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Lúcio Sousa
Capa: Lúcio Sousa, foto de emissão RTP de 20 de maio de 2002 com a transmissão
da cerimónia de passagem da autoridade da UNTAET para o Estado Timorense. Na
foto: matas Paulo Mota e bei josé Tilman, representantes do Distrito de Bobonaro.
1
Indice geral
Conteúdos temáticos 6
60
2.1 Teorias clássicas e debates contemporâneos
Bibliografia 197
2
Apresentação da unidade curricular
Competências:
No final desta unidade curricular o/a estudante deverá ser capaz de:
§ analisar e interpretar a complexidade da diversidade cultural no
mundo atual;
§ contextualizar e constituir conhecimento teórico com base em
dados etnográficos;
§ reconhecer e compreender os processos de (re)produção e
transformação social nas interações humanas.
§ identificar e explicitar a dimensão aplicada da antropologia nas
sociedades contemporâneas.
3
Apresentação dos Textos
1
© Este é um trabalho em desenvolvimento pelo que as sugestões serão bem-vindas
[lucio.sousa@uab.pt]. O uso deste recurso é limitado ao trabalho individual e colaborativo
no âmbito estrito da unidade curricular 41098 Antropologia Geral e não pode ser objeto de
divulgação/disponibilização exterior à plataforma moodle.
4
• Facultar elementos de exploração dos conteúdos
trabalhados.
3. Ao longo dos Textos são propostas leituras e atividades de
pesquisa visando facultar ao estudante elementos de consolidação
e desenvolvimento da aprendizagem.
4. São efetuadas sugestões bibliográficas, de pesquisa online, de
caráter complementar, em língua portuguesa, espanhola, inglesa
e francesa.
5
Conteúdos temáticos
6
Objetivos gerais por tema
7
Tema 1: O campo e o método da antropologia
Pressupostos do tema
2
Sousa (2010): durante o meu trabalho de campo em Tapo, uma pequena aldeia da região
de Bobonaro em Timor Leste, a expressão “conversar a brincar” era usada pelos meus
interlocutores para se referirem a uma conversa sem compromisso, sem desvendar aspetos
sensíveis do saber esotérico, sem revelar os segredos. Por vezes este era um caminho, um
prelúdio para uma entrevista formal, outras vezes era só isso mesmo, conversar e conviver.
8
Objetivos gerais:
9
Tema 1.1 A antropologia e a compreensão do mundo
contemporâneo
Introdução
O que é a antropologia, para que serve, e qual o seu lugar nas ciências
sociais? Neste capítulo introdutório iremos examinar estas questões,
procurando compreender o que é a antropologia, quem nela participa e está
envolvido, e as suas especificidades e diversidades.
Falar de antropologia no sentido geral implica compreender que o
termo envolve um conjunto de interesses e de práticas variados, mas que
se integram enquanto temas de estudo. Numa perspetiva ampla a
antropologia desponta como o estudo da humanidade, das sociedades
humanas e das suas culturas. Apresentado desta forma este é um tema
vasto, demasiado abrangente, para poder ser abarcado por uma só pessoa.
Vamos analisar essa dimensão examinando o texto de Mércio Pereira
Gomes sobre a abrangência da antropologia:
10
do valor próprio de outras culturas. Tal tempo só surgiria séculos
depois, quando a Europa, em vias de perder sua velha identidade
medieval, ainda incerta sobre o que viria a ser, duvidou de si mesma
e pôde assim olhar e conceber outros povos, ao menos teoricamente,
como variedades da humanidade, cada qual com seus próprios valores
e significados. O pensar antropológico, o pensar sobre o aparente
paradoxo de o homem ser um só, como ser-espécie da natureza, e ao
mesmo tempo ser múltiplo em suas expressões coletivas, a cultura; o
pensar sobre o diferente ser o mesmo; sobre as potencialidades reais
e recônditas de cada cultura – é fruto desse momento criativo do
Iluminismo. Assim, no seu primórdio iluminista, a Antropologia se situa
no campo da Filosofia, da especulação sobre o homem e suas
possibilidades de ser e de agir. É um método de conceber o homem
em sua variedade cultural e reconhecer nessa variedade faces
diferentes de um mesmo ser. Para falar em termos filosóficos, a
Antropologia é um modo de pensar a variedade do homem, outras
culturas, o Outro, num mesmo patamar em que se coloca a cultura de
onde surge esse pensar, a cultura européia, isto é, o Mesmo. Podemos,
brincando com as palavras, dizer que, para a Antropologia, o Mesmo e
o Outro são o Mesmo; ou, o Outro e o Mesmo são o Outro.
11
paralelo ao plano biológico. Desde então, o pensar antropológico tem
se desenvolvido tanto como ciência quanto como pensar filosófico;
tanto como teoria quanto como especulação; tanto como explicação
quanto como interpretação. Antropólogos, os praticantes da
Antropologia, têm se pautado ora pelos cânones da ciência, adaptando-
os para a compreensão do ser humano e de suas culturas, ora pelas
modalidades da filosofia, tentando retirar desta os conceitos mais
gerais da essencialidade humana e, ao mesmo tempo, tentando injetar
na filosofia os conceitos obtidos pela observação e pela prática nos
trabalhos empíricos que dão sustentação ao pensar antropológico.
Vejamos como essas duas perspectivas da Antropologia se
desenvolvem, definem seu objeto e se complementam na concepção
desse objeto.
12
para o que se subentende uma inteligência capaz de encarar o mundo
através de convenções simbólicas, as quais são sistematizadas e
transmitidas de geração a geração não pelo instinto ou pela carga
genética, mas pela linguagem, que é a quintessência da comunicação
humana. Num sentido metafísico, cultura é uma espécie de “segunda
natureza” do homem, uma mediação, uma qualidade de filtro ou lente
que permite ao homem formar noções sobre si mesmo e sobre o
mundo e, ao mesmo tempo, agir. Num sentido empírico, cultura é tudo
que o homem faz parcialmente consciente e parcialmente inconsciente,
além daquilo que sua natureza biológica o permite fazer. Fazer significa
não somente produzir os meios de sua sobrevivência (Economia), mas
também pensar (Filosofia), desejar (Psicologia) e relacionar-se uns
com os outros (Sociologia e Política). Adicione-se a esses atributos a
idéia de que o homem, embora pense e faça as coisas como ser
individual, tem seu pensamento e seu comportamento condicionados
por sua existência numa coletividade, a sociedade. Tal explicação pode
parecer autoevidente, mas serve para identificar um dos temas mais
importantes da sociologia, que é entender a relação do indivíduo com
a sociedade.
Dando conta dessa divisão de tarefas, entre entender o homem como
ser da natureza e ser da cultura, a Antropologia como ciência se
apresenta nos currículos das universidades mundo afora em quatro
subdisciplinas: Antropologia Física ou Biológica; Arqueologia;
Lingüística; e Antropologia Cultural ou Social. A questão da posição do
homem na natureza, que compreende as temáticas de evolução,
distribuição e adaptação pelos quatro cantos da Terra, as
características e os potenciais biológicos são estudados no âmbito da
Antropologia Biológica. A Arqueologia subsidia com dados essa
questão, mas vai adiante ao auxiliar a Antropologia Cultural na
formulação dos processos das transformações da cultura ao longo do
tempo. Trataremos aqui também da Lingüística, como uma das
subdisciplinas que subsidia o conhecimento do homem como ser da
cultura. Entretanto, deixaremos para tratar da Antropologia Cultural
por seu próprio mérito a partir do capítulo “Cultura e seus significados”,
reconhecendo que é essa subdisciplina que representa o grande
esforço do pensamento antropológico da atualidade. (Gomes. 2008,
11- 16)
13
Como podemos ver a diversidade da antropologia, no seu sentido lato,
encontra-se relacionada com a sua história e os interesses associados aos
tempos em que se desenvolveu. Todavia, nesta unidade curricular, iremos
debruçar-nos especificamente sobre a Antropologia social e cultural.
14
se aprende e vive a cultura, enquanto processos dinâmicos. Este facto
obriga-nos a reconhecer que não é possível dar a conhecer, de uma forma
absoluta, tudo o que existe em antropologia através de um manual ou de
uma unidade curricular.
A antropologia não é um conjunto de dados que se limite a uma
retransmissão de saber, a vivência é parte essencial do processo. Como
refere Tim Ingold, a antropologia, será uma das poucas ciências em que
este processo de criação de ciência se desenvolve de forma partilhada. De
facto, sendo docente e estudante parte de uma sociedade ou cultura, ambos
partilham similaridades e diferenças, podendo dar contributos para a
interpretação.
Então, porquê estudar a antropologia? Seguindo Barnard (2006, 3-4)
poderemos dizer que esta nos permite:
3
O conceito de “terceiro mundo” não é consensual e tem uma história própria, dividindo a humanidade
numa escala de desenvolvimento. Outros conceitos são “países subdesenvolvidos” e, ou, “países em vias
de desenvolvimento”, que mantém uma difícil dicotomia “desenvolvidos” - subdesenvolvidos/em vias de
desenvolvimento.
15
Outro e o Nós desenvolve-se numa dicotomia: diferença – semelhanças. O
mundo é classificado de diferentes formas de acordo com diferentes
culturas.
A aprendizagem da língua e da cultura (enculturação*) é um processo
comum a todas as culturas e sociedades. Todavia, as categorias dadas às
diferentes práticas e conceções podem variar. Por exemplo as formas de
cumprimento são variadas em diversas sociedades, mas todas manifestam
uma forma de estabelecer uma relação. Às formas comuns de práticas
culturais são designadas de universais de cultura, modos de pensar e de
comportamento que são idênticos.
Retomando a frase de Ingold, e tentando agora discernir quem participa
no trabalho antropológico, somos tentados a dizer que a antropologia é o
que os antropólogos/antropólogas fazem… trabalham no “campo”,
comparam culturas/sociedades, procuram compreender as suas práticas de
uma forma predominantemente indutiva, interpretativa, ao contrário da
postura inicial dos evolucionistas do século XIX, eminentemente dedutiva,
extrapolando da teoria e conformando os factos a esta.
A antropologia tem também uma dimensão aplicada na qual os seus
conhecimentos, teóricos e metodológicos, são empregues por antropólogos
na resolução de questões práticas fora do contexto académico.
Esta divisão entre pesquisa fundamental, predominantemente
académica, face à pesquisa aplicada, predominantemente profissional,
tende, cada vez mais, a esbater-se, como veremos quando estudarmos a
antropologia aplicada.
16
no contexto específico da sociedade europeia e norte-americana. Os
primeiros antropólogos dedicavam-se um pouco a todos os temas
trabalhados no âmbito da antropologia numa perspetiva denominada
evolucionista.
Todavia, a institucionalização da disciplina na academia vai promover
os seus primeiros profissionais com experiência de terreno e com
preocupações em compreender as sociedades contemporâneas e as suas
interações, mais do que especular sobre a forma como estas se tinham
desenvolvido. Inicia-se assim uma especialização que assume duas facetas:
especializações regionais, ou de área, e as especializações teóricas. No
primeiro caso temos antropólogos que se especializam numa determinada
região do globo ou grupos específicos: ex.: África, Sudeste asiático,
bosquímanos ou ciganos. No segundo caso, e conforme os ramos de estudo
(que iremos analisar de seguida), a especialização dedica-se a um tema
particular, ou a uma abordagem específica, por exemplo: etnicidade,
relações de género, parentesco, antropologia económica, antropologia
aplicada, etc.
A antropologia, na sua dimensão mais geral, engloba um conjunto de
campos de estudo que podem, ou não, ser desenvolvidos em comum de
acordo com interesses temáticos e tradições nacionais. A abordagem de
caráter integrado mais conhecida é a que prevalece nos EUA, onde a noção
de antropologia, a nível de departamento académico, incorpora, em grande
parte por influência de Franz Boas, quatro campos de estudo: a arqueologia,
a linguística, a antropologia física e a antropologia cultural. A antropologia
cultural é a denominação mais comum na América do Norte, embora se
observe atualmente designações aglutinadoras, como antropologia
sociocultural4, enquanto que a antropologia social, depurada da arqueologia,
linguística e antropologia física, é a designação mais comum no Reino Unido.
Todavia, apesar desta diversidade de campos de estudo há uma inter-
relação entre estas áreas, de caráter integrador e interdisciplinar, como
podemos analisar no excerto de um texto de Custódio Gonçalves (1997):
4
Exemplo: http://anthropology.columbia.edu/courses#1
17
Destes campos de investigação, parece-nos ser de destacar cinco
áreas principais da antropologia estreitamente inter-relacionadas,
para as quais o antropólogo deve estar sensibilizado, embora se
especialize profissionalmente numa delas.
18
A terceira área é constituída pela antropologia linguística. A língua
faz parte integrante do património cultural de uma sociedade. Ela
permite compreender como os homens pensam o que vivem e o que
experimentam, ou seja, as suas categorias psicoafectivas e psico-
cognitivas, o que constituí o campo específico da etnolinguística;
como exprimem o universo e o social através do estudo da literatura
escrita e da tradição oral; e enfim, como interpretam o seu saber e o
seu agir, incluindo as técnicas modernas de comunicação de massa.
A estas três áreas de investigação, consideradas, juntamente com a
antropologia social e cultural, como vectores constitutivos do campo
global da antropologia, há que acrescentar a dimensão da
antropologia psicológica, não enquanto estudo do homem «moral»
nas suas invariantes e variações transculturais e transhistóricas, que
relevam quer de uma orientação genética e histórica, quer de uma
perspectiva estática e descritiva, mais do domínio estrito da psicologia
e da psicanálise, mas enquanto observação e estudo dos
comportamentos conscientes e inconscientes dos seres humanos
particulares, sem os quais não é possível a análise do homem na sua
totalidade e diversidade.
19
1. Sociologia e antropologia social: ambas estão interessadas no
estudo da sociedade. A principal diferença decorre do facto da
antropologia social enfatizar as diferenças culturais, tendo assim
subjacente uma visão mais comparativa e uma perspetiva
intercultural.
2. A antropologia social tem uma afinidade com a psicologia por
partilhar, entre outros aspetos, um interesse no estudo da relação
entre a cultura e a personalidade (veremos este aspeto mais à
frente, quando falarmos do configuracionismo*).
3. Com a ciência política a antropologia social comunga o interesse
pelo estudo das relações de poder (objeto de estudo no tema 3.2).
4. A relevância da economia nas sociedades estudadas pelos
antropólogos levou ao desenvolvimento de uma área específica, a
antropologia económica.
5. A relação entre a geografia e a antropologia social assenta no
interesse semelhante pelos padrões de fixação humana e os
contatos culturais. Neste contexto, a ecologia cultural é por vezes
considerada como uma parte da antropologia.
6. Com a educação, essencialmente numa abordagem multicultural,
e estudos comparativos de sistemas educacionais.
7. Negligenciada por algumas escolas, como o funcionalismo* (que
estudaremos no tema 2.1), a história adquiriu, cada vez mais um
papel a antropologia, em particular a história oral. A diferença
essencial reside no facto de a história ter uma abordagem
eminentemente diacrónica enquanto a antropologia social tem
sobretudo uma perspetiva sincrónica.
8. A arte é igualmente relevante devido aos seus aspetos sociais.
20
1.1.3 Antropologia, etnologia e etnografia
21
por vezes considerados sinónimos, e noutras circunstâncias distintos. O
exemplo da relação entre ambas dado por Lévi-Strauss é interessante:
Num colóquio em Chicago no fim dos anos quarenta, Claude
Lévi-Strauss intervindo na discussão sobre o assunto resumiu o
problema de forma sugestiva: comparou a questão social e cultural a
uma folha de papel químico. Ou seja, o verso da folha serve para
escrever enquanto o reverso destina-se a reproduzir o que foi escrito
no verso. Os dois lados são inseparáveis, se quisermos conservar a
condição de papel químico. Segundo Lévi-Strauss, acontece o mesmo
com o social e o cultural. São dimensões inseparáveis da actividade
humana. (Santos, 2002, 55).
5
Texto base usado neste tema: Sousa, Lúcio. 2009. Antropologia cultural. Caderno de Apoio.
Lisboa: Universidade Aberta. ISBN: 978-972-674-551-8
22
Fonte: Indiana Department of Education, Language Minority and Migrant
Programs, www.doe.state.in.us/lmmp
23
fundamentais: a cultura é uma alternativa explícita à noção de raça
(características físicas) tanto na classificação como na explicação das
diferenças humanas; a cultura tem origem em histórias contingentes
resultantes de elementos originários de tempos e lugares diferentes; apesar
desta origem histórica contingente os elementos da cultura são reunidos de
acordo com o “génio de um povo”. (Barnard e Spencer, 2004, 138).
Kroeber e Kluckhohn (1952) coligiram já nos anos cinquenta do século
XX mais de uma centena de conceitos de cultura, o que manifesta a ausência
de um consenso aparente.
24
Um aspeto que tem gerado muito debate é a análise do nascimento da
cultura, o momento em que esta surge no universo humano. Roque Laraia
sintetiza as principais posições, com destaque para Claude Lévi-Strauss e
Leslie White:
25
(…) a aceitação de um ponto crítico, expressão esta utilizada por Alfred
Kroeber ao conceber a eclosão da cultura como um acontecimento
súbito, um salto quantitativo na filogenia dos primatas: em um dado
momento um ramo dessa família sofreu uma alteração orgânica e
tornou-se capaz de "exprimir-se, aprender, ensinar e de fazer
generalizações a partir da infinita cadeia de sensações e objetivos
isolados".
Em essência, a explanação acima não é muito diferente da formulada
por alguns pensadores católicos, preocupados com a conciliação entre
a doutrina e a ciência, segundo a qual o homem adquiriu cultura no
momento em que recebeu do Criador uma alma imortal. E esta
somente foi atribuída ao primata no momento em que a Divindade
considerou que o corpo do mesmo tinha evoluído organicamente o
suficiente para tornar-se digno de uma alma e, conseqüentemente, de
cultura.
O ponto crítico, mais do que um evento maravilhoso, é hoje
considerado uma impossibilidade científica: a natureza não age por
saltos. O primata, como ironizou um antropólogo físico, não foi
promovido da noite para o dia ao posto de homem. O conhecimento
científico atual está convencido de que o salto da natureza para a
cultura foi contínuo e incrivelmente lento.
Clifford Geertz, antropólogo norte-americano, mostra em seu artigo "A
transição para a humanidade" como a paleontologia humana
demonstrou que o corpo humano formou-se aos poucos. O
Australopiteco Africano (cujas datações recentes realizadas na
Tanzânia atribuem-lhe uma antigüidade muito maior que 2 milhões de
anos), embora dotado de um cérebro 1/3 menor que o nosso e uma
estatura não superior a 1,20m, já manufaturava objetos e caçava
pequenos animais. Devido à dimensão de seu cérebro parece,
entretanto, improvável que possuísse uma linguagem, na moderna
acepção da palavra. O Australopiteco parece ser, portanto, uma
espécie de homem que evidentemente era capaz de adquirir alguns
elementos da cultura — fabricação de instrumentos simples, caça
esporádica, e talvez um sistema de comunicação mais avançado do
que o dos macacos contemporâneos, embora mais atrasado do que a
fala humana, porém incapaz de adquirir outros, o que lança certa
dúvida sobre a teoria do ponto crítico.
O fato de que o cérebro do Australopiteco media 1/3 do nosso leva
Geertz a concluir que "logicamente a maior parte do crescimento
cortical humano foi posterior e não anterior ao início da cultura". Assim,
continua: "O fato de ser errónea a teoria do ponto crítico (pois o
desenvolvimento cultural já se vinha processando bem antes de cessar
o desenvolvimento orgânico) é de importância fundamental para o
26
nosso ponto de vista sobre a natureza do homem que se torna, assim,
não apenas o produtor da cultura, mas também, num sentido
especificamente biológico, o produto da cultura."
