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Prefácio
Este é um livro sem par, sob muitos aspectos. Sobre esses ·muitos
aspectos não posso nem quero desentreter o Leitor-Vedor, pois lhe au-

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guro e asseguro coisa muito melhor: muito melhor é que ele vá direta-
mente ao texto (com suas citações) e às ilustrações que lhe são ofereci -
das pelo Autor, e alimente o diálogo que lhe é proposto. De uma coisa
estamos, todos, certos : sua visão cromática do mundo -do mundo obje-
tivo e do seu mundo subjetivo- sairá extremamente enriquecida e (mais)
enriquect'vel, pois este é um livro que, a cada leitura, a cada manuseio, a
cada remanuseio, se vai revelando sempre mais pejado de direções, inspi -
rações, sugestões, até mesmo sonhações : uma segunda, uma terceira, uma
enésima compulsação deste biblo, desta br'blia, irá desvelando sempre ho-
rizontes diferentemente coloridos e permitindo que se adivinhem e in-
tuam outros ainda não ousados nem sonhados.
O Autor tem todas as caracterr'sticas dos mant'acos, dos loucos, dos
possessos, dos obsessos, dos obsediados, dos obcecados, dos obsessio-
nados - com a imensidão de sua racionalidade buscadora e inquisidora
e de sua emoção transfiguradora que o transformam num sábio e artista,
às vezes até quase um santo, pois às vezes a miragem e o projeto de que
se deixou motivar o levam a orações quase franciscanas de aparente in-
genuidade, vale dizer, da pureza que não atemoriza os iluminados.
Na prática expositiva atual, este livro Séliria normalmente escrito a
uma dezena de mãos (e cabeças) de especialistas - pois em verdade este
livro recobre setores do conhecimento empr'rico e teórico que são, hoje
em dia, especialidades dentro das especializações, microtécnicas dentro
da tecnologia, miniartes dentro da arte. Mas ne5se caso, este livro, quero
dizer, esse livro a dez mãos perderia seguramente ante este que aqui está :
pois lhe faltaria, àquele, essa unidade de vivência, de visão e de paixão
que fazem desta obra- de natureza intrinsecamente enciclopédica- um
ensaio marcado por uma aventura intelectual criadora e emocional una.
Afinal de contas, seu Autor vem sendo, há vinte e sete anos, só uma
coisa : um pintor pensador da cor. Ser obra de um só Autor, que durante
sua elaboração foi paralelamente pintor, professor, pesquisador, experi-
mentador, aliando prática e teoria, eis o primeiro ponto alto deste en-
saio, deste livro.
Eis o segundo : quem enveredou pelos r'nvios caminhos desta pesqui-
sa intu r' a, desde o inl'cio que o fenômeno e a essência cujas leis buscava
eram algo que, tendo substancialidade e fisicalidade, vigiam sobretu-
do pelo relativismo sensorial e perceptivo, o que os inclur'a no reino
das coisas humanas, vale dizer, culturais, o que vale também dizer per-

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fectfveis (e imperfect(veisr· Aqu.i também, como em tudo mais que é hu-
mano ou disso participe, aqui também o homem se faz a si mesmo, quer
dizer, o Homem se ensina e aprende consigo mesmo a "ver" cada vez
mais e melhor a cor, as cores, numa progressão que vai até à tomada de
consciência da "cor inexistente", esse conceito como que expressamente
elaborado pelas insônias inquiridoras deste Autor : a cor humana faz o
olho humano que faz a cor no processo humano, chegando à percepção
e ao domfnio das interações cromáticas que geram, em áreas isentas de
pigmentação, sua presença, o da cor existente por interação, essa cor
"inexistente".
Há um ponto ainda que é de conveniência ressaltar aqui: o conflito
que, de certo modo, se pode exibir entre diferentes conclusões de croma-
tólogos, antropólogos e cromatonomistas -e já me esclareço :
Ao longo da história da cor e dos homens preocupados com as in-
trinsicalidades e extrinsicalidades disso que chamamos cor- homens que
são hoje ditos cromatólogos e cromatotécnicos -, tem havido desde os
que a negam, pura e simplesmente, aos que as reduzem a sete ou a três
(em dois pares) cores primárias, aos que lhes asseguram existência na
ordem de grandeza de até cem milhões de diferenciais. Isso vem sendo
ressaltado, porque -assegura-se -um espectro cromático qualquer pode
ser, entre dois pólos, graduado em infinitésimos quantitativos tais que, a
haver distinção sensorial e perceptiva, esta se fará por zonas de saltos-

