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A INSURREIÇÃO
Revisão Tipográfica:
Helena dos Guimarães Bastos
Hilber Mathias Cunha Filho
Umberto F. Pinto
Rachel Orind Tarnapolsky
Francisco Alves
1983
© Antonio Skármeta
“Twist do recruta”
de ANDY MACÍA-FICCO,
interpretado por The Ramblers.
CAPÍTULO I
Senhor Presidente:
Valho-me deste meio de comunicação em vista de, não ter outro para
comunicar-me com Vossa Excelência.
Quero chamar a sua consciência cidadã para pedir-lhe seus bons
ofícios a fim de impedir a situação conflitiva que estamos sofrendo nesta
cidade. Ademais, como pastor da grei, tenho o sagrado dever de velar em
todos os setores da vida humana.
É possível que minha postura de hoje provoque novas acusações contra
a Igreja, mas já não se pode tolerar que siga a morte ceifando a vida dos
homens sem juízo nenhum e só prevaleça a lei da selva. Agora vivemos no
salve-se quem puder.
Esta cidade está hoje sob os piores dias de sua história. Ninguém tem a
vida segura. É uma cidade ocupada e morta. As tropas vão e vêm pelas
ruas semeando o terror e ceifando vidas sem nem escapar as crianças. Que
está acontecendo? Por acaso perdemos o uso da razão? Será que a lei do
mais forte deve aplicar-se a este amado povo leonês? Será que não há
moral nem lei de Deus que acatar? Por acaso matando, podem ser
solucionados os problemas da pátria?
Por que não sentar-se em mesa de amigos e compatriotas e julgar ou
procurar os meios civilizados? Por que não respeitar a pessoa humana? Por
que jogar no esquecimento as palavras do Mestre: “Que a paz esteja
convosco”?
Eu imploro pelo amor de Deus que se contenha esta onda tremenda de
criminalidade com as consequentes vinganças e atropelos ao ser humano.
Deus quer que sejamos irmãos. Deponhamos o orgulho, a soberba ou a
vaidade e cubramo-nos com as armas de luz que são benignidade,
bondade, mansidão, compreensão, amor.
Senhor Presidente, ponha fim a tanta dor. Há muitíssimos lares que
choram a perda dos seres queridos. A pátria está ficando sem os homens
do amanhã. Teremos uma pátria sem norte nem bússola. No passo que
vamos, acho que se assenhoreará a morte.
Cristo aceitou a morte e foi a ela para dar-nos vida. Por que tornar
inútil seu sacrifício?
Para que os filhos de Deus tenham seus direitos inalienáveis e sua
condição não deteriore, é necessário voltar de novo à luta da vida: no
campo com as colheitas, onde o Deus de todo bem derrama sua chuva
sobre bons e maus e faz sair o sol para vivificá-los. Na vida familiar, para
que todos gozem de bem-estar e paz. Na vida cidadã, para que
construamos uma nação digna, próspera e feliz.
Senhor Presidente, nada perde abundando em generosidade, tudo se
acaba nesta vida, só as boas obras nos seguirão à eternidade.
Deus nos dará a graça da concórdia se a pedimos deveras. Que esta
Páscoa que estamos celebrando seja realmente florida e não sangrenta.
Espero que atenda a alma dolorida deste Pastor que clama por
misericórdia. Que a morte volte a seu tenebroso esconderijo e não caminhe
impunemente por nossas ruas nem consuma a vida dos nicaraguenses que
queremos continuar vivendo sob o amoroso olhar de Deus e a proteção da
Mãe dos homens, Maria. Atentamente no Senhor,
Monsenhor Manuel Salazar Espinoza
Bispo de León.
CAPÍTULO IV
Eu nunca rio
da morte.
Simplesmente
acontece que
não tenho
medo
de
morrer
entre
pássaros e árvores.
Mas não serei tão bobo quando te vir. Quando te vir, te vou beijar e
beijar e vou fazer combustão contigo e me fundirei em ti e deixarei que
minha cabeça esteja tão cheia de teu amor que não tenha que pensar em
nada. Dizem que vai chegar um momento em que a Frente dará a ordem de
que todo mundo faça greve e que então será a ofensiva militar definitiva.