A cultura desenvolveu-se, pois, simultaneamente com o próprio
equipamento biológico e é, por isso mesmo, compreendida como uma
das características da espécie, ao lado do bipedismo e de um adequado
volume cerebral. (Laraia, 1986, 58-59)
27
2. “Mudança cultural é primariamente um processo de adaptação
equivalente à seleção natural." ("O homem é um animal e, como todos
animais, deve manter uma relação adaptativa com o meio circundante
para sobreviver. Embora ele consiga esta adaptação através da cultura,
o processo ê dirigido pelas mesmas regras de seleção natural que
governam a adaptação biológica." B. Meggers, 1977)
3. "A tecnologia, a economia de subsistência e os elementos da
organização social diretamente ligada à produção constituem o domínio
mais adaptativo da cultura. É neste domínio que usualmente começam
as mudanças adaptativas que depois se ramificam. Existem,
entretanto, divergências sobre como opera este processo. Estas
divergências podem ser notadas nas posições do materialismo cultural,
desenvolvido por Marvin Harris, na dialética social dos marxistas, no
evolucionismo cultural de Elman Service e entre os ecologistas
culturais, como Steward."
4. "Os componentes ideológicos dos sistemas culturais podem ter
conseqüências adaptativas no controle da população, da subsistência,
da manutenção do ecossistema etc." (Laraia, 1986, 60-61)
(…) que define cultura como um sistema simbólico que é uma criação
acumulativa da mente humana. O seu trabalho tem sido o de descobrir
28
na estruturação dos domínios culturais — mito, arte, parentesco e
linguagem — os princípios da mente que geram essas elaborações
culturais." (…) Lévi-Strauss, a seu modo, formula uma nova teoria da
unidade psíquica da humanidade. Assim, os paralelismos culturais são
por ele explicados pelo fato de que o pensamento humano está
submetido a regras inconscientes, ou seja, um conjunto de princípios
— tais como a lógica de contrastes binários, de relações e
transformações — que controlam as manifestações empíricas de um
dado grupo. (Laraia, 1986, 62-63)
29
nessas situações. Estudar a cultura é portanto estudar um código de
símbolos partilhados pelos membros dessa cultura. (Laraia, 1986, 63-
64)
• A cultura é partilhada
30
A cultura não pode existir sem sociedade, ela é aprendida
socialmente.
Não há sociedades humanas conhecidas que não possuam cultura.
Nem tudo é uniforme dentro de uma cultura.
• A cultura é aprendida,
A cultura é aprendida através da aprendizagem social mais do que
herdada biologicamente, nomeadamente, através da linguagem.
O processo de transmissão de cultura de uma geração a outra
designa-se enculturação.
• A cultura é integrada
Todos os aspetos da cultura funcionam como um todo integrado.
A mudança numa parte de uma cultura usualmente afeta outras
partes.
Um grau de harmonia é necessário em qualquer cultura que funcione,
mas não é exigível uma harmonia completa.
Há uma seletividade na seleção, consciente e desejada ou
inconsciente, de padrões, de valores, e a sua adoção numa
determinada cultura.
31
Algo externo que condiciona as nossas vidas ou algo que como sujeitos
(pessoas) criamos em coletividades – é um processo e um conjunto de
estratégias.
32
A cultura ideal (normativa) “(…) consiste em um conjunto de
comportamentos que, embora expressos verbalmente como bons, perfeitos,
para o grupo, nem sempre são frequentemente praticados.” Hoebel e Frost
(2001, 27) comentam o caso da violação das regras de exogamia entre os
trobriandenses estudados por Maliwoski. Embora fossem objeto de normas
que o vetassem e de haver um aparente horror público perante o facto a
sua prática não era de todo desconhecida.
Marconi e Presotto (1987, 47 -51) apresentam de forma sucinta os
componentes que constituem a cultura:
33
a)“(…) pessoais – as proposições aceitas por um indivíduo como
certas, independentemente das crenças dos demais”.
b)“Declaradas – as proposições que uma pessoa aparenta aceitar
como verdadeiras, em seu comportamento público, e que as
menciona apenas para defender ou justificar as suas ações perante
os outros”.
c)“Públicas – as proposições que os membros de um grupo
concordam, aceitam e declaram como suas crenças comuns”. (1987,
47-48)
34
se têm cada vez mais utilizado, de novo, estes termos, explicados por
Marconi e Presotto.
35
a própria prática de alguns as relacionarem com castas, grupos regionais,
étnicos e classes sociais tende a passar uma imagem pejorativa.
A diversidade cultural, a variabilidade das formas culturais, não
esconde o facto de que existem traços comuns entre todas as culturas. A
antropologia estuda tanto esta diversidade como esta identidade comum
denominada universais de cultura6. Embora esta “tradição” antropológica
de listar os temas seja antiga, ela foi objeto de uma sistematização por
Murdock (1945) listou 67 universais de cultura: Entre estes incluem-se:
6
Ler: Focalizar o que é comum aos seres humanos, Entrevista a Christoph Antweiler. Disponível online:
http://www.antropologi.info/blog/anthropology/pdf/Entrevista-Christoph-Antweiler.pdf
7
Há exceções ao tabu do incesto, como nos casos históricos conhecidos entre a realeza sagrada do
Egipto, Hawai e Incas. No Bali também há prerrogativas no caso dos irmãos gémeos, menino e menina,
considerados já “íntimos” no útero da mãe (Hoebel e Frost, 2001, 179)
36
É pertinente centrarmo-nos sobre o etnocentrismo, é uma visão do
mundo e dos outros de acordo com a qual o cada grupo se vê como o centro
de tudo e todos os outros se medem por referência a ele. Cada grupo
fomenta o seu próprio orgulho e a sua vaidade, proclama a sua
superioridade, exalta as suas próprias divindades e descreve com desprezo
os outros.
O Etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso próprio grupo
é tomado como centro de tudo e todos os outros são pensados e sentidos
através dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições que é a
existência. No plano intelectual, pode ser visto como a dificuldade de
pensarmos a diferença; no plano afetivo, como sentimentos de estranheza,
medo, hostilidade, etc. (Rocha, 1984, 7).
O etnocentrismo pode manifestar-se em diferentes níveis: tribo,
aldeia, região, nação/estado, minoria étnica, área cultural, classe ou
indivíduo. O problema do etnocentrismo é a intolerância cultural face à
diversidade e o fechar as portas à curiosidade pelo conhecimento, sendo
uma atitude que pode resultar numa ideologia com práticas racistas.
8
Uma minoria pode deter o poder, como no caso da África do Sul, governada até 1994 por
uma minoria de brancos.
37
uma dimensão política estamos no domínio do que Iturra denomina como
“etnocentrismo racionalizador”: “(...) visão ideológico-política geradora de
representações redutoras que ainda povoam o imaginário social de muitas
sociedades, grupos e indivíduos.” (1996, 13). No extremo esta visão
assume-se como prática racista institucionalizada, na qual uma relação de
poder e de desigualdade se consubstancia em políticas ativas de opressão.
Só há pouco tempo é que começamos a ver, algo surpreendidos, a
imagem que os “outros” faziam de “nós”9, um processo a que não é alheia
descolonização e a democratização.
O conceito oposto ao etnocentrismo é o relativismo cultural, uma
das ideias centrais da antropologia:
9
Consultar, por exemplo Amin Maalouf e As cruzadas vistas pelos Árabes, Difel, 1990, ou Ana Barradas,
Ministros da Noite – Livro Negro da Expansão Portuguesa, Antígona 1992
38
que envolvem punições físicas. Pode o antropólogo trabalhar sem condenar
tais práticas?
A complexidade do conceito de cultura é enorme, mas, como expõe
DuBois (1959, 9), o seu significado é profundamente humano: “é
inconcebível um povo sem cultura, de forma similar a cultura sem o Homem
não tem significado. Ambos estão em contante interação.”
10
Obra disponível aqui: https://archive.org/details/ViveirosDeCastroEduardoAInconstnciaDaAlbook4me.org
39
'organização* social, ele destaca o quadro sociopolítico da coletividade:
sua morfologia (composição, distribuição e relações dos subgrupos da
sociedade enquanto grupo máximo), o corpo de normas jurais (noções
de autoridade e cidadania, regulação do conflito, sistemas de status e
papéis) e as configurações características das relações sociais (relações
de poder, formas de cooperação, modos de intercâmbio). No terceiro
caso — em que 'sociedade' é frequentemente substituída por 'cultura*
— visam-se os conteúdos afetivos e cognitivos da vida do grupo: o
conjunto de disposições e capacidades inculcadas em seus membros
através de meios simbólicos variados, bem como os conceitos e práticas
que conferem ordem, significação e valor à totalidade do existente.
40
Tema 1.2 A metodologia de investigação antropológica
11
Texto base: Sousa, Lúcio. 2007. A prática da Antropologia - Caderno de apoio. Lisboa:
Universidade Aberta.
41
Você não sai de uma pesquisa sem ter mudado ou mesmo ileso. Você
pode sair dela transformado e verá, a seguir, coisas e pessoas de
outra maneira. É claro que isso assim será se você tiver levado a
tarefa a sério e que não se tenha contentado com uma presença
pontilhada, não constante no compor ou com entrevistas do tipo
“relâmpago”. (Beaud e Weber, 2007, 15)
12
Traube (1986) é um exemplo de como o terreno pode fazer inverter ou alterar os projetos
iniciais. A autora partiu para Timor para trabalhar numa determinada zona e, durante a sua
estadia acabou por, depois de passar ali algum tempo, deslocar-se para a área Mambae onde
desenvolveu o seu estudo. Em Sousa (2008 e 2010) poderão também ter a perceção do
acesso ao terreno e de como se desenvolvem expetativas mútuas em presença.
42
No fundo o autor reafirma os pressupostos éticos que devem imperar na
relação com a comunidade e que já analisamos igualmente com Willigen
(1986).
Após o período de crise associado ao “choque cultural” e se esta fase
for ultrapassada, com a criação de laços de confiança é possível envolver-
se no trabalho de recolha de dados, por norma mais “factuais” no início de
forma a não ferir suscetibilidades. Este período é mais produtivo e a
normalização da presença permite ganhar confiança e euforia por parte do
investigador o que pode levar a situações de identificação com o sujeito de
investigação e a registar impressões e factos enviesados. Alguns autores
sugerem que o investigador deve retirar-se do campo durante um período
de tempo a fim de analisar os dados obtidos e reavaliar o trabalho a realizar.
As fases finais da estadia devem incluir a confirmação de certas
hipóteses, o que no campo aplicado pode ser feito com base em inquéritos,
de forma a confirmar ou invalidar observações realizadas. No campo da
antropologia aplicada é usual que, após a retirada do terreno para a redação
do relatório, o antropólogo regresse ao terreno para o discutir com a
comunidade.
Observação e registo
43
facto de o registar presencialmente, pelo facto de o observador estar mais
perto da realidade. Gerir toda esta vivência e informação pode ser
extenuante.
No entanto, até que ponto o investigador participa? Há vários graus
de envolvimento com os sujeitos em estudo. A observação pode ser
realizada sem que os sujeitos estejam ao corrente do facto. Um exemplo
desta técnica são as investigações realizadas em jardins infantis na qual as
crianças são observadas a interagir sem o investigador se envolver com
elas. Uma situação imediata ocorre em contextos em que o investigador
partilha espaços com os sujeitos de observação sem ser forçosamente
reconhecido por estes. Por exemplo, em restaurantes ou bares.
Outra forma de participar é através do desempenho de papéis
auxiliares que permitem o convívio com os sujeitos.13 Esta questão depende
do contexto. Nos campos mais tradicionais e nos que se situam no âmbito
da ajuda ao desenvolvimento em contexto rural, o antropólogo pode
encontrar muitas ocasiões para participar em acontecimentos sociais,
privados ou públicos, desde trabalhos de campo, da casa, caça etc. Como
refere Ervin (2000, 149) é impossível ensinar esta metodologia através de
etapas precisas dada a necessidade de imersão direta com o terreno e os
imponderáveis que se lhe associam.
13
Situação similar ocorreu durante a realização do trabalho de campo desenvolvido no mestrado do
desempenho do papel de auxiliar de “assistente social” numa organização de apoio aos refugiados.
Ocorrência descrita em Sousa (1999), ponto 1.2. Etapas da pesquisa.
44
Relativamente ao papel social desempenhado pelo entrevistado há
que ter em conta que nem sempre o desempenho de um papel visível é
sinónimo de experiência ou de saber. Muitas vezes o informante mais
qualificado pode estar “oculto” pela sua condição social e não é
imediatamente identificado, sendo que aqui o tempo e confiança é condição
essencial perceber quem é quem14 e para obter empatia. Por exemplo, em
Timor Leste, as autoridades oficiais “chefe de suco” que lidam com o Estado
e o exterior tem de reportar às autoridades tradicionais que lidam com o
sagrado e o interior. O acesso aos primeiros é, de uma forma geral, o mais
fácil e o que se pratica na administração, mas o contacto com os segundos
pode ser muito mais difícil (Ospina e Hohe, 2001).
A capacidade de análise reflexiva por parte dos envolvidos,
antropólogo e sujeitos, sobretudo da parte destes tem que ser ponderada.
Ervin (2000, 149) refuta a perspetiva de que o informante deve ser não
analítico. Na prática antropológica este tipo de informantes é altamente
qualificado pois possuem um conhecimento sobre o tempo e uma reflexão
ponderada. Contestar um informante que analise a sua própria condição de
vida e que sobre ela tenha uma capacidade crítica é uma forma de
subestimar o sujeito.
A entrevista e as questões
14
Claudine Friedberg, antropóloga francesa, foi sujeita a esta “avaliação” em 1971, na altura no Timor
Português. Tendo chegado à aldeia Bunak de Oeleu foi apresentada a um conjunto de homens, tendo-
lhe sido explicado quem eram e o que faziam. No momento em que se sentavam para comer foi-lhe
pedido que distribui-se a carne com ossos pelos comensais (entre os Bunak o corpo animal remete para
o “corpo social”, sendo cada parte do animal associada a uma determinada função e cargo político-
ritual). Ciente do teste a que estava submetida, procurou dar a carne com osso de acordo com o que
sabia das suas investigações noutros territórios Bunak. A distribuição foi aprovada e a antropóloga tem
a certeza que tal facto ajudou a desanuviar o momento e a comunicar com os seus interlocutores
[comunicação pessoal].
15
Durante o meu trabalho de campo para a dissertação de mestrado sobre refugiados, alguns dos
entrevistados não permitiram a gravação da entrevista (Sousa, 1999).
45
posteriormente, se necessário, à sua transcrição (uma transcrição poderá
levar, dependendo da língua e das condições de gravação, o dobro do tempo
real da entrevista). A entrevista começa com comunicação da intenção e a
preparação do entrevistado. É importante esclarecer os objetivos da mesma
de uma forma clara e sucinta e estar pronto a responder a todas as questões
que possam ser colocadas pelo entrevistado.
A preparação da entrevista incluirá a elaboração de um guião de
entrevista que contemplará os temas a serem desenvolvidos. Há que ter, no
entanto, atenção que um longo guião pode ser desmoralizador para o
entrevistado. A forma como se abre o diálogo deve ser centrada em
questões sobre assuntos presentes e não controversos, questões mais
genéricas, que permitam colocar o entrevistado à vontade e ajudar a
encaminhar o entrevistador. Ervin (2000, 153) sugere com base em Patton
(1980) tipos de questões que devem ser colocadas:
O mesmo autor, citado por Ervin (2000, 154) defende que as questões
devem ser colocadas nos três tempos verbais, no presente, no passado e
no futuro, de forma a apurar o sentido que os sujeitos pretendem dar à sua
vida com a experiência adquirida.
46
As últimas recomendações de Ervin (2000, 154) sobre a formulação
das questões são:
Grupos focais
47
Grupos nominais
Indicadores sociais
48
contextualizar as características da população e a sua distribuição num
determinado território. A combinação de vários indicadores permite avaliar
os indicadores socioeconómicos como o da pobreza.
Questionários
49
4. amostra por quota: selecionando pessoas ou unidades com base na
sua proporção na população;
5. casos críticos: selecionando casos que são chave e essenciais para a
investigação.
50
antropologia aplicada. Por norma estes estudos desenvolvem-se em
períodos de uma a seis semanas.
Ervin (2000, 195) seguindo Harris et al. (1997) analisa os cuidados e
critérios que devem estar presentes neste tipo de estudo: fiabilidade,
utilidade, viabilidade e propriedade.
51
Participatory Action Research16 - Pesquisa de Acção/intervenção
participativa
16
Também referida como Action anthropology “o ramo da antropologia aplicada, ou da antropologia
aliada à antropologia aplicada, que procura combater ameaças diretas a grupos populacionais. A
Antropologia de ação procura assim usar o conhecimento antropológico com objetivos políticos tendo
por base um comprometimento moral.” (Barnard e Spencer, 2002, 594)
52
Os principais pontos a salvaguardar na pesquisa participativa são,
segundo Ervin (2000, 200):
53
Os dez mandamentos da observação participante
William Foote WHYTE. Sociedade de esquina: a estrutura social de uma
área urbana pobre e degradada. Tradução de Maria Lucia de Oliveira.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005. 390 páginas.
Licia Valladares
54
Cornerville, mas se dá conta de que é funda- mental poder contar com
um intermediário para realizar sua observação. “Doc”, termo que define
um informante-chave, simboliza esse mediador, que garante o bom
acesso à localidade e/ou ao grupo social em estudo. Desempenha
também o papel de conselheiro e “protetor”, defendendo o pesquisador
contra as intempéries e os imponderáveis próprios ao trabalho de
campo. Após três anos de convívio e familiaridade com os diferentes
grupos informais e instituições que atuavam e estruturavam a área
(clubes sociais, centro comunitário, organizações informais etc.), Foote
Whyte deixou o bairro para dedicar-se à difícil tarefa de redigir sua obra.
Saída difícil e dolorosa para o observador participante, mas facilitada
pelo fato de o jovem pesquisador mudar-se para Chicago, onde se
inscreve como aluno de doutorado na universidade onde Robert Park
havia bem marcado sua passagem.
55
faz-se, portanto, necessária e convém ser inserida na própria história
da pesquisa. A presença do pesquisa- dor tem que ser justificada (p.
301) e sua transformação em “nativo” não se verificará, ou seja, por
mais que se pense inserido, sobre ele paira sempre a “curiosidade”
quando não a desconfiança.
7)A observação participante implica saber ouvir, escutar, ver, fazer uso
de todos os sentidos. É preciso aprender quando perguntar e quando
não perguntar, assim como que perguntas fazer na hora certa (p. 303).
As entrevistas formais são muitas vezes desnecessárias (p. 304),
devendo a coleta de informações não se restringir a isso. Com o tempo
os dados podem vir ao pesquisador sem que ele faça qualquer esforço
para obtê-los.
56
9)O pesquisador aprende com os erros que comete durante o trabalho
de campo e deve tirar proveito deles, na medida em que os passos em
falso fazem parte do aprendizado da pesquisa. Deve, assim, refletir
sobre o porquê de uma recusa, o porquê de um desacerto, o porquê de
um silêncio.
57
redes de relações sociais. A desorganização social não é, portanto, a
tônica geral – o que não significa negar a existência do conflito entre os
grupos. Foote White não tem, dessa forma, nem uma visão
“miserabilista” nem populista dos pobres. O autor insiste na importância
da sociabilidade que ocorre no espaço público do mundo popular, na
“sociedade da esquina” para usar seu próprio linguajar. Pois é na
esquina, no espaço informal, que as decisões são tomadas, que os
grupos se estruturam e que as relações sociais se constroem e se
destroem.
Que este livro sirva de “aviso” e inspiração a todos aqueles que queiram
se lançar na aventura da observação participante.
58
2.Teorias e práticas antropológicas
Pressupostos do tema
Objetivos gerais:
59
2.1 Teorias clássicas e debates contemporâneos
A “pré-história” da Antropologia
60
ou não homens. O debate opôs Frei Bartolomeu de las Casas, dominicano e
defensor dos “índios”, contra Ginés de Sepulvéda. Nos seus argumentos os
ameríndios eram tão homens quanto os da Europa e tinham direito à sua
cultura e terras. Tendo vencido o debate, o facto não ilibou os ameríndios
dos piores atos de violência17.
