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37 2020 amor e servidio, paixao e revolta’ 0 amor ao dever esté no centro da liberdade de moral Max Stirner E muito bom ouvir Laura Cordero, porque sua perspectiva histérica dos anarquismos é muito importante para situar que uma série de praticas tidas hoje como corriqueiras nas relacdes amorosas foram inventadas e/ou possibilitadas pelas lutas anarquistas. Eu costumo dizer que a anarquia se pauta mais pela revolta ¢ a multiplicidade de praticas do que pela revolugo ¢ uma teoria. Quando se entende a revolucao com uma pretensao totalizadora, acabada, ela é solugdo dirigida e definitiva. Quanto a revolta é isso que disse Laura sobre o amor livre: é uma Acicio Augusto é pesquisador no nu-sol, professor no Departamento de Relagées Internacionais da UNIFESP. onde coordena do LASInTee (Laboratério de Anéllise em Seguranga Interacional de Tecnologias de Monitoramento), ¢ no Programa de Pés Graduagao em Psicologia Institucional da UFES, Contato. acacia. augusto@unifesp.br. 2 verve, 37: 42-56, 2020 verve amor e servidéo, paixéo e revolta experiéncia, com todos os “erros” e “acertos” que se pode experimentar. A politica moderna, mais acabada, e apartada da dimensao da experiéncia, nao compreende o que uma situagao de revolta pode disparar, a despeito dos efeitos e reagées que ela pode sofrer. Basta ver como certas leituras analisam 0 que temos vivido na América Latina, pelo menos desde 0 comego da década passada, com acontecimentos como junho de 2013 por essas terras ou as revoltas que estéo acontecendo neste momento no territério dominado pelo Estado chileno. A revolta ativa a dimensao antipolitica das lutas locais, algo insuportavel para marxistas ¢ liberais. Nao tracarei uma historia do amor livre, tampouco direi o que ele é ou deixa de ser. Proponho expor, muito brevemente, trés comentérios em torno do tema sugerido por Margareth Rago, quando ela inventou de me colocar nessa mesa para surpresa, inclusive, de algumas pessoas (segundo ela me disse). Enfim, ter um homem nessa mesa em que a grande forga ¢ singularidade da discussio vém das mulheres anarquistas. Comentarei rapidamente, primeiro, sobre amor e politica; depois, sobre a anarquia ¢ a paixao como revolta; por fim, farei um breve comentario sobre hoje, a partir de uma maxima do Roberto Freire, um anarquista que nos deixou ha pouco tempo (nao muito pouco tempo), e que, alias, esta presente na minha caixinha de guardar o mago de cigarros com a frase “Ame e dé vexame”, o nome de um livro dele também?. verve, 37: 42-56, 2020 4B 37 2020 amor e politica O amor na politica moderna é um afeto de servidao. Recomenda-se que ame a sua familia, ame a sua esposa, © seu marido, ame a patria, ame a Deus. Em resumo: na cultura judaico-crista, amar é obedecer. Pensando nisso, decidi falar sobre amor e anarquia da perspectiva dos que sao, reconhecidamente, os experimentadores mais radicais no que diz respeito ao sexo e ao amor livre na histéria dos anarquismos: os chamados anarco-individualistas, em especial, um francés chamado Emile Armand. Como indicam os principais historiadores dos anarquismos, a referéncia do que se denomina de anarco-individualismo é Max Stirner, um sujeito que nem era declaradamente anarquista. Um jovem critico de Hegel, muito bem definido por Edson Passetti como um anarquista nos anarquismos*. Stirner escreveu um pequeno artigo publicado na Gazeta Mensal de Berlim, de Ludwig Buhl, chamado justamente “Algumas observagées provisérias a respeito do Estado fundado no amor”, em que ele apresenta um debate, ocorrido a partir de uma publicagio de 1808, que discutia como na Revolugio Francesa, os valores de liberdade e igualdade da revolusio, tinham se perdido para uma reagdo conservadora. E ai, Max Stirner, com a ironia e a acidez proprias, fa comentario mais ou menos assim: bom, se o Antigo Regime pedia para o stidito amar o rei, o novo regime apenas pede para amar a patria, entao, o