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6:11-18, 1983.
RESUMO: O trabalho procura analisar as novas linhas antropológicas surgidas a partir das pers-
pectivas teóricas funcionalistas.
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BARRETTO, M . A . P . — Da "Revolução funcionalista" às novas sínteses antropológicas. Perspectivas, São
Paulo, 6:11-18, 1983.
diferentes pelo mesmo processo de gera- mais nada, povoa a mente do pesquisador
ção espontânea. Os centros maiores de de- "cuja cabeça opera como um grande sin-
senvolvimento existem em número bas- tetizador de todas as crenças e de todos os
tante limitado — o que pode levar a con- costumes" (6:329).
cluir que conceitos e costumes foram di- Quando Malinowski diz:
fundidos da mesma forma a partir desses
centros mais desenvolvidos. As reconstru- " O que me interessa realmente
ções dos itinerários seguidos por estes no estudo do nativo é sua visão das
"traços" culturais tornam-se, no entanto, coisas, sua Weltanschauung, o sopro
tão abstratas e conjecturais quanto as re- de vida e realidade que ele respira e
construções genéticas às quais os difusio- pelo qual vive." (5:370),
nistas pretendiam se opor. notamos que a postura do investigador
O evolucionismo é, antes de mais na- mudou. Isso não constitui um movimento
da, uma mundivisão, é uma maneira de isolado, mas tornou-se possível graças a
enfeixar a sociedade mundial e nô-la apre- um tipo de produção intelectual pertinen-
sentar ordenada através de um princípio te à nossa época, cujos precursores foram
transcendente: a própria idéia de evolu- Marx, Freud e Nietzsche; sem alongar-me
ção. Manifesta-se sob vários aspectos: em suas descobertas e avanços, digo ape-
evolucionismo social, histórico, cultural, nas que a própria etnografia só pode
psicológico, geográfico etc, que parecem tornar-se ciência a partir do momento em
ser expressão direta do evolucionismo que, deslocado o Homem como centro
biológico de Darwin (note-se que, histori- absoluto e consciente das decisões, a pró-
camente, o evolucionismo sociológico é pria crítica do etnocentrismo tornou-se
anterior ao biológico). Procura, atuali- possível. Como conseqüência, a cultura
zando uma preocupação tipicamente oci- européia perdeu seus privilégios e deixou
dental (e mais ainda, tipicamente vitoria- de ser considerada como cultura de refe-
na), a legitimação através do conhecimen- rência, abrindo campo à etnografia como
to da origem e do que vem depois, numa ciência.
evolução por etapas sucessivas. Sendo da-
da a sociedade ideal, torna-se relativa- Ao procurar
mente fácil reencontrar as etapas evoluti- "apreender o ponto de vista do nati-
vas anteriores nos povos "primitivos" vo, seu relacionamento com a vida,
que ainda existem em diversos pontos des- sua visão do seu mundo" (5:33-4),
ta escala ascendente e progressista. Estas
"sobrevivências" exemplificam, em nega- temos o foco da análise, ou o centro colo-
tivo, a grande síntese ideológica que é o cado na própria cultura nativa.
evolucionismo. O funcionalismo parece realmente
firmar-se com o trabalho de campo etno-
A civilização ocidental é tomada co- gráfico, pois como proposta teórica já
mo paradigma e modelo ideal; é o término existia com H . Spencer:
do processo e serve não somente para
orientá-lo e organizá-lo, como também "Uma sociedade é um organismo
para delimitar suas possibilidades. A di- (sistema)." (cit. L . White (9:143).
nâmica interior impulsiona as sociedades
na mesma direção. Há, no entanto, algo A tese central de Malinowski é que as
que é subtraído ao movimento — há uma culturas formam unidades funcionais. Os
imobilidade fundadora que o fundamenta costumes ou instituições existem para
e define: é a própria idéia de evolução que preencher determinados propósitos e são,
sobrevoa todas as épocas e as organiza nessa medida, meios para satisfazer neces-
num todo coerente. Essa noção, antes de sidades.