O século das luzes e os seus autores do século XVII e o século XVIII
vão marcar uma mudança alimentada pelas novidades de um mundo mais
aberto. As ideias florescem e a sociedade europeia procura redescobrir as
suas origens na história, mas também na comparação com o Outro. Para
Barnard (2000, 18) as grandes questões antropológicas deste século eram:
o que define a espécie humana; o que distingue os humanos dos animais e
qual é a condição natural da humanidade. Muita do debate desenvolveu-se
tendo por base três questões: as crianças selvagens, os “orang outang” e
os “selvagens” (os habitantes indígenas de outros continentes).
O tema das crianças selvagens adquire bastante notoriedade pública
com alguns casos de crianças que, encontradas isoladas, não tinham vivido
em comunidades humanas e mostraram diferentes reações ao convívio e
aprendizagem humanos. Mais complexo, o caso do “orang outang” (do
malaio pessoa da floresta), acalentou discussões intensas sobre a natureza
gregária ou solitária do ser humano e a existência ou não de diferentes
espécies e a sua relativa inferioridade. O conceito de “selvagens” era, nesta
época, conotado com a noção de liberdade, de que os nativos americanos
eram o principal modelo. A noção de “nobre selvagem” foi defendida por
Rosseau, que fala de um homem natural, ou homem selvagem no seu
Discurso sobre a origem da desigualdade (1755).
A par desta discussão sobre a natureza humana o século XVIII
também revela a presença de uma tradição de cariz sociológico com autores
como Montesquieu18 que discorre na sua obra “De l'esprit des lois” a relação
17
Para saber mais ver a Fouques, Bernanrd (1997), «O índio da América latina ou a parte maldita», In
História Inumana – massacres e genocídios das origens aos nossos dias, sob a direção de Guy Richard.
Lisboa, Instituto Piaget. Um bom romance para aprender mais sobre estas matérias é O Sonho do Celta
de Mario Vargas Llosa.
18
Charles de Secondat, conde de Montesquieu (1689-1755) é igualmente o autor das Cartas Persas
(Lettres persanes), de 1721, uma obra que supostamente relata a correspondência em entre dois
viajantes persas e os seus conterrâneos sobre as suas experiencias de viagem, em particular na Europa.
61
das leis com a cultura e advoga a existência de um “espirito geral” que é a
essência de uma dada cultura. Saint Simon e Auguste Comte, cujos
contributos foram essenciais para o desenvolvimento da sociologia.
Há várias formas de apresentar a progressão da história das teorias
antropológicas. Tradicionalmente são referidas quatro grandes perspetivas
teóricas clássicas, que marcaram de forma indelével a progressão da teoria
em antropologia até aos anos 50-60 do século XX: o evolucionismo, o
difusionismo, o funcionalismo e o estruturalismo. Nos Textos iremos
seguir estas grandes abordagens teóricas promovendo em cada uma a
análise da sua génese e preocupações teóricas. Fazendo depois uma
abordagem mais sucinta das tendências e desenvolvimentos mais atuais.
Esta progressão não é forçosamente sequencial. Há “saltos” e inovações,
desafios epistemológicos e confrontações, de que as abordagens pós-
modernistas são as mais acutilantes.
Uma obra em que o autor se coloca no papel do “outro” para analisar, e criticar, a sua sociedade.
http://athena.unige.ch/athena/montesquieu/montesquieu_lettres_persanes.html
62
2.1.1 Evolucionismo
19
Como refere Barnard (2000, 27-28) a tradição medieval europeia advogava um fixismo dos seres vivos
numa escala imutável determinado pela criação original. O universo era classificado como um princípio
ordenado “ a grande cadeia do Ser”, tendo Deus no topo, seguido dos anjos e finalmente o homem, a
este seguiam-se os macacos e os outros animais até aos vermes.
Por seu turno, a teoria da evolução pressupunha a mudança e mutabilidade, no tempo e no espaço, da
vida biológica. Na análise da transposição das ideias de evolução da biologia para o campo social é
necessário relembrar que foi Herbet Spencer (1820-1903) e não Charles Darwin quem utiliza pela
primeira vez a expressão “sobrevivência do mais apto”.
20
Esta ideia continua a ser aquela que persiste na moderna antropologia, que defende que a
humanidade é a mesma, tanto biologicamente como psicologicamente.
63
o contrato social e as questões de religião, no
qual o totemismo* assumiu particular
relevância.
Do ponto de vista metodológico os
estudos evolucionistas baseavam-se numa
abordagem dedutiva e no método comparativo.
Lewis Henry Morgan
A abordagem dedutiva resultava na aplicação de 1818-1881
teorias gerais a casos particulares. As sociedades Nasceu nos EUA. Formado
em Direito praticou
primitivas existentes eram consideradas “fósseis
advocacia. Como
vivos” de estádios anteriores e defendia-se que advogado defende os
iroqueses, por quem se
o seu estudo permitiria facultar pistas para interessa e estuda a
organização social. Em
compreender a sociedade Ocidental dos finais do
1847 foi formalmente
século XIX. Esta ideia baseava-se no adotado pela tribo
Seneca. Os seus principais
pressuposto da unidade psíquica da trabalhos são "Sistemas
de consanguinidade e
humanidade: as sociedades simples e complexas
afinidade da família
eram comparáveis já que a mente humana se humana” (1869) e
"Sociedade Antiga"
tinha desenvolvido da mesma forma. Embora (1871).
esta noção fosse relativamente vaga não se pode
deixar de creditar estes autores pelo facto de, como refere Mercier (1986,
41), terem dado ênfase à ideia de unidade da “família humana”.
Entre os autores que tentaram apresentar um esquema evolutivo
destacam-se Henry James Maine (1822-1888), John Ferguson McLennan
(1827-1881), Lewis Henry Morgan (1818-1881), Edward Burnett Tylor
(1832 – 1917) e James Frazer (1854-1941).
64
descendência patrilinear e James Frazer estudou a religião, postulando três
etapas na evolução de todas as sociedades: magia, religião e ciência21.
O americano Lewis Henry Morgan e o inglês Edward Burnett Tylor
merecem um destaque particular pelo papel que desempenham na
afirmação da antropologia.
Os trabalhos mais importantes de Lewis Henry Morgan foram Systems
of Consanguinity and Affinity (1871) e Ancient Society22 (1877). Em
Systems of Consanguinity, um trabalho devotado às classificações do
parentesco, Morgan aprofunda o campo de estudo comparativo dos sistemas
de parentesco. Nele introduz o conceito de terminologias classificatórias e
descritivas . No sistema classificatório um mesmo termo é empregue para
designar um conjunto variado de parentes, enquanto no sistema descritivo
um determinado termo é específico de uma relação.
Em Ancient Society, o seu livro mais famoso, Morgan delineou a
evolução da sociedade desde o seu princípio até à sua época (a sociedade
Vitoriana, considerada o ponto mais alto da civilização). A proposta
contemplava a divisão do desenvolvimento cultural da humanidade em três
estádios: selvajaria, barbárie e civilização. Os primeiros dois estádios eram
subdivididos em três fases: baixa, média e alta. A ênfase desta evolução era
no papel desempenhado pela tecnologia e economia. A transição de um
estádio para o outro significava progresso não só tecnológico, mas também
moral. Nesta obra Morgan desenvolve igualmente, na sequência do seu
trabalho anterior, os conceitos de parentesco, usando a terminologia
classificatória e a descritiva.
21 Frazer é famoso pela sua obra monumental The Golden Bough. O prefácio da obra de Malinowski é
redigido por ele, embora a obra em si mesma seja uma reacção em parte às suas próprias teorias sobre
a religião. Frazer é um dos mais afamados “armchair anthropologists”, “antropólogos de
secretária/cadeirão”, sendo famoso o episódio em que, questionado se alguma vez tinha contactado
com os “selvagens” sobre quem tanto sabia, afirmou: “Não, Deus me livre!”.
22
O título completo da obra ilustra a perspetiva evolucionista do autor: “Ancient Society or Researches
in the Lines of Human Progress from Savagery through Barbarism to Civilization”. Pode consultar aqui:
http://classiques.uqac.ca/classiques/morgan_lewis_henry/ancient_society/ancient_society.html
65
Quadro 1: Esquema de Morgan
Estádios Fases Desenvolvimentos
Desde a infância da humanidade ex.: pré-
Baixo
hominídeos
Selvajaria Desde a dieta do peixe e o uso do fogo ex.:
Médio
Australianos
Alto Desde a invenção do arco e da flecha ex.: Polinésios
23
A obra pode ser consultada em: https://archive.org/details/primitiveculture01tylouoft
24
O capítulo IV é dedicado às ciências ocultas, para o autor consideradas como “sobrevivências”.
Volvidos 150 anos e observadas as páginas de certos jornais, revistas, anúncios e programas televisivos
o que diria o autor?
66
No entanto, uma das principais razões
que tornam Tylor famoso é a sua definição de
cultura:
2.1.2 Difusionismo
67
princípio de invenção que caraterizava os autores evolucionistas. Para os
difusionistas as invenções eram relativamente raras e o processo de difusão
e “empréstimo” era o principal responsável pelo desenvolvimento cultural.
Até certo ponto o difusionismo foi uma reação ao evolucionismo, mas não
rejeitou totalmente as suas ideias.
Embora também seja conhecido como historicismo, vamos reservar
este termo para o difusionismo desenvolvido pela Escola Americana de Franz
Boas (analisada mais à frente), examinando neste capítulo o chamado
difusionismo inglês e o difusionismo alemão-austríaco.
O difusionismo inglês
25
Não confundir com a Escola de Manchester, designação relativa ao trabalho desenvolvido já no século
XX com o antropólogo Max Glukman.
26
Heliocêntrico: na aceção do que tem o Sol como centro ou origem.,
68
descobertas arqueológicas que na altura se
realizavam no Egipto, Smith atribui a esta
antiga civilização a origem da cultura, dando
como exemplo costumes egípcios como o
culto do sol, a mumificação, as pirâmides,
entre outros, que teriam sido levados por
esse povo nas suas digressões pelo mundo, Willian H. Rivers
1864 - 1922
conceção que Perry desenvolve na sua obra
The Children of the Sun (1923). Embora o “The Todas”, 1906: investigador
eclético, Rivers escreve em 1906
princípio do método histórico defendido por um livro que, em vários aspetos,
antecede o desenvolvimento da
estes autores seja aceitável, a extrapolação moderna antropologia social
de conclusões não era demonstrável e esta inglesa. Baseado em trabalho de
terreno, a obra é, como refere
escola não se tornou frutífera, Hart (s.d.), um exemplo pioneiro
de etnografia intensiva onde
nomeadamente após as descobertas aplica o seu método genealógico
arqueológicas noutras regiões e desenvolve diagramas de
parentesco.
demonstrarem que o Egipto não podia ser o Para saber mais consulte a obra:
https://archive.org/details/toda
centro exclusivo de origem da cultura27. s01rivegoog
Fonte foto:
http://en.wikipedia.org/wiki/W._H._R._Rive
William Halse Rivers (1864 -1922) rs
27
No entanto, muitas das suas ideias continuaram a ter forte influência em exploradores como Thor
Heyerdall, que nos anos oitenta procurou demonstrar a difusão de ideias navegando em réplicas de
barcos Sumérios e Incas. Pode ler como exemplo “A Expedição do Tigris, - Círculo de Leitores.
28
A Expedição ao Estreito de Torres, localizado entre a Austrália e a Nova Guiné, é considerada a
primeira grande experiência de campo da antropologia inglesa, paradoxalmente realizada em grupo
interdisciplinar, uma prática escassa na antropologia, que se associará desde Malinowski à ideia de um/a
antropólogo/a no terreno.
69
Como refere Langham (1981) estes três autores tiveram um papel
fundamental na mudança da antropologia inglesa do domínio evolucionista,
constituído o “elo” que antecedeu Malinowski e Radclife-Brown. Estes
autores propunham o estudo das culturas concretas como totalidades
integradas, relacionando a antropologia com a psicologia e psicanálise,
tornando-se assim um dos precursores da Escola de cultura e personalidade
(que analisaremos mais à frente).
O difusionismo Alemão-Austríaco
70
antepassados, culto da terra, etc. A segunda é carateriza da pela criação de
gado, caça, matrilinearidade, evitamento dos mortos.
Para Grabner a cultura humana ter-se-ia desenvolvido algures na Ásia –
Urkultur (centro de cultura) e daí se difundido através de migrações para
o resto do mundo. Por sua vez, Schmidt defende que a cultura moderna é o
resultado de uma série de esquemas originais que apresentam três fases:
71
histórico devia ser limitado a uma cultura particular (ou área cultural) e que
a história dessa cultura devia ser reconstruída com base em factos tangíveis
(incluindo aqui os linguísticos, arqueológicos e etnográficos – esta é uma
abordagem holística, caraterística da perspetiva de Boas, que se refletia
igualmente no trabalho de terreno, usualmente um empreendimento de
equipa. Esta dimensão vai perdurar na academia americana onde os
departamentos de antropologia compreendem as várias áreas associadas.
O particularismo considerava a difusão como uma das formas de
compor uma cultura, que se assumia como uma entidade menos rígida do
que nas versões evolucionistas. Cada cultura é única, devendo ser
compreendida na perspetiva do observador com base nos dados subjetivos:
valores, normas e emoções.
A vida social é comandada pelo hábito e costume (e não a razão e
utilidade de Tylor). Uma vez que cada cultura é única há uma ênfase no
relativismo, pelo que é impossível proceder a julgamentos de valores de
outras culturas pois eles só podem ser compreendidos no contexto cultural
em que ocorrem. Como tal não se pode fazer generalizações, pelo menos
enquanto não houver mais dados. Para superar esta falha aposta no
trabalho de campo para poder reunir elementos suficientes. Esta abordagem
do terreno era sobretudo indutiva, já que as explicações surgiriam dos
dados recolhidos.
Boas procurou dotar a antropologia americana de uma base sólida,
assente no trabalho de campo, tendo feito inúmeros trabalhos junto das
comunidades nativas. Entre os seus estudos mais conhecidos está a análise
72
do potlash entre os Kwaktiul (uma cerimónia
que envolvia uma competição pelos status na
qual eram destruídos cerimoniosamente bens).
É apontado a Boas o facto de ter
promovido a culturologia, o argumento
segundo o qual a cultura teria uma vida
Franz Boas
própria, desprovido de sentido a interação 1858 – 1942
73
O cidadão norte-americano desperta num leito construído segundo
padrão originário do Oriente Próximo, mas modificado na Europa
Setentrional, antes de ser transmitido à América. Sai debaixo de cobertas
feitas de algodão, cuja planta se tornou doméstica na Índia; ou de linho
ou de lã de carneiro, um e outro domesticados no Oriente Próximo; ou de
seda, cujo emprego foi descoberto na China. Todos esses materiais foram
fiados e tecidos por processos inventados no Oriente Próximo. Ao levantar
da cama faz uso dos “mocassins” que foram inventados pelos índios das
florestas do Leste dos Estados Unidos e entra no quarto de banho cujos
aparelhos são uma mistura de invenções européias e norte-americanas,
umas e outras recentes. Tira o pijama, que é vestiário inventado na Índia
e lava-se com sabão que foi inventado pelos antigos gauleses, faz a barba
que é um rito masoquístico que parece provir dos sumerianos ou do
antigo Egito.
Voltando ao quarto, o cidadão toma as roupas que estão sobre uma
cadeira do tipo europeu meridional e veste-se. As peças de seu vestuário
têm a forma das vestes de pele originais dos nômades das estepes
asiáticas; seus sapatos são feitos de peles curtidas por um processo
inventado no antigo Egito e cortadas segundo um padrão proveniente das
civilizações clássicas do Mediterrâneo; a tira de pano de cores vivas que
amarra ao pescoço é sobrevivência dos xales usados aos ombros pelos
croatas do séc. XVII. Antes de ir tomar o seu breakfast, ele olha ele olha
a rua através da vidraça feita de vidro inventado no Egito; e, se estiver
chovendo, calça galochas de borracha descoberta pelos índios da América
Central e toma um guarda-chuva inventado no sudoeste da Ásia. Seu
chapéu é feito de feltro, material inventado nas estepes asiáticas.
De caminho para o breakfast, pára para comprar um jornal,
pagando-o com moedas, invenção da Líbia antiga. No restaurante, toda
uma série de elementos tomados de empréstimo o espera. O prato é feito
de uma espécie de cerâmica inventada na China. A faca é de aço, liga
feita pela primeira vez na Índia do Sul; o garfo é inventado na Itália
medieval; a colher vem de um original romano. Começa o seu breakfast,
com uma laranja vinda do Mediterrâneo Oriental, melão da Pérsia, ou
talvez uma fatia de melancia africana. Toma café, planta abssínia, com
nata e açúcar. A domesticação do gado bovino e a idéia de aproveitar o
seu leite são originárias do Oriente Próximo, ao passo que o açúcar foi
feito pela primeira vez na Índia. Depois das frutas e do café vêm waffles,
os quais são bolinhos fabricados segundo uma técnica escandinava,
empregando como matéria prima o trigo, que se tornou planta doméstica
na Ásia Menor. Rega-se com xarope de maple inventado pelos índios das
florestas do leste dos Estados Unidos. Como prato adicional talvez coma
o ovo de alguma espécie de ave domesticada na Indochina ou delgadas
74
fatias de carne de um animal domesticado na Ásia Oriental, salgada e
defumada por um processo desenvolvido no norte da Europa.
Acabando de comer, nosso amigo se recosta para fumar, hábito
implantado pelos índios americanos e que consome uma planta originária
do Brasil; fuma cachimbo, que procede dos índios da Virgínia, ou cigarro,
proveniente do México. Se for fumante valente, pode ser que fume
mesmo um charuto, transmitido à América do Norte pelas Antilhas, por
intermédio da Espanha. Enquanto fuma, lê notícias do dia, impressas em
caracteres inventados pelos antigos semitas, em material inventado na
China e por um processo inventado na Alemanha. Ao inteirar-se das
narrativas dos problemas estrangeiros, se for bom cidadão conservador,
agradecerá a uma divindade hebraica, numa língua indo-européia, o fato
de ser cem por cento americano29.
29
Citado em Laraia, Roque. 2003. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor,
2003, p.106-108
75
primitivas eram iguais às crianças nas sociedades desenvolvidas. Todavia,
foi a sua ênfase na relação entre as ideias culturais e símbolos – que
refletem impulsos inconscientes – que teve grande recetividade entre os
antropólogos. Malinowski foi um dos primeiros a refutar a universalidade de
determinados processos, nomeadamente a ideia de que o complexo de
Édipo era universal. Como ele procurou demonstrar, nas Trobrienders, de
matriz matrilinear, a tensão existente era com o irmão da mãe, o tio
materno, e não o pai, ou seja, a tensão existe com quem exerce a autoridade
(o pai é nestas ilhas, matrilineares, o companheiro de brincadeiras, sendo a
autoridade exercida pelo tio materno).
Em antropologia esta corrente vai examinar como os seres humanos
adquirem a cultura e como esta se relaciona com a personalidade individual.
Entre os autores mais importantes desta corrente contam-se Ruth Benedict
(1887-1948), Margaret Mead (1901-1978), Edward Sapir (1884-1939),
Abram Kardiner (1891 – 1981) e Cora Du Bois (1903 – 1991). Há duas
abordagens gerais desta escola (McGee e Warms, 2004, 217): a relação
entre a cultura e a natureza humana e a relação entre a cultura e a
personalidade individual. A primeira abordagem é representada pelo
trabalho de Margaret Mead Sex and Temperament in Three Primitive
Societies (1935), enquanto a segunda abordagem é característica da obra
de Ruth Benedict.
76
autora utiliza a distinção elaborada por Friedrich Nietzsche, o filósofo e
crítico literário, para descrever a tragédia grega: apolíneo e dionisíaco (o
primeiro assenta no equilíbrio, ordem e harmonia, enquanto o segundo é
emoção, paixão e excesso). A estes princípios a autora acrescenta o
paranóico. Assim, os zuñi eram identificados como apolíneos, a sua vida é
ordenada, tudo é feito de forma precisa e não entram em transe. Ao
contrário, os kwakiutl são dionisíacos, a violência e o transe são
caraterísticos. Finalmente, os dobu são considerados paranóicos sendo as
suas caraterísticas a hostilidade e a traição. O que a autora pretende
demonstrar é que estas caraterísticas são consideradas como
comportamentos normais em cada uma das culturas.