amor € comum e€ 0 cidadao nada mais é do que a transmutag4o amorosa do servo. E por essa e outras que Karl Marx, um sujeito que acreditava na acao estatal e nao gostava de Stirner, dedicou o maior capitulo de A ideologia alemé, escrito com Engels, aos ataques a ele. um 44 verve, 37: 42-56, 2020 verve amor e servidéo, paixéo e revolta O amor, portanto, é um afeto politico de servidao, isso é um fato que est registrado pela histéria politica moderna, a histéria na qual se funda nossa contemporaneidade. A despeito desta constatacao, eu associaria a anarquia a paixio e a revolta. E na histéria das lutas, essa longa hist6ria ja situada pela Laura Cordero, quero relacionar as praticas anarquistas com a paixdo, nao apenas no campo da agao politica ou militante. Interessa incorporar essa paixio pela liberdade enquanto uma maneira de combater a transmutagao dos valores do amor como devogao servil. E é ai que se passa, entre os anarquistas, do amor a servidao no stidito e no cidadao para o que eles chamarao de amor livre. Eu trouxe trés pequenos momentos para nao me estender muito. camaradagem amorosa O primeiro deles esta na proposta de Emile Armand, de camaradagem amorosa’. Ao contrario do que se pensa, e do que principalmente hoje em dia se repete, 0 amor livre nada tem a ver com poliamor, “promiscuidade” ou contratos, aos moldes liberais, de nao-monogamia. O Armand tem um texto muito bonito em que ele vai dizer assim: o amor livre é a pratica amorosa que nao respeita nenhuma instituic¢ao formal ou informal. Se vocés preferirem, como bom stirneriano que era o Armand, © amor que nao se dobra a moral. Ele escandalizava, sendo um dos poucos defensores do que chamava de homossexualismo ou sodomia na época, e da pritica do incesto. Ele dizia abertamente. Ele tinha uma definicgao que considero muito bonita: temos que aprender a lidar verve, 37: 42-56, 2020 4s 37 2020 com os temperamentos amorosos — existem pessoas que séo mais tendencialmente monogamicas, outras mais poligamicas; cu posso estar vivendo um momento onde eu esteja pendendo mais para uma coisa ou para outra, © que importa € que essa pratica nao esteja submetida a nenhum tipo de regra exterior e, sim, que ela seja imanente de cada um, que seja uma decisao livre e considerando a relagdo com o outro. E essa associagao amorosa livre que ele chamava de camaradagem. O excepcional interdito que Armand colocava a essa definicao de camaradagem amorosa era a violéncia, que deveria ser banida das relagées. Nao poderia haver violéncia que subjugasse qualquer parte. Ele entendia por violéncia 0s jogos emocionais e as chantagens como submissao ao poder e assim por diante. Mas 0 Armand apanhou muito, inclusive dentro dos meios anarquistas, pois o que defendia era tomado como algo secundario, pequeno burgués, que nao teria ressonancia entre os trabalhadores, que nao contribuiria nada para a revolucao, entre outras mesquinhas reagées. Considero bogal essa critica aos anarquistas chamados de individualistas, porque, agora, no século XXI, as formulagées dos chamados individualistas se mostram mais atuais e radicais do que toda a retérica pastoral dos anarco-sindicalistas direcionada aos operarios, que nem existem mais, ao menos nao aos moldes da disciplina fabril que marcou as relagées de trabalho no século XIX e parte do século XX. uma experiéncia, mulheres anarquistas O segundo momento esta relacionado também com Armand. E sobre uma garota, uma argentina América % verve, 37: 42-56, 2020 verve amor e servidéo, paixéo e revolta Scarfé, que fundou a editora que a Laura Cordero fez mengao aqui, a Américalee. Como algo que seria um escindalo para a atual ministra da Mulher ¢ da Cidadania, Scarfé aos 16 anos se apaixonou por Severino Di Giovanni, um dos principais militantes anarquistas na Argentina, que se dedicava regularmente a assaltos a bancos, 4 execucao de delegados e assim por diante. Osvaldo Bayer, historiador argentino, publicou um livro