Quisera ter esse momento redondo e perfeito entre minhas mãos.
Como essa laranja cheia de néctares que eu comeria em Chinandega. Ando
quebrando a cabeça com esse momento que não chega. Esse momento que
me eleva como um cometa. Aqui, nas noites, caem aerólitos. Parece um
eterno Ano-novo. Mas eu não conheço os nomes dos pássaros. Pergunto
aos camponeses e, conforme pousam nos galhos das árvores, vão-me
dizendo, segundo o voo me vão contando, conforme o canto. Às vezes os
dias são assim longos, um rio. Movem-se mas permanecem. Tão quietos.
E logo estamos em ação. Assaltamos comandos da Guarda na estrada,
entramos em um povoado e o cercamos, as balas substituem os pássaros.
Os rapazes gritam Pátria ou Morte quando avançam. Eu não digo nada.
Tento cumprir o que me incumbem. Acostumei-me a disparar, mas depois
não quero ver se matei alguém. Tomara que Somoza vá embora. Vamos
triunfar, mas o país ficará destroçado. Contam que em Masaya, em
Monimbó, a população resistiu em fevereiro ao ataque da Guarda com
bombas de mecate e pólvora. Dias inteiros. Dos nossos foi Camilo. A
Guarda entrou com tudo em Monimbó: tanques, aviões, infantaria. De
León não sei nada. Dizem coisas, mas sempre tão vagas. Dizem que a
universidade está fechada. E tu, então, que fazes? Teu velho continua
desempregado? Dizem que na Nicarágua metade da população não tem
trabalho. Embora não vás à aula, trates de continuar estudando. Sobretudo
muita prática. Quando vencermos vais fazer muita falta com tua broca e
tua mão de anjo. Alegro-me de ter-te emprestado um de meus dentes para
teus exercícios, porque a obturação continua firme como uma rocha. Mas
o que acho é que ficou um pouquinho grande, porque sinto seu tamanho
quando passo a língua por ela. Ou será que estava acostumado a meter a
ponta da língua no buraco cariado? Conosco está um chileno que também
estudou odontologia em seu país. Diz que nas competições esportivas
entre faculdades o grito deles era: “Canino-canino, molar-molar: Escola
Dental”. Já não sei o que estou te falando, ora. Todas as palavras me
aborrecem e apertam como uma roupa nova ou um par de sapatos dois
números menores. O único que tenho certo são estes braços que voam para
abraçar-te e que eu amarro com esta letra pequena que cada vez diminui e
diminui para que alcance até o final da página. Se tivesse papel te
escreveria mais longo. Agora só me dá para colocar bem pequenino
(embora a intenção seja bem grande) “te amo”.
P.S.: Todo o anterior escrevi ontem. Hoje soubemos que não haverá novas
ofensivas no resto do mês. Em todas as partes se analisam os efeitos da
greve de janeiro. Dizem que o tal de Solaun influiu em setores
empresariais para terminar a greve. Foi o ensaio geral de outra que virá, a
enorme, a triunfal, a que me devolverá a ti (se tu ainda me aceitas). E
agora que me dou conta, quase esqueço o objetivo desta carta. Peço-te
desculpas por não ter ido a tua casa no dia em que prometi: simplesmente
não pude. Não acredito que hoje consiga outra folha de papel. Também não
dará para corrigir a carta porque alguém de muita confiança viaja para
León e fará com que ela te chegue. Ele saberá como. É astuto como uma
raposa e valente como um leonês. Estou contente porque acho que esta
carta, sim, te chegará. E mais contente ainda porque talvez tu poderás
respondê-la. Despede-se de ti com um beijo muito erótico, teu poeta,
Leonel.
Salinas leu o colofão da carta e, indo na ponta dos pés até a cortina verde,
deslizou-a sobre o trilho. A sombra que sobreveio não teve nem a menor
aresta de frescura. Instalou-se rotunda e irrespirável.
Sem procurar alívio, Ignacio passou o empapado lenço uma vez mais
pela testa e pálpebras. Desfez os pés cruzados sobre o canto da mesa de
classificação e apoiou os calcanhares em sua cadeira. Depois afundou o
queixo entre as rótulas e quis identificar a expressão do rosto de Salinas na
úmida penumbra.
