
co:

alguns meteorologistas, que estão acostumados a


trabalhar com escalas de tempo de poucos dias,
também têm problemas com mudanças de mais
longo prazo. Eles enxergam o clima como algo tão
variável no curto prazo que parece temerário dizer
qualquer coisa sobre o futuro (ANGELO, 2016,
p.65).

O público, segundo Claudio Angelo (2016,


p.65), passa a desacreditar nas mudanças climáti-
cas quando os cientistas erram nas previsões diá-
rias do tempo: “não conseguem dizer se vai chover
ou fazer sol amanhã, como é que eles acham que
podem saber como será o clima daqui a cem
anos?”. Os climatologistas céticos ao marcar o pre-
sente tão impreciso quanto o futuro acabam for-
mando uma massa de leigos também desconfiados
em relação às alterações de “todos os dias” e a
“média do tempo em vários anos”, confundindo

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ainda aquecimento global e variabilidade natural.


O esclarecimento será a melhor saída a esses con-
flitos de percepção:

É uma aparente contradição o aquecimento da


Terra levar a mais nevascas, mas lembre-se de
que neve nada mais é do que umidade congelada;
quanto mais vapor d´água no ar, mais combustí-
vel o sistema climático tem para fazer neve em lu-
gares onde ainda é frio o bastante para nevar
(ANGELO, 2016, p.80).

O aquecimento global libera mais energia no


sistema climático e evaporação na superfície oceâ-
nica, provocando frequência maior de eventos me-
teorológicos extremos decorrentes de precipitação
acumulada em poucos dias a exemplo, do resfria-
mento necessário à formação das nevascas. A de-
mocracia ambiental deve legitimar a participação
de vozes variadas na construção de grandes narra-
tivas climáticas em nosso tempo, explicando dida-
ticamente efeitos locais e globais igual a esses.

Fontes referenciadas, vozes abafadas

O jornalista valoriza mais as fontes científi-


cas em seu livro-reportagem com poucas exceções
de fontes não oficiais, caso do professor de inglês
da Dinamarca consciente das mudanças a olho nu
ao presenciar “grandes blocos de gelo dançarem no
mar”, imagem da qual fica difícil de discordar (AN-
GELO, 2016, p.25). Apesar desta reprodução res-
trita dos discursos, Angelo (2016, p.80) enumera
os mais afetados pelas mudanças antropogênicas:
os países em desenvolvimento com “infraestrutura

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menos resiliente e cujas economias dependem mais


de commodities agrícolas” são um deles. Todavia, a
mitigação exige a participação de todos os países,
sejam grandes ou médios emissores. O jornalista
destaca a necessidade desta missão partilhada ao
detectar os dados da poluição da atmosfera terres-
tre:
O Programa das Nações Unidas para o Meio Am-
biente estimou a probabilidade de que a humani-
dade possa atingir a meta de dois graus com base
nos cortes de emissões que os países têm prome-
tido executar até 2030. Para que seja economica-
mente factível atingir a meta, as emissões globais
não poderiam ultrapassar 42 bilhões de toneladas
naquele ano. A estimativa atual é que, mesmo
com todos os esforços de redução de emissões que
os países prometeram fazer no âmbito do Acordo
de Paris – as chamadas Contribuições Nacional-
mente Determinadas Pretendidas, ou INDCS, na
sigla em inglês -, o buraco entre a meta e a exe-
cução em 2030 seja de 12 bilhões a 14 bilhões de
toneladas de CO². É pelo menos o equivalente a
oito vezes o que o Brasil emite todo ano. Diante
dessa perspectiva, estabilizar o clima parece uma
missão quase impossível (ANGELO, 2016, p.83-
84).

A maior problemática é a opção pela adapta-


ção climática baseada na concepção da dificuldade
de reunir os países em torno das decisões mitiga-
doras comuns e compartilhadas. A estabilidade
climática é retratada por meio da detecção das
emissões de gases, enquanto algo improvável tanto
na atualidade quanto no futuro. Ao representar a
coexistência das temporalidades distintas das
emissões de gases, uma das principais causas

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atribuídas ao aquecimento da Terra, Claudio Ange-


lo sugere a importância das mudanças de compor-
tamentos humanos no presente:

Num estudo de 2005, Archer estimou que uma


fração importante do CO² emitido pela humani-
dade ainda estará presente na atmosfera em 40
mil anos, reagindo com rochas, depois de a maior
parte dela ter sido absorvida pelos oceanos ao
longo de três séculos. “Cerca de 10% do CO² do
carvão mineral ainda estará afetando o clima da-
qui a 100 mil anos”, escreveu o cientista. “Projeta-
se que o aquecimento devido ao CO² permaneça
constante por muitos séculos depois da cessação
completa das emissões”, afirma o IPCC (ANGELO,
2016, p.84).

O recuo da irreversibilidade das consequên-


cias das mudanças climáticas depende de soluções
antecipadas na atualidade, pois o futuro já está
prejudicado pelas emissões produzidas pelo ho-
mem: “grande parte do aquecimento que corres-
ponde ao nível atual de carbono na atmosfera ain-
da não aconteceu” (ANGELO, 2016, p.84). As cau-
sas antropocêntricas afetam potencialmente o cli-
ma já fragilizado pelas variações naturais. Segundo
o glaciologista Marc Serreze, a recuperação dos
ecossistemas é problemática:

“Antigamente, se perdêssemos muito gelo no ve-


rão, uma sequência de invernos frios seria capaz
de repô-lo. Mas hoje não fica frio mais, então essa
reposição está mais difícil. Muitas coisas conspi-
ram para levar o gelo marinho embora. Há alguns
anos eu criei essa metáfora infame de ‘espiral da
morte’. Acho que ela ainda é adequada” (ANGELO,
2016, p.101).

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As urgências interpeladas pelo aquecimento


global sinalizam que o tempo da mitigação é o
“aqui e agora” revestido do caráter de inadiável. A
recuperação da natureza (“seria possível repô-lo”)
não pode mais ser projetada para o futuro. O des-
congelamento maciço do pólo Norte, por exemplo,
pode acontecer antes de 2030 (ANGELO, 2016,
p.117).

Não é um quadro simples de traçar, porque, como


toda grande transformação, o derretimento do Ár-
tico tem ganhadores e perdedores, e os benefícios
e malefícios se realizam em tempos e lugares dife-
rentes e para grupos também distintos. Pior ain-
da, muitas vezes um mesmo grupo é beneficiado e
prejudicado simultaneamente (ANGELO, 2016,
p.118).

Os países do Ártico investem pensando nos


benefícios econômicos do degelo como a exploração
de combustíveis fósseis por campos de petróleo e
gás natural inviáveis em invernos rigorosos. Uma
das causas antropogênicas atribuídas ao aqueci-
mento global é a exploração mineral que desregula
a temperatura da crosta e da superfície terrestres.
“Para termos alguma chance de ficar no limite, três
quartos do óleo, gás e carvão terão de ficar no sub-
solo” (ANGELO, 2016, p.198). Claudio Angelo
(2016, p.198) sugere o papel das conferências do
clima e dos bancos mundiais na mitigação mineral:

A partir de 2015, ano da conferência do clima de


Paris, cresceram campanhas mundiais para man-
ter os combustíveis fósseis no chão – uma delas
capitaneada pelo jornal The Guardian. E bancos

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como o Banco da Inglaterra e o suíço HSBC co-


meçaram a produzir análises de risco que mostra-
vam que investimentos em combustíveis fósseis
estavam passando de ativos a encalhes em poten-
cial – devido à crescente onda de descarbonização
na economia mundial, mas também à queda ver-
tiginosa dos preços das energias renováveis (AN-
GELO, 2016, p.198).

Essa consciência precisa ser ampliada com o


intuito de evitar processos ainda não arregimenta-
dos pelo capitalismo global. O exemplo do hidrato
de metano existente em águas marinhas profundas
alerta contra essa exploração humana e o maior
problema são as quantidades significativas em
águas rasas no mar da Sibéria. O aquecimento dos
oceanos em algumas regiões pode trazer bilhões de
toneladas de metano à superfície, capazes de es-
quentar o planeta mais de três graus além dos seis
previstos no fim do século XXI.

Isso vai muito além da capacidade de adaptação


da humanidade ou da maioria das espécies ani-
mais e vegetais. Seria algo comparável ao efeito de
um inverno nuclear – daí essa possibilidade teóri-
ca ter ficado conhecida entre os cientistas como
“bomba de metano” (ANGELO, 2016, p.125).

Nesse trecho do livro, a mitigação é a decisão


climática mais viável ao presente e ao futuro dos
seres humanos e não humanos. Os prejuízos dos
efeitos do metano do mar siberiano no derretimen-
to do manto de gelo da Groenlândia e na Antártida
foram detectados em 60 trilhões de dólares, equiva-
lente a um ano de PIB global. Conforme aponta
Angelo (2016, p.127), “Como sempre, os principais

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prejudicados serão os pobres da Terra”. Na verda-


de, o sofrimento impelido aos pobres já está acon-
tecendo há décadas. O oceanógrafo britânico Peter
Wadhams desacredita até mesmo de futuras deci-
sões mitigadoras num caso como esse:

“Não sei se há alguma coisa que possa impedir


um pulso de metano, se as condições de leito ma-
rinho que levam a ele quiserem acontecer. A úni-
ca maneira seria causar o regresso do gelo mari-
nho do Ártico, para que essas bacias recebessem
água gelada o ano inteiro. Nenhum acordo global
de emissões pode reverter o recuo do gelo mari-
nho, então estamos comprometidos com um pos-
sível pulso de metano” (ANGELO, 2016, p.127).

Segundo Claudio Angelo (2016, p.127), em-


bora o pagamento dos custos dos cortes de emis-
sões de gases na atualidade, “o prejuízo é empur-
rado para as futuras gerações”. Acredita-se na rea-
lidade futura e não nas evidências atuais das mu-
danças climáticas e da mitigação.

Muita gente que defende não fazer nada no clima


argumenta que, como o PIB mundial tende a
crescer no futuro, esses prejuízos, mesmo que pa-
reçam altos em dólares de hoje, seriam mais do
que manejáveis no final do século, porque a hu-
manidade estará mais rica.

O oceanógrafo Wadhams contraria essa linha


de raciocínio do cientista político dinamarquês
Bjorn Lomborg ao defender:

“A impossibilidade de um crescimento exponenci-


al num planeta finito é, ela mesma, um dos fato-

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res associados com a crise climática” (ANGELO,


2016, p.128).

Sua concepção confronta a assertiva da as-


censão social dos pobres, pois o aquecimento glo-
bal ainda mais precarizado dificultará o acesso de
todos aos recursos naturais.
Em vez de soluções mitigadoras, os governos
preferem legislar sobre o controle de atividades
predatórias. A adaptação diante da redução de es-
pécies inclui a transferência dos trabalhadores da
caça à pesca (ANGELO, 2016, p.137). Entretanto, a
geopolítica não tem fronteiras quando os interesses
econômicos falam mais alto do que as mudanças
climáticas. Recursos minerais do Ártico serão mais
disputados com o degelo numa

“corrida global ‘desesperada’ pela posse do que


resta de recursos naturais explotáveis para sus-
tentar o capitalismo global” (ANGELO, 2016,
p.195).