Durante a 2ª Grande Guerra Mundial a Ruth
Para saber mais
Benedict escreve aquele que se torna o mais sobre:
conhecido dos estudos de carácter nacional: O
Crisântemo e a Espada (1946), um estudo sobre os
japoneses, elaborado para o exército americano
com o objetivo de conhecer o inimigo. Impedida de
fazer trabalho de campo a autora recorre a
Ruth Benedict
bibliografia e aos japoneses aprisionados nos EUA 1887-1948
para obter os seus dados. Numa abordagem neo- http://www.america
nethnography.com/
freudiana, relacionando práticas infantis com tipos article.php?id=7#.U
de personalidades adultas, a autora advoga que a xYZ4vl_tK0
77
nacional foram muito criticados e abandonados (embora as representações
sociais sobre esta matéria persistam).
78
estrutura básica da personalidade e as instituições derivadas ou
secundárias. As instituições primárias são as técnicas culturalmente
determinadas de cuidar das crianças e que criam atitudes básicas para com
os pais e que perduram durante toda a vida do indivíduo. A estrutura básica
da personalidade é o grupo de “constelações nucleares” de atitudes e
comportamentos formados por padrões estandardizados numa determinada
cultura. Para os autores, por meio dos mecanismos de projeção as
constelações refletem-se no desenvolvimento de outras instituições, como
a religião, o governo e a mitologia e ritual.
De modo a ter em conta algumas das críticas à existência de uma
estrutura de personalidade básica, comum a todos, Cora DuBois propôs o
conceito de personalidade modal, o tipo de personalidade que era
estatisticamente mais comum na sociedade. Assim, numa sociedade, haverá
lugar à formação de um conjunto de caraterísticas básicas advindas das
instituições primárias, mas também a existência de variação individual na
forma como essas personalidades se expressam. O seu trabalho de campo
foi junto dos alorenses, naturais da ilha de Alor, de que resultou o seu livro
“The people of Alor”, de 194430. Horticultores de floresta tropical, os homens
estão muitas vezes ausentes em viagens de trocas comerciais. Segundo o
autor a criança alorense embora desejada é negligenciada, mas não é
rejeitada. É meramente descurada pela mãe que trabalha no campo e por
um pai muitas vezes ausente. Há pouco contacto físico com a criança que
fica ao cuidado de outros membros da família e não há o alívio de tensões
ou carícias, nem aquando da alimentação da criança. A criança é tímida e
reservada, mas dada a enfurecimentos e insultos. Roubam e pilham com
naturalidade e desafiam os pais abandonando a casa e indo viver com
parentes. Segundo o autor não há solidariedade emocional na família, o
desenvolvimento do ego e a consciência social do adulto são muito fracos.
As relações dos homens com as mulheres são uma projeção das suas
infâncias, assim como as instituições bélicas e religiosas: desorganizadas,
irregulares e vingativas as primeiras, relutantes face às segundas - culto
79
dos antepassados irascíveis e vingativos para com os seus descendentes a
quem exigem comida.
80
A escola sociológica – uma intrusão para falar da irmã da
antropologia
81
da consciência coletiva, os seus valores e crenças (designadas
representações coletivas), dava significado à vida.
Para Durkheim a consciência coletiva era uma entidade psicológica,
com uma existência superorgânica, pois embora estivesse presente em cada
membro da sociedade, ultrapassava a sua existência individual, e não podia
ser explicada pelo seu comportamento pessoal. Assim, para estudar a vida
em sociedade deviam-se estudar os factos sociais, as regras sociais e de
comportamento que existem antes do individuo entrar na sociedade e que
permanecem após a sua morte.
Entre os seus principais trabalhos incluem-se A Divisão do trabalho
social (1893) e As Formas Elementares da Vida Religiosa (1912)31. Na
primeira obra desenvolve os conceitos de solidariedade mecânica,
caraterística que considera própria das sociedades primitivas, e
solidariedade orgânica, exclusiva das sociedades industriais. Para Durkheim,
nas sociedades primitivas a consciência coletiva envolve totalmente o
indivíduo, pelo que não há diferenciação interna entre este e a sociedade. O
parentesco é o laço essencial entre as pessoas. Por seu turno, as sociedades
industriais caraterizam-se pela separação parcial da consciência coletiva da
consciência individual, ocorrendo uma especialização ocupacional. Os laços
entre os membros destas sociedades são, sobretudo, económicos,
ocupacionais e cooperativos. Durkheim acreditava que as sociedades
evoluíam da solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica, um
processo que conduzia a uma maior diferenciação social e especialização, o
que aumentaria a coesão social. Na sua obra As Formas Elementares da
Vida Religiosa (1912) o autor desenvolve as suas ideias relativas à forma
como as pessoas compreendem o mundo através de sistemas de
classificação criados socialmente. Para Durkheim, a natureza destes
sistemas de classificação era, essencialmente, dualística, como procurou
demonstrar com a ideia de que há uma separação entre as esferas
“sagradas” e profanas”32.
31
Tradução portuguesa: Durkheim, Émile (2002) As Formas Elementares da Vida Religiosa: O Sistema
Totémico na Austrália, Oeiras, Celta.
32
A crítica de Mary Douglas
82
Na esteira de Durkheim, Marcel Mauss33, desenvolve uma obra que é,
simultaneamente, sociológica e antropológica. O seu trabalho mais
conhecido é o Ensaio sobre a Dádiva: Forma e Razão da Troca nas
Sociedades Arcaicas 1925)34. Neste trabalho Mauss, utilizando um vasto
conjunto de fontes antigas e contemporâneas (nomeadamente os trabalhos
de Boas sobre os Kwakiutl e de Malinowski sobre os Trobriandeses), e
desenvolve a ideia de que a troca de presentes nas sociedades primitivas é
muitas vezes parte fundamental das obrigações políticas e sociais, refletindo
ou expressando a estrutura social da sociedade em causa. A estes factos
sociais, simultaneamente múltiplos de sentidos, designou factos sociais
totais. Nunca tendo efetuado trabalho de terreno é, no entanto, o autor em
1926 de um manual de etnografia.35
33
Marcel Mauss é sobrinho de Durkheim e trabalhou com ele.
34 Tradução portuguesa: Mauss, Marcel (2001) Ensaio Sobre a Dávida, Lisboa, Edições 70
35
http://classiques.uqac.ca/classiques/mauss_marcel/manuel_ethnographie/manuel_ethnographie.html
83
ao invés de Marx, ele considerou as causas materiais como insuficientes
para explicar o seu desenvolvimento. Assim, a par deste desenvolvimento
material ele propõe como explicação o desenvolvimento paralelo do
Calvinismo e da sua moral de responsabilização e autodisciplina, essenciais
para assegurar a salvação pessoal e que em conjunto com as mudanças
ocorridas nas relações de produção potenciaram o desenvolvimento da
burguesia capitalista.
Weber é um precursor do pós-modernismo. A sua noção de
versthehen (compreensão) a identificação com o observado de modo a
compreender melhor os seus motivos e o significado das suas ações é
fundamental na antropologia simbólica, nomeadamente em Clifford Geertz
e Renato Rosaldo.
84
2.1.4 Funcionalismo (estruturo-funcionalismo)
36
O Estreito de Torres localiza-se no sudeste asiático, entre a Austrália e a Nova Guiné.
85
das estruturas que são subjacentes a qualquer sociedade e em descobrir as
leis sociais resultantes do estudo comparativo de várias sociedades.
No plano teórico outra característica do funcionalismo era o seu
limitado interesse pela história, ao contrário da antropologia Boasiana que
se fazia nos EUA na altura. Para os antropólogos ingleses a reconstrução da
história em sociedades sem tradição escrita era especulativa e o que
interessava era analisar a sociedade como ela se apresentava no momento
do estudo (caraterizando-se os seus trabalhos por uma “intemporalidade”
dos dados).
A tensão entre as duas escolas de pensamento era similar à tensão
existente entre as duas figuras que as criaram. No entanto, lentamente, a
versão estruturo funcionalista ganhou ascensão no plano teórico, fenómeno
percetível pelo facto de muitos alunos de Malinowski terem aderido à escola
de Radcliffe-Brown, insatisfeitos com a
O circuito kula
resposta teórica da abordagem. A
preocupação com a coesão e equilíbrio
vai ser a principal modelo desta escola
e também uma das suas principais
críticas. A manutenção da ordem social
e a regular vida da sociedade estava de
acordo com as preocupações das
autoridades coloniais em que muitos Malinowski (1966, 131)
86
the Western Pacific (1922)37 é o paradigma. A obra inicia-se com a definição
do sujeito, método e objetivos, bem como a geografia da zona. Parte de
seguida para a problemática da troca Kula sobre a qual vai analisar em
detalhe todos os aspetos relacionados com a sua prática, tanto material
como imaterial. A sua conclusão, mais do que teórica, é sobretudo um apelo
à tolerância face a costumes estranhos38.
Um dos contributos mais relevantes de Malinowski foi a sua análise
das relações entre o pai e filho. De acordo com a teoria psicológica freudiana
ela seria conflituosa. Mas, Malinowski demonstra que, numa sociedade
matrilinear esta tensão existia entre o tio, irmão da mãe, e não em relação
ao pai biológico, o que vai por em causa a
Para saber mais:
universalidade da teoria freudiana.
No plano teórico as propostas de Malinowski,
sistematizadas sobretudo na sua Teoria Cientifica da
Cultura (1944), foram consideradas na altura
limitadas, nomeadamente face ao seu principal
“rival” académico, Radcliffe Brown. Nesta obra, em Bronislaw Malinowski
(1884 – 1942)
que analisa o papel instrumental da cultura na
http://www.aaanet.or
satisfação das necessidades humanas, a teoria das g/committees/commiss
ions/centennial/histor
necessidades. Existem para o autor três tipos de y/095malobit.pdf
necessidades: as básicas, as derivadas e as
integrativas. O conjunto básico deriva de impulsos
biológicos e psicológicos: metabolismo, reprodução,
conforto corporal, segurança, movimento,
crescimento e saúde. As necessidades derivadas são
sobretudo associadas à natureza cultural do Homem: Alfred R. Radcliffe-
Brown (1881 – 1955)
abastecimento, parentesco, abrigo, proteção, higiene
http://www.aaanet.or
e exercício. Por fim, as necessidades integrativas g/committees/commiss
ions/centennial/histor
y/096rb.pdf
37
A obra pode ser consultada em: https://archive.org/details/argonautsofweste00mali
38
A obra de Malinowski vai ser objeto de uma revisão. A própria faceta aberta e tolerante é posta em
causa anos mais tarde quando o seu diário pessoal é publicado após a sua morte. A edição em Português
está disponível em: Malinowski, Bronislaw (1997 [1967]) Um diário no sentido estrito do termo, Rio de
Janeiro-São Paulo, Editora Record.
87
revelam a dimensão simbólica das relações existentes: a tradição, os
valores, a religião, a linguagem e o conhecimento.
88
sim a partir de premissas lógicas – que vão ser a base da abordagem
estruturalista de Lévi-Strauss.
Comparado com outros autores Radcliffe-Brown escreveu
relativamente pouco, no entanto o seu percurso como professor foi vasto,
ensinando na Austrália, na Africa do Sul, em Inglaterra, nos EUA, etc. Os
seus temas de estudo prediletos centraram-se nas questões de parentesco,
politica e religião, nomeadamente o totemismo. O seu maior contributo é a
teoria da descendência39 (que entrará em polémica com a teoria da aliança
defendida por Lévi-Strauss analisada mais à frente) segundo a qual os
grupos de descendência patrilinear ou matrilinear formam a base de muitas
sociedades, sobretudo em África (continente em que muitos seus dos
discípulos vão realizar trabalho de campo com bolsas de estudo disputadas
pelo tutor com Malinoswki, e que vão servir como base parta a promoção
da ligação da antropologia com a administração colonial)40.
O funcionalismo não se limitou à antropologia. Nos anos 50 dois
sociólogos americanos desenvolveram análises no seu âmbito procurando
superar as suas limitações: Robert Merton (1910-2003) e Talcon Parsons
(1902-1980). Para Rivière (2000) Merton adopta um funcionalismo
relativizado face a Malinowski, nomeadamente à sua ênfase na unidade
funcional da sociedade, a noção de funcionalismo universal e o da
necessidade. Para superar estas deficiências concebe três princípios
fundamentais:
39
O texto fundamental desta teoria encontra-se na Introdução da obra: Radcliffe-Brown, A. R. e Forde,
Daryll (1982 [1950] Sistemas Políticos Africanos de Parentesco e Casamento, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian.
40
As peripécias desta disputa entre os autores maiores da antropologia inglesa e a sua competição e
interesse em implicar a antropologia na administração colonial inglesa são abordados na obra de Kuper
(1993).
89
como o conforto psicológico e a coesão social, procedem certamente das
intenções subjacentes ao rito. (Rivière, 2000, 53)
90
2.1.5 Estruturalismo
41
Entre as obras de referência consultadas somente Barnard (2004) faz alusão a este facto.
91
O principal campo de inspiração para Lévi-Strauss foi a linguística,
nomeadamente Saussure e a escola de Praga da linguística estrutural, com
Jakobson e Troubetzkoy. A linguística operou uma transformação que ele
valorizou: deixou de se preocupar unicamente com as origens da língua e
passou a preocupar-se com a forma como funcionava assente no contraste
entre sons ou fonemas. A linguística advogava que todas as línguas eram
compostas por fonemas, que por si só não têm significado. É somente
quando são combinados em unidades maiores, morfemas, palavras, frases,
etc., de acordo como certos padrões (regras de sintaxe e gramática) é que
eles se tornam significativos: o discurso. A maioria dos falantes de uma
língua, apesar de a falarem, não sabem identificar as regras que subjazem
à elaboração do discurso. Assim, a um nível subconsciente todos devemos
saber quais estas regras são, sendo o objetivo da linguística descobrir estes
princípios inconscientes.
Com base nas ideias da linguística, Lévi-
Para saber mais:
Strauss procurou desenvolver um meio de estudar
os princípios inconscientes que estruturam,
segundo ele, a cultura humana. Esta, como a
linguagem, é composta por uma coleção arbitrária
de símbolos (os fonemas da linguística) que não lhe
interessam individualmente mas sim o padrão de
Claude Lévi-Strauss
elementos, a forma como os elementos culturais se 1908 – 2009
relacionam (comunicam) para formar o sistema -
Uma entrevista sobre
um dos principais contributos da escola de Praga o antropólogo que
odiava viajar…
foi o contraste entre as oposições binárias dos
http://www.uc.pt/en/
fonemas, ideia que Lévi-Strauss vai aplicar no cia/publica/AP_artig
os/AP24.25.01_Leme.
estudo da cultura, propondo que o padrão de pdf
pensamento humano também usa contrastes
binários como branco e preto, dia e noite e quente e frio (um
desenvolvimento da ideia de Durkheim sobre o sagrado-profano, ou de
92
Hobert Hertz`s (1880-1915) sobre a oposição entre a mão esquerda e
esquerda42).
Um resumo das ideias de Lévi-Strauss, numa obra vasta e prolífica,
de certeza que deixam de parte grande número de elementos.43 Os
fundamentos das ideias de Lévi-Strauss articulam três áreas: uma exegese
do empirismo, a valorização do estruturalismo como modelo e o primado do
intelecto. A rejeição do empirismo funda-se na rejeição da possibilidade de
conhecer através da observação de uma sociedade os “motivos universais”,
pelo que rejeita a importância dos conceitos indígenas. Como refere
Dubuisson, citado por Deliège (2001) o real é para o autor confuso e
desordenado, competindo ao antropólogo colocar ordem intelectual nesta
desordem aparente, desvendando as leis e regras imutáveis. É neste
contexto que advoga que a análise pretende alcançar as estruturas
inconscientes de cada instituição44, consideradas de forma genérica como o
não-consciente, não-explicito. Então o que é a noção de estrutura? Para o
autor: “a noção de estrutura social não se refere à realidade empírica, mas
aos modelos construídos em conformidade com esta (…) As relação sociais
são a matéria-prima empregada para a construção dos modelos que tornam
manifesta a própria estrutura social.” (Lévi-Strauss, 1996 [1952], 315-316).
Quais são então as caraterísticas que os modelos devem ter para “merecer
o nome de estruturas”? O autor (1996 [1952], 316) indica que:
42
Considerado um dos mais brilhantes autores da época, o autor morreu, em combate, no decurso da
1ª Grande Guerra. Para saber mais sobre o autor e a usa obra, compilada em “Sociologie religieuse et
folclore” (1928), consulte:
http://classiques.uqac.ca/classiques/hertz_robert/hertz_robert_photo/hertz_robert_photo.html
43
Este resumo segue a síntese de Deliège (2001). No entanto, as citações recorrem às obras originais
citadas quando disponíveis.
44
A noção de inconsciente não é clara em Lévi-Strauss e foi objecto de crítica.
93
Em terceiro lugar, as propriedades indicadas acima permitem
prever de que modo reagirá o modelo, em caso de modificação de um
dos seus elementos.
Enfim, o modelo deve ser construído de tal modo que seu
funcionamento possa explicar todos os fatos observados.
Como refere Deliège (2001, 46) esta afirmação é menos uma definição
do que um conjunto de traços essenciais. Todavia, persiste alguma
ambiguidade: por um lado pode-se igualmente dizer que “a estrutura é um
modelo que oferece o carácter de sistema”, por outro lado, não é a
modificação dos elementos, ou termos, que acarreta a modificação, mas sim
a modificação de uma relação entre esses elementos (tema desenvolvido
em Antropologia Estrutural dois).
Finalmente, Lévi-Strauss, privilegia o primado do intelecto, do espírito,
sobre o social, o que teve como corolário a sua busca da origem simbólica
da sociedade. O sistema social é a concretização das capacidades do espírito
humano, um aparelho intelectual que o leva a agir dessa forma (explicação
que se aplica tanto às formas de casamento preferencial como ao mito, ao
ritual, etc.). Uma propriedade fundamental do espírito humano é a
dicotomização do pensamento em sistemas de oposição binária. O exemplo
do cru e do cozido na sua análise da mitologia mostra como esta oposição
expressa, para o autor, a diferença entre a natureza e a cultura. A análise
estrutural de mitos vai levar o autor a elaboradas análises que deixam ainda
hoje incrédulos alguns autores pelo facto a sua consistência depender mais
da capacidade do analista do que de excluir outras possibilidades.
A história é negligenciada, o estruturalismo não tem como objetivo a
análise da mudança social. O estruturalismo analisa sistemas que assentam
a suas proximidades em bases intemporais, o sistema é concebido como em
equilíbrio, não se pode transformar e impõem-se aos homens.
O primeiro grande trabalho de Lévi-Strauss foi no campo do
parentesco: As Estruturas Elementares do Parentesco (1949)45. Neste
estudo combinou a noção de oposição binária com o conceito de
45
http://classiques.uqac.ca/collection_methodologie/levi_strauss_claude/structuralisme_rapports_soc
iaux/structuralisme_rapports_sociaux_texte.html
94
reciprocidade na troca, herdado da obra de Mauss. A tese principal da obra
reside no facto de as mulheres, nas sociedades primitivas, serem
consideradas como um tipo de bem que pode ser trocado. A oposição binária
essencial da espécie humana reside na distinção que opera entre os
parentes e não parentes. Através do tabu do incesto o grupo está impedido
de se casar com as suas próprias mulheres pelo que tem que estabelecer
relações com outros grupos a fim de obter esposas. Esta troca recíproca é
o sistema mais simples de aliança, termo que vai ter uma expansão com o
estruturalismo. Apesar de pretender trabalhar o campo do parentesco nas
sociedades complexas o autor nunca o chegou a fazer.
A obra mais conhecida do grande público é os Tristes Trópicos (1954),
um libelo da crítica da modernidade, reflexiva, alusiva da única experiência
de contacto, fugas, que o autor teve com o “outro”. A critica do progresso e
a defesa do bom selvagem na linha de Rosseau, que também não teve de
ver o selvagem para compreender que a sua vida social depende do contrato
e do consentimento.