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BARRETTO, M . A . P . — Da "Revolução funcionalista" às novas sínteses antropológicas. Perspectivas, São
Paulo, 6:11-18, 1983.
ponto de vista do nativo", existem três ca- fias de Malinowski que oferecem maior
minhos diferentes: ensejo a crticas. Como assinala E.R. Dur-
1. °) A organização da tribo e a ana- ham:
tomia de sua cultura devem ser delineadas "Os ataques (a Malinowski)
de modo claro e preciso. O método da do- concrentram-se geralmente na difi-
cumentação concreta e estatística fornece culdade de generalização que resulta
os meios com que podemos obtê-las. da metodologia proposta por Mali-
2. °) Este quadro precisa ser comple- nowski." (2:7).
tado pelos "imponderáveis" da vida real, Quando Malinowski diz:
bem como pelos tipos de comportamento, " A cultura não deve ser tratada
coletados através do contato íntimo com a como um aglomerado solto de costu-
vida nativa e que devem ser registrados mes, como um amontoado de curio-
em algum tipo de diário etnográfico. sidades antropológicas, e sim como
3. °) O corpus inscriptionum — que é um todo vivo e interligado... O méto-
uma coleção de asserções, narrativas típi- do funcional insiste em reconhecer o
cas, palavras características, elementos processo cultural como um processo
folclóricos e fórmulas mágicas — deve ser suigenerís... A cultura é viva, é dinâ-
apresentado como documento da mentali- mica, todos os seus elementos são in-
dade nativa. terligados e cada um preenche uma
função específica no esquema inte-
Em resumo, Malinowski propõe uma gral". (1929:864a, cit. L . White
descrição minuciosa da cultura nativa es- 9:145),
tudada (o que exige demorada permanên-
cia do pesquisador entre os nativos), que abre novamente o flanco a uma outra ba-
deve ser acompanhada de uma teoria das teria de críticas. Se nos limitarmos à no-
necessidades universais que se torna, em ção de função, como a concebe Mali-
última a instância, o instrumento básico da nowski, temos que, segundo Lévi-Strauss,
organização do material empírico consi- ela reintroduz noções de pouco valor
derado. científico, anulando progressos anterio-
res. E ajunta o crítico:
Mas, como observa Lévi-Strauss "Mas ele (Mauss) não lhe teria
(3:26): dado (à noção de função), segura-
"Quando nos limitamos ao estu- mente, a forma regressiva que deve-
do de uma única sociedade, podemos ria receber de Malinowski, para
fazer uma obra preciosa; a experiên- quem a noção de função, concebida
cia prova que, geralmente, se deve às por Mauss com o exemplo de álge-
melhores monografias a investigado- bra, isto é, implicando que os valores
res que viveram e trabalharam numa sociais são passíveis de conhecimento
única região. Mas nos proibimos em função uns dos outros,
qualquer conclusão para as outras". transforma-se no sentido de um em-
pirismo ingênuo, para só designar o
O problema é que a análise funcio- serviço prático prestado à sociedade
nal, como Malinowski a concebe, permite por seus costumes e suas instituições.
a passagem do particular ao geral, toma- Onde Mauss encarava uma relação
do como universal. Aparece constante- constante entre fenômenos, onde se
mente a noção de que, a partir da obser- encontra sua explicação, Malinowski
vação empírica de uma sociedade qual- apenas se pergunta para que eles
quer é possível atingir motivações univer- servem, a fim de dar-lhes uma justifi-
sais. É este um dos flancos das monogra- cação" (4:23).
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sua opção consiste em utilizar estes con- Com V . Turner encontramos uma
ceitos como um instrumental prático, sem nova maneira de "centrar", talvez mais
procurar atribuir-lhes significação preci- explícita. Senão vejamos: no Processo
sa; são explorados em sua Ritual, propõe, à p. 24 o objetivo do
"eficácia relativa e utilizam-se capítulo: Planos de Classificação em um
para destruir a antiga máquina a que ritual da vida e da morte:
eles pertencem ".(1:110) "explorar a semântica dos
símbolos rituais no I soma... e cons-
Apesar de reconhecer a fecundidade do truir, a partir de dados exegéticos e
estruturalismo de Lévi-Strauss no tocante de observação, um modelo de estru-
à utilização de conceitos tradicionais, tura semântica desse simbolismo".