Desta forma, a humanidade vira vítima de


conflitos político-econô-micos sem resolver o maior
deles: a crise climática. Se os gases-estufa

“demoraram de seis a oito séculos para elevar as


temperaturas na Antártida no passado, por que
deveríamos esperar que causem mudanças climá-
ticas cataclísmicas nas próximas décadas?” (AN-
GELO, 2016, p.237).

Esse discurso interpela a presentificação das


ações mitigadoras contra a projeção de trágicas
perspectivas.

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A única resposta a esse problema é a mitiga-


ção, todavia cientistas continuam pensando no pa-
liativo da adaptação. O pesquisador americano
Wallace Broecker defende que a única possibilida-
de de reduzir a concentração de gás carbônico

“seria tragar o carbono para o oceano, ou imagi-


nar um mecanismo pelo qual o oceano pudesse
liberar carbono rapidamente” (ANGELO, 2016,
p.255).

Haveria, assim, redução no aquecimento das


águas oceânicas às custas de modelos intervencio-
nistas, os quais afetam as vidas marinhas. Se “As
pessoas se acostumaram com o clima atual da Ter-
ra; adaptar-se a mudanças pode ser muito difícil”
(ANGELO, 2016, p.268). Considerando isso, a geo-
política mitigadora pode até ser considerada algo
impossível. Inclusive,

“Os negacionistas do aquecimento global têm


usado o crescimento da área do gelo marinho na
Antártida para defender o argumento de que não
existe um aquecimento induzido por seres huma-
nos” (ANGELO, 2016, p.284),

em contrapartida o degelo ocorre no Ártico. Mesmo


com o aumento do mar congelado em volta da An-
tártida sendo transitório, o público insiste em re-
conhecer as alterações do clima no cotidiano, op-
tando em acreditar no congelamento ou no aque-
cimento do planeta a partir das evidências nos
ecossistemas mais próximos, não importando se os
fenômenos são naturais ou advindos de fatores
humanos. Falta à divulgação científica o papel de

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esclarecer, por exemplo, que o buraco na camada


de ozônio “tem o duplo e contraditório efeito de
ajudar a resfriar algumas regiões da Antártida, mi-
tigando involuntariamente o aquecimento global”
(ANGELO, 2016, p.287). Esses discursos ajudam a
dizimar percepções falhas e apressadas do senso
comum acerca do clima. Só não podemos tratar as
ações do ozônio enquanto mitigação involuntária,
ao contrário elas fazem o papel de retroalimentar
os efeitos climáticos antropocêntricos na “espiral
da morte”, ou seja, o resfriamento de certas regiões
também é consequência do aquecimento provocado
pelo homem.
O resfriamento é caracterizado enquanto
variação natural provavelmente porque o aqueci-
mento e sua viabilidade econômica também são
assim percebidos.

Existe sempre no horizonte a possibilidade de que


o degelo nas próximas décadas aumente a quan-
tidade de solo e rochas expostos e ative a cobiça
de empresas de mineração, num momento em
que os recursos mais acessíveis em outras áreas
estiverem esgotados (ANGELO, 2016, p.325).

O aquecimento global é tratado como uma


oportunidade e seus efeitos fazem migrar o capita-
lismo de região a região e mobilizar interesses em
novos nichos econômicos, independente do que
eles podem provocar “aqui e agora” e “amanhã” nos
ecossistemas naturais e no planeta. No entanto, o
recuo das ações antropogênicas condiz mais ao
presente e ao futuro da humanidade livre de desas-
tres ecológicos, contraposto a decisões paliativas:

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Se toda a porção marinha sujeita a colapso do


manto descongelasse, o mar subiria 3,3 metros
no mundo todo, segundo o IPCC. A cifra é um
pouco mais otimista do que os cinco metros cal-
culados inicialmente por [físico americano John]
Mercer, mas, mesmo assim, seria um drama para
a humanidade se isso acontecesse ainda durante
o século XXI, já que o prazo para adaptação é cur-
to (ANGELO, 2016, p.357).

Ao considerar essa concepção de tempo de


adaptação reduzido diante dos dados detectados a
respeito da elevação dos oceanos, provavelmente
cientistas e leigos possam reconhecer dramatica-
mente o esgotamento das iniciativas de mitigação.
O oceanógrafo americano Stanley Jacobs endossa
isso:

“a projeção é que o aquecimento seja a perspecti-


va mais provável para o oceano nos próximos sé-
culos, mesmo assumindo esforços razoáveis para
controlar emissões de gases de efeito estufa” (AN-
GELO, 2016, p.359).

Diante de discursos como esse, as soluções


mitigadoras parecem “batalhar no vazio”, restando
à humanidade contentar-se com modelos temporá-
rios de adaptação climática, os quais, como já vi-
mos nesse livro, também afetam o meio ambiente
no presente e anunciam o fim do futuro. Todavia
esses modelos não têm consenso dos pesquisado-
res dos paineis do clima, tendo em vista o aumento
real do nível do mar ser mais rápido do que a vari-
ação apresentada nos gráficos computacionais uti-
lizados pelo Painel Intergovernamental sobre Mu-

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danças Climáticas (IPCC) (ANGELO, 2016, p.360-


361).
As obras dos portos para reconstruir suas
bordas livres, espaços secos entre o cais e a máxi-
ma das marés, devido ao avanço do mar, ilustram
os gastos de bilhões da economia da adaptação
(ANGELO, 2016, p.368-369). As mudanças climáti-
cas são retratadas pelo autor como evidências do
presente:

“Com as regiões polares mudando mais rápido do


que todo o restante do planeta, parece improvável
que os efeitos dessas mudanças não se façam
sentir aqui – se é que já não estão sendo sentidos”
(ANGELO, 2016, p.431).

Mas a mitigação é preterida em favor das es-


colhas paliativas:

“que atitudes deveremos tomar nas próximas dé-


cadas para nos adaptarmos a uma nova e nada
simpática realidade de clima” (ANGELO, 2016,
p.431).

Claudio Angelo chega a associá-las ao desen-


volvimento do país, legitimando os interesses fi-
nanceiros implícitos nas políticas adaptativas,
mesmo que elas não caibam mais em determinadas
populações e consequências a exemplo do aumento
do nível do mar (ANGELO, 2016, p.434).

“Por mais que o prazo e a magnitude dos impac-


tos ainda sejam discutíveis, a origem do proble-
ma, suas potenciais consequências e a maneira
de mitigá-lo estão, para efeito prático, além de

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qualquer dúvida razoável” (ANGELO, 2016,


p.435).

O jornalista oscila entre o apoio à mitigação


climática e à realidade mais plausível aos modelos
adaptativos.
Quando Angelo destaca no final do livro-
reportagem que o aquecimento global afeta mais os
países pobres do que outros, denuncia o atraso na
adoção das negociações mitigadoras:

independentemente do que façamos de agora em


diante para mitigar esse problema, o nível do mar
ainda subirá durante séculos, reconfigurando a
paisagem da Terra de uma forma como apenas as
majestosas forças naturais do sol e da deriva con-
tinental haviam sido capazes de fazer. Tornamo-
nos agentes modificadores do planeta e, num ato
de narcisismo resignado, marcamos nossa ação
batizando o novo período geológico, o Antropoce-
no. Sua duração é incerta, mas ele será tão mais
longo quanto mais tardarmos em zerar nossas
emissões e começarmos a retirar ativamente car-
bono da atmosfera. Várias das consequências do
Antropoceno já estão matando, desabrigando e
empobrecendo pessoas mundo afora como me re-
latou um diplomata do Mali depois de uma das
reuniões preparatórias para a conferência de Pa-
ris, para os países africanos a mudança climática
não é um desafio futuro, nem uma oportunidade
econômica: “Para nós é um ônus hoje” (ANGELO,
2016, p.440).

Desta maneira, o autor considera a salvação


de todos inclusive dos pobres, fazendo-nos endos-
sar a mitigação enquanto perspectiva democrática
que inclui também os menos favorecidos política e

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economicamente. Só faltou ao livro A espiral da


morte reconhecer as vozes das maiores vítimas das
mudanças climáticas e reproduzir seus discursos
de recuo de atitudes exploratórias. Daí, os estudos
pós-coloniais denunciam essas lacunas, interessa-
dos na legitimidade da pluralidade das percepções
de soluções duradouras contra o aquecimento glo-
bal agora e no futuro por parte das narrativas jor-
nalísticas e das produções em formato livro.

Segue o vazio do não agenciamento

O livro-reportagem de Claudio Angelo com-


partilha com Caiu do céu: o promissor negócio
do aquecimento global a opção de não reproduzir
depoimentos de fontes não oficiais, contrariando
também a assertiva de Edvaldo Pereira Lima sobre
o privilegiado formato do gênero propício à partici-
pação dessas fontes. Mesmo contando com decla-
ração de professor sobre os efeitos visíveis das mu-
danças climáticas, a narrativa não permite essa e
outras vítimas das ações antropogênicas discuti-
rem o confronto entre adaptação e mitigação, além
de apontar modelos próprios para não agredir a
natureza.
Apesar de endossar a complexidade dos
eventos climáticos e enumerar os mais atingidos
pelo aquecimento do planeta, o jornalista brasileiro
não agencia discursos de sujeitos de países em de-
senvolvimento e pobres. Não chega a valorizar as
soluções paliativas e destruidoras dos cientistas da
geoengenharia climática como faz McKenzie Funk,
porém não avança na legitimidade dos saberes
ambientais e climáticos das comunidades tradicio-
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nais mais acostumadas à harmonia com os espa-


ços naturais. O tempo das mudanças climáticas no
livro-reportagem de Angelo é o presente e o futuro
da adaptação já que as negociações mitigadoras
são representadas praticamente sem efeitos imedi-
atos, provavelmente porque depende de acordos e
recuos dificilmente engendrados pelas políticas
econômicas neo-liberais. Conforme indica o autor,
nossos filhos e netos “não vão se orgulhar disso”
(ANGELO, 2016, p.440).

Diário do Clima

Sônia Bridi narra no livro os bastidores e as


entrevistas da série televisiva Terra, que tempo é
esse? produzida entre maio e outubro de 2010 pa-
ra o programa Fantástico da Rede Globo. A jorna-
lista contou com depoimentos de cientistas e fontes
não oficiais ao ilustrar as reações ao aquecimento
global através de modelos de adaptação e de miti-
gação climática
O cientista político e especialista em econo-
mia verde Sérgio Abranches defende a importância
dos países em desenvolver suas economias a fim de
se defenderem do futuro da adaptação climática.
Bolívia, por exemplo, pode usar suas riquezas mi-
nerais para administrar a falta de água em seu ter-
ritório:

- Essa corrida [pela bateria leve e eficiente] está se


acelerando, e novas alternativas vão surgir em
uma década e meia ou duas. Então, é muito im-
portante, politicamente, ter a noção clara de que
estamos numa corrida muito veloz, e temos que
aproveitar essa corrida ao máximo e o mais rápido

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possível. A Bolívia precisaria disso não só pela ri-


queza que é o lítio, mas porque ela vai precisar de
recursos financeiros porque vai perder água com
o degelo. A Bolívia vai precisar ter dinheiro e
energia para enfrentar a briga tecnológica para
abastecer um país que está perdendo a sua água
(BRIDI, 2012, p. 30-31).