belissimo sobre o Severino Di Giovanni®. Mas o que ela, América, faz. aos 16 anos? Procurou uma “reposta” anarquista a0 caso amoroso nao convencional que ela estava vivendo. Foi severamente atacada nos meios anarquistas ¢ corroborando o que expés Laura Cordero, o fato de ser de esquerda ou ser anarquista nao livra ninguém se ser machista e homofdbico. Na época, Emile Armand produzia um jornal chamado L’En- Dehors’ e ela, América, decide escrever a ele: “camarada, estou aqui querendo uma espécie de consulta amorosa”, e diz, “no amor, por exemplo, [sobre os anarquistas] no aguardaremos a revolugio, ¢ nos uniremos livremente, desprezando preconceitos as barreiras, as inumeraveis mentiras que interp6em a nds como obstaculos’®. E sublinha: “aqui, em Buenos Aires, alguns se arvoram em juizes. Eles nao se encontram apenas entre as pessoas comuns, mas também entre os companheiros de ideia [modo como se chamavam os anarquistas], que se veem livres de preconceitos, mas que no fundo sao intolerantes”’. América era uma mulher de 16 anos com uma visao muito elaborada do anarquismo, do que era a revolusio, da relagao dela com o Severino, que tinha por volta de 28, 29 anos, ou seja, quase o dobro da idade dela. Alguns aqui, hoje, na esquerda diriam: “nossa, Severino é um pedéfilo, igual ao Caetano Veloso....”. Enfim, é 0 governo da moral verve, 37: 42-56, 2020 ay 37 2020 que nao esta apartado das nossas vidas, inclusive da minha, que fique claro. Por isso a urgéncia em lutar contra © que somos, também, cm nossas relagées amorosas ¢ de amizade. E a resposta do Armand foi muito interessante. Ele afirma que devemos ser consequentes com nossos atos, © que, se pra ela, para o Severino e as demais pessoas envolvidas esta tudo bem, nao ha porque nao seguir com o romance. América explicitou na carta enviada que a mulher de Severino sabia do amor deles ¢ que nao fazia nenhuma obje¢ao; que ela tinha meios materiais de se manter e nao precisava da ajuda material de Severino Di Giovanni. A pratica de camaradagem amorosa passa por outra coisa muito bonita. Armand coloca que isso nado tem a ver s6 com as relagées que entendemos como sexuais ou amorosas. A camaradagem amorosa passa pela convivéncia entre camaradas lendo livros, escrevendo, lendo e fazendo poesias, bebendo, em uma conversa, num jantar de horas, um passeio pelas ruas, a beira do mar ou as margens de um rio... Armand é um dos primeiros a ter sensibilidade entre os anarquistas para as relagdes chamadas de homossexuais ou hoje o que seria uma relagao gay. Ele dird ser capaz de amar um camarada e nem por isso se ligar eternamente a cle, ¢ nem a partir dai definir minha identidade, o meu sujeito, enfim, antecipando, a meu ver, muito do que sé emergir4 na segunda metade do século XX e com as obras do Michel Foucault e os seus desdobramentos. Mas, como nem tudo sio flores na vida... Uma anarquista nascida no territério dominado pelo Estado brasileiro, chamada Maria Lacerda de Moura, 48 verve, 37: 42-56, 2020 verve amor e servidéo, paixéo e revolta autora de A mulher é uma degenerada — oportunamente republicada, neste ano, pela Fernanda Grigolin —, publica um outro livro chamado Amai-vos e no multiplicai-vos®. Ela introduz o argumento que vocé, mulher, deve amar e nao necessariamente gerar filhos. Ela apreciava os anarco- individualistas,em especial um anarquista francés chamado Han Ryner, mas foi uma critica feroz de Emile Armand (amigo de Rynet), dizendo algo como: legal o seu papo de camaradagem amorosa, mas para vocé que é homem é muito facil. Segundo Margareth Rago, “Maria Lacerda considerava a ‘camaradagem proposta por Armand como ‘um retorno @ promiscuidade, ao consumismo sexual degradante, no qual a mulher continua representando © papel de coisa, objeto de prazer, eleita sempre e quase nunca com direito a escolher’. Para ela, a natureza fizera a mulher apta a satisfazer varios homens, enquanto os homens nao tinham essa alternativa”"’. A critica de