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MEU CORAÇÃO É O BICHO

Tem coração que é feito cachorro de rua. Segue o primeiro que lhe oferece um
assovio. Mesmo manco e sarnento, exibe o sorriso pela calçada enquanto cheira
a panturrilha de quem pensa ser o seu próximo dono. Se vier um naco de carne
junto com um afago displicente, oferece a eterna fidelidade.
Outros corações são como gatos vadios. Chegam quando querem, se enroscam
no colo, esquentam a nossa pele com o calor que trazem dos telhados. Parecem
se moldar ao tamanho da nossa carência. Mas a entrega não é cúmplice.
Corações felinos pulam para novas aventuras quando bem entendem.
E não tentem segurá-los ou confundi-los com amor de coleira: eles arranham. E
aí, é melhor que partam mesmo. Ficam apenas os pelos de seus corpos
espalhados pelo sofá, coisa que demora a sair.
Fui apresentado outro dia ao coração do tipo cobra. Ele também se enrosca
pelo seu corpo e tem alcance para dar algumas voltas em torno de quem
abraça. A pele parece ser gelada, mas aos poucos a gente sente a textura firme
de seu toque. Cada vez mais presente, deixa pouco espaço para o companheiro.
Parece fazer um molde em volta do outro, que se quiser mudar de posição,
sentirá que o coração deste tipo pode estrangular sob o risco de perder a presa.
Um amigo me mandou uma carta relatando uma longa história com o coração
do tipo calopsita. Eu resumo aqui porque esse bichinho é o mais chato do reino
animal: não tenho a mínima paciência para corações histéricos que gritam
presos na gaiola.
E o coração peixinho de aquário? Aquele que faz do seu pequeno mundo uma
redoma para as visitas elogiarem.
Tive ao meu lado um coração de cavalo do Jockey. Prometia levar-me rápido
aonde eu queria, mas a corrida sempre era curtinha. E a montaria tinha que ser
leve para não lhe sobrecarregar as costas. Existem os corações cavalos de
aventura, para longas e acidentadas trilhas, mas aí são outros quinhentos...
Estou trabalhando em uma pequena enciclopédia dos corações de bicho. O
trabalho deve ir longe. Já mapeei o coração do tipo pelicano, aquele que voa
sereno sobre as ondas; coração tartaruga de projeto ambiental, aquele que
sempre precisa de ajuda para seguir pelo mar; coração de cadela no cio, atrai
todos os cachorros da vizinhança e demora a escolher apenas um (sabe-se lá
com qual critério); coração de boi, pesado e ruminante; coração de hamster,
sempre a correr o mundo na roda gigante do seu cercadinho; coração de
lagartixa, perde parte do corpo para se salvar; coração de dog alemão, grande e
desajeitado; coração de labrador, inspira confiança; coração de sapo, se você
toca, sente a pele gelada.
Minha prima chegou aqui em casa toda feliz na semana passada. Estava com um
anel de noivado na mão. Ganhou do seu primeiro namorado. Eu disse a ela que
tinha coração de ararajuba, a vida inteira com o mesmo parceiro. Ela me beijou
o rosto e chamou-me para ser o padrinho do casamento. Aceitei. Todos os
amores deveriam começar com a promessa de serem eternos, mesmo que um
dia as aves sintam necessidade de partir para lados opostos. Mas isso eu não lhe
disse. É construindo o ninho que também se aprende a voar.
Já fui do tipo coração pombo, dormindo nos parapeitos e descendo para a
calçada em busca das pipocas que os turistas jogam pelo chão. Às vezes, poso
de coração coruja, observo mais do que amo. Brinquei algumas vezes de
coração poodle taradinho de apartamento, enroscando-me frenético nas pernas
das visitas. Passei um tempo com meu coração araponga, dando meus gritos de
metal no meio do descampado; era um choro de solidão. Estudei muito para
converter meu coração em ave de rapina, com suas investidas certeiras em
presas sem condições de defesa; logo vi que o caçador é a eterna vítima de
quem persegue, por isso abandonei o projeto.
Hoje ando pelo zoológico procurando nas jaulas, nos cercados, nas árvores e
nos lagos, meus pares perdidos — o que de mim ficou em cada coração descrito
nas plaquinhas.

Ao som de “Coração de Bicho”, da Banda Blindagem.


Composição de Ivo Rodrigues

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