O especialista projeta a solução adaptativa


ao futuro (“vão surgir”, “precisaria disso”, “vai pre-
cisar”, “vai perder”) de um problema delimitado no
presente (“está perdendo”), precarizando o tempo
da defesa contra as mudanças climáticas. Além de
a adaptação ao aquecimento global não ser a saída
mais adequada, ele sugere o prolongamento da
adoção de mudanças em relação à crise da água.
Produtor autônomo do mineral reforça o apelo eco-
nômico despreocupado com atitudes mitigadoras:

“- Achamos que o lítio vai desenvolver a região,


que vai trazer trabalho para nossos filhos. As em-
presas trarão benefícios. Com o sal não tem futu-
ro” (BRIDI, 2012, p.33).

Ele hierarquiza as fontes financeiras, no en-


tanto, não sobrepõe o valor da mitigação.
A experiência mitigadora provém de adeptos
de cultos no Peru. Eles concordaram em manter a
tradição da festa religiosa na geleira, excetuando a
retirada de gelo. O chefe dos aimarás expressa a
parcimônia dos praticantes seguido do comentário
de Bridi:

- Por isso fui um dos primeiros a defender que


não se retire mais o gelo. A cerimônia continua, o
Qoyllur Ritii continua, mas o gelo fica aqui.

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Há dois anos as confrarias concordaram em mu-


dar o ritual. O gelo sagrado fica onde está, para
que a devoção não apresse um processo que a na-
tureza já está fazendo rápido demais (BRIDI,
2012, p.48-49).

A jornalista, no entanto, omite as razões an-


tropogênicas do degelo. Inclusive ela aponta adian-
te grupos de crianças retirando e acumulando gelo
em garrafas de Coca-Cola, atestando que “Algumas
tradições não morrem por decreto” (BRIDI, 2012,
p.52). Este fato sugere a lentidão no processo de
adoção de comportamentos mitigadores, dependen-
te muitas vezes de educação ambiental na família e
na escola. De fato, a mitigação parte do convenci-
mento e da negociação, procedimentos atestados
por Sônia Bridi no caso do pesquisador do clima e
consultor do Parlamento Britânico Sir Brian Hos-
kins:

O grande cientista ofereceu ao Parlamento tam-


bém uma visão geopolítica. Mostrou que o petró-
leo está se tornando uma fonte de energia cada
vez mais rara, mais cara e proveniente de regiões
instáveis politicamente, como a Rússia e o Oriente
Médio. No futuro, isso só vai piorar, com a de-
manda de países como a China e a Índia aumen-
tando exponencialmente. Então, em vez de dispu-
tar essa energia suja e muitas vezes cheia de san-
gue, por que não se antecipar e desenvolver novas
tecnologias, diminuir a dependência do país pelo
óleo estrangeiro e garantir competitividade às in-
dústrias britânicas? (BRIDI, 2012, p.65).

A mitigação, desta forma, precisa confrontar


a geopolítica do petróleo e construir novos princí-

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pios de diplomacia econômica em torno de fontes


de energias renováveis.

O futuro é “aqui e agora”

A economia sustentável na atualidade inibi-


ria o envolvimento de países como a Inglaterra na
guerra de fontes energéticas poluentes e antecipa-
ria o futuro da mitigação de energia limpa, realida-
de ainda não consensual entre as grandes econo-
mias. Em outro trecho, o cientista inglês atribui as
causas do aquecimento e demarca o tempo da mi-
tigação:

- Na verdade, independentemente do que fizermos


nos próximos vinte anos, já estamos comprometi-
dos com uma mudança no clima nas próximas
décadas. O que nós fazemos agora vai influenciar
a vida depois disso, depois da metade do século.
Os gases que jogamos na atmosfera no passado já
comprometeram o planeta, e o aquecimento é ine-
vitável (BRIDI, 2012, p.68).

Desta maneira, esse tempo caracteriza-se


pelo não prolongamento futuro dos riscos ao plane-
ta e à humanidade já previstos enquanto conse-
quências da poluição emitida no passado (“jogamos
na atmosfera”, “comprometeram o planeta”) e na
atualidade (“estamos comprometidos”, “fazemos
agora”, “é inevitável”). A mitigação, assim, é uma
atitude a ser adotada no presente para não preju-
dicar tanto “a vida depois disso”.
O economista David Satterthwaite atesta o
valor paliativo das decisões adaptadoras:

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- Se eles enriquecerem sem fazer a coisa certa,


vão emitir mais gases, e estaremos todos com um
problema ainda maior. A única coisa em que
Bjorn Lomborg está certo é que o desenvolvimento
é uma parte muito importante da adaptação. Você
precisa de governos competentes, você precisa ter
redes de escoamento de água, bons serviços de
saúde, garantir que as pessoas mais pobres não
vão construir favelas em área de riscos. Tudo isso
é desenvolvimento, mas também é adaptação, e
nesse ponto ele está certo. Mas temos de priorizar
a mitigação. A menos que cortemos as emissões
dramaticamente, a escala das catástrofes em vin-
te, quarenta, sessenta anos será enorme (BRIDI,
2012, p.70-71).

O trecho distingue o tempo das urgências da


adaptação e da mitigação, a primeira pode até in-
cluir os pobres na adoção de políticas públicas
contra os impactos do aquecimento global, porém
não é suficiente para salvá-los de catástrofes. A
escritora jornalista não abre espaço aos discursos
de fontes não oficiais, maiores vítimas mesmo es-
tando nas margens das decisões econômicas e polí-
ticas.
O economista indiano Pavan Sukhdev reco-
nhece o valor da preservação dos biomas amazôni-
cos e do cerrado em favor das comunidades tradi-
cionais, todavia lembra que a redução de emissões
provenientes do desmatamento e da degradação
florestal depende do financiamento dos países de-
senvolvidos mitigados em torno da

“floresta em pé como um valor econômico em si,


pelo valor que presta à humanidade capturando
carbono, equilibrando o clima, preservando a
água” (BRIDI, 2012, p.73).

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A mitigação até já é uma realidade financei-


ra, pois os países ricos já transferiram 5 bilhões de
dólares em 2009 aos mais pobres, mas ela deve ser
regular e prolongada oficialmente via convenções
do clima. A detecção desse montante econômico
deveria ser seguido do confronto da autora em re-
lação à negociação global e diária para evitar as
causas das mudanças climáticas.
A parcela desenvolvimentista, segundo o en-
genheiro Enrico Pelegrini, aposta nas soluções da
geoengenharia, e Sônia Bridi (2012, p.79) confronta
essa com a condição precária dos pobres:

A adaptação é simples para os ricos, os que mais


contribuíram para o aquecimento do planeta, com
a emissão de gases que provocam o efeito estufa.
Foi emitindo que se industrializaram, se desen-
volveram e enriqueceram e agora podem contor-
nar as consequências. Uma tarefa beirando o im-
possível para os pobres. As mudanças climáticas
punem preferencialmente os inocentes.

Embora delegando atitude humana a esses


fenômenos (“punem preferencialmente”), a jornalis-
ta endossa o perfil socioeconômico das maiores ví-
timas. Segue denunciando as evidências dos im-
pactos ecológicos da adaptação climática contra a
natureza e os pobres. Ela aponta os casos da cons-
trução da usina hidrelétrica de Três Gargantas na
China, onde “Um formigueiro humano levantando
uma obra extremamente sofisticada, na época
cheia de dúvidas que hoje se confirmam em catás-
trofes ambientais”, e das comportas para evitar a
inundação de Veneza, pois

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“Para que os blocos sejam depositados, milhões


de metros cúbicos de terra estão sendo dragados
do fundo do canal, o que pode alterar o ecossis-
tema” (BRIDI, 2012, p.81).

Usa outros exemplos enumerados por cien-


tistas de modo a sugerir a emergência das soluções
mitigadoras: o meteorologista Hoerling indica o ce-
nário futuro já considerado muito ruim caso as
emissões atuais mantenham-se no mesmo nível e
bem pior se elas aumentarem (BRIDI, 2012, p.91) e
o físico Marc Serreze denuncia o prolongamento
das consequências por um tempo mesmo com a
cessão das causas poluidoras, daí o quadro é de
“estar nos dirigindo a um ponto sem retorno”
(BRIDI, 2012, p.92-93).
A economia da mitigação depende da pre-
disposição ambiental dos Estados nacionais em
regularizar e apoiar programas e projetos sustentá-
veis. O uso de paineis solares fotovoltaicos nos te-
lhados de casas e de energia eólica capaz de redu-
zir a utilização de combustíveis fósseis conta com
subsídios na França, Dinamarca e Alemanha. O
Brasil

gasta uma Itaipu e meia só para aquecer água do


banho com chuveiro elétrico. Com todo o sol que
temos, seria muito simples instalar paineis sola-
res de aquecimento a custo baixíssimo. Se o go-
verno abrisse mão dos impostos em toda a cadeia
produtiva até a instalação, a renúncia fiscal seria
muito mais lucrativa e menos desgastante politi-
camente do que as brigas constantes com ambi-
entalistas – e os crimes ecológicos que se come-
tem – para a construção de novas hidrelétricas.

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Além disso, haveria a criação de centenas de mi-


lhares de empregos no setor. Uma regulação, uma
canetada que faz surgir riqueza e ainda ajuda o
planeta, tão simples para os países ricos, parece
ser uma impossibilidade política nos países em
desenvolvimento (BRIDI, 2012, p.101).

A diferença de regulação da economia sus-


tentável nos países comprova as dificuldades de
um acordo das práticas mitigadoras, muitas vezes,
adiadas (“seria muito simples”, “seria muito mais
lucrativa”, “haveria a criação”). O físico Jay Zwally
sintetiza a problemática desse panorama global ao
apontar a interpretação política conservadora do
clima financiada pela indústria do carvão e do pe-
tróleo,

“então é muito difícil para um cientista fazer che-


gar ao público a mensagem de que o planeta está
se aquecendo por causa do impacto humano e
que precisamos agir” (BRIDI, 2012, p.106).

O discurso legitima a mitigação como a única


solução. A ilustração do aumento de temperatura
de 7° C e acima de zero no verão da Groenlândia,
obrigando os moradores a adquirir geladeira (BRI-
DI, 2012, p.111), atesta a preocupação “aqui e ago-
ra” com o futuro. Conforme demonstra o físico
Marc Serrese, o degelo decorrente do aquecimento
global facilita a agricultura em territórios de frio
intenso e a abertura de caminhos marítimos no
Ártico (BRIDI, 2012, p.112). A percepção fragmen-
tada desses efeitos entre os países prejudica a ne-
gociação nos paineis do clima. Serrese exemplifica
a opção pelas soluções adaptativas provavelmente

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porque são visíveis a olho nu e em pouco tempo,


mas é difícil prever seus impactos na natureza:

É aí que entram as propostas de geoengenharia. A


mais popular propõe que façamos o papel dos
vulcões. Funcionaria assim: centenas de aviões
subiriam bem alto e soltariam aerossóis [sic] na
atmosfera.
- Os aerossóis [sic] contrabalanceariam o efeito do
gás carbônico para ajudar a esfriar o planeta. No
meu ponto de vista – continua o cientista -, esse é
um jogo de tolos por causa da lei das consequên-
cias inesperadas. Não sabemos o que aconteceria
(BRIDI, 2012, p.132).