— Idiay? — disse-lhe.
Salinas esteve durante alguns minutos acariciando as dobras da
cortina, empenhado em que não se filtrasse um estilete de luz quente.
— Idiay? — insistiu Ignacio sem mudar sua posição. O funcionário lhe
dedicou um olhar sem resposta e voltou a alisar obsessivamente o
cortinado. — Deixe isso, homem, e voltemos a falar do que interessa.
Salinas enfiou sua cabeça pela janela e reviu a dilatada rua com a
minuciosidade de um relojoeiro.
— Não há ninguém — disse secando as palmas úmidas na borda da
cortina.
— Quem haveria de haver?
— Alguém, ora — torceu o pescoço em direção à Ignacio e lhe
dedicou um olhar medularmente suspeito. — Alguém que te tivesse
seguido, ora.
Nem o enorme bocejo com que Ignacio expandiu seu corpo,
derretendo-se plácido sobre a cadeira, fez com que Salinas sentisse a
nimiedade de sua apreensão. Colocou a carta sobre a mesa e, em cima,
cobrindo-a totalmente, o livro Cleópatra de Emil Ludwig.
— Afinal — disse o jovem —, estás com medo.
— Eu? — exclamou Salinas, escandalizado.
— Pois então saia já e a leve.
— Podia ser — disse.
— Como é isso de podia ser? Faze-o ou não faze-o, essa é a questão.
Se o faz, o faz, se não o faz, não o faz.
O homem levantou a ponta do livro e espiou a margem inferior da
carta. Leu: “muito erótico, teu poeta”.
— Por que eu? — disse.
— Por que tu? — gritou Ignacio. — Porque tu és carteiro, idiota. Que
coisa melhor do que um carteiro para entregar uma carta?
Salinas colocou um dedo vertical sobre os lábios e apontou
significativamente para a janela. Foi até ela, correu a cortina e olhou para
ambos os lados da rua.
— Não há ninguém — disse.
Veio até a mesa, levantou o livro e, do alto, estudou a caligrafia dessas
três páginas nutridas de uma letra econômica e tensa.
Ignacio avançou até o flanco da mesa, agarrou a carta e a pôs no bolso
da camisa.
— Deixemos as coisas como estão — disse. — Se não te atreves a
fazê-lo, não o faças.
Salinas, de um tirão rotundo, arrebatou-lhe os papéis, colocou-os com
um golpe em cima da mesa e começou a alisá-los.
— Como o faço? — disse.
— Antes de mais nada, coloques a carta em um envelope. No envelope
coloques um selo. O selo o marcas com o carimbo do correio.
— O carimbo que tenho é daqui. O poeta está pelos lados de Rivas, não
é mesmo?
— Pois então você o coloca e o borra assim com o dedo. Quando
alguém recebe uma carta, lê a carta e não o selo.
— Falas assim porque não és tu quem a levas. Sou eu quem a leva.
Ignacio sorriu. Esse enfático eu de Salinas havia sido também seu um
dia. Em um tempo em que contava mais quem fazia a ação do que o seu
efeito.
— Perdoe — disse —, é um detalhe importante.
— Alegro-me de que te dês conta.
— Me dou conta.
Salinas meteu os papéis em um envelope e quando se dispunha a untar
saliva na parte engomada, deteve sua língua na ponta do triângulo:
— Suponho que dá no mesmo quem põe o cuspe no envelope — disse.
— Dá no mesmo — exclamou com voz afogada, franzindo o sorriso
que puxava para abrir-lhe os lábios.
Salinas deslizou meticulosamente a língua pela borda engomada, como
quem corre uma cremalheira e depois aplanou o envelope em cima da
mesa de classificação dando-lhe pequenos golpes com o punho.
— Te perguntava — disse sem olhar o jovem — por que dizem que no
Panamá treinam os militares com todos os tipos de recursos técnicos.
— Sim?
— É muito possível que pelo cuspe no envelope descubram quem é o
dono da língua. O endereço escreve você.
Ignacio pôs o lápis entre seus dentes, alisou uma vez mais a superfície
com a palma da mão direita, aproximou o lápis e escreveu:
Senhorita
Victoria Menor
4 quarteirões ao sul da Farmácia “Lucy”
León
Nicarágua
O carteiro assomou-se por cima do ombro e conteve a respiração ao ler
o nome.