As obras subsequentes centraram-se sobretudo na análise das
classificações simbólicas, como o totemismo, e os mitos, acreditando que o
estudo da mitologia permitiria aceder aos padrões inconscientes. Na sua
obra sobre os mitos Lévi-Strauss acaba por propor a hipótese de uma
característica do pensamento humano residir na procura de um ponto
intermediário entre as oposições binárias. Os elementos do mito, como os
fonemas, só adquirem significado quando organizados de acordo com certas
relações estruturais. São estas relações que ganham ênfase na análise.
Neste contexto é de mencionar a polémica que envolveu o autor com Lévy-
Bruhl. Este autor defendia a tese de que o pensamento selvagem era pré-
lógico, não racional. Lévi-Strauss opôs-se a esta visão e defendeu a ideia de
que a mentalidade das sociedades selvagens não era inferior, não racional.
Para ele o pensamento selvagem era o fruto de uma herança intelectual e
classificatório, em que a utilização de espécies animais para definir relações
não são arcaísmos, mas sistemas complexos de pensamento lógicos. Neste
sentido os seus estudos dos mitos procuram demonstrar esta complexidade.
95
O estruturalismo de Lévi-Strauss vai influenciar em França um conjunto
de autores, mesmo que por reação, como é o caso do estruturalismo
marxista (que falaremos mais à frente e cujo autor mais ilustrativo é Maurice
Godelier) e Louis Dumont (que, todavia, nunca abandona as realidades
empíricas, nomeadamente a Índia). No campo anglo-saxónico Rodney
Needham em Oxford e Edmund Leach em Cambridge). Victor Turner e Mary
Douglas.
96
2.1.6 Sinopse de “neo”abordagens e “pós”perspetivas:
reinvenção, críticas e reações
46
Embora nenhum deles, nos EUA dos anos 40, década de 50, se pudesse referir diretamente a esta
fonte de inspiração. De facto, a situação política decorrente da Guerra Fria, e o temor da perseguição
de elementos conotados como comunistas, no contexto das medidas tomadas pelo Senador Joseph
McCarthy, limitava esse reconhecimento.
47
A comparação como método não cessou com evolucionistas e difusionistas. Sarana (1975) citado
por Barnard (2004, 57) identifica três tipos de comparação em antropologia: ilustrativa, global e
controlada (incluindo a comparação regional). A comparação ilustrativa envolve a escolha de exemplos
etnográficos para explicar diferenças e similaridades (por exemplo comparar os Nuer e os Trobrianders,
como exemplos de sociedades matrilineares), a comparação global implica comparações estatísticas de
sociedades de todo o mundo, cujo melhor exemplo é o HRF de Murdock. Finalmente, a comparação
controlada restringe o seu âmbito a áreas restritas e limita o número de variáveis em análise. Foi
empregue por difusionistas, funcionalistas e neoevolucionistas como Julian Steward. Um outro exemplo
desta abordagem é a que foi desenvolvida pela Escola de Leiden, na Holanda.
97
Outra abordagem “neo” que vai ganhar folgo é a neofuncionalista,
também designada materialista. O neofuncionalismo tornou-se um dos
campos mais frutuosos pelos estudos de Roy Rappaport (1926-1996) e de
Marvin Harris (1927-2001), que reivindica, todavia, para si a denominação
de materialismo cultural. Os neofuncionalistas consideravam que a:
“organização social e a cultura são adaptações funcionais que permitem as
populações explorar com sucesso o ambiente sem exceder a capacidade de
sustentação dos seus recursos ecológicos” (Applebaum, citado em McGee e
Warms, 2004, 285).
Roy Rappaport representa uma tendência mais ecológica, pelo que o
seu trabalho também é inserido na denominada ecologia cultural. O
antropólogo defende que as leis da biologia ecológica podem aplicar-se ao
estudo das populações humanas. Adaptando da cibernética a noção de
retorno (feedback) para explicar a estabilidade cultural, o autor procurou
demonstrar no seu estudo de 1967, Pigs for the Ancestors, como uma
comunidade da Nova Guiné, estabelece através do ritual um mecanismo de
retorno que regula as relações ecológicas entre os homens, os porcos, os
alimentos disponíveis e a guerra.
Marvin Harris é, sem dúvida, um dos autores mais profícuos da
Antropologia. Um dos seus primeiros estudos de terreno foi em
Moçambique, na altura colónia portuguesa48, e foi justamente essa
experiência que o levou a valorizar a perspetiva materialista,
nomeadamente o facto de o controlo sobre os sistemas de produção ser
essencial para compreender a cultura. Nesta perspetiva, influenciada pela
teoria marxista, o autor desenvolve um sistema de análise com três níveis:
infraestrutura, estrutura e superestrutura. No entanto, a primazia é dada ao
primeiro nível onde se articulam os modos de produção e de reprodução da
sociedade.
Harris escreveu muito (algumas das obras estão traduzidas em
português), sendo dele uma das mais famosas e polémicas histórias da
48
Marvin Harris seria expulso de Moçambique pelas autoridades portuguesas. Para saber mais sobre o
autor e a sua visão critica pode consultar MACAGNO (1999), em:
http://www.lusotopie.sciencespobordeaux.fr/macagno99.pdf
98
antropologia: The Rise of Anthropological Theory (1968), outras como Cows,
Pigs , Wars and Witches (1974) e Cannibals and Kings: The Origins of
Culture (1977). O materialismo cultural foi acusado por alguns autores
modernistas de ser uma forma de positivismo, determinista, na qual o
homem tem pouco a dizer sobre a sua sorte. No entanto, mesmo os seus
mais fervorosos críticos nunca conseguiram desmontar totalmente a
pertinência de estudos como “The cultural Ecology of Índia`s Sacred Cattle”
(1966), na qual Harris defende que a sacralidade da vaca não resulta da
determinação religiosa, mas da sua importância produtiva, material e
ecológica, no contexto indiano.
Outra “neo” corrente é o neomarxismo que é, na origem,
eminentemente europeia, e sobretudo de ascendência francesa. Ao
contrário dos colegas americanos, os autores franceses não tiveram no pós-
guerra as limitações de expressão políticas e académicas. Por esta razão
enquanto os materialistas americanos enfatizavam os mecanismos de
retorno e a adaptação estável ao ambiente, os autores franceses usaram de
forma mais direta a contradição dialética das análises marxistas – criticando
as abordagens materialistas americanas pelo facto de estas minimizarem o
papel do conflito. Estes autores são também designados como dinamistas,
por analisarem a dinâmica das sociedades.
Nos anos sessenta os dois principais autores desta corrente foram
Maurice Godelier (1925 – ) e Claude Meillassoux (1925 - 2005). O trabalho
de Godelier49 é definido como estruturalista marxista. Uma das suas obras
mais relevantes data de 1982, e resulta do seu trabalho de campo
continuado com os Baruya da Nova Guiné é: La production des Grands
Hommes. Pouvoir et domination masculine chez les Baruya de Nouvelle
Guinée. A perspetiva do autor, que incorpora a análise marxista no seu
trabalho, é a de que, ao contrário da ideia defendida pela teoria clássica
marxista e pelos neo-evolucionistas, a superestrutura é fundamental.
Godelier, privilegiava as relações de produção (as relações sociais) sobre a
49
Para saber um pouco mais sobre o autor e as suas ideias leia a entrevista feita por Bernardo Hollanda
e Rodrigo Ribeiro para a revisa Estudos Políticos, nº 2, 2011 (01), disponível em:
http://revistaestudospoliticos.com/wp-content/uploads/2011/04/2p2-20.pdf
99
tecnologia e atividades individuais. De facto, para este autor os aspetos
considerados como pertencendo à superestrutura, como a religião ou o
parentesco) são elementos fundamentais para a infraestrutura de qualquer
sociedade (desta forma pode se percecionar como estas ideias estão
afastadas das noções de Marvin Harris).
Claude Meillassoux (1925-2005) 50
foi outro autor essencial. Não
perfilhava totalmente a admiração estruturalista de Godelier, era aliás crítico
do estruturalismo pelo facto de este não analisar a questão da exploração e
das causas materiais da transformação dos sistemas de parentesco. Um
exemplo desta perspetiva é a ideia defendida pelo autor, em contraposição
à noção meramente comunicacional de Lévi-Strauss, e simultaneamente
diferente da inspiração marxista quanto aos termos, de que é o domínio
sobre o controle de “reprodução” (as mulheres) e não o controle sobre os
meios de produção, que é o mais importante numa sociedade. Para estes
autores, a visão da sociedade era baseada na luta de diferentes grupos
sociais pelo controlo dos meios de produção e poder. Nesse âmbito, ao
contrário da maioria dos antropólogos da época, eram críticos dos efeitos
do colonialismo e das transferências económicas internacionais. A este
respeito Meillassoux defende que o capitalismo não destrói os modos de
produção pré-capitalista, mas que os mantêm em articulação com o modo
de produção capitalista, em seu proveito.
50
Para saber um pouco mais sobre o autor, consulte, em francês: http://lhomme.revues.org/1795
100
organismo ao seu ambiente sejam selecionados e reproduzidos nas
gerações futuras.
No entanto, os sociobiologistas estão longe dos evolucionistas
culturais pois, ao contrário dos antecessores do século XIX, a sua
preocupação não é com a evolução de padrões de cultura, mas sim com a
transmissão dos mecanismos de comportamento humano na perspetiva
darwinista e genética. Por outro lado, enquanto os evolucionistas clássicos
defendiam que a progressão evolutiva tendia a desenvolver sociedades
perfeitas, os sociobiologistas usam simplesmente a linguagem do sucesso
reprodutivo.
A sociobiologia é influenciada pelos estudos de comportamento
animal que se difundiram nos anos 50 e 60 com investigadores, como
Konrad Lorenz. O autor mais divulgado desta corrente é Edward O. Wilson
(1929 -) com a publicação em 1975: Sociobiology: The New Syntesis e de
Richard Dawkins (1941 - ) com The Selfish Gene de 1976. Nesta perspetiva
o comportamento humano é controlado por genes particulares e a evolução
ocorre quando o sucesso reprodutivo permite a transmissão de
determinados genes à geração futura: a guerra, a seleção sexual, o
desenvolvimento da organização política, a arte, rituais e mesmo a ética são
a expressão desse desejo51.
Pós-estruturalismo
51
O que leva McGee e Warms (2000) a afirmarem criticamente que, nesta perspetiva, os humanos
pouco mais são do que meros veículos utilizados pelos genes na sua reprodução.
101
autores só associam ao pós-modernismo52). Para Barnard “ (…) o pós-
estruturalismo é uma forma de pós-modernismo, tal como o estruturalismo
é uma forma primária de “modernismo tardio” na antropologia” (2000, 139)
.
A principal caraterística do pós-estruturalismo é a relutância em
aceitar a distinção entre sujeito e objeto – princípio implícito no pensamento
estruturalista – defendido por Saussure. Entre os mais destacados pós-
estruturalistas encontram-se: Derrida, Althusser, Lacan e Foucault. Este
último e Bordieu foram os que tiveram um papel mais ativo no campo da
antropologia.
Os filósofos hermenêuticos53 Jaques Derrida (1930 -2004 ) e Michel
Foucault (1926 – 1984) desempenham o papel de mentores desta posição.
Derrida é sobretudo reconhecido pela sua abordagem deconstrutivista.
Defende que todas as culturas constroem mundos de significados estanques
e que a descrição etnográfica distorce a visão nativa através da imposição
das formas de conceptualização do mundo do observador, assim, o
significado nunca pode ser traduzido.
Foucault trabalhou a ideologia, nomeadamente no seu discurso de
poder. Para o filósofo as relações sociais entre os povos são assinaladas pela
dominação e subjugação. Os povos ou classes dominantes controlam as
condições ideológicas em que a verdade e a realidade são definidas54 .
Transposto para o campo da ciência o modernismo – crente da possibilidade
de alcançar uma verdade objetiva – é considerado uma construção histórica
produto da sociedade.
Bordieu pretende, mais do que compreender os modelos (perspetiva
estruturalista) compreender o desempenho (performance) pois para o autor
a compreensão objetiva não alcança a essência da prática do ator social.
Mais do uma visão estática da noção de estrutura assente nas regras o autor
pretende enfatizar a teoria da prática. A estrutura deixa de ser
52
É o caso de Warms e Mgee (2003) que na sua obra não dão grande destaque ao pós-estruturalismo.
53
Hermenêutica – o estudo da interpretação do significado, perspetiva que não aceita a possibilidade
do observador poder obter um conhecimento neutral e objetivo do mundo. Heidegger (1889-1976) o
conhecimento é condicionado pela cultura, contexto e história.
54
Relembra a afirmação de que a história é feita pelos vencedores.
102
constrangedora, mas sobretudo facultativa, opcional, pelo menos para
aqueles que a sabem aproveitar (o que vai levar ao autor a analisar a teoria
do poder).
Para distinguir a perspetiva pessoal o autor avança com a noção de
habitus, uma espécie de estrutura da ação social incorporada culturalmente
pelos agentes sociais. São formas de pensar, agir e sentir relativamente
estáveis, resultantes do processo de socialização. Uma espécie de segunda
natureza que influência os gostos e escolhas, sem que por vezes tenhamos
a necessidade de pensar sobre estas.
55
Recensão da obra: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-
026X2003000200028/9214
103
Nos anos setenta muitas antropólogas começaram a por em causa as
perspetivas masculinas prevalecentes na disciplina (incluindo aquelas que
as precederam). Na realidade o papel das mulheres era normalmente
relegado para capítulos sobre o casamento, família e parentesco. Desde
então desenvolveram-se os estudos sobre o papel do género e o género e
sexualidade numa dimensão intercultural colocando em causa as assunções
preexistentes. A antropologia feminista passou de uma antropologia da
mulher para uma antropologia da representação da mulher.
Nos anos setenta a antropologia feminista concentrava-se em
documentar a vida e o papel das mulheres em sociedades em todo o mundo
– postura assimétrica – isto é, a subordinação mundial da mulher – e
procuravam explicar esta questão de várias perspetivas teóricas. Ao mesmo
tempo a investigação de antropólogas físicas e arqueólogas começou a por
em causa a visão do homem caçador como a base da evolução e
enfatizaram, entre outras, o facto de a recoleção e a criação dos filhos exigir
uma comunicação complexa, cooperação e construção de ferramentas, a
versão da mulher recolectora obrigou a rever a evolução.
Nos anos oitenta a pesquisa começou a afastar-se da temática da
assimetria entre géneros e passou a abordar outros temas, nomeadamente:
a construção social do género, a explicação das diferenças do estatuto, papel
e poder da mulher com base em abordagens materialistas e a especificidade
da identidade da mulher. A primeira abordagem procurou analisar como a
categoria de género é feita de forma relacional e imposta…. A segunda
abordagem privilegiou a explicação materialista, nomeadamente as relações
de classe, de poder e mudanças de modos de produção para explicar a
opressão das mulheres. Um dos estudos mais conhecidos é o de Leacock,
que defende que em sociedades antes do contacto com o ocidente eram
igualitárias e que a sujeição das mulheres se deve à imposição de formas
de produção capitalistas. A terceira perspetiva procurou afastar-se da ideia
de “mulher” no geral para analisar de que forma a raça, a classe e o género
estruturam as instituições culturais.
As teorias feministas colocaram as noções antropológicas em causa;
levaram a disciplina a enfatizar a multivocalidade, dando uma variedade
104
de pontos de vista à escrita etnográfica e enfatizando a experimentação com
formas não convencionais de escrita antropológica, como a poesia e ficção,
reclamando que todas as formas de saber são subjetivas, promovendo uma
maior ênfase na auto-etnografia – autobiográfica.
As ideias pós-modernistas emergem já em linhas de investigação
antropológica, como as de Evans-Pritchard, Geertz e também investigadores
como Raymond Firth, que enfatiza a ação individual perante a estrutura
social – ideia derivada da abordagem inicial de Malinowski.
No entanto, o pós-modernismo é uma corrente de pensamento que
não se confine ao campo antropológico, ele emerge do estudo da literatura
e arte, e vem colocar em causa o princípio da objetividade e da ciência em
antropologia: de forma sucinta os pós-modernistas afirmam que a
antropologia não é uma ciência social. Todavia, apesar desta postura, é
importante ter presente que o pós-modernismo não veio desmembrar as
outras correntes de pensamento no seio da antropologia, pelo contrário (ver
Harris, 1999).
Em antropologia as perspetivas hermenêuticas e desconstrutivista
(herança de Derrida e Foucault) levaram alguns antropólogos a questionar
a sua prática, nomeadamente sobre a forma como o trabalho de campo é
efetuado (questões de legitimidade e validade das vozes em presença), as
técnicas literárias para escrever as monografias e a validade das
interpretações de um autor sobre outras análises. O pós-modernismo é uma
crítica ao modernismo, a rejeição da possibilidade de grandes teorias e da
ideia da completude da descrição etnográfica, enfatizando a reflexibilidade.
De certa forma esta abordagem é o resultado do relativismo e do
interpretativismo (o relativismo pode ser traçado a Boas, o interpretativismo
aos autores do simbolismo antropológico e a Geertz, considerado por muitos
como um dos primeiros pós-modernistas). Como refere Barnard (2004, 169)
para os pós-modernistas não há a verdade, uma declaração (statement)
que possa ser feito acerca da cultura.
105
uma conferência realizada em 1984. As ideias deste trabalho incluem: a
antropologia desloca-se do campo (ou devia-se deslocar) da etnografia
científica para o estudo dos próprios textos etnográficos (a sua
desconstrução – no caso dos antigos – e a sua elaboração), a
contextualização e reflexibilidade face à metanarrativa decadente (a ideia
da grande teoria), a tensão relativa ao papel do antropólogo face às suas
lealdades. A evolução recente, pelo menos de Marcus é o envio da
antropologia para os estudos culturais.
O trabalho de campo é considerado pelos pós-modernistas como um
momento fulcral. O antropólogo não é um observador neutro, pelo que a
situação do tempo e lugar da investigação tem de ser claramente
identificada. A escrita antropológica é também objeto de crítica, pois se a
forma de recolha dos dados é subjetiva estes não podem ser analisados de
forma objetiva. A própria validade da interpretação é questionada pelo facto
de, no terreno, o antropólogo trabalhar com um conjunto limitado de
informantes, colocando-se assim a questão de saber até que ponto as suas
ideias são representativas de toda a sociedade.
Outra crítica relaciona-se com a forma como o antropólogo redige o
seu texto, qual narrador omnisciente, considerado uma forma de
objetividade científica projetada no texto, mas que cria, no entanto, uma
dificuldade de perceção relativamente aquilo que o antropólogo observou56.
Desde os anos sessenta que alguns antropólogos tinham escrito textos sobre
a sua experiência na primeira pessoa57. Entre as obras mais conhecidas está
a de Paul Rabinow Reflections on Fieldwork in Marocco, de 197758. Outra
crítica que surge na linha da perspetiva desconstrutivista é a que alude ao
facto de o próprio texto etnográfico ser o resultado de múltiplas
56
Adaptando um pouco o exemplo de Warms e Gees, diríamos que uma coisa é alguém se deslocar a
uma loja de comida rápida e dizer eu vi o meu informante comer uma piza e outra é dizer que as pessoas
de Lisboa comem piza.
57
Nos anos oitenta foi grande a surpresa sobre a forma como Malinowski se desvenda no seu diário no
sentido estrito do termo, relativamente à forma como descreve os nativos na sua obra.
58
Paradoxalmente, ainda que mundialmente conhecido por esta obra, muitos autores não referem o
facto de que esta resulta de um processo posterior à elaboração da tese monográfica clássica que o
autor defendeu dois anos antes: Symbolic Domination: Cultural Form and Historical Change in Marocco
(University of Chicago Press, Chicago, 1975)
106
interpretações, às quais não está ausente a capacidade estilística59 Nesta
abordagem à que desconstruir o texto pois como defende Crapanzano (cit
Warms e Gee, 2000) os dados são mudos e os antropólogos constroem
significados à medida que redigem os seus textos, pelo que há que analisar
os enviusamentos que os elaboram.