Essa proposta sugere a violência por parte


dos modelos adaptativos contra a humanidade
porque não garante um futuro livre das causas do
aquecimento (“Não sabemos o que aconteceria”),
contra a natureza diretamente e imediatamente
impactada e contra o planeta sem saída em relação
às mudanças climáticas devido às soluções mera-
mente paliativas. Assim, o tempo da adaptação é
um tempo de exploração forjado de garantia de fu-
turo e a mitigação é o discurso do futuro garantido
a todos desde o presente.
Atitudes simples deveriam ser massificadas,
a exemplo do projeto de agricultura hidropônica e
aquecimento solar de água usando garrafas pet,
utilizado por um quartel militar em Tocantins.

“O know-how é repassado para as comunidades


pobres de Palmas, onde em muitas casas a água
quente agora é de graça” (BRIDI, 2012, p.137, gri-
fos da autora).

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É a prova de que a mitigação implica na de-


mocratização do bem estar sem agressão ao meio
ambiente.
No entanto, a humanidade parece se preocu-
par apenas com o que acontece em seu entorno. O
chefe de expedição Manoel Morgado descreve num
balanço de evidências a dimensão dos efeitos das
mudanças climáticas:

Com o derretimento das geleiras estão aparecendo


lagos que estão ficando cada vez maiores, com
risco de romper e provocar um tsunami vale abai-
xo. Há uns sete anos escalei uma montanha, o pi-
co Mera, de uns 6.500 metros, no Nepal. Quatro
anos depois, voltei, e um desses lagos havia se
rompido. O que vi foi inacreditável. O que antes
era um vale arborizado muito bonito, de repente
tinha se transformado numa cena de day after, de
destruição total (BRIDI, 2012, p.175, grifos da au-
tora).

Estaria a humanidade disposta a arcar com


cenários de devastação capazes de prejudicar o
bem estar promovido pela natureza? Discurso de
Morgado, compartilhado por Sônia Bridi, sinaliza
que os devastadores não sofrem com suas conse-
quências:

“- No fim, os países de Terceiro Mundo é que se-


rão os mais afetados em termos de mudança cli-
mática, com falha de colheita, seca, tudo isso pio-
rando ainda mais o padrão econômico de uma
população extremamente carente” (BRIDI, 2012,
p.175).

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O desafio é fazer o discurso de mitigação


convencer os países desenvolvidos acerca da cida-
dania ambiental e da ideia do planeta compartilha-
do como casa comum.

A ecossistêmica da mitigação

O guia de turismo Dancho Rinchen aponta a


mudança de atitude dos nativos de Butão ao podar
os galhos grossos dos pinheiros sem destruir a ár-
vore para fabricar incenso (BRIDI, 2012, p.196).
Bridi descreve o discurso de preocupação ecológica
de um butanês:

- Natureza e felicidade andam juntas – filosofa -.


Temos uma política muito forte nesse sentido. An-
tes cortávamos árvores (principalmente para ex-
portar madeira para a Índia, com sua incrível de-
manda), mas agora não cortamos mais. Entende-
mos que sem floresta não tem água e sem água
não tem vida (BRIDI, 2012, p.201).

Essa visão ecossistêmica cabe apenas na mi-


tigação. A adaptação climática, ao contrário, preo-
cupa-se quase sempre apenas com os seres huma-
nos. O bem estar prolongado no tempo é atestado,
por exemplo, após o fechamento de parques natu-
rais devido à sobrecarga turística, e “operadores de
turismo perderam uma oportunidade de negócios,
mas o povo está feliz” (BRIDI, 2012, p.204). A per-
cepção ecossistêmica da mitigação inclui o propósi-
to de que o planeta está bem se todos estiverem
bem. Baseado nesse princípio, um dos reis butane-
ses criou parques nacionais que ocuparam 70% do
território do país, e leis reguladoras do desmata-

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mento, do uso da água e dos recursos naturais,


inibindo o uso de defensivos agrícolas (BRIDI,
2012, p.205). As causas do aquecimento são rever-
tidas através da governança mitigadora.
O exemplo problemático vem da China, o
maior poluidor e o maior produtor de energia lim-
pa. A poluição que impedia ver a paisagem monta-
nhosa e o sol durante meses, de acordo com a de-
tecção de Bridi, foi resolvida com investimento “de
35 bilhões de dólares em pesquisa, fabricação e
instalação de equipamentos de baixa ou de ne-
nhuma emissão para geração de energia – o dobro
do investimento norte-americano no mesmo perío-
do”, mas o desafio é grande tendo em vista a venda
de carvão quase de graça e a falta de recursos hí-
dricos para gerar eletricidade (BRIDI, 2012, p.211).
Engenheiro chinês atesta conflitos econômicos e
ambientais deste tipo ao tratar do abastecimento
de água em Pequim, dependente das águas das
chuvas de verão, de um canal que retira e trans-
porta água do rio Amarelo a centenas de quilôme-
tros de distância e de energia eólica (BRIDI, 2012,
p.212). A problemática envolve ainda políticas de
adaptação local e ações antiecológicas crônicas de
aquecimento global:

Para a saúde dos moradores, as recentes medidas


que tiraram parte da poluição do ar são uma óti-
ma notícia, mas o problema é que limpar as partí-
culas não é o mesmo que capturar carbono. O
CO² continua sendo emitido na mesma medida.
Os dois têm efeitos diferentes na atmosfera. O
CO² provoca aquecimento porque impede o calor
de sair de volta para o espaço. As partículas refle-
tem o calor do sol antes de ele atingir o solo, por-

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tanto, como as cinzas de vulcão, provocam resfri-


amento da Terra. Ao limparem as partículas sem
diminuir as emissões de CO², os chineses prote-
gem a população local, mas aceleram ainda mais
o aquecimento do planeta (BRIDI, 2012, p.214).

O trecho revela a dimensão da crise climáti-


ca arregimentada pela China e atrelada ao cresci-
mento de sua economia indispensável ao fortaleci-
mento político de seu governo. Diante desse con-
texto, podemos reforçar o pensamento das dificul-
dades dos países chegarem a um consenso sobre a
mitigação das mudanças climáticas. O administra-
dor de uma vila experimental em Xangai serve de
modelo a seu país. Apesar de justificar o uso de
energia limpa devido à escassez de fontes como pe-
tróleo e carvão, defende o cuidado com a natureza
talvez porque a preocupação energética mitigadora
parta do governo:

Por todos os lugares onde andamos, vemos da es-


trada que nos telhados das casas e dos prédios há
muitos aquecedores solares. Produzidos aos mi-
lhões e com incentivo do governo, um painel é
comprado e instalado com o equivalente a duzen-
tos reais. Centenas de milhões de chineses têm
água quente sem aumentar a demanda por pro-
dução de energia, o que forçaria a construção de
muitas usinas a carvão e ainda mais emissões
(BRIDI, 2012, p.219).

O caso da vila experimental de Xangai com-


prova o papel fundamental das políticas públicas
de matrizes energéticas. As comunidades tradicio-
nais conscientes dos efeitos do aquecimento podem
instruir seus cidadãos a agir de forma sustentável.

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Bridi destaca o exemplo da Ilha da Pele onde “os


habitantes locais fazem roças pequenas, cada ano
em lugar diferente, para não destruir a mata”
(BRIDI, 2012, p.230). O biólogo Chris Barlett im-
planta projeto de produção agrícola sem aumentar
a área plantada, busca espécies mais resistentes
ao clima e evita o uso de fertilizantes (BRIDI, 2012,
p.231). Sônia Bridi reconhece ser esta uma propos-
ta de adaptação que estimula a fixação na terra e
evita a imigração climática, esvaziando seu sentido
mitigador. Cecília Tacoli, especialista em imigração,
aposta na governança de viver em pequenos espa-
ços com mais acesso aos recursos naturais, situa-
ção comum às ilhas do Pacífico afetadas pelo aque-
cimento global (BRIDI, 2012, p.233).
A mitigação aposta na democracia planetária
da cidadania ambiental compartilhada. A adapta-
ção marca as diferenças econômicas e sociais:

- Os países serão mais capazes de enfrentar as


mudanças climáticas quando ficarem mais ricos
— é o argumento do ambientalista cético, Bjorn
Lomborg. — Veja a Flórida rica: um furacão atin-
ge a Flórida, e pouquíssima gente morre. Mas se o
furacão atinge a Guatemala, ou outros lugares
pobres, centenas, milhares morrem (BRIDI, 2012,
p.234).

Trata-se de uma economia da proteção hu-


mana despreocupada com as mudanças de com-
portamento em favor da preservação ambiental.
Modelos e discursos de adaptação forjam as mu-
danças climáticas como variações naturais, esti-
mulando desconfianças e descrenças no aqueci-
mento global, daí atribuir a tudo soluções mera-

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mente economicistas adotadas na atualidade, por


países ricos e no futuro pelos países que adotarem
o desenvolvimento. Fazendeiro australiano não tem
a percepção real do problema apesar de testemu-
nhar os prejuízos causados à agricultura e à pecu-
ária devido ao tempo seco:

- Não estou convencido de que as mudanças cli-


máticas são obra da ação humana. Concordo que
o clima está mudando. Tenho lido muito, visto
documentários, mas o clima sempre mudou, há
milhões de anos isso ocorre. Na Austrália temos
registros recentes porque o país é novo. Essa
fronteira agrícola ainda não completou cem anos.
Recordes do clima são como recordes olímpicos
(BRIDI, 2012, p.241).

O filho dele atribui os efeitos a ações huma-


nas como o desmatamento e a pecuária:

- Sei que a nossa atividade tem parte da culpa,


não na desertificação, mas certamente na salini-
zação acelerada que vemos aqui. Quando desma-
tamos para plantar, ajudamos a mudar o clima.
Mas, na época, tínhamos pouca informação, nos-
sos avós nem imaginavam que a cultura que eles
desenvolveram com tanto sacrifício estaria hoje
ameaçada (BRIDI, 2012, p.243).

Segundo Dale Park, Presidente da Associação


dos Fazendeiros do Oeste da Austrália, a adapta-
ção passa pela alteração de culturas agrícolas:

Dale está desenvolvendo um projeto de substitui-


ção da cultura do trigo e da pecuária por culturas
perenes, como determinadas frutas de clima seco
e madeira para reflorestamento. Mas velhos hábi-

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tos são difíceis de matar. Culturas não são altera-


das da noite para o dia (BRIDI, 2012, p.244).

Neste caso, as práticas adaptativas operam


com a percepção de limites do solo, esgotando to-
das as possibilidades até serem reconhecidas em
seu fracasso. Os espaços naturais e os ecossiste-
mas como a Amazônia acusam a degradação an-
tropogênica:

Em 2005, a seca foi considerada recorde, seguida


de uma cheia também recorde. Um estudo recente
mostra que dezenas de milhões de árvores morre-
ram por causa da seca, liberando carbono para a
atmosfera. O impacto foi tão grande que nesse pe-
ríodo a floresta, em vez de capturar, passou a ser
emissora de gás carbônico. Isso porque as árvo-
res, que se alimentam de carbono, ao morrer libe-
ram o gás de volta para a atmosfera (BRIDI, 2012,
p.248).