Maria Lacerda de Moura ¢ pertinente, considerando nao apenas a “proposta” de camaradagem amorosa de Armand, mas sobretudo 0 meio no qual ela se daria. No entanto, para efeitos do argumento que uso aqui ¢ importante notar, na critica de Maria Lacerda, que nao existe e nao ha pretensio de consenso, nem sobre essa questao ¢ nem sobre qualquer outra, entre os anarquistas; além de América, havia intensa produgao de praticas e criticas sobre o que seria 0 amor livre, hoje isso pode parecer trivial, mas essa intensa produgao estava no comego do século XX, as portas de intimeras investidas fascistas em todos os paises e em vias de consolidacao de governos fascistas. Eu nao sustentei aqui que o Armand € 0 grande canone do amor livre; ele € um anarquista que me interessa muito. Este francés foi interpelado por uma anarquista verve, 37: 42-56, 2020 49 37 2020 brasileira [a Maria Lacerda] que langou um livro em 1924 [o Amai-vos e néo multiplicai-vos], se nao me engano, ¢ que escandalizaria hoje num momento em que o governo brasileiro recomenda, oficialmente, que os jovens no fagam sexo, imaginem uma mulher falar isso... Emma Goldman esteve envolvida com 0 movimento operario estadunidense. Entretanto, a prisao dela se deu por fazer palestras, ensinando as mulheres métodos anticoncepcionais. Ela, Emma, foi estigmatizada como a mulher mais perigosa da América (Voltairine de Cleyre tem um intenso texto, com exatamente esse titulo), nao por fazer greve, néo por fomentar a revolugao, mas porque ensinava as mulheres a trepar sem ter filho. Esta era a sua poténcia. Na verdade, é obvio que a atividade militante de Emma Goldman a colocou na mira dos “cana”, os macacos do governo, mas € significativo que o motivo oficial de sua priséo estava ligado a pratica do sexo livre. hoje: sem tesao nao solugao! Como que isso se dé hoje? A atualidade dessas praticas nao esta em mimetizar as praticas histéricas anarquistas, mas em compreender que esse campo da paixao, esse campo do amor, esse campo do afeto, da sedugao, de fato, nao esta disponivel a nenhum tipo de domesticagao ou regra. Ha duas coisas sobre “afetos politicos” que me incomodam muito. A primeira delas é a ideia de que deve se banir o édio da politica (“estamos vivendo um tempo da politica de édio”). Bom, cu gostaria que alguém me mostrasse algum momento na histéria da humanidade que a politica nao foi feita com ddio ou que tenha sido feita sem a mobilizacao de ddios. E, de repente, alguém 50 verve, 37: 42-56, 2020 verve amor e servidéo, paixéo e revolta se apresenta como uma consciéncia que paira sobre nossas cabegas dizendo que o édio é da direita, que as “pessoas boas” devem “fazer politica sem édio”, Pelo contrario, tem um meme famoso, que eu gosto muito, que diz: “vocé é 6timo, sé te falta ddio”. Curioso € que ele sempre seja associado com os anarquistas, com um pinguim com o A na Bola no peito. Nisso ha uma ambiguidade: de um lado, constata a poténcia antipolitica da anarquia, mas, de outro e mais comum, busca-se desqualificar a ago dos anarquistas, associando-os a irracionalidade e a pratica da violéncia e do que o liberais gostam de chamar de “intolerancia”. A contrapartida dessa ideia remete a essa tradicao politica do amor como servidao que toquei no inicio desta conversacao, essa ideia de que a politica é um exercicio racional de pessoas que estao aqui seguras de si, civilizadas, como se fosse possivel estabelecer um acordo racional como, por exemplo, se fizermos um acordo de relagiéo aberta, isso significa que vocé nao ficard com cisime se eu beijar ele. Isso é uma grande bobagem, nao ha como controlar os afetos. O grande lance da ideia de amor livre dos anarquistas é antes de tudo admitir a inumanidade e lidar com ela. A ideia é esta: nao se faz politica sem ddio, e a contrapartida € aideia de que nao que nao se faz (anti)politica, militancia, sem tesao. Na tradigao da esquerda, a militancia é uma espécie de calvario que se atravessa: estou