— A Victoria Menor — disse. — A filha de Antonio Menor! Mas é
para a própria Victoria Menor.
— Onde estão as estampilhas, pois?
— A própria irmã de Agustín, caralho!
Salinas retirou um selo de um córdoba e o pôs sobre a carta. Ignacio
untou-o com saliva e o estampou no canto superior direito. Depois agarrou
o carimbo de borracha, colocou-o no interior da boca para dar-lhe ar e por
último golpeou-o, resvalando-o em cima do selo para que as palavras se
borrassem. Depois assentiu com o queixo satisfeito:
— Nem Cristo poderia ler o que diz o carimbo.
Salinas o estava observando como se tivesse a respiração engasgada e
não se atrevesse a expulsá-la. Engoliu abundante saliva e disse:
— Posso te dizer algo? — Ignacio coçou o nariz, condescendente. —
Houve um tempo em que gostei muito da Vicky.
— Te apaixonaste por ela?
O jovem estudou o lento rubor que avançava sobre a tez do carteiro.
Este pôde adivinhar que uma súbita ronqueira evitaria a resposta e assentiu
com a cabeça, como quem tentasse respirar em um oceano de vergonha.
— E nunca disseste a ela?
— Não — disse com uma voz alheia.
— Anos e anos no mesmo quarteirão, comprando o óleo no mesmo
armazém, ouvindo os mesmos discos, no mesmo grupo de amigos!
— Ela era muito linda.
— Idiay?
— Coisas que acontecem com a gente, ora. As mulheres muito lindas
não são para a gente.
— Essa é uma filosofia idiota e fatalista, Sali. As mulheres lindas
sempre estão imensamente tristes e sozinhas porque só se aproximam
delas os homens lindos que lhes dizem baboseiras e as usam para passeá-
las e mostrá-las tudo isso.
— Eu também não tenho o dom da palavra.
— Nem faz falta. Quando eu sinto algo profundo por alguém, alguma
coisa assim mais ou menos grande, eu só olho para ela e me calo.
— E nunca te falha?
— Nunca me falhou.
— Pois eu nem sequer tenho esses silêncios tão bons.
Salinas levantou a carta da mesa e a sacudiu na frente dos olhos de
Ignacio, esgrimindo a prova definitiva.
— Você viu por quem ela se apaixonou? Por um poeta.
Ignacio cravou-lhe os olhos como o arranhão de um gato.
— Por um companheiro, não?
Salinas pesou a carta e pareceu dar voltas a um carrossel de
recordações. Ignacio foi até o fundo do cômodo e passou a mão sobre o
empoeirado artefato do canto.
— O telégrafo? — perguntou de costas a Salinas.
— Sim.
— Sabes usá-lo?
— Vi como o usam, mas usá-lo mesmo, nunca usei.
Ignacio virou-se e com passo ágil foi até Salinas e cravou-lhe
insistentemente um dedo no peito.
— Tens que aprender a usá-lo — piscou-lhe um olho. — Trata-se de
uma ordem.
O carteiro ficou perplexo no meio do quarto enquanto o jovem
caminhava permitindo que um segmento de luz, já que não o ar, chegasse
até seu corpo. Esteve um longo tempo engulosinado em sua perplexidade
e, de repente, aceso por uma descarga, foi até a rua e se pôs a trotar com a
carta empunhada até alcançar Ignacio. Quando chegou ao seu lado,
ofegando, esgrimiu-lhe uma vez mais o envelope com a mesma evidência
que o havia feito no escritório.
— Por que não entrega você a carta? É vizinho dela. E se não a quer
dar pessoalmente, por que não a joga por debaixo da porta?
Assentindo com o queixo como lhe era habitual, Ignacio ouviu as
perguntas, escrutando no mais alto do céu se nessa tarde choveria.
— Tens alguma outra pergunta?
Salinas se sacudiu, tentando acalmar um ataque de súbitos e
imprecisos comichões.
— Não, ora. Essas seriam todas e nada mais.