O trecho de atribuição de causas e de balan-


ço de evidências sugere a era das mudanças climá-
ticas enquanto tempo do esgotamento da natureza.
O físico do Instituto Nacional de Pesquisas da
Amazônia (INPA) Antônio Manzi não tem precisão
do cenário futuro da floresta, mas os modelos cien-
tíficos antecipam a urgência da mitigação:
- O que os modelos projetam é um aumento na
duração da estação seca. Uma estação seca um
pouco mais prolongada já afetaria muitas espé-
cies de árvores na floresta e levaria, assim, à sua
mortalidade. Isso significaria o cerrado avançando
sobre a área que hoje é de floresta de transição
(espécies que estão na fronteira da Amazônia com

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o cerrado e têm características dos dois biomas)


(BRIDI, 2012, p.248).

Como trata-se de uma projeção científica, o


discurso forja a presentificação das consequências
do aquecimento global marcada em expressões
gramaticais híbridas de tempo presente e futuro
(“já afetaria”), além de dimensionar a devastação do
ecossistema amazônico no qual se expandirá o bi-
oma cerrado, pois compartilha áreas de seu territó-
rio.
Não cabe, no entanto, hierarquizar os impac-
tos das mudanças climáticas e os graus de resolu-
ção nos países desenvolvidos e em desenvolvimen-
to, ao contrário da assertiva da cientista Suzana
Kahn, participante do painel intergovernamental
climático IPCC:

- O nosso perfil de emissão [de gases de efeito es-


tufa] é muito diferente do perfil do resto do mun-
do. Ele é basicamente por conta de desmatamento
e uso do solo e deixa-nos numa situação relati-
vamente confortável. Digo confortável porque a
redução do desmatamento é muito mais factível,
mais fácil de realizar do que mudar a estrutura
energética de um país. E é justamente isso que o
Brasil apresentou como proposta em Copenha-
gue, na COP 15. Isso é uma coisa desejável, boa
para o país, independentemente da questão cli-
mática (BRIDI, 2012, p.250).

A mitigação depende muito menos de deci-


sões isoladas do que da congregação de governan-
ças em prol da conservação do planeta comum.
Bridi recupera a crítica das causas nacionais do
aquecimento global ao denunciar:

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“Temos mais a perder do que a ganhar com a des-


truição das florestas. Diminuindo o desmatamen-
to, podemos nos tornar um país tão limpo quanto
a Noruega, a Dinamarca e a Suécia” (BRIDI, 2012,
p.251).

O pesquisador Carlos Nobre corrobora o de-


safio mitigador de nosso país sem dispensá-lo de
mudanças econômicas:

“Não precisamos desmatar mais, temos que me-


lhorar a eficiência da nossa agricultura. Esse é o
dilema que o Brasil enfrenta no momento” (BRIDI,
2012, p.251).

As opções mitigadoras antecipam o futuro de


conciliação com a natureza (“tornar um país tão
limpo”, “melhorar a eficiência da nossa agricultu-
ra”).
Sônia Bridi conclui o livro-reportagem legiti-
mando a governança da mitigação climática de al-
guns países: a China avança na produção de tec-
nologia eólica apesar de carecer de regulamenta-
ção, os Estados Unidos garantem a compra de
energia excedente produzida via instalação de pai-
neis solares, a Alemanha transforma esgoto domés-
tico em energia. A escritora jornalista ilustra o caso
alemão e justifica, em seguida, a democracia dos
bens naturais da conservação ambiental:

Todo o esgoto de Hamburgo e redondezas é dirigi-


do para uma usina que separa líquidos de sólidos
e usa o gás metano — tão negligenciado por nós e
muito mais agressivo em termos de aquecimento
— para tocar a própria usina. Os sólidos são

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queimados, produzindo mais energia, usada para


limpar a água, devolvida potável para o rio.
A imensa tarefa de salvar o planeta de um aque-
cimento que vai trazer miséria e sofrimento para
bilhões de humanos não tem solução fácil, nem
única. Mas não é nada que a criatividade e a von-
tade humana não possam resolver (BRIDI, 2012,
p.255).

Bridi atesta a mitigação enquanto tempo do


futuro possível no “aqui e agora” e predisposto à
cidadania ambiental. As soluções deixam de beirar
o impossível se somarem nos continentes do plane-
ta em busca da natureza preservada e comparti-
lhada entre todos os países e todos os seres.

Agenciadores e cidadãos ambientais

A jornalista Sônia Bridi legitima a participa-


ção de fontes oficiais e não oficiais no debate a res-
peito das mudanças climáticas. Elas compartilham
do propósito de interpretar suas causas e conse-
quências. Permeiam o tempo de adaptação e seus
efeitos de uma resistência atual em assumir as
ações humanas, e o tempo de mitigação de uma
cidadania planetária democraticamente comparti-
lhada e de um futuro de recuo da devastação já
previsto no presente.
Os pobres que mais sofrem com os efeitos do
aquecimento global agenciam espaços de represen-
tação e de discursos na narrativa. Adaptando as
estratégias co-culturais enumeradas por Mark Or-
be (1998) aos propósitos mitigadores, podemos
identificar o trabalho interno das confrarias religio-
sas do Peru em recuar o degelo das geleiras e dos

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agricultores da Ilha da Pele por meio de soluções


agrícolas menos impactantes, demonstrando as-
sim, as contribuições dos grupos minoritários para
seus países e o planeta. Agenciam a autora a con-
frontar as soluções adaptativas da geoengenharia e
seus impactos na China e em Veneza, identificando
na jornalista um suporte às causas mitigadoras.
Agenciam ainda o discurso de criação de empregos
na indústria de energia limpa. Apesar da dificul-
dade dos cientistas em convencer a respeito dessas
problemáticas ecológicas planetárias, conforme si-
naliza o físico Jay Zwally, eles são interpelados no
livro-reportagem a denunciar a opção paliativa da
adaptação climática.
As vítimas das mudanças climáticas arregi-
mentam Sônia Bridi a agenciar representantes de
grupos dominantes como os militares e agentes de
turismo a dar visibilidade aos projetos sustentá-
veis. Ela ilustra a educação de membros dos
grupos minoritários no caso dos butaneses que fa-
bricam incenso sem desmatar e destruir as árvo-
res. Destaca o agenciamento de governanças miti-
ga-doras na vila experimental de Xangai. Contra-
põe o discurso do filho de fazendeiro australiano a
outros fazendeiros negacionistas dos efeitos do
aquecimento, atravessando a identidade de classe
de sentidos de geração juvenil preocupada com o
meio ambiente. Enumera também modelos susten-
táveis em países desenvolvidos como Alemanha,
China e Estados Unidos. Deste modo, Diário do
clima alarga seu papel agenciador das fontes não
oficiais em detrimento da defesa da geoengenharia
por parte do livro-reportagem Caiu do céu: o
promissor negócio do aquecimento global. Sônia
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77

Bridi legitima que o tempo da mitigação é de


democracia e de cidadania ambiental dos mais
afetados pelas mudanças antropogênicas promo-
vidas, principalmente, pelas elites econômicas e
sociais.

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79

A história e o futuro de
um ecossistema em
reportagem da Veja
sobre o rompimento de
barragem em Mariana
O tempo no jornalismo

O fato e o fato jornalístico possuem minucio-


sas diferenças que o fator tempo pode ajudar a
torná-las transparentes. Os meios de comunicação
através de seus atos tecnológicos e discursivos for-
jam cobrir os fatos como se eles fossem transmiti-
dos da mesma forma no tempo, quando se desen-
volveram e no lugar onde aconteceram e criam o
artefato dos testemunhos capazes de serem fieis às
suas características. Segundo Thomas Connery
(2011, p.14), o realismo do século XIX instituiu o
fato no jornalismo “defined by a focus on the actual
and real, on people, events, and details that are
verifiable and based on observation and experien-

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ce”7. Este paradigma da atualidade persiste no


construto noticioso até a contemporaneidade, a
partir do qual os jornais tratam do dia anterior co-
mo uma novidade permanente.
Adriano Duarte Rodrigues (in MOUILLAUD;
PORTO, 2002, p.230) defende a capacidade da mí-
dia em neutralizar as marcas enunciativas de tem-
po, lugar e pessoa relacionadas com o predomínio
da referencialidade e a estratégia universalizante
de seu próprio discurso. De acordo com este para-
digma, o jornalismo simula o presente do fato simi-
lar à ocasião da sua transmissão. Nestes termos,
Rodrigues (2001, p.102) fala em metacontecimento,
“realização técnica das instâncias discursivas; é
um discurso feito acção [sic] e uma acção [sic] feita
discurso”. Deste modo, o discurso jornalístico arti-
cula o prolongamento do presente do fato; ao me-
diá-lo, ele parece acontecer de novo. Conforme
aponta Antonio Olinto (2008, p.17), o jornalismo é
uma “luta pela fixação de realidades”. Todavia, isto
é, um artefato de sua produção cultural e não uma
regra inviolável.
A narrativa noticiosa, para Wilson Gomes
(2009, p.13), deveria levar a termo sua operação
mimética por meio da qual representaria as “coisas
já havidas” ou tautológica devido ao desdobramen-
to, à duplicação do fato a dar-se por uma segunda
vez ao ser relatado. A tautologia do fato jornalístico
presentifica seu tempo, apesar dos verbos declara-

7
“definido pelo foco no atual e real, em pessoas, eventos, e detalhes que
são verificados e baseados na observação e experiência” (tradução livre
nossa).

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tórios estarem no passado recente ou remoto. Go-


mes (2009, p.32) aponta esta problemática:

De um lado, há a ideia de diferença entre o tempo


do fato e o tempo da narração. Neste caso, a dife-
rença é aparente; o fato é lançado ao passado,
porque este é reconhecidamente o campo daquilo
que não está ao nosso alcance, do irrevogável.
Mesmo porque se pode falar de fatos presentes –
que, ainda que não sejam narrados, podem ser
testemunhados. Por outro lado, há a diferença en-
tre o tempo do fato e o tempo das dimensões e
elementos que o geraram na rede de causalidade.

Assim, faz-se necessário problematizar o


construto temporal da cobertura e transmissão dos
fatos no jornalismo, relacionado não só ao relato
pautado nos princípios de atualidade, mas também
nas características contextuais, muitas vezes remo-
tas. Esse construto, portanto, pode embaralhar as-
pectos do presente, do passado e até do futuro, si-
nalizando assim panoramas históricos e atuais,
além das perspectivas vindouras. O “tempo das
dimensões” alarga o tratamento factual na con-
temporaneidade das causas, consequências e de
seus desdobramentos.
Maurice Mouillaud (in MOUILLAUD; PORTO,
2002, p.77) ao construir uma teoria do aconteci-
mento não simplifica as relações entre a atualidade
e a história. Elas

se parecem cruzar sem se reconhecer: um funda


uma dimensão profunda no tempo, a outra extrai
uma sincronia na superfície. A primeira enraíza
os acontecimentos em uma cronologia, a segunda
costura acontecimentos diversos como uma pele

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que envolve o planeta (uma pele que se renovaria


todos os dias).