Uma das críticas mais fortes aos pós-modernistas prende-se com a
interpretação que é feita pelos antropólogos. Pois se o texto é o resultado
da interpretação e se esta for autoritária então a sua visão é única e tende
a ocultar interpretações diferentes. Para os pós-modernistas a interpretação
que vigora é o resultado das condições de poder e riqueza que imperam e
que é necessário proceder à desconstrução deste discurso para que outras
vozes, as das mulheres, minorias e dos pobres possam ser ouvidas.
Nesta altura o que permanece da abordagem antropológica? Tudo,
como referem Warms e Gee “o pós-modernismo não é a culminação lógica
de toda a antropologia”, e na realidade, a maioria da antropologia que se
fazia e se faz atualmente não é “pós-modernista” no sentido de ser
meramente desconstrutivista de tudo o que foi feito (chegaria um ponto em
que os antropólogos já não teriam mais nada a fazer, ou então, qual cadeia
entrópica, passariam o resto do tempo a desconstruírem os seus/outros
discursos…).
Na sua faceta mais extrema o pós-modernismo levaria a antropologia
a ser um campo menor da literatura pois se tudo é interpretação e ficção
não se poderiam chegar a conclusões. Há, no entanto, outra forma de ver
esta perspetiva, naquilo que tem de positivo e autorreflexivo, algo que se
pode vislumbrar desde Boas, na perspetiva interpretativista. Ela não
substituiu as abordagens positivistas em antropologia. Mas, contribuiu para
que os antropólogos estejam mais conscientes de aspetos como os estilos
retóricos, questões de autoridade e de vozes.
Uma das maiores controvérsias dos pós-modernistas com outros
autores prende-se com o facto de no extremo o proselitismo
desconstrutivista levar ao niilismo e assim, se todas as vozes devem ser
59
Já Malinowski pretendia ser o Joseph Conrad da antropologia (Malinowski s.d.) . Joseph Conrad,
também de origem polaca, escreveu em 1902 o romance Heart of Darkness (O Coração das Trevas).
107
ouvidas, como articular as vozes daqueles que são oprimidos com aqueles
que oprimem, como defender os direitos humanos e ao mesmo tempo
desconstruir a noção de humanidade? Não será o pós-modernismo o reflexo
do modernismo, no melhor e no pior? Não criará as condições para legitimar
o discurso daqueles que mais oprimem?60
60
Como compreender que Heidegger fosse um apologista dos Nazis durante a II Grande Guerra.
108
2.2 Antropologia aplicada: entre a academia e a
prática 61
61
Texto que tem por base Sousa (2008) revisto em Sousa (2014).
109
refere Campêlo (s.d.), o “parente pobre da antropologia geral”? Embora a
relação entre a prática “académica” e a prática aplicada do conhecimento
antropológico não seja recente tem uma crescente aplicabilidade e
visibilidade social que analisaremos de seguida.
Quadro 2
62
Estes quatro campos da antropologia espelham, sobretudo, a herança da antropologia nos Estados
Unidos da América, em que se inclui, usualmente, a arqueologia no departamento antropológico (na
Europa a arqueologia está sobretudo associada à História).
110
parentesco nos bairros das cidades, cuja organização social era anteriormente
considerada como "fragmentada" ou "patológica". Algumas sugestões para
melhorias no sistema educacional vêm de estudos etnográficos em classes da
escola e comunidades (…). Antropólogos linguísticos mostram a influência das
diferenças de dialeto na aprendizagem em sala de aula. (Kottak, 2007: 16-
17).
111
a partir dos anos setenta do século XX para designar os antropólogos que
trabalham fora da esfera universitária. Estes, mais do que empenhados em
reflexões de carácter teórico, estão envolvidos na ação, administração e
implementação de programas ou projetos, não só como funcionários
públicos, mas como consultores ou assessores, quer em entidades públicas
ou privadas, como empresas ou organizações não-governamentais.
Quadro 3
112
relativas a problemas sociais concretos e não para questões teóricas
(postura que tende a esbater-se com a criação de pontes entre ambas, em
congressos, associações e revistas como a Human Organization).
113
para a regência da disciplina em Oxford. A antropologia era considerada na
época como uma disciplina fundamental na educação dos funcionários
coloniais sobre os costumes nativos. Esta associação com o colonialismo vai
ser objeto de crítica posterior.
Enquanto no Reino Unido a preocupação era sobretudo com as
colónias, nos Estados Unidos da América, o interesse dominante provinha
da aplicabilidade do saber antropológico no conhecimento e resolução de
problemas decorrentes da incorporação das comunidades nativas
americanas, usualmente designadas “índios”, na agenda política da época.
Desde cedo esta foi uma área de conflito entre os antropólogos e os
políticos, cujos objetivos imediatos se contrapunham à necessidade de
tempo e às visões dos antropólogos 63
.
Todavia, é nos Estados Unidos da América que desponta a figura de
Franz Boas, o pai da antropologia norte americana, que desenvolve uma
antropologia aplicada, procurando salvaguardar a riqueza das populações
nativas americanas. Foi igualmente um dos primeiros a desenvolver a
advocacia antropológica defendendo argumentos que negavam as teorias
migratórias restritivas vigentes na época e que impediam a proveniência de
populações de outros pontos da Europa que não as do Norte da Europa.
63
Para saber mais: Bieder, Robert. 1989. Science Encounters the Indian, 1820-1880: The Early Years of
American Ethnology. University of Oklahoma Press. Acessível parcialmente:
http://books.google.pt/books?id=ChvKnFayeB8C&pg=PA149&lpg=PA149&dq=Indian+policy+Henry+Sc
hoolcraft&source=bl&ots=UcXZgg8-jw&sig=GQOaz0aYmRszINX2n31OvuGZ238&hl=pt-
PT&sa=X&ei=JpWXUMK2D86Thgfb3IGYDg&redir_esc=y#v=onepage&q=Indian%20policy%20Henry%20
Schoolcraft&f=false
114
populações do império e, no caso americano, para com as suas populações
nativas.
Em 1929 Malinowski64 escreve o artigo Practical Anthropology, no
qual defende a utilidade prática da antropologia na administração colonial,
proporcionando dados sobre as populações nativas e ajudando assim as
administrações na sua governação e no processo de mudança a que
estavam a ser sujeitas. No entanto, advoga que as mudanças, políticas ou
económicas, devem ser feitas de acordo com os princípios locais, contanto
que estes não choquem com as leis britânicas. De igual forma defende que
nos locais onde se encontrem poucos funcionários ingleses a administração
local deve ser conferida às populações autóctones. Defende que os
antropólogos devem estar envolvidos no trabalho com a administração e
procura que os seus estudantes obtenham colocações nestas áreas (tal
como Radcliffe-Brown irá procurar obter para os seus alunos).
Nos Estados Unidos da América os antropólogos estiveram envolvidos
no Bureau of Indian Affairs durante a política do New Deal que se segue à
Grande Depressão de 1929. Muito deste trabalho foi relacionado com a
problemática da posse das terras. Por seu turno, no Bureau of American
Anthropology foi criada uma unidade específica, a: Applied Anthropology
Unit. Todavia, esta participação foi marcada por conflitos entre as
necessidades dos políticos e as posturas dos antropólogos, nem sempre
concordantes. Segundo Julian Steward (1969) referido por Ervin (2000) as
visões políticas eram paternalistas e românticas e estas ideias enformavam
muitas das medidas políticas entrando em contradição com a realidade e
diversidade local dos grupos afetados.
A participação da antropologia durante este período foi objeto de
crítica posterior sobre o seu papel quer nas políticas de governação colonial
indireta dos ingleses quer nas políticas assimilacionistas americanas. A
partir dos anos 30 também se procurou aplicar a antropologia aos negócios
e indústria em estudos sobre a motivação e produtividade dos trabalhadores
de que são exemplo os estudos de Lloyd Warner na Harvard Scholl of Human
Relations.
64
http://pt.scribd.com/doc/87349764/PracticalAnthropology-Malinoswki
115
A antropologia aplicada durante a Segunda Grande Guerra e no pós-
guerra
65 Para saber mais: Tambiah, Stanley. 2001. Edmund Leach: An Anthropological Life. Cambridge University Press.
Disponível parcialmente:
http://books.google.pt/books?id=WBfBkGvRmowC&pg=PA43&lpg=PA43&dq=edmund+leach+army+officer&sourc
e=bl&ots=Bzz-2ROkcJ&sig=ZExEhV5i19q_Fjc9BrT6csMaLiQ&hl=pt-
PT&sa=X&ei=B5qXUI25IMS4hAf7s4GQAw&redir_esc=y#v=onepage&q=edmund%20leach%20army%20officer&f=f
alse
116
A Antropologia Aplicada Académica e a consultoria para o
desenvolvimento: 1950-1970
66
https://courses.cit.cornell.edu/vicosperu/vicos-site/cornellperu_page_1.htm
117
A emergência de uma “Nova Antropologia Aplicada”: dos anos 70
até à atualidade
118
interligando praticantes, permitindo partilhar experiências, exemplo das
Society for Applied Anthropology e a sua revista Human Organization ou
Practicing Anthropology na Universidade da Florida. Na década de 80 a
American Anthropological Association criou a unidade National Association
for the Practice of Anthropology.
119
tomar para com clientes sobretudo em quadros sociais de diversidade
cultural. (exemplo, uma enfermeira especializada em antropologia).
120
•Formador – dá formação profissional em contextos interculturais
sobre a cultura de uma comunidade ou sobre técnicas de
investigação;
121
O potencial político da antropológica aplicada e o grande desafio
ético
1. o consentimento informado
4. s disseminação do conhecimento
122
O consentimento informado consiste no princípio de que se assume
que a comunidade estudada/analisada deve estar consciente do trabalho em
curso, os seus objetivos, quem o solicitou e porquê bem como os riscos e
benefícios que dele poderão advir. Como afirma Ervin (2000, 30) “O trabalho
antropológico não pode ser clandestino”. Este princípio é dos mais
controversos tanto na antropologia académica como na aplicada. O princípio
descarta imediatamente determinadas práticas de investigação recorrentes
na antropologia académica e na sociologia como a pesquisa encoberta do
investigador. É um aspeto crucial pois a resposta da comunidade pode ser
determinante na prossecução do trabalho.
Por modelo “clínico” de informação consentida considera-se que em
algumas situações é exigido que determinados estudos se realizem tendo
por base um contrato legal que vincule antropólogo e cliente face à
comunidade em estudo, ou o individuo que providencia a informação. São
estudos que se baseiam em indivíduos e que por isso seguem de perto os
princípios de técnicas de investigação experimental ou clínica. O
compromisso assenta em dois tipos de contrato: um explica os objetivos,
métodos e plano, o que é esperado dos participantes bem como os riscos e
benefícios que estes poderão correr; o segundo documento, muitas vezes
elaborado como uma ficha, será preenchido pelo participante que reconhece
ter conhecimento dos objetivos, riscos e benefícios da sua participação.
A noção de confidencialidade e direitos pessoais à privacidade é
fundamental. O antropólogo deve assegurar que os nomes verdadeiros dos
participantes ou informantes não sejam usados nos relatórios ou publicações
por esse facto permitir a identificação da comunidade ou grupo estudado.
Esta prática não isenta que a comunidade/organização não seja reconhecida
por terceiros, sobretudo se o caso obtiver muita exposição pública. Todavia,
é essencial que, a ocorrer essa divulgação pública, a comunidade possa
validar esse facto.
A disseminação de conhecimentos é um processo essencial. Ao
contrário do estudo académico o trabalho aplicado realizado pelo
antropólogo destina-se a ser devolvido não aos seus pares mas às pessoas
que serão as beneficiárias do seu estudo. Não deve haver secretismo sobre
123
os resultados da pesquisa e a comunidade deve ter acesso aos resultados
do estudo. O próprio antropólogo poderá participar em
apresentações/discussões públicas sobre o seu trabalho.
Por sua vez, Willigen (1986, 44) enuncia a privacidade, o
consentimento, a utilidade e a comunicação como princípios éticos
fundamentais. Embora haja uma continuidade entre os princípios de ambos
os autores a noção de utilidade empregue por este tem uma relevância
semântica particular pois coloca a ênfase na questão: quem lucra com o
trabalho? Este enunciado alerta para o facto de ser necessário tornar claro
quem é que beneficia com o estudo. Como o autor alerta a informação pode
ser usada para controlar pessoas, isto é: conhecimento é poder. Assim, é
necessário identificar claramente quem é o cliente e quais são os seus
representantes (a existência de subgrupos dentro da comunidade pode levar
a uma utilização abusiva de informação) e o que estes pretendem fazer
como estudo
Um exemplo atual que ilustra bem este dilema envolve a polémica
associada com a utilização de antropólogos pelo exército americano em
vários cenários de guerra, como o Afeganistão67. Todavia, esta não é uma
prática recente, basta para tal relembrar o trabalho já mencionado de Ruth
Benedict “O Crisântemo e a Espada”, publicado originariamente em 1946,
com a diferença que agora os antropólogos fazem parte direta das unidades
de combate.
A formação de associações profissionais de antropólogos
vocacionadas para a antropologia aplicada manifesta o crescimento desta
área de trabalho. Uma das preocupações de muitas destas organizações foi
o estabelecimento de códigos éticos. Apresentam-se de seguida (Quadro 4)
dois exemplos de códigos de duas das maiores entidades na área: a Nacional
Association for the Practice of Anthropology (NAPA)68 e a Society for Applied
Anthropology (SFAA)69, ambas sedeadas nos Estados Unidos da América:
67
Ver: Globo.com: EUA recorrem a antropólogos para resolver conflitos no Afeganistão 05/10/07
http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL145075-5602,00-
EUA+RECORREM+A+ANTROPOLOGOS+PARA+RESOLVER+CONFLITOS+NO+AFEGANISTAO.html
68
http://practicinganthropology.org/
69
http://www.sfaa.net/
124
Quadro 4
NAPA SFAA
Respeitar os direitos humanos e o Para com as pessoas que
bem-estar dos grupos afetados por estudamos temos a obrigação de
decisões, programas ou pesquisas revelar os objetivos, métodos e
nas quais os antropólogos tomam patrocínio da pesquisa.
parte.
A obrigação de informar atempada Para com as comunidades
e perfeitamente os sujeitos de afetadas pelas nossas atividades
investigação dos objetivos, devemos respeito pela sua
métodos e patrocínios das dignidade, integridade e valor.
atividades.
125
direitos humanos e bem-estar formulada pela NAPA. Obrigações,
compromissos e responsabilidade parecem ser os princípios essenciais em
relação aos grupos sociais com quem se trabalha, os empregadores, colegas
e a sociedade em geral. É evidente que se trata de um guião genérico de
princípios. Cada caso concreto tem idiossincrasias próprias que requerem
uma abordagem específica e a ênfase num ou noutro dos domínios
enunciados. Por último, a postura do antropólogo pode afirmar-se pela
simples recusa de desenvolver um trabalho. Para além de questões legais,
estas atitudes resultam igualmente de resoluções morais.
126
(1) denunciar frente à opinião pública cada atentado contra os
grupos indígenas;
(2) buscar formas de devolver aos índios e outras populações que
estudamos aquela parte do conhecimento que deles
alcançamos, que lhe possa ser útil em seus esforços para sair
da situação dramática em que se encontram;
(3) incluir na temática dos nossos estudos, com marca de
prioridade, os problemas de sobrevivência, de libertação e de
florescimento dos grupos indígenas;
(4) montar uma campanha agressiva contra todas as tentativas de
remoção ou relocação compulsória de povos indígenas de seus
territórios e terras originais;
(5) documentar publicamente o papel dos poderosos interesses
econômicos, muitas vezes internacionais ou multinacionais, que
são envolvidos directamente na expropriação maligna e ilegal
da terra;
(6) denunciar as várias ideologias disfarçadas de aculturação
forçada, denominadas eufemisticamente “programas de
integração nacional” “(Ribeiro e Davis in Moonen, 1988, 58)
127
É o caso de nos perguntarmos o que teme o Estado, já que ele controla
muito mais o nosso trabalho de antropólogos de que a ação dos
garimpeiros, fazendeiros e salesianos. Teme – e sempre temeu – que o
nosso envolvimento com as “razões subjetivas” dos índios possa
acarretar ações que levem a contestações do seu poder. E foi isto o que,
acreditamos, ocorreu e tem ocorrido de 1975 para cá: o “envolvimento”
dos antropólogos com a luta dos índios.
Hoje, o maior envolvimento de muitos antropólogos com as “razões
subjetivas”, dos índios levou, pensamos, a uma mudança na qualidade
da observação etnológica – que, ao invés de ter a “assimilação ou
extinção” como seu horizonte, descobre que as sociedades indígenas
guardam a capacidade de reagiram à situação de expropriação e
dominação conforme seus próprios parâmetros (é a chamada
“resistência”). E descobre porque esta observação se fez crítica em
relação ao futuro destas sociedades e tornou-se atenta aos seus
motivos.
128
(…) qualquer plano racional de organização e aproveitamento das
colónias. Assim os assuntos de que vai ocupar-se o congresso
revestem, além do seu grande interesse científico, uma alta
importância nacional. (Moonen, 1988, 23)
129
autónomo. Há, no entanto, um conjunto de áreas onde é possível observar
a emergência de prática antropológica. Prática que ainda se encontra para
muitos associada com uma imagem negativa da antropologia nas colónias e
por outro lado é ofuscada pela presença e apelo de outras ciências sociais
mais conhecidas como a sociologia.
130
3.Campos e objetos da antropologia social e cultural
Pressupostos do tema
Objetivos gerais
131
3.1 Antropologia e parentesco
Pressupostos do tema
Objetivos gerais
132
3.1.1 O parentesco no ciclo da vida
70
Pode consultar um exemplar da obra aqui: https://archive.org/details/systemsofconsang00morgrich
133
Somente com a proposta de Rivers, e o seu método genealógico, se
observa alguma sedimentação dos símbolos convencionados. Na sequência
da sua participação na expedição às Torres Straits, o autor desenvolve um
método de recolha genealógico que vai constar da edição de 1912 da Notes
and Queries on Anthropology71:
indivíduo falecido
+ primogénita/irmã/filha mais
+ primogénito/irmão/filho mais
velha
velho
71
As Notes and Queries on Anthropology, editado pelo Royal Anthropological Institute of Great Britain
and Ireland; British Association for the Advancement of Science, foram publicados pela primeira vez em
1874. Serviam fundamentalmente administradores, missionários ou viajantes procederem à recolha de
informações etnográficas de uma forma sistemática. A obra sofreu uma evolução e a edição de 1912 já
era essencialmente vocacionada para antropólogos. Pode consultar o exemplar da 6ª edição aqui:
https://ia700303.us.archive.org/2/items/NotesAndQueriesOnAnthropology.SixthEdition/NotesAndQu
eriesOnAnthropology.pdf
72
Usado sobretudo em explicações hipotéticas ou exercícios em que é indiferente o género do
termo/alter.
134
+ benjamim /irmão/filho - benjamim /irmã/filha mais
mais novo nova
ou casamento
casamento polígamo
divórcio
filiação
marido e mulher
com filho (procriação/descendência)
irmão e irmã
A aparente complexidade destes esquemas tem alguma utilidade para além dos antropólogos
que trabalham questões de parentesco? Um dos usos mais recorrentes destes esquemas, para
além do interesse crescente que do seu uso nas “árvores” genealógicas, é na medicina.
Designados por genogramas estes esquemas permitem analisar a história médica de uma
família através das suas gerações. Veja um exemplo aqui:
http://www.actamedicaportuguesa.com/revista/index.php/amp/article/viewFile/3676/2943
135
nacionalidades. Todavia, há tradições nacionais, como a francesa, que usam
a sua. Em Portugal ocorre o mesmo. Santos (2002, 132-133; 2006, 37)
procurou sistematizar uma proposta em língua portuguesa.
Consanguíneos:
Pai P
Mãe M
Filho Fo
Filha Fa
Irmão Io
Irmã Iã
Tio IoP/IoM (irmão do pai/da mãe)
Tia IãP/M (irmã do pai/mãe)
Sobrinho FoIo/FoIã (filho do irmão/da irmã)
Sobrinha FaIo/FaIã (filha do irmão/da irmã)
Primo FoIoP/FoIoM/FoIãP/FoIãM (Filho do irmão do pai/
/do irmão da mãe/da irmã do pai/da irmã da mãe
Prima . FaIoP/FaIoM/FaIãP/FaIãM (filha do irmão do pai/do
irmão a mãe/ etc.