O rapaz deslocou a vista em um semicírculo controlando o caminho da
frente e ambas as esquinas. Esperou, pacientemente, com o nariz agarrado
pelos dedos, que passasse um homem desconhecido, e só então tomou as
mãos do carteiro com as suas e as agitou suave e fraternalmente.
— Porque algum dia tinhas que começar.
CAPÍTULO VI
DON CHEPE conta que Ignacio esteve três dias escondido no pátio
traseiro do salão de barbeiro, na casinha de ferramentas — em sua maior
parte, enferrujadas — até que lhe trouxeram a mosca de que teria de unir-
se aos rapazes na frente de Chinandega.
O padre havia confessado em interrogatório que o tal cidadão Ignacio
Ortega havia deixado de concorrer ao seu templo fazia aproximadamente
três anos, quando foi endemoniado pelas ideias do sandino-comunismo.
Nas atas do sargento Cifuentes — que lhe disse “perdão, padre”, quando
apagava o cigarro no dorso da mão direita — consta que o sacerdote Pedro
Muzuraga ouviu em seu ofício de confessor ideias adversas ao governo,
mas que nunca — sem perjúrio — ouviu de nenhum dos fiéis de sua
paróquia que tivesse participado em atentados terroristas e que se inclina a
acreditar que estes são perpetrados por elementos alheios à idiossincrasia
do povo, presumivelmente castros-andino-comunistas.
O capitão Flores foi encarregado pelo Chigüin de estabelecer mão dura
e disciplina na culta cidade de León e, sendo possível, de capturar um tal
de Ignacio Ortega, pois é possível que não só tenha informação sobre a
insurreição dos leonenses, mas também — segundo sua orelha de
fidelidade acreditada — que seja o contato com a frente de Chinandega.
Salinas, de nome Sublime, profissão carteiro, natural de León,
confessou à ex-estudante de Odontologia, Vicky Menor, que desde havia
aproximadamente duas semanas Ignacio Ortega não visitava seu despacho
nos correios, e que o advogado Rivas — declarado orelha do regime — lhe
havia perguntado, olhando-o durante um longo, mas muito longo momento
nos olhos, se o tal de Ignacio Ortega havia deixado de vir ao correio e que
em seu juízo qual poderia ser o possível motivo se o houvesse.
O major Anastasio Somoza — apelidado Chigüin — se fez presente no
próprio Teatro Municipal e, acompanhado pelo capitão Flores, avançaram
até o grifo onde se sabe foi detonada a bomba que voou o jipe da Guarda
Nacional ocasionando a baixa de três leais oficiais do Regime. O major
Chigüin encareceu ao capitão Flores diante da tropa que os protegia com
seus Garands a captura de todo jovem maior de treze anos ao qual
coubesse a mais leve suspeita de colaboração com o sandino-comunismo
e, em caso de confirmar-se a dúvida, sua imediata execução na porta de
seu respectivo domicílio. Com tom altaneiro que fez enrubescer a tensa
jugular do capitão Flores, o Chigüin lhe teria recordado que desde que lhe
encarregara a captura de Ignacio Ortega, o outrora eficiente capitão Flores
não havia produzido as novidades ansiadas. “Quando escreveres a tua
família, envie-lhes meus cumprimentos, hein”, concluiu com um brilho
maligno que cortou a respiração do capitão.
Segundo Myriam Herrera Pérez, irmã de Marta Herrera Pérez, ex-Miss
León, juvenil e simpática personalidade, o jovem Ignacio Ortega não se
conta no seleto círculo de suas amizades e mal poderia haver-lhe dado
alojamento na casa de sua senhora mãe como se diz, se conta e se afirma.
Presente a Guarda Nacional no domicílio da senhorita Myriam não se
encontraram evidências da presença na casa de seres do sexo masculino.
Só cartas sentimentais do cidadão Tico Antonio Iglesias, mas dirigidas a
Marta e não à sobredita Myriam.