Conforme destaca Mouillaud (in MOUIL-


LAUD; PORTO, 2002, p.77), se há uma passagem
da atualidade à história, o jornalismo a faz de for-
ma espontânea provavelmente porque as sequên-
cias descontínuas da história são munidas de um
passado e de um futuro (MOUILLAUD in MOUIL-
LAUD; PORTO, 2002, p. 79) e seu regime não se-
quencial é tomado de atualidade (MOUILLAUD in
MOUILLAUD; PORTO, 2002, p. 80). Desta forma, o
fato jornalístico é permeado de história, atualidade
e perspectivas futuras. Resta reconhecer paradig-
mas referentes ao jornalismo ambiental.
Teóricos dos estudos pós-coloniais da comu-
nicação contribuem na compreensão do tempo na-
tural e social da natureza. Richard Maxwell e Toby
Miller (2012, p.140) defendem que a

“Green citizenship transcend conventional politi-


cal economic space and time, extending beyond
the here and now toward a globally sustainable
ecology”8.

Os autores sugerem a capacidade da cidada-


nia ecológica de permear a cobertura jornalística de
fatores sociais além dos políticos e econômicos.
Apontaremos o recorte de depoimentos de fontes
oficiais e não oficiais na reportagem com a finali-
dade de investigar os sentidos de democratização

8
“Cidadania verde transcende o tempo e o espaço econômico político
convencional, estendendo além do aqui e agora em direção a uma
ecologia globalmente sustentável” (tradução livre nossa).

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da angulação das causas e dos impactos da tragé-


dia.

O tempo de um ecossistema em reportagem


ambiental

Nosso propósito aqui, neste artigo é analisar


a problemática das representações temporais das
causas e consequências do rompimento da barra-
gem de rejeitos em Mariana (MG) na região percor-
rida pelo leito do Rio Doce, na reportagem O mapa
da destruição de Pieter Zalis (editor), Jonne Roriz
(repórter fotográfico) e Fernanda Allegretti (repór-
ter), publicada na edição da Revista Veja de 2 de
dezembro de 2015. O mapa da destruição possui
oito páginas com “apuro científico”, destinadas a
“medir os reais danos ambientais” (ZALIS; RORIZ;
ALLEGRETTI, 2015, p.84) em 700 quilômetros, en-
tre as cidades de Mariana (Minas Gerais) e Linha-
res (Espírito Santo), atingidos pela lama de rejeitos
da barragem de Fundão. O periódico semanal con-
vidou um biólogo para acompanhar os efeitos do
desastre ambiental nos ecossistemas e nas comu-
nidades da região atingida. A discussão teórico-
crítica baseada nos pressupostos de Wilson Gomes
e Maurice Mouillaud se aplica na análise dessa re-
portagem tendo em vista que ela possui caracterís-
ticas noticiosas ao cobrir os impactos do fato, logo
após ele ter acontecido.
O texto inicia apresentando o cenário da des-
truição provocado pela enxurrada de lama:

“Soterradas (casas do município de Bento Rodri-


gues) hoje pelo barro seco, elas deixam flagrar,

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aqui e ali, as formigas em profusão, um galinheiro


com aves inexplicavelmente vivas” (ZALIS; RORIZ;
ALLEGRETTI, 2015, p.86).

O discurso humaniza as casas, apesar de


praticamente destruídas, capazes de permitir a
equipe de reportagem ainda encontrar espécies
animais em meio ao barro tóxico. O verbo (“dei-
xam”) já sinaliza a opção da cobertura em tratar
das consequências da tragédia testemunhadas pe-
los repórteres, incidindo a ação no presente para
revelar o tempo do testemunho e não do crime am-
biental e de suas causas.
Mas, em seguida, temporaliza a dimensão da
região atingida, marcando o passado (“levaram, fo-
ram, morreram, tiveram, encontrava, sofria, sobra-
ram”) do deslocamento dos rejeitos e seus efeitos:

Os 62 bilhões de litros de rejeitos despejados na


região pelo acidente – o equivalente a 25 000 pis-
cinas olímpicas – levaram pouco mais de duas
semanas para percorrer 879 quilômetros até Li-
nhares. Cento e vinte nascentes foram soterradas
no caminho, pelo menos doze pessoas morreram
(onze ainda estão desaparecidas), outras 600 per-
deram suas casas e mais de 300 000 tiveram o
abastecimento de água prejudicado. Alguns espe-
cialistas levantam a hipótese de que a região onde
se encontrava o subdistrito de Bento Rodrigues
vire um deserto. O resíduo de mineração é tóxico,
ou seja, nada mais crescerá por ali. A maior pre-
ocupação dos ambientalistas, no entanto, é mes-
mo com a bacia do Rio Doce, que abastece meio
milhão de pessoas e já sofria com o assoreamento
antes do desastre. Os rejeitos e a lama vindos da
barragem devem agravar o problema, dificultando
o acesso de pescadores e a entrada de peixes que

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se reproduzem naquela área. Como a lama acaba


com a transparência da água, impedindo que a
luz chegue ao fundo, e obstrui a absorção de oxi-
gênio, ela sufoca os peixes, além de bloquear a fo-
tossíntese das plantas. Depois do rompimento da
barragem, sobraram apenas 500 metros de água
limpa – a distância entre a nascente e a minera-
dora (ZALIS; RORIZ; ALLEGRETTI, 2015, p.86,
grifos nossos).

Mesmo com a predominância de verbos no


passado contextualizando as consequências do fa-
to, diferente do trecho anterior no presente do ato
da cobertura, há uma profusão de tempos distin-
tos, de passado, presente (“acaba, obstrui, sufoca”)
e futuro (“vire, crescerá, agravar”) sinalizando as
perspectivas da extensão da tragédia ambiental
ainda por longo período. A experiência atual do tes-
temunho apontada “perde força” para legitimar a
capacidade atemporal da dimensão de um desas-
tre, de modo regular e prolongado, de impactar os
ecossistemas e as comunidades.
Géraldine Muhlmann (2008, p.23) defende o
surgimento da experiência do testemunho a partir
da segunda metade do século XIX devido à separa-
ção entre a opinião e a sensação, entre os olhos
que observam e a voz que expressa, transformando
o jornalista numa espécie de “embaixador”, media-
dor de sua comunidade ao representá-la no ato de
testemunhar os fatos. Esta mudança no início da
modernidade industrial conferiu ao repórter a nova
perspectiva discursiva do “eu vi”, diante da qual o
jornalismo procurou convencionar a mediação no
presente, forjando o prolongamento do testemunho
e do fato, conferindo ao leitor a possibilidade de

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simular a experiência de também “estar lá” junta-


mente com o jornalista.
No caso da reportagem de Veja aqui analisa-
da, a atitude de embaralhar as expressões tempo-
rais ao enumerar os impactos do rompimento da
barragem tem o propósito de transferir ao leitor a
atitude de estar no cenário do fato, além de imagi-
nar o prolongamento das repercussões de suas ca-
racterísticas, incidindo num jornalismo não mera-
mente factual, mas também de sensações típico de
cobertura de desastres. Wilson Gomes (2009, p.16)
ao discutir uma teoria do fato jornalístico aponta o
descrédito da ideia do dado definitivo e indepen-
dente da angulação subjetiva; ao contrário, pela
descrição factual podem transitar opiniões, dese-
jos, súplicas (GOMES, 2009, p.32). Entretanto, o
autor deixa de questionar o papel do repórter ao
transferir essas sensações ao seu público de modo
a prolongar o tempo dos efeitos do fato. Por outro
lado, Wilson Bueno (2008, p.170) chama de “cober-
tura paralisante”, isolada das causas e da denún-
cia dos interesses promotores da destruição ecoló-
gica, aquela que privilegia sensações em detrimen-
to do aprofundamento da reportagem. Confrontan-
do as assertivas dos dois críticos brasileiros a res-
peito do aspecto extrafactual e sensacionista da
cobertura jornalística, comum aos textos noticio-
sos, entendemos ser ele também apropriado ao tra-
tamento de fatos cujas repercussões não podem
ser medidas num futuro breve ou distante, caso da
matéria da revista Veja. Assim, justifica-se o uso de
tempos verbais distintos com o intuito de transmi-
tir as impressões do repórter para transferi-las ao

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leitor também incapaz de prever o fim e a solução


dos trágicos impactos ecológicos.
A reportagem segue utilizando verbos no
passado de modo a delimitar o tempo da cobertura
compatível ao tempo do testemunho dos efeitos no
ecossistema.

Não se avista pelo caminho a movimentação de


peixes nem de anfíbios. Aves comuns à região,
como as garças, só são vistas esporadicamente
em áreas que deveriam estar servindo de celeiro
para ninhos durante a época de procriação. Os
crustáceos também desapareceram, e a enorme
quantidade de conchas encontradas ao longo do
caminho revela que os pequenos moluscos tam-
bém foram mortos pela tragédia. “Antes, devido à
poluição humana, o Rio Doce já precisava ser re-
cuperado. Agora, o dever é ressuscitá-lo”, diz
Ruschi [Diretor do Instituto Estação Biologia Ma-
rinha] (ZALIS; RORIZ; ALLEGRETTI, 2015, p.88).

Apesar de usar o verbo no presente (“é res-


suscitá-lo”), o biólogo marinho propõe soluções de
longo prazo, afinal “ressuscitar” um ecossistema
demanda longo período. O contraste entre o passa-
do e o futuro do rio apontado pelo declarante deli-
mita até quando o testemunho pode se prolongar.
O discurso pouco factual, apenas relacionado ao
mau tratamento dado pelas comunidades ao rio
antes da poluição pelos rejeitos, e mais permeado
de sensações acerca das projeções para o futuro do
leito sinaliza a coexistência do testemunho e do
extrafactual apenas quando não estão no campo
das previsões. A recuperação do Rio Doce ainda
não é fato porque a cobertura na atualidade está
impossibilitada de prevê-la. O discurso do biólogo

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híbrido de marcas temporais é angulado e editado


pela equipe da revista tendo em vista a capacidade
de dimensionar o desastre.
Os jornalistas angulam a perspectiva do pes-
cador William da Silva sobre os efeitos na economia
doméstica:

“Sem os peixes, terei de repensar as finanças da


minha família. Como sempre fiz pesca informal,
sei que não serei indenizado pelo desastre” (ZA-
LIS; RORIZ; ALLEGRETTI, 2015, p.88).

O declarante insinua o prejuízo no futuro


(“terei de repensar as finanças”, “não serei indeni-
zado”), todavia sua manifestação discursiva de
pescador e pai antecipa na atualidade a percepção
da crise ambiental, econômica e social ao denunci-
ar o panorama da catástrofe (“Sem os peixes”).
O propósito factual continua se refugiando
nas consequências observadas e medidas a olho
nu:

Outra preocupação dos ecologistas agora é com o


impacto causado pela lama que desaguou no mar,
na altura da cidade capixaba de Linhares, interdi-
tou praias e se espalhou por 15 quilômetros mar
adentro. Diz o médico veterinário Milton Marcon-
des, diretor de pesquisa do Projeto Baleia Jubarte:
“Logo no encontro entre o Rio Doce e o mar ficam
a Reserva Biológica de Comboios e o limite sul do
Banco dos Abrolhos, área marinha de biodiversi-
dade riquíssima” (ZALIS; RORIZ; ALLEGRETTI,
2015, p.89).