Primogénito Pgt
Benjamim Bjm
Afins:
Marido Mdo
Esposa/Mulher Esp/ Mer
Cunhado IoMdo/IoMer/MdoIã/MdoIãMdo/MdoIãEsp (irmão do
marido/irmão da mulher/marido da irmã/marido da
irmã do marido/marido da irmã da esposa.
Cunhada IãMdo/IãEsp/EspIoMdo/EspIoEsp (irmã do
marido/irmã da esposa/esposa do irmão do
marido/esposa do irmão da esposa.
136
Os primos paralelos definem-se pelo facto de serem indivíduos
descendentes de irmãos do mesmo sexo. Por seu turno, os primos
cruzados são descendentes de irmãos de sexo diferente. Os primos do
lado paterno designam-se ainda “patrilaterais” enquanto do lado
materno se designam matrilaterais (diagrama 1).
patrilaterais matrilaterais
137
os Bunak, de Timor-Leste, o irmão mais velho é denominado “ka`” e o mais
novo “kau”.
73
Na tradição dos estudos do Sudoeste Asiático, nomeadamente da Indonésia e Timor Leste, a gestão e
manutenção destes momentos críticos da vida social tem a feliz designação de “fluxo de vida”, título da
obra “The Flow of Life- Essays on Eastern Indonesia”, editada por James Fox, em 1980.
138
outra, mais vocacionada para o quadro temporal e correspondentes
expetativas sociais: nascimento e infância, puberdade e adolescência,
maturidade e casamento e velhice e morte (Titiev, 1985, 313). Estes são
momentos de crise com respostas variadas por parte de diferentes culturas.
Nascimento e infância
139
A paragem do fluxo menstrual é determinante para o reconhecimento
da gravidez, entre outros sinais fisiológicos (aumento dos seios, crescimento
abdominal, enjoo, etc.). Este fato vai estabelecer para a mulher e o seu
parceiro um conjunto de obrigações ou restrições, muitas vezes impostos
por uma série de tabus pré-natais que procuram salvaguardar o processo
de gestação (exemplo de proibições alimentares ou de contacto sexual).
No entanto, entre os Baruya, estudados por Godelier (2003), a
continuidade de contacto sexual do homem com a mulher é determinante
para assegurar a força e saúde do ser em gestação pois considera-se que o
sémen do homem é fundamental na formação do corpo do ser em
gestação74.
A conceção pode ainda ser tomada como uma reprodução das relações
e categorias culturais da sociedade em causa relativamente à ideologia da
procriação. Em algumas, como no caso dos Bunak75, a mulher é associada
à terra mãe e o ato sexual é o encontro do frio (feminino) com o quente
(masculino) à imagem da terra (feminina) que recebe as sementes e a
fertilização das chuvas (masculinas) Friedberg (1980)
74
Estas conceções devem ser vistas de uma forma mais holística pois esta ideologia ajuda a cimentar a
luta que os homens Baruya têm para manter a hegemonia sobre as mulheres. Para compreender melhor
esta questão consulte Godelier (2003).
75
Os Bunak são um povo de língua não Austronésia que habita a parte central da ilha de Timor.
Encontram-se divididos entre o Estado de Timor-leste e Timor Ocidental, Indonésia (para saber mais
consultar Sousa, 2010).
140
havendo, no entanto, uma cada vez maior procura do parto em casa, facto
que encontra oposição entre elementos da classe médica76.
O recolhimento
76
“Público - 24 Dez 03, Partos em Casa Estão a Aumentar em Portugal Por Catarina Gomes “(…) Depois
de durante dois anos ter estabilizado na casa dos 500, no ano passado os partos domiciliários subiram
para 751. Uma proposta do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses lançou recentemente o debate: a
forma de fazer face à falta de médicos nas maternidades e de combater "a medicalização" de um ato
que é natural passa por incentivar esta prática. (…) Levar adiante a proposta seria "um desastre" e "um
retrocesso de 50 anos", defende por sua vez o presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e
Ginecologia. (…)”
141
designa-se couvade, ou falsa- gravidez, e é praticada em algumas culturas
da Ásia, América do Sul e mesmo na Europa até recentemente junto dos
Bascos (Akoun, 1983). Esta prática consiste em o pai se deitar junto do
recém-nascido para o “chocar” (couver), recebendo as felicitações e votos
habitualmente destinados à mãe.
Por este gesto simbólico, o pai participa socialmente no nascimento do
filho. Semelhante rito parece ser atribuído sobretudo a certas sociedades
matrilineares (…) O recurso a este costume permitiria assim que o marido
recuperasse os seus direitos de paternidade sobre o filho da sua mulher.
(Akoun, 1983, 132). Este é um período de intensa atividade social com a
visita de familiares e aliados que vêm conhecer o novo membro da família
pois este membro vem repor nas relações de aliança, numa perspetiva
estruturalista, mais um elemento de troca social. Entre os Bunak durante
esta fase inicia-se a procura o nome da criança (o nome “gentio”), que é
revelado em sonhos entre os parentes uterinos da mãe.
Por norma o parto é um momento fundamental para muitas
sociedades, que consideram o nascimento como essencial para dar
continuidade aos grupos sociais envolvidos, mas também, a um título
pessoal, reconhecer o papel social da mãe e pai. As relações de parentesco
estão fortemente associadas a uma componente biológica. Todavia,
parentesco pode ser classificado em “real” e “fictício”. O parentesco “real”
é usualmente derivado e uma relação biológica, mas este não é um facto
universal.
Um exemplo clássico é o de Malinowski em “A vida Sexual dos
Selvagens”. Este autor refere que os trobrianders não acreditavam que o
pai tivesse algo a ver com a conceção da criança. Para estes, a geração de
uma criança estava associada a um espírito do clã da mulher.
O parentesco fictício associa-se a relações no qual as pessoas se
tratam por termos de parentesco, mas, de facto, não estão relacionadas.
Neste contexto, a terminologia de parentesco assume-se com um elo de
ligação e marcador de obrigações sancionadas socio religiosamente pelo
grupos. O exemplo deste tipo de parentesco é o atributo de denominação
de “irmãs” e “pai” entre movimentos religiosos ou outros.
142
Por descendência é usualmente reconhecido o conjunto de pessoas
que têm origem em determinado individuo, Ego (e para quem este é o seu
ascendente). Todavia, o termo filiação77, compreende uma dimensão mais
social pois constitui a regra através da qual um determinado individuo
adquire78 parentesco na sociedade em causa. Nesta aceção a filiação implica
direitos e deveres por parte do novo membro. Uma definição de trabalho
pode ser avançada: “Conjunto de direitos e obrigações que resultam da
inclusão num determinado grupo pela transmissão de posições filiativas de
uma geração a outra”. (Barry et al, 2000.725).
Como refere Ghasarian (1999) “A filiação é o princípio que governa a
transmissão do parentesco”, através do qual é atribuído o estatuto de
pertença a um determinado grupo de filiação. Este princípio está relacionado
com uma determinada ideologia de descendência que a sociedade em causa
veicula como preceito, a que Gasahrian (1999, 50) denomina “ ideologia da
procriação”79.
De facto, é importante não associar filiação exclusivamente a relações
de consanguinidade. Como refere Santos: “(…) a filiação define relações de
consanguinidade reais ou fictícias que separam de outros grupos de
consanguíneos diferentes e os torna possíveis aliados, segundo a seleção
imposta pelo tabu do incesto.” (2002, 153).
O exemplo mais concreto desta situação é a que advém da relação de
adoção. O “pai” e a “mãe” são reconhecidos socialmente como detentores
de um papel e estatuto perante o “filho” ou “filha”, embora não estejam a
ele/a ligados por laços de consanguinidade. Esta diferenciação é relevante
pois, como refere Santos (2002) procede à distinção essencial entre genitor
77
Não analisaremos aqui a controvérsia de tradução existente entre a tradição inglesa, que usa o termo
descendência no sentido em que, usualmente, se emprega, na tradição francesa o conceito de filiação.
78
A filiação é, por norma, atribuída (sobretudo nos sistemas unilineares). Todavia, pode ocorrer
situações em que a filiação é objeto de aquisição por escolha ou opção (sobretudo nos sistemas de
filiação indiferenciados).
79
Esta tensão não pode ser dissociada da ideologia dominante sobre o papel do homem e da mulher na
sociedade em causa, assim como das relações de poder e de autoridade que lhes estão atribuídas. Este
aspeto é sobretudo comentado no caso do sistema matrilinear, que não se pode confundir de forma
direta com “matriarcado”. De facto, mesmo nas sociedades matrilineares o papel e o poder dos homens
(enquanto irmãos das mulheres e tios dos filhos destas) são determinantes.
143
e pai/mãe social, realidades que nem sempre coincidem80. No entanto, esta
distinção não implica o desconhecimento do papel biológico das partes
envolvidas. O exemplo dado por Santos (2002) é o dos Nayar, do sul da
Índia, que distinguem três papéis sociais: o papel de pai social, de genitor
e detentor da autoridade.
Qual é a relevância da filiação? A filiação é essencial porque ela
determina, em cada sociedade, o conjunto de parentes com quem se pode
ou não casar (seguindo as regras de incesto) e, por outro lado, define as
condições particulares em que se limitam os direitos e obrigações
decorrentes da herança e sucessão. Estes aspetos são essenciais na
atribuição do papel e estatuto social de cada individuo na sociedade em
causa.
George Murdock (1967 [1949], 59) no seu estudo clássico
comparativo de 250 sociedades indica os seguintes dados para a distribuição
das regras de filiação: A filiação unilinear por via patrilinear é a mas comum,
seguida da filiação bilateral (indiferenciada). A matrilinear registava-se em
52 sociedades e finalmente, com menor representatividade a dual.
Regra de
Número %
filiação
Patrilineal 105 42%
Matrilineal 52 21%
Dual 18 7,2%
Bilateral 75 30%
Total 250 100
Teoria da filiação:
A esta teoria opôs-se a teoria da aliança, proposta estruturalista de Lévi-Strauss (1949), que privilegia a
análise das redes de afinidade que se estabelecem entre os grupos, enfatizando este propósito como
primordial nas relações de parentesco.
80
Relembramos que podem ocorrer duas situações possíveis aquando da reprodução biológica e a sua
articulação com o reconhecimento social do mesmo. Assim, há o genitor (reconhecido como pai
biológico) e a genetrix (reconhecida como mãe biológica) que podem ou não coincidir com o pater (pai
reconhecido socialmente, incluindo o caso da adoção) e a mater (mãe reconhecida socialmente,
nomeadamente em situação de adoção).
144
Existem três grandes tipos de organização do parentesco com base na
filiação:
1. As sociedades de sistema de filiação unilinear (patrilinear ou
matrilinear);
2. As sociedades de sistema de filiação bilinear (também denominada
como dupla ou dual);
3. As sociedades de sistema de filiação indiferenciada (bilateral ou
cognática).
Filiação
patrilinear matrilinear
Filiação unilinear
81
De agnatos, “(…) indivíduos que descendem de um mesmo antepassado exclusivamente pelo lado
dos homens.” (Panoff e Perrin, s.d., 14).
145
Entre os filhos o de sexo masculino será aquele que irá dar continuidade à
linha paterna. As filhas não transmitem este laço pois os seus filhos irão
pertencer à linha paterna dos seus futuros maridos.
3 4 5 6
1 2
9
7 8 10 11 12
13 14 15 16 17 18 19 20 21
22 23 24 25 26 27 28
29 30 31 32 33 34 35 36
37 38 39 40 41 42 43 44
146
Como refere Santos (2002, 157) os muçulmanos são
caracteristicamente patrilineares pelo que os filhos de um casal têm o
estatuto de pertença ao grupo de parentes do pai. Sendo a que mais
representatividade tem entre os princípios de descendência podemos
encontrar vários exemplos etnográficos para além dos citados.
Historicamente os princípios patrilineares eram os usados entre as “tribos”
bíblicas de Israel e entre os Gregos e Romanos.
Os Kemak, ou Ema, de Timor-Leste, são outro exemplo de filiação
patrilinear, este último com base na patrilinhagem da Casa82 (Clamagirand,
1980). Tal como no caso muçulmano emergem atualmente tensões relativas
à pertença dos filhos em caso de divórcio83. Tradicionalmente estes são da
Casa do marido, norma que é estabelecida pelo contrato de casamento
tradicional, assinalado por um conjunto de prestações e contraprestações
pecuniárias e de bens materiais e animais entre as famílias. O exemplo
Kemak é igualmente relevante para analisar o papel da mulher neste
sistema. De facto, a irmã de Ego no diagrama tem um estatuto de relevo
sobretudo se permanecer solteira. O que ocorre em muitas das situações,
como os exemplos em causa, é que através do casamento esta passa a
pertencer ao grupo do marido. Nestas condições, por norma associadas a
padrões de residência patrilocais, o poder da mulher no seu grupo de origem
enfraquece.
82
As sociedades de Casas foram mencionadas por Claude Lévi-Strauss, como referido por Santos (2002).
Analisaremos melhor estas de seguida.
83
Este é um aspeto que entra em confronto com a implementação de normas de Direito. A relação entre
este e o denominado direito costumeiro é um polo de tensão e negociação na construção do Estado.
147
Diagrama 3: filiação matrilinear
3 4 5 6
1 2
9
7 8 10 11 12
13 14 15 16 17 18 19 20 21
22 23 24 25 26 27 28
29 30 31 32 33 34 35 36
37 38 39 40 41 42 43 44
148
imóveis, como a terra são passados pela via
feminina, que recebe também cargos rituais que Matrilinearidade e
matriarcado.
competem somente à mulher. Por seu lado, os
filhos irão receber os cargos e funções dos seus Não confundir
matrilinearidade /
tios, os irmãos da mãe. matrilinhagem com
matriarcado. A noção de
O caso dos Bunak é interessante pelo facto matriarcado refere-se a um
de demonstrar a possibilidade de coexistência sistema jurídico- político
assente no exercício do
dos dois sistemas de filiação numa mesma poder na sociedade por
parte das mulheres.
sociedade, ainda que em tempos diferidos, e de
como a persistência dessa memória é essencial Este termo é também, por
vezes, confundido com
para a continuidade do grupo. A sociedade matrifocalidade, conceito
Bunak está organizada em “Casas”, entidade centrado no papel da
mulher na casa.
simultaneamente física (existente como tal na
povoação em causa) e sociológica, já que
pressupõe que todos os seus membros descendem de um casal originário
que fundou a Casa.
O casamento comummente realizado é denominado ton terel que
significa “em comum”. Neste casamento o princípio de filiação consagrado
é o matrilinear. Os filhos pertencem sempre à Casa da mãe. Os casos de
divórcio são resolvidos de forma expedita com a saída do marido de casa.
Todavia, subsiste na memória coletiva local, passada pelos lal gomo, os
“senhores da palavra” de cada Casa, a noção do casamento sul sulik “lança
e sabre”, correspondente a um casamento efetuado há gerações, por norma
cimentando aliança com Casas de povoações vizinhas, pelo qual a mulher é
incorporada na Casa do marido, perdendo a sua filiação de origem, passando
a constituir nesta um dil, uma matrilinhagem específica, a que os seus filhos
e descendentes irão pertencer.
Nos casos de divórcio os filhos do casal são pertença da casa da mãe
e é nesta que vão assumir os seus deveres. Todavia continuam a reconhecer
e a participar nas tarefas da Casa do pai (por exemplo aquando da
construção de casas novas ou na reconstrução da casa sagrada).
149
iliação bilinear (ou dupla filiação)
3 4 5 6
1 2
7 8 9 10 11 12
13 14 15 16 17 18 19 20 21
22 23 24 25 26 27 28
29 30 31 32 33 34 35 36
37 38 39 40 41 42 43 44
150
No entanto está longe de ser exclusiva destas sociedades, sendo um tipo de
filiação bastante comum em toda a humanidade.
Nas sociedades de filiação indiferenciada, ego pertence
indiferenciadamente à linhagem do seu pai e da sua mãe e desde logo às
quatro linhagens ascendentes da linha reta (9-10 e 11-12). Por norma, os
direitos, deveres e obrigações são os mesmos em relação a ambas as linhas
de descendência.
3 4 5 6 7 8
1 2
9 10 11 12 13 14
15 16 17 18 19 20 21 22 23
24 25 26 27 28 29 30
31 32 33 34 35 36 37 38
29
39 40 41 42 43 44 45 46
9
Filiação paralela
151
Diagrama 7: exemplo de filiação paralela
3 4 5 6
1 2
9
7 8 10 11 12
13 14 15 16 17 18 19 20 21
22 23 25 26 27 28
24
29 30 31 32 33 34 35
36 37 48 39 40 41 42
152
algumas sociedades a criança se torna efetivamente membro da “casa” e
da “comunidade”.
Entre os Bunak um pequeno ritual é feito uma semana após o
nascimento da criança denominado aru po` – cabelo sagrado. Consiste no
corte do cabelo e unhas da criança que serão levados pelo pai (ou avô) e
depositados na base de uma árvore determinada como “fria”, caso do
coqueiro ou de uma bananeira. Neste ritual, a criança é trazida pela primeira
vez para fora do local abrigado e quente que é a cozinha. Embora possa
variar de família para família há o hábito de colocar nas mãos da criança
objetos que sejam determinantes para o seu futuro (no caso ilustrado pela
foto foram colocados um caderno e uma caneta).
153
Imploro-vos que o consintais!
Tornai o seu caminho plano para que
ela possa alcançar o cume da
primeira colina!
Ó Vós, ventos, Nuvens, Chuva,
Névoa, vós todos que vos moveis no
ar, suplico que me ouçais!
Uma vida nova chegou para o meio
de vós,
Imploro-vos que o consintais!
Tornai o seu caminho plano para que
ela possa alcançar o cume da
segunda colina! (…)
Infância e puberdade
154
extração de dentes ou outras formas de marcar no corpo essa mudança, de
a tornar socialmente visível e para o individuo a interiorizar. Estes
momentos são também autênticas escolas formais de aprendizagem das
normas e valores da tribo. Como Godelier refere em relação aos baruya as
cerimónias dos jovens homens são muito mais exigentes do que as das
raparigas.
Os ritos de puberdade são momentos de incorporação na sociedade
com uma forte componente psicológica de interiorização de novos papéis
sociais bem como a aceitação de status atribuídos e a possibilidade de obter
outros com o novo estatuto. Pode ser, neste sentido, um fator de
independência social. Citando Cohen, Hoebel e Frost (2001) classificam dois
tipos de sociedades:
Maturidade
155
estranho na intimidade de um grupo de parentesco consanguíneo, o receio
de que o casal possa não ter filhos e a preocupação em criar
convenientemente os filhos. Acresce a necessidade de os recém-casados
solucionarem a questão da sua residência comum.
No entanto, como refere o autor mencionado, há um problema que
não tem uma solução universalmente aceite ou perfeita: a estabilidade dos
casamentos. Este facto pode variar entre sociedades com tipos de filiação
matrilinear ou patrilinear, sendo aparentemente, mais complicados nestas
últimas devido ao pagamento do “preço-da-noiva” que são difíceis de
restituir em caso de rutura. Entre as sociedades matrilineares parece ser
mais fácil a rutura (caso dos bunak). As causas da rutura são tanto pessoais
quanto sociais, podendo haver pressões várias que se exercem decorrentes
das expetativas. A título individual um dos principais problemas é a
infertilidade, tanto da mulher quanto do homem. Em certas sociedades a
idade etária não é similar à idade social. O casamento e, sobretudo, o
nascimento do primeiro filho, é determinante para o reconhecimento pessoal
da maturidade e a possibilidade de o homem poder desempenhar
determinados papéis.
156
várias conforme os autores e entre diferentes áreas das ciências sociais e
humanas (psicologia, política social) e outras (como a medicina).