Derrida, no entanto, parece acusá-lo de
colocar o "centro" tanto fora, como den- Seu empenho é descobrir a "visão in-
tro da estrutura. Primeiramente, ele o terior ndembo" (p. 25), isto é, como eles
acusa de logocentrismo, isto é, apelar a sentem e pensam.
uma razão como uma legalidade mantida Para alcançar este objetivo, ele pro-
fora do jogo. Em segundo lugar, há em põe o método indutivo:
Lévi-Strauss como que uma nostalgia da
presença; percebe-se nele como que "meu procedimento consistirá
em começar pelos aspectos particula-
"uma espécie de ética da presen- res echegar à generalização". (8:24)
ça, da nostalgia da origem, da ino-
cência arcaica e natural, de uma pu- Os passos deste método seriam
reza da presença e da presença a si na os seguintes: (8:23)
palavra; ética, nostalgia e mesmo re- 1. °) obtenção de informações dignas
morso que ele apresenta muitas vezes de confiança dos símbolos empregados
como a motivação do projeto etnoló- nos rituais;
gico quando se debruça sobre socie-
dades arcaicas, isto é, exemplares a 2. °) estas informações, reciproca-
seus olhos". (1:121) mente consistentes, constituem a herme-
nêutica padronizada da cultura ndembo e
E não é precisamente esta mesma não associações livres ou opiniões excên-
"nostalgia da presença" que encontramos tricas;
em R. da Matta, no final de Poe e Lévi-
Strauss no Campanário: ou A obra literá- 3. °) daí a construção de um corpo de
ria como etnografia? dados de observação e de comentários in-
terpretativos;
"Talvez o que nos deixe perple- 4. °) e, finalmente, este corpo de da-
xos seja precisamente constatar, na dos, submetidos à análise, começa a mos-
visita aos índios, a possibilidade de trar certas regularidades, das quais foi
realizar a mais utópica das Utopias: possível extrair uma cultura, expressa
viver numa sociedade onde o homem num conjunto de padrões.
e o grupo estão equilibrados entre si e
com a natureza, como uma pensée Desse resumo, rapidamente exposto,
sauvage, uma flor, com suas pétalas, podemos considerar:
suas cores e seu chão." (p. 124) 1. °) V . Turner se preocupa com a es-
trutura semântica e não com a estrutura
Assim, a etnografia estruturalista de
enquanto feixe de relações lógicas for-
inspiração lévistraussiana estaria nostal-
mais;
gicamente virada para a presença, que é,
de certa maneira, uma forma de "cen- 2. °) seu ponto de partida são os
trar". "blocos básicos da construção", as "mo-
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léculas" do ritual, que ele chama de por exemplo, onde, na Introdução ao Cru
símbolos. Procura entender a estrutura e o Cozido, considera a busca do mito de
interna das idéias contidas no ritual, isto referência como uma prática abusiva; pa-
é, como é que os ndembo interpretam seus ra Lévi-Strauss, tudo começa pela estrutu-
símbolos; isto significa buscar fazer a exe- ra ou pela relação interna dos elementos,
gese nativa; com abandono declarado de qualquer re-
3.°) seus informantes não são quais- ferencial privilegiado (origem, versão
quer, mas são aqueles que podem forne- mais significativa, etc.). V . Turner, pelo
cer informações dignas de confiança dos contrário, procura, deliberadamente loca-
símbolos empregados nos rituais. lizar e fixar um referencial que lhe dará
maiores condições de alcançar seus objeti-
Pode-se lembrar ainda que, para V . vos, segundo sua ótica.