Contudo, mesmo o repórter delimitando no


presente (“agora é”) os efeitos de um fato já ocorri-

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do (“desaguou, interditou”), o entrevistado direcio-


na a angulação jornalística às perspectivas futuras,
as quais podem confirmar ou não a contaminação
e a morte de espécies pela lama tóxica. Assim, Pie-
ter Zalis e Fernanda Allegretti mantêm as projeções
a cargo das testemunhas especializadas com a in-
tenção de forjar o propósito factual apenas no seu
relato. Mas considerando a reportagem interpreta-
tiva da Veja, apesar de precarizada por tratar ape-
nas das consequências sem se ater também às
causas, e o caráter do jornalista interpretativo se-
gundo Luiz Beltrão (1976, p.46), consciente em ofe-
recer todos os elementos da realidade a fim de o
leitor tirar suas próprias conclusões, a repórter e o
editor na verdade são responsáveis por intercalar
declarações especializadas no texto da matéria, re-
lativas às sensações em torno do futuro da tragédia
na região atingida. O tempo do fato, portanto, in-
clui os efeitos concretos testemunhados e o porvir,
ora delimitados (caso do “deixam”), ora transver-
sais entre si (a exemplo do “agora é”).
As marcas temporais seguem problematiza-
das na apresentação da possível situação das ba-
leias:

“A baleia jubarte, felizmente, não deve ser afeta-


da. ‘Essa espécie evita água turva, já está saindo
do Brasil em direção a ilhas subantárticas e não
se alimenta nos mares do país, logo, há menos
risco de contaminação’, complementa Marcondes”
(ZALIS; RORIZ; ALLEGRETTI, 2015, p.89).

Mesmo utilizando o verbo no presente (“de-


ve”), o discurso do jornalista reforçado pelo entre-
vistado referencia uma possibilidade futura. Neste
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caso, a reportagem simula o prolongamento da fac-


tualidade no porvir das consequências do rompi-
mento da barragem para não ser tomada em gran-
de parte pelo jornalismo de sensações.
No entanto, ao reproduzir o relato das fontes
não oficiais revela o agenciamento das necessida-
des diante dos acontecimentos inesperados e inde-
sejados, legitimando a cidadania ambiental dos
mais afetados. A lavadeira Rita de Cássia agencia-
da e agenciadora de protesto popular indica os im-
pactos econômicos:

“Chegamos a enfrentar a polícia, mas funcionou.


O caminhão-pipa só veio depois que manifesta-
mos nossa indignação” (ZALIS; RORIZ; ALLE-
GRETTI, 2015, p.89).

A marca de futuro em torno dos efeitos da


crise aparece no trecho em que os jornalistas apon-
tam a instalação de uma calha por parte da mora-
dora e trabalhadora autônoma, e precarizam a ex-
pectativa em relação aos fenômenos naturais do
porvir: “Nunca as tempestades lhe pareceram tão
bem vindas” (ZALIS; RORIZ; ALLEGRETTI, 2015,
p.89). A insinuação de “tempestades” desconsidera
o estado da população após o rompimento da bar-
ragem. Mesmo com a atribuição temporal estando
no passado forjado de presente (“lhe pareceram”), o
discurso jornalístico desumaniza o tempo de recu-
peração social e ecossistêmica do rio.
O construto factual é plausível quando a re-
pórter confronta as declarações da empresa Sa-
marco, causadora da tragédia ecológica, sobre o
nível tóxico da lama de rejeitos.

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Na última quarta-feira, a Organização das Nações


Unidas (ONU) divulgou um comunicado desmen-
tindo a empresa. Segundo o órgão, “novas evidên-
cias” atestam que o resíduo é tóxico e contém alta
concentração de metais e componentes químicos
prejudiciais à saúde humana (ZALIS; RORIZ; AL-
LEGRETTI, 2015, p.90).

A afirmação no presente é contundente (“o


resíduo é tóxico”) e exclui qualquer sentido sensa-
cionista talvez por ser proveniente de uma fonte
internacional respeitável. Ao contrário das fontes
científicas arregimentadas para falar dos efeitos
“atuais” e projetados no futuro, a organização
mundial emite declaração a respeito de algo capaz
de ser medido: a toxicidade dos rejeitos minerais e
químicos.
As marcas temporais de passado, presente e
futuro também podem indicar a relação e o con-
fronto entre factualidade e sensação, além de suge-
rir propósitos referentes à cobertura da extensão
dos efeitos do fato nos depoimentos do Diretor do
Instituto Estação Biologia Marinha editados sobre
as fotografias nas páginas da reportagem (ver foto-
grafia adiante). Os verbos no presente predomi-
nam, sinalizando o reordenamento da angulação
feita pelos jornalistas de modo a destacar o relato
factual do especialista e o tempo do testemunho da
equipe de reportagem:

“‘Existem sinais claros de um ambiente desfavo-


rável à vida. Apesar do cheiro de resíduos orgâni-
cos, não há aves de rapina e são raros os insetos
herbívoros, como gafanhotos e borboletas. Num
local assim, em decomposição, esses animais de-

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veriam ser abundantes’” (ZALIS; RORIZ; ALLE-


GRETTI, 2015, p.85).

Há apenas um verbo com sentido futuro


(“deveriam”), utilizado devido à imprecisão em rela-
ção à perspectiva da presença de espécies animais
num ecossistema comprovadamente contaminado
na “atualidade” pelos rejeitos.
O futuro do pretérito também aparece em
outro trecho (“seria”) no qual segue a constatação
do nível de toxicidade e de destruição do meio am-
biente:

“A falta de furos de minhoca no solo, a ausência


de lagartixas e a presença de muitos insetos mor-
tos preocupam, porque um ambiente assim, re-
pleto de resíduos orgânicos, seria perfeito para
essas espécies. O silêncio é espantoso. Escutam-
se apenas barulhos produzidos por pássaros pe-
quenos. Também impressiona que, mesmo onde a
lama encostou no morro, sem passar com força,
não existem plantas vivas” (ZALIS; RORIZ; ALLE-
GRETTI, 2015, p.87).

As formas verbais no presente predominan-


tes (“preocupam, é, escutam, impressiona, encos-
tou, existem”) contrastam a ação futura (“seria”)
com o propósito de indicar a preservação do ecos-
sistema do leito do Rio Doce se o nível de resíduos
orgânicos ainda fosse tolerável. No entanto, há pro-
vas da devastação ambiental na região: “‘Árvores
mais secas na margem do rio já são indicação de
que a mata ciliar foi atingida pela tragédia’” (2015,
p.8).

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Foto: casa destruída pela lama de rejeitos da barragem da


empresa Samarco

Fonte: Jonne Roriz (Revista Veja)

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A comprovação (“já são”) atesta o quadro de-


finido pelas consequências do rompimento da bar-
ragem (“foi atingida”), fazendo o recorte do pano-
rama do passado e do presente, também evidente
em mais dois depoimentos do biólogo marinho em
destaque sobre as fotografias: “‘Foram contabili-
zados 7 000 peixes mortos próximo à cidade. A fi-
nura da lama, que chega a 3 milésimos de milíme-
tro, fez com que ela penetrasse com muito mais
facilidade nas brânquias dos peixes, aumentando a
incidência de morte por asfixia’” (ZALIS; RORIZ;
ALLEGRETTI, 2015, p.89, grifos nossos) e na pas-
sagem abaixo:

“A mancha no mar avançou 250 quilômetros qua-


drados por dia. Um dos prováveis efeitos disso se-
rá verificado na desova de tartarugas. A Praia de
Regência é o principal ponto de desova de tarta-
rugas-gigantes na área continental brasileira. O
Projeto Tamar já lançou filhotes em áreas mais
distantes. Também foram vistos pássaros com si-
nais de morte por neurotoxicidade, um provável
resultado de intoxicação por lama” (ZALIS; RO-
RIZ; ALLEGRETTI, 2015, p.90).

A coexistência de passado (“avançou, lançou,


foram vistos”), presente (“é”) e futuro (“será”), por-
tanto, de panorama e perspectiva, contrasta entre
si ações já definidas no tempo como as consequên-
cias da enxurrada tóxica (o avanço da mancha no
mar e a morte de pássaros) e o trabalho de prote-
ção ambiental feito pelo Projeto Tamar, e essas
ações com a regular desova de tartarugas, prova-
velmente prejudicadas pela poluição marinha e pe-
lo impedimento das pesquisas de equipes do proje-

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to. Os trechos da declaração a respeito das desovas


aparecem em formas verbais no futuro (“será”) e no
presente (“é”), sugerindo a interdição a longo prazo
de praia onde elas acontecem. A previsão do espe-
cialista marcada em “prováveis efeitos” destaca a
dimensão do desastre extrapolando a responsabili-
dade do testemunho de fatos concretos, convergin-
do ao factual as sensações carregadas de perspec-
tivas indesejadas, mas possíveis de acontecer.

Cobertura de impactos ambientais

As marcas temporais no relato da jornalista


e nos depoimentos das fontes especializadas e não
oficiais em relação aos efeitos do rompimento da
barragem de rejeitos minerais e químicos nos ecos-
sistemas, como também nas comunidades da regi-
ão de Mariana permitem enumerar alguns aspectos
de suas representações. O aspecto geral da cober-
tura exposta na reportagem é o propósito interpre-
tativo salvaguardado pela equipe de reportagem,
porém precarizado pelo esvaziamento das causas
da tragédia, ao transferir o caráter sensacionista do
testemunho aos declarantes; mas também concede
espaço ao biólogo contactado pela equipe de repor-
tagem no qual emite impressões e depoimentos es-
pecializados fundamentados nos impactos já ob-
servados. Porém, mesmo atendo-se ao panorama
factual do cenário de devastação ecológica, a repór-
ter e o editor rendem-se ao inevitável tratamento de
perspectivas futuras, típico de cobertura de desas-
tre e vulnerável aos efeitos sensacionistas.
Como o relato jornalístico não se preocupa
com as causas, não forja a reincidência do fato pre-
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judicial aos pobres, às espécies animais e vegetais,


mas reproduz através da angulação e da edição os
efeitos imediatos e a longo prazo, estendendo a ex-
periência do testemunho simulada nas projeções
das esperadas soluções futuras. O panorama tra-
çado se atém ao aumento do prejuízo causado ao
rio devido ao assoreamento ampliado pela lama de
rejeitos e à morte de espécies da fauna e da flora.
As perspectivas enumeradas são a desertificação,
poluição e morte de animais marinhos, prejuízo às
desovas das tartarugas em praia atingida e ao sal-
vamento de seus filhotes. Confrontando os pano-
ramas e as perspectivas da cobertura com os pro-
pósitos de testemunho e de reações sensacionistas,
percebemos a denúncia dos efeitos no leito do rio
até esbarrar em consequências imprevisíveis nesse
ecossistema e no macro-ecossistema marinho. Des-
ta forma, nos termos de Maurice Mouillaud, o dis-
curso jornalístico se prolonga no cenário da atuali-
dade do acontecimento, mas reduz o potencial de
relato preciso ao compreender a lacuna da história
do espaço natural destruído ainda sem cenário de-
finitivo. O jornalismo interpretativo converge o tra-
tamento de panoramas passados, presentes e das
perspectivas futuras. A reportagem aqui analisada
comprova que o tratamento das projeções dos fatos
pode sair prejudicado.
A cobertura ambiental pautada apenas nos
efeitos humanos e também em depoimentos sensa-
cionistas não chega a ser paralisante, conforme
defende Wilson Bueno, mas deve obrigar o periódi-
co e seus profissionais a não se levar pela promes-
sa de um rigor interpretativo e de um apuro cientí-
fico. As brechas nessa promessa de rigor permiti-
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ram as percepções do pai pescador e da lavadeira