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do que seria prova a pobreza cromaton(mica de todas as llnguas de cul-
tura: de fato, os nomes das cores são muito poucos. De fato, os "nomes
das cores" são de uma pobreza sem par, se comparados à alegada riqueza
de cores ofertada pela natureza ou percebida e/ou criada pelo homem.
(Há a( algo afim do fato de que, para que o significante folha só pudes-
se significar "folha", todas as "folhas" reais deveriam ser iguais, quando
se sabe, ao contrário, que em sua fisicalidade intr(nseca nunca nenhuma
folha foi jamais igual a outra folha,. mesmo que do mesmo pé, da mesma
estação, da mesma foliação).
Mas entre cromatólogos e cromatonimistas se interpõem, por vezes,
certas alegações antropológicas. Antropólogos, seres estranhos, esses, por
vezes. Pois que os há que alegam que há povos, ditos primitivos, que sa-
beriam dar nomes a até três mil cores: entra-se, assim, no campo dos
cômputos incomparáveis, sobretudo porque, nas lfnguas documentadas,
isto é, com reserva e tradição gráficas, nenhuma há que ofereça mais de
30-40 palavras para designar cores, baixando algumas para "confusões"
hoje conspfcuas, como a do grego para o que chamamos "verde" e
"azul", confusão que também existe entre povos cultos modernos - o
escocês, por exemplo. Estar-se-ia, repito; na área de comparações feitas
sob critérios d(spares. E que é absolutamente improvável que exista, uma
l(ngua que use de três mil lexemas para diferenciar nominalmente asco-
res. Leve-se a esse respeito em conta certas analogias : no Brasil, por
exemplo, deve haver algo como sessenta mil espécies de animais e não
conhecemos mais de três mil nomes substantivos comuns vulgares para
designá-los (o que é "normal" e impõe a nomenclatura cientffica da
zoologia para todas as partes do mundo).
Mas a pobreza verbal não é apenas para a cromática. E, compara-
tivamente, também do campo das formas e dos volumes. Com efeito, se
se deixa de lado a nomenclatura cientffica da geometria e da matemática,
para as formas e volumes ditos uni-, bi- ou tridimensionais; vê-se logo que os
nomes comuns populares são extremamente poucos, não apenas em por-
tuguês, mas (provavelmente) em quaisquer I (nguas. Assim, podemos falar
em ponto, linha, quadrado, redondo, bicudo, estrelado, chato, liso (estes
já da área táctil), por ar, para logo cairmos no cúbico, cônico, piramidal, ·
romboédrico, dodecaédrico e equivalentes, eruditos e matemáticos. Há,
isso não obstante, uma pobreza também aparente,_pois imediatamente se

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enseja um campo de derivação de nomes específicos: por exemplo, para


o corpo humano, há, potencialmente derivados em -udo que lembram
forças (enfáticas) parecidas com as correspondentes do corpo humano :
um prego cabeçudo, uma xi'cara orelhuda, e narigudo, e queixudo, e
olhudo, e pescoçudo, peitudo, ancudo, coxudo, e fiquemos por a( (pois
alguns se prestam mais se pensados no feminino) .
Esta digressão visa a mostrar que o Autor - embora adentrando-se
na sua seara com alma aparentemente enciclopédica - na realidade era
animado por outra alma, por sua alma cromática, aceitando que sua te-
mática tivesse campos de manifestação e cognição que não seriam enfren-
tados por e"le, pois exigiriam outro tanto da vida para serem levados a
cabo. Esperemos, assim, que apareça entre nós um estudioso da croma-
toni'mia que venha a ficar à altura do cromatólogo (e em grande parte
cromatotécnico) que é Israel Pedrosa, que a tudo isso alia a sua perso-
nalidade de Pintor- pura e puramente.
E, agora sim, louvemos o que é de louvar. Eu, pessoalmente, estou
fascinado com este Da cor à cor inexistente : não me proponho a postura
de árbitro capaz de julgar tudo o que este ensaio oferece, pois, embora
luminosamente clara a sua linguagem e exposição, nem sempre minha
formação prévia me dava os requisitos prévios para assimilar toda a carga
de informação que para mim há neste ensaio. De outro lado, porém, há

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um sem-número de aspectos, aqui, que degusto com matização, pois me
creio qualificado para fazê-lo, por meu passado e por meu presente. Ora,
isso me faz suspeitar que ocorrerá com todos os leitores deste I ivro, de
forma parecida, o que dá bem a medida de sua importância.
E, então, é o espanto. Mas espanto que é grato e comove, pois
poucos autores há que mereçam tanto quanto este. Pois que outros, com
menor obstinação, se afundaram no autismo ou no solilóquio ou em for-
mas piores de incomunicação. Entretanto, Israel Pedrosa não só superou
o desafio que se propôs já faz tantos anos, senão que o transformou em
fonte luminosa para todos nós, fonte de saber e conhecer e praticar e
amar as cores, o que por si só é bastante para que todos lhe sejamos
gratos para sempre.
E fico-me nisto, que não é louvor, mas agradecimento.
Mas há um pormenor neste livro em que não quis deter-me, a fim
de não me exceder, pormenor da maior importância - veja-se que o
menor é maior, às vezes. Como coisa industrial, como produto gráfico,
como artesanato, tipológico, cromático, litográfico, diagramático, este é
um livro que honra a tipografia e a editoração brasileira: Israel Pedrosa
merecia-o. Ficamos-lhe devendo isso também.

RiodeJaneiro, 10deabril de 1978


ANTONIO HOUAISS

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