Um civil avizinhado discretamente ao domicílio de dona Edelmira,
viúva de Ortega, mãe do suspeito Ignacio Ortega, informa que de acordo
com seus diálogos com a citada pôde declarar à chefatura de León o
seguinte: que a senhora Ortega ignora onde está seu filho Ignacio, de 20
anos, que ignora também onde estão seus filhos Ramón, de 18, Ernesto, de
17, César, de 15, e Daniel, de 14 — mas que presume podem encontrar-se
em algum lugar do território nicaraguense, provavelmente em Manágua, já
que ali têm familiares. Consultada sobre o endereço de ditos parentes,
declara haver esquecido. Atribui esta amnésia à sua idade avançada, já que
segundo afirma começou a parir demasiado tarde. Este informante
constata que não há outro habitante na casa ao qual recorrer para obter os
dados requeridos em nenhuma das modalidades que assinala o formulário.
Uma rápida inspeção visual das habitações, não obstante, permite concluir
que ditos jovens viveram naquela casa até coisa de uma semana, pois não
há atmosfera de habitação longamente abandonada. No quarto do suspeito
Ignacio Ortega não se encontrava material de leitura contraditório com os
interesses do estado democrático. Mas não escapou a este funcionário o
fato de que em capas de discos clássicos de Brahms, Mozart e Mantovani
encontraram-se gravações dos conjuntos chilenos Quilapayún, Intillimani,
e um long-play completo com títulos sandino-comunistas do nicaraguense
Carlos Mejía Godoy e os de Palacagüina. Estes fatos não permitem
concluir diretamente que o jovem Ignacio Ortega tenha sido o autor do
atentado a bomba que custou a vida de três funcionários da Guarda
Nacional e a perda irremediável de um jipe equipado com moderno
sistema de rádio, mas são indícios suficientes para afirmar que: a) o jovem
Ortega, por suas afinidades musicais, poderia chegar a cometer um ato
criminoso e talvez já o tenha cometido, b) o jovem Ortega desapareceu de
seu lar mais ou menos — para não dizer “exatamente” — no dia em que o
lutuoso atentado terrorista comoveu o povo de León, c) que o resto da
família — constituída por outros quatro jovens em idade crítica — em
parecida data fez abandono do seio materno temeroso das possíveis
represálias contra eles antes ou depois desta diligência. Método:
recomenda-se submeter a interrogatório — e em caso propício à prisão —
a todo jovem maior de 15 anos que pudesse ter oculto a um membro da
família Ortega em seu domicílio. Este servidor estima que, encontrando-se
a um deles, pelos evidentes laços ideológicos e carnais que os unem, não
se tardaria em encontrar o resto deles. Com relação ao tratamento especial
a dona Edelmira, o abaixo-assinado informante o desaconselha pela visível
avançada idade da mulher e por sua enfermidade que em suas próprias
palavras consiste em: uma opromissão aqui no peito, que me aturruga a
respiração. Consultado o médico de bem-estar deste serviço, afirma que
não é possível determinar só com este antecedente a enfermidade da
paciente, mas recomenda abster-se também de tratamentos especiais já
que a sobredita “opromissão” pode ser desde uma dispneia dolorosa por
traumatórax, ou uma pleurisia, passando por transtornos bulbares, uremia,
constipação pertinaz, até hepatite. Sem outro particular, cumprimenta
atentamente a Sua Senhoria,
Minolta.
DEPOIS da emboscada
POETA!!!
Tua carta é a coisa mais amada entre todas as coisas que acumulei
desde minha infância, incluídos ursos de pelúcia, retratos de primeira
comunhão e as sapatilhas de balé de quando eu sonhava em ser artista.
Mas uma coisa são os sonhos e outra é a vida. Em vez de artista, quase
acabei dentista. Como você gosta das palavras, terá notado que artista
e dentista terminam nas mesmas arestas. (Não estou rindo de você,
poetaço, sei perfeitamente diferenciar entre a POESIA!!! e a rima.)
Mas nem sequer dentista serei por que me botaram para fora da
Universidade, parampampam. Disseram para mim “canino-canino
molar-molar, a Vicky vai se arrancar”. Imagine você que só me faltava
um ano. Agora dizem que talvez poderia continuar na Costa Rica, na
ilha. Em algum outro país. Mas como conosco está chovendo no
molhado, meu velho ficou desempregado e desde que você
desapareceu vivemos com alguma coisa de dinheiro que meu irmão
traz e, no resto do tempo, de milagre ou do acaso. Já saberás por nosso
curso comum de latim elementar que este fenômeno é conhecido como
“Síndrome Nicarágua”. Mal de muitos, consolo de tontos??????