autônoma, presentificando as perspectivas sociais
futuras dos efeitos na natureza, porém os repórte-
res desumanizam o relato da moradora ao proble-
matizar o sentido de “tempestade” de chuva espe-
rada diante da catástrofe humana inesperada. O
repórter pode até reunir o próprio relato junto aos
testemunhos e sensações dos declarantes para o
leitor tirar suas conclusões, no entanto, as marca-
ções temporais em relação aos aspectos dos fatos
podem trair sua pretensão de oferecer um quadro
provisório se os interesses de cobertura ambiental
e científica forem mantidos. Wilson Bueno (2008,
p.166-167) defende um jornalismo ambiental in-
terpretativo além das proposições do jornalismo
científico tradicional atrelado apenas ao conheci-
mento de laboratório sem contextualizar as reper-
cussões sociais das descobertas e das análises. A
reportagem da revista Veja acaba cumprindo ape-
nas o compromisso de panorama atual, já que re-
serva ao futuro as impressões das sensações das
fontes especializadas. A história vai cobrar desse
modelo de jornalismo ambiental um novo relato
factual contextualizado daqui a alguns anos.

Referências

BELTRÃO, Luiz. Jornalismo interpretativo: filosofia e técni-


ca. Porto Alegre: Sulina, 1976.
BUENO, Wilson da Costa. As síndromes do Jornalismo Ambi-
ental Brasileiro. In: MELO, José Marques de (Org.). Mídia,
Ecologia e Sociedade. São Paulo: INTERCOM, 2008. p.161-
172.

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CONNERY, Thomas B. Journalism and Realism: rendering


American Life, Evanston: Northwestern University Press,
2011.
GOMES, Wilson. Jornalismo, fatos e interesses: ensaios de
teoria do jornalismo. Florianópolis: Insular, 2009.
MAXWELL, Richard; MILLER, Toby. Greening the media.
New York: Oxford University Press, 2012.
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em questão. In: MOUILLAUD, Maurice; PORTO, Sérgio
Dayrell (Orgs.). O jornal: da forma ao sentido. 2. ed. Brasí-
lia: Editora Universidade de Brasília, 2002. p.49-83.
MUHLMANN, Géraldine. A political history of journalism.
Cambridge: Polity Press, 2008.
OLINTO, Antonio. Jornalismo e literatura. Porto Alegre: JÁ
Editores, 2008.
RODRIGUES, Adriano Duarte. Delimitação, natureza e fun-
ções do discurso midiático. In: MOUILLAUD, Maurice; POR-
TO, Sérgio Dayrell (Orgs.). O jornal: da forma ao sentido. 2.
ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. p.217-
233.
RODRIGUES, Adriano Duarte. Estratégias da comunicação:
questão comunicacional e formas de sociabilidade. Lisboa:
Editorial Presença, 2001.
ZALIS, Pieter; RORIZ, Jonne; ALLEGRETTI, Fernanda. O ma-
pa da destruição. Revista Veja. Ed. 2454, ano 48, n.48, 2
dez. 2015. p. 84-92.

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Tempo de seguir o diálogo

As coberturas de danos ambientais e de mu-


danças climáticas têm em comum o tratamento
das causas a fim de evitar a recorrência de desas-
tres e catástrofes, além das repercussões dos fatos,
comuns às rotinas da reportagem, convergentes às
perspectivas futuras de preservação antecipadas
devido às urgências da atualidade. Compreendendo
a associação entre crises ambientais e sociais, po-
dem angular e agenciar as vozes das minorias mais
afetadas pelas interferências humanas na nature-
za.
A grande reportagem da revista Veja e os li-
vros-reportagem Caiu do céu: o promissor negó-
cio do aquecimento global e A espiral da morte:
como a humanidade alterou a máquina do clima
apresentam lacunas, respectivamente, na cobertu-
ra de causas e perspectivas, e de discursos de mi-
norias sociais. Margarethe Born Steinberger (2005,
p.89) aponta que a lacuna jornalística é resultado
de um processo seletivo, refletindo as decisões do
jornalista. Essas narrativas em formato periódico e
livro deixaram de legitimar a cidadania ambiental
dos sujeitos mais atingidos nas tragédias ao delimi-
tar a angulação precária dos danos e das urgên-
cias, provavelmente devido à falta de tempo de pro-

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longar a reportagem imposta pelo dead line e à op-


ção pela sobreposição dos relatos científicos em
detrimento das fontes não oficiais.
O livro-reportagem Diário do clima serve de
modelo no tratamento jornalístico de representan-
tes de grupos minoritários atingidos diretamente
pelo aquecimento global. A escritora jornalista de-
nuncia os impactos da adaptação climática e ante-
cipa à atualidade a emergência dos propósitos mi-
tigadores. Sugere que o tempo das mudanças cli-
máticas é o tempo dos pobres menos responsáveis
e mais prejudicados pelos seus efeitos. A partir de
suas discussões, podemos tratar a mitigação como
interpelação democrática de discursos contra as
causas e os impactos, e a favor da cidadania indi-
vidual, coletiva e global, agenciados no construto
editorialístico das narrativas jornalísticas.
Wilson Gomes (2009, p.13) fala da necessi-
dade tautológica do jornalismo por conta do desdo-
bramento, da duplicação do fato a dar-se por uma
segunda vez ao ser relatado, sugerindo o passado
forjado de presente nas suas práticas, rotinas e
nos seus processos. Segundo Adriano Duarte Ro-
drigues (in MOUILLAUD; PORTO, 2002, p.230), a
mídia neutraliza as marcas enunciativas de tempo
a fim de atribuir novidade aos acontecimentos.
Compreendemos a refração do discurso jornalístico
sobre o tempo factual e extrafactual, capaz de tra-
tar o passado e o futuro ao construir sentidos de
atualidade. O discurso refratário da cobertura de
danos e de mudanças climáticas interpela fontes
oficiais e não oficiais acerca das causas do passado
recente e dos impedimentos da recorrência dos fa-
tos no porvir. Os pobres refratam o futuro na atua-
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lidade porque já sofrem com o aquecimento global


e as tragédias ambientais. O chefe dos aimarás le-
gitima a emergência da mitigação climática (“Agora
o aquecimento global”; “Agora está desaparecendo”)
ao declarar:

A cerimônia continua, o Qoyllur Ritii continua,


mas o gelo fica aqui [...] Agora o aquecimento glo-
bal, senhores, é uma preocupação! [...] Faz quase
vinte anos que venho à festa, e eu via gelo de lá
até aqui. Tudo, tudo coberto de gelo. Agora está
desaparecendo, todo, todo, todo... (BRIDI, 2012,
p.49).

O pescador William da Silva atualiza no pre-


sente os prejuízos a serem contabilizados no futu-
ro, alertando contra a repetição do desastre:

“Sem os peixes, terei de repensar as finanças da


minha família. Como sempre fiz pesca informal,
sei que não serei indenizado pelo desastre” (ZA-
LIS; RORIZ; ALLEGRETTI, 2015, p.88).

Eles fazem parte das camadas sociais pobres,


religiosas e de trabalhadores autônomos reconhe-
cedoras do papel de cidadãos ambientais, agenci-
ando espaços públicos de reprodução de vozes a
arregimentar um planeta mais sustentável. O chefe
espiritual peruano, apesar de não enumerar cau-
sas, detecta o tempo da devastação e faz o balanço
do aumento da temperatura. O pescador brasileiro
ainda vai calcular as perdas, mas sabe as causas e
os efeitos de sua crise econômica e social. Isso pro-
va muitas vezes as dificuldades das vítimas em in-
terpretar os fatos com o rigor dos especialistas em

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meio ambiente e clima, provavelmente porque se


atém às maiores aflições do “aqui e agora”: as con-
sequências em suas vidas e a percepção do prolon-
gamento temporal dos desastres ecológicos e soci-
ais.
As comunidades tradicionais têm autoridade
e legitimidade de falar sobre as variações naturais
e as interferências antropogênicas no clima. E os
jornalistas muitas vezes podem contar com essas
fontes não oficiais na detecção de dados, na atri-
buição de causas e no balanço de evidências. Basta
guiá-las seguindo os propósitos do jornalismo am-
biental contextual e de prevenção de erros e desas-
tres. É importante também compreender a reporta-
gem em qualquer formato (periódico, livro) como
um construto “radial”, convergente de ofertas e
demandas de problemáticas de gênero, classe, ra-
ça, etnia, através do qual os sujeitos legitimam in-
dividualmente, coletivamente e socialmente suas
identidades e subjetividades, seus direitos a uma
natureza preservada.
Não há diferenças no tratamento de tragédias
ecológicas e das mudanças climáticas por parte
dos mais atingidos, pois eles necessitam de um
presente seguro permeado de integridade física,
econômica e social a fim de apostar num porvir
ainda melhor. A perspectiva pós-colonial permeia
esses construtos discursivos de cidadania ambien-
tal democrática e compartilhada em favor dos paí-
ses, dos povos, das sociedades e do nosso planeta
Terra. Falta à reportagem em seus formatos jornal,
revista e livro ampliar os espaços das vozes das ví-
timas locais, regionais e globais. Os tempos de re-
começar, refletir e seguir são os mesmos!
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Referências

ANGELO, Claudio. A espiral da morte: como a humanidade


alterou a máquina do clima. São Paulo: Companhia das
Letras, 2016.
BRIDI, Sônia. Diário do clima: efeitos do aquecimento glo-
bal: um relato em cinco continentes. São Paulo: Globo, 2012.
FUNK, McKenzie. Caiu do céu: o promissor negócio do
aquecimento global. Trad. Pedro Sette-Câmara. São Paulo:
Três Estrelas, 2016.
GOMES, Wilson. Jornalismo, fatos e interesses: ensaios de
teoria do jornalismo. Florianópolis: Insular, 2009.
RODRIGUES, Adriano Duarte. Delimitação, natureza e fun-
ções do discurso midiático. In: MOUILLAUD, Maurice; POR-
TO, Sérgio Dayrell (Orgs.). O jornal: da forma ao sentido. 2.
ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002. p.217-
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STEINBERGER, Margarethe Born. Discursos geopolíticos da
mídia: jornalismo e imaginário internacional na América La-
tina. São Paulo: EDUC; Fapesp; Cortez, 2005.
ZALIS, Pieter; RORIZ, Jonne; ALLEGRETTI, Fernanda. O ma-
pa da destruição. Revista Veja. Ed. 2454, ano 48, n.48, 2
dez. 2015. p. 84-92.

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