aqui me sacrificando, porque no futuro a revolugao... Isso produz absurdos. Lé-se muito facilmente em alguns setores da esquerda que matar pessoas é uma coisa ok: “na revolugdo vai morrer gente, tal”. E uma comédia, porque quem diz isso, se imagina dirigente dessa revolugao, e por isso nao vai morrer, verve, 37: 42-56, 2020 st 37 2020 morrerao os outros. E em nome disso, a militancia vira uma atualizagao laica e futurista do cristianismo. Por essas ¢ outras, decidi fechar esta exposicao com a lembranga do Roberto Freire, criador da somaterapia, uma terapia anarquista, que atualmente continua ativa com o Joao da Mata, com grupos no Rio de Janeiro, aqui em Sao Paulo e, as vezes, em outros estados... O Roberto dizia uma frase que ele conta ter encontrado pixada na rua (no muro do Cemitério da Consolagao em Sao Paulo): “sem teso nao ha solugao”. A melhor maneira de responder ao que a gente vive hoje, a esse bando de absurdos, a essa volta do conservadorismo (ele teria ido embora algum dia?), a esse conservadorismo de costumes que atinge, inclusive, parte significativa da esquerda, uma espécie de “Damares enrustida”, que fica querendo governar 0 sexo de todo mundo, querendo classificar 0 que cada um faz ou que deixa de fazer enquanto sexo; nao estou falando aqui de separagao entre vida publica e privada, porque um dos primeiros pressupostos do amor anarquista ¢é: 0 meu amor é evidentemente publico a todo momento , que ser4 complementado com o que o Jodo da Mata disse recentemente em um livro que esta para ser langado pela editora Circuito: a ideia de erotismo e sensualidade para além da dimensao afetivo-sexual, estendendo-se para uma erotizacao do cotidiano ?. E o que o Joao da Mata chama por “erotizagao do cotidiano”? E justamente tirar o erotismo desse lugar privilegiado relacionado ao sexo, é erotizar a sua relacao com seu companheiro e companheira de militancia, com seu amigo e com sua amiga, com 0 que vocé faz. A verve, 37: 42-56, 2020 verve amor e servidéo, paixéo e revolta partir do momento em que esse crivo de alguma maneira orienta sua vida (porque é ébvio, a gente ndo vai fazer s6 0 que a gente gosta) ¢ se vocé pensa que o crotismo € 0 tesao devem habitar todas as suas atividades, vocé se tornara cada vez menos suscetivel a ser o servil amoroso, a ser 0 bom marido, a boa esposa, o bom cidadao, o bom patriota, o cidadao de bem. Hoje, vivemos uma situagdo muito diferente. Vivemos crendo em um mundo em que o sexo estd liberado. E estou falando “crendo”, porque justamente essa hipertrofia do discurso sobre o sexo e sobre a sexualidade nos rouba a liberdade de viver 0 sexo como uma experiéncia livre'’, Entio ele, 0 sexo, deve ser daquela maneira que o clipe musical mostra, em que © consumo dos corpos dispostos como produtos lhe coloca. Nao ha como esquecer o final do volume 1 da Historia da Sexualidade de Michel Foucault, indo na contramao de uma tradigao da psicandlise e com a qual o Joao da Mata e o Roberto Freire™ se filiaram, que é a revolugao sexual do Wilhelm Reich. Foucault olhara para aquele momento, na metade dos anos 1970, quando deu forma a nogao de biopolitica, ¢ dira que mais perigoso que discurso sobre a repressio sexual é o discurso sobre a sexualidade, porque esse discurso tenta moldar a maneira como nos relacionamos com nosso sexo, como relacionamos quem somos 4 forma como fazemos sexo. A ultima frase do livro é: “Ironia deste dispositivo: é preciso acreditarmos que nisso esta nossa ‘liberagao”". verve, 37: 42-56, 2020 37 2020 Notas | Este texto foi escrito a partir de minha fala no langamento do livro de Laura Fernandez Cordero, Amor y anarquia, Experiencias pioneras que pensaran y ejercieron la libertad sexual. Buenos Aires, Siglo Veitiuno, 2019.0. Iangamento ocorreu no Tapera Taperd comigo, Laura Cordero e Margareth Rago, no dia 4 de Fevereiro de 2020, ¢ pode ser visto neste link: https://wwwws, youtube.com/watch?v=4-O7A9xGqq48cfeature=youtu.be. Embora utilize passagens transcritas este texto excede o que foi dito no video. Agradeso a Elis Verri pela transcrigio do audio do video. ? Roberto F ire. Ame ¢ dé vexame. Rio de Janeiro, Editora Guanabara, 1990. ~ Edson Passetti. Etica dos amigos: invengées libertérias da vida. Sao Paulo, Imaginario, 2003. 