Não, senhor!!!!!!!
Cada um na sua. Você, um tigre elástico e saltarino, turisteando por
aí, e eu, um gato de rabo de saia e insidioso, metendo minhas garrinhas
em cada casa desta cidade, que se prepara para receber-te não com gala
mas sim muito oxigenada!!!!!
Tua carta encheu a casa e minha vida de ar!
Quando a li, deu-me a impressão de que de repente você entraria
voando!
Fiquei molhadinha. Tive que trocar de roupa. Quando estiveres
comigo, fala-me assim como me escreves, Leonel.
Leonel, você é meu amor.
Perdoo-te que tenhas ido sem avisar.
Mas embora estejas onde estás e eu esteja onde estou, vamos
esclarecer algo já. Eu sou teu amor, mas TUA não sou. Você é meu
amor, mas MEU não é. Pensei muito todo esse tempo no que é ser
mulher e estou bastante estrita em muitas coisas que não estou
disposta nunca mais a aceitar. Para começar, noto em tua carta que
falas muito de ti e dos outros turistas como se em teu grupo não
houvesse mulheres e eu sei, positivamente, que nesses giros viajam
muitas damas. Mas não contas nada delas, não? Como se não
existissem!
No domingo depois da missa houve um ato cultural na paróquia e
uma moça leu um poema de Gioconda Belli, que dizem que anda por
aí. Copiei-o para que saibas como nós, as “minas”, escrevemos poesia:
JULHO.
Tem nome de companheiro o mês.
O carro atravessa a noite. A estrada silenciosa. A Via-láctea.
Acima o ruído do avião. Está nublado. Carregamos as armas com
desfaçatez.
Entre o lago e o Pacífico esta franja. Olhada no mapa, a Nicarágua
parece a América Latina. E esta linha caminho para León me lembra o
Chile. América Latina. Zelaya é o Brasil, Manágua é a Bolívia,
Chinandega, Peru; Nueva Segovia, Colômbia; Jinotega, Venezuela. E
Equador?
Volto para casa.
Estranha esta calma imensa.
O carro trepida, mas tudo está em seu lugar. Como nos pátios da
infância. Lembro-me da casinha do cachorro, os ninhos de pássaros. As
formigas que subiam e desciam da árvore, reconhecendo-se cada uma.
Uma a uma, tantas.
León.
Esta calma onde cabe o céu. Nem uma estrela. O céu e a estrada
perdidos em uma só nuvem que me parece infinita. Somoza não caiu e no
entanto vamos fumando tranquilos. A morte não se anuncia. A gente não
chama por ela agora como a um médico. As coisas não falam. Todo o
segredo do universo é o silêncio. Nada fala. Só nós andamos aos
empurrões com as palavras.
Eu, poeta.
Eu, em León.
A Nicarágua inteira liberada e o ditador não cai. Que está
acontecendo? Como é que se decidem as coisas na história? Deixamos
para trás os vulcões e agora a paisagem canta calada. Só os homens
falando. Falamos discursos, gritamos coisas fortes, coisas devagar. Todo o
resto se cala.
Por que é tão nova esta tensão entre fumaça dos cigarros que sai pelas
janelas do carro e a silhueta dos postes?
Sinto que não vivo no presente, mas sim em um presságio.
Digo a Guatón Osorio que ligue o rádio.
Me pergunta com seu sotaque sulino:
Para que queres ouvir o rádio, bobão?
O presságio, digo. Tenho a intuição de que Somoza foi-se embora.
Tás babaca, me diz. Num caiu.
Como o sabes?, lhe digo.
Se tivesse caído se saberia.
Como?
Não sei, pois, bobão. O carro estaria voando, o céu estaria ardendo, se
poriam a cantar os pássaros. Qualquer coisa estranha.
Ponha o rádio, lhe digo.
Osorio obedece. Sua Garand repousa em seu estômago abundante. O
vento lhe endurece o suor na testa. Aperta o botão do High Fidelity do
Pontiac e a primeira coisa que soa é a voz de um cantor americano. Dean
Martin? Sinatra? Quem cantava Money burns a hole in my pocket?