Turner, o social não se identifica com o
sócio-estrutural exclusivamente; há outras Outro ponto a considerar é que V .
modalidades de relações sociais. O univer- Turner se interessa, neste texto, pela pró-
sal cultural é a dialética (relacionamento pria interpretação nativa (como eles sen-
dinâmico e contínuo) estrutura/antiestru- tem e pensam); neste sentido, ele me pare-
tura, que tem por palco a cultura. Consi- ce mais distante de Durkheim do que
dera, portanto, a sociedade como um pro- Mary Douglas, por exemplo, que procura
cesso vital em que episódios sócio- ver nos símbolos apenas metáforas da or-
estruturados são seguidos de fases carac- ganização social. O que o nativo sente ou
terizadas por antiestrutura social. A pensa não é absurdo ou idiota, mas tem
"communistas" é um tipo de relaciona- um sentido (não necessariamente para
mento não-estruturado; é o relacionamen- nós), mas no contexto social e cultural em
to entre indivíduos em passagem, in- que o ritual se realiza. Esta é uma posição
divíduos limiares, portanto indivíduos em parte devedora da grande conquista
concretos, totais, que não se escondem do funcionalismo, que é a valorização do
atrás de status socialmente definidos. Es- contexto, mas em parte o supera, pois o
te tipo de relacionamento não é produto funcionalismo, grosso modo, procura
de impulsos biologicamente herdados, "razoabilizar" o pensamento selvagem
mas é o produto de faculdades tipicamen- em termos da razão ocidental. Explicando
te humanas, tais como a racionalidade, melhor: o funcionalismo teve, sem dúvi-
voliçâo, memória, etc, que são desenvol- da, uma importância fundamental na A n -
vidas pela experiência da vida em socieda- tropologia pela ênfase que dá ao contexto
de. Assim, a mente humana não é a capa- (V. Turner, em certas afirmações suas,
cidade estática e sempre idêntica de classi- neste texto, pode ser aproximado a Mali-
ficar, mas os diferentes grupos humanos, nowski). No entanto, para o funcionalis-
embora tenham uma idêntica estrutura mo, tudo é tomado como razoável (nos
cognoscitiva, articulam experiências cul- nossos termos), pois o que aparece como
turais diversas. absurdo deve ter uma "função" - basta
procurar no contexto - isto, em outros ter-
Desses pontos levantados, podemos, mos, é legitimar o pensamento selvagem
sem alongar muito a análise, verificar ini- através da razão ocidental.
cialmente que V . Turner penetra na inter-
pretação nativa dos símbolos, através de V. Turner se preocupa menos com as
um ponto referencial ou informantes defi- regras inconscientes ou relações lógicas,
nidos (não busca opiniões excêntricas de que constituem estruturas vazias do que
indivíduos quaisquer, mas busca "infor- com as estruturas semânticas. O símbolo
mações dignas de confiança"). Isso já é é, para ele, a unidade de significação
"centrar" a análise. V . Turner não proce- dentro do contexto ritual. O que ele busca
de como Lévi-Strauss nas Mitológicas, é estabelecer a estrutura interna das idéias
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BARRETTO, M . A . P . — Da "Revolução funcionalista" às novas sínteses antropológicas. Perspectivas, São
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contidas no ritual, a partir das "molécu- tural), na medida em que são os momen-
las" do ritual, que ele chama de símbolos. tos antiestruturais os que possibilitam a
Para V. Turner, os ndembo têm noção da mudança sob uma nova ordem (a "com-
função simbólica ou expressiva dos ele- munistas" espontânea em pouco tempo
mentos rituais dai ser possível a exegese tende a organizar-se e a transformar-se
nativa (crítica dessa posição em Dan Sper- em sistema social duradouro).
ber - Le symbolisme en general,
especialmente p. 124 ess.).
Em conclusão, a contribuição mais
Mas, em resumo, sua preocupação é significativa de V . Turner parece ser, a
mais com a semântica do que com a sinta- meu ver, a reintrodução da noção da pos-
xe. Preocupa-se mais com problemas do sibilidade de estudar as sociedades huma-
homem enquanto ser concreto, com emo- nas, antes de mais nada, como servindo
ções e sentimentos (na fase antiestrutu- aos interesses dos homens e não apenas
ral), do que com o homem enquanto sob o como um feixe de relações lógicas e for-
domínio da ordem e da regra (fase estru- mais.
REFERÊNCIAS B I B L I O G R Á F I C A S
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