4 Max Stirmer. “Algumas observagées provisorias sobre o Estado fundado no amor” in verve. Sao Paulo, nu-sol, vol. 1, 2002, pp. 13-21, 5 Sobre a camaradagem amorosa, ver Emile Armand. “Amor, amor em liberdade, camaradagem amorosa”. in verve. Sio Paulo, nu-sol, vol. 21, 2012, pp. 22-29. ® Osvaldo Bayer. Severino Di Giovanni: el idealista de la violencia, Buenos Aires, Ed. Planeta, 1998 7 Sobre o jornal, ver: Emile Armand. “Our Rule of Ideological Conduct: Manifesto of the journal L’En-Dehors (1922)”. Tradugio de Shawn P. Wilbur, 2011. Disponivel em: http://theanarchistlibrary.org/library/emile-armand- our-rule-of-ideological-conduct-manifesto-of-the-journal-l-en-dehors. Para consultar as edigdes do LeN-Dehors de 1922-1939, quando Armand o editou, ver: http://www.la-presse-anarchiste.net/spip.php?rubrique287. * Nu-Sol (org)."‘América Scarf, uma experiéncia” (Cartas de Emile Armand ¢ América Scarfé) in verve, Sao Paulo, nu-sol, vol. 14, 2008, pp. 53-59 * Idem. ¥ Sobre Maria Lacerda de Moura, sua vida e seus escritos, ver Miriam Lifchitz Moreira Leite (org.). Maria Lacerda de Moura: uma feminista utépica. Floriandpolis, Editora Mulheres, 2005, pp. 369. 5. verve, 37: 42-56, 2020 verve amor e servidéo, paixéo e revolta © Margareth Rago. “Entre o anarquismo e o feminismo: Maria Lacerda de Moura e Luce Fabbri”. in verve. Sao Paulo, nu-sol, vol. 21, 2012, p. 63. ” © livro ainda nao foi langado, mas € possivel encontra diversos textos sobre 0 assunto no site da Soma: http://vwwzsomaterapia.com.br/. A respeito do que me refiro, ver, em especial: Joio da Mata. “Erotismo, sensualidade ¢ sexualidade como poténcia de vida”, Disponivel em http:// www.somaterapia.com.br/wp/wp-content/uploads/2015/05/Erotismo- sensualidade-e-sexualidade-como-pot%C3%A Ancias-da-vida.pdf » Para uma discussao mais longa e elaborada sobre isso, com suas implicagées morais, politicas, religiosas e mercadolégicas sobre 0 sexo livre, ver: Eliane Knorr de Carvalho. Sexo no mercado: produsdio de verdades, desejos ¢ moral. Tese de Doutorado. Sao Paulo, PUC-SP, 2017, 326 pp. ™ Sobre a vida e obra de Roberto Freire relacionada as priticas anarquistas ¢ a0 movimento anarquista, ver Gustavo Ferreira Simoes, Roberto Freire: teso ¢ anarguia, Dissertagao de Mestrado. Sao Paulo, PUC-SP, 2011, 227 pp. % Michel Foucault. Histéria da sexualidade I: A vontade de saber. Tradugao Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Graal, 2001, p. 149. verve, 37: 42-56, 2020 55 37 2020 Resumo Breve apresentagao das préticas do amor livre entre os anarquistas em aposigao ao amor como servidao. Parte- se dos escritos de Emile Armand e desdobramentos entre os anarquistas na experiéncia de América Scorfé, nos escritos de Maria Lacerda de Moura e nas priticas da Somaterapia. A anarquia se faz pela paixao e a revolta, 0 Estado, como aponta Max Stirner, é fundado no amor a servidao, seja do sidito ou do cidadao Palavras-chave: Amor livre, paixdo, revolta, camaradagem amorosa, tesdo. Abstract Brief overview on anarchists practices of free love opposed to love as servitude. Based on the writtings of Emile Armand, and the anarchist follow-ups on Amarica Sacarfo's experiences, Maria Lacerda de Moura’ writtings, and Somaterapia practices. Anarchy is build by passion and revolt. The State, according to Max Stirner, is build on love for servitude wether it is from the subject or the citizen. Keywords: Free Love, Passion, Revolt, Amorous Comradeship, Yen. Love and Servitude, Passion and Revolt, Acacio Augusto. Recebido para publicagao em 11 de margo de 2020. Confirmado em 14 de abril de 2020. verve, 37: 42-56, 2020

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