Dean Martin, diz o Gordo. E aumenta o volume e assobia a canção
com Dean, segue as pistas da estrofe como se tivesse ensaiado toda sua
vida para este momento perfeito em que a estrada é uma nuvem. Esse tema
eu ouvi do meu velho. E da minha velha. Dos dois, antes que fossem
embora deste país da grande puta e me deixassem só engasgado com o
Código Romano.
Feliz viagem, velhos. Eu serei poeta.
Todos os pássaros calados. Um festival de pássaros em silêncio. O
Pontiac molenga absorve a noite. Nem ao menos uma estrela. Vamos
metidos nesta solidão como se a rota fosse feita só para nós. O asfalto um
tapete triunfal para o poeta Leonel, para o Gordo Osorio.
Até ontem a cintura nos charcos, abrindo caminho a machete,
dormindo no teto das casas enquanto um gato te observava e depois se
lambia lentamente o rabo, e os refletores da Guarda metendo-te as garras.
Hoje avançamos de carro, a bandeira sandinista drapeja ao vento da antena
e no High Fidelity canta Dean Martin.
Tomada assim desse modo pequeno, a revolução pode parecer uma
coisa estranha.
Estranha também a pausa da emissora atrás de cada tema. Como se os
animadores fizessem as malas no estúdio e não conseguissem voltar para
anunciar outra música.
Osorio olha para mim. Como é que um sujeito tão gordo pode ter esse
olhar tão intenso? Leva o cabelo alvoroçado pelo vento. Nenhum de nós
acredita numa emboscada. A Guarda fugiu para Honduras, se meteu em
aviões americanos ou está refugiada nos bunkers e comandos. Estão
esperando o quê? Os marines? Condições para a rendição? Reforços
prometidos? Somoza disse que governaria até 81 e aqui estamos nós indo
por esta estrada intransitável, tão nossa. Nossas próprias pernas. Osorio
olha para mim longamente e sorri para mim. Eu lhe sorrio de volta.
Tinhas razão, me diz. Assinala com uma piscadela de olho o High
Fidelity. O sacana se calou.
Ouvimos o silêncio. Os rapazes entrando na emissora e tomando posse
de seus microfones, de seus estúdios, suas antenas? Passam dois, três
quilômetros e de repente suave, um beijo de despedida, entra Tito
Rodríguez cantando Quem diria.
Quem diria que aquela menina, hoje é uma mulher completa e que
gosto dela com outra maneira de gostar? Olhem que coisas, quem poderia
dizer.
Já não há locutores.
Só o técnico que crava a agulha precisa no sulco e nenhuma palavra.
Ninguém está berrando com tom de noticiário de cinema que o governo
esmagará a insurreição dos traidores. Só o técnico na casinha acolchoada
esgaravatando entre seus discos preferidos. Talvez depois de Tito, um
Manzanero. E depois de Manzanero talvez já seja a hora de don Carlos
Mejía Godoy e os da Palacagüina. Tens razão, Gordo. Se agora de
Manágua a rádio transmitisse Flor de pino, este automóvel levitaria até
estrelar-se com os aerólitos e cometas, iríamos tão verticalmente para
cima como um jato. Saberíamos em meio a esse caminho corcoveado a
bazucaços e rachado a terremotos que Manágua caiu. Que caiu para cima!
Que vais fazer?, pergunto ao Gordo.
Estuda-me com o pescoço dobrado, reclinando-se no vento.
Depois da vitória, esclareço para ele.
O sorriso lhe abre a fileira de dentes de onde saltam seus caninos
alegres. É como se tivesse a boca cheia de fogos de artifício.
Já vencemos, disse.
Que vais fazer? Voltas para o Chile?
Homem!
Alguma ginástica? Com um pouco de bigode? Um pequeno retoque no
passaporte?
O Gordo mantém o sorriso aceso. Os faróis do automóvel rastreiam a
pista. Subitamente o motorista aperta o botão do rádio e o desliga. Ao
longe, mas inconfundível, está o tiroteio.
León, diz.
Comprovamos que temos as armas sobre os joelhos.
León, penso.
CAPÍTULO XXIV
Thiago Cerejeira