As origens teóricas e os debates sobre o conceito de família são
recorrentes desde a fundação da antropologia como ciência no século XIX,
registando-se de uma forma interessante um alinhamento entre diferentes
perspetivas teóricas sobre a evolução monogâmica da família e o seu papel
reprodutivo (biológico e económico e cultural, enquanto núcleo de
enculturação/socialização (Barnard e Spencer, 2004), sobretudo nas
sociedades ocidentais onde este desenvolvimento se associa à emergência
do capitalismo industrial e às transformações operadas nos modos de
produção e na organização socioeconómica (Batalha, 2005). O debate sobre
o conceito de família é motivado por fortes cargas emotivas e ideológicas
resultantes das perceções que sobre este tema têm confissões religiosas e
defensores de direitos humanos.
Considera-se que Morgan foi o iniciador destes estudos em
antropologia com a sua obra Sistemas de consanguinidade e de afinidade
na família humana (1871). O autor instaura como condição do
reconhecimento de família a existência de relações de consanguinidade
entre os membros em presença. A existência exclusiva desta “comunidade
de sangue”, suportada por uma narrativa que valoriza estes laços foi
contestada fortemente. Um dos principais autores a propor uma visão mais
cultural e social do parentesco, e da família, foi David Schneider, que advoga
que a família é uma unidade cultural particular que compreende diversos
tipos de parentes, e se estrutura em diversas formas, não exclusivamente
consanguíneas. Uma das suas obras centrais foi American Kinship a Cultural
Account, de 1968.
Todavia, será pertinente registar que, relativamente às funções da
família persiste, apesar dos anos e polémicas, o referencial estabelecido por
Murdock em 1949 (citado em Bernardi, 1988, 288). Segundo o autor as
funções da família são quatro: sexual, económica, reprodutiva e educativa.
A função sexual deriva do facto de através do casamento serem instituídas
as relações sexuais consentidas e socialmente aceite. Por outro lado, a
família é uma unidade económica no sentido em que desempenha uma
157
comunidade de interesses. É ainda no seio da família que são expectáveis a
gestão da reprodução. Por fim, a função educativa resulta do facto de a
família ser, em primeira instância, a instituição responsável pela educação
dos seus descendentes, através do processo de enculturação/socialização
primária.
A família nuclear
84
De facto, se analisarmos o Direito da família em Portugal este também apresenta o mesmo
pressuposto uma vez que distingue “casal”, formado pelo casamento, de família – associada à noção de
descendência e a sua regulação.
85
Para saber mais sobre Robin Fox consultar: http://robin-fox.com/home.htm
158
A noção de família nuclear, que em Direito é também definida como
família natural, está associada à teoria da filiação, segundo a qual o principal
objetivo da família é justamente promover a procriação e salvaguardar a o
processo de regulamentação da filiação. Todavia, Lévi-Strauss, apresentou
uma proposta diferente, introduzindo no que denominou “átomo do
parentesco” (Diagrama 9) um 5º elemento: o irmão da esposa. Desta forma
ele procurou demonstrar a importância e relevância da aliança na
constituição das famílias e dos grupos de parentesco.
As sociedades ocidentais, nomeadamente a europeia, têm também uma
prevalência deste tipo de família, carateriza da pela habitação em comum
deste grupo restrito. Nestas sociedades a tendência é a “decomposição”
progressiva da família, associada a cada novo casamento dos filhos,
persistindo a díade como elemento base (todavia, como refere Ghasarian
(1999). Esta situação demonstra a relevância dada na continuidade
assegurada pela descendência.
159
Diagrama 11: famílias de orientação e família de procriação
2. Famílias poligâmicas
86
É importante ressalvar o facto de que, como veremos na filiação, podem ocorrer duas situações
possíveis aquando da reprodução biológica e a sua articulação com o reconhecimento social do mesmo.
Assim, há o genitor (reconhecido como pai biológico) e a genetrix (reconhecida como mãe biológica)
que podem ou não coincidir com o pater (pai reconhecido socialmente, incluindo o caso da adoção) e a
mater (mãe reconhecida socialmente, nomeadamente em situação de adoção).
160
Conforme a organização social da sociedade poderemos ter uma
prevalência de famílias poliginicas, situação em que um homem tem mais
do que uma esposa (Diagrama 12), ou poliândricas (casos, mais raros, em
que uma mulher tem mais do que um marido).
3. A família extensa
Exemplo: os Baganda (Uganda) e Tanala ( Madagascar). O caso das famílias poliândricas tem no
Nepal e Tibete alguns exemplos. Explore a web para saber mais, indique os resultados dessa
investigação no Fórum.
161
Diagrama 13: família extensa
162
de elementos sobrevivos de situações de viuvez, ou de processos de
divórcio, e a respetiva prole.
Exemplo: Um exemplo etnográfico da família extensa pode ser encontrado entre os Kalinga
(Filipinas) (Marconi e Presotto, 1987). Pesquise na web e apresente os resultados da sua
investigação no Fórum.
163
objeto de mudança na mesma sociedade, ao longo do tempo com a
alteração de condições socioeconómicas87.
Santos (2002, 162-164) identifica uma tipologia com nove modelos de
residência matrimonial: 1) a residência patrilocal; a residência virilocal; a
residência matrilocal; a residência uxorilocal; a residência bilocal (ou
ambilocal) ; a residência alternada; a residência duolocal (ou natolocal); a
residência avuncolocal e a residência neolocal. Vamos resumir estas
cruzando com dados de Panoff e Perrin (1979) e exemplos etnográficos de
Ghasarian (1999).
A regra neolocal (do grego neós, novo) consiste no casal constituir uma
casa independente do local onde habitam os correspondentes progenitores.
É característica dos Inuit, organizados em famílias nucleares, mas das
sociedades ocidentais, em que a mobilidade, por motivos de estudo ou
trabalho, é elevada.
Há um conjunto de regras que se carateriza m pelo facto de somente
um dos cônjuges ter que se deslocar. É a chamada regra unilocal de
residência, característica da residência patrilocal, matrilocal, virilocal e
uxorilocal.
A residência patrilocal (do latim patri, pai) resulta da regra que impõe
aos dois cônjuges a residência na casa pai do marido. Ou, de outra forma,
a regra que leva a noiva a ter que que abandonar a casa dos seus
progenitores e ir viver na casa do pai do seu noivo, futuro marido. O padrão
patrilocal não é forçosamente coincidente com o sistema de filiação
patrilinear, mas é o mais característico. Exemplos etnográficos deste padrão
podem ser encontrados nas zonas rurais da Turquia e entre os Igbo, os
Haussa, os Matis e os Peul.
A residência matrilocal (do latim matri, mãe) pressupõe a regra que
obriga os dois cônjuges a residir junto da mãe da esposa. Assim, aquando
do casamento a esposa permanece na residência da sua mãe enquanto o
87
Têm sido recorrentes as notícias que dão conta de que muitos casais jovens que tinham sua própria
casa, de cariz neolocal, o usual na sociedade portuguesa, regressaram a casa de um dos progenitores
devido às dificuldades económicas
164
marido tem que abandonar a residência dos seus progenitores. Exemplo
desta prática encontra-se entre os Hopi e os Iroqueses.
As regras viriolocal e uxorilocal são variantes das precedentes e alguns
autores (Schwimmer, 2003) não as distinguem. A regra virilocal (latim vir,
viri: homem, marido) especifica que aquando do casamento a esposa tem
que ir viver nas terras ou proximidade do pai do marido. Exemplo da prática
desta regra são os Wolof e os Tâmules da Ilha da Reunião, estudados por
Ghasarian.
Por seu lado, a regra oposta, a uxorilocal (latim uxor, -oris, mulher,
esposa), define que aquando do casamento, o marido tem que ir morar nas
terras ou proximidade da mãe da sua esposa. O exemplo dos Hopi pode de
novo ser dado uma vez que ilustra a dinâmica assocada a estas regras.
Embora o padrão inicial possa ser, como referido, matrilocal, as tensões
decorrentes de residir na casa materna com um elevado número de
parentes, leva a que o casal construa uma casa nas terras da mãe da
esposa, passando ao regime uxorilocal.
A residência bilocal (ou ambilocal) é baseada na regra que concede aos
recém-casados a hipótese de optarem por estabelecer a sua residência quer
junto dos progenitores da esposa ou do marido. O critério de escolha deriva
da conjugação estratégica de interesses pessoais de ambos os elementos
do casal. O exemplo dos Iban de Borneu é ilustrativo desta prática.
A residência alternada pressupõe que, de acordo com intervalos de
tempo convencionados, a domiciliação do casal e filhos se faça entre a
residência uxorilocal e a residência virilocal. Um exemplo deste tipo de
prática são os habitantes da ilha de Dobu.
A residência duolocal (ou natolocal) consiste em que cada uma dos
cônjuges resida separadamente, com a sua família. Esta separação pode ser
sazonal, ocasional ou permanente. Ghasarian (1999, 135) dá o exemplo dos
Hopi, onde entre os quais o jovem marido pode permanecer várias semanas
na casa da sua mãe enquanto a sua esposa fica em casa dos seus próprios
pais. Entre os Haussa, aquando do batismo, a mãe vai com o filho para casa
dos pais por um período de seis meses. Entre os Tuaregues o casal habita
durante um período pós casamento neste regime durante um ano, com o
165
marido a visitar ocasionalmente a sua esposa, após o que se estabelecem
patrilocalmente.
166
Morte (rituais, herança e sucessão)
167
Fotos: Bunak: 1. velar o corpo e 2.
receber o “bem”, o fresco: familiares
passam por debaixo do caixão do falecido.
2005. LSousa.
168
Conforme refere Ghasarian (1999) a
filiação estipula por norma a sucessão e a Primogenitura:
regra que define
herança. Impõem-se a distinção entre uma prioridade, na
herança ou
herança e sucessão na perspetiva sucessão, ao mais
antropológica. A herança diz respeito aos velho dos germanos
(decrescendo o
bens - móveis e imóveis – e encargos que um estatuto entre estes
de acordo com a
indivíduo deixa após a sua morte e que serão ordem de
objeto de partilha/assunção, de acordo com nascimento)
herança
sucessão
169
Para finalizar: os principais tipos terminológicos
170
Diagrama 17: terminologia tipo esquimó
171
Diagrama 19: terminologia tipo hawaiana
filhos/as
172
Diagrama 20: terminologia tipo crow
173
A terminologia sudanesa é a mais descritivas das listadas.
Carateriza-se por um sistema de filiação patrilinear na qual as irmãs,
primas paralelas e cruzadas são todas designadas por termos diferentes
(como pode ser observado no diagrama, em que cada parente tem, para
ego, uma denominação diferente exemplificada pela letra – que não se
repete).
K L M N O P
C D E F A EGO B G H I J
174
A linhagem, a linhada e o clã
A parentela
175
determinado evento do ciclo de vida ou circunstância social. Cada individuo
tem assim a sua parentela, que pode partilhar com outros (caso dos irmãos)
mas nunca totalmente. Todavia, Ego está limitado nas suas escolhas pela
dinâmica parental que o antecedeu. A sua potencial parentela resulta da que
foi estabelecida pelos seus antepassados e familiares.
Qual é então a sua utilidade? Entre algumas sociedades estes
potenciais parentes podem ser um recurso mais vasto do que a mera
linhagem, constituindo assim uma possibilidade de agregação social. Um
exemplo da sua utilidade pode ser visto em situações de conflito ou de
processos políticos de arregimentação de afiliados. Ghasarian (1999) dá
alguns exemplos do uso da parentela. Robin Fox refere que nas ilhas Tory,
no Noroeste da irlanda, a constituição das equipas para os barcos de pesca
assenta na parentela, baseada na filiação e aliança. Um exemplo clássico é
o que Evans-Pritchard entre os nuer, que tinham a obrigação de reparar,
por pagamento ou guerra, o assassínio de um membro da comunidade,
processo similar ao que se passava na Córsega com a vendetta.
Uma forma de parentesco relacionado com a parentela é a instituição
de relações de parentesco que não são forçosamente biológicas e
genealógicas. Ghasarian (1999, 162) explica de que forma este parentesco
fictício” ou “pseudoparentesco” é apropriado pelo parentesco espiritual,
instituído pelas relações de apadrinhamento, concretizadas no momento do
batismo. Este ato ritual cria dois sistemas de relações de parentesco: o
apadrinhamento e o de compadrio, que trazem para o seio familiar
potenciais amigos, ou detentores de reconhecimento social (em muitas
comunidades rurais portuguesas dos anos 40 era comum o apadrinhamento
por parte da figura politica/económica mais importante da aldeia).
176
3.2 Antropologia e poder
Pressupostos do tema
Objetivos gerais
177
3.2.1 A organização política das sociedades:
política e poder
178
• a manipulação: a capacidade de fazer-se obedecer ao não
proporcionar uma orientação suficiente sobre a situação em
questão (ou, adicionando ao autor, informação deturpada).
179
• centralizado ou descentralizado: a forma como se exerce e se
reconhece a autoridade central: por todos os grupos ou somente
em grupos distintos
180
3.2.2 Perspetivas teóricas sobre a organização
política
181
- a abordagem funcionalista faz da organização política um
aspeto da organização total da sociedade. Através da diferenciação
dos papéis sociais, entre pessoas e entre grupos de pessoas, são
criados um certo número de papéis exclusivos (chefes, reis, juízes,
administradores, etc.) aos quais se atribuem direitos e privilégios
(estatuto político).
182
próprios ou reconstruídos pelo antropólogo. O que se pretende é
analisar o “modelo ideal” e não a realidade concreta em toda a sua
diversidade. Para os estruturalistas a compreensão de um sistema
social opera-se através da descoberta das regras subjacentes aos
princípios operantes – a um nível superficial – na sociedade.
Um exemplo é o trabalho de Leach (1973)88 sobre os Katchin da
Birmânia. Na sua análise do sistema político Katchin o autor detecta
uma contradição estrutural nesta sociedade - que embora surja
como coerente, estável e equilibrada - os dados etnográficos
revelam uma instabilidade inerente ao sistema político real. Para
explicar esta contradição o autor elabora dois tipos de sistemas
políticos ideais, o tipo “gumlao” de sociedade igualitária e o de tipo
“gumsa” de carácter feudal, que se interligam e sucedem no tempo.
No campo do parentesco a troca restrita ou generalizada preconiza
modelos políticos distintos, sendo o segundo caraterístico das
sociedades hierarquizadas do sudeste asiático, tal como a dos
Katchin. Mas, a melhor contribuição dos estruturalistas no campo
da antropologia política prende-se com a análise simbólica do
poder, do ritual e dos mitos – áreas determinantes no campo
político, por exemplo, como fonte de legitimação. As limitações
desta abordagem resultam da sua ênfase sincrónica, negligenciado
a perspetiva histórica, bem como a redução dos sistemas a uma
conceção ideal, subtraindo-se ao estudo das estruturas tal como
existem.
88
Disponível em língua portuguesa: Leach, Edward (1995) Sistemas Políticos da Alta Birmânia, edusp
183
sociedade. Para o autor antropologia política consiste em estudar
as transformações dos sistemas políticos elucidando o seu processo
de formação histórica.
184
por uma nova reflexão sobre o marxismo após o desaparecimento
de Estaline e pela independência de ex-colónias, lutas de libertação,
emergindo o conceito de terceiro mundo e as novas políticas de
exploração económica.
Uma boa resenha das principais abordagens teóricas é feita por Lewellen
(2008) que sintetiza as principais teorias em dois grandes grupos: o
estruturo–funcionalismo e o enfoque processual:
185
Três perspetivas teóricas em antropologia política (traduzido de Lewellen, 2008, 116)
Enfoque processual
A sociedade, a tribo, o grupo O “âmbito político”, uma A “arena” política, uma área
social, etc, tratado como um conceção flexível e em que os protagonistas
conjunto ideal; este grupo foi relativa que faz individuais ou pequenos
considerado, por razões analíticas, referência a toda a área grupos lutam pelo poder
como um sistema fechado na onde possa ter lugar a político; as arenas políticas
Unidade de medida em que se minimizava o interação política, pode podem estar constituídas
análise meio mais amplo incluir uma parte da todas ou em parte por
sociedade ou transcender fações, relações patrão-
as fronteiras étnicas ou cliente, partidos, elites e
sociais outros grupos para-políticos
informais
188
O bando dispõe de um governo mínimo. Trata-se de grupos de pequena
dimensão que se deslocam num território de dimensões variáveis de acordo
com as estações do ano. Vivendo da caça e recoleção o bando não dispõe de
reservas acumuláveis91, os seus membros não possuem estratificação social
pois não têm nada a redistribuir. Os bens obtidos são por norma partilhados
entre todos os membros do grupo.
91
Este facto não invalida que haja formas de guardar bens, como água, em pequenas quantidades.
92
Este conceito tem sido alvo de inúmeras críticas pela sua incapacidade de descrever a realidade. Sahlins,
referido por Pilon-Le, 1979) usa o termo no contexto de “tribos” e chefaturas” mostrando assim que o
conceito abarca uma multiplicidade de situações. O seu emprego pode assim conduzir a uma falsa
interpretação da realidade (Pilon-Le, 1979, 28)
189
representantes de todos os grupos familiares existentes. Esta limitação de
poder estende-se ao seio da família onde a liderança é, por norma, atribuída
ao mais velho. Por norma as decisões deverão ser obtidas por consenso entre
todas as partes envolvidas.
190
As chefaturas caraterizam-se pela existência de um chefe ou líder que
regula os assuntos coletivos e cuja legitimidade resulta de um conjunto de
fatores entre os quais se poderá incluir o parentesco mas não como elemento
exclusivo. Por norma o termo aplica-se a comunidades cuja base territorial
apresenta uma dimensão regional e não meramente local.
192
3.2.4 O processo político e o controlo social
A lei pode ser distinguida em lei substantiva e lei adjetiva e entre lei
orgânica e lei tirânica. A lei substantiva identifica as normas que devem ser
sancionadas por ação legal enquanto a lei adjetiva ou processual designa a
pessoa, ou as pessoas, que podem de direito aplicar o castigo relativo à
violação de uma lei substantiva.
A capacidade de coerção que a lei aufere representa um perigo uma
vez que pode incorrer em subjugação de uma maioria por uma minoria que
se apropria do poder e do exercício da lei. Assim, quando a atribuição da lei
não é reconhecida socialmente, mas imposta pela força, estamos perante um
sistema de lei tirânico. Pelo contrário, a lei orgânica remete para um sistema
legal em que há um reconhecimento e aprovação social das leis vigentes.
A lei desempenha, segundo Hoebel e Frost (2001, 306-307) quatro
funções essenciais para manutenção das sociedades: substantivas, adjetivas,
mediadoras e readaptativas:
195
4. readaptativa - a redefinição contínua das relações entre os
indivíduos e os grupos quanto às condições de mudança de vida,
para manter a adaptabilidade e flexibilidade tanto na resposta
da lei substantiva, quanto da lei processual aos valores instáveis
e às novas tecnologias.
• Privação de liberdade;
• Penas físicas, sanções corporais,
• Pena de morte
• Exílio (imposto ou não)
196
Bibliografia
Clifford, James e Marcus, George (ed.). 1986. Writing Culture The Poetics and
Politics of Ethnography, Berkeley, University of California Press
197
Copans, Jean, (coord.). 1974. Antropologia, ciência das sociedades
primitivas?. Lisboa, Edições 70
Friedberg, Claudine. 1980. «Boiled Woman and broiled Man: Myths and
Agricultural Rituals of the Bunaq of Central Timor». In The Flow of Life:
Essays on Eastern Indonesia, ed. James Fox. Cambridge, Harvard
University Press, 266- 289.
Murdock, Gorge. 1967 [1949]. Social Structure. New York : Macmillan Co.
Disponível em: http://archive.org/details/socialstructurem00murd
Sousa, Lúcio. 2010. An tia : partilha ritual e organização social entre os Bunak
de Lamak Hitu, Bobonaro, Timor-Leste. Tese de Doutoramento. Lisboa,
Universidade Aberta. URL:
https://repositorioaberto.uab.pt/handle/10400.2/1703
Tylor, Edward B. 1977 (1871) Primitive Culture, Vol.1, New York, Gordon
Press
201
Lúcio Sousa